Post on 15-Dec-2018
TORNAR-SE “VADIA”: AÇÕES EDUCATIVAS DE UM MOVIMENTO
FEMINISTA
Carolyna Ferreira Barroca
PUC-Rio
Introdução
Este artigo é parte das primeiras reflexões de minha pesquisa de mestrado no
Programa de Pós Graduação da PUC- Rio, cujo objetivo principal é compreender as práticas
educativas que fazem parte da rotina de luta da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro.
Buscarei aqui apresentar algumas considerações sobre as possibilidades educativas do
movimento em questão.
O trabalho foi dividido em três partes, iniciando com algumas considerações sobre as
observações realizadas nas manifestações ocorridas no dia 8 de março no centro da cidade do
Rio de Janeiro. A segunda parte apresenta um breve histórico do movimento, desde a sua
eclosão em Toronto até as suas primeiras ocorrências no Brasil. Abordarei ainda algumas
características da Marcha, tendo como fonte outras pesquisas que também estão em
andamento ou foram recém concluídas sobre o movimento. No terceiro momento,
apresentarei algumas considerações teóricas acerca das possibilidades educativas que podem
ser vislumbradas e vivenciadas dentro dos movimentos sociais, tendo como premissa o
aprendizado pelo trabalho, por meio da prática (CANÁRIO, 2006).
Um dia ressignificado
Como resultado dos primeiros contatos com o movimento, enquanto objeto de
pesquisa, pude perceber que a Marcha das Vadias é um tipo de movimento social que surgiu
em um contexto social e político em que os excluídos passaram a protagonizar suas
demandas, não dependendo mais de outras instituições políticas para tais. A discussão
acadêmica sobre o tema, que possui diferentes focos, me possibilitou a constatação de que a
multiplicidade e o diverso substituíram o centralismo e, em certa medida, o formalismo de
outras formas de atuação coletiva. Diferente da atuação de outros movimentos que,
historicamente, atuaram em parceria com instituições partidárias de esquerda, a Marcha se
propõe a ser um movimento em que uma das principais características de sua forma de
organização é a horizontalidade.
Tais características presentes nas diversas Marchas organizadas pelo mundo não são
exclusivas a elas. A ocupação das ruas pelos corpos dos excluídos em formas de marchas,
ocupações e afins ganham maior visibilidade. Fazem parte do surgimento de novas formas de
protesto e de reivindicação social para o atendimento de demandas de certos grupos e/ou
indivíduos que evidenciam o seu descontentamento com o papel desempenhado pelo Estado,
sua estrutura e com aspectos da cultura hegemônica.
Tendo uma visão sociológica como referencial, tais movimentos se estruturam na
forma de redes, enquanto uma articulação política, ideológica ou simbólica (SCHERER-
WARREN, 1999). A partir do estudo de movimentos sociais sob o referencial teórico
europeu, a autora apresenta o conceito de rede enquanto uma área de movimento, formada por
grupos ou indivíduos que compartilham de uma identidade coletiva e que desafiam os padrões
dominantes e que se baseiam em códigos culturais e solidariedades construídas no cotidiano.
Tais características encontram-se presentes na Marcha, evidenciadas nos conceitos de
sororidade, e nas manifestações presenciais por meio de performances e virtuais por meio da
utilização das redes sociais.
A articulação por meio de redes burca uma interlocução entre o global e o local, entre
o particular e o universal, entre o uno e o diverso e interconexões entre as identidades dos
atores envolvidos com o pluralismo. Nas relações oriundas destas articulações, a utilização de
redes sociais tem se mostrado não só eficaz, mas também necessária.
Tais características, mobilizações e visibilidade proporcionam diversas possibilidades
de ensino, que tem como foco a formação social e crítica. Acredito ser importante a
demarcação de meu posicionamento de que a criação da Marcha das Vadias por si só já se
configura como um aprendizado para a nossa sociedade patriarcal, sexista, machista,
homofóbica e com outros tipos de fobias. Motivo de tal afirmação parte da constatação
histórica da posição subalterna que as mulheres ocupam em nossa sociedade e que, a partir
das transformações motivadas por outros movimentos sociais, incluindo principalmente os
movimentos feministas, elas passaram a protagonizar suas bandeiras de luta das mais variadas
formas, dentre elas a Marcha das Vadias.
A grande visibilidade e o crescente aumento de participantes evidenciam que as
formas de atuação dos movimentos feministas sofreram alterações estruturais. Diversas/os
teóricas/os sobre este tipo de atuação abordam o movimento como resultado da Terceira
Onda do Feminismo1. No entanto, é importante ressaltar que a Marcha é fruto também das
próprias contradições vivenciadas pelos modelos de movimentos feministas que atuavam em
espaços mistos2 de militância, mas que também enfrenta as dificuldades de se lidar com o
grande número de identidades de mulheres.
Este trabalho não pretende uniformizar ou hierarquizar as lutas cotidianas, que
ocorrem dentro de movimentos organizados ou de forma autônoma e solitária, em muitos
casos. No entanto, os acontecimentos do ato do dia 8 de março deste ano, no qual a Marcha
das Vadias do Rio de Janeiro foi um dos movimentos organizadores, nos apresentam alguns
elementos nos quais podemos compreender de que forma estes espaços possibilitam novas
potencialidades pedagógicas, onde a aprendizagem por meio da prática se faz presente.
Como proposta de luta para o Dia Internacional da Mulher, a Marcha organizou um
ato no Largo da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2015
em conjunto com outros movimentos feministas independentes. O evento foi aberto e possuía
em sua programação a proposta de “ocupar a praça com muita garra e criatividade para lutar
pela legalização do aborto e pela vida das mulheres!” 3. A convocação e divulgação do evento
se deram por meio das redes sociais, em especial, o Facebook.
A utilização do meio virtual (Facebook, Blog, Twitter, email, YouTube, dentre outros)
se faz bastante presente na marcação de reuniões, divulgação de discussões, convocação das
marchas e divulgação das próprias manifestações, bem como para a publicização de pessoas
ou situações que tiveram autoria na violência de gênero. A circulação de ideias, informações e
tomadas de posicionamento sobre os mais diversos assuntos no meio virtual tem sua
importância para a articulação dos atos. Pesquisas realizadas por meio de questionários
evidenciam que mais de 70% das participantes utilizam bastante a internet, sendo o Facebook
1 Há autores que utilizam o termo “ondas” para caracterizar as diferenças de atuação e bandeiras de luta do
movimento feminista no Brasil e no mundo. No entanto, Gomes e Sorj (2014), que também possuem uma
pesquisa em andamento na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, nos atentam que esta periodização do
feminismo em ondas vem sendo contestada. “Em primeiro lugar, por que a metáfora de “onda” remete a um
processo de constante substituição de feminismos, no qual o anterior se esvai e é sucedido por um novo,
ignorando as linhas de continuidade entre eles” (GOMES e SORJ, 2014, p. 436). Esta periodização em décadas
específicas afeta a teoria feminista, pois conforma a ideia de rupturas radicais, quando o movimento ainda
possui reivindicações que não foram atendidas. A utilização do termo “ondas” homogeneíza a atuação de
diversos movimentos feministas ao longo da história que não se encaixam nessas características fechadas,
invisibilizando as disputas de poder e de luta que ocorreram e ainda ocorrem dentro dos movimentos
feministas em geral. 2 São espaços em que mulheres e homens atuam juntos. No entanto, há diversos relatos de experiências de
machismo nestes espaços, vivenciadas inclusive por mim. Estas ocorrências motivam, cada vez mais, que as
mulheres busquem outras formas autônomas de organização dando origem a diversos coletivos feministas em
todo o mundo. 3 Descrição do evento no Facebook, disponível em: https://www.facebook.com/events/1419345745028641/
Acesso em 3 de abril de 2015.
a ferramenta de acesso mais comum.4 A presença marcante da inclusão digital das integrantes
e simpatizantes do movimento se verifica como algo de importância sumária para o
movimento. Além das funções supracitadas, para a divulgação de espaços de formação e de
atuação, tais como cineclubes e debates que podem ou não ser organizados pela Marcha do
Rio, de outros estados ou de outros movimentos e coletivos feministas.
Tratando-se especificamente da utilização do Facebook, ela divide-se em dois espaços
em que o diálogo entre as integrantes do grupo materializam a atuação em forma de rede. O
primeiro espaço se refere ao grupo fechado do aplicativo no qual estão presentes as
integrantes fixas, as simpatizantes, incluindo homens e o segundo é identificado com a página
oficial do movimento intitulada Marcha das Vadias Rio de Janeiro, de acesso e visualização
públicos.
Entendo o grupo como um local virtual no qual as integrantes do movimento buscam
trocar ideias e também apresentar um pouco mais das suas realidades e dos assuntos que mais
as instigam pessoalmente. Nesse sentido, é possível perceber este local como um meio de
disputa. As convergências são evidenciadas por meio de curtidas e de comentários de apoio. E
as divergências logo se fazem presentes por meio de discussões acaloradas nos comentários
de cada post. Se verificam, portanto, como espaço do promoções de discussões que geram a
necessidade de tomada de decisões e opiniões que são formas de aprendizados na medida em
que também viabilizam a desconstrução individuais e coletivas nesse processo.
Formas de apoio virtual foram observadas nas publicações sobre marcações de
reuniões de organização de marchas anteriores que possuem vários comentários de mulheres
interessadas em ajudar na construção do evento. Tratando-se do grupo fechado, as integrantes
podem expor suas opiniões enquanto indivíduos que fazem parte de um coletivo, e que
defendem, de certa maneira, uma identidade coletiva. Esta relação se configura de maneira
diferente quando observamos a página oficial do movimento.
Ainda não foi possível saber quem é (são) responsável (is) por administrar a página e
gerenciar suas postagens. A frequência de publicações é alta e se materializa sobre os mais
diversos assuntos, tais como, divulgação de eventos frutos de iniciativas de outros coletivos
ou por motivações individuais , divulgação de textos sobre machismo, feminismo, transfobia,
sexismo, homofobias, legalização e criminalização do aborto, denúncias de reproduções
sociais sobre gêneros, etc. A maioria das postagens possuem um pequeno comentário sobre o
que é publicizado evidenciando uma postura crítica ou de apoio sobre o assunto em questão.
4 Ver Name e Zanetti (2013).
Mas o que é importante ressaltar como uma diferença nesses dois espaços é que o primeiro (o
grupo fechado) possibilita que as participantes, enquanto indivíduos produzam suas
argumentações e divulguem qualquer informação. Na página oficial, as opiniões e publicações
são divulgadas enquanto uma opinião e/ou defesa do grupo, do movimento como um todo.
Outra argumentação a qual não podemos ignorar diz respeito à fluidez e inconstâncias
nas militâncias nestes espaços virtuais. São espaços em que as pessoas se manifestam por um
tempo ou que comentam sobre determinados assuntos, ignorando outros. O alcance das redes
sociais, atualmente, é multifacetado, global e em tempo real. Isso facilita que a frequência de
postagens seja regular e elevada. O fato de que as redes sociais se configuram como espaços
virtuais, onde as pessoas que utilizam esses locais não possuem a obrigatoriedade da sua
presença faz com que este espaço ocorra com ou sem a presença de todos os integrantes do
grupo.
No entanto, embora a mídia digital seja constante e frequente, é na materialidade física
das Marchas que se verifica que tais bandeiras não se restringem a militância virtual. A cada
ano cresce o número de adeptas da Marcha, mesmo com suas particularidades e contradições
internas sobre o feminismo e sobre as diferentes formas de lutas que são atreladas às
perspectivas classistas, de gênero e de raça. Tal materialidade física se fez presente no ato do
Dia Internacional da Mulher, no dia 9 de março deste ano.
A temática principal do ato advém da atual discussão no congresso sobre a proposta de
legalização do aborto e somada com a fala do presidente da Câmara dos Deputados de que a
mesma só seria votada “por cima de seu cadáver” 5. O elevado número de mulheres que
morrem por conta da ilegalidade do aborto complementou a pauta de reivindicação do
movimento nesta ocasião. Em decorrência desta opção, um boneco, representando o
presidente da Câmara, foi colocado no chão da praça para que todas as mulheres passassem
por cima dele, dando materialidade à fala do deputado. Performances como esta são bastante
comuns na eclosão das Marchas e possibilitam a tomada de um posicionamento público por
parte das militantes e das participantes do evento. Proporcionam, ainda, o exercício da
imaginação, visto que as performances são livres e podem ocorrer de forma não planejada
previamente.
5 http://oglobo.globo.com/brasil/eduardo-cunha-sobre-aborto-vai-ter-que-passar-por-cima-do-meu-cadaver-para-
votar-15290079. Acesso em 30 de março de 2015.
Outros itens da programação do evento que valem destacar foram as construções de
materiais, microfone aberto e sarau6. Atividades como esta apresentam a potencialidade
pedagógica de dar maior autonomia aos presentes nesta manifestação. Historicamente,
conforme já mencionado, o direito de fala foi e é negado ao sexo feminino e isto é colocado
em evidência neste tipo de construção coletiva de forma espontânea. É bom lembrar que este
tipo de atividade está sendo inserido também em diversos outros movimentos feministas. A
conscientização de que é preciso dar o poder de fala às mulheres é cada vez maior e se
viabiliza como um dos passos que levam à maior autonomia na formação desta
militante/participante.
Outra atividade observada no ato que merece referência foi a de construção e incentivo
à coletividade e sororidade por meio da proposta de formação de uma performance encenada
por todas as presentes onde a ideia era a de que cada participante levasse um sapato a mais
para que o mesmo pudesse representar o número de mulheres mortas por conta da
criminalização do aborto. Ainda na agenda houve a divulgação de um dos atos organizados
para o lançamento da Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro evidenciando que tais
espaços também estão abertos e incentivando outras formas de atuação, sem ignorar as
especificidades de cada identidade presente no coletivo Marcha das Vadias.
Estes foram apenas alguns exemplos dos tipos de vivências que são despertadas no
cotidiano de lutas de movimentos sociais. As práticas descritas nas quais se percebem ações
que buscam o empoderamento das mulheres, a desconstrução das padronizações de gênero e
também o incentivo à solidariedade potencializam outras formas diferentes de aprendizados
que não são comuns aos espaços formais de ensino. Neste tipo de prática pedagógica
(Libâneo, 2007; Canário, 2006) as experiências vividas produzem concepções críticas,
principalmente sobre as questões e temáticas que regem a desigualdade estrutural de nossa
sociedade. A partir daí, novas atitudes podem ser tomadas buscando a promoção da igualdade
e transformação da sociedade. Para compreender melhor este processo, uma apresentação
sobre o contexto de formação da Marcha e sobre o que busco problematizar sobre essas
potencialidades pedagógicas (Libâneo, 2007) se faz necessário.
Mulheres em marcha
6 Atividades também descritas na página do evento no Facebook.
A primeira Marcha das Vadias (SlutWalk) ocorreu em Toronto, Canadá, em 2011. O
caso que desencadeou o evento foi a fala de um policial durante uma palestra sobre segurança
dentro do campus na Universidade de York, após a ocorrência de muitos casos de abusos
sexuais. De acordo com o policial Michael Sanguinetti, uma das possibilidades de prevenção
destes casos de abusos sexuais seria a mudança na maneira de se vestir das mulheres, isto é,
elas não deveriam se vestir mais como sluts (vadias, putas). Tal comentário foi interpretado
como um dos resultados da ótica machista e do controle sobre o corpo da mulher ainda
presente em nossa sociedade.
Devido à visibilidade do caso, em abril daquele mesmo ano, cerca de três mil mulheres
se reuniram no Queen’s Park, em protesto contra todas as formas de opressão à mulher. Após
a ocorrência no Canadá, a Marcha foi realizada nos Estados Unidos, Austrália, Nova
Zelândia, Grã-Bretanha, Holanda, Suécia, Argentina e Índia, dentre outros países (MORAIS,
2013). No Brasil, onde ganhou o nome de Marcha das Vadias, a primeira ocorrência foi em
São Paulo, também no ano de 2011, e se expandiu para outras cidades. A cada ano a Marcha
ganha mais adeptos e mais ocorrências.
A utilização do termo Sluts/Vadias trata-se de uma ressignificação da palavra pelas
manifestantes buscando maior autonomia sobre seus corpos e maior liberdade sexual e social.
A Marcha se inseriu dentro de um novo contexto de luta dos movimentos feministas pelo
mundo e pelo Brasil que defendem a igualdade de condições de gênero. Além da posição de
defesa da mulher, o movimento também reivindica uma luta contrária ao ideal
heteronormativo e monogâmico dominante no contexto nacional.
Por movimento social, Gohn (2011) argumenta ser a compreensão da busca pela
concretização de ações coletivas que possuem um caráter sociopolítico e cultural e que ainda
apresenta inúmeras formas de organização e de atuação. Essas particularidades sugerem
diferentes demandas e ocasionam a formação de diferentes grupos que possuem identidade
própria, mas que não estão impedidos de se relacionar e de formar uma frente de atuação
conjunta em algumas manifestações públicas ou reivindicações que se dão no âmbito jurídico
e/ou legislativo.
A Marcha, materializando a dinamicidade destes tipos de reivindicação, é composta
por mulheres e homens cis e trans, embora estes não tenham participação ativa e constante, ou
seja, não participam como protagonistas da marcha, mas como sujeitos que a apoiam.
Historicamente, a mulher ocupa um lugar secundário nas formações culturais ocidentais7. No
Brasil, a idealização da mulher é datada desde a época da colonização em que mulheres eram
trazidas à Colônia a partir de duas definições binárias, para ser esposa ou para ser prostituta.
A mulher esposa assumiria as tarefas domésticas e a ela seria delegado amplo uso do espaço
privado. Enquanto que ao homem, era incentivado o uso do espaço público. Compreendo
como espaço público não só a participação política, mas também o espaço de fala, o que
acarretava pensamentos e preocupações majoritariamente masculinas, enquanto que os
posicionamentos femininos eram delegados para o lugar da invisibilidade.
Tal mentalidade social tem sido reforçada pela religião e, durante o século XIX,
também foi reforçada pela ciência. A distinção biológica (dimorfismo sexual) foi amplamente
utilizada como fator determinante das funções sociais a serem desempenhadas por elas e eles.
Às mulheres cabia a maternidade, visto que lhes foram assim “determinadas naturalmente”,
devido à capacidade de gestar uma criança, enquanto que aos homens caberiam os trabalhos
intelectuais, externos e o provimento da casa.
Durante o século XIX, a sexualidade estava diretamente relacionada aos aspectos
reprodutivos. Tal contexto fez com que a heteronormatividade fosse colocada no centro das
relações sexuais, bem como os comportamentos delegados aos homens e às mulheres para que
a reprodução da espécie humana se concretizasse. Atrelado a esta discussão, insere-se o
conceito de gênero que é definido e construído socialmente a partir da determinação biológica
visível. Scott (1990) define o gênero como sendo um elemento construído a partir das relações
sociais que são baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Atualmente, a influência
dessas prerrogativas sexuais e sociais ainda embasa argumentações que delegam um lugar
secundário ao feminino.
A partir destas discussões e com as diferenças locais (não somente dentro de sua
ocorrência em diversas cidades do Brasil, mas também no mundo) a Marcha comunga dos
desafios que são colocados hoje ao feminismo. “Em outras palavras, em todos os lugares, a
marcha se depara com a necessidade de gerenciar os critérios que definem quem o feminismo
inclui e exclui” (GOMES e SORJ, 2014, p. 437). As autoras abordam que o sujeito político do
feminismo apresenta-se mais diversificado, não se definindo nem se enquadrando pelas e nas
identidades sexuais e biológicas da mulher.
7 Também há experiência de invisibilização da mulher na cultura Oriental, mas esta não é foco de nossa análise
neste trabalho.
A utilização do corpo é central na forma de atuação da Marcha. É comum em todas as
eclosões do movimento que o corpo assuma o papel de meio de protesto e como reivindicação
de autonomia. Palavras de ordem são escritas em seus corpos, bem como a prática do topless
como subversão à opressão dos padrões estéticos que são impostos, bem como dos padrões de
vestimenta da mulher enquanto todos os homens podem, por exemplo, andar livremente sem
camisa nas ruas sem serem atacados. Harvey (2012) fala sobre a legitimação do uso do corpo
como espaço político no qual o poder coletivo de corpos ocupando um espaço público
continua sendo um bom instrumento de oposição quando o acesso a todos os outros meios
está bloqueado (HARVEY, 2012, p. 61)
O corpo se torna objeto de reivindicação na Marcha na defesa da legalização do
aborto, pautada no empoderamento da mulher sobre si e também em seu posicionamento
contrário à violência de gênero, por compreender que este aspecto ainda é muito marcante nas
relações que se estabelecem em nossa sociedade.
Esta, teoricamente, engloba tanto a violência de homens contra mulheres
quanto a de mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é
aberto, sendo este o grande argumento das críticas do conceito de
patriarcado, que como o próprio nome indica, é o regime da dominação-
exploração das mulheres pelos homens. (SAFFIOTI, 2004, p. 44)
Um dado importante sobre a composição da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro
aponta8 que a maioria das integrantes são mulheres jovens, brancas e com alto grau de
escolarização. Name e Zanetti (2013) apontam ainda que este também é o perfil das jovens
que aderem ao movimento nas ruas. Esta composição gera algumas contradições internas,
visto que o movimento feminista negro, por exemplo, possui as suas particularidades e que
muitas militantes deste movimento não se sentem representadas pela Marcha. É importante
destacar aqui que o movimento feminista negro se diferencia (e reivindica essa diferença) do
movimento feminista organizado por mulheres brancas. Tais diferenças também são
levantadas na questão do uso do termo “vadias”, que possui um peso histórico muito maior
para as negras, não sendo utilizado, nem ressignificado por elas. Exemplos similares também
são percebidos na conjuntura de luta das mulheres trans.
São nestas contradições que se verificam as potencialidades educativas do movimento,
visto que a formação da identidade coletiva passa por todas estas particularidades.
8 Name e Zanetti (2013); Gomes e Sorj (2014).
Tornar-se vadia
Libâneo (2007) alerta para a generalização de conceitos relativos às práticas
educativas visto que as definições formuladas são produto do olhar de diferentes formações.
Partindo da premissa de que a educação se constitui como um processo de desenvolvimento
individual e também das relações interpessoais. A prática educativa é, portanto, sempre uma
expressão de uma determinada forma de organização das relações sociais numa dada
sociedade. Defende que a educação compreende um conjunto de processos formativos que
podem ser intencionais ou não, institucionalizados ou não, que buscam o desenvolvimento
individual e inserção social. A primeira compreende, portanto, todo fato, influência, ação,
processo que ocasiona uma intervenção na configuração da existência humana, individual ou
grupal.
Na mesma perspectiva, Canário (2006) afirma que o ser humano aprende durante toda
sua vida e defende que o trabalho de aprender, desenvolvido dentro do ambiente formal de
ensino, seja substituído por “aprender pelo trabalho” no qual por meio da prática o
aprendizado será de forma mais autônoma e com maior capacidade para o tratamento de
questões relativas à diferença.
A defesa da atuação coletiva é um dos principais pilares de sustentação e de
compromisso da atuação em movimentos sociais. A necessidade de lidar com o diverso,
intrínseca nesse tipo de relação e atuação social, ocasiona a existência de possibilidades para a
construção e reconstrução de conhecimentos sobre si, sobre o mundo e sobre as ações no
mundo. Schütz (2004) argumenta que as atividades desenvolvidas contra as desigualdades e
injustiças sociais geram constantes transformações na percepção de mundo de cada sujeito
que milita num determinado movimento. As mudanças ocorrem por meio da formação
ideológica e da defesa de uma utopia, mas também a partir da adoção e ressignificação de
símbolos para o fortalecimento das ideias e das argumentações, necessárias para externalizar o
discurso proposto.
Neste sentido, as potencialidades das práticas educativas intencionais dos movimentos
sociais podem ser verificadas de forma indireta e quase inconsciente, na medida em que
ocorre por meio de vivências cotidianas e por meio do estabelecimento de novas interações
sociais. Podem ocorrer a partir de uma característica mais formal por meio de cursos de
formação e dos processos de ensino e aprendizagem dos princípios, práticas e documentos do
movimento em questão. Os movimentos sociais se configuram como um local de
aprendizagem diverso e plural, uma vez que as/os militantes e as pessoas que são por estes
aproximadas atuam dentro do coletivo visando a sua expansão, onde as manifestações,
passeatas e apitaços, por exemplos, podem ser apontados como ações motivadoras.
No caso específico da Marcha, a vivência com homens e mulheres cis, transexuais,
transgêneros e homossexuais, bem como as particularidades atribuídas às questões de classe,
de raça/etnia e de identidades e culturas diferenciadas produzem um ambiente bastante
fecundo para que novas formas de aprendizado sejam desenvolvidas. As motivações das sias
militantes possibilitam a recriação e criação de novas identidades que, por sua vez, alteram
visões de mundo e sobre como agir no mundo. Um novo sujeito político se forma a partir da
vivência, do trabalho prático empregado dentro de movimentos sociais, como entendo ser o
caso da Marcha.
Considerações Finais
A pesquisa ainda está em andamento e pretende aprofundar na descrição das
potencialidades educativas vivenciadas na Marcha das Vadias. No entanto, já se pode
observar que, devido ao alto grau de complexidade que o movimento apresenta em sua
constituição e ao fato de se configurar como um movimento novo, este estudo possibilitará
maior diálogo sobre práticas educativas baseadas na experiência e no aprendizado por meio de
ações.
Dentro de ações e atuações como as que foram planejadas e desempenhadas no evento
do Dia Internacional da Mulher é possível perceber de que forma as participantes podem se
formar, sob o ponto de vista de utilização destes espaços para a formação de mulheres que
partilham dos ideiais de solidariedade e respeito à diversidade. Bem como o processo de
criação de identidades individuais e/ou coletivas que são marginalizadas pela cultura
hegemônica baseada no etnocentrismo, na heteronormatividade, no sexismo e em outras
ideologias dominantes. Em momentos como os que foram apresentados ao longo do trabalho,
é possível a percepção de que a transgressão (de gênero, sexo, cultura, etc.) proporcionada e
incentivada por este movimento por si só já apresenta uma possibilidade de aprendizado que
não concorre com a que ocorre em ambientes formais de ensino, mas que, ao contrário,
complementa tais conhecimentos. O perfil de militantes com alto grau de instrução é um dado
que vem a reforçar esta hipótese. A possibilidade de que a Marcha das Vadias, bem como
qualquer outro movimento social, possa ser um espaço privilegiado de formação baseada nos
preceitos de tolerância e de coexistência pode ser a maior contribuição desta discussão.
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