Post on 25-Jan-2019
ADI 4.815 - BIOGRAFIAS
1. Gostaria, em primeiro lugar, de cumprimentar a Ministra Carmen Lúcia
pelo voto notável que apresentou.
I. INTRODUÇÃO
1. As sociedades contemporâneas são abertas, complexas e plurais. Como
consequência, as Constituições modernas abrigam valores e interesses diversos, por vezes
contrapostos, que muitas vezes entram em tensão, quando não em rota de colisão.
2. O desenvolvimento nacional, por vezes, entra em tensão com a proteção
ambiental. A livre iniciativa entra em tensão com a proteção do consumidor. A liberdade
individual com a segurança pública.
3. No caso específico aqui em discussão, a liberdade de expressão e o direito
de informação entram em tensão com os chamados direitos da personalidade, a
privacidade, a imagem e a honra.
II. A NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO
1. Quando isso ocorre – isto é, quando há uma colisão entre direitos
fundamentais –, a técnica jurídica mais utilizada para construir-se argumentativamente
uma solução é a ponderação.
2. É importante registrar que pelo princípio da unidade da Constituição,
inexiste hierarquia entre normas constitucionais. Uma norma constitucional não colhe o
seu fundamento de validade em outra norma constitucional. Logo, uma não está acima da
outra.
3. A ponderação é uma forma de estruturar o raciocínio jurídico. Há diferentes
modos de trabalhar com ela. Do modo como eu opero a ponderação, ela se desenvolve em
três etapas:
a) na primeira, verificam-se as normas que postulam incidência ao caso;
b) na segunda, selecionam-se os fatos relevantes;
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c) e, por fim, testam-se as soluções possíveis para verificar, em concreto, qual
delas melhor realiza a vontade constitucional. Idealmente, a ponderação deve procurar
fazer concessões recíprocas, preservando o máximo possível dos direitos em disputa. No
limite, porém, fazem-se escolhas.
4. A ponderação pode ser feita pelo legislador, na elaboração da lei, ou pelo
juiz ou tribunal, ao decidir um caso concreto.
III. A PONDERAÇÃO FEITA PELOS ARTS. 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL
1. Os dispositivos do Código Civil impugnados na presente ação cuidam de
fazer uma ponderação legislativa entre a liberdade de expressão e os direitos da
personalidade. Ao fazê-lo, produziu as seguintes proposições:
a) art. 20: o uso da imagem de qualquer pessoa (inclusive em obras
biográficas) depende de autorização prévia da pessoa retratada ou de seus familiares;
b) art. 21: o interessado pode obter judicialmente a proibição da divulgação.
2. Ao proteger os direitos da personalidade – no caso específico, a imagem e a
privacidade –, o Código Civil claramente pretere o direito à liberdade de expressão. Em
relação à questão das biografias, aqui discutida, esse direito à liberdade de expressão, em
sentido amplo, se manifesta de duas formas:
a) na liberdade da atividade de criação intelectual e artística por parte do
autor da obra, liberdade que a Constituição assegura que seja independente de censura ou
licença (CF, art. 5º, IX); e
b) no direito de informação, titularizado por toda a sociedade, relativamente
às informações de interesse público e à preservação da memória e da história do país (CF,
art. 5º, XIV).
3. A consequência de tais disposições do Código Civil é a subordinação da
liberdade de expressão aos direitos da personalidade. Vale dizer: os arts. 20 e 21
produziram uma hierarquização fixa entre direitos constitucionais. Isto viola o princípio
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da unidade e produz um resultado inconstitucional, que é o de um direito invariavelmente
prevalecer sobre o outro.
4. Pior que tudo, a solução do Código Civil coloca em posição inferior
justamente a liberdade de expressão, que nas democracias deve ser tratada como uma
liberdade preferencial.
⇒ Pela lógica do Código Civil, teriam sido legítimas e acertadas as
decisões que, ao menos em momento inicial, proibiram a divulgação das biografias de
Garrincha, Guimarães Rosa e Vinícius de Moraes, entre muitas outras.
IV. RAZÕES PELAS QUAIS A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DEVE SER TRATADA COMO UMA
LIBERDADE PREFERENCIAL
1. Afirmar que a liberdade de expressão deve ser tratada como uma liberdade
preferencial não significa uma hierarquização dos direitos fundamentais. Mas significa
que a sua superação transfere o ônus argumentativo para o outro lado. Por qual razão a
liberdade de expressão deve desfrutar dessa posição de preferência prima facie?
1. 1a razão: o passado condena. A história da liberdade de expressão no
Brasil é uma história acidentada. A censura vem de longe: ao divulgar a Carta de Pero
Vaz de Caminha, certidão de nascimento do país, o Padre Manuel Aires do Casal cortou
vários trechos que considerou “indecorosos”. (Fonte: Eduardo Bueno, Brasil: uma
história, 2003, p. 33).
Para citar apenas os exemplos da última ditadura:
a) na imprensa escrita: i) os jornais eram submetidos a censura
prévia e, diante dos cortes dos censores, viam-se na contingência de deixar espaços em
branco ou de publicar poesias e receitas de bolo; ii) apreendiam-se jornais e revistas por
motivos políticos, como os semanários Opinião e Pasquim (que eram críticos do regime
militar) ou de moralidade, como a revista masculina Ele & Ela (por haver exibido os dois
seios de uma modelo, quando só era permitida a exibição de um, por bizarro que parecça);
iii) boicotava-se a publicidade dos jornais independentes, para asfixiá-los
economicamente (situação que rotineiramente se repete na América Latina);
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b) no cinema, filmes eram proibidos, exibidos com cortes ou
projetados com tarjas que perseguiam seios e órgãos genitais, transformando drama em
comédia, como no caso de A Laranja Mecânica;
c) nas artes, o Balé Bolshoi foi impedido de encenar no Brasil, por
constituir propaganda comunista;
d) na música: i) as letras das canções tinham de ser previamente
submetidas a um Departamento de Censura; ii) havia artistas malditos, que não podiam
gravar nem aparecer na TV; e iii) outros que só conseguiam aprovar suas músicas no
Departamento de Censura mediante pseudônimo. Vivia-se um país nas entrelinhas, nas
sutilezas (a música “Apesar de você”, do Chico Buarque, foi liberada até que alguém se
deu conta de que talvez houvesse algum protesto embutido ali);
e) na televisão, programas foram retirados do ar, suspensos ou
simplesmente tiveram sua exibição vetada, em alguns casos com muitos capítulos
gravados, como ocorreu com a novela Roque Santeiro.
No ápice do obscurantismo, foi proibida a divulgação de um surto de
meningite, para não comprometer a imagem do Brasil Grande. Em nome da religião, da
segurança pública, do anti-comunismo, da moral, da família, dos bons costumes e outros
pretextos, a história brasileira na matéria tem sido assinalada pela intolerância, a
perseguição e o cerceamento da liberdade. Entre nós, como em quase todo o mundo, a
censura oscila entre o arbítrio, o capricho, o preconceito e o ridículo. Assim é porque
sempre foi.
⇒ Nessa matéria, “só quem não soube a sombra não reconhece a
luz”, para utilizar um verso de Taiguara, outro censurado.
2a razão: a liberdade de expressão é pressuposto para o exercício dos
outros direitos fundamentais. Os direitos políticos, a possibilidade de participar no debate
público, reunir-se, associar-se e o próprio desenvolvimento da personalidade humana
dependem da livre circulação de fatos, informações e opiniões. Sem liberdade de
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expressão e de informação não há cidadania plena, não há autonomia privada nem
autonomia pública.
3a razão: a liberdade de expressão é indispensável para o
conhecimento da história, para o progresso social e para o aprendizado das novas
gerações.
V. CONSEQUÊNCIAS DA POSIÇÃO PREFERENCIAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
1. A primeira consequência é a primazia prima facie da liberdade de expressão
no processo de ponderação. Seu afastamento há de ser a exceção e o ônus argumentativo é
de quem sustenta o direito oposto.
2. A segunda consequência é a forte suspeição e a necessidade de escrutínio
rigoroso de todas as medidas restritivas da liberdade de expressão, sejam legais,
administrativas e mesmo judiciais. Restrições privadas, também e sobretudo, devem ser
vistas com suspeição.
3. Por fim, do caráter preferencial da liberdade de expressão resulta que a
regra geral é a proibição da censura (CF, art. 5º, IX e o art. 220, § 2º. Como consequência,
no caso de abuso da liberdade de expressão, deve-se dar preferência à responsabilização a
posteriori, que podem incluir a retratação, a retificação, o direito de resposta, a
indenização, a responsabilização penal ou outras vias legalmente previstas.
VI. SERIA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO UM DIREITO ABSOLUTO?
1. A resposta é negativa. Como é lugar comum afirmar-se, nenhum direito é
absoluto. A vida civilizada depende da conciliação de muitos valores diversos.
2. Se a informação sobre determinado fato tiver sido obtida mediante extorsão,
invasão de domicílio ou interceptação telefônica clandestina, por exemplo, a ilegalidade
na sua obtenção pode comprometer a possibilidade de ela vir a ser divulgada
legitimamente;
3. A mentira dolosa e deliberada, com o intuito de fazer mal a alguém, pode
ser fundamento para considerar-se ilegítima a divulgação de um fato. Por exemplo, às
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vésperas de uma eleição se imputa falsamente a alguém a condição de pedófilo. Mas, de
novo, a interferência do Judiciário há de ser a posteriori, com autocontenção máxima. Só
casos excepcionais e raríssimos devem justificar a intervenção. Mas ninguém pode
impedir que quem se considere lesado vá ao Judiciário, como assegura a Constituição (art.
5º, XXXV).
4. Repito, porém: a regra absolutamente geral é a do controle posterior. Em
casos excepcionalíssimos, extremos, teratológicos e justificados por um exame de
proporcionalidade que considere a posição preferencial da liberdade de expressão é que se
pode cogitar de restrições prévias. Tais situações, no entanto, são quase inexistentes de
tão raras.
VII. O QUE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO É E O QUE ELA DEVE SER
1. A liberdade de expressão não é garantia de verdade ou de justiça. Ela é uma
garantia da democracia. Defender a liberdade de expressão pode significar ter de conviver
com a injustiça e até mesmo com a inverdade. Isso é especialmente válido para as pessoas
públicas, como agentes públicos ou artistas.
2. Uma forma, nessa vida, de se fazer o certo, o justo e o legítimo é colocar-se
na situação envolvida. Eu, como outros juízes e diversas pessoas públicas, também já vivi
situações desconfortáveis em razão de notícias veiculadas. De fato:
a) Quando eu votei, de acordo com a minha convicção, pela prescrição do
crime de quadrilha ou bando na Ação Penal 470, eu tive de amargar notícias diversas,
inclusive que:
(i) eu assumira o compromisso de votar assim para obter a nomeação
(a Presidente, nas duas vezes em que estive com ela, sequer mencionou este assunto, nem
ninguém em nome dela. E para ser sincero, nem sei o que ela considerava melhor); (ii) eu
votei como votei porque uma antiga sócia minha havia sido contratada para atuar em uma
arbitragem envolvendo uma empresa estatal de energia elétrica (eu nem soube da
contratação, embora soubesse que ela já havia atuado representando esta empresa em
outros casos).
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3. Nenhuma das duas notícias era minimamente verdadeira. No segundo caso,
sobretudo, a lógica era absurda: eu deixei a minha banca de advocacia – bem sucedida ao
longo de muitos anos, graças a Deus – para vir ganhar dinheiro desonestamente no STF!
Porém, no momento em que eu aceitei ingressar na vida pública, eu, como qualquer
pessoa, passei a estar sujeito à crítica pública, justa ou injusta, bem ou mal informada,
bem ou mal intencionada. Vem com o cargo. Quem não gosta de crítica, não deve vir para
o espaço público.
4. Em reclamação, eu suspendi a decisão de um juiz que proibira a circulação
de uma revista semanal que ligava um ex-governador de Estado a fatos apurados na
Operação Lava Jato. Em nome da liberdade de expressão, liberei a revista. Até agora, não
vi aparecer o nome deste governador nas investigações. É possível que a notícia fosse
injusta. Mas, de novo, a democracia assegura a liberdade, mas nem sempre previne a
injustiça. É o preço.
5. Acima de tudo, cabe lembrar aqui a frase feliz de Rosa de Luxemburgo, “a
liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente”.
VIII. EFEITOS NEGATIVOS DA EXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO
1. São inúmeros os efeitos negativos da interpretação do Código Civil que tem
prevalecido, no sentido de ser exigível prévia autorização da pessoa retratada ou de sua
família para a divulgação de biografias:
a) o primeiro, e mais óbvio, é o desestímulo à produção de obras dessa
natureza (obras biográficas). O Estado, nos termos da Constituição, deve promover a
cultura a não reprimi-la (CF, art. 215, § 3º, II);
b) em segundo lugar, tal linha de entendimento estimular a produção de
biografias “chapa-branca” ou autorizadas, que está mais para a publicidade do que para a
literatura;
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c) e, por fim, essa forma de censura privada compromete a narrativa da
história do país e a preservação da memória nacional.
2. Eu aqui lembro que esses dispositivos do Código Civil que aqui deveremos
fulminar não é apenas inconstitucional em tese. Ele tem causado danos reais à cultura
nacional e aos legítimos interesses de autores e editores de livros. Os exemplos de
interferência judicial na divulgação de biografias são inúmeros, com a proibição
temporária ou definitiva de inúmeras obras, dentre as quais:
(i) Ruy Castro, “Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha”;
(ii) Paulo César Araújo, “Roberto Carlos em Detalhes”;
(iii) Alaor Barbosa dos Santos, “Sinfonia de Minas Gerais – a vida e a literatura
de João Guimarães Rosa;
(iv) Toninho Vaz, “O Bandido que Sabia Latim”, sobre a vida do notável poeta
curitibano Paulo Leminski, autor de “Distraídos venceremos”;
(v) Eduardo Ohata, “Anderson Spider Silva – o relato de um campeão nos
ringues da vida”, retirado de circulação não por iniciativa do biografado,
mas por um coadjuvante da história;
(vi) Pedro Morais, “Lampião – O Mata Sete”.
IX. CONCLUSÃO
1. Por todo o exposto, o pedido deve ser acolhido para que se interprete
conforme a Constituição os dispositivos impugnados, ficando assentada a seguinte tese:
“Não é compatível com a Constituição interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil que
importe na necessidade de autorização prévia de pessoa retratada em obra biográfica para
fins de sua divulgação por qualquer meio de comunicação.
2. O voto escrito que serviu de roteiro a esta minha manifestação oral tem a
seguinte ementa:
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Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL. BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS. COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM SENTIDO AMPLO E OS DIREITOS DA
PERSONALIDADE. 1. A interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil
que confere àqueles que são retratados em biografias (ou a seus familiares, no caso de pessoas falecidas) a prerrogativa de autorizarem a publicação dessas obras e, na ausência de autorização, de obterem judicialmente a proibição da sua divulgação, é incompatível com a Constituição.
2. Tal leitura estabelece uma regra abstrata e permanente de primazia dos direitos da personalidade sobre a liberdade de expressão na divulgação de biografias, que viola o sistema constitucional de proteção e preferência das liberdades de expressão e informação, configurando inaceitável censura privada.
3. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos dispositivos impugnados, para, mediante interpretação conforme a Constituição, afastar do ordenamento jurídico a necessidade de consentimento dos biografados, demais pessoas retratadas ou de seus familiares para a publicação e veiculação de obras biográficas.
É como voto.