Post on 24-Jul-2016
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Cansados da rotina, dois jovens decidem fundar uma empresa nada convencional, especializada em investigações, a Jovens Aventureiros Ltda. O primeiro caso era um desafio que intrigava a Scotland Yard: o desaparecimento da americana Jane Finn, levando com ela documentos secretos que poderiam comprometer o governo inglês. Mas Thomas Beresford e Prudence Cowley – ou simplesmente Tommy e Tuppence – não são os únicos interessados em descobrir o paradeiro desses papéis. A mesma busca é empreendida por um homem misterioso e perigoso, conhecido como Sr. Brown, um mestre na arte do disfarce, que pode aparecer do nada e desaparecer em seguida sem deixar qualquer rastro. Este enredo arquitetado por Agatha Christie com maestria e final surpreendente justifica o sucesso deste thriller desde o lançamento de sua primeira edição na Inglaterra.
Paratodosaquelesquelevamvidasmonótonas
naesperançadequepossamexperimentarporalgunsmomentos
osprazereseperigosdaaventura
Prólogo
Eram14horasde7demaiode1915.OLusitania foraatingidopordoistorpedos e estava afundando rapidamente, enquanto os botes eramlançadosaomar,omaisdepressapossível.Mulheresecriançasformavamfilasàesperadomomentodeembarcaremnosbotes,algumasseagarrandocomdesesperoaseusmaridosepais.Muitasmulheresapertavamosfilhoscontraopeito.Umamoçaestavasozinha,umpoucoafastadadosdemais.Erabastantejovem,nãodeviatermaisque18anos.Parecianãoestarcommedo, os olhos graves e resolutos encontravam-se fixos em algo à suafrente.
–Comlicença...Umavozmasculinaaoseuladoafezestremeceresevirar.Váriasvezes
elaobservaraodonodaquelavoz,entreospassageirosdaprimeiraclasse.Haviaumaaurademistério a envolvê-loquedespertara sua imaginação.Elenãofalavacomninguém,ese,poracaso,alguémlhedirigiaapalavra,apressava-seemrepeliraintrusão.Alémdisso,tinhaoestranhohábitodeolharparatrás,porcimadoombro,umgestosemprerápidoedesconfiado.
Percebeuqueohomemestavabastantenervoso.Havia gotasde suoremsuatesta,eeraevidentequeestavaterrivelmenteapavorado.Mas,atéentão, não era a impressão de ser o tipo de homem que teria receio deenfrentaramorte.
–Poisnão?Os olhos dela se encontraram com os dele, inquisitivos. O homem
continuou a fitá-la em silêncio por algum tempo, em uma indecisãodesesperadora.Porfim,murmurouparasimesmo:
–Temqueserassim!Nãoháoutrojeito!Erguendoavoz,perguntouabruptamente:–Vocêénorte-americana?–Sim.–Épatriota?Amoçacorou.–Achoquenãotemodireitodefazertalpergunta!Claroquesou!–Nãoseofenda.Nãoo faria, se soubesseoquantoestáem jogo.Mas
tenhoqueconfiaremalguém...esópodeseremumamulher.–Porquê?–Porqueasmulhereseascriançasvãonafrente.Ohomemolhouaoredorebaixouavoz:–Estoulevandoalgunsdocumentos...documentosdeimportânciavital.
Podem ser um fator decisivo para os aliados na guerra. Está entendendoagora?Éprecisosalvaressesdocumentosdequalquermaneira.Ehaverámaischancecomvocêdoquecomigo.Podelevá-los?
Amoçaestendeuamão.– Espere... tenho que avisá-la. Pode haver um grande risco... se por
acasofuiseguido.Tenhoaimpressãodequeissonãoaconteceu,masnuncasepodetercerteza.Podehaverumgrandeperigo.Temcoragemobastanteparaaceitaramissãomesmoassim?
Amoçasorriu.–Nãomesintoassustadacomapossibilidadedeperigo.Pelocontrário,
sinto-me muito orgulhosa por ter sido escolhida. O que devo fazer comessespapéisdepois?
– Terá que ler diariamente o Times. Porei um anúncio na coluna declassificados pessoais, começando por “Companheiro de Viagem”. Se oanúncio ainda não tiver aparecido depois de três dias saberá que nãoconseguimesalvar.Nessecaso,deverá levarosdocumentosàEmbaixadanorte-americanaeentregá-lospessoalmenteaoembaixador.Entendeu?
–Perfeitamente.–Poisentãoprepare-se...voumedespedirdevocê.Ohomemapertouamãodelaedisse,emvozmaisalta:–Adeus...eboasorte!Amãodajovemsegurouopequenopacoteimpermeávelqueestavana
palmadamãodohomem.OLusitania,abruptamente,inclinou-semaisparaboreste.Emresposta
aumaordemrápidaebrusca,amoçaadiantou-separatomarseulugarnobotequeiaserbaixado.
1JovensAventureirosLtda.
—Tommy,velhocompanheiro!–Tuppence,velhaamiga!Os dois jovens se cumprimentaram afetuosamente, bloqueando por
alguns instantesa saídadometrônaDoverStreet.Oadjetivo “velho”eraenganador. As idades de ambos, somadas, com certeza não dariammaisque45anos.
–Háséculosquenãoavejo!–gritouorapaz.–Porondetemandado?Vamoscomeralgumacoisa!Achobomsairmoslogodaqui,poisjáestamosnostornandoimpopularesbloqueandoocaminhodessejeito!
Amoça concordou e os dois começaram a descer a Dover Street, nadireçãodePiccadily.
–Paraaondevamos?–perguntouTommy.Aansiedadequaseimperceptívelnavozdelenãoescapouaosouvidos
atentos da Srta. Prudence Cowley, conhecida pelos amigos íntimos, poralgumarazãomisteriosa,como“Tuppence”.Elareagiuimediatamente:
–Tommy,vocêestáduro!–De jeitonenhum!–respondeuTommy,emtomnadaconvincente.–
Pelocontrário,estounadandoemouro!– Você sempre foi um péssimomentiroso, Tommy, embora uma vez
tenha conseguido convencer a irmã Greenbank de que o médico lhereceitara cerveja como tônico, mas esquecera de deixar a ordem porescrito.Estálembrado?
Tommyriu.– Claro que me lembro! A velha jararaca ficou furiosa quando
descobriu!Atéque amadreGreenbanknão eramápessoa.Ah, e o velho
hospital...foidesativadocomotodooresto?Tuppencesuspirou.–Foi.Vocêtambém?Tommyassentiu.–Hádoismeses.–Eagratificaçãodebaixa?–Gastei.–Oh,Tommy!–Não,velhaamiga,nãogasteitudo.Infelizmente,nãotivetantasorte.O
custodevidanosdiasdehoje,avidamaissimplesefrugalpossível,possoassegurar-lhe,seéqueaindanãosabe...
Tuppenceinterrompeu-o.–Meucarorapaz,nãohánadaqueeunãosaibaarespeitodocustode
vida. Pronto, chegamos ao Lyons’ . Vamos combinar o seguinte: cada umpagaaprópriadespesa.
E Tuppence subiu a escada na frente. O lugar estava cheio e os doisforam andando em ziguezague, ouvindo trechos de conversas enquantoprocuravamumamesa:
–Eentãoelasesentouecomeçouachorar,quandoeudisseaelaquenãopoderiaficarcomoapartamento...
– Foi uma barganha, minha cara! Era exatamente igual à que MabelLewistrouxedeParis...
TommymurmurouparaTuppence:–Ouvem-se os fragmentosdas conversasmais esquisitas atualmente.
Poucoantesdenosencontrarmos,passeipordoishomenseelesestavamconversandosobreumataldeJaneFinn.Jáouviuessenome?
Nessemomento,duassenhorasidosasselevantaramerecolheramseusembrulhos.Maisquedepressa,Tuppencerefestelou-senumadascadeirasvagas.
Tommy pediu chá e bolinhos. Tuppence pediu chá e torradas commanteiga.
–Enãoseesqueçade trazerocháembulesseparados–acrescentouela,comumtomautoritário.
Tommy sentou-se em frente a ela. A cabeça descoberta deixavaexpostososcabelosruivos,lustrososepenteadosparatrás.Orostonãoerabonito, um tanto indefinido,mas semdúvida o rosto de um cavalheiro edesportista.Oternomarromeradeboaqualidade,masestavamuitogasto.
Formavamumcasalmoderno.NãosepodiadizerqueTuppencefosseumabeldade,mashaviapersonalidadeecharmenasfeiçõesdelicadas–o
queixo um pouco grande e decidido; os olhos castanhos atentos sob assobrancelhas pretas e retas. Usava um pequeno chapéu verde sobre oscabelospretosbemcurtos.Asaiamuitocurtaeumtantopuídadeixavaàmostraostornozelosgraciosos.Suaaparênciademonstravaumaesforçadatentativadeparecerelegante.
Ocháfinalmentechegou.Tuppenceemergiudeseuspensamentoseoserviu.Depoisdedarumamordidagrandenumbolinho,Tommydisse:
– E agora vamos colocar a conversa em dia. Afinal, não a vejo desdeaquelaépocanohospital,em1916.
–Éverdade.Tuppencedeuumamordidagenerosana torradacommanteigaantes
decomeçarorelato:– Biografia resumida da Srta. Prudence Cowley, quinta filha do
arquidiácono Cowley, de Little Missendell, Suffolk. A Srta. Cowleyrenunciouàsdelícias(eàstarefasenfadonhasecansativas)davidadolarno início da guerra e veio para Londres, onde começou a trabalhar numhospitalparaoficiais.Primeiromês:lavavaaté648pratospordia.Segundomês:promovidaaenxugarosreferidospratos.Terceiromês:promovidaadescascarbatatas.Quartomês:promovidaacortarpãoepassarmanteiga.Quintomês:promovidaaoandarsuperiorcomofaxineira,armadadebaldee esfregão. Sextomês: promovida à umamesa da recepção. Sétimomês:aparênciatãosimpáticaemaneiras tãobem-educadasqueépromovidaaserviràsirmãs.Oitavomês:pequenoinsucessonumacarreiravertiginosa.AirmãBondcomeuoovodairmãWesthaven!Grandeconfusão!Aculpaédaservidora.Adesatençãonumaquestãodeimportânciatãovitalnãopodedeixardeserasperamenterepreendida.Retornoaobaldeeesfregão!Ah,aqueda dos poderosos! Nono mês: promovida a varrer as enfermarias,oportunidadeemqueencontroumamigodeinfâncianapessoadotenenteThomasBeresford(Tommyagradeceamenção!),aquemnãoviahácincolongosanos.Oreencontrofoicomovente!Décimomês:censuradaporiraocinemanacompanhiadeumpaciente,asaber,oreferidotenenteThomasBeresford. Décimo primeiro e décimo segundo meses: as funções defaxineira retomadas com pleno sucesso. No fim do ano, deixa o hospitaldepois de uma carreira gloriosa. Em seguida, a talentosa Srta. Cowleytorna-se sucessivamente motorista de um furgão de entregas, de umcaminhãoedeumgeneral.Aúltimafunçãofoiamaisagradável.Tratava-sedeumgeneralbastantejovem.
– Como ele era? – indagou Tommy. – É simplesmente irritante amaneira como esses figurões vivem indo doMinistério da Guerra para o
SavoyedoSavoyparaoMinistériodaGuerra!–Jáesquecionomedele–confessouTuppence.–Voltandoàhistória,
esse foi o ponto mais alto de minha carreira. Em seguida, fui trabalharnumarepartiçãopública.Promovemosdiversoschásbastanteagradáveis.Eu pretendia arrematar minha carreira sendo ainda uma trabalhadorarural,carteira,emotoristadeônibus...masoarmistícioatrapalhou-meosplanos. Agarrei-me à repartição com a persistência de ummarisco, masacabei sendo arrancada. Desde então, tenho procurado em vão por umemprego.Eagoraéasuavez,Tommy.
–Nãohátantaspromoçõesassimnaminhahistória.Eadiversidadedefunçõestambémnãoétãogrande.FuidenovoparaaFrança,comojásabe.Depois,mandaram-meparaaMesopotâmia, onde fui feridopela segundavezeacabeisendointernadonumhospitallámesmo.EmseguidafuiparaoEgito, onde ainda estava quando houve o armistício. Continuei usando afarda por mais algum tempo, até receber baixa. E faz dez longos ecansativosmesesquevenhoprocurandoumemprego.Massimplesmentenãohávagasdisponíveis.Emesmoquehouvesse,ninguémmecontrataria.Oqueseifazer?Oqueentendodenegócios?Absolutamentenada!
Tuppenceassentiu,sombriamente.–Nãopensouemirparaascolônias?Tommybalançouacabeça.– Tenho certeza de que não gostaria das colônias... e também estou
certodequenãogostariamdemimporlá.–Parentesricos?Tommytornouabalançaracabeça.–Nemmesmoumatia-avó,Tommy?–Tenhoumtioqueérelativamentepróspero,maselenãovalemuita
coisa.–Porquenão?–Elequismeadotarhábastantetempo.Eeurecusei.– Acho que estou me lembrando de ter ouvido essa história. Você
recusouporcausadesuamãe...Tommycorou.– Issomesmo. Teria sido um golpe terrível para mamãe. Como você
deve estar lembrada, eu era a única pessoa que ela tinha. O velho tio adetestava...queriameafastardelaaqualquercusto.
– Suamãe jámorreu,nãoémesmo?– indagouTuppencedemaneiragentil.
Tommy assentiu. Os olhos castanhos de Tuppence ficaram um tanto
enevoados.–Eusempreacheiquevocêeramaravilhoso,Tommy...–Vamosmudardeassunto!Bem,agorajásabequaléaminhasituação.
Estousimplesmentedesesperado.–Tambémestou.Tenhoresistidoaomáximo.Jáfizquasetudo,fuiatrás
dosmaisdiversosanúnciosdeempregos,tenteiopossíveleoimpossível.Tenho economizado, apertado o cinto, procurado agüentar firme,mas denadaadianta.Tereimesmoquevoltarparacasa.
–Evocênãoquer?–Claroquenãoquero!Nãoháporquesersentimental,nãoémesmo?
Papai é um homemmaravilhoso, gostomuito dele. Mas não faz idéia decomo ele sofre por causa domeu comportamento. Ele tem aquele velhopensamento vitoriano de que usar saia curta e fumar são coisas imorais.Pode imaginarodesgostoqueeu lhecausava.E tenhocertezadequeelesoltouumsuspirodealívioquandoaguerrame levou.Somossete filhos.Alémde fazer todoo trabalhodacasa, euainda tinhaquecompareceràsreuniõespromovidaspormamãe.Eumerevoltavacontraisso,eraaovelhanegra da família. Não quero voltar, mas... oh, Tommy, o quemais possofazer?
Tommy moveu a cabeça, com tristeza. Houve um silêncio e depoisTuppenceexplodiu:
–Dinheiro,dinheiro,dinheiro!Pensoemdinheirodemanhã,detardeedenoite!Talvezsejaumamercenáriaporcausadisso,maséarealidade!
–Omesmoacontececomigo–murmurouTommy,emocionado.–Tenhopensadoemtodososmeiospossíveisdeseconseguirdinheiro,
Tommy. E cheguei à conclusão de que só existem três meios possíveis:herdar, casar ou ganhá-lo. A primeira hipótese está excluída. Não tenhonenhum parente rico e idoso. Todos os meus parentes idosos estão emasilosparaindigentes.Sempreajudovelhassenhorasaatravessararuaecarregoembrulhosparacavalheirosidosos,naesperançadeencontrarummilionárioexcêntrico.Masnenhumdelesjamaisperguntouomeunome...emuitosnemsequerdizemobrigado!
Houveumanovapausa.–Claroqueocasamentoéamelhoropção,Tommy.Tomeiadecisãode
mecasarpordinheiroquandoaindaeramuitojovem.Qualquermoçaquepense um pouco mais toma a mesma decisão. Como você sabe, não sousentimental.
Tuppencefezoutrapausaantesdeacrescentar,bruscamente:–Ninguémpodedizerqueeusousentimental!
– Claro que não! – concordou Tommy, apressadamente. – Ninguémjamaisiriarelacioná-lacomsentimentos.
–Nãoéumadeclaraçãodasmaiseducadas,Tommy.Mastenhocertezadequesuasintençõesforamboas.Sejacomofor,estouprontaedisposta...masjamaisconheciumhomemrico.Todososrapazesqueconheçosãotãopobresquantoeu.
–Eotalgeneral?–Achoqueeleédonodeumalojadebicicletasemtemposdepaz.Ei,
masestapodeserasoluçãoparavocê!Porquenãosecasacomumamoçarica?
–Estoucomomesmoproblema,nãoconheçonenhuma.–Issonãoimporta.Semprepodedarumjeitodeconhecer.Oquenão
acontece comigo. Se eu visse umhomem sair do Ritz vestindo casaco depeles,nãopoderiaabordá-loedizer:“Estouvendoqueéumhomemrico.Gostariadeconhecê-lo.”
– Está sugerindo que eu faça isso com uma mulher vestidaluxuosamente?
–Nãosejatolo,Tommy.Bastatropeçarnopédela,pegarolençoqueeladeixou cair ou algo assim. Ela ficará lisonjeada se achar que você desejaconhecê-laedaráumjeitodeseaproximar.
–Estásuperestimandoosmeusencantosviris,Tuppence.–Nomeu caso, Tommy, omilionário visado sairia correndo como se
estivessequerendosalvaraprópriavida.Portudoisso,ocasamentoéumcaminho cheio de dificuldades. Resta a terceira hipótese, que é ganhardinheiro.
–Játentamosissoefracassamos,Tuppence.– É verdade que já tentamos, mas pelos meios ortodoxos. Podemos
tentaragorapeloscaminhosnão-ortodoxos,Tommy.Podemosnostornaraventureiros.
–Grandeidéia!–exclamouTommy,animado.–Comovamoscomeçar?– Esse é o problema. Se nos tornássemos conhecidos, as pessoas
poderiamnoscontratarparacometercrimesporelas.–Uma idéia simplesmentemaravilhosa, Tuppence, sobretudoquando
partedafilhadeumclérigo!–Moralmente,aculpaseriadosoutros,nãominha.Vocêdeveadmitir
quehámuitadiferençaentreroubarumcolardediamantesparasimesmoesercontratadopararoubá-lo.
–Nãohaveriaamenordiferençasevocêfossepega.– Talvez não.Mas acontece que eu jamais seria pega. Sou inteligente
demaisparadeixarquemepeguem.–Amodéstiasemprefoioseumaiorpecado,Tuppence.–Nãodebochedemim,Tommy.Oquemedizda idéia?Concordaem
formarmosumasociedadecomercial?–Umacompanhiapararoubarcolaresdediamantes?– Isso foi apenas um exemplo. Vamos fazer... como é mesmo que se
chamaissoemescrituraçãomercantil?–Nãotenhoamenoridéia.– Pois eu já trabalhei nisso. Mas sempre me confundia, anotando os
créditosna colunadosdébitos e vice-versa... atéquemedespediram.Ah,estoulembrandoagora!Umempreendimentoconjunto!Sempreacheiqueera uma expressão romântica demais para estar ligada a númerosenfadonhos.Éalgoquepossuiumsaborelisabetano,fazagentepensaremgaleõesedobrõesdeouro.Umempreendimentoconjunto!
– E poderíamos operar com o nome de Jovens Aventureiros Ltda.? Énissoqueestápensando,Tuppence?
–Podeestarachandoengraçado,massintoqueháumgrandepotencialnoqueestoupropondo.
–Ecomopretendeentraremcontatocomospossíveisclientes?– Por meio de anúncios. Tem um pedaço de papel e um lápis? Os
homensemgeralcarregamessascoisas,assimcomoasmulheressempretêmgrampos.
Tommytiroudobolsoumcaderninhodeanotaçõesverde, jábastanteusado,eTuppencecomeçouaescrever,falandoemvozalta:
–Jovemoficial,duasvezesferidonaguerra...–Não!–Sejafeitaasuavontade,meucarorapaz.Maspossoassegurar-lhede
queesse tipodecoisapoderiacomoverumavelhasolteironaedespertarnelaodesejodeadotá-lo.Assim,nãohaveriaamenornecessidadedevocêsetornarumjovemaventureiro.
–Nãoqueroseradotado.– Esqueci que você tem preconceito contra isso. Estava apenas
implicando,Tommy.Osjornaisestãorepletosdessesanúncios.Masescutesóisso...“Aluguedoisjovensaventureiros.Dispostosafazerqualquercoisa,airaqualquerlugar.Opagamentodeveserbom.”Émelhordeixarmosissobemclarodesdeo início.Epodemosacrescentar:“Nãorecusamosofertasrazoáveis”...comoapartamentosemóveis.
–Eudiriaquequalquerofertaemrespostaa talanúncionãopoderiaternadaderazoável.
–Éisso,Tommy!Vocêéumgênio!Ficaatémelhoremaischique.“Nãorecusamosnemmesmoumaofertaabsurda...desdequeopagamentosejabom.”Oqueachaagora?
– Eu não mencionaria o pagamento outra vez. Fica parecendo queestamosumpoucoansiosos.
–Nãopodeparecertãoansiosoquantomesinto!Mastalvezvocêestejacerto. Vou ler de novo, desde o início. “Alugue dois jovens aventureiros.Dispostosafazerqualquercoisa,a iraqualquerlugar.Opagamentodeveserbom.Nãorecusamosnemmesmoumaofertaabsurda.”Oqueachariadeumanúncioassim,seolesse?
–Ficariacomaimpressãodequeéumembusteouentãoforaescritoporalgumlunático.
–Nãoétãodoidoquantoumanúncioqueliestamanhã,quecomeçavacom“Petúnia”eeraassinadopor“Namorado”.
Tuppencearrancouafolhaeentregou-aaTommy.–Aquiestá,Tommy.AchomelhorpublicarnoTimes.Respostasparaa
caixa postal número tal. Deve custar em torno de 5 shillings. Tomemeiacoroaparapagaraminhaparte.
Tommyseguravaopapel, pensativo, o rosto cadavezmais vermelho.Porfim,murmurou:
–Vamosrealmentetentar,Tuppence?Sóparanosdivertimos?–Tommy,vocêémaravilhoso!Sabiaqueconcordaria!Vamosfazerum
brindeaonossosucesso!Tuppencedespejouorestodechá,jáfrio,nasduasxícaras.–Aonossoempreendimentoconjunto!Quesejapróspero!–AosJovensAventureirosLtda.!–completouTommy.Osdoislargaramasxícaraseriram,umtantoconstrangidos.Tuppence
levantou-se.–Tenhoquevoltaràminhasuíterealnapensão.–EachoquetambémestánahoradeeuirparaoRitz–disseTommy,
sorrindo.–Ondevoltaremosanosencontrar?Equando?–Amanhã, aomeio-dia.Na estaçãodometrô emPiccadilly. Estábom
paravocê?–Possofazeroquebemquisercomomeutempo–acrescentouoSr.
Beresford,emtommagnânimo.–Entãoatéamanhã.–Atéamanhã,velhaamiga.Osdoisjovenssesepararameseguiramemdireçõesopostas.Apensão
de Tuppence ficava no bairro de Southern Belgravia. Por razões de
economia,elanãopegouumônibus,preferiuirapé.EstavanomeiodoSt.James’sParkquandoouviuumavozmasculinaàs
suascostas,fazendo-aestremecer.–Comlicença...possofalarcomvocêporummomento?
2AofertadoSr.Whittington
Tuppence virou-se abruptamente, mas não chegou a pronunciar aspalavrasqueestavamnapontadesualíngua.Équeaaparênciaeaatitudedohomemnãoconfirmavamsuaprimeiraemaisnaturalsuposição.Comoselesseospensamentosdela,ohomemseapressouemdizer:
– Posso lhe garantir que não tenho quaisquer pretensõesdesrespeitosas.
Tuppence acreditou. Embora instintivamente não gostasse edesconfiasse do homem, estava inclinada a pelo menos absolvê-lo dadesconfiança inicial. Era umhomem grande, a barba raspada, umqueixopronunciado. Os olhos eram pequenos e astutos, remexendo-seconstrangidossoboolharfrancoediretodeTuppence.
–Oquedeseja?Ohomemsorriu.–Poracasoouvipartedesuaconversacomaquelejovemcavalheirono
Lyons’.–Oqueexatamente?–Nada...anãoserqueachoquepoderiaserútilavocê.UmaindagaçãosúbitaocorreuaTuppence:–Seguiu-meatéaqui?–Tomeiessaliberdade.–Edequemaneiraachaquepoderiaserútilamim?Ohomemtirouumcartãodevisitadobolsoeentregou-oaTuppence,
comumareverência.Tuppence pegou o cartão e examinou-o com atenção. O nome era
“EdwardWhittington” e abaixo estavam as palavras “Esthonia GlasswareCo.” e o endereçodeumescritório noCentro.O Sr.Whittington voltou a
falar:– Se me procurar amanhã, às 11 horas, eu lhe apresentarei minha
propostaemdetalhes.–Às11horas?–murmurouTuppence,comdesconfiança.–Às11horas.Tuppencetomouumadecisão.–Estácerto.Estareilánahoramarcada.–Obrigado...eboanoite.Elelevantouochapéucomumfloreioeafastou-se.Tuppencecontinuou
paradapormaisummomento,aolhá-lo.Depoisdeudeombros,numgestocurioso,maisparecidocomodeumterrierasesacudir.
–Asaventurasjácomeçaram–murmurouelasozinha.–Oqueseráqueele quer que eu faça? Há algo em sua pessoa que não me agrada, Sr.Whittington.Mas,poroutrolado,nãomeprovocaomenormedo.Ecomoeujádisseantes,ecomcertezavoltareiadizer,apequenaTuppencesabecuidardesimesma,obrigada!
Ecomumacenocurtoebrusco,elaseguiuoseucaminhorapidamente.Mas,depoisdepensarmaisumpouco,desviou-sedopercursohabitualeentrouemumaagênciadoscorreios.Chegandoali,pensoumaisumpouco,comum formuláriode telegramanasmãos.A idéiadeumadespesade5shillings desnecessária acabou fazendo com que se decidisse por umadespesade9pence.
Ignorando a pena grossa e pontuda que um governo beneficenteoferecia,Tuppence tiroudabolsao lápisdeTommyque ficara comela eescreveurapidamente:“Nãoponhaoanúncio.Explicareiamanhã.”EnviouotelegramaparaoclubedeTommy,deondeeleteriaquesairdentrodeummês,anãoserqueuminesperadogolpedesortepermitisserenovaraestada.
–Talvezelerecebaotelegramaatempo–murmurouTuppence.–Dequalquerforma,valeapenatentar.
Depois de entregar o telegrama no balcão, Tuppence seguiu para apensãoondemorava,passandoantesporumapadariaparacomprar trêspãesdocesfrescos.
Mais tarde, acomodada em seu pequeno cubículo no alto da casa,comendoospães,Tuppencepôs-seapensarnofuturo.OqueseriaEsthoniaGlasswareCo., e por que estaria precisandodos serviços dela? Tuppencesentiuumaemoçãoagradável.Oquequerquefosse,oretornoàcasadeseupaivoltaraaumsegundoplanoremoto.Oamanhãapresentavamaisumavezmuitaspossibilidades.
Muito tempo se passou antes que Tuppence conseguisse dormirnaquelanoite.Equandoporfimadormeceu,sonhouqueoSr.Whittingtonacontratavapara lavarosprodutosdevidrodesuafirma,quetinhamumasemelhançaextraordináriacomospratosdohospital.
Faltavam cinco minutos para 11 horas quando Tuppence chegou aoquarteirãoondeficavaoescritóriodaEsthoniaGlasswareCo.Sechegasseantes da hora, daria a impressão de que estava muito ansiosa. Por isso,Tuppence resolveu ir até o fim do quarteirão e voltar. E assim o fez.Pontualmente,às11horas,elaentrounoprédio.OescritóriodaEsthoniaficava no último andar.Havia um elevador,mas Tuppence preferiu subirpelaescada.
Estavaumpoucoofegantequandoparoudiantedaportadevidroondeestavapintadooletreiro“EsthoniaGlasswareCo.”.
Tuppencebateu.Umavozmandou-aentrar.Elaabriuaportaeseviuemumapequenaante-sala,umtantosuja.
Umescrituráriodemeia-idadelevantou-sedeumbancoalto,diantedeuma mesa junto à janela, e aproximou-se dela com uma expressãoinquisitiva.
– Tenho uma reunião marcada com o Sr. Whittington – informouTuppence.
–Poraqui,porfavor.Elefoiatéumaportadivisóriaondeestavaescritaapalavra“Privativo”.
Bateu e abriu-a, dando um passo para o lado, a fim de deixar Tuppencepassar.
O Sr. Whittington estava sentado atrás de uma escrivaninha grande,coberta de papéis. Tuppence sentiu que seu julgamento anterior seconfirmava.NãohaviaamenordúvidadequehaviaalgoerradocomoSr.Whittington.Acombinaçãodeprosperidadesagazeolhosastutosnãoeranadaagradável.
Elelevantouacabeçaeassentiu.–Acabouvindo,hein?Issoéótimo.Sente-se,porfavor.Tuppence se sentou na cadeira diante dele. Parecia particularmente
pequena e recatada naquelamanhã. Ficou sentada olhando timidamenteparabaixoenquantooSr.Whittingtonremexianospapéis.Porfim,eleosempurrouparaoladoeseinclinousobreaescrivaninha.
–Eagora,minhacarajovem,vamostratardenegócios.Orostolargoseentreabriunumsorriso,antesqueeleacrescentasse:– Está querendo trabalhar? Pois tenho um trabalho a lhe oferecer. O
que me diz de um pagamento agora de 100 libras e todas as despesas
pagas?O Sr. Whittington recostou-se na cadeira, enfiando os polegares nas
aberturas laterais do colete. Tuppence fitou-o com uma expressãocautelosa.
–Equaléanaturezadotrabalho?–Émuitosimples.Teráapenasquefazerumaviagemcurtaeagradável.
Nadamais.–Paraonde?OSr.Whittingtontornouasorrir.–Paris.–Oh!–exclamouTuppence.E pensou: “É claro que papai teria um ataque se soubesse! Mas não
posso imaginar o Sr. Whittington assumindo o papel de um libertinoenganador.”
– O que poderia sermaismaravilhoso,minha cara jovem? Não seriaótimo fazer o tempo voltar alguns anos... bem poucos, tenho certeza... eentrar para um daqueles encantadores pensionnats de jeunes filles queabundamemParis...
Tuppenceinterrompeu-o:–Umpensionnat?–Exatamente.OdasenhoraColombiernaavenidadeNeuilly.Tuppence conhecia o pensionato. Não podia haver nada mais seleto.
Diversasamigasnorte-americanastinhamidoparalá.Elaficouaindamaisestarrecida.
–QuerqueeuváparaopensionatodasenhoraColombier?Porquantotempo?
–Issovaidependerdeumasériedefatores.Possivelmentetrêsmeses.–Eissoétudo?Nãohánenhumaoutracondição?– Absolutamente nenhuma. É claro que terá que se apresentar como
minha pupila e não poderá manter qualquer contato com seus amigos.Devoexigir,pelomenosporenquanto,sigilototal.Porfalarnisso,éinglesa,nãoémesmo?
–Sou,sim.–Noentanto,falacomumligeirosotaquenorte-americano.–Minhacoleganohospitaleranorte-americana,epegueiessesotaque
dela.Masnãovaidemorarmuitoparaqueoperca.– Acho até bom. Pode ser bem mais simples se passar por norte-
americana. Seria mais difícil forjar e sustentar os detalhes de sua vidaanteriorna Inglaterra. É issomesmo, achoque é bemmelhorpassarpor
norte-americana.Edepois...– Um momento, por favor, Sr. Whittington. Parece considerar como
certoquejáaceiteisuaoferta.Whittingtonficousurpreso.–Masnãopodeestarpensandoemrecusar!Possolheassegurarqueo
pensionatodasenhoraColombierédealtaclasseeinteiramenteortodoxo.Eostermossãoosmaisliberaispossíveis.
–Éjustamenteesseoproblema.Sãoliberaisegenerososatédemais,Sr.Whittington.Nãopossoentenderporquevalhotantodinheiro.
–Nãosabe?–perguntouWhittington,comsuavidade.–Poisvoucontaravocê.Nãorestaamenordúvidadequeeupoderiaconseguiroutrapessoapormuitomenos. Mas estou disposto a pagarmais por uma jovem cominteligênciaepresençadeespíritosuficienteparadesempenharbemoseupapel, além de possuir a discrição necessária para não fazer muitasperguntas.
Tuppencesorriu.AchouqueWhittingtonhaviamarcadoumponto.–Háaindaumoutroproblema.Atéagora,nãohouvequalquermenção
aoSr.Beresford.Ondeéqueeleentranisso?–Sr.Beresford?–Meusócio–afirmouTuppence,comtodadignidade.–Viu-nosjuntos
ontem.–Ah,sim!Infelizmente,nãoestouprecisandodosserviçosdele.–Nessecaso,nãohámaisoquefalar.Nãopodemosfecharonegócio.Tuppenceselevantoueacrescentou:– Terá que contratar a ambos ou nada feito. Lamento muito, mas é
assimquetrabalhamos.Bomdia,Sr.Whittington.–Espereuminstante!Vamosverseépossíveldarumjeitoderesolver
oimpasse.Sente-senovamente,senhorita...Ele fez uma pausa, esperando que Tuppence dissesse seu nome. A
consciência dela sentiu uma pontada de remorso ao recordar oarquidiácono,eresolveudaroprimeironomequelhepassoupelacabeça:
–JaneFinn.E ficou boquiaberta ao perceber o efeito dessas duas palavras. Toda
cordialidadedesapareceudorostodeWhittington.Ficouroxoderaiva,asveiasnastêmporassaltaram.Eportrásdissotudohaviaumainconfundívelreaçãode incredulidadeedesalento.Elese inclinouparaa frenteedisse,furioso:
–Estavazombandodemimdesdeoinício,hein?Tuppenceficouinteiramenteaturdida,masnãoperdeuocontrole.Não
entendia a reação de Whittington, mas possuía uma inteligência ágil econcluiunomesmoinstantequeera fundamental “aderirao jogo”,nasuaexpressão.
–Estavabrincandocomigodegatoeratootempotodo,nãoémesmo?–continuouWhittington.–Sabiadesdeoinícioparaqueeuqueriacontratá-la,masachoumelhorrepresentaracomédia,nãoémesmo?
Eleestavaumpoucomaiscontroladoagora.Overmelhopraticamentedesapareceradeseurosto.ElefitouTuppenceatentamenteeindagou:
–Quemandoudandocomalínguanosdentes?Rita?Tuppence sacudiu a cabeça. Não sabia por quanto tempo conseguiria
manterailusão,mascompreendeuqueeraimportantenãoincriminarumaRitadesconhecida.
–Não,nãofoiela–respondeuTuppence,comtodasinceridade.–Ritanadasabeameurespeito.
Os olhos de Whittington continuavam cravados em Tuppence comoverrumas.
–Oquantovocêsabe?–Muitopouco,paraserfranca–respondeuTuppence.Ficou satisfeita ao perceber que o desconforto de Whittington
aumentoucomtalresposta,ao invésdediminuir.Setivessesegabadodesabermuito,elecertamenteteriaficadodesconfiado.
–Dequalquermaneira, sabia obastantepara vir até aqui emedizeressenome.
–Talvezsejaomeunomeverdadeiro.–Achapossívelquepossamexistirduasmoçascomumnomedesses?– Ou posso ter ouvido esse nome por acaso e foi o primeiro queme
passou pela cabeça – acrescentou Tuppence, inebriada como sucesso desuasinceridade.
Whittingtondeuummurronamesa.– Chega de conversa fiada! O quanto você sabe? E quanto está
querendo?AsúltimasquatropalavrasatraíramTuppence,sobretudodepoisdeum
minguado desjejum e de jantar pão doce na noite anterior. O papel queestava representando naquele momento era mais de embusteira que deaventureira,masnãohaviacomonegarsuasamplaspossibilidades.Elasesentou e sorriu, como arde alguémque tinha a situação totalmente sobcontrole.
–MeucaroSr.Whittington,vamospôrascartasnamesa.Eesperoqueninguém se irrite por isso. Ouviu-me dizer ontem que estava disposta a
viver de expedientes e me parece que acabo de provar que souperfeitamentecapaz.Admitoque tenhoconhecimentodeumcertonome,mastalvezmeuconhecimentopareporaí.
–Épossívelquesim...etambémquenão.– Insiste em me julgar erroneamente... – murmurou Tuppence,
deixandoescaparumsuspiro.Whittingtoncontinuavafurioso:– Como eu disse antes, chega de conversa fiada! Vamos ser mais
objetivos.Nãotentebancarainocenteparacimademim.Sabemuitomaisdoqueestádispostaaadmitir.
Tuppence fez uma pausa para admirar a própria habilidade e depoisdisseemtomsuave:
–Eunãogostariadecontradizê-lo,Sr.Whittington.–Sendoassim,vamoslogoàperguntahabitual:quanto?Tuppence estava em um dilema. Até aquele momento, conseguira
enganar Whittington com pleno sucesso. Mas enunciar uma somaimpossívelpoderiadespertarsuspeitas.Elateveumaidéiarepentina.
–Nãopoderíamosacertaralgumacoisaagoraemaistardevoltarmosadiscutiroassuntocommaisprofundidade?
Whittingtonfranziuorosto,demodoameaçador.–Chantagem,hein?Tuppencesorriugentilmente.– Oh, não! Não poderíamos dizer que se trata de um pagamento
antecipadoporserviçosaseremprestados?Whittington resmungou. E Tuppence acrescentou, ainda de maneira
gentil:–Comojádeveterpercebido,gostomuitodedinheiro...– Você é o cúmulo! – grunhiuWhittington, num tom involuntário de
admiração.–Pegou-medireitinho!Penseique fosseumagarota tola, cominteligênciasuficienteapenasparaserviraosmeuspropósitos.
–Avidaécheiadesurpresas,Sr.Whittington.–Dequalquermaneira,o fatoéquealguémandou falando.Disseque
nãofoiRita.Quemfoientão?Nesse momento, houve uma batida discreta na porta. Whittington
gritou:–Entre!O escriturário entrou na sala e pôs um pedaço de papel em cima da
escrivaninha.–Acabadechegaresserecadotelefônico,senhor.
Whittingtonleu-orapidamente,franzindoorosto.–Estácerto,Brown.Podeseretirar.O homem retirou-se, fechando a porta ao sair da sala. Whittington
virou-senovamenteparaTuppence:–Volteamanhã,namesmahora.Estoumuitoocupadoagora.Aquiestão
50librasparacomeçar.Eletiroualgumasnotasdacarteiraeempurrou-asporcimadamesana
direção de Tuppence. Levantou-se em seguida, obviamente impacienteparaqueelafosselogoembora.
Tuppence contou o dinheiro, adotando uma atitude profissional,guardou-onabolsaesódepoisselevantou,dizendopolidamente:
– Muito bom dia, Sr. Whittington. Creio que a despedida certa, nascircunstâncias,éaurevoir.
–Exatamente!Aurevoir!Whittington parecia agora quase cordial novamente, uma reviravolta
queprovocouumaligeiraapreensãoemTuppence.Equeaumentouaindamaisquandoelerepetiu:
–Aurevoir,minhaespertaeencantadorajovem!Tuppence desceu a escada rapidamente, dominada por uma intensa
exaltação.Umrelógiopróximoindicavaquefaltavamcincominutosparaomeio-dia.
– Vamos fazer uma surpresa para Tommy! – murmurou ela para simesma,fazendosinalparaumtáxi.
Otáxiparoudiantedaentradadaestaçãodometrô.Tommyjáestavaali, esperando. Os olhos dele estavam arregalados quando correu paraajudarTuppenceasaltardotáxi.Elalhesorriuafetuosamenteedissecomavozligeiramenteafetada:
–Podepagaracorrida,velhoamigo?Minhanotademenorvaloréde5libras!
3Umrevés
O momento não foi tão triunfante como deveria ter sido. Em primeiro
lugar,porqueosrecursosdisponíveisnosbolsosdeTommyeramumtantolimitados. Por fim, conseguiu reunir o bastante para pagar a despesa; omotorista ficou com amão cheia de uma grande variedade demoedas eindagou, em tom relativamente áspero, o que o cavalheiro pensou quehaviaentregadoaele.
–Achoquedeudinheirodemais,Tommy–comentouTuppence,comarinocente.–Creioqueeleestáquerendodevolveroexcesso.
Foiprovavelmenteessecomentárioquelevouomotoristaaseafastarrapidamente.OSr.Beresfordpôdefinalmentedizeroqueestavapensando:
–Masporquediabovocêpegouumtáxi?–Fiqueicommedodechegaratrasadaedeixá-loesperando–Tuppence
respondeugentilmente.–Ficoucommedodechegaratrasada?Oh,Deus,eudesisto!Arregalandoosolhos,Tuppenceacrescentou.– E para dizer a verdade, não tenho realmente nadamenor que uma
notade5libras.– Representou o papel muito bem,minha cara, mas o sujeito não se
deixouenganar.–Temrazão,elenãoacreditou.Éoqueexistedemaiscuriosoquando
sedizaverdade:ninguémacredita.Descobriissoestamanhã.Agoravamosalmoçar.OquemedizdoSavoy?
Tommysorriu.–NãoprefereoRitz?–Pensandomelhor,sugirooPiccadilly.Ficapertoenãoprecisaremos
tomarumtáxi.Vamos.–Issoéumnovotipodehumorouseráqueficourealmentedemiolo
mole?–Aúltimasuposiçãoéacorreta.Recebitantodinheiroqueochoquefoi
demais para mim. Para essa forma particular de distúrbio mental, ummédico confiável recomenda quantidades ilimitadas de hors d’ouvre,lagostaàl’américaine,galinhaNewbergePêcheMelba!Seéassim,vamosaelas!
–Tuppence,minhacara,oquedeuemvocê?–Oh,incrédulo!–exclamouTuppence,abrindoabolsa.–Vejaistoeisto
emaisisto!– SantoDeus!Tuppence, nãome acene tão sedutoramente comessas
notasdeumalibra!–Nãosãonotasdeuma libra. Sãocincovezesmelhoreseestaaquié
dezvezesmelhor!
Tommysuspirou.– Devo ter bebido sem saber. Estou sonhando, Tuppence, ou você
realmente dispõe de uma grande quantidade de notas de 5 libras,acenando-asdemaneiratãoperigosa?
–Continuasanãocrer,apesardetudo,ÓRei!Eagora,vamosalmoçarounão?
–Ireicomvocêaqualquerlugar.Masoqueandoufazendo?Poracasoassaltouumbanco?
–Tudoaseutempo,Tommy.MasquelugarhorríveléPiccadillyCircus!Lávemumônibusemnossadireção.Nãoseriahorrívelseatropelasseasnotasde5libras?
Aochegarememsegurançaàcalçadadooutrolado,Tommyindagou:–Vamosparaorestaurantedegrelhados?–Ooutrorestauranteémaiscaro–opôs-seTuppence.– Isso não passa de uma extravagância injustificada. Vamos lá para
baixo.–Temcertezadequelápossoconseguirtudooquedesejo?–Estásereferindoaomenudeque falavahápouco?Claroquepode...
oupelomenosoqueestiveraoseugosto.Depoisqueestavamsentados,cercadospelosmuitoshorsd’ouvre dos
sonhos de Tuppence, Tommy não pôde mais conter a curiosidadeacumulada:
–Eagoramecontetudo,Tuppence!EaSrta.PrudenceCowleycontoutudo.Earrematou:–Omais curioso é que realmente inventei o nomede Jane Finn.Não
quis dar o meu próprio nome por causa de meu pobre pai, prevendo apossibilidadedemeenvolveremalgumproblema.
–Podeterpensadoassim,masofatoéquenãoinventouessenome.–Comoassim?–Fui euque lhedisseonome.Nãoestá lembrando?Falei ontemque
tinhaouvidoduaspessoas conversandosobreumamulher chamada JaneFinn.Foiissoqueafezpensarnessenome.
–Émesmo!Estoulembrandoagora.Quecoisaextraordinária!Tuppence se calou e ficou em silêncio por um longo momento.
Despertoubruscamente:–Tommy!–Oqueé?–Comoeramosdoishomensporquemvocêpassou?Tommyfranziuorosto,fazendoumesforçoparaserecordar.
– Um deles era alto e um tanto gordo. Tinha a barba raspada e oscabeloserampretos.
–Éele!Whittingtonéassimmesmo!Ecomoeraooutrohomem?– Não consigo me lembrar. A verdade é que não reparei nele. Foi o
outrohomem,oesquisito,quemechamouaatenção.–Eaindaháquemdigaquecoincidênciasnãoexistem!TuppenceatacoualegrementeoPêcheMelba.MasTommyestavasério:–Tuppence,minhavelha,aondeseráquetudoissovainoslevar?–Amaisdinheiro.– Sei disso. Acho que você está com uma idéia fixa e não consegue
pensaremmaisnada.Oqueestouquerendosaberéqualseráopróximopasso.Comopretendemanterasaparências?
– Oh! – exclamou Tuppence, largando a colher. – Tem toda razão,Tommy.Éumproblemaetanto.
–Afinal,Tuppence,vocênãopodecontinuarblefandoindefinidamente.Mais cedo ou mais tarde, acabaria cometendo um deslize qualquer. Etambémnãovamosesquecerquechantagemdácadeia.
–Nãodigabobagem,Tommy.Chantagemédizerquesevaicontarumacoisa a menos que se receba dinheiro. Mas eu não posso contar coisaalguma,simplesmenteporquenãoseidenada.
–Hum...–murmurouTommy,aindaemdúvida.–Sejacomofor,oquevamosfazeragora?Whittingtonestavacompressaestamanhãetratoudese livrar de você rapidamente.Mas da próxima vez ele vai querer sabermais alguma coisa antes de se desfazer de seu dinheiro. Vai quererdescobriroquantovocêsabe,ondeobteveasinformaçõeseumaporçãodeoutras coisas. Você não terá qualquer possibilidade de se sair bem noencontro.Oquevaifazer?
Tuppencefranziuatesta.–Temosquepensar,Tommy.Peçaumcaféturco.Éestimulanteparao
cérebro.Oh,Deus,comoeucomi!–Você comeu comoumporco. E eu também, diga-se de passagem.A
únicadiferençaéqueminhaescolhadospratosfoimaissábia.Doiscafés,porfavor.Opedidofoiparaogarçomqueseaproximara.Umturco,outrofrancês.
Tuppence tomou o café devagar, com uma expressão pensativa,censurandoTommyquandoelefalou.
–Fiquequieto.Estoupensando.–Cruz-credo!–exclamouTommy,caindoemseguidanomaisabsoluto
silêncio.
– Pronto! – gritou Tuppence de repente. – Já tenho um plano.Obviamente,precisamosdescobrirmaisalgumacoisaarespeitodessecaso.
Tommybateupalmas.– Não deboche, Tommy. Só podemos descobrir alguma coisa por
intermédio de Whittington. Temos que saber onde ele mora, o que faz,coisasdessetipo.Emsuma:temosqueinvestigá-lo.Eunãopossofazerisso,porque ele já me conhece. Mas ele o viu rapidamente, no Lyons’.Provavelmente não irá reconhecê-lo. Afinal, um homem jovem é igual aqualqueroutro.
–Repudiocategoricamenteocomentário.Tenhocertezadequeminhasfeiçõessimpáticaseaparênciadistintamedestacariamemmeioaqualquermultidão.
Tuppencenãoligouparaareaçãoeprosseguiucalmamente:– Meu plano é simples. Irei sozinha até lá amanhã. Tratarei de me
esquivardasperguntasdeWhittington,comofizhoje.Nãotemimportânciasenãoconseguirmaisdinheiro.Cinqüenta librassãosuficientesparanossustentarmosporalgunsdias.
–Ouatémais.–Você ficaráesperandodo ladode fora,Tommy.Quandoeusair,não
falareicomvocê,poiselepoderáestarobservando.Masficareiesperandoaalguma distância. Assim queWhittington sair do prédio, deixarei o lençocairoudareialgumoutrosinal.Evocêparteimediatamente.
–Partir?Paraonde?–Atrásdele,éclaro,seutolo!Oqueachadaidéia?–Éotipodecoisasobreaqualagentecostumalernoslivros.Massinto
que, na vida real, a pessoa vai ficar com a sensação de estar bancando aidiota,paradanaruadurantehorasafio,semternadaparafazer.Equemestiverobservandovaicomeçaraimaginarcoisas.
– Não numa cidade grande como Londres. Todomundo está sempreapressado.Provavelmenteninguémirásequernotá-lo.
– É a segunda vez que faz esse comentário. Mas não importa, eu aperdôoporisso.Sejacomofor,atéqueserádivertido.Oqueestápensandoemfazerestatarde?
–Eutinhapensadoemchapéus!Outalvezmeiasdesedas!Outalvez...–Ei,vácomcalma!Háumlimiteparaoquesepodefazercom50libras.
Mas,dequalquermaneira, podemos jantar e ir aumshowqualquer estanoite.
–Issoseriamaravilhoso!A tarde se passou de maneira agradável. A noite foi mais agradável
ainda. Mas, ao fim do dia, duas das notas de 5 libras estavamirremediavelmenteperdidas.
Encontraram-se na manhã seguinte e foram para o Centro. TommyficounacalçadadooutroladoeTuppenceentrounoprédio.
Tommy caminhou devagar até a esquina e voltou. Quando estavapassandopeloprédio,Tuppenceatravessouaruacorrendo.
–Tommy!–Oqueaconteceu?–Oescritórioestáfechado.Ninguématende.–Estranho...–Vamosjuntosatéláparatentardenovo.Tommy a seguiu. Ao chegarem ao terceiro andar, um rapaz saiu de
outro escritório. Ele hesitou por um momento, depois dirigiu-se aTuppence:
–EstãoprocurandoaEsthoniaGlassware?–Estamos,sim.– O escritório foi fechado ontem à tarde. Disseram que a companhia
estáliquidada.Paradizeraverdade,eununcatinhaouvidofalardelaantes.–Obrigada–balbuciouTuppence.–PoracasosabeoendereçodoSr.
Whittington?–Não,nãosei.Elesforamemborarepentinamente.–Muitoobrigado–Tommyagradeceu.–Vamosembora,Tuppence.Desceramparaaruaepararam,olhandoumparaooutro,inteiramente
aturdidos.–Comisso,estátudoacabado–comentouTommyporfim.–Eeunemdesconfiei!–lamuriou-seTuppence.–Vamos,companheira,anime-se!Nãopodemosfazermaisnada.–Éoquepensa?Tuppence respirou fundo e ergueu o queixo delicado num gesto de
desafio.– Acha mesmo que é o fim de tudo? Pois eu lhe digo que está
redondamenteenganado!Éapenasocomeço!–Ocomeçodoquê?– Da nossa aventura! Será que não percebe, Tommy? Se eles estão
assustadosapontodefugirdessejeito,issomostraquehámuitomaisdoque imaginamos nessa história de Jane Finn! Vamos ter de ir a fundo.Bancaremososdetetivesedescobriremostudo!
–Ótima idéia, Tuppence.Mas acontece que não restouninguémparainvestigarmos.
–Temrazão.Éporissoquevamoscomeçartudodenovo.Empreste-meseu lápis. Obrigada. Espere um pouco... e não me interrompa. Pronto, aíestá!
Tuppence devolveu o lápis e contemplou o que acabara de escrevercomumaexpressãodesatisfação.
–Oqueéisso,Tuppence?–Umanúncio.–Estápensandoempublicaraqueleanúncio?–Não.Esteédiferente.TuppenceentregouopapelaTommy.Eleleuaspalavrasemvozalta:– PROCURA-SE qualquer informação a respeito de Jane Finn. Cartas
paraJ.A.
4QueméJaneFinn?
O dia seguinte passou lentamente. Foi necessário reduzir as despesas.Administradas com todo cuidado, 40 libras poderiamdurar por bastantetempo.Porsorte,otempoestavabome“andarnãocustanada”,conformedeterminou Tuppence. Um cinema de bairro proporcionou-lhes odivertimentonoturno.
O dia da desilusão havia sido uma quarta-feira. Na quinta-feira, oanúncio foi publicado. Na sexta-feira, já se podia aguardar a entrega decartasemrespostanosaposentosdeTommy.
Ele fizera a promessa solene de não abrir as cartas que porventurachegassem, levando-as ainda fechadas para a Galeria Nacional, onde seencontrariamàs10horas.
Tuppence foi a primeira a chegar. Acomodou-se em uma cadeira develudovermelhoe ficouolhandoparaosTurnerscomosolhosperdidos,atéqueavistouumvultofamiliarentrandonasala.
–Eentão?–Eentão...qualéoseuquadropredileto?–respondeuoSr.Beresford,
provocando-a.–Nãoabusedemim!Houvealgumarespostaaoanúncio?
Tommy sacudiu a cabeça, com uma tristeza profunda e um tantoexagerada.
–Não queria desapontá-la, velha amiga, dizendo tudo de cara.Mas éterrível!Umbomdinheirodesperdiçado...
Elesuspirou,antesdeacrescentar:–Masagoraétardeparaarrependimentos.Oanúnciofoipublicadoe...
sóchegaramduasrespostas!–Tommy,seudemônio!–disseTuppence,quasegritando.–Dê-melogo
ascartas!Comopôdesertãodesprezível?–Moderealíngua,Tuppence,moderealíngua!Elessãomuitoexigentes
com essas coisas na Galeria Nacional. Não se esqueça de que é um dospontosaltosdoespetáculoqueogovernoquerexibiraosvisitantes.Alémdisso, deve se lembrar, como já ressaltei antes, de que a filha de umclérigo...
–Eudeveriaestarnopalco!–arrematouTuppence.– Não era isso o que eu ia dizer.Mas se está certa de que desfrutou
devidamenteareaçãodealegriaapósodesesperoquelheproporcioneidemaneiratãogenerosaegratuita,podemosagoratratardacorrespondência,comodizemosmagnatas.
Tuppence arrancou os dois envelopes de Tommy, sem a menorcerimônia,eexaminou-oscomcuidado.
– Este tem um papel mais grosso, aparentemente mais caro. Vamosdeixá-loparadepoiseabrirooutroprimeiro.
–Temtodarazão.Um,dois,trêse...lávai!OpequenopolegardeTuppencerasgouoenvelopeeelatirouobilhete.
PREZADOSENHOREm relação ao seu anúncio no jornal desta manhã, creio que
posso lhe ser útil em alguma coisa. Talvez possa fazer a fineza deprocurar-menoendereçoacima,amanhãàs11horas.
Atenciosamente,
A.CARTER
– Carshalton Gardens, 27 – mencionou Tuppence referindo-se aoendereço. – Fica no caminho para Gloucester Road. Podemos chegar lá atempo,seformosdemetrô.
–Jáelaboreioplanodecampanha,Tuppence.Éaminhavezdeassumiraofensiva.LevadoàpresençadoSr.Carter,eleeeunosdesejamosbom-
dia, respeitosamente, como manda o figurino. Depois, ele me diz: “Porfavor, sente-se, senhor?” Ao que eu prontamente respondo, num tomrepletodeinsinuações:“EdwardWhittington.”OSr.Carterficacomorostoroxoebalbucia:“Quanto?”Embolsandoas50libras,voumeencontrarcomvocê, que estará esperandona rua. Seguimospara o endereço seguinte erepetimosaperformance.
–Nãosejatolo,Tommy!Vamosveraoutracarta...Ei,estaédoRitz!–Cemlibrasemvezde50!–Voulê-la...
PREZADOSENHOR,Liseuanúncio.Agradeceriasepudesseprocurar-meporvoltada
horadoalmoço.Atenciosamente,
JULIUSP.HERSHEIMMER
– Ah! – exclamou Tommy. – Será que estou sentindo o cheiro de umalemão? Ou será apenas um milionário norte-americano com umagenealogia infeliz?Seja como for, vamosprocurá-lonahoradoalmoço.Éumaocasiãodasmaispropícias... freqüentementeacabaemcomidagrátisparadois.
Tuppenceassentiu.–EagoravamosencontraroCarter.Temosquenosapressar.Carshalton Terrace era uma fileira irrepreensível do que Tuppence
chamavade“casasdeaparênciadistintaefeminina”.Tocaramacampainhada casa 27 e a porta foi aberta por uma criada de uniforme impecável.Parecia tão respeitável que Tuppence se sentiu desolada. Tommy pediupara falar com o Sr. Carter e a criada os levou a um gabinete no andartérreo, onde deixou-os. Não chegou a se passar um minuto antes que aportafossenovamenteaberta,dandopassagemaumhomemalto,comumrostomagrocomoodeumgaviãoeumaexpressãodecansaço.
– Sr. J. A.? – indagou ele, sorrindo, um sorriso realmente simpático. –Sentem-se,porfavor.
TommyeTuppencesesentaram.OSr.Cartersentou-seemumacadeiradiantedeTuppenceesorriu-lhe,encorajadoramente.HaviaalgonosorrisodelequefezTuppencesesentirdespojadadeseudesembaraçohabitual.
Como ele não parecia disposto a iniciar a conversa, Tuppence foiobrigadaafazê-lo:
–Queremossaber...istoé,poderianosfazeragentilezadedizertudooquesabearespeitodeJaneFinn?
–JaneFinn?Hum...O Sr. Carter fez uma longa pausa, parecendo refletir, antes de
acrescentar:– A questão deve ser posta em outros termos: o que vocês sabem a
respeitodela?Tuppenceempertigou-se.–Nãovejooqueissotemavercomocaso.–Não?Mastem...etemmuito.Ele sorriu outra vez, com seu jeito cansado, e continuou, em tom
pensativo:–Voltemosaoprincípio.OquevocêssabemarespeitodeJaneFinn?Tuppenceficoucalada,eoSr.Carterinsistiu:– Ora, vocês devem saber de alguma coisa para terem feito aquele
anúncio,nãoémesmo?Ele se inclinou um pouco para a frente, a voz cansada tornando-se
persuasiva:–Suponhamosquemecontassem...Havia algo demagnético na personalidade do Sr. Carter, e Tuppence
deu a impressão de que estava fazendo um tremendo esforço para selibertardaatraçãoquandodisse:
–Nãopodemoscontarnada,nãoémesmo,Tommy?Mas,parasurpresadela,Tommynãoaapoiou.Osolhosdeleestavam
fixos no Sr. Carter. Quando falou, havia em sua voz um tom insólito dedeferência:
–Creioqueopoucoquesabemosdenadalheadiantará,senhor.Mesmoassim,contaremostudo.
–Tommy!–gritouTuppence,espantada.O Sr. Carter virou-se na cadeira. Seus olhos fizeram uma pergunta.
Tommyassentiu.–Euoreconheciimediatamente,senhor.Vi-onaFrança,quandoestava
trabalhandonoserviçosecreto.Assimqueentrounasalapercebiqueera...OSr.Carterergueuamão.–Nadadenomes,porfavor.AquisouconhecidocomoSr.Carter.Esta
casaédeminhaprima,porfalarnisso.Elameemprestaàsvezes,quandoénecessárioterumencontroquenãopodeserrealizadopelosmeiosoficiais.Eagora...
Ele fez uma breve pausa, olhando de um para o outro, antes de
arrematar:–...quemvaimecontarahistória?–Contevocê,Tuppence.Ahistóriaésua.–Muitobem,minhajovem,estououvindo...E Tuppence, obedientemente, contou toda a história, da criação da
JovensAventureirosLtda.emdiante.O Sr. Carter escutou em silêncio, retomando a atitudede cansaço.De
vezemquandopassavaamãopelos lábios, comosequisesseocultarumsorriso.QuandoTuppenceacabou,eleassentiugravementeecomentou:
–Não émuito...mas é sugestivo. Emuito sugestivo. Seme permitemdizê-lo, formamumjovemcasalbastantecurioso.Nãosei... talvezpossamter sucesso onde outros fracassaram... acredito na sorte... sempreacreditei...
Eleparoudefalarporummomento,pensativo.– O que me dizem da idéia? Estão à procura de aventuras, não é
mesmo? Não gostariam de trabalhar para mim? Não será nada oficial.Aceitariam a missão com todas as despesas pagas e uma modestarecompensaaofinal?
Tuppence fitou-o em silêncio, os lábios entreabertos, os olhos searregalandocadavezmais.Porfimbalbuciou:
–Oqueteremosdefazer?OSr.Cartersorriu.–Devemapenascontinuaroqueestãofazendoagora.Encontrem Jane
Finn.–Mas...queméJaneFinn?OSr.Carterassentiugravemente.–Achoquevocêstêmodireitodesaber.Eleserecostounacadeira,cruzouaspernas,uniuaspontasdosdedose
começouafalar,emumtombaixoemonótono:–Adiplomacia secreta é algoquenão lhesdiz respeito. E, diga-sede
passagem,ésempreumapéssimapolítica.Bastaquesaibamque,noiníciode 1915, foi elaborado um certo documento. Era o esboço de um acordosecreto... ou um tratado, chamem como acharemmelhor. Foi examinadoporrepresentantesdospaísesenvolvidosepreparadaaredaçãofinalparaaassinaturanosEstadosUnidos,quenaocasiãoeraumpaísneutro.Essedocumento foi enviado para a Inglaterra por um mensageiro especial,escolhido especificamente para essamissão. Era um sujeito ainda jovem,chamado Danvers. Imaginava-se que as negociações tinham sidoconduzidasnomaisabsolutosigilo,atalpontoquenadahaviavazado.Esse
tipodeesperançasemprelevaàdecepção.Hásemprealguémquefala.Cartercontinuou:– Danvers embarcou para a Inglaterra no Lusitania. Levava os
documentos preciosos num pequeno pacote feito com um oleado, quesemprecarregavanoprópriocorpo.Foi justamentenessatravessiaqueoLusitania foi torpedeado e afundou. Danvers estava na relação dosdesaparecidos. Seu corpo acabou aparecendo em uma praia e foiidentificadosemamenorsombradedúvida.Masopequenopacotehaviasumido.
TuppenceeTommyouviamatentamente.Ohomemcontinuou:– Será que haviam tirado o pacote de Danvers ou ele mesmo o
entregara à guarda de outra pessoa? Houve alguns incidentes queacentuaramaspossibilidadesdessasegundateoria.Depoisqueo torpedoatingiu o navio, nos rápidosmomentos emque os botes forambaixados,viram Danvers falando com uma jovem norte-americana. Ninguém o viuentregarqualquercoisaaela,masissopodeteracontecido.Parece-mebemprovável que ele tenha entregado os documentos a essa jovem, achandoque ela, comomulher, teriamais chancesde levá-los em segurança até apraia.Masseissorealmenteaconteceu,ondeestáamoçaeoquefezcomosdocumentos?SegundoinformaçõesquerecebemosposteriormentedosEstadosUnidos, parece queDanvers foi seguido ao sair de lá. Será que amoçaestavatrabalhandoparaosinimigos?Ouseráqueela,porsuavez,foiseguida e enganada, ou até mesmo forçada a entregar os documentos?Entramos em ação na tentativa de descobri-la. O que, inesperadamente,revelou-seumatarefadasmaisdifíceis.SeunomeeraJaneFinneconstavanarelaçãodossobreviventes.Masamoçapareciaterdesaparecidodevez.As investigações sobre seus antecedentes não ajudarammuito. Era umaórfã e estudara em uma pequena escola doOeste norte-americano comopupiladeumdosprofessores.OpassaportetinhaovistoparaParis,ondese juntaria à equipe de um hospital. Oferecera seus serviçosvoluntariamentee,depoisdeumapequenatrocadecorrespondências,foraaceita.Verificandoqueseunomeconstavadarelaçãodossobreviventes,adireçãodohospital ficounaturalmentesurpresaquandoelanãoapareceuparaassumiroemprego.Tambémnãorecebeuqualquernotíciadela.
OSr.Carterprosseguiucomaexplicação.–Foramfeitos todososesforçospara localizaramoça...mas tudoem
vão. Ainda conseguimos descobrir seu percurso pela Irlanda, mas nãoencontramosnenhumaoutrapistadepoisqueelapôsospésnaInglaterra.Nãofoitiradoqualquerproveitodosdocumentos,oquepoderiafacilmente
acontecer.Assim,chegamosàconclusãodeque,nofimdascontas,Danversos destruíra. A guerra entrou em outro estágio e o aspecto diplomáticotambémmudou. O tratado não voltou a ser cogitado. Os rumores de suaexistência foram categoricamente negados. O desaparecimento de JaneFinnfoiesquecidoenãosecomentoumaisocaso.
O Sr. Carter fez uma pausa e Tuppence aproveitou para indagar,impacientemente:
–Masporqueoassuntovoltouàtona?Afinal,aguerrajáacabou.OSr.Cartermostrou-sealertadesúbito.–Porqueparecequeosdocumentosnãoforamrealmentedestruídose
podemserressuscitadoshojecomumsignificadonovoeperigoso.Tuppenceficousurpresa.OSr.Carterassentiu.–Éissomesmo.Hácincoanos,aqueleesboçodetratadoeraumaarma
emnossasmãos;hoje,éumaarmacontranós.Foiumerrogigantesco.Seostermosfossemdivulgados,seriaumdesastredeproporçõesincalculáveis...Poderia inclusive provocar outra guerra... e dessa vez não seria com aAlemanha! É uma possibilidade extrema e, pessoalmente, não creio quepossa acontecer. Mas o fato é que o documento compromete vários dosnossosestadistas,enãopodemosnosdaraoluxodevê-losdesacreditadosnestemomento.SeriaumagrandevitóriaparaoPartidoTrabalhista.Eumgoverno trabalhista na atual conjuntura seria, em minha opinião, umagraveameaçaaocomérciobritânico.Mas,nofundo,esseseriaomenordosmales.
Elefeznovapausaedepoisindagou,deformacalma:–Poracasojáouviramdizeroujáleramsobreosrumoresdequeexiste
uma influência bolchevista em ação por trás da atual inquietaçãotrabalhista?
Tuppenceassentiu.–Poissaibamqueéverdade.Oourobolchevistaestásendodespejado
nestepaíscomopropósitoespecíficodepromoverumarevolução.Eexisteum determinado homem, alguém cujo verdadeiro nome nos édesconhecido, que está agindo nos bastidores para alcançar os própriosinteresses.Osbolchevistasestãoportrásdainquietação...masessehomemestáportrásdosbolchevistas.Queméele?Nãosabemos.Sempreétratadopelotítulomodestoedespretensiosode“Sr.Brown”.Masumacoisaécerta:é o maior mestre do crime da nossa era. Controla uma organizaçãomaravilhosa. Amaior parte da propaganda de paz, durante a guerra, foiinspiradaefinanciadaporele.Seusagentesestãoemtodaparte.
–Éumalemãonaturalizado?–indagouTommy.
–Ao contrário, tenho todos osmotivos para crer que se trata de uminglês.Foia favordosalemães,assimcomoteriasidoa favordosbôeres.Não sabemos o que ele está buscando... provavelmente o poder supremopara si mesmo, de um tipo sem precedentes na História. Não temosqualquer pista de sua verdadeira personalidade. Pelo que sabemos, atémesmo seus partidários a ignoram.Nas ocasiões em que nos deparamoscom suaspegadas, ele sempredesempenhouumpapel secundário.Outrapessoa acabou assumindo o papel de chefe. Mas, depois, sempredescobríamos que o suposto chefe não passava de uma figurainsignificante, um simples criado ou um mero escriturário, de papeltrocado, que se deixou prender, enquanto o esquivo Sr. Brown nosescapavamaisumavez.
–Oh!–exclamouTuppence,abruptamente.–Seráque...?–Oqueestápensando?–Estoume recordandodo encontro no escritório do Sr.Whittington.
ElechamouoescriturárioqueoatendiadeBrown.Seráque...?Carterassentiu,pensativo.– É bem provável. Um dos detalhes curiosos é o fato de o nome ser
sempre mencionado. Provavelmente uma idiossincrasia de gênio. Podedescreveressesupostoescriturário?
–Nãochegueirealmentearepararnele.Eraumhomemcomum...igualaqualqueroutro.
OSr.Cartersoltouumsuspirodecansaço.– É a invariável descrição do Sr. Brown. Ele levou uma mensagem
telefônicaparaohomemquesedissechamarWhittington,não?Poracasonotoualgumaparelhotelefôniconaante-sala?
Tuppencepensouumpouco.–Achoquenãohaviatelefonealgum.–Eraoqueeujáimaginava.AmensagemfoiummeiodeoSr.Brown
darumaordemaseusubordinado.Éclaroqueeleouviutodaaconversa.Foidepoisda interrupçãoqueWhittingtonentregouavocêas50 librasepediuquevoltassenamanhãseguinte?
Tuppenceassentiu.–NãorestaamenordúvidadequeeraoSr.Brown!OSr.Carterfeznovapausa.–Estãovendootipodehomemqueterãodeenfrentar,nãoémesmo?
Possivelmente é o melhor cérebro criminoso desta era. A idéia não meagradademaneira alguma. Vocês dois sãomuito jovens. Eunão gostariaquealgoacontecesseavocês.
–Enãovaiacontecer–declarouTuppence,comtodasegurança.–Eucuidareidela,senhor–completouTommy.–Eeutomareicontadevocê–reagiuTuppence,ressentidacomaquela
manifestaçãodesuperioridademasculina.–Bem,entãoqueumcuidedooutro–comentouoSr.Carter,sorrindo.
–Eagoravamosvoltaraosnegócios.Háalgodemisteriosoarespeitodessedocumentoqueaindanãoconseguimosdefinir.Jáfomosameaçadoscomasua divulgação, em termos claros e inequívocos. Os elementosrevolucionáriospraticamentedeclararamqueotratadoestáemsuasmãosequepretendemrevelá-lonaocasiãooportuna.Poroutrolado,éevidentequeelesdesconhecemváriositensdodocumento.Ogovernoachaqueelesestãosimplesmenteblefando.E,certoouerrado,ogovernotemmantidoapolítica de negar sistematicamente a existência do documento. Eu tenhominhas dúvidas. Já houve insinuações e alusões indiscretas que parecemindicarqueaameaçaéreal.A impressãoédequeelesseapoderaramdodocumento incriminador, mas não podem lê-lo porque está em código.Contudo,sabemosqueoesboçodotratadonãoestáemcódigo,oquenãoserianatural.Assim,essapossibilidadeestáeliminada.Masaverdadeéquehá algomuito estranho nessa história. É claro que Jane Finn pode estarmorta,peloquesabemos.Masnãocreionisso.Omaisestranhoéqueelesestãotentandoobterdenósinformaçõessobreamoça.
–Hein?–Éissomesmo.Ocorreramumoudoisfatosquenosfazemcrernessa
possibilidade.E suahistória,minha jovem,parece confirmara suposição.Eles sabem que estamos procurando por Jane Finn. E podem apresentarumaJaneFinnfalsa...numpensionnatemParis,porexemplo.
Tuppence deixou escapar uma exclamação de espanto e o Sr. Cartersorriu.
–Ninguémsabeexatamentecomoelaée,assim,nãohaveriaqualquerdificuldade. Ela se apresentaria com uma história forjada e tentariaarrancaromáximodeinformaçõesdenós.Percebeagoraqualéoplano?
–Querdizerqueestápensando...Tuppencefezumapausaparaabsorverplenamenteasuposição,antes
deconcluir:–...queeraparaassumiropapeldeJaneFinnqueelesqueriamqueeu
fosseparaParis?OSr.Carter tornouasorrir,comumaexpressãomaiscansadadoque
nunca.–Averdadeéqueacreditoemcoincidências.
5JuliusP.Hersheimmer
—Parece que isso estava realmente fadado a acontecer – murmurouTuppence,recuperando-sedochoque.
Carterconcordou.–Compreendooqueestáquerendodizer.Tambémsousupersticioso.
Acreditonasorteeem todasessascoisas.Odestinoparece terescolhidovocêsparaseenvolveremnessahistória.
Tommynãocontevearisada.– Mas que coisa! Não é de admirar que Whittington tenha sumido
depoisqueTuppencedeuaquelenome.Euteria feitoamesmacoisa.Masacho que já tomamos demais o seu tempo, senhor. Tem mais algumainformaçãoanosdarantesdeirmosembora?
– Creio que não. Meus agentes, trabalhando por meio de métodosóbvios, fracassaram. Vocês se lançarão na missão com criatividade e amenteaberta.Nãosesintamdesanimadossetambémnãotiveremsucesso.Porumlado,ébemprovávelqueasituaçãosejaagoraprecipitada.
Tuppencefranziuorosto,semcompreender.–QuandovocêteveaqueleencontrocomWhittington,elesdispunham
de bastante tempo. Tenho informações de que o grande golpe estavaplanejadoparaoiníciodonovoano.Masogovernoestácogitandoadotarprovidências legislativasparacuidarde formaeficazdaameaçadegreve.Nãolevarátempoatéelessaberemdisso,seéquejánãosabem.Épossívelque isso leve as coisas a um ponto crítico. Realmente espero que issoaconteça.Quantomenostempoelestiveremparaamadurecerseusplanos,melhor será. Estou querendo apenas alertá-los de que não dispõem demuito tempo e que não devem ficar abatidos se falharem. Seja como for,nãoéumamissãodasmaisfáceis.Issoétudo.
Tuppencelevantou-se.– Acho que devemos ser profissionais. O que exatamente podemos
esperardasuaparte,Sr.Carter?Os lábios do Sr. Carter se contraíram ligeiramente antes da resposta
sucinta:–Recursosdentrodoslimitesrazoáveis,informaçõesdetalhadassobre
qualquer questão e nenhum reconhecimento oficial. Se por acaso se
meterem em alguma encrenca com a polícia, não poderei ajudá-losoficialmente.Estarãoporcontaprópria.
Tuppenceassentiu,séria.–Compreendosuaposição.Escrevereiumalistadascoisasquedesejo
saber, assim que tiver algum tempo para pensar. E agora... a respeito dodinheiro...
– Pode falar sem receio, Srta. Tuppence. Quer dizer o quanto estãoprecisandonestemomento?
–Naverdade,não.Nomomentodispomosdedinheirosuficiente.Masquandoquisermosmais...
–Estareiesperandoparaatendê-los.–Seidisso,mas...Nãoquerosergrosseiraemrelaçãoaogoverno,mas
todomundosabequeéuminfernoquandosequerarrancaralgumacoisadele. E se tivermos que preencher um formulário azul, enviarmos peloscanaiscompetentesedepoisesperarmostrêsmesespararecebermosumformulário verde e assim por diante... não vai adiantar de nada, não émesmo?
OSr.Carterriu,divertido.– Não precisa se preocupar, Srta. Tuppence. Basta enviar um pedido
pessoalparamim,nesteendereço.Receberáodinheironoendereçoqueasenhorita informar no envelope. Quanto ao salário, o que me diz decombinarmos 300 libras por ano? Com uma soma igual para o Sr.Beresford,éclaro.
Tuppenceficouradiante.–Maravilhoso!Émuitagenerosidade,Sr.Carter.Eeuadorodinheiro!
Manterei um registro impecável de nossas despesas... uma coluna decrédito e outra de débito, com o balanço no lado direito e uma linhavermelha separando os totais, no fim da página! Sei fazer essas coisasdireitinhoquandopensoumpouco.
– Tenho certeza de que sabe, Srta. Tuppence. E agora, adeus... e boasorteparaambos.
OSr.Carterapertouasmãosdosdois.Umminutodepois,elesestavamdescendoaescadadoCarshaltonTerrace,27,comascabeçasamil.
– Tommy, quero que me responda imediatamente, quem é o “Sr.Carter”?
Tommymurmurouumnomenoouvidodela.–Oh!–exclamouTuppence,impressionada.–Epossolheassegurar,velhaamiga,queéelequemrealmentemanda!–Oh!–repetiuTuppence.
Depoisdeumabrevepausa,elaacrescentou,pensativa:– Achei-o simpático. Você também não achou? Ele parece muito
cansadoeentediado,masagentesenteque,porbaixo,écomoaço,alertaeprontoparaentraremaçãoaqualquermomento.Oh!
Tuppencedeuumpulinho,antesdeacrescentar:–Quero quemebelisque, Tommy. Por favor,mebelisque.Nãoposso
acreditarquesejaverdade!OSr.Beresfordatendeuaopedido.–Ah!Jáchega,Tommy!Éverdade,nãoestamossonhando!Temosum
emprego!–Equeemprego!Oempreendimentoconjuntocomeçoudeverdade!– É mais respeitável do que eu imaginava que seria – comentou
Tuppence,pensativa.–Aindabemquenãotenhoamesmainclinaçãoquevocêparaocrime.
Quehorassão?Vamosalmoçare...Ei!Omesmopensamentoocorreuaambos.Tommyexpressou-oprimeiro:–JuliusP.Hersheimmer!–NãofalamosaoSr.Cartersobreobilhetedele.– Não havia muito o que contar... não enquanto não o conhecermos
pessoalmente.Émelhorpegarmosumtáxi.–Quemestáquerendoserextravaganteagora,Tommy?–Nãoseesqueçadequetemostodasasdespesaspagas.Vamos,entre
logo.Os dois entraram no táxi que atendeu ao chamado de Tommy.
Tuppencerecostou-secomodamentenoassentoecomentou:–Dequalquermaneira,causaremosumefeitomelhorsechegarmosde
táxi.Tenhocertezadequeoschantagistasnuncavãoaoencontrodesuasvítimasdeônibus.
–Jádeixamosdeserchantagistas.–Nãotenhomuitacertezaseeudeixeimesmo–murmurouTuppence.Ao perguntarem pelo Sr. Hersheimmer, foram imediatamente
conduzidosàsuítedele.Umavozimpacientegritou“Entre!”,emrespostaàbatidanaporta do empregadodohotel.O rapaz abriu a porta e ficoudelado,paradeixarTommyeTuppencepassarem.
O Sr. Julius P. Hersheimmer eramuitomais jovem do que Tommy eTuppence haviam imaginado. Ela calculou que ele devia ter cerca de 35anos. Era de estaturamediana e um corpo quase quadrado, combinandocom o queixo. O rosto era belicoso, mas simpático. Ninguém poderiaconfundi-lo com outra coisa que não fosse um norte-americano, embora
falassequasesemsotaque.–Receberammeubilhete?Poissentem-seedigamimediatamentetudo
oquesabemarespeitodeminhaprima.–Suaprima?–Claro!JaneFinn!–Elaésuaprima?– Meu pai e a mãe dela eram irmãos – explicou o Sr. Hersheimmer,
detalhadamente.–Oh!–exclamouTuppence.–Entãosabeondeelaestá?–Não! – gritou o Sr. Hersheimmer batendo com o punho fechado na
mesa.–Nãoseidedroganenhuma!Evocês,nãosabem?– Anunciamos pedindo informações e não oferecendo – respondeu
Tuppenceemtomáspero.– Sei disso. Consigo ler perfeitamente. Mas pensei que estivessem
querendo saber a história sobre o passado dela e soubessem ondeencontrá-laagora.
– Não nos importaríamos de ouvir a história sobre o passado dela –comentouTuppence,cautelosamente.
MasoSr.Hersheimmerpareceuficarrepentinamentedesconfiado.– Ei, vamos com calma! Isso aqui não é a Sicília! Não vão me pedir
resgate nem ameaçar cortar as orelhas dela se eu recusar! Estamos nasIlhas Britânicas! Por isso, vamos deixar as brincadeiras de lado ouchamareiaqueleimponentepolicialbritânicoquevejoláemPiccadilly!
Tommyapressou-seemexplicar:– Não seqüestramos sua prima. Pelo contrário, estamos tentando
encontrá-la.Fomoscontratadosparaisso.OSr.Hersheimmerrecostou-senacadeiraedisseemumtomlacônico:–Conte-metudo.Tommy atendeu ao pedido, oferecendo uma versão prudente do
desaparecimento de Jane Finn e da possibilidade de ela ter-se envolvidosem saber em “alguma confusão política”. Referiu-se a Tuppence e a simesmo como “investigadores particulares” contratados para encontrá-la.Por isso, acrescentou, agradeceriam todas as informações que o Sr.HersheimmerpudessefornecerarespeitodeJaneFinn.
OSr.Hersheimmerassentiu.–Achoqueestátudocerto.Desculpemsefuiumpoucoapressado,mas
équeLondresmedeixanervoso.SóconheciaatéagoraavelhaepequenaNovaYork.Maspodemfazersuasperguntasqueeurespondo.
IssodeixouosJovensAventureirosparalisadosporummomento.Mas
Tuppenceserecuperoulogoe,deformaaudaz,aproveitouaoportunidadefazendousodelembrançascolhidasnashistóriasdedetetives.
–Quandoviupelaúltimavezafale...istoé,asuaprima?–Nuncaavi.–Como?–indagouTommy,atônito.Hersheimmervirou-separaele.–Éissomesmo,meucarosenhor.Comojádisseantes,meupaieamãe
delaeramirmãos,assimcomovocêsdoispodemser...Ele fez uma breve pausa, mas Tommy não corrigiu essa opinião a
respeitodoseurelacionamentocomTuppence.–Masnemsempresederammuitobem.Equandominhatiatomoua
decisão de casar com Amos Finn, que era um pobre professor no Oeste,meupaificousimplesmentefurioso!Dissequeseganhassemuitodinheiro,como tudo indicava que aconteceria, ela não veria um só vintém. OresultadoéquetiaJanefoiparaoOesteenuncamaisouvimosfalardela.
Hersheimmer fez outra pausa, respirando fundo como se estivessetomandofôlego.
–Eovelhorealmenteganhoudinheiroquenãoacabamais.Meteu-secompetróleo,andoumexendocomferrovias.PossogarantiravocêsqueelefoiumverdadeirofuracãoemWallStreet!Então...nooutonopassado...elemorreu,efiqueicomtodoodinheiro.Enãovãoacreditarnoqueaconteceu.Fiqueicomaconsciênciapesada!Haviaumapequenavozdentrodemimqueviviamedizendo:oquevaifazerporsuatiaJanequeestálánoOeste?Comecei a ficar cada vez mais preocupado. Calculei que Amos Finn nãodeviatersesaídomuitobemnavida.Peloqueeusabia,nãoeradotipoqueganharia muito dinheiro. Para resumir, contratei um homem paradescobriroparadeirodatiaJane.Resultado,elahaviamorridoeAmosFinntambém. Mas tinham deixado uma filha, Jane, que estava a caminho deParis, no Lusitania, quando o navio foi torpedeado. Ela se salvou, masninguémnesteladodoAtlânticosabiadizeroparadeirodela.CalculeiquenãoestavamprocurandocommuitoempenhoeresolvivirparaLondresafim de apressar as coisas. A primeira coisa que fiz foi telefonar para aScotlandYardeparaoAlmirantado.ArecepçãonoAlmirantadonãofoidasmelhores.MasopessoaldaScotlandYard foimuitocortês.Disseramqueiam investigar e, inclusive, mandaram um homem aqui estamanhã parabuscarafotografiadela.VouseguirparaParisamanhã,sóparaveroqueaPrefecturedeláandafazendo.Achoqueseeuficarindodeumladoparaooutro,apertandotodomundo,vãoacabardescobrindoondeestáJaneFinn!
A energia do Sr. Hersheimmer era tremenda. Tommy e Tuppence se
curvaram,permanecendoemsilêncio.Eelearrematou:– Mas agora me digam uma coisa, por que estão procurando minha
prima?Eladesrespeitoualgumaleioufezalgoqueofendesseosbritânicos?Umamoçanorte-americanaorgulhosapodiaacharas leise regulamentosdevocêsnaépocadaguerraum tanto irritantese se rebelar. Seé esseocaso e se existe neste país alguma coisa parecida com suborno, é sómedizerem,queentrocomodinheiroqueforpreciso!
Tuppencetratoudetranqüilizá-lo.– Issoéótimo!Entãopodemostrabalhar juntos.Que talalmoçarmos?
Preferemqueeumande trazera comidapara cáouvamosdescerparaorestaurante?
Tuppence manifestou preferência por almoçarem no restaurante eJuliusHersheimmeracatouadecisão.
AsostrastinhamacabadodedarlugaraoSoleColbertquandoogarçomentregouumcartãoaHersheimmer.
– Inspetor Japp. Scotland Yard, outra vez. E agora mandaram umhomemdiferente.Oqueesperamqueeudigaqueaindanãotenhacontadoao primeiro sujeito? Só espero que não tenham perdido a fotografia. OlaboratóriodofotógrafoládoOestepegoufogoetodososnegativosforamdestruídos.Éaúnica fotografiaqueexistedaminhaprima.Quemmedeufoiodiretordocolégioemqueelaestudou.
UmsúbitotemorinvadiuTuppence.–Sabe...sabeonomedohomemqueveioprocurá-loestamanhã?–Claroquesei!Não,nãosei...Espereumpouco.Estavanocartão...Ah,
lembreiagora!InspetorBrown.Umsujeitinhoumtantoquieto,dessetipoquenãochamaaatençãodeninguém...
6Umaestratégia
Pode-se baixar um véu, com proveito, sobre os acontecimentos dameiahoraseguinte.Bastadizerquenãoseconhecianenhum“inspetorBrown”naScotlandYard.AfotografiadeJaneFinn,queteriasidodeextremovalornas investigações da polícia para encontrá-la, estava perdida e sem
qualquer possibilidade de recuperação. Mais uma vez o “Sr. Brown”triunfara.
O resultado imediato desse contratempo foi um rapprochement entreJulius Hersheimmer e os Jovens Aventureiros. Todas as barreirasdesmoronaram,eTommyeTuppence ficaramcoma impressãodeque jáconheciam o jovem norte-americano há muito tempo. Abandonaram areticênciadiscretade“agentesparticulares”erevelaram-lhetodaahistóriadeseuempreendimentoconjunto.Aoqueonorte-americanocomentouquesesentia“todoarrepiado”.
Aofimdanarração,elevirou-separaTuppenceecomentou:–Semprepenseiqueasgarotas inglesas fossemumtantoantiquadas.
Podiam ser meigas, mas tinham pavor de dar uma volta sem estaremacompanhadasporumlacaioouumatiasolteirona.Masestouvendoagoraqueeuéqueestouumpoucodesatualizado!
A conseqüência dessas relações confidenciais foi que Tommy eTuppenceseinstalaramnoRitz,afimde,comodisseTuppence,ficarememcontatocomoúnicoparentevivodeJaneFinn.
– E vendo as coisas por esse ângulo – acrescentou ela,confidencialmente–,ninguémpodereclamardasdespesas!
Ninguémofez,oquefoiomelhordetudo.– E agora vamos ao trabalho! – disse a jovem, na manhã seguinte à
mudançaparaoRitz.OSr.BeresfordlargouoDailyMailqueestavalendoeaplaudiucomum
vigor de certo modo desnecessário. Foi polidamente solicitado por suacolegaanãosecomportarcomoumasno.
–Quedroga,Tommy!Termosquefazeralgumacoisapelodinheiroquevamosreceber!
Tommysuspirou.– Tem toda razão. Receio que até mesmo o nosso velho e prezado
governonãonossustentaráemplenaociosidadenoRitzparasempre.–Portanto,comojádisse,temosquefazeralgumacoisa.–Está certo,pode fazer–Tommyconcordou,pegandooDailyMail. –
Nãovouimpedi-la.–Sabe,Tommy,estivepensando...Tuppencefoiinterrompidaporumnovoacessodeaplauso.–Émuitobomvocêficarsentadoaíbancandooengraçadinho,Tommy.
Mas não lhe faria mal algum se pusesse o seu cérebro para pensar umpouco!
– É meu sindicato, Tuppence, meu sindicato! Ele não me permite
começaratrabalharantesdas11horas.– Está querendo que eu jogue alguma coisa em você, Tommy? É
absolutamenteindispensávelquecomecemosaformularumaestratégiajá.–Apoiada!Apoiada!–Poisentão,vamoscomeçar.Porfim,Tommylargouojornaldevez.– Há realmente algo da simplicidade dos grandes gênios em você,
Tuppence.Podecomeçar.Estououvindo.–Paracomeçar,oquetemoscomopontodepartida?–Absolutamentenada–respondeuTommy.– Errado! – Tuppence corrigiu-o, sacudindo o dedo vigorosamente. –
Temosduaspistasmuitoboas.–Equaissão?–Primeirapista:conhecemosumdosmembrosdaquadrilha.–Whittington?–Exatamente.Euoreconheceriaemqualquerlugar.–Hum... –murmurouTommy, comumardedúvida. –Achoque isso
não chega a ser uma pista. Afinal, não sabe onde procurá-lo. E tem umachanceemmildeencontrá-loporacaso.
–Nãotenhotantacertezaassim.Jánoteique,apartirdomomentoemque as coincidências começam a acontecer, continuam acontecendo damaneira mais extraordinária. Eu diria até mesmo que existe alguma leinatural que ainda não descobrimos.Mesmo assim, como você disse, nãopodemos contar com isso. Mas existem lugares em Londres onde todomundoacabaaparecendomaiscedooumaistarde.Éocaso,porexemplo,dePiccadillyCircus.Umadasminhas idéiasera fazerplantãopor láodiainteiro,comumabandejadeflâmulas.
–Ecomovaifazerparacomer?–indagouTommy,sempreprático.–Masquehomem!Queimportânciatemacomida?– Você pensa assim agora, que acabou de tomar um farto café-da-
manhã. Mas ninguém tem mais apetite que você, Tuppence. Quandochegasseahoradochá,vocêjáestariadevorandoasflâmulas,comalfinetee tudo.Mas, sinceramente, não acho a idéia dasmelhores. É possível atéqueWhittingtonnãoestejamaisemLondres.
– Acho que você tem razão. Seja como for, a segunda pista é maispromissora.
–Poisentãodigalogoqualé.– Não é muita coisa. Apenas um nome cristão: Rita. Whittington
mencionou-oduranteoencontro.
– Está propondo um terceiro anúncio? “Procura-se: vigarista do sexofemininoqueatendapelonomedeRita.”
–Nãoénadadisso,Tommy.Oqueestoupropondoéraciocinarmosumpouco de maneira lógica. O tal agente, Danvers, foi seguido durante aviagem,nãoémesmo?Eémaisprovávelquetenhasidoseguidoporumamulherdoqueporumhomem...
–Nãovejoqualquerlógicanisso.–Mas tenho toda certezade que só podia ser umamulher – afirmou
Tuppence,comcalma.–Eumamulherbonita.– Nessas questões técnicas, eu me curvo diante de sua decisão –
murmurouoSr.Beresford.– É evidente que essamulher, seja ela quem for, acabou se salvando
também.–Porquepensaassim?–Senãofosseporela,comoelespoderiamsaberqueJaneFinnestava
comosdocumentos?–Absolutamentecerto.Continue,Sherlock!– Há uma possibilidade... e admito que não é dasmaiores... que essa
mulherfossea“Rita”.–Esefor?– Se for, vamos procurar entre os sobreviventes do Lusitania até
descobri-la.– Nesse caso, nossa primeira providência é obter uma relação dos
sobreviventes.–Jáconsegui.Escreviumalistacompridadascoisasquequeriasabere
mandeiparaoSr.Carter.Recebiarespostadeleestamanhã.Entreoutrascoisas,haviaarelaçãooficialdossobreviventesdoLusitania.NãoachaqueapequenaTuppenceéumbocadointeligente?
– Nota dez para aplicação, nota zero para modéstia. Mas a grandequestãoéaseguinte:existealguma“Rita”narelação?
–Éissooqueaindanãosei,Tommy.–Nãosabe.–Issomesmo.Dêumaolhada.Osdoissedebruçaramsobrearelação.–Comopodever,Tommy,elesquasenãoindicamonomedebatismo.A
maioriadasmulherestemapenasosobrenome,antecedidodeSra.ouSrta.Tommyassentiu.–Issocomplicatudo.Tuppencedeudeombros,asuatípicasacudideladeterrier.
– Vamos ter que descobrir, Tommy. Começaremos pela área deLondres.AnoteosendereçosdetodasasmulheresquevivememLondresouarredores,enquantovoucolocarochapéu.
Cinco minutos depois, o jovem casal estava em Piccadilly, e poucossegundos mais tarde estavam em um táxi a caminho de The Laurels,GlendowerRoad,7,aresidênciadaSra.EdgarKeith,cujonomefiguravaemprimeirolugaremumalistadeseteguardadanobolsodeTommy.
TheLaurelseraumacasaantigaefaltavapoucoparaestaremruínas,com algumas moitas raquíticas para sustentar a ficção de um jardim nafrente.Tommypagouo táxieacompanhouTuppenceatéacampainhadaportadafrente.Quandoelajáestavaprestesatocaracampainha,Tommysegurou-lheamão.
–Oquevaidizer,Tuppence?– O que vou dizer? Ora, direi... Oh, querido, não sei! É uma situação
muitoconstrangedora.– Pois eu sei! – afirmou Tommy, com evidente satisfação. – Ah, as
mulheres! Não são nada previdentes. Fique de lado e veja como umlegítimorepresentantedosexomasculinoresolveasituaçãocomamaiorfacilidade.
Ele apertou a campainha. Tuppence retirou-se para um localapropriado.
Umaempregadadeaparênciadesleixada,comorostosujoeumpardeolhosquenãocombinava,abriuaporta.
Tommyhaviatiradodobolsoumcaderninhodeanotaçõeseumlápis.– Bom dia – disse ele, cordialmente. – Sou do Conselho Distrital de
Hampstead,donovoRegistrodeEleitores.ASra.EdgarKeithresideaqui,nãoémesmo?
–Sim,senhor.–Nomedebatismo?–indagouTommy,olápislevantado,àespera.–Dasenhora?EleanorJane.–Eleanor–repetiuTommy,escrevendo.–Filhosoufilhasacimade21
anos?–Não.–Obrigado.Tommyfechouocaderninhocomumestalidoeacrescentou:–Bomdia.Acriadaofereceuoseuprimeirocomentário:–Penseiquetivessevindoverogás–disseelademaneiraenigmática,
fechandoaportaemseguida.
Tommyfoijuntar-seàsuacúmpliceecomentou:–Comopodeverificar,Tuppence, issoébrincadeiradecriançaparaa
mentemasculina.–Nãomeimportodeadmitirque,dessavez,vocêacertouemcheio.Eu
nuncateriapensadonisso.–Nãoachaqueéumaboatática?Epodemosrepeti-laadlib.A hora do almoço encontrou o jovem casal atacando com voracidade
umbifecomfritasemumaobscuraestalagem.JáhaviamencontradoumaGladys Mary e uma Marjorie, tinham ficado desconcertados com umamudança de endereço e haviam sido obrigados a escutar uma longapreleção sobre o sufrágio universal de uma esfuziante dama norte-americana,cujonomeeraSadie.
–Ah!–exclamouTommy, tomandoumgoledecerveja.– Jáestoumesentindomelhor.Ondeéapróxima?
O caderninho de anotações estava em cima da mesa, entre os dois.Tuppencepegou-oeleu:
– Sra. Vandemeyer, South Audley Mansions, 20. E depois a Srta.Wheeler, Clapington Road, 43, Battersea. Pelo que me lembro, ela éempregada doméstica e provavelmente não estará em casa a essa hora.Alémdomais,nãocreioquesejaapessoaqueestamosprocurando.
–EntãovamosdiretoparaadamadeMayfair.–Estoucomeçandoaficardesanimada,Tommy.– Ânimo, minha velha! Sabíamos desde o início que era uma chance
mínima. E, de qualquer maneira, estamos apenas começando. Se nãoconseguirmosnadaemLondres,temospelafrenteumaagradávelexcursãoporInglaterra,IrlandaeEscócia.
– Tem razão – Tuppence concordou, o ânimo antes abatido já serecuperava com rapidez. –E com todas asdespesaspagas!Eu realmentegostoqueascoisasaconteçammaisdepressa,Tommy.Atéagora,tivemosuma aventura depois da outra. Mas esta manhã foi totalmente insípida,nadaaconteceu.
– Deve reprimir os seus anseios por sensações vulgares, Tuppence.Lembre-sedequeseoSr.Brownétudooquedizemser,édeadmirarqueatéagoraaindaestejamos incólumes.Ei,estaéuma fraseótima!Tematéumsaborliterário!
–Vocêestásendomaispresunçosodoqueeu...ecommenosdesculpa!Mas é estranho que o Sr. Brown ainda não tenha brandido o gládio davingança contra nós. Como pode ver, Tommy, também sei fazer frasesliterárias.Atéagora,continuamossãoesalvos.
–Talvezeleachequenãovaleapenaperdertempoconosco–sugeriuTommy,comamaiorsimplicidade.
Tuppencenãogostoudocomentário.–Ah,Tommy,vocêéhorrível!Falacomosenãofôssemosnada!–Desculpe,Tuppence.Oqueeuquisdizerfoiqueestamostrabalhando
comotoupeirasnaescuridãoequeelenãotemamenorsuspeitadenossosplanosnefandos.Ha,ha,ha!
–Ha,ha,ha!–Tuppencetambémriu,levantando-se.SouthAudleyMansions eraumprédiode apartamentosde aparência
imponente,pertodeParkLane.Onúmero20ficavanosegundoandar.A essa altura, Tommy já tinha a naturalidade nascida da prática.
Recitouafórmulaparaamulher idosaqueabriuaporta,parecendomaisumagovernantadoqueumacriadacomum.
–Nomedebatismo?–Margaret.Tommyfoisoletrandoonome,masamulherinterrompeu-o:–Não,é“g-u-e”.–Ah,simMarguerite,umnomefrancês...Elefezumabrevepausaedepoisacrescentou,numsúbitoimpulso:– Nós a tínhamos registrado como Rita Vandemeyer, mas está
incorreto,nãoémesmo?–Muita gente a chama assim, senhor,mas o verdadeiro nome dela é
Marguerite.–Obrigado.Issoétudo.Muitobomdia.Mal conseguindo conter seu entusiasmo, Tommy desceu correndo a
escada.Tuppenceesperava-onacurva.–Vocêouviu?–Ouvi,sim.Oh,Tommy!Tommyapertouobraçodela,numgestodesimpatia.– É... é maravilhoso pensar nas coisas... e depois vê-las acontecer! –
comentouTuppence,entusiasmada.AmãodelaaindaestavapresanobraçodeTommyquandochegaram
aosaguão.Nessemomento,soarampassosevozesnaescada.Derepente,parasurpresadeTommy,Tuppencearrastou-oparaopequenoespaçoaoladodoelevador,ondeassombraserammaisdensas.
–Masoque...–Fiquequieto!Doishomensdesceramaescadaeatravessaramosaguãoatéaporta.A
mãodeTuppenceapertouobraçodeTommycomtodaforça.
– Depressa... vá atrás deles! Eu não posso ir, pois ele pode mereconhecer.Nãoseiqueméooutrohomem,masomaisaltoéWhittington!
7AcasaemSoho
Whittington e seu companheiro estavam andando apressados. Tommypartiu atrás deles imediatamente e chegou à rua a tempo de vê-losdobrando a esquina. Suas passadas vigorosas permitiram-lhe encurtar adistância que os separava com rapidez. Ao chegar também à esquina, adistância já era bem menor. As ruas pequenas de Mayfair estavamrelativamentedesertaseTommyachouqueeramaissensatosecontentaremmantê-losàvista.
O esporte era novo para ele. Embora familiarizado com os aspectostécnicos por meio de uma variedade de romances lidos, Tommy nuncatentaraseguirninguém.Logotevea impressãodeque,naprática,eraumprocedimento repleto de dificuldades. Suponhamos, por exemplo, que derepente chamassem um táxi? Nos livros, simplesmente pegava-se outrotáxi, prometia-se um soberano ao motorista – ou a moeda equivalentemoderna–eoproblemaestavaresolvido.Naprática,Tommypreviuqueerabemprovávelquenãohouvesseoutrotáxiàdisposição.Assimsendo,eleteriaquecorrer.Eoqueaconteceriaaumjovemqueestivessecorrendopelas ruas de Londres? Se estivesse em uma via principal, ainda poderiaacalentar a esperança de que as pessoas pensassem que estava apenascorrendo atrás de umônibus.Mas ali, naqueles atalhos quase desertos earistocráticos, Tommy tinha quase certeza de que não demoraria a serdetidoporalgumguardazeloso,quelhepediriaexplicações.
Nessemomento, Tommy avistou um táxi com a bandeira erguida naesquinaàfrente.Prendeuarespiração.Seráqueosdoishomensiriamfazersinalparaotáxi?
Soltouumsuspirodealívioquandoelesdeixaramotáxipassar.Ocursodos dois era em ziguezague, visando o caminho mais rápido possível àOxford Street.Quandopor fim chegarama essa rua, seguindona direçãoleste,Tommyaumentouumpoucooritmodeseuspassos.Poucoapouco,
foi encurtando a distância. Na calçada movimentada, havia poucaspossibilidades de atrair a atenção dos dois homens. Estava ansioso paraouvir algumas palavras da conversa deles.Mas, nisso, foi completamentefrustrado.Eles falavamemvozbaixaeobarulhodo tráfegoabafavasuasvozesdeformaeficaz.
PoucoantesdaestaçãodometrônaBondStreet, elesatravessaramarua, com Tommy, ainda sem ser notado, fielmente em seus calcanhares.EntraramnoLyons’. Subiramparao segundoandare sentaram-seaumamesinha juntoda janela.Tommyfoisentar-seaumamesapróxima,atrásdeWhittington,afimdeevitarqualquerpossibilidadedereconhecimento.Podia ver o segundo homem e aproveitou para examiná-lo com todaatenção.Eralouro,comumrostoirresolutoeantipático.Tommyachouqueera russooupolonês.Deviaprovavelmenteestarna casados50anos,osombrosseencolhiamdelevequandofalava,osolhos,pequenoseastutos,movimentavam-sesemparar.
Comojáalmoçaravorazmente,Tommycontentou-seempedirtorradascomqueijoderretidoporcimaeumaxícaradecafé.Whittingtonpediuumalmoçofartoparaeleeseucompanheiro.Assimqueagarçoneteseafastou,elepuxouacadeiramaisparapertodamesaepôs-seafalaremvozmuitobaixa,comumaexpressãosérianorosto.Ooutrohomemadotouamesmapostura. Pormais que se esforçasse, Tommy só conseguiu ouvir uma ououtra palavra. Mas, pelo pouco que ouviu, teve a impressão de queWhittingtonestavatransmitindoordensequeseucompanheirodevezemquando discordava. Whittington referiu-se ao outro homem, emdeterminadomomento,comoBoris.
Tommyouviuapalavra“Irlanda”váriasvezesetambém“propaganda”.Masnãohouvequalquermençãoa JaneFinn.Derepente,emmeioaumapausainesperadanoestrépitonormaldorestaurante,eleconseguiuouvirumafraseinteira.EraWhittingtonquemestavafalandonessemomento:
–Ah,masvocênãoconheceFlossie!Elaéumaverdadeiramaravilha!Um arcebispo seria capaz de jurar que Flossie era a própria mãe. Elaconsegue fazer a voz certa todas as vezes e isso é realmente o maisimportante.
Tommy não ouviu a resposta de Boris, masWhittington disse algo aseguirquelhepareceuseroseguinte:
–Claro...somentenumaemergência...Depois,Tommytornouaperderorumodaconversa.Mas,daliapouco,
as frases foram se tornando outra vez inteligíveis. Tommy não soubedeterminarseissoaconteciaporqueosdoishaviamalteadoasvozessemo
perceberem ou porque seus ouvidos estavam ficandomais sintonizados.Mas houve duas palavras que certamente tiveram um efeito dos maisestimulantes sobre o ouvinte ansioso. Foram pronunciadas por Boris eeram“Sr.Brown.”
Whittington pareceu censurá-lo por isso, mas a reação de Boris foisoltarumarisadaecomentar:
–Porquenão,meuamigo?Éumnomedosmaisrespeitáveis...dosmaiscomuns. Não foi justamente por isso que ele o escolheu? Ah, como eugostariadeconheceroSr.Brown!
Havia um tom frio e cortante na voz de Whittington quando elerespondeu:
–Quemsabe?Épossívelatéquevocêjáotenhaconhecido.–Ora! Issoécoisadecriança,umafábulaparaapolícia.Quersabero
quemedigodevezemquando?QueelenãopassadeumafábulainventadapeloCírculo Interior,umfantasmaparanosassustar!Ébempossívelquesejaissomesmo.
–Etambémépossívelquenão.–Ficopensando...ouseráqueérealmenteverdadequeeleestáconosco
eentrenós,desconhecidoparatodos,àexceçãodeunspoucosescolhidos?Reconheço que a idéia émuito boa. Assim, nunca sabemos. Olhamos umparaooutro...umdenós é o Sr.Brown...mas quem?Ele dá ordens...mastambémserve.Entrenós...umdenós...masninguémsabequeméele...
Com um esforço visível, o russo interrompeu os caprichos de suafantasiaeolhouparaorelógio.
–Jáéhoradeirmosembora–alertouWhittington.Ele chamou a garçonete e pediu a conta. Tommy fez amesma coisa.
Momentosdepois,seguiaosdoishomenspelaescadaabaixo.Na calçada, Whittington fez sinal para um táxi e mandou que o
motoristaseguisseparaWaterloo.Havia táxis em abundância ali. Antes que o táxi comWhittington se
afastasse,umoutrojáestavaencostandonomeio-fio,atendendoaumsinalvigorosodeTommy.Eleembarcoueordenouaomotorista:
–Sigaaqueletáxi!Nãoopercadevistaemhipótesealguma!Omotorista,umhomem já idoso,nãodemonstrouomenor interesse.
Limitou-se a resmungar e baixou a bandeira. A viagem transcorreu semqualquerincidente.OtáxideTommyfoipararnaplataformadeembarquelogo atrás do táxi de Whittington. Tommy estava logo atrás dele nabilheteria. Whittington comprou uma passagem de primeira classe paraBournemouth, e Tommy fez omesmo. Ao se afastar da bilheteria, ouviu
Boriscomentar,olhandoparaorelógio:–Estábastanteadiantado.Aindafaltaquasemeiahora.As palavras de Boris desencadearam uma nova torrente de
pensamentosnamentedeTommy.EraevidentequeWhittingtoniafazeraviagem sozinho, enquanto seu companheiro permaneceria em Londres.Portanto, ele teria que optar entre qual dos dois iria seguir.Obviamente,nãopoderiacontinuaraseguiraambos,amenosque...ComoBoris,Tommyolhou para o relógio e depois para o quadro de avisos das partidas dostrens.O tremparaBournemouth iriapartiràs15h30.Aindaeram15h10.Whittington eBoris estavamolhandoo estandede livros. Tommy lançouumolhardesconfiadoparaosdoisedepoisseguiuapressadamenteparaacabine telefônicamaispróxima.Nãoperdeu tempocomuma tentativadeentrar em contato com Tuppence. Provavelmente ela ainda estava nasproximidades de South Audley Mansions. Mas podia contar com outroaliado.LigouparaoRitzepediuparafalarcomJuliusHersheimmer.Houveum clique e um zumbido. “Oh, tomara que o norte-americano esteja noquarto!”,pensouTommy.Houveoutrocliqueedepoisum“alô”emsotaqueinconfundível.
– É você, Hersheimmer? Beresford falando. Estou na estação deWaterloo.SeguiWhittingtoneoutrohomematéaqui.Nãohá tempoparaexplicar.WhittingtonvaipartirparaBournemouthàs15h30.Podechegaraquiantesdisso?
Arespostafoitranqüilizadora:–Claro!Douumjeito!O telefone foi desligado. Tommy repôs o fone no gancho com um
suspirodealívio.Suaopiniãoarespeitodacapacidadede“darumjeito”donorte-americanoeradasmaiselevadas.Sentia,instintivamente,queJuliuschegariaatempo.
WhittingtoneBorisaindaestavamnolugaremqueTommyosdeixara.SeBoriscontinuasseafazercompanhiaaoamigoatéahoradapartidadotrem,estavatudobem.Tommyapalpouobolso,pensativo.Apesardacarteblanchequelheforaassegurada,aindanãoadquiriraohábitodeandarcommuito dinheiro no bolso. A compra da passagemde primeira classe paraBournemouth deixara-o com apenas uns poucos shillings no bolso.EsperavaqueJuliuschegasseabastecido.
Tommy ficou esperando, observando os minutos a se arrastaremrapidamente: 15h15, 15h20, 15h25, 15h27... E se Julius não chegasse atempo?15h29...Portas começaramabater.Tommysentiuumcalafriodedesesperopercorrer-lheocorpo.Efoinessemomentoquesentiuamãode
alguémacair-lhenoombro.–Estouaqui,filho.Esseseutráfegobritânicoéincrível!Mostre-melogo
quemsãoossalafrários.– Aquele é Whittington... aquele homem grande, moreno, que está
embarcandonotremnestemomento.Ooutroéosujeitoestrangeirocomquemeleestáfalando.
–Jávi.Qualdosdoiséomeuhomem?Tommyjátinhapensadonoproblema.–Temalgumdinheirocomvocê?Julius sacudiu a cabeça e Tommy ficou desolado. O norte-americano
explicou:– Acho que não tenho mais que 300 ou 400 dólares comigo neste
momento.Tommydeixouescaparumaexclamaçãodealívio.–Oh,Deus,vocêestámilionário!Achoquenãofalamosamesmalíngua!
Subanotrem!Aquiestásuapassagem.VocêvaiatrásdeWhittington.–PodedeixarWhittingtoncomigo!O trem jáestavacomeçandoaentraremmovimentoquandoonorte-
americanoembarcou.–Atélogo,Tommy!Otremdeixouaestação.Tommyrespiroufundo.OhomemchamadoBorisestavaatravessando
aplataformaemsuadireção.Tommydeixou-opassaredepoisfoiatrás.DeWaterloo,BorispegouometrôatéPiccadillyCircus.Depois,seguiua
pé até a avenida Shaftesbury, entrando por fim no labirinto de ruasestreitase tortuosasem tornodeSoho.Tommyo seguiuaumadistânciaprudente.
Chegaramaumapequenapraça,quaseemruínas.Ascasastinhamumaaparênciasinistra,emmeioàsujeiraeàdecadência.BorisolhouaoredoreTommyrecuourapidamenteparaoabrigoamistosodeumpórtico.Apraçaestavaquasedeserta.Nãotinhaoutrasaídaeporissootráfegonãopassavaporali.AmaneirafurtivacomqueBoristinhaolhadoaoredorestimulouaimaginaçãodeTommy.Doabrigodopórtico, eleobservouBoris subirosdegrausdeumacasaparticularmentesinistraebaternaportadeumjeitopeculiar.Aportafoiaberta,nomesmoinstante.Borisdissealgumacoisaaoguardiãoedepoisentrou.Aportafoifechada.
FoinessemomentoqueTommyperdeuacabeça.Oqueeledeveriaterfeito,oquequalquerhomemsãoteriafeito,erapermanecerpacientementeonde estava e esperar queBoris saísse novamente.O queTommy fez foi
algo inteiramente alheio ao bom senso, que era, de ummodo geral, suacaracterísticamaisdestacada.Sempararsequerummomentoparapensar,subiutambémosdegrausereproduziudamelhorformapossívelabatidanaporta.
A porta foi aberta prontamente. Um homem de rosto perverso e, oscabeloscortadosbemrentes,umverdadeirovilão,resmungou:
–Oquequer?FoisónesseinstantequeTommycomeçouapercebertodaaextensão
dasualoucura.Masnãoseatreveuarecuar,dizendoasprimeiraspalavrasquelhesurgiramàcabeça:
–OSr.Brownestá?Para sua surpresa, o homemdeu umpasso para o lado e respondeu,
sacudindoopolegarparatrás,porcimadoombro:–Láemcima.Segundaportaàesquerda.
8AsaventurasdeTommy
Apesardeaturdidocomaspalavrasdohomem,Tommynãohesitou.Seaaudáciaolevaracomsucessoatéaqueleponto,erapossívelqueolevasseainda mais longe. Entrou rapidamente na casa e subiu a escada quasedesconjuntada.Tudonacasaeraimundoesórdidodeumamaneiraquaseindescritível.Opapeldeparedeencardido,deumpadrãoagoraindefinido,caía em tiras soltas por todos os lados. Em todos os cantos havia umamassaimensadeteiasdearanha.
Tommyavançoudevagar.Aochegaràcurvadaescada,játinhaouvidoohomemláembaixodesapareceremumaposentoqualquernosfundosdacasa. Era evidente que ele, Tommy, ainda não despertara nenhumasuspeita. Chegar na casa e perguntar pelo “Sr. Brown” parecia ser umprocedimentonatural.
Noaltodaescada,Tommyparouporummomento,a fimdedecidiroquefariaemseguida.Àsuafrente,haviaumcorredorestreito,comportasseabrindoparaosdoislados.Daportaàesquerdamaispróximavinhaummurmúrio baixo de vozes. Ele se encaminhou, então, para aquele quarto
queohomemládebaixooenviara.Masoqueatraiuoseuolharfascinadofoiumareentrânciaimediatamenteàsuadireita,meioescondidaporumacortinadeveludorasgada.Eraolugarideal,emcasodeemergência,paraoesconderijo de um ou dois homens. Tinha poucomais demeiometro deprofundidadeecercadeummetrodelargura.Ficavaemfrenteàportadoladoesquerdo.Porcausadoângulo,proporcionavatambémumaexcelentevistadoaltodaescada.AquiloatraiuTommyintensamente.Elepensouemtodos os aspectos da situação em que se encontrava, à sua maneirahabitual, lenta e disciplinada. Concluiuque amençãodo “Sr.Brown”nãoeraaperguntaporumindivíduo,masumasenhausadapelaquadrilha.Ousoafortunadoquefizeradaquelenomelhevaleraaentradanacasa.Atéaquelemomento,nãodespertaraqualquersuspeita.Masdeviadecidirlogooquefariaaseguir.
Vamos supor que entrasse audaciosamente no quarto à esquerda docorredor.Seráqueosimples fatode terentradonacasaseria suficiente?Talvez fosse exigida outra senha ou, pelo menos, alguma prova deidentidade.Eraevidentequeohomemnaportaláembaixonãoconheciadevistatodososmembrosdaquadrilha,masasituaçãopodiaserdiferentealiemcima.Considerandotudo,Tommyachouqueasorteoajudarabastanteatéaquelemomento,masquenãodeviaesperarmuitodela.Entrarnaquelequarto seria um risco colossal. Não podia contar com a possibilidade demantero seupapel indefinidamente.Eraquase inevitávelque,mais cedoou mais tarde, acabasse se traindo. E se isso acontecesse, teriadesperdiçadoumaoportunidadevitalpormeraimprudência.
Tommy ouviu uma repetição da batida característica na porta láembaixo. Tomando uma decisão, meteu-se rapidamente na reentrância,puxandoacortinacomcuidadoparacobri-loe,assim,ficarocultoaosolhosdequemsubisse.Havia váriosburacos e rasgõesna cortinamuito antigaque lhe permitiam observar tudo o que acontecesse. Ficaria vigiando osacontecimentose,aqualquermomentoquedecidisse,poderiase juntaràreunião,comportando-secomoorecém-chegado.
Ohomemquesubiuaescada,comumjeitofurtivoepassosleves,eradesconhecidoparaTommy.Pertenciavisivelmenteaosescalõesinferioresda sociedade. As sobrancelhas espessas, o queixo de criminoso e aaparência de bestialidade do conjunto do semblante eram coisas novaspara Tommy, embora o homem fosse do tipo que a Scotland Yard teriareconhecidoaoprimeiroolhar.
Ohomempassoupelareentrância,respirandofundo.Parounaportadooutro lado e repetiu a batida característica. Uma voz lá dentro gritou
algumacoisa.Ohomemabriuaportaeentrou,proporcionandoaTommyumavisãorápidadointeriordoquarto.Eleteveaimpressãodequehaviaquatro ou cinco pessoas sentadas em torno de umamesa comprida, queocupava a maior parte do espaço. Mas sua atenção foi atraída por umhomemalto,decabeloscortadosrentes,comumabarbapequena,pontuda,deaparêncianaval,queestavasentadonacabeceiradamesa,comalgunspapéis à sua frente. Quando o recém-chegado entrou, o homem altolevantou a cabeça e perguntou, com uma pronúncia correta, mascuriosamenteprecisa,quedespertouointeressedeTommy:
–Seunúmero,camarada?–Quatorze,governador–respondeuooutro,emvozrouca.–Correto.Aportafoifechadaoutravez.“Se aquele homem não é um huno, então eu sou holandês!”, pensou
Tommy.“Eestádirigindooespetáculodemaneirasistemática...comoelessempre fazem. Foimuita sorte eu não ter entrado. Teria dado o númeroerradoeseriaoinferno.Esteérealmenteomelhorlugarparaeuficar.Ei,estãobatendonovamentenaporta!”
O novo visitante era inteiramente diferente do anterior. Tommyidentificou-o como um irlandês da Sinn Fein.* Estava evidente que aorganizaçãodoSr.Brownerabemampla.Ocriminosocomum,o irlandêsbem-nascido,orussopálidoeoeficientemestre-de-cerimôniasalemão!Erarealmente uma reunião estranha e sinistra. Quem seria o homem quecontrolavaaqueleselostãodiferentesdeumacorrentedesconhecida?
Nocasodoirlandês,oprocedimentofoiexatamenteomesmo:abatidacaracterística,opedidodeumnúmero,ainformaçãoearesposta“Correto”.
Seguiram-seduasbatidasnaporta láembaixo, emrápida sucessão.Oprimeiro homem era inteiramente desconhecido para Tommy, que oclassificoucomoumescriturário.Eraumhomemdeaparênciatranqüilaeinteligente, vestido de maneira um tanto andrajosa. O segundo era daclasseproletáriaeseurostoeravagamentefamiliaraTommy.
Trêsminutos depois, apareceu outro homem, de ar sobranceiro, bemvestido, visivelmente um membro da classe mais favorecida. Seu rostotambém não era desconhecido para Tommy, mas ele não conseguiuidentificá-lonomomento.
Depoisdachegadadele,houveumalongapausa.Tommyconcluiuqueareuniãoestavaagoracompleta.Estavacomeçandoadeixarseuesconderijo,com todo o cuidado, quando outra batida na porta o fez voltarapressadamente.
O homem subiu a escada demaneira silenciosa e já estava quase naportaquandoTommypercebeusuapresença.
Era um homem pequeno, muito pálido, de aparência gentil e quasefeminina. Os malares ligeiramente salientes indicavam uma possívelorigem eslava. Afora isso, porém, não havia nada que denunciasse suanacionalidade. Ao passar pelo esconderijo de Tommy, ele virou a cabeçalentamente. A estranha luz em seus olhos deu a impressão de quepenetrava além da cortina. Tommy mal podia acreditar que o homemignorava a sua presença. Estremeceu, involuntariamente. Não era maisfantasioso que a maioria dos jovens ingleses, mas não pôde evitar asensaçãodequealguma forçaestranhamentepoderosaemanavadaquelehomem.Fazia-opensaremumaserpentevenenosa.
AimpressãodeTommyfoiconfirmadaummomentodepois.Ohomembateu na porta, como todos os outros haviam feito, mas a recepção foimuitodiferente.Ohomembarbadolevantou-seetodososoutrosseguiramseu exemplo. O alemão adiantou-se e apertou a mão do recém-chegado,batendooscalcanhares.
–Éumahonra...éumahonraimensaparatodosnós!–salientouele.–Temiaquesuapresençapudesseserimpossível!
O outro respondeu em voz baixa, uma voz que tinha um quê desibilante:
–Houvedificuldades.Ereceioquenãomeserápossívelviroutravez.Masumareuniãoéessencialparadefinirminhaposição.Nãoposso fazernadasem...oSr.Brown.Eleestáaqui?
Amudança na voz do alemão era perceptível quando ele respondeu,depoisdebrevehesitação:
–Recebemosumrecado.Éinteiramenteimpossívelapresençadele.Oalemãoparoude falar,dandoacuriosa impressãodequedeixaraa
frase inacabada. O rosto do recém-chegado iluminou-se lentamente comumsorriso.Elecorreuosolhospelocírculoderostosapreensivos.
–Ah,estouentendendo... Já tinhaouvido falarnosmétodosdele.Peloque dizem, trabalha nas sombras e não confia em ninguém. Mas é bempossívelqueestejaentrenósnestemomento...
Eletornouaolharaoredoredenovoaexpressãodemedodominouogrupo. Cada homemparecia estar olhando desconfiado para o vizinho. Orussovoltouafalar:
–Épossível.Mas...vamoslogotratardoqueinteressa.Oalemãopareceuserecuperar. Indicouo lugarqueestavaocupando,
nacabeceiradamesa.Orussoobjetou,masoalemãoinsistiu:
–Éoúnicopossívelpara...oNúmero1.ONúmero14nãoquerfecharaporta?
Uminstantedepois,Tommyestavaoutravezolhandoparaaportademadeiraeasvozesládentrohaviambaixadoparaummurmúrioindistinto.Tommy estava inquieto. A conversa que ouvira lhe estimulara acuriosidade.Achavaque,deumjeitooudeoutro,tinhaqueouvirmais.
Não havia qualquer ruído lá embaixo e não parecia provável que oguardiãodaportafossesubir.Depoisdeescutaratentamentepormaisumoudoisminutos,Tommypôsacabeçaparaforadacortina,comcuidado.Ocorredorestavadeserto.Tommyseabaixoue tirouossapatos.Deixou-osatrásdacortinaeavançoudevagarsódemeias.Ajoelhou-sejuntoàportafechada e encostou o ouvido no buraco da fechadura. Mas, irritadodescobriuquenemassimconseguiaouvirdireitoaconversaládentro.Maldavaparaouvirumaououtrapalavraquandoalguémalteavaavoz.Oqueserviuparaaguçaraindamaissuacuriosidade.
Olhouparaamaçanetadaporta,pensativo.Seráqueconseguiriagirá-lalentamente, com todo cuidado, de forma que nenhum dos homens nointeriordoquartopercebesse?Decidiuqueerapossível.Poucoapouco,umcentímetro de cada vez, Tommy foi girando a maçaneta, chegando aprender a respiração em seu cuidado excessivo. Mais um pouco... aindamaisumpouco...seráquenuncairiaterminar?Ah,finalmente!Amaçanetanãogiravamais.
Tommymanteve a posição por umminuto oumais. Depois, respiroufundo e empurrou para a frente, cautelosamente. A porta não semexeu.Tommyficouaborrecido.Seusassemuitaforça,eraquasecertoqueaportairia ranger. Esperou até que as vozes se alteassem um pouco e depoistentououtravez.Nadaaconteceu.Aumentouapressão.Seráqueamalditaporta emperrara?Desesperado,Tommyacabouempurrandoaporta comtoda força.Masaportacontinuou firmeeentãoaverdadeocorreu-lhe.Aportaestavatrancadaouhaviaumferrolhopassadopeloladodedentro.
Porummomento,Tommydeixou-sedominarpelaindignaçãoepensou,quasechegandoafalaremvozalta:“Masquediabo!Comopuderamfazerumasujeiradessas?”
Aindignaçãologopassoueelesepreparouparaenfrentarasituação.Aprimeira providência era devolver a maçaneta à posição original. Se alargasse bruscamente, era quase certo que os homens lá dentro iriamperceber. Assim, com o mesmo infinito cuidado, Tommy inverteu aoperação de girar a maçaneta. Terminou-a sem que houvesse qualquerproblema e levantou-se, com um suspiro de alívio. Tommy possuía uma
certatenacidadedebuldogue,queolevavaaserecusaraadmitirqualquerderrota. Embora frustrado em seus esforços naquele momento, estavalongedeabandonaro conflito.Aindapretendiadarum jeitodeescutaroqueestavaacontecendonoquartotrancado.Comoumplanohaviafalhado,precisavaencontraroutro.
Olhou ao redor. Um poucomais adiante, havia uma segunda porta àesquerdanocorredor.Avançousilenciosamente.Paroudiantedasegundaporta e ficou escutando por um momento. Experimentou a maçaneta. Aportaseabriueeleentrourapidamente.
O quarto estava desocupado. Como tudo o mais na casa, os móveisestavam em condições lamentáveis e a sujeira, se é que era possível, eraaindamaisabundante.
MasoqueinteressouaTommyfoioqueesperavaencontrar:umaportadecomunicaçãoentreosdoiscômodos,àesquerda,juntoàjanela.Fechoucom cuidado a porta que dava para o corredor e foi até a outra,examinando-a atentamente. O ferrolho estava trancado. Bastanteenferrujado, apresentava sinaisevidentesdequenãoerausadohámuitotempo. Torcendo-o lentamente para um lado e para outro, Tommyconseguiu puxá-lo para trás sem fazer muito barulho. Depois, repetiu amesma manobra anterior com a maçaneta, só que dessa vez obtevesucesso. A porta se abriu, apenas uma fresta, uma simples fração,mas osuficienteparaqueTommypudesse ouvir a conversanooutro aposento.Haviaumaportière develudonooutro ladodaporta, oque impediaquealguémovisse.Maselepodiareconhecerasvozes.
Era o irlandês da Sinn Fein que estava falando, o sotaque erainconfundível:
–Estátudomuitobem,masodinheiroéessencial.Semdinheiro,nãoháresultados!
Outravoz,queTommyjulgouseradeBoris,respondeu:–Podegarantirquehaverámesmoresultados?– Dentro de um mês, um pouco mais cedo ou mais tarde, conforme
preferirem,garantoquehaveráumreinadodoterrortãograndenaIrlandaqueiráabalarasprópriasfundaçõesdoImpérioBritânico.
Houve uma breve pausa e depois soou a voz suave e sibilante doNúmero1:
– Ótimo! Você terá o dinheiro. Boris tomará as providênciasnecessárias.
Borisfezumapergunta:– Por intermédio dos norte-americanos de origem irlandesa e do Sr.
Potter,comosempre?– Acho que não vai haver problemas – manifestou-se uma voz que
possuía uma entonação transatlântica. –Mas gostaria de ressaltar, nestemomento,queascoisasestãoficandoumpoucodifíceis.Nãoexistemaisamesmasimpatiadeanteseháumacrescentedisposiçãoparadeixarqueospróprios irlandesesresolvamseusproblemas,semqualquer interferênciadosEstadosUnidos.
TommyachouqueBorisdeudeombrosaoresponder:– Será que isso faz alguma diferença, já que é nominalmente que o
dinheirovemdosEstadosUnidos?–Omaiorproblemaéodesembarquedamunição–alertouohomem
daSinnFein. –Odinheiropode ser entregue facilmente, graças aonossoamigoaquipresente.
Outravoz,queTommyimaginouquepodiaperfeitamentepertenceraohomemalto,dearsobranceiro,cujorostolheparecerafamiliar,disse:
– Pense só na reação que haveria emBelfast se ouvissem o que estádizendo!
–Issojáestáacertado–interveioavozsibilante.–Eugostariadesabercomo está o problema do empréstimo a um jornal inglês. Já cuidousatisfatoriamentedetodososdetalhes,Boris?
–Achoquejáestátudoacertado.– Isso é ótimo! Poderemos providenciar uma negativa oficial de
Moscou,sefornecessário.Houveumanovapausa,maisprolongadaqueaanterior.Osilênciofoi
rompidopelavozprecisadoalemão:– Recebi instruções, do Sr. Brown, para apresentar-lhe os relatórios
sobreassituaçõesdosdiversossindicatos.Asituaçãodosmineiroséamaissatisfatória.Temosqueconterosferroviários.PodehaverproblemascomaASE.**
Houve silêncio por muito tempo, quebrado apenas pelo barulho depapéissendomanuseadoseumaououtrapalavradeexplicaçãodoalemão.Depois,Tommyouviuotamborilardededossobreamesa.
–Equaléadatamarcada,meuamigo?–indagouoNúmero1.–Dia29.Orussoaparentementerefletiuumpouco,poislevoualgumtempopara
comentar:–Éumpoucocedo.– Seidisso.Masé adata fixadapelosprincipais líderes trabalhistas e
não podemos interferir demais. Eles devem continuar a acreditar que o
espetáculopertenceinteiramenteaeles.Orussoriusuavemente,comoseachassedivertido.–Temtodarazão,meucaro.Elesnãopodemsuspeitardeformaalguma
que os estamos usando para atingir nossos próprios fins. São homenshonestos...eporissomesmoéquesãotãovaliososparanós.Écurioso,masaverdadeéquenãosepodefazerumarevoluçãosemhomenshonestos.Oinstintodopovoéinfalível.
Elefezumapausaedepoisrepetiu,comoseafraseoagradassemuito:–Todarevoluçãoteveosseushomenshonestos.Masestessãosempre
liquidadoslogodepois.Haviaumtomsinistroemsuavoz.Oalemãovoltouafalar:–ÉprecisodarumjeitoemClymes.Elesabedemais.Número14pode
cuidardisso.Avozroucamurmurou:–Estácerto,governador.Umapausaeamesmavozacrescentou:–Vouserpreso,nãoémesmo?– Terá os melhores advogados para defendê-lo se isso acontecer –
respondeu com toda calma o alemão. – Mas irá usar luvas com asimpressõesdigitaisdeumfamosoarrombador.Nãotemoquetemer.
–Oh,não, governador,não tenhomedodenada!Façoqualquer coisapelacausa.Osanguevaicorrerpelasruaspeloquedizem.
Ohomemfezumapausa.Haviaumtomevidentedesatisfaçãoemsuavoz.
– Às vezes, chego até a sonhar com isso. E com diamantes e pérolasrolandopelassarjetas,paraquemquiserapanhá-los!
Tommy ouviu uma cadeira sendo empurrada para trás. O Número 1falou:
–Entãoestátudoacertado.Podemostercertezadosucesso?–Eu...achoquesim.Mas,dessavez,avozdoalemãonãotinhaamesmasegurançahabitual.
AvozdoNúmero1assumiusubitamenteumtomdeperigo:–Qualéoproblema?–Nenhum.Mas...–Masoquê?– O problema é a posição dos líderes trabalhistas. Sem eles, como
acabou de dizer, não podemos fazer nada. Se não declararemuma grevegeralnodia29...
–Porquenãofariamisso?
–Comotambémacaboudedizer,elessãohonestos.Eapesardetudooque temos feito para desacreditar o governo aos olhos deles, ainda nãoestou certo se não continuam a ter uma fé instintiva e cega em suasinstituições.
–Mas...–Jáseidetudooquepodemedizer.Elesestãosempreinsultandoese
rebelandocontraogoverno.Mas,no todo,aopiniãopública tendeparaoladodogoverno.Eelesnãoirãocontraaopiniãopública.
Osdedosdorussonovamentetamborilaramsobreamesa.
–Em relação a isso,meu amigo, fui informadoda existência de certodocumentoqueresolveriainteiramenteesseproblema.
– É isso mesmo. Se esse documento fosse apresentado aos líderestrabalhistas, o resultado seria imediato. Eles o divulgariam por toda aInglaterraesedeclarariamafavordarevoluçãosemamenorhesitação.Eogovernoestariairremediavelmenteliquidado.
–Eoquemaisestáquerendo?–Estouquerendoessedocumento–respondeuoalemão,bruscamente.– Quer dizer que não está em seu poder?Mas sabe onde está, não é
mesmo?–Não,nãosei.–Ealguémsabeondeestá?–Sóumapessoa,provavelmente.Masnemdissotemoscerteza.–Equeméessapessoa?–Umamoça.Tommyprendeuarespiração.–Umamoça?–repetiuorusso,deformadesdenhosa.–Enãoafezfalar
ainda?NaRússia,temosmuitosmeiosparafazerumamoçafalar.–Essecasoédiferente–explicouoalemão,comavozmal-humorada.–Diferente?Comoassim?Orussofezumapausa,antesdeacrescentar:–Ondeestáamoçanestemomento?–Amoça?–Issomesmo.–Elaestá...MasTommynãoouviuoresto.Foinesseexatomomentoquesofreuum
golpeviolentonacabeçaemergulhounaescuridão.
9Tuppenceingressanoserviçodoméstico
QuandoTommysaiuatrásdosdoishomens,Tuppencetevequerecorreratodoseuautocontroleparanãoacompanhá-lo.Masacabouconseguindoseconter, consolando-se com o pensamento de que seu raciocínio fora
confirmadopelosacontecimentos.Nãorestavaamenordúvidadequeosdoishomenshaviamsaídodoapartamentodosegundoandar.Atênuepistado nome “Rita” pusera novamente os Jovens Aventureiros na trilha dosseqüestradoresdeJaneFinn.
Mas o que iria fazer agora? Tuppence detestava ficar de braçoscruzados sem fazernada.Tommyestavaplenamenteocupado.Comonãopodiaacompanhá-lo,Tuppencesentia-sedesorientada.Voltouàentradadoprédio.Ogarotoquemanejavaoelevadorestavaaliagora,polindoaspeçasde latãoeassobiandoacançãomaisemvoganomomento, combastantevigorerazoávelafinação.
Ele desviou o olhar do trabalho quando Tuppence entrou. Ela tinhacertoardegarotatravessaeinvariavelmentesedavabemcomosgarotos.Teve a impressão de que estabeleceu-se imediatamente um vínculo desimpatia. E refletiuqueumaliado empleno território inimigo, por assimdizer,nãoeraalgoquesepudessedesprezar.
–Olá,William–disseela,comespíritojovial,aomelhorestilodarondamatutina que aprendera no hospital. – Dando um bom polimento aí nacaixa,hein?
Ogarotosorriu,receptivo,corrigindo-aimediatamente:–OnomeéAlbert,moça.–Estácerto,Albert.Tuppence olhou ao redor, com um armisterioso. E o fez demaneira
deliberadamente evidente, para que o garoto não deixasse de perceber.Inclinou-senadireçãodeleebaixouavoz:
–Precisoterumaconversinhacomvocê,Albert.Albertinterrompeuaoperaçãodepolimentonomesmoinstante,aboca
ligeiramenteentreaberta.–Sabeoqueéisso,Albert?Com um gesto dramático, Tuppence entreabriu o lado esquerdo do
casaco, deixando à mostra um pequeno escudo esmaltado. Eraextremamente improvável que Albert soubesse do que se tratava. TeriasidofatalparaosplanosdeTuppenceseelesoubesse.Masissonãopoderiaacontecer, já que se tratava de uma insígnia de um corpo local detreinamento,criadopeloarquidiáconologonoiníciodaguerra.ApresençanocasacodeTuppencedevia-seaofatodeelatê-lousadodoisdiasantesparaprenderalgumasflores.Resolverarecorreràqueleexpedienteporquetinha olhos atentos e percebera o romance policial enfiado no bolso deAlbert. Quando ele imediatamente arregalou os olhos, Tuppencecompreendeuqueatáticaeraperfeitaequeopeixeiriamorderaisca.
–ForçaNorte-AmericanadeDetetives!Albertmordeuaiscaemurmurou,extasiado:–SantoDeus!Tuppenceassentiu,comoardealguémqueacabaradeestabelecerum
vínculodetotalcompreensão.Eindagou:–Sabedequemestouatrás?Albert,osolhosaindaarregalados,balbuciou:–Deumdosinquilinos?Tuppence concordou novamente e sacudiu o polegar na direção da
escada.– A inquilina do apartamento 20. A que se diz chamar Vandemeyer.
Vandemeyer?Ha!Ha!Ha!Albertestavacadavezmaisentusiasmado:–Elaéumavigarista?–Umavigarista?Émuitomaisdoqueisso!LánosEstadosUnidos,elaé
conhecidacomoRitaLigeira.–RitaLigeira?–repetiuAlbert,jáquaseemêxtase.–Maséigualzinho
aosfilmes!Eeramesmo.Tuppenceeraumafreqüentadorahabitualdoscinemas.–Anniesempredissequeelanãotinhaboacara.–QueméAnnie?–indagouTuppence.–É a arrumadeira.Ela vai emborahoje.Anniemedissemaisdeuma
vez:“Ouçaasminhaspalavras,Albert.Eunãoficarianadaadmiradaseumdiadesses a polícia aparecer por aqui atrás dela.” E nãodeuoutra coisa.Maselaébembonita.
–Édefatoumamulherbonita–concordouTuppence,magnânima.–Epodeestarcertodequeissoémuitoútilnaprofissãodela.Porfalarnisso,elatemusadoultimamenteasesmeraldas?
–Esmeraldas?Nãosãoaquelaspedrasverdes?Tuppenceassentiu.– É exatamente por isso que estamos atrás dela. Conhece o velho
Rysdale?Albertsacudiuacabeça.–PeterB.Rysdale,oreidopetróleo?–Onomemeparecefamiliar.– As pedras eram dele. A melhor coleção de esmeraldas do mundo.
Valemummilhãodedólares.–Deusdocéu!–exclamouAlbert,agoratotalmenteextasiado.–Parece
maiscomosfilmesacadaminutoquepassa!
Tuppencesorriu,satisfeitacomosucessodeseusesforços.–Aindanãoconseguimosprovar.Mas...Tuppencefezumabrevepausa,piscandoparaAlbert,comosefossem
velhoscompanheirosdeconspiração,antesdeacrescentar:–Temoscertezadequedestavezelanãovaiconseguirescaparcoma
muamba.Albert deixou escapar outra exclamação de entusiasmo. Tuppence
acrescentousubitamente:–Não se esqueça, filho, de quenãodeve contar a ninguémoque lhe
falei.Achoquenãodeveriaterlhecontadotudoassimdecara,maslánosEstados Unidos a gente sabe reconhecer um sujeito esperto à primeiravista.
– Pode deixar que não vou falar nada a ninguém! – declarou Albert,ansiosamente.–Nãohánadaqueeupossafazerparaajudar?QuerqueeusigaRitaLigeiraoualgoassim?
Tuppencefingiuporummomentoconsideraraoferta,depoissacudiuacabeça.
– Nomomento, não há necessidade. Mas vou anotar sua oferta paraquandoforpreciso,filho.Oquemedizdessagarotaqueestáindoembora?
– Annie? Até que eu gosto dela. Mas Annie diz que hoje em dia ascriadas já são gente e devem ser tratadas como tal. Não vai ser fácilarrumaroutraparaolugardela,poisAnniecomcertezavaiespalharqueascoisasporaquinãosãonadaboas.
–Émesmo?–murmurouTuppence,pensativa.–Quemsabe...Uma idéia estava surgindo na mente de Tuppence. Ela pensou a
respeitoduranteumminutoedepoisdeuumtapinhanoombrodeAlbert.–Escute,filho,meucérebroentrouemfuncionamento.Oquemedizde
informarquetemumaprimaouumaamigainteressadanoemprego?Estáentendendoondequerochegar,nãoémesmo?
–Masclaro!Podedeixarcomigoquearrumareitudoemdoistempos!–Vocêémesmoesperto!–elogiouTuppence, sacudindoacabeçaem
umgestodeaprovação.–Digaqueamoçaestáemcondiçõesdecomeçaratrabalhar imediatamente. Poderá me contar se deu tudo certo amanhã.Aparecereiporaquiporvoltadas11horas.
–Ondedevoprocurá-la,sesurgiralgumproblema?–EstounoRitz.PeçaparaligaremparaasuítedeCowley.AexpressãodeAlbertganhouumardeinveja.–Essaprofissãodedetetivedeversermuitoboa...–Eémesmo...sobretudoquandosepodecontarcomovelhoRysdale
parapagarascontas.Maspodeficartranqüilo,filho.Setudodercerto,vaisobraralgumacoisaparavocê.
E com essa promessa, Tuppence se despediu de seu novo aliado.Afastou-se rapidamente da South Audley Mansions, satisfeita com osresultadosdeseutrabalhoaolongodeumamanhã.
Masnãohaviatempoaperder.ElafoidiretoparaoRitzeescreveuumbilheteparaoSr.Carter.Depoisdedespachá-lo,ecomoTommyaindanãohavia voltado – o que não a surpreendeu –, Tuppence partiu para umaexpedição de compras. As compras e o intervalo para um chá combolossortidosocuparam-naatédepoisdas18horas.Voltouparaohotelexausta,mas satisfeita com o que comprara. Começara por uma loja de roupascomuns,passaraporumalojaquevendiaroupasusadaseencerraraodianocabeleireiro.Eagora,noisolamentodeseuquarto,abriuoembrulhodaúltimacompra.Cincominutosdepois,sorriu,satisfeita,paraoseureflexonoespelho.Comumlápisdeolho,haviaalteradoligeiramentea linhadassobrancelhas. Issoemaisaabundantecabeleira louraquehaviaporcimamudavam sua aparência a tal ponto que tinha plena certeza de queWhittington jamais a reconheceria, mesmo que a visse frente a frente.Usaria sapatosde saltos grossos, toucae avental, completandoodisfarceperfeito.Desuaexperiêncianohospital,umadaspoucascoisasqueficaraera o conhecimento de que uma enfermeira sem uniforme dificilmente éreconhecidapelospacientes.
–Vocêvaiconseguir!–declarouTuppenceemvozaltaparaaimagemnoespelho,retornandoemseguidaàsuaaparênciahabitual.
O jantar foiuma refeição solitária.Tuppence ficouum tanto surpresapelo fatodeTommyaindanãotervoltado. Julius tambémestavaausente,mas isso eramais facilmente explicável. As atividades de busca dele nãoestavam confinadas a Londres e seus aparecimentos e desaparecimentosrepentinos eramaceitospelos JovensAventureiros comoparteda rotina.ErabempossívelqueJuliusP.HersheimmerpartisseparaConstantinoplade repente se achasse que era possível encontrar lá uma pista qualquerpara o desaparecimento da prima. O norte-americano jovem e vigorosoconseguira tornar insuportáveisasvidasdediversoshomensdaScotlandYard.AsmoçasquetrabalhavamnoAlmirantadojáconheciametemiamoseu“Olá”característico.JuliuspassaratrêshorasemParis,atormentandoaPrefecture. Voltara com a idéia, talvez inspirada por alguma autoridadecansadadesuainsistência,dequeaverdadeirachaveparaomistérioseriaencontradanaIrlanda.
“Ébemcapazqueeletenhaidoparalá”,pensouTuppence.“Estátudo
muitobem,sóqueéhorrívelparamim!Aquiestoueu, transbordandodenovidades,massemterninguémparacontar!Tommybemquepodia terpassado um telegrama avisando onde está ou algo assim. Não é possívelque ele tenha ‘perdido a pista’, como costuma dizer. E por falar nisso...”Tuppenceinterrompeuseuraciocínioechamouumgarotodohotel.
Dezminutos depois, Tuppence estava confortavelmente instalada emsua cama, fumando e absorvida na leitura deGarnabyWilliams, o garotodetetive,quemandaracomprar,juntamentecomoutrasobrasdachamadaliteraturabarata.Elaachavaque,paraaprofundarseurelacionamentocomAlbert, precisava se fortalecer com um bom suprimento de “informaçõeslocais”.
Namanhãseguinte,TuppencerecebeuumbilhetedoSr.Carter:
PREZADASRTA.TUPPENCE:Teveumesplêndido inícioedou-lheosparabéns.Masgostaria
de ressaltar mais uma vez os riscos que ambos estão correndo,sobretudoseinsistirememprosseguirnocursoqueindicou.Nãoseesqueça de que estão lidando com pessoas absolutamentedesesperadas e totalmente incapazes de misericórdia ou piedade.Tenhoaimpressãodequeaindaestásubestimandooperigo.Assimsendo,sinto-menaobrigaçãodealertá-laoutravezdequenãopossoprometer qualquer proteção a nenhum dos dois. Já nos forneceuinformaçõesvaliosasdemais.Seacharqueambosdevemseretirarde cena agora, ninguém poderá culpá-los por isso. Seja como for,achoquedevempensarbastanteemtodasascircunstânciasantesdetomarumadecisão.
Sedecidiremcontinuar,apesardetodasasminhasadvertências,podeficartranqüilaqueasprovidênciaspedidasjáforamtomadas.Passoudois anos trabalhandopara a Srta.Dufferin, emLlanelly. ASra.Vandemeyerpodepedirreferênciaslá.
Permiteagoraqueeu lheofereçaalgunsconselhos?Procureseater à verdade o máximo possível, pois isso diminui o risco decometer algum deslize. Sugiro que se apresente como aquilo querealmenteé,umaantigaenfermeiravoluntáriaduranteaguerra,queescolheu o serviço doméstico como profissão. Há muitas moçasnessa situação no momento. Isso serve também para explicarqualquerincongruêncianamaneiradefalarounasatitudes,quedeoutraformaseriainexplicáveloucapazdeprovocarsuspeitas.
Oquequerquedecidam,desejoboasorteaambos.Seuamigosincero,
SR.CARTER
OânimodeTuppencemelhorouconsideravelmente.Nãodeuamenorimportância às advertências do Sr. Carter. Sentia muita confiança em simesmaparasepreocuparcomqualquercoisa.
Com alguma relutância, renunciou ao papel tão interessante queimaginara para si mesma. Não que duvidasse de sua capacidade desustentá-lo indefinidamente,masporque tinhabomsensosuficienteparareconheceraforçadosargumentosdoSr.Carter.
Ainda não havia nenhuma mensagem de Tommy. Mas o carteiro damanhãtrouxeumcartão-postalumtantosujo,noqualestavamrabiscadasaspalavras“Estátudobem”.
Às10h30,Tuppencecontemplou,orgulhosa,umbaúdemetalumtantoamassadoondeestavamos seusnovosbens.Obaúestavaartisticamenteencordoado.Ficoucoradaaotocaracampainhaeordenarqueobaúfosselevadoparaumtáxi.FoiparaPaddingtonedeixouobaúnodepósito.Emseguida,sócomumabolsagrande,foirefugiar-senoredutodotoalete.Dezminutos depois, umaTuppencemetamorfoseada saiu da estação e pegouumônibus.
Passavam poucosminutos das 11 horas quando Tuppence entrou nosaguãodeAudleyMansions.Albertestavaemseuposto,executandosuastarefas, de maneira um tanto indiferente. Não reconheceu Tuppenceimediatamente e, quando isso aconteceu, não pôde ocultar sua intensaadmiração.
–Juroquenãoareconheci!Essedisfarceédeprimeira!– Fico contente que tenha gostado, Albert – disse Tuppence com
modéstia.–Porfalarnisso,souounãosuaprima?–Eavoztambémmudou!–exclamouAlbert,deliciado.–Estáfalando
direitinho,comoumainglesa!Não,nãoéminhaprima.Eudissequetinhaumamigoqueconheciaumamoçaqueestavaprocurandoemprego.Annienãoficounadasatisfeita.Decidiuinclusiveviratéaquihoje,alegandoqueassimofaziacomoumfavorespecial.Masoqueelaestáquerendomesmoéconvencê-laanãoaceitaroemprego.
–Boamenina...Albertnãodesconfioudaironia.– Annie tem classe e sabe fazer tudo muito bem, mas tem um
temperamentoquenãoéfácil.Jávaisubiragora?Poisentãopodeentrarnoelevador.Éonúmero20quedeseja?
EAlbert piscouparaTuppence comumar de conspirador. Tuppencelançou-lheumolharseveroeAlbertficouimediatamenteconstrangido.Elaentrounoelevadorsemdizermaisnada.
Ao tocar a campainha do apartamento número 20, Tuppence estavaconscientedosolhosdeAlbertdescendolentamente,dentrodoelevador.
Umajovembonitaabriuaporta.–Vimtratardoemprego–informouTuppence.–Poissaibaqueéumlugarhorrível!–exclamouajovem,semamenor
hesitação. – A patroa é daquele tipo chato, que está sempre semetendo.Acusou-medeabrirassuascartas.Amim!Esóporqueaabadoenvelopeestavaumpoucodobrada!Nuncatrabalheinumacasatãoesquisita.Bastadizer que jamais se encontra qualquer coisa na cesta de papel, pois elaqueima tudo. Se quer saber o que eu acho, ela simplesmente não presta.Usa roupasmuito boas,mas não tem nenhuma classe. A cozinheira sabealguma coisa a respeito dela, mas nunca quis me contar nada. Tem ummedodapatroa!Ecomoelaédesconfiada!Nãopodeveragentefalarcomninguémequerlogosaber...
MasTuppencenãochegouasaberoquemaisAnnietinhaparacontar,poisnestemomentoumavozincisivaeestranhamentefriachamou:
–Annie!Ajovemteveumsobressalto,comosetivesseacabadodelevarumtiro.–Poisnão,senhora?–Comquemestáfalando?–Comumamoçaqueveiosabersobreoemprego,senhora.–Poismande-aentrar.Imediatamente.–Poisnão,senhora.Tuppence foi acompanhada até uma sala à direita de um corredor
comprido.Umamulherestavaparadajuntoàlareira.Jánãoeramaisjovem,eabelezaqueinegavelmentepossuíaeraagorafriaecruel.Najuventude,devia ter sido umamulher deslumbrante. Os cabelos de um ouro pálidoestavam enrolados na altura do pescoço. Os olhos, de um azul elétrico epenetrante,pareciampossuiracapacidadedesondaratéofundodaalmada pessoa que ousasse encará-los. O corpo atraente era realçado por umvestidoazulespetacular.Masapesardetodaagraçaeabelezaquaseetéreadorosto,erapossívelsentirinstintivamenteapresençadealgoameaçador,uma espécie de força implacável, que semanifestava pela vozmetálica epelosolhosquepareciampunhais.
Pelaprimeiravez,Tuppencesentiumedo.NãotiveraqualquermedodeWhittington,masaquelamulhereradiferente.Comoseestivessefascinada,observou a boca longa, vermelha e curva, transmitindo uma inequívocaimpressão de crueldade. Sentiu novamente o pânico invadi-la. Perdeu aautoconfiançahabitual.Percebeuqueenganaraquelamulhernãoseriatãofácil quanto enganar Whittington. Recordou-se da advertência do Sr.Carter.Ele tinha razão.Nãopodia esperarqualquermisericórdiadaquelamulher.
Lutando para dominar o instinto de pânico que a incitava a virar ascostasefugir,Tuppenceretribuiuoolharcomfirmezaerespeito.
Como se o exame inicial tivesse sido satisfatório, a Sra. Vandemeyerapontouparaumacadeira.
– Pode se sentar. Como soube que eu estava precisando de umaarrumadeira?
–Pormeiodeumamigoqueconheceorapazqueoperaoelevadordoprédio.Eleachouqueolugarpoderiaservirparamim.
NovamenteoolhardeserpentepareceuperfurarTuppenceatéofundo.–Porquevocêfalacomoumamoçainstruída?Comamaiortranqüilidade,Tuppencecontouasuacarreiraimaginária,
nostermossugeridospeloSr.Carter.TeveaimpressãodequeatensãonaatitudedaSra.Vandemeyerfoidiminuindo.
– Está certo – disse ela por fim. – Há alguém para quem eu possaescreverafimdepedirreferências?
–PasseidoisanoscomaSrta.Dufferin,emLlanelly.– E depois achou que poderia ganhar mais dinheiro se viesse para
Londres, não émesmo?Mas isso não tem importância paramim. Eu lhepagarei 50 libras... ou 60... quanto quiser! Pode começar a trabalharimediatamente?
– Posso, sim, senhora.Hojemesmo, se precisar. Deixeiminhas coisasemPaddington.
–Vábuscá-lasdetáxiagora.Queroquesaibaqueoempregonãoédosmaisdifíceis,poisviajocomfreqüência.Porfalarnisso,qualéoseunome?
–Prudence,senhora.– Muito bem, Prudence, vá logo buscar suas coisas. Vou sair para
almoçarfora.Acozinheiralhemostrarátudo.–Obrigada,senhora.Tuppence retirou-se.Annienão estava à vista.No saguão lá embaixo,
um imponente porteiro relegara Albert a segundo plano. Tuppence nemmesmoolhouparaeleaosair,comumaexpressãohumilde.
Aaventuracomeçara,maselasesentiamenosexultantequenoiníciodamanhã. Passou-lhe pela cabeça a idéia de que se a desconhecida JaneFinn tivesse caído nasmãos da Sra. Vandemeyer, provavelmente sofreraumbocado.
10SirJamesPeelEdgertonentraemcena
Tuppence não teve qualquer dificuldade na execução de suas novastarefas. As filhas do arquidiácono eram especialistas no trabalhodoméstico. E também eram especialistas em treinar uma “moça crua”. Oresultadoinvariáveleraqueamoça,umaveztreinada,partiaembuscadealgum lugar onde seus conhecimentos recém-adquiridos pudessem lheproporcionar uma remuneração mais substancial que a permitida pelabolsasempremagradoarquidiácono.
Por isso, Tuppence não tinha o menor receio de ser ineficiente. AcozinheiradaSra.Vandemeyerdeixou-aperplexa.Eraevidentequesentiaverdadeiro pavor da patroa. Tuppence achou que a patroa sabia algumacoisaarespeitodela.Quantoaoresto,amulhercozinhavacomoumchef,como Tuppence teve oportunidade de observar naquela noite mesmo. ASra.Vandemeyerestavaesperandoumconvidadopara jantareTuppencepôsamesaparadois.Tinhaalgumasidéiasarespeitodovisitante.Erabempossível que fosseWhittington. Embora estivesse convencida de que elenãoareconheceria,preferiaqueoconvidadofosseumestranho.Masnadapodiafazer,anãosertorcerparaquetudodessecerto.
A campainha da porta tocou poucos minutos depois das 20 horas eTuppence foi atender, um pouco apreensiva. Ficou aliviada ao descobrirqueovisitanteeraosegundodosdoishomensqueTommyseencarregaradeseguir.
Ele se anunciou comocondeStepanov.Tuppence foi comunicar a suachegada,eaSra.Vandemeyerse levantoudodivãemqueestavasentadacomummurmúriodeprazer.
–Éumprazervê-lonovamente,BorisIvanovitch!–Oprazerétodomeu.
O homem inclinou-se sobre a mão estendida da Sra. Vandemeyer.Tuppenceseretirouparaacozinha.
–ÉocondeStepanovoualgoassim–comentouelacomacozinheira,comevidentecuriosidade.–Sabequeméele?
–Achoqueéumcavalheirorusso.–Elevemaquicomfreqüência?–Sódevezemquando.Porqueestáquerendosaber?– Apenas imaginei que podia ser o namorado dela, mais nada –
justificou Tuppence, acrescentando em tom mal-humorado: – Mas nãoentendoporquevocêestátãorabugenta.
–Éporqueestoupreocupadacomosuflê.“Você sabede alguma coisa”, pensouTuppence, aomesmo tempoem
quedisse:–Jáestátudoprontoparaservir?Enquantoserviaàmesa,Tuppenceescutouatentamentetudooqueera
dito. Sabia que aquele era um dos dois homens que Tommy estavaseguindoquandoovirapelaúltimavez.Emboraserecusasseaadmitir,jáestava começando a ficar apreensiva em relação a Tommy. Onde eleestava?Porquenãoentraraemcontatocomela?PoucoantesdedeixaroRitz,elaacertaraparaquetodaasuacorrespondênciafosseenviadaparauma pequena papelaria nas proximidades do prédio, que deveria servisitadaporAlbertcomalgumaregularidade.Eraverdadequeforaapenasnamanhãdodiaanteriorque se separaradeTommyedissea simesmaque sua apreensãonão fazia sentido.Mesmo assim, era estranhoque eleaindanãoativesseprocurado.
Duranteojantar,pormaisqueprestasseatençãoàconversa,Tuppencenão descobriu nenhuma pista. Boris e a Sra. Vandemeyer conversaramsobreassuntosindiferentes,comoasúltimaspeçasaquetinhamassistido,asnovasdanças,osmaisrecentesrumoresdasociedade.Depoisdojantar,os dois se retiraram para o boudoir, a pequena sala íntima. A Sra.Vandemeyer se recostou no divã, parecendo mais bela e cruel do quenunca. Tuppence serviu o café e o licor e depois se retirou, contra avontade.Aofazê-lo,ouviuBorisindagar:
–Elaénova,nãoémesmo?–Começouatrabalharhoje.Aoutranãoprestava.Eessamoça,aoque
parece,émuitoboa.Pelomenosserveàmesadireitinho.Tuppence demorou-se por um momento junto da porta, que
deliberadamenteesqueceradefechar.Eaindaouviumaisalgumasfrases:–Etemcertezaqueelaédeconfiança?
– Ora, Boris, você está sendo absurdamente desconfiado. Se não meengano,elaéprimadorapazdoelevadoroualgoassim.Eninguémsequerimaginaque tenho alguma ligação comonosso... amigo emcomum,o Sr.Brown.
–PeloamordeDeus,Rita,tomemaiscuidado!Aportanemmesmoestáfechada!
–Poisentãováfechá-la–ordenouaSra.Vandemeyer,rindo.Tuppenceseafastourapidamente.Nãoseatreveuaficarausentepormaistempodaáreadeserviço.Mas
tirouamesae lavoua louçacomarapidezadquiridanohospital.Depois,voltou silenciosamente para a porta do boudoir. A cozinheira, maisvagarosa, ainda estava ocupada na cozinha. Se percebesse a ausência deTuppence,certamenteiriapensarqueelajáestavaarrumandooquartodapatroa.
Tuppence ficoudecepcionadaaoconstatarquea conversanoboudoirestava em um tom de voz baixo demais para que pudesse ouvir algumacoisa.Não se atreveu a tornar a abrir a porta. A Sra. Vandemeyer estavasentada quase de frente para a porta e Tuppence não duvidava dacapacidadedeobservaçãodosolhosdelincedapatroa.
Mas, pensou consigo mesma, daria qualquer coisa para ouvir aconversa.Sealgoimprevistotivesseacontecido,elaprovavelmentesaberiaalguma coisa deTommy.Refletiu desesperadamente por ummomento, àprocura de uma solução. Um instante depois, seu rosto ficou radiante.AtravessouocorredoratéoquartodaSra.Vandemeyer,quetinhajanelasfrancesasquedavamparaumavaranda, aqual seprolongavapor todaaextensãodoapartamento.Saiuparaavarandaeavançouemsilêncioatéoboudoir. Como já esperava, a porta estava entreaberta e podia ouvir asvozesládentro.
Tuppence ficou escutando atentamente, mas não houve nada quepudesse ser uma menção a Tommy, mesmo indiretamente. A Sra.Vandemeyer e o russo pareciam estar discordando a respeito de algumassunto.Porfim,Boriscomentou,emtomamargurado:
–Comsuapersistente imprudência,vaiacabarprovocandoaruínadetodosnós!
–Essanão!–exclamouamulher,rindo.–Anotoriedadedotipocertoéa melhor maneira de afastar as suspeitas. Vai compreender isso um diadesses...talvezmaiscedodoqueimagina.
– Até lá, você vai continuar a se mostrar em toda parte com PeelEdgerton.EelenãoéapenasoadvogadomaisfamosodaInglaterra,como
tambémoseuhobbyéacriminologia.Issoéumaloucura!– Sei que a eloqüência dele já salvou incontáveis homens da forca –
comentouaSra.Vandemeyer.–Edaí?Talvezeuvenhaaprecisaralgumdiados serviços profissionais dele. Se isso acontecer, serei uma mulherafortunadaporpodercontarcomumamigoassimnotribunal.
Borisse levantouecomeçouaandardeumladoparaooutro.Estavabastantenervoso.
–Éumamulherinteligente,Rita.Mas,aomesmotempo,étambémumatola.AceiteomeuconselhoedesistadessePeelEdgerton.
ASra.Vandemeyersacudiuacabeçagentilmente.–Discordodesuaopinião,Boris.–Querdizerqueserecusa?Haviaagoraumtomameaçadornavozdorusso.–Claroquemerecuso.–Nessecaso,vamosveroque...Mas a Sra. Vandemeyer não o deixou continuar, levantando-se
abruptamentecomosolhosfaiscando.–Estáseesquecendodeumacoisa,Boris.Nãotenhoquedarsatisfações
aninguém.Sóreceboordensdeumapessoa...doSr.Brown.Orussoergueuosbraçosemumgestodedesespero.– Você é impossível, Rita! Simplesmente impossível! E talvez já seja
tardedemais.DizemquePeelEdgertonécapazdefarejarumcriminosoaquilômetros de distância. Quem sabe se não é esse o motivo do súbitointeressedeleporvocê?Talvezelejáestejadesconfiadodealgumacoisa.Esecomeçarainvestigar...
ASra.Vandemeyerofitavacomumaexpressãodesdenhosa.– Pode ficar tranqüilo, meu caro Boris. Ele não desconfia de coisa
alguma. Deixando de lado o seu cavalheirismo habitual, parece teresquecidoquesouconsideradaumamulherbonita.EpossolheassegurardequeissoétudooqueinteressaaPeelEdgerton.
Borissacudiuacabeça,aindaemdúvida.–Eleestudouocrimecomonenhumoutrohomemdeste reino já fez.
Achamesmoquepodeenganá-lo?OsolhosdaSra.Vandemeyercerraram-se.–Seeleémesmotudooqueestámedizendo,Boris...aexperiênciade
tentarenganá-loatéqueseriadivertida.–Deusdocéu,Rita!–Alémdomais,eleémuitorico.Enãosouumamulherdedesprezaro
dinheiro.Comosabeperfeitamente,Boris,éoquefazomundogirar.
– Dinheiro! Dinheiro! É o perigo que sempre existe com você, Rita.Tenho a impressão de que venderia a própria alma por dinheiro. E achotambém...
Boris fez uma breve pausa antes de acrescentar lentamente, em vozbaixaesinistra:
–Algumasvezeschegoapensarqueseriacapazatédevender...anós!A Sra. Vandemeyer sorriu e deu de ombros, comentando em tom
despreocupado:–Opreçoparaissoteriaqueserfabuloso.Esóummilionáriopoderia
pagarporisso.–Ah,eusabia!–MeucaroBoris,seráquenãosabereconhecerumabrincadeira?–Efoiumasimplesbrincadeira?–Maséclaro!– Se é assim, minha cara Rita, tudo o que posso dizer é que sua
concepçãodehumorémuitoestranha.ASra.Vandemeyersorriu.–Chegadediscussão,Boris.Porfavor,toqueacampainhaparachamar
acriada.Vamostomarumdrinque.Tuppencebateuemretiradaapressadamente.Parouporummomento
paraseexaminarnograndeespelhodoquartodaSra.Vandemeyer,a fimdeverificarsenãohaviaalgoerradoemsuaaparência.Edepoisfoiatenderaochamado.
Aconversaqueouvira–apesardeinteressante,poisprovaraacimadequalquer dúvida a cumplicidade tanto de Rita como de Boris – nãoproporcionara nenhuma informação a respeito de suas preocupaçõesatuais.OnomedeJaneFinnnãoforasequermencionado.
Namanhã seguinte, Tuppence falou rapidamente comAlbert e soubequenão chegaranenhumacartaoubilhetepara elanapapelaria.Pareciaincrível que Tommy, se tudo houvesse corrido bem, ainda não tivesseenviadoaelanenhumrecado.Tuppencesentiuumfriosubirpelaespinha...E se... Ela reprimiu seus medos bravamente. Não adiantava ficar sepreocupando. Mas tratou de aproveitar a oportunidade que a Sra.Vandemeyerlheofereceu:
–Qualénormalmenteoseudiadefolga,Prudence?–Emgeraltirofolganasexta-feira,senhora.ASra.Vandemeyerfranziuassobrancelhas.–Ehojeésexta-feira!Massuponhoquenãovaiquerersairhoje,jáque
foiontemquecomeçouatrabalhar.
–Estavapensandoemlhepedirparasairhoje,senhora.ASra.Vandemeyerfitou-acomassobrancelhasfranzidaspormaisum
momentoedepoissorriu.–GostariaqueocondeStepanovestivesseaquiparaouvi-la.Eleontem
fezumainsinuaçãoaseurespeito.ASra.Vandemeyerfezumapausa,osorrisosealargando.– Seu pedido é... típico. Estou satisfeita. Sei que não está
compreendendonada,masnãotemimportância.Podesairhoje,seéissooqueestáquerendo.Nãofazdiferençaparamim, jáquenãovou jantaremcasa.
–Obrigada,senhora.Tuppenceexperimentouumasensaçãodealívioaoseretirar.Maisuma
vez,tevequeadmitirparasimesmaquesentiaummedohorríveldaquelalindamulherdeolhoscruéis.
Elaestavaterminandodepolirapratariaquandoacampainhadaportada frente soou. Foi atender. Dessa vez, o visitante não eraWhittington enemBoris,masumhomemdeaparêncianotável.
Embora fosse apenas um pouco acima da estatura mediana, dava aimpressãode ser umhomem imenso.O rosto, barbeado e extremamenteexpressivo, transmitia uma sensação de poder e força muito além donormal.Pareciairradiarumtremendomagnetismo.
Tuppence ficou indecisa por um momento, sem saber se deveriaclassificá-lo como ator ou advogado. Mas suas dúvidas foram logodissipadasquandoohomemdisseseunome:SirJamesPeelEdgerton.
Ela o fitou comum interesse renovado. Então aquele era o advogadocujo nome era conhecido e respeitado em toda a Inglaterra! Tuppence jáouvirainclusivecomentáriosdequeelepoderiaumdiasetornarprimeiro-ministro. Sabia-sequeele até já recusaraumalto cargonogoverno,poispreferiacontinuardedicadoàsuaprofissão.
Tuppence voltou pensativa para a copa. O grande homem aimpressionara. Podia compreender agora o nervosismo de Boris. PeelEdgertonnãoseriaumhomemfácildeenganar.
Cerca de 15minutos depois, Tuppence foi novamente chamada, paraconduzir o visitante até a porta. Ele a contemplara antes com um olharpenetrante.Agora,aoentregar-lheochapéueabengala,Tuppencesentiuqueosolhosdeleaexaminavamcomtodaaatenção.Abriuaportaedeuum passo para o lado, a fim de deixá-lo passar. Peel Edgerton parou nasoleira.
–Nãofazmuitotempoquetrabalhanisso,estoucerto?
Tuppence fitou-o, atônita. Descobrira uma expressão de bondade nosolhosdele,juntamentecomalgomais,queeradifícildefinir.PeelEdgertonassentiu,comoseelativesserespondido,acrescentando:
–Foivoluntárianaguerraedepoistevequeenfrentardiasdifíceis,nãoémesmo?
– Foi a Sra. Vandemeyer que contou isso? – indagou Tuppence,desconfiada.
–Não,menina. Foi sua aparência queme revelou tudo isso. Gosta detrabalharaqui?
–Gostomuito,senhor.–Hámuitos lugaresótimosparase trabalharnosdiasdehoje.Euma
mudançadevezemquandonãofazmalnenhum.–Estáquerendodizer...?Mas Sir James já se afastara. Parou novamente, no alto da escada,
olhando para trás, com aquele seu olhar ao mesmo tempo bondoso eastuto.
–Apenasumasugestão,nadamais...Tuppencevoltouparaacopa,maispensativadoquenunca.
11Juliuscontaumahistória
Vestida de maneira apropriada, Tuppence partiu para a sua “tarde defolga”.Albertnãoestavaàvista.Tuppenceresolveupassarpelapapelariaafimdesecertificardequenãochegaranenhumrecado.SeguiudepoisparaoRitz.PerguntounaportariaesoubequeTommyaindanãohaviavoltado.Já esperava pela resposta, mas foi mais um prego no caixão de suasesperanças.ResolveuapelarparaoSr.Carter,informando-oquandoeondeTommy iniciara a perseguição e pedindo-lhe que tomasse algumaprovidênciaparalocalizá-lo.Aperspectivadeajudareanimou-anomesmoinstante.Resolveuperguntarpor JuliusHersheimmer.Disseramaelaqueeleretornaracercademeiahoraantes,masvoltaraasairlogodepois.
Tuppence se sentiu ainda mais reanimada. Seria ótimo se encontrarcomJulius.Talvezelepudesseimaginaralgumplanoparadescobriroque
acontecera com Tommy. Escreveu o bilhete para o Sr. Carter na sala dasuítedeJulius.Estavaendereçandooenvelopequandoaportaseabriuderepente.
–Masquediabo...Aoverquemera,Juliussecontrolouprontamente.– Desculpe, Srta. Tuppence. Mas é que aqueles idiotas lá na portaria
disseramqueBeresfordnãoestámaisaqui,quenãoaparecedesdequarta-feira.Issoéverdade?
Tuppenceassentiu,perguntandoaomesmotempo:–Sabeporacasoondeeleestá?– Eu?Mas como iria saber?Não recebi nenhum recado dele, embora
tenhalheenviadoumtelegramaontemdemanhã.–Seutelegramaaindadeveestarnaportaria.–Masondeéqueeleestá,Srta.Tuppence?–Nãosei.Penseiquepudessemedizer.– Já lhe disse que não recebi nenhum recado dele desde que nos
separamosnaestação,naquarta-feira.–Queestação?–AdeWaterloo.–Waterloo?–repetiuTuppence,franzindoatesta.–Issomesmo.Elenãolhecontou?– Também não sei dele desde quarta-feira – respondeu Tuppence,
impaciente.–MasoqueestavamfazendoemWaterloo?–Elemetelefonou,pedindoquefosseatélá.Dissequeestavaseguindo
doispatifes.– Ah... – murmurou Tuppence, arregalando os olhos. – Agora estou
entendendo.Continue,porfavor.–Fuiimediatamenteparaaestação.Beresfordestavaàminhaesperae
apontou os dois patifes. O grandalhão, o sujeito que você conseguiuenganar,eraomeuhomem.Tommymeentregouapassagememepediuqueembarcassenotrem.Eleiaseguirooutropatife.
Juliusfezumapausaeacrescentou,pensativo:–Penseiquejásoubessedetudoisso...–Paredeandardeumladoparaooutro,Julius–Tuppencepediucom
firmeza.–Issomedeixanervosa.Sente-senaquelacadeiraemecontetodaahistória,damaneiramaisobjetivapossível.
OSr.Hersheimmerobedeceu.–Estácerto.Porondedevocomeçar?–Porondehaviaparado.Ouseja,emWaterloo.
– Embarquei num desses compartimentos britânicos antiquados deprimeiraclasse.O tremestavadepartida.Logoapareceuumguardaparameinformarqueeunãoestavanumdosvagõesondesepodefumar.Dei-lhemeiodólareissoresolveuoproblema.Fuiatéovagãoseguinte,dandouma olhada nos compartimentos. Não demorei a encontrarWhittington.Quandoviopatife,comaquelerostobalofoeseboso,comeceiapensarnapobreJanenasgarrasdeleefiqueifuriosopornãoestarcomumaarma.Omiserável iria ver uma coisa! Chegamos a Bournemouth e Whittingtonpegouumtáxiedeuonomedeumhotel.Fizamesmacoisaechegamoslácomumadiferençadetrêsminutos.Elealugouumquarto,eualugueioutro.Atéessemomento,estavatudocorrendobem.Elenãotinhaamenoridéiadequehaviaalguémoseguindo.Eledesceuparaosaguãodohoteleficousentado por lá, lendo os jornais, até a hora do jantar. E também não seapressouparacomer.Comeceiapensarqueaquelaviagemnãotinhanadademais, que ele fora até Bournemouth apenas por causa da saúde. Masdepois me lembrei de que ele não havia trocado de roupa para jantar,apesardeserumdesseshotéiselegantes.ConcluíqueiatratardonegócioqueolevaraaBournemouthassimqueacabasseojantar.
Osr.Hersheimmercontinuou:–Enãodeuoutra.Elesaiudohotelpoucodepoisdas21horas.Pegou
umcarropara atravessar a cidade... Por falar nisso, é um lugar dosmaisagradáveis, acho até que vou levar Jane para passar uma temporada ali,assim que a encontrar. Pagou aomotorista e depois se embrenhou a pépelospinheirosnoaltodopenhasco.Éclaroquefuiatrásdele.Devemosterandadoporuns15minutos.Háumaporçãodecasasnaquelelugar.Masàmedidaquefomosavançando,pareciahavercadavezmenoscasas,atéquenos aproximamos da que parecia ser a última. Era uma casa grande,cercadadepinheiros.Anoiteestavaumbocadoescuraeocaminhoatéacasaestavaumbreu.EupodiaouvirWhittingtonnaminhafrente,emboranão pudesse vê-lo. Tinha que andar com todo cuidado para que ele nãodesconfiassedequeestava sendo seguido.Dobrei emumadas curvasdocaminhoatempodevê-lotocaracampainhaeentrarnacasa.Pareiondeestava.Começouachoverenãodemoroumuitoparaqueeu ficasse todoensopado.Estavafazendotambémumtremendofrio.
Ahistóriaprosseguiu:–OtempofoipassandoeWhittingtonnãosaía.Comeceiaficarinquieto
e resolvi dar uma olhada ao redor. Todas as janelas do andar térreoestavamfechadas.Masláemcima,nosegundoeúltimoandar,avisteiumajanelacomaluzacesaeasvenezianasabertas.Haviaumaárvorebemem
frenteaessajanela,auns10metrosdedistância.Metinacabeçaaidéiadeque,sesubisseporessaárvore, talvezvisseoqueestavaacontecendodoladodedentrodaquela janela.Claroqueeusabiaquenãohaviaqualquermotivo especial para queWhittington estivesse justamente ali e não emqualquer outro lugar da casa. Na verdade, era de se imaginar que nãoestivesse, que tivesse paradonumadas salas de recepçãodo térreo.Masachoqueeuestavairritadodeficartantotempoparadonachuvaepenseique fazer qualquer coisa eramelhor do que continuar sem fazer nada. Ecomeceiasubirnaárvore.Epodeestarcertadequenãofoinadafácil!Achuva tinha deixado os galhos escorregadios e eu tinha que tomar todocuidadoparanãocair.Masfinalmenteconsegui,ficandononíveldajanela.Mas fiquei decepcionado. Estava muito para a esquerda e só dava paraavistarumpedaçodacortinaecercade1metrodepapeldeparede.Issodenadameservia.Jáestavamepreparandoparadesistiredescerdaárvore,insatisfeito,quandoalguémentrounoaposentoeporsortefoisepostarnomeucantinhodeparede.EraWhittington.
EJuliuscontinuouanarrativa:–Depoisdisso,nãopudemaismecontrolar.Tinhaqueencontrarum
jeitoqualquerde ver tudooque estava acontecendo lá dentro. Constateiqueumdosgalhosdaárvoreestavaviradoparaadireita.Seeupudesseiratéomeiodele,oproblemaestariaresolvido.Masogalhodavaaimpressãodequenão agüentaria omeupeso.Decidi correr o risco e fui avançandocom cuidado pelo galho. O galho rangeu e balançou de maneira nadaagradável.Eunãoquerianempensarnaqueda.Masfinalmentechegueiemsegurança ao lugar que desejava. O aposento era de tamanho médio,mobiliadodemaneiraumtantosóbria.Nocentro,haviaumamesapequenacomumabajuremcima.Esentadoaessamesa,defrenteparamim,estavaWhittington.Falavacomumaenfermeira.Comoelaestavadecostasparamim, não dava para ver seu rosto. Embora as venezianas estivessemabertas, a janelapropriamentedita estava fechada.Assim, nãodavaparaouvirumasópalavradoquediziam.Whittingtonpareciaseroúnicoafalareaenfermeiraselimitavaaouvir.Assentiadevezemquando,outrasvezessacudia a cabeça, como se estivesse respondendo perguntas.Whittingtondava a impressão de estar falando de maneira muito enfática, chegandomesmoabatercomopunhocerradonamesaumaouduasvezes.Achuvajátinhaparadoeocéuestavacomeçandoa limparrapidamente,comoàsvezes acontece. Não demoroumuito para queWhittington se levantasse.Pareciaquejáacabaradefalaroquetinhaparadizer.Amulhertambémselevantou.Eleolhoupela janelaeperguntoualgumacoisa.Achoque foise
estavaounãochovendo.Sejacomofor,elafoiatéajanelaeolhouparafora.Nesseexatomomento,a luasaiudetrásdasnuvens.Fiqueicommedodequeamulhermevisse,poisestavaplenamenteiluminadopeloluar.Tenteirecuarumpouco.Masomovimento foidemaisparaaquelegalhovelhoepodre. Com um tremendo estalo, o galho se partiu e caiu, levando juntoJuliusP.Hersheimmer!
–Oh,Julius,queemocionante!–entusiasmou-seTuppence.–Continuelogo!
– Tive sorte de aterrissar num canteiro de terramacia.Mas perdi ossentidos.Aovoltaramim,estavadeitadonumacama,comumaenfermeira(não era a que eu avistara comWhittington) aomeu lado.Dooutro ladoestavaumhomenzinhodebarbapreta,comóculosdearosdeouro.Estavaescrito em sua cara que era ummédico. Esfregou asmãos e levantou assobrancelhasquandoofitei.Ele,então,disse:“Ah,onossojovemamigojávoltou a si! Isso é ótimo!” Recorri ao golpe habitual e perguntei: “O queaconteceu?” e “Onde estou?”. Mas já sabia perfeitamente as respostas.Afinal, não sounenhumestúpido. “Achoquenãohámais necessidadedesuapresençanomomento”,disseomédicoparaaenfermeira.Elasaiudoquartoimediatamente.Maspercebiqueelamelançouumolhardeintensacuriosidade ao cruzar a porta. Aquele olharme deu uma idéia. “E agoravamosconversar,doutor”,disseeu.Quandotenteimesentarnacama,sentiumapontadadedornotornozelodireito.“Torceuotornozelo”,explicouomédico. “Mas não é nada sério. Dentro de uns dois dias, já estaráinteiramenterecuperado.”
Tuppenceinterrompeunovamenteorelato:–Bemquenoteiquevocêestavamancandoumpoucoaoentrar.Juliusassentiuecontinuou:– “Como foi que isso aconteceu?”, perguntei novamente. E ele
respondeudemaneira seca: “Você caiu, levando juntoparte consideráveldeumadasminhasárvores.Efoiaterrissaremumdosmeuscanteirosdefloresplantadas recentemente.” Simpatizei comohomem.Eleparecia tersenso de humor. Tive certeza de que ele, pelo menos, era um homemcorreto. “Estou lembrando agora, doutor”, informei. “Desculpe terquebradoogalhoeestragadooseucanteiro.Masnãogostariadesaberoque eu estava fazendo no seu jardim?” Então ele respondeu: “Achorealmentequeos fatosexigemumaexplicação.”E fui logodizendo: “Paracomeço de conversa, doutor, não vim até aqui para raptar uma de suasmamadeiras.” Ele sorriu. “Foiminha primeira teoria, mas logomudei deidéia.Porfalarnisso,vocêénorte-americano,nãoémesmo?”Disseaeleo
meunomeeperguntei comoele se chamava. “SouoDr.Hall eestánestemomento,comosemdúvidajásabe,naminhacasadesaúdeparticular.”Eunão sabia, mas não disse a ele. Fiquei grato pela informação. Tinhasimpatizado com o homem, mas nem por isso pretendia contar toda ahistória a ele. Inclusiveporqueeleprovavelmentenãoacreditaria.Tomeirapidamenteumadecisãoedisse:“Eumesintoumcompletoidiota,doutor,mas quero que tenha certeza de que não vim até aqui para cometer umcrime.”Econteiahistóriadeumamoçaquetinhaumtutormuitoseveroeacabarasofrendoumcolapsonervoso.Expliquei,porfim,quepensaraqueela fosse uma das pacientes internadas na casa de saúde e era esse omotivoparaaminhaexpediçãonoturna.Achoqueeraessaahistóriaqueeleestavaesperandoouvir.Quandoacabeidefalar,elemedissedeformacordial: “É um romance e tanto!” Acrescentei então: “Gostaria que merespondesse com toda franqueza, doutor. Tem ou não aqui uma moçachamada JaneFinn?”Ele repetiuonome,pensativo: “JaneFinn?Não,nãotenho ninguém aqui com esse nome.” Fiquei mortificado e deixeitransparecer. “Tem certeza?” “Claro que tenho, Sr. Hersheimmer. É umnomeincomumeeucertamentenãoiriaesquecê-lo.”
Hersheimmercontinuou:– O assunto estava liquidado.Mas eume sentia um pouco frustrado,
poisesperavaqueminhabuscaresultasseemalgumacoisa.“Entãovouterqueprocurá-laemoutrolugar,doutor”,disseeufinalmente.“Agora,vamostratardeoutroassunto.Quandoeuestavaabraçadoàquelemalditogalho,tivea impressãodeterreconhecidoumamigoconversandocomumadasenfermeiras.”Deliberadamente,nãociteinenhumnome,poisWhittingtonpodia estar se apresentando ali com outro nome. Mas o doutor merespondeuimediatamente:“NãoseriaporacasooSr.Whittington?”“Éelemesmo. O que estava fazendo aqui? Não me diga que os nervos deletambémestãodesarranjados!”ODr.Hall riu. “Nãose tratadisso.Eleveioaqui para visitar a enfermeira Edith, que é sua sobrinha.” “Mas quecoincidência!”,exclamei. “Eleaindaestáaqui?”“Não.Voltouparaacidadequaseque imediatamente.” “Masquepena!Seráqueeunãopoderia falarcomasobrinhadele...enfermeiraEdith,nãofoioquedisse?”
Tuppenceescutavaatentamente.– Mas o Dr. Hall sacudiu a cabeça. “Infelizmente, isso também será
impossível. A enfermeira Edith também partiu esta noite, com umapaciente.”“Parecequeestourealmenteazaradoestanoite”,comentei.“Tempor acaso o endereço do Sr.Whittington na cidade? Eu gostaria de fazeruma visita a ele quando voltar.” “Não sei o endereço dele, mas posso
escreverparaaenfermeiraEdithepedir,sedesejar.”Agradeciapresteza.“Mas não diga quem está querendo o endereço, doutor, pois quero fazerumapequenasurpresaaomeuamigoWhittington.”Erapraticamentetudooqueeupodiafazernomomento.ClaroqueseagarotafosserealmenteasobrinhadeWhittingtonpodiaser tambémmuitoespertaenãocairianaminhaarmadilha.Masacheiquevaliaapenatentar.PasseiemseguidaumtelegramaparaBeresford,informandoondeestavaefalandodotornozelotorcido. Pedi que fosseme buscar, se não estivesse muito ocupado. Nãodissemaisnadanotelegrama,poisprecisavasercauteloso.MasnãorecebinenhumarespostadeBeresfordenãodemoroumuitoparaqueeuficassebom.Nãochegueirealmenteatorceropé.Despedi-medoDr.Hall,pedindoaelequemeinformasseassimquerecebesseumarespostadaenfermeiraEdith.EvolteiparaLondres.Agora,Srta.Tuppence,podemeexplicarporqueestátãopálida.
–EstoupreocupadacomTommy.Oqueseráqueaconteceucomele?– Vamos, anime-se! Tenho certeza de que ele está bem. Por que não
haveriadeestar?Osujeitoqueeleseguiutinhaaaparênciadeestrangeiro.Quemsabesenão foramparaoexterior...paraaPolôniaoualgumoutrolugarparecido?
Tuppencesacudiuacabeça.– Tommy não poderia ter viajado para o exterior sem passaporte e
todas as demais coisas necessárias. Além do mais, já vi o homem queTommyestava seguindodepoisdisso.Ele se chamaBorisqualquer-coisa.JantoucomaSra.Vandemeyerontemdenoite.
–Sra.quem?–Tinhaesquecidoqueaindanãosabe.–Soutodoouvidos–disseJulius,assumindosuaexpressãopredileta.–
Conte-metudo.Tuppence relatou todos os acontecimentos dos dois últimos dias. O
espantoeaadmiraçãodeJuliusforamilimitados.–Masquecoisa!Quemhaveriadeimaginarquepudessesetornaruma
empregadadoméstica?Ficoarrepiadosódepensar!Juliusfezumabrevepausaedepoisacrescentou,novamentesério:– Se quer saber, Srta. Tuppence, não estou gostando nada dessa
história.Seiqueébastantecorajosa,maspreferiaquenãoestivessemetidanessaconfusão.Essespatifescomosquaisestamoslidandopodemenganarumamoçacomamesmatranqüilidadecomquematariamumhomem.
– E por acaso pensa que estou com medo? – indagou Tuppence,indignada, reprimindo as recordações do brilho frio e cruel dos olhos da
Sra.Vandemeyer.–Eujáhaviaditoqueécorajosa.Masissonãoalteraosfatos.–Ora,nãomeamolemaiscomisso!–exclamouTuppence,impaciente.
– Em vez de ficarmos falando sobre esse assunto, é melhor tentarmosencontrarummeiodedescobriroqueaconteceucomTommy.JáescreviaoSr.Carterarespeito.
Tuppenceinformouoconteúdodacarta.Juliusconcordou,muitosério:–Foiumaboaidéiaescreverparaele.Masachoquenóséquetemosde
entraremaçãoedescobriroqueaconteceucomTommy.–Masoquepodemosfazer?–indagouTuppence,sentindo-seoutravez
animada.–AchoqueomelhorcaminhoéseguirBoris.Dissequeeleestevenatal
casaondeestátrabalhando.Achaqueelepodevoltarlá?–Épossível,masnãopossoafirmarcomcerteza.–Estouentendendo.Achoqueomelhoréeucomprarumcarroeme
vestir de motorista. Ficarei de plantão nas proximidades do prédio. SeBorisaparecer,vocêmefazumsinalevouatrásdele.Oqueachadaidéia?
–Éesplêndida!Maspodemsepassarsemanassemqueeleapareça!–Éumriscoquetemosdecorrer.Ficocontentequetenhagostadodo
plano.Juliusselevantou.–Paraaondevai?–Voucomprarocarro,éclaro!–respondeuJulius,surpreso.–Qualéa
marcadequevocêmaisgosta?Achoquevamosprecisarmuitodeumcarroantesdeissotudoterminar.
– Oh! – exclamou Tuppence, com a voz um pouco abafada. – GostomuitodeRolls-Royce,mas...
–Semproblemas.Concordocomoqueacharmelhor.Voucomprarumimediatamente.
– Mas isso é impossível! Todo mundo tem que esperar séculos parareceberumRolls-Royce!
–PodeficartranqüilaqueissonãoacontecerácomopequenoJulius–garantiuoSr.Hersheimmer.–Voltareicomocarrodentrodemeiahora.
Tuppencelevantou-se.–Estásendoextremamentegeneroso,Julius.Masnãoconsigodeixarde
sentirqueéumaesperançavã.AindaachoqueoSr.Carterpoderáresolvertudo.
–Poiseunãopensoassim.–Porquê?
–Éapenasumpalpite.–Maseletemquefazeralgumacoisa.Nãoháninguémmaisquepossa
ajudar.Porfalarnisso,esquecidecontaravocêumacoisaestranhaquemeaconteceuestamanhã.
TuppencerelatouseuencontrocomSirJamesPeelEdgerton.Juliussemostroubastanteinteressado.
–Oqueseráqueelequisinsinuar?– Não tenho a menor idéia – respondeu Tuppence, pensativa. – Mas
tenho me perguntado se, à maneira ambígua de um advogado, ele nãoestavatentandomealertar.
–Eporquehaveriadefazerisso?– Não sei, Julius. Mas me pareceu um homem bondoso e muito
inteligente.Eunãomeincomodariadeprocurá-loecontartodaahistória.ParaespantodeTuppence,Juliusseopôscomveemênciaàidéia.–Émelhornãodeixarmosquenenhumadvogadosemeta.Essesujeito
nãoirianosajudaremnada.– Pois eu acho que ele poderia ajudar, sim – insistiu Tuppence, de
maneiraobstinada.–Poissaibaqueestáenganada.Atéjá.Estareidevoltaemmeiahora.Juliusvoltou35minutosdepois.PegouTuppencepelobraçoealevou
atéajanela.–Láestáocarro!Tuppencenãopôdeconterumaexclamaçãoreverenteaocontemplaro
carro.Juliuscomentou,complacente:–Possolhegarantirqueandaqueéumabeleza.–Comofoiqueoconseguiu?–indagouTuppence,aindaaturdida.–Ocarroestavasendodespachadoparaumfigurão.–Eoquefez?–Fuiatéacasadele.Dissequesabiaqueocarrovaliacadacentavodos
20mildólaresqueelehaviapago.Eacrescenteiquevalia50mildólaresparamim,seeleconcordasseemmeceder.
–Eentão?–indagouTuppence,inebriada.–Eleconcordou,éclaro.
12Umamigoemnecessidade
Sexta-feira e sábado passaram sem que acontecesse nada de especial.TuppencerecebeuumarespostasucintaaoapeloquefizeraaoSr.Carter.Ele ressaltava que os Jovens Aventureiros haviam aceitado amissão porsua própria conta e risco, tendo sido advertidos dos perigos. Se algoacontecera a Tommy, o Sr. Carter lamentava profundamente, mas nãopodiafazernada.
Tuppence estava deprimida. Sem Tommy, a aventura perdera todo osabor.E, pelaprimeiravez, ela começouadesconfiardapossibilidadedesucesso.Enquantoestiveramjuntos,elajamaisduvidaradoresultadofinal.Emboraestivesseacostumadaa tomaradianteirae seorgulhassede suainteligência ágil, na verdade se apoiava em Tommy muito mais do quepercebera na ocasião. Tommypossuía algo eminentemente equilibrado elúcido, umbom senso e umapercepçãodas coisas que eram inabaláveis.Semele,Tuppencesesentiaquasecomoumnaviosemleme.Eracuriosoofato de que Julius, embora obviamente mais esperto que Tommy, nãoproporcionasseamesmasensaçãoaTuppence.ElaacusaraTommydeserum pessimista e não restava a menor dúvida de que ele sempre via asdesvantagens e dificuldades possíveis. Tuppence, ao contrário, umaotimistaincurável,tendiaaignorartodososobstáculos.Mas,apesardisso,confiavamuitonosjulgamentosdeTommy.Elepodiapensardevagar,masofaziacomtodasegurança.
Tuppence teve a impressão de perceber, pela primeira vez, o carátersinistrodamissãoquehaviamaceitado com tanta temeridade.Ahistóriatoda começara como uma página de romance. Mas agora, terminado oencanto, tudo se apresentava como uma realidade sombria. No fim dascontas,aúnicacoisaquerealmenteimportavaeraasegurançadeTommy.Nodecorrerdodia,Tuppencetevequeseesforçarváriasvezesparaconteras lágrimas. Em determinado momento, ela censurou a si mesma comveemência: “Paredechoramingar,suatola!Éclaroquegostadele.Afinal,conhece-o desde pequena.Mas nãohá necessidade de bancar uma idiotasentimental!”
Nesse meio-tempo, não houve qualquer notícia de Boris. Ele nãoapareceu no apartamento, e Julius e o Rollys-Royce esperavam em vão.Tuppence entregou-se a novas meditações. Embora reconhecesse aprocedênciadasobjeçõesdeJulius,aindanãoabandonaraaidéiadeapelarparaSir JamesPeelEdgerton.Chegaramesmoaverificaroendereçodeleno LivroVermelho. Será que ele tencionara realmente adverti-la naqueledia?Se issoocorreu,porquê?Tuppenceconcluiuquetinhapelomenoso
direitodepedirumaexplicação.Eleafitaracomumaexpressãobondosaecompreensiva. Talvez pudesse revelar alguma coisa a respeito da Sra.VandemeyerqueservissedepistaparaoparadeirodeTommy.
Tuppenceacaboudecidindo,comaqueleseugestocaracterísticodedardeombros,quevaliaapenatentar.Teriafolganatardededomingo.Iriaseencontrar com Julius, conseguiria persuadi-lo e seguiriam juntos parapuxarabarbadoleãoemseucovil.
Quando o momento chegou, Julius exigiu uma dose considerável depersuasão.MasTuppencesemantevefirme,insistindorepetidasvezes,aofimdeseusargumentos:
–Nãopodefazermalalgum.Julius acabou cedendoeosdois seguiramde carroatéCarltonHouse
Terrace.Aportafoiabertaporummordomoimpecável.Tuppencesesentiuum
pouco nervosa. Afinal, talvez fosse uma desfaçatez colossal de sua parte.Decidira não perguntar se Sir James “estava em casa”, mas adotar umaatitudemaispessoal.
– Quer perguntar ao Sir James se ele pode me receber por algunsminutos?Tenhoumamensagemimportanteparatransmitir.
Omordomoseretirou.Voltoulogodepois,comainformação:–SirJamesirárecebê-los.Venhamporaqui,porfavor.Ele os levou até uma sala nos fundos da casa, mobiliada como uma
biblioteca. A coleção de livros era espetacular. Tuppence constatou quetoda uma parede estava ocupada por livros sobre crime e criminologia.Haviadiversaspoltronasdecouroeumalareiraantiquadaaberta.Juntoàjanela,haviaumaescrivaninhade tampocorrediço, atulhadadepapéis, àqualestavasentadoodonodacasa.
EleselevantouquandoTuppenceeJuliusentraram.–Têmumrecadoparamim?ElereconheceuTuppenceesorriu.–Ora,masévocê!TrouxealgumrecadodaSra.Vandemeyer?–Nãoébemisso,senhor–disseTuppence.–Paradizeraverdade,só
disse que tinha um recado para que me recebesse. Ah, sim... Sr.Hersheimmer,SirJamesPeelEdgerton.
–Prazeremconhecê-lo–disseonorte-americano,estendendoamão.Depoisdaapresentação,SirJamespuxouduascadeiras,oferecendo:–Nãoqueremsesentar?Assimqueseacomodou,Tuppencenãoperdeumaistempo:–Deve estarpensando, Sir James, que émuito atrevimentodeminha
parteviratéaquidestejeito.Afinal,nãotemnadaavercomoassuntoqueme traz à sua presença e é um homem importante. E Tommy e eu nãotemosamenorimportância.
Tuppenceparoupararespirar.–Tommy?–repetiuSirJames,olhandoparaonorte-americano.–Não,esseéJulius–Tuppenceapressou-seemexplicar.–Desculpea
confusão. É que estou muito nervosa e não estou conseguindo meexpressardireito.Oqueestouquerendosaberéoquerealmentequismedizer no outro dia. Estava procurando me alertar a respeito da Sra.Vandemeyer,nãoémesmo?
– Pelo queme lembro,minha cara jovem, limitei-me a comentar quehojeemdianãoédifícilarrumarbonsempregos.
–Seidisso.Masfoiumainsinuação,nãoémesmo?–Talveztenhasido–admitiuSirJames.–Poisquerosabermais.Querosaberporquemefeztalinsinuação.SirJamessorriuaoperceberaansiedadedeTuppence.–Eseadamaemquestãodecidirmoverumprocessopordifamaçãode
carátercontramim?– Sei que os advogados sempre são extremamente cuidadosos, Sir
James. Mas não podemos dizer “sem prejulgamento” primeiro e depoisfalarmostudooquepensarmos?
–Nessecaso,semprejulgamento–disseSirJames,semparardesorrir.–Eudiriaque,setivesseumairmãmaismoçaobrigadaaganharavida,nãogostariadevê-latrabalhandoparaaSra.Vandemeyer.Acheiqueeraminhaobrigação adverti-la. Aquele não é um lugar apropriado para uma joveminexperiente.Issoétudooquepossodizeravocê.
–Estouentendendo,SirJames.Egostariadeagradeceraosenhor.Masnãosourealmenteuma joveminexperiente.SabiaqueaSra.Vandemeyereraumamulherperigosaquandofuitrabalharlá.Aliás,foijustamenteporissoqueaceiteioemprego...
Tuppencefezumapausaaoconstataraexpressãodeperplexidadenorostodoadvogado.Mascontinuoulogoemseguida:
– Acho melhor contar ao senhor toda a história, Sir James. Tenho aimpressão de que perceberia logo se eu não lhe contasse a verdade.Portanto, acho melhor contar tudo desde o início. Qual é a sua opinião,Julius?
– Já que está mesmo disposta a contar tudo, vá direto aos fatos –respondeuonorte-americano,queatéaquelemomentonãodisseraumasópalavra.
–Éissomesmo,conte-metudo–pediuSirJames.–QuerosaberqueméTommy.
Assim,encorajada,Tuppencecontoutodaahistória.Oadvogadoouviucomatençãoeaofinalcomentou:
– Muito interessante... Eu já sabia grande parte do que me contou.TenhoinclusivealgumasteoriasarespeitodessaJaneFinn.Atéagoravocêsdoissesaírammuitobem,masélamentávelqueo...Comoémesmoqueoconhecem?...Ah,sim,queoSr.Carterostenhametidonumcasodesses.Porfalarnisso,comofoiqueoSr.Hersheimmerentrounahistória?Nãodeixouissomuitoclaro.
Foiopróprio Juliusquemrespondeu, sustentandooolharpenetrantedoadvogado:
–SouprimoemprimeirograudeJane.–Hum...Tuppencevoltouafalar:–OqueachaquepodeteracontecidocomTommy,SirJames?–Nãosei.Oadvogado se levantoue começoua andardeum ladoparaooutro,
lentamente.–Euestavaacabandodeprovidenciartudoparapodertiraralgunsdias
defolga,minhajovem.IapegarotremnoturnoparaaEscóciaemededicaràpescaporalgumtempo.Mashádiversasespéciesdepescarias.Achoquevouficarporaqui,afimdeverificaroqueépossívelfazerparaencontrarojovemTommy.
–Oh!–exclamouTuppence,cruzandoasmãos,extasiada.– De qualquer maneira, como eu já disse antes, é lamentável que...
Cartertenhaescolhidoduascriançasparaamissão.Peçoquenãosesintaofendida,Srta...
– Cowley, Prudence Cowley. Mas meus amigos só me chamam deTuppence.
–PoisentãopermitaqueachamedeSrta.Tuppence,poistenhocertezade que vamos ser amigos. Não se sinta ofendida porque eu acho que émuitojovem.Afinal,ajuventudeéumdefeitofacilmentesuperável.QuantoàsituaçãodoseujovemamigoTommy...
Eledeixouafrasenomeio,deliberadamente.Tuppencecruzouasmãosnervosamente.
–Oqueacha?–Vouserfranco:aoquetudoindica,asituaçãodelenãoénadaboa.É
quasecertoqueeleandousemetendoondesuapresençanãoeralámuito
desejável.Masnemporissodeveperdertodaequalqueresperança.–Evainosajudar?Eunãodisse,Julius?Tuppencerespiroufundoedepoisexplicou:–Elenãoqueriavir...– Entendo – disse o advogado, lançando outro olhar penetrante para
Julius.–Eporquenãoqueriavir,meujovem?–Acheiquenãohaviaqualquerutilidadeempreocupá-locomalgotão
insignificante.– Acontece, meu jovem, que esse caso insignificante, como o chama,
estáligadodiretamenteaumnegóciomuitogrande,talvezmuitomaiordoquevocêouaSrta.Tuppencepossamimaginar.Seesserapazestivervivo,poderá nos prestar informações extremamente valiosas. Portanto, temosqueencontrá-lo.
–Mas como? – gritou Tuppence. – Já pensei em tudo e não conseguiencontrarumasolução!
SirJamessorriu.–Masháumapessoabastantepróximaqueprovavelmentesabeonde
eleestáoupelomenosondepodeestar.–Equeméessapessoa?–perguntouTuppence,perplexa.–ASra.Vandemeyer.–Temrazão.Sóqueelajamaisnosdiriaqualquercoisa.–Énessepontoqueeuentroemcena.Achoquepodereifazercomque
aSra.Vandemeyerdigatudooqueeuquerosaber.–Como?–insistiuTuppence,arregalandoosolhos.– Ora, simplesmente fazendo perguntas a ela – respondeu Sir James,
comamaiortranqüilidade.–Comojádevesaber,éassimquecostumamosagir.
Ele tamborilouosdedos sobreamesaeTuppence sentiuoutravez aforçaextraordináriaqueemanavadaquelehomem.
–Eseelanãodisser?–indagouJulius,demaneiraabrupta.– Creio que ela dirá. Tenho alguns argumentos poderosos para
convencê-laa falar.Enahipótese improváveldenãooconseguir,sempresepoderecorreraosuborno.
– Tem toda razão! – gritou Julius, batendo com o punho fechado namesa.–Eénessahoraqueeuentroemcena!Podecontarcomigo,se fornecessário,paraofereceraelaummilhãodedólares!É issomesmo...ummilhãodedólares!
Sir James sentou-se e por ummomento ficou a olhar para Julius emsilêncio,antesdefinalmentedizer:
–Éumasomavultosa,Sr.Hersheimmer.–Achoquenãoháoutrojeito.Nãoestamoslidandocomgentecapazde
aceitarmeiadúziademoedas.–Aocâmbioatual,dámaisoumenos250millibras.–Seidisso.Talvezestejapensandoqueestoumegabando,masposso
entregarodinheiroimediatamenteeaindasobraráobastanteparapagarseushonorários.
SirJamescorouligeiramente.–Nãohá razãoparamepagarhonorários, Sr.Hersheimmer.Não sou
detetiveparticular.– Desculpe. Acho que fui um pouco precipitado. Mas é que andome
sentindomalporcausadesseproblemadedinheiro.Hápoucosdias,quisoferecer uma recompensa substancial por informações sobre Jane,mas aScotland Yard, uma instituição venerável, aconselhou-me a não fazê-lo.Dissequeeraindesejável.
–Eelesprovavelmenteestãocertos–comentouSirJames,secamente.– Julius não está prometendo o que não pode cumprir – interveio
Tuppence.–Eletemdinheiroquenãoacabamais.–Ovelhojuntoudinheiroemgrandeestilo–explicouJulius.–Eagora
vamosacertartudo.Qualéoseuplano?SirJamespensouporummomento.–Nãohátempoaperder.Quantomaiscedoentrarmosemação,melhor
será.Elevirou-separaTuppenceeacrescentou:–SabeseaSra.Vandemeyervaijantarforaestanoite?– Acho que sim. Mas ela não pretende voltar muito tarde, pois não
pediuachavedaporta.–Ótimo!Telefonareiparaelaporvoltadas22horas.Aquehorasvocê
deveestardevolta?– Por volta de 21h30 ou 22 horas. Mas posso voltar antes, se for
necessário.–Nãodevefazerissodejeitonenhum.Podedespertarsuspeitassenão
aproveitarafolgaatéahoraprevista.Volteparaoapartamentoàs21h30.Chegarei láàs22horas.OSr.Hersheimmerficaráesperandonafrentedoprédio,talveznumtáxi.
–EletemumRolls-Roycenovinhoemfolha!–revelouTuppence,comvisívelorgulho.
– Melhor ainda. Se conseguirmos arrancar o endereço, poderemosseguir para lá imediatamente, levando a Sra. Vandemeyer conosco, caso
sejanecessário.Estamoscombinados?–Claro!–exclamouTuppence,extasiada.Elaselevantou,acrescentando:–Oh,jáestoumesentindomuitomelhor!–Nãodeveacalentaresperançasdemasiadas,Srta.Tuppence.Juliusvirou-separaoadvogado:–Vireibuscá-loporvoltadas21h30.Estácerto?–Éumaboaidéia.Nãohánecessidadedeterdoiscarrosesperando.E
agora,Srta.Tuppence,gostariadelhedarumconselho:vájantareprocurecomerbem.Etentenãopensarnoquetemospelafrente.
Ele apertou asmãosde ambos.Ummomentodepois, aodesceremosdegrausdaentrada,Tuppencemurmurou,extasiada:
–Oh,Julius,elenãoémaravilhoso?–Reconheçoqueeledefatopareceserumbomsujeito.Equeeuestava
enganadoquandodissequeera inútilvirprocurá-lo.VamosvoltarparaoRitz?
–Eugostariadeandarumpouco,poisestoumesentindoagitada.Podemedeixarnoparque?Oupreferedarumavoltacomigo?
–Tenhoqueencherotanquedocarro.Eprecisotambémenviaralgunscabogramas.
– Está certo. Irei me encontrar com você no Ritz às 19 horas.Poderemos jantar na suíte. Não quero aparecer no restaurante nestestrajes.
–Nãoháproblema.PedireiaFelixparameajudaraescolherospratos.Eleéochefedosgarçonsoualgoassim.Atéjá.
Tuppence olhou para o relógio ao começar a caminhar rapidamentepeloSerpentine.Eramquase18horas.Recordou-sedequenão tomaraochá, mas estava agitada demais para sentir fome. Foi até KensingtonGardens e depois voltou, caminhando mais devagar, sentindo-seinfinitamentemelhorcomoar frescoeoexercício.Nãoera fácil seguiroconselhodeSirJamesenãopensarnospossíveisacontecimentosdaquelanoite.AoseaproximardeHydePark,atentaçãodevoltaraoSouthAudleyMansionstornou-sequaseirresistível.
Acaboudecidindoquenãohaveriamalnenhumemsimplesmentedaruma olhada no prédio. Talvez pudesse depois se resignar a esperar compaciênciaatéas22horas.
South Audley Mansions continuava a parecer exatamente o mesmo.Tuppencenãosabiaexatamenteoqueesperavaencontrar,masavistadoprédio,comseustijolosvermelhos,nãocontribuiuemnadaparaatenuara
inquietação crescente e totalmente irracional que a invadira. Já estavacomeçandoaseafastarquandoouviuumassobioestridenteeavistouofielAlbertcorrendoaoseuencontro.
Tuppence franziu a testa. Não estava combinado chamar qualqueratenção para a sua presença ali. Mas talvez fosse algo importante, poisAlbertestavavisivelmentealterado.
–Ei,elaestáindoembora!–Elaquem?–ARitaLigeira!ASra.Vandemeyer!Estáfazendoasmalaseacabade
mepedirparaprovidenciarumtáxi!–Oquê?–gritouTuppence,agarrandoobraçodele.–Éverdade!Imagineiquetalvezaindanãosoubesse!– Albert, você é mesmo incrível! Se não fosse por você, talvez
tivéssemosperdidoapistadela!Albertcoroudeprazerdiantedoelogio.–Nãohátempoaperder–disseTuppence,atravessandoarua.–Tenho
que detê-la! Preciso impedi-la de partir a qualquer custo, até que... Háalgumtelefonenaportaria,Albert?
Ogarotosacudiuacabeça.– Quase todos os apartamentos têm telefone. Mas há um telefone
públiconaesquina.–PoisváatéláimediatamenteeligueparaoRitzHotel.Peçaparafalar
comoSr.HersheimmeredigaaeleparairbuscarSirJamesevirparacá,pois a Sra. Vandemeyer está tentando escapar. Se não encontrar o Sr.Hersheimmer,liguediretamenteparaSirJamesPeelEdgerton.Encontraráonúmerodotelefonedelenocatálogo.Conteaeleoqueestáacontecendo.Nãovaiesquecerosnomes?
Albertrepetiu-os.–Podeconfiaremmim,moça.Farei tudodireitinho.Eoquevai fazer
agora?Nãoachaqueéperigososubirparafalarcomela?–Nãosepreocupecomigo,Albert.Trateapenasdedarostelefonemas
queestoumandando,omaisdepressapossível.Respirandofundo,Tuppenceentrounoprédioesubiuquasecorrendo
atéoapartamento20.NãosabiacomoiriadeteraSra.Vandemeyeratéachegadadosdoishomens.Masprecisavafazerisso...esozinha...deumjeitooudeoutro.Oqueteriaprovocadoaquelapartidaprecipitada?SeráqueaSra.Vandemeyerdesconfiavadela?
Especulações eram inúteis. Tuppence apertou com firmeza acampainha.Poderiadescobriralgumacoisacomacozinheira.
Ninguém veio atender. Tuppence apertou novamente a campainha,mantendoodedonobotãopormaisalgumtempo.FinalmenteouviupassosládentroeummomentodepoisaprópriaSra.Vandemeyerabriuaporta.FranziuassobrancelhasaoverTuppence.
–Oqueveiofazeraqui?– Senti uma dor de dente, senhora. Achei melhor voltar para casa e
descansar.ASra.Vandemeyernãodissenada.RecuouedeixouTuppenceentrar
nosaguão.Sódepoiséquevoltouafalar,dizendofriamente:–Éumatremendainfelicidadesua.Émelhorirdiretoparaacama.–Possoficarnacozinha,senhora.Pedireiàcozinheira...– A cozinheira não está – interrompeu a Sra. Vandemeyer, um tanto
rispidamente.–Euamandeisair.Comoestávendo,serámuitomelhorvocêirparaacama.
Derepente,Tuppencesentiumedo.HaviaumtomestranhonavozdaSra. Vandemeyer que não a agradava. Além disso, ela estava lentamenteempurrando-aparaocorredor.Tuppencevirou-se,acuada.
–Nãoestouquerendo...Abruptamente, Tuppence sentiu um aro de aço frio encostar em sua
têmpora.EaSra.Vandemeyerdisse,comumavozfriaeameaçadora:–Suaidiota!Pensaporacasoquejánãoseidetudo?Não,nãoprecisa
responder!Massetentarresistirougritareuamatareicomosefosseumcãoraivoso!
OaçofriofoicomprimidoaindamaiscontraatêmporadeTuppence.ASra.Vandemeyeracrescentou:
–Eagorasigaemfrente...atéomeuquarto.Daquiapouco,depoisquetivermos acertado as contas, poderá ir para a cama, como eu haviaordenado inicialmente. E vai dormir... issomesmo,minha pequena espiã,vaidormiremuitobem!
Havia uma suavidade hedionda naquelas últimas palavras queabsolutamentenãoagradouaTuppence.Mas,naquelemomento,nadamaispodiafazeralémdeseguirparaoquartodaSra.Vandemeyer.Apistolanãose afastou de sua cabeça por um momento sequer. O quarto estava namaiorconfusão,comroupasespalhadaspor todaparte.Nomeiodochão,haviaumamalaeumacaixadechapéus,cheiaspelametade.
Tuppenceconseguiucontrolar-se,comgrandeesforço.Avoztremiaumpouco,maseladissebravamente:
–Parecomisso!Sabeperfeitamentequenãopodeatiraremmim,poistodomundonoprédio iriaouvir emuitagenteviria correndoparavero
queteriaacontecido.– Estou disposta a correr esse risco – respondeu a Sra. Vandemeyer,
comumtom jovial. –Mas fique tranqüilaquenada lheacontecerá,desdequenãogriteporsocorro...etenhocertezadequeissonãovaiacontecer.Éumagarotamuitoesperta.Conseguiumeenganardireitinho.Confessoquenão desconfiei de você. Tenho certeza de que agora é capaz decompreender que eu estou por cima e você está por baixo. Sente-se nacama.Ponhaasmãossobreacabeça.Esetemamoràvida,nãosemovaemhipótesealguma!
Tuppenceobedeceu,passivamente.Obomsensolhediziaquenãotinhaoutra coisa a fazer alémde se conformar coma situação. Se gritasseporsocorro, não havia muita possibilidade de alguém ouvi-la. E era bempossívelqueaSra.Vandemeyercumprisseapromessadelhedarumtiro.Assim, cada minuto que ganhasse seria extremamente valioso. A Sra.Vandemeyer largou o revólver em cima do lavatório, ao alcance damão.Sempre vigiando Tuppence atentamente, pegou um vidro que estava emcima do mármore e despejou uma parte do conteúdo num copo,completando-oemseguidacomágua.
–Oqueéisso?–perguntouTuppencebruscamente.–Algoqueafarádormirprofundamente.Tuppenceempalideceuesussurrou:–Vaimeenvenenar?–Talvez–respondeuaSra.Vandemeyer,sorrindodeformaagradável.–Poisnãovoubeber–afirmouTuppence,comfirmeza.–Prefirolevar
umtiro.Pelomenoshaveráalgumbarulhoealguémpoderáouvir.Nãovoumedeixarmatarcomoumcordeirinho.
ASra.Vandemeyerbateuopé.–Não seja idiota!Achamesmoquevou cometerumassassinatopara
pôrtodaapolícianomeuencalço?Setivesseummínimodebomsenso,játeria compreendidoqueo envenenamento é algoque absolutamentenãomeconvém.Issoéapenasumremédioparadormir,maisnada.Vaiacordaramanhãdemanhã.Simplesmentenãoqueromedaraotrabalhodeamarrá-la e amordaçá-la. É a alternativa... e posso garantir que não vai gostar!Possosermuitorude,sepreferirassim.Portanto,bebalogoissocomoumaboamoçaenãovaisearrepender.
Tuppence acreditou nela. O argumento que apresentara pareciaverdadeiro. Era um método simples e eficaz de tirá-la do caminho poralgum tempo. Não obstante, não lhe agradava a idéia de ser docilmentedrogada sem fazer pelo menos um esforço para recuperar a liberdade.
Tinha certeza de que, se a Sra. Vandemeyer escapasse, não haveriamaisnenhumaoutrachancedeencontrarTommy.
Tuppencetinhaumprocessomentalextremamenterápido.Todasessasreflexõespassaramporsuamentequasequedeumasóvez.Descobriuumapequenachance,reduzidaeproblemática,masdecidiuarriscartudoemumsupremoesforço.
Einiciandoaexecuçãodeseuplano,arremessou-sesubitamenteparaafrente e caiu de joelhos diante da Sra. Vandemeyer, agarrando-lhe a saiafreneticamente.
–Nãoacredito!–gemeuela.–Seiqueéveneno...tenhocertezadequeéveneno!Oh,nãomeobrigueabeber!PeloamordeDeus,nãomeobrigueatomarisso!
A voz de Tuppence estava estridente de pavor. A Sra. Vandemeyer,segurando o copo, olhou para baixo com a boca contraída, desdenhandoaquelecolapsorepentino.
– Levante-se, sua idiota! Não fique se lamuriando desse jeito! Nãoconsigoimaginarondefoiencontrarcoragempararepresentaropapelqueassumiu!
Elabateuoutravezcomopéearrematou:–Vamos,levante-selogodeumavez!Mas Tuppence continuou agarrada à saia dela, a se lamuriar,
entremeando os soluços com apelos balbuciados de misericórdia. Cadaminutoqueconseguiaganhareraumavantagem.Alémdisso,àmedidaqueselamuriava,iaseaproximandoimperceptivelmentedeseuobjetivo.
A Sra. Vandemeyer soltou uma exclamação impaciente e puxouTuppence,obrigando-aaficardejoelhos.
–Tomeissologodeumavez!Ela comprimiu o copo contra os lábios de Tuppence, que deixou
escaparumúltimogemidodedesespero.–Juraquenãovaimefazermal?–Claroquenão!Deixedeseridiota!–Jura?–Estábem,estábem!Juroquenãovailhefazermalnenhum!Tuppencelevantouamãoesquerda,trêmula,nadireçãodocopo–Entãoeuvoutomar...Ela abriu a boca, docilmente. A Sra. Vandemeyer deixou escapar um
suspiro de alívio, relaxando a vigilância por um momento. Subitamente,Tuppencedeuumapancadanocopodebaixoparacima,comtodaforçadeque dispunha. O líquido se derramou sobre o rosto da Sra. Vandemeyer.
Aproveitandoaconfusãomomentânea,Tuppenceestendeurapidamenteamão direita e pegou o revólver, que estava na beira do lavatório. Nomomentoseguinte,elatinhapuladoparatráseorevólverapontavaparaocoraçãodaSra.Vandemeyer.Amãoestavamilagrosamentefirme.
Nomomentodevitória,Tuppencetraiuumsentimentodetriunfonadaesportivo:
–Queméqueestáagoraporcimaequemestáporbaixo?O rosto da Sra. Vandemeyer estava convulsionadopela raiva. Por um
instante,Tuppencechegouapensarqueela iriaatacá-la,oqueadeixarianum dilema extremamente desagradável, já que não tinha a menorintenção de puxar o gatilho. Contudo, com um tremendo esforço, a Sra.Vandemeyer conseguiu se controlar e um último sorriso diabólico seestampouemseurosto.
–Nofimdascontas,estouvendoquenãoérealmenteumaidiota!Saiu-semuitobem,garota.Massaibaquevaipagarporisso...evaipagarmuitocaro!Tenhoboamemória.
–Estousurpresaquesetenhadeixadoenganarcomtantafacilidade–afirmouTuppence,demaneiradesdenhosa.–Achoumesmoqueeu fossedotipodepessoaquerastejariaaseuspésimplorandomisericórdia?
–Talvezaindavenhaafazerissoalgumdia...Amaldadeque a outra irradiavaprovocouum calafrio emTuppence.
Maselanãoiasedeixardominarporisso,edissedeformaagradável:–Achomelhornossentarmos.Nossaatitudenomomentoéumtanto
melodramática.Não,na camanão.Puxeumacadeirapara juntodamesa.Isso mesmo. E agora vou me sentar à sua frente, com o revólver emposição... para evitar qualquer possibilidade de acidente. Esplêndido!Agora,jápodemosconversar.
–Conversarsobreoquê?–indagouaSra.Vandemeyer,rispidamente.Tuppence fitou-a em silêncio, pensativa, por um minuto. Estava se
recordandodeváriascoisas,entreasquaisaspalavrasdeBoris:–Seriacapazdenosvender!EarespostadaSra.Vandemeyer:–Opreçoteriaqueserfabuloso.Éverdadequearesposta foradadaemtom jocoso,masseráquenão
teria um fundo de verdade? Há muito tempo atrás, Whittington nãoperguntara:“Quemandoudandocomalínguanosdentes?Rita?”
Será que Rita Vandemeyer era o ponto fraco na blindagem do Sr.Brown?
Sem desviar os olhos do rosto da Sra. Vandemeyer, Tuppence
respondeucalmamente:–Podemosconversarsobredinheiro...ASra.Vandemeyerestremeceu.Eraevidentequenãoesperavaportal
resposta.–Oqueestáquerendodizercomisso?–Acaboudedizerquetinhaboamemória.Masacontecequeumaboa
memória não é tão útil quanto uma carteira recheada. Eudiria quepodedar vazão ao seuódio imaginando todas as coisas terríveis quepretendefazer comigo.Mas seráque isso seriaprático?Pelo contrário, creioqueavingançaé extremamente insatisfatória.Éoque todomundo semprediz.Mas dinheiro... Ora, não há nada de insatisfatório no dinheiro, não émesmo?
– Pensamesmo que sou umamulher capaz de trairmeus amigos? –perguntouaSra.Vandemeyer,deformadesdenhosa.
–Penso,sim...seopreçoforsuficiente.– E acha que eu me venderia por umas míseras 100 libras ou algo
assim?–Claroquenão.Euestavapensandoemmais.Digamos...100millibras!No último instante, o espírito econômico de Tuppence prevaleceu,
impedindo-ademencionaromilhãodedólaresoferecidoporJulius.ASra.Vandemeyerficousubitamentevermelhaebalbuciou:
–Como?Seusdedosbrincavamdemaneiranervosacomobrochequetinhana
blusa.Nessemomento,Tuppencecompreendeuqueopeixeestavafisgado.Pela primeira vez, sentiu vergonha e horror de seu próprio espíritomercenário.Dava-lheasensaçãodequeera igualàmulhersentadaàsuafrente.
–Cemmillibras–repetiuTuppence.A luz desapareceu dos olhos da Sra. Vandemeyer. Ela se recostou na
cadeiraedisse:–Vocênãotemtantodinheiro.–Nãotenhomesmo.Masconheçoalguémquetem.–Equemé?–Umamigomeu.– Deve ser um milionário – comentou a Sra. Vandemeyer, ainda
incrédula.– E é mesmo. Ele é norte-americano e lhe pagará sem a menor
hesitação.Podetercertezadequeapropostaéverdadeira.ASra.Vandemeyervoltouaseacomodarnacadeiraedisselentamente:
–Estouinclinadaaacreditar...Houve um longo silêncio, que foi por fim quebrado pela Sra.
Vandemeyer:–Oqueseuamigoestáquerendosaber?Tuppence teve um momento de hesitação, mas acabou chegando à
conclusãodequeodinheiroeradeJuliuseosinteressesdeledeveriamviremprimeirolugar.
–ElequersaberondeestáJaneFinn.ASra.Vandemeyernãodemonstrouamenorsurpresa.–Nãoseicomcertezaondeelaestánestemomento.–Maspodedescobrir?–Claroqueposso!Nãohaveriaamenordificuldade.Comavoztremendoumpouco,Tuppenceacrescentou:– Há também o problema de um amigo meu. Receio que algo tenha
acontecidoaele,nasmãosdeseuamigoBoris.–Comoéonomedele?–TommyBeresford.–Nuncaouvifalar.MaspossoperguntaraBoris.Elemedirátudooque
souber.–Obrigada.Tuppencesesentiacadavezmaisanimadae issoimpeliu-aaesforços
aindamaisaudaciosos.–Hámaisumacoisa.–Eoqueé?Tuppenceinclinou-separaafrenteebaixouavoz:–QueméoSr.Brown?Seusolhosatentosperceberamosúbitoempalidecerdobonitorostoda
Sra. Vandemeyer, que fez um tremendo esforço para se controlar epermanecercalma.Masatentativanãopassoudeumaparódia.
Eladeudeombros.–Nãodevesabermuitoanossorespeito,senãosabequeninguémtem
amenoridéiadequeméoSr.Brown...–Masvocêsabe–afirmouTuppence,calmamente.Acorabandonounovamenteorostodaoutra.–Porquepensaassim?–Não sei – respondeu Tuppence, com toda sinceridade. –Mas tenho
certezadequesabe.ASra.Vandemeyerpassouumlongotempoolhandofixamenteparaa
frente.
–Temrazão,euseiquemeleé.Euerabonita,sabe...muitobonita...–Aindaé–comentouTuppence,comumtomdeadmiraçãogenuína.ASra.Vandemeyer sacudiua cabeça.Haviaagoraumbrilhoestranho
nosolhosazuis.Avoz,quandofalou,soavaextremamenteperigosa:–Nãosoumaisbonitaosuficiente.E,ultimamente,devezemquando
sintomedo...Éperigososaberdemais!Elaseinclinousubitamentesobreamesa.– Jure que meu nome nunca será mencionado, que ninguém jamais
saberá.– Está bem, eu juro. E assim que ele for preso, você estará fora de
perigo.UmaexpressãoaterrorizadaseestampounorostodaSra.Vandemeyer.– Será mesmo? Será que algum dia poderei me sentir totalmente
segura?ElaagarroubruscamenteobraçodeTuppence.–Temcertezadodinheiro?–Claroquetenho.–Quandopodereirecebê-lo?Nãopodehavernenhumademora.– Meu amigo estará aqui dentro de mais alguns minutos. Talvez ele
tenha que passar alguns cabogramas ou algo assim. Mas não haveráqualquerdemoramaior,poiseleédotipoquegostaderesolvertudocomrapidez.
ASra.Vandemeyerassumiuumaexpressãodecidida.–Entãoestácombinado.Éumasomaalta.E,alémdisso...–elafezuma
pausa, um sorriso estranho contraindo seus lábios. – ...jamais se devedesprezarumamulhercomoeu!
Elacontinuouasorrirpormaisumminuto,osdedostamborilandodelevesobreamesa.Subitamente,estremeceueempalideceu.
–Oquefoiisso?–Nãoouvinada.ASra.Vandemeyerolhouaoredor,apavorada.–Sealguémestiverouvindo...–Nãodigabobagem.Quempoderiaestaraqui?– Até as paredes têm ouvidos. Estou realmente apavorada. Você não
temidéiadecomoeleé!–Pensenas100millibras–lembrouTuppencesuavemente.ASra.Vandemeyerpassoualínguapeloslábiosressecadoserepetiu:–Nãofazidéiadecomoeleé...masvoucontarlogo.Eleé...Ai!Comumgritode terror,elase levantoudeumpulo.Amãoestendida
apontava por cima da cabeça de Tuppence. Um instante depois, a Sra.Vandemeyerdesabounochão,desmaiada.
Tuppencesevirouparaveroqueadeixaratãoassustada.E avistou, parados na porta, Sir James Pell Edgerton e Julius
Hersheimmer.
13Avigília
SirJamesavançourapidamenteeinclinou-sesobreamulhercaída.– É o coração. Ela levou um tremendo choque ao nos ver. Tragam
conhaque...edepressaouelanosescaparáporentreosdedos.Juliuscorreuparaolavatório.–Aínão!–alertouTuppence.–Oconhaqueestánoarmáriodasalade
jantar.Éasegundaportadocorredor.SirJameseTuppencelevantaramaSra.Vandemeyerelevaram-napara
acama.Molharamseurosto,semqualquerresultado.Oadvogadosentiuopulsodelaemurmurou:
–O pulso estámuito fraco. Gostaria que o rapaz voltasse logo comoconhaque.
Foi nessemomentoque Julius retornou aoquarto, trazendoum copocomconhaqueatéametade.Entregou-oaSir James.EnquantoTuppencelevantava a cabeça da Sra. Vandemeyer, o advogado tentou despejar umpoucodeconhaqueentreoslábiosfechados.Amulherporfimentreabriuoslábios.Tuppencepegouocopoeolevouaoslábiosdela,dizendo:
–Bebaisto.ASra.Vandemeyerobedeceu.Oconhaquedevolveuumpoucodecorao
rosto pálido e reanimou-a demaneiramaravilhosa. Ela tentou se sentar,mascaiudecostasnacamanomesmoinstante,levandoamãoaopeito.
–Éomeucoração...–sussurrou.–Nãopossofalar...ASra.Vandemeyerfechouosolhos.SirJamescontinuouasentir-lheo
pulsopormaisumminutoedepoissacudiuacabeça,comentando:–Operigojápassou.Ostrêsseafastaramdacamaeforamconversaremumcanto,emvoz
baixa.Todosestavamconscientesdeumacertasensaçãodeanticlímax.Eraevidenteque,nomomento,nãohaviaamenorpossibilidadedeinterrogaraSra. Vandemeyer. Por enquanto, sentiam-se frustrados e não havia nadaquepudessemfazer.
Tuppence contou como a Sra. Vandemeyer se declarara disposta arevelar a identidade do Sr. Brown e como concordara em descobrir erevelaroparadeirodeJaneFinn.Juliusnãoconteveseuentusiasmo:
–Esplêndido,Srta.Tuppence!Tenhocertezadequeadamavaiacharas100millibrastãoapetitosasamanhãdemanhãcomoachouestanoite.Nãoprecisamosnospreocupar.Quandotocarodinheirovivo,vaicontartudo!
Havia bastante bom senso no comentário, e Tuppence se sentiuconfortada.Pensativo,SirJamesdisse:
– Tudo isso é verdade. Mesmo assim, acho que seria melhor se nãotivéssemos interrompido no momento exato em que ela ia começar acontartudo.Agora,sónosrestaesperaratéamanhãdemanhã.
Ele olhoupara o corpo inerte estendidona cama.A Sra. Vandemeyerestavatotalmenteimóvel,deolhosfechados.SirJamessacudiuacabeça.
–Ora,nãohámotivoparadesânimo!–exclamouTuppence,procurandoanimaratodos.–Afinal,amanhãdemanhãsaberemosdetudo.Sóachoquenãodevemossairdesteapartamento.
–Nãopoderíamosdeixardeguardaomeninoqueaajudou?–Albert?Nãoépossível.Seelavoltarasiedecidirescapar,Albertnão
conseguiráimpedi-la.–Elanãovaiquererescapareperderosdólaresqueestãoaoalcance
desuasmãos.–Nãoestejatãocertodisso.Elapareciasentirpavordo“Sr.Brown”.–Émesmo?Estavaapavoradadeverdade?– Estava. Chegou a olhar ao redor, assustada, murmurando que até
mesmoasparedestinhamouvidos.– Talvez ela estivesse se referindo a um ditafone – comentou Julius,
interessado.– A Srta. Tuppence está certa – interveio Sir James. – Não devemos
deixar este apartamento... Nem que seja apenas pela segurança da Sra.Vandemeyer.
Juliusfitou-ocomumaexpressãoespantada:–Achaqueelepoderiatentarliquidá-la?Mascomoconseguiriasabero
queaconteceuestanoite?–Estáesquecendodasuaprópriasugestãodeumditafone–respondeu
Sir James, secamente. – Estamos enfrentando um inimigo formidável. Se
tomarmostodocuidado,ébempossívelqueelevenhacairemnossasmãos.Mas não podemos negligenciar qualquer precaução. Temos umatestemunha importante e precisamos protegê-la de qualquer maneira.SugiroqueaSrta.Tuppencevásedeitarequenósdois,Dr.Hersheimmer,nosrevezemosnavigília.
Tuppence já iaprotestar.Mas,por acaso, olhounadireçãoda camaepercebeu que a Sra. Vandemeyer estava com os olhos entreabertos, umaexpressãodemedo emaldadeno rosto. Tuppencemudoude idéia e nãodissenada.
Perguntou-seporummomentoseodesmaioeoataquedocoraçãonãoteriampassado de uma gigantesca encenação.Mas, recordando a palidezimpressionante, concluiu que essa suposição não merecia crédito. EenquantoTuppenceolhava,aexpressãodesapareceucomoquenumpassedemagiaeaSra.Vandemeyervoltouaficarinerteeimóvelcomoantes.Ajovemimaginouquetalveztivessesonhado.Masdecidiuqueficariaalerta.
–Achoqueestánahoradesairmosdoquarto–ponderouJulius.Osoutrosconcordaramcomasugestão.SirJamessentiunovamenteo
pulsodaSra.VandemeyeredisseemvozbaixaparaTuppence:– Já está normal. Tenho certeza de que ela estará em perfeitas
condiçõesdepoisdeumanoitederepouso.Tuppence ainda hesitou ao lado da cama. Ficara bastante
impressionadacomaintensidadedaexpressãoquesurpreenderanorostodaSra.Vandemeyer.EfoinessemomentoqueaSra.Vandemeyervoltouaentreabrirosolhos.Pareciaestarfazendoumtremendoesforçoparafalar.Tuppenceinclinou-sesobreela.
–Não...vá...Elaaindamurmuroualgumacoisaquepareciaser“comsono”,masnão
conseguiucontinuar.Passoualgumtempocomosolhosfechadosedepoistentounovamente.
Tuppenceseinclinoumaisainda.Avozeraquaseinaudível.–OSr....Brown...Avozparou.Osolhosentreabertosaindatransmitiamumamensagem
deagonia.Emumimpulsosúbito,Tuppencedisse:–Passareianoiteinteiranoapartamento.Houveumrápidobrilhodealívio,antesqueaspálpebrassefechassem
outravez.Aparentemente,aSra.Vandemeyerestavadormindo.Massuaspalavras haviam provocado uma nova inquietação em Tuppence. O queseráqueelaquisdizer comaquele sussurrado “Sr.Brown”?Tuppence sepegou olhando para trás, por cima do ombro. O imenso guarda-roupa
assumiusubitamenteumaaparênciasinistra.Haviaespaçosuficienteparaumhomemseesconderalidentro...Sentindo-seumpoucoenvergonhada,elafoiatéoarmárioeabriuaporta.Nãohavianinguém,éclaro.Inclinou-seeolhoudebaixodacama.Nãohaviaqualqueroutroesconderijopossível.
Tuppencedeudeombros,comseujeitocaracterístico.Eraumabsurdo,estava se deixando dominar pelos nervos. Saiu do quarto, caminhandolentamente. Julius e Sir James estavam falando em voz baixa. Sir Jamesvirou-separaelaedisse:
–Fecheaportapor fora,Srta.Tuppence,porgentileza.Etireachave.Nãodevemosdeixarqualquerpossibilidadedealguémentrarnessequarto.
A gravidade de sua atitude deixou Tuppence impressionada. Ela sesentiumenosenvergonhadadeseu“ataquedenervos”.
– Ei, estamos nos esquecendo do garoto que ajudou Tuppence! –lembrou-seJuliussubitamente.–Achomelhoreudesceretratardeacalmá-lo.Ogarotoédosbons,Tuppence!
–Por falarnisso,comoconseguiramentrar?Esquecideperguntaratéagora.
–Albertmetelefonou.CorriparabuscarSirJameseviemosdiretoparacá.Ogarotoestavaànossaespera,bastantepreocupadocomoquepoderiateracontecidocomvocê.Tinhatentadoouvirdo ladodeforadaportadoapartamento, mas nada conseguira ouvir. Sugeriu que subíssemos noelevador movido a carvão em vez de tocarmos a campainha. Foi o quefizemos. Albert ainda está lá embaixo e a esta altura deve estar maisnervosodoquenunca.
Assimqueacaboudefalar,Juliuspartiuabruptamente.SirJamesvirou-separaTuppence:
– Conhece o apartamento melhor do que eu, Srta. Tuppence. Ondesugerequefiquemosdevigia?
Tuppencepensouporummomento.–Acho que oboudoir da Sra. Vandemeyer é o lugarmais confortável
paraficarmos.Foramparalá.SirJamesolhouaoredoreassentiuemaprovação.– Está ótimo. E agora, minha cara jovem, vá se deitar e durma um
pouco.Tuppencesacudiuacabeçadeformadecidida.– Eu não conseguiria dormir, Sir James. Passaria a noite inteira
sonhandocomoSr.Brown.–Masvaificarexausta.– Não, não vou ficar. E, de qualquermaneira, prefiro realmente ficar
acordada.SirJamesdesistiu.Julius voltou alguns minutos depois. Tranqüilizara Albert e
recompensara-o generosamente por seus serviços. Também tentoupersuadirTuppenceairsedeitar,masemvão.Aoverqueerainútil,dissedemaneiraincisiva:
–Maspelomenosdevecomeralgumacoisa.Ondeficaadespensa?Tuppence orientou-o. Julius voltou logo depois com uma torta fria e
trêspratos.Depois de comer vorazmente, Tuppence se sentiu propensa a repelir
suasapreensõesdemeiahoraantes.Opoderdodinheironãopodiafalhar.–Eagora,Srta.Tuppence–disseSirJames–,gostaríamosdeouvirsuas
aventuras.–Issomesmo–concordouJulius.Tuppence narrou suas aventuras com alguma complacência. Julius
interrompiao relatodevezemquandocomumaexclamaçãode “Bravo”!Sir James não disse nada até o fim da narrativa, limitando-se então acomentar,demaneiratranqüila:
–Agiumuitobem,Srta.Tuppence.OquedeixouTuppenceruborizadadeprazer.Juliusdisse:–Háumacoisaquenãoconsigoentender.Oqueateriafeitoperceber
queestavanahoradeescapar?–Nãotenhoamenoridéia–confessouTuppence.SirJamescoçouoqueixo,pensativo.–Oquartoestavanamaiordesordem. Isso levaacrerquea fuganão
erapremeditada.Dáaimpressãodequeelarecebeuumavisorepentinodealguémparapartirimediatamente.
–DevetersidodoSr.Brown–comentouJulius,zombeteiro.Oadvogadofitou-oemsilênciopormaisdeumminutoantesdedizer:–Porquenão?Nãoseesqueçadequeatévocêlevouapiornoencontro
quetevecomele.Juliusficouvermelhodeirritação.–FicofuriosoquandomerecordoquelheentregueiafotografiadeJane
comoumcordeirinho.Sealgumdiaeupuserdenovoasmãosnaquelafoto,garantoquenuncamaisvaimeescapar!
– Essa possibilidade parece extremamente remota – comentou oadvogado.
–Achoquetemrazão–admitiuJuliuscomtodafranqueza.–Alémdomais,estouatrásédaoriginal.Ondeachaqueelapodeestar,SirJames?
Oadvogadosacudiuacabeça.–Éimpossíveldizer.Mastenhoumaidéiadolugarondeelaesteve.–Temmesmo?Eondefoi?SirJamessorriu.– No lugar de suas aventuras noturnas, a casa de saúde em
Bournemouth.–Masissoéimpossível!Eumesmoperguntei.– Perguntou apenas,meu caro, se algumamoça com o nome de Jane
Finntinhasidointernadaali.Masseelesinternaramsuaprimalá,nãoháamenordúvidadequeofizeramcomumnomefalso.
– Mas é isso mesmo! – gritou Julius. – E eu que nem tinha pensadonisso!
–Eraoóbvio,meucaro.–Talvezomédicotambémestejaenvolvido–sugeriuTuppence.Juliussacudiuacabeça.–Não creio. Simpatizei com ele imediatamente. Estou quase certo de
queoDr.Halléumhomemhonesto.– Disse Dr. Hall? – indagou Sir James. – Estranho... realmente muito
estranho...–Oqueéestranho?–perguntouTuppence.–Encontrei-oestamanhã.Háanosqueoconheçoenosencontramosde
vezemquando.Eestamanhãnoscruzamosnarua.ElemedissequeestavanoMétropole.
SirJamesvirou-separaJuliuseindagou:–ODr.HalllhedissequeestavavindoparaLondres?Juliussacudiuacabeça.–Setivessemencionadoonomeestatarde–acrescentouSirJames–eu
teria sugerido que voltasse a procurá-lo para obter mais informações,levandoomeucartãocomoapresentação.
– Acho que sou um idiota – murmurou Julius, com uma humildadeinesperada.–Deviaterimaginadoqueelescertamenteiriamusarumnomefalso.
–Ecomopodiapensardireitoemqualquercoisadepoisdotomboquelevou daquela árvore? – interveio Tuppence. – Tenho certeza de quequalqueroutroteriamorrido.
–Mas acho que isso não temmais nenhuma importância – declarouJulius. – A Sra. Vandemeyer está em nossas mãos e isso é tudo o queprecisamos.
– Tem razão – concordou Tuppence, com uma curiosa falta de
segurançanavoz.O grupo ficou em silêncio. Pouco a pouco, a magia da noite os foi
dominando.Osmóveisestalavammisteriosamente,ascortinasfarfalhavamdeformaimperceptível.Derepente,Tuppencelevantou-sedesupetão.
– Tenho certeza de que o Sr. Brown está em algum lugar desteapartamento!Possosenti-lo!
–Mascomoissoseriapossível,Tuppence?Estaportadáparaosaguão.Ninguém poderia entrar pela porta da frente sem que víssemos eouvíssemos.
–Nãoseicomoépossível,masestousentindoapresençadeleaqui!Ela lançou um olhar suplicante para Sir James, que comentou
seriamente:–Comodevido respeito ao seupressentimento, Srta. Tuppence, e ao
meu também,diga-sedepassagem, creioqueéhumanamente impossívelquealguémmaisestejanesteapartamentosemonossoconhecimento.
Tuppence se sentiu um pouco tranqüilizada com tais palavras. Econfessou:
–Passaranoiteinteirasentadaaquideixaagenteumpouconervosa.– Tem razão – concordou Sir James. – Estamos como pessoas que
realizam uma sessão espírita. Talvez pudéssemos obter resultadosmaravilhosossehouvesseummédiumpresente.
–Acreditanoespiritismo?–indagouTuppence,arregalandoosolhos.Oadvogadodeudeombros.– Não resta amenor dúvida de que há alguma verdade nisso.Mas a
maioriadostestemunhosnãosobreviveriaaumdensointerrogatório.Ashorassearrastaram.Àprimeiraclaridadedamadrugada,SirJames
abriu as cortinas. Eles contemplaram um espetáculo a que poucoslondrinosassistem:alentaescaladadosolsobreacidadeadormecida.E,dealguma forma, com a presença do sol os temores e fantasias da noitepareciam agora um tanto absurdos. Tuppence reanimou-se rapidamente,voltandoàsuadisposiçãonormal.
–Hurra!–gritouela.–Vaiserumdiamaravilhoso.EvamosencontrarTommy.EJaneFinntambém.Tudovaidarcerto.PerguntareiaoSr.Cartersenãopodemefazerumadame!
Às 7 horas, Tuppence ofereceu-se para preparar um chá. Voltou comumabandejaondeestavamobuleequatroxícaras.
–Paraqueméaquartaxícara?–perguntouJulius.–Paranossaprisioneira,éclaro.Seráquepodemoschamá-laassim?–Levarumcháparaelapareceoanticlímaxparaosacontecimentosda
noitepassada–comentouJulius,pensativo.– Também acho – admitiu Tuppence. – Mas vamos lá. Talvez seja
melhorvocêsdoismeacompanharem,paraocasodelameatacaroualgoassim.Afinal,nãosabemoscomquedisposiçãoelairáacordar.
SirJameseJuliusacompanharam-naatéaporta.– Onde está a chave? Oh, tinha esquecido! Está comigo. Tuppence
enfiouachavenafechaduraegirou-a.Parouemseguidaemurmurou:–Eseelativerescapado?–Éabsolutamenteimpossível–tranqüilizou-aJulius.SirJamesnãodissenada.Tuppence respirou fundo, abriu a porta e entrou no quarto. Deixou
escaparumsuspirodealívioaoverificarqueaSra.Vandemeyercontinuavadeitadanacama.
–Bomdia–disseTuppencejovialmente.–Eulhetrouxeumchá.ASra.Vandemeyernãorespondeu.Tuppencepôsaxícaranamesinha
aoladodacamaefoiabrirasvenezianas.Aovirar-se,constatouqueaSra.Vandemeyer continuava deitada do mesmo jeito, sem ter feito qualquermovimento.Sentindoocoraçãosecontraircomummedosúbito,Tuppencecorreu para a cama. A mão que segurou estava fria como gelo... A Sra.Vandemeyerjamaisfalarianovamente...
Seugritoatraiuosoutros.NãofoiprecisomuitotempoparaconfirmarqueaSra.Vandemeyerestavamorta...equedeviatermorridoháalgumashoras.Eraevidentequemorreraduranteosono.
–Tantoazarassiméimpossível!–gritouJulius,desesperado.SirJamesestavamaiscalmo,emborahouvesseumbrilhoestranhoem
seusolhos.Limitou-seacomentar:–Talveznãotenhasidoumgolpedeazar...– Não está pensando... Mas isso é inteiramente impossível! Ninguém
poderiaterentradoaqui!–Não,nãopoderia.Mas...ElaestavaprestesatrairoSr.Brownemorre
inesperadamente.Seráquefoimesmoporacaso?–Mascomo...–Issomesmo...como!Éoqueprecisamosdescobrir.Eleficouparadoondeestavaporumlongotempo,emsilêncio,coçando
oqueixo.Depois,repetiu:–Éoqueprecisamosdescobrir...Tuppencesentiuque,sefosseoSr.Brown,nãogostariadeouvirotom
daquelaspoucaspalavras.OolhardeJuliussefixounajanela.
–Ajanelaestáaberta.Seráque...Tuppencesacudiuacabeça.–Avarandasóvaiatéoboudoir.Enóspassamosanoiteinteiralá.–Elepodiaterescapado...SirJamesinterrompeuJulius:–OsmétodosdoSr.Brownnuncasãotãopoucorefinadosassim.Agora,
temosquechamarummédico.Antes,porém, talvezdevêssemosverificarseháalgonestequartoquepossateralgumvalorparanós.
Apressadamente, os três revistaram o quarto. As cinzas na lareiraindicavamquea Sra.Vandemeyer andaraqueimandopapéispoucoantesde sua tentativade fuga.Masnada restavade importanteoupelomenosnão foi encontrado, nemno quarto nemnos outros aposentos, aos quaistambémestenderamabusca.
Subitamente,apontandoparaumcofreantiquado,embutidonaparede,Tuppencedisse:
–Láestá!Creioqueéparaasjóias,mastalvezencontremosalgomais.A chave estava na fechadura e Julius abriu rapidamente o cofre.
Demorouumpoucoarevistá-lo.–Encontroualgumacoisa?–indagouTuppence,impaciente.Houve uma longa pausa antes que Julius finalmente respondesse,
fechandoocofre:–Nãotemnada.Cinco minutos depois um jovem médico chegou ao apartamento,
convocado com toda urgência. Reconheceu Sir James e o tratou comextremadeferência.
– Foi um ataque cardíaco ou, possivelmente, uma dose excessiva dealgummedicamentoparadormir.
Omédicofarejouoareacrescentou:–Estousentindonoarumlevecheirodecloral...Tuppence lembrou-se do copo que derrubara. Uma idéia súbita fê-la
aproximar-se do lavatório. Descobriu o vidro do qual a Sra. Vandemeyerderramaraalgumasgotasnocopo.
Naquela ocasião, o vidro estava três-quartos cheio. E agora... estavavazio.
14
Umaconsulta
TuppenceficousurpresaedesconcertadacomafacilidadeesimplicidadecomquetudofoiprovidenciadograçasàhabilidadedeSirJames.Ojovemmédico aceitou a teoria de que a Sra. Vandemeyer tomara uma doseexcessiva de cloral. Ele duvidava que houvesse necessidade de uminquérito.Mas,sefosseexigido,informariaimediatamenteaSirJames.ElesabiaqueaSra.Vandemeyerestavaprestesaviajarparaoexteriorequeascriadas já tinham sido dispensadas? Sir James e seus jovens amigosestavam fazendo uma visita de despedida quando a Sra. Vandemeyersubitamentepassaramal.Nãoquerendodeixá-lasozinha,haviampassadoa noite no apartamento. Será que conheciam algum parente? Não, nãoconheciam, mas Sir James encaminhou-o ao procurador da Sra.Vandemeyer.
Poucodepois,apareceuumaenfermeiraparacuidardetudoeos trêsdeixaramomalfadadoprédio.
– O que vamos fazer agora? – indagou Julius, com um gesto dedesespero.–Achoqueestamosinteiramenteperdidos!
SirJamescoçouoqueixo,pensativo.–Háaindaumapossibilidade.QuemsabeoDr.Hallnãoécapazdenos
daralgumainformaçãoimportante?–Issomesmo!Eutinhaatéesquecido!–Apossibilidadenãoédasmaiores,masnemporissodevemosignorá-
la. Creio que já lhes disse que ele está no Métropole. Sugiro que oprocuremos o mais depressa possível. Que tal tomarmos um banho ecomermosalgumacoisaedepoisseguirmosdiretoparalá?
CombinaramqueTuppenceeJuliusvoltariamparaoRitzedepoisiriambuscarSirJames.Oprogramafoicumpridoàrisca.ChegaramaoMétropolepouco depois das 11 horas. Perguntaram pelo Dr. Hall e um dosempregadosfoichamá-lo.Omédicoapareceupoucosminutosdepois.
– Pode nos dar alguns minutos, Dr. Hall? – solicitou Sir James,cordialmente. – Permita que o apresente à Srta. Cowley. Creio que jáconheceoSr.Hersheimmer.
Uma expressão zombeteira surgiu nos olhos do Dr. Hall ao apertar amãodeJulius.
–Orasenãoéomeujovemamigodoepisódiodaárvore!Otornozelojáestábom?
–Estáinteiramentecurado,doutor,graçasaoseueficientetratamento.–Ejáconseguiuresolveraqueleproblemadecoração?Ha!Ha!Ha!–Aindaestouprocurandoresolverdoutor.SirJamesinterveio:–Podemosterumaconversaemparticular,Dr.Hall?– Mas claro! Creio que há uma sala aqui perto onde não seremos
incomodados.Eleseguiunafrente.Sentaram-setodosaochegaremàsalaeoDr.Hall
fitouSirJamescomumaexpressãoinquisitiva.– Dr. Hall, estou bastante ansioso em encontrar uma determinada
jovem, a fim de obter um depoimento dela. Tenho razões para acreditarqueelajáesteveinternadaemsuacasadesaúdeemBournemouth.Estareitransgredindoaéticaprofissionalseinterrogá-loarespeitodisso?
–Éumdepoimentolegal?SirJameshesitouporummomentoantesderesponder:–É,sim.– Nesse caso, estou pronto a lhe fornecer qualquer informação que
esteja ao meu alcance. Qual é o nome da moça? O Sr. Hersheimmerperguntou-meesebemestoulembrado...
–Onomenãotemamenorimportância–interrompeu-oSirJames,deformaabrupta.–Équasecertoqueelatenhasidointernadasobumnomefalso. Mas poderia me informar se por acaso conhece uma certa Sra.Vandemeyer?
– A Sra. Vandemeyer da South Audley Mansions nº 20? Conheço-asuperficialmente.
–Jásabeoqueaconteceu?–Comoassim?–JásabequeaSra.Vandemeyermorreu?–SantoDeus!Eunãotinhaamenoridéia!Quandofoiqueelamorreu?–Elatomouumadoseexcessivadecloralontemànoite.–Deliberadamente?–Creioquefoiacidental.Masnãopossodizê-locomcerteza.Sejacomo
for,elafoiencontradamortaestamanhã.–Que coisamais triste! Era umamulher extraordinariamente bonita.
Presumoqueeraamigodela,jáqueestáapardetodososdetalhes.– Estou a par dos detalhes porque... porque fui eu que a encontrei
morta.– Deve ter sido um choque e tanto! – murmurou o médico,
estremecendo.
–Foimesmo–disseSirJames,coçandooqueixo,pensativo.–Éumanotíciamuitotriste.Masqualéarelaçãoquepodehaverentre
a morte da Sra. Vandemeyer e o objetivo da investigação que estárealizando?
–Arelaçãoémuitosimples,Dr.Hall.ASra.Vandemeyernãointernouemsua casade saúdeumaparente ainda jovemque estava aos cuidadosdela?
Juliusinclinou-separaafrente,ansioso.Opequenomédicorespondeucalmamente:
–Issodefatoaconteceu.–Equaleraonome...?– Janet Vandemeyer. Fui informado de que era a sobrinha da Sra.
Vandemeyer.–Equandoelafoiinternada?–Senãomeengano,emjunhooujulhode1915.–Eraumcasodedoençamental?– Ela é perfeitamente sã, se é isso o que está querendo saber. A Sra.
Vandemeyer informou-me que a moça estava em sua companhia noLusitania quando esse malfadado navio foi torpedeado, sofrendo umterrívelabaloemconseqüênciadisso.
–Seráqueestamosnapistacerta?–indagouSirJames,olhandoparaosdoisjovens.
–Comoeudisseantes,nãopassodeumidiota!–exclamouJulius.ODr.Hallfitouostrêscomumaexpressãodecuriosidade.–Falouqueprecisavadessamoçaparaumdepoimentolegal,SirJames.
Eseelanãoestiveremcondiçõesdeprestá-lo?–Comoassim?Acaboudedizerqueelaéperfeitamentesã.– E é realmente. Mas se quiser um depoimento dela a respeito de
qualqueracontecimentoanteriora7demaiode1915,amoçainfelizmentenadapoderádizer.
Todos ficaramespantados.Opequenomédicoassentiueacrescentou,emtomtriste:
– É uma pena, sobretudo porque o assunto deve ser importante, SirJames.Maselanadapoderádizer.
–Masporque,doutor?Porquê?Omédico desviou o olhar benevolente para o joveme ansiosonorte-
americano.– Porque Janet Vandemeyer está sofrendo de completa perda de
memória.
–Oquê?–Éissomesmo.Umcasointeressante...deverasinteressante.Éverdade
que não é tão raro assim, comopodempensar.Há diversos outros casosparecidosnahistóriamédica.Sejacomofor,éoprimeirodessetiposobosmeuscuidadospessoais.Edevoadmitirqueachei-omuitointeressante.
Havia algo um tanto vampiresco na satisfação do homenzinho. SirJamesdisse,lentamente:
–Eelanãoselembradenada...–Exatamente.Nãorecordacoisaalgumaanteriora7demaiode1915.
Apartirdessadata,amemóriadelaétãoboaquantoasuaouaminha.–Equaléarecordaçãomaisantigadela?– É a de ter desembarcado com os outros sobreviventes. Tudo antes
está em branco. Ela não sabia o próprio nome, de onde viera ou ondeestava.Nãoconseguianemmesmofalarapróprialíngua.
–Masissonãoéestranhodemais?–indagouJulius.–Não,meucarosenhor.Aocontrário,éumareaçãonormal,tendoem
vistaascircunstâncias.Umabaloseverosempreafetaosistemanervoso.Aperdadememóriaésemprepossívelequaseque invariavelmenteocorredemaneira parecida. Sugeri a consulta a umespecialista deParis que sededicouaoestudodessescasos.MasaSra.Vandemeyerobjetou,temendoapublicidade.
–Nãoeradifícilpreverqueelaassumiriaessaposição–comentouSirJames,sombriamente.
–Aceiteiaposição.Éinevitávelumacertanotoriedadeemcasosdessetipo.E amoça era aindamuito jovem,devia ter19 anos.Achei que serialamentável se a enfermidade dela fosse muito comentada. Isso poderiainclusiveprejudicarsuaspossibilidadesderecuperação.Alémdomais,nãoexistequalquer tratamentoespecíficopara casosassim.É realmenteumaquestãodetempo.
–Umaquestãodetempo?–Issomesmo.Maiscedooumaistarde,amemóriaacabavoltando,tão
subitamente quanto desapareceu. E é bem provável que amoça esqueçainteiramenteoperíododecorridodesdequeperdeuamemória,retomandoa vida onde a interrompeu. Ou seja, por ocasião do afundamento doLusitania.
–Equandoprevêqueissoiráacontecer?ODr.Halldeudeombros.–Eisalgoquenãoseidizer.Àsvezeséumaquestãodemeses,mashá
casosemqueaperdadememóriaseprolongouporvinteanos.Umoutro
choquepodeprecipitarosacontecimentos.Umchoquedevolveoqueoutrotirou.
–Outrochoque?–murmurouJulius,pensativo.–Exatamente.HáumcasonoColorado...E a voz do pequenomédico foi se entusiasmando enquanto discorria
sobreoassunto.Julius parecia não estar escutando. Mergulhara em seus próprios
pensamentoseestavaderostofranzido.Subitamente,eleemergiudesuasmeditações,desferindoumgolpeviolentonamesa,comopunhocerrado.Todososoutrostiveramumsobressalto,omédicomaisqueosoutros.
–Jáseioquefazer!Gostariadesabersuaopiniãomédicasobreoplanoqueimaginei,doutor.SeJanecruzassenovamenteoAtlântico,seamesmacoisaacontecesse,osubmarino,onaviotorpedeado,osbotesetudomais,seráqueissopoderiafazercomquerecuperasseamemória?Nãoseriaumchoqueviolentoobastanteparaoseuegosubconsciente,ouqualquerquesejaonome,voltarafuncionardireito?
– É uma especulação das mais interessantes, Sr. Hersheimmer. Naminha opinião pessoal, daria certo. Infelizmente, não há a menorpossibilidade de as mesmas circunstâncias se repetirem como estásugerindo.
–Talveznãoemdecorrênciadecausasnaturais.Masestousugerindoumaencenação.
–Comoassim?–Nãohaveriaamenordificuldade.Bastaalugarumtransatlântico...–Umtransatlântico!–repetiuoDr.Hall,surpreso.– Podemos contratar também alguns passageiros, alugar um
submarino... Esse deve ser o único problema. Os governos costumam sermuitociumentoscomsuasmáquinasdeguerra.Nãovãoquerervenderumsubmarino ao primeiro que aparecer. Mas acho que até isso pode serresolvido.Jáouviufalaremsuborno,doutor?Odinheiroconseguequalquercoisa!Creioquenãoprecisaremosdispararrealmenteumtorpedo.Setodomundocomeçaracorrereagritarqueonavioestáafundando,creioqueissoserásuficienteparaumajoveminocentecomoJane.Quandometeremnelaumcoletesalva-vidaseaarrastaremparaumbote,comumbandodeartistasbemensaiadostendoataqueshistéricosnoconvés...tenhocertezadequeelapensaráqueestádevoltaamaiode1915.Oqueachadaidéia?
O Dr. Hall ficou olhando para Julius em silêncio. Tudo o que nãoconseguiadizernomomentoestavaeloqüenteemsuaexpressão.
–Não, não estou doido – esclareceu Julius. – A coisa é perfeitamente
possível. Fazem isso todos os dias lá nos Estados Unidos para os filmes.Nunca viu uma colisão de trens no cinema? Qual é a diferença entrecomprar um trem e comprar um transatlântico? Desde que a coisa sejanossa,podemosfazeroquebemquisermos!
ODr.Hallfinalmenterecuperouavoz:– Mas a despesa, meu caro senhor! A despesa! Será simplesmente
colossal!–Odinheironãomepreocupa–explicouJuliuscalmamente.OmédicovirouorostosuplicanteparaSirJames,quesorriu.–OSr.Hersheimmeréumhomemdeposses,Dr.Hall...emcondiçõesde
fazertudooqueestádizendo.O olhar do médico voltou a se fixar em Julius, agora sutilmente
diferente.Jánãoviamaisumjovemexcêntrico,quetinhaohábitodecairde árvores. Os olhos do Dr. Hall expressavam a deferência devida a umhomemrealmenterico.Eelemurmurou:
–Éumplanoadmirável, realmenteextraordinário!Comonocinema...Muito interessante! Receio que estejamos um pouco ultrapassados emnossosmétodos aqui na Inglaterra. E vejo que está realmente disposto aexecutaresseplanoextraordinário.
–Podeapostaratéoúltimodólarqueestoumesmo!ODr.Hallacreditou,oqueeraumtributoànacionalidadedeJulius.Se
um inglês tivesse sugerido tal plano, o médico teria sérias dúvidas arespeitodesuasanidademental.
–Nãopossogarantiracura,meucarosenhor.Achomelhordeixarissobemclarodesdeoinício.
–Nãoháproblemas– respondeu Julius. –Basta trazer Janeedeixeorestocomigo.
–Jane?– Está bem, a Srta. Janet Vandemeyer. Podemos dar um telefonema
interurbanoparaasuacasadesaúdeepedirqueatragamatéaquioutereiqueirbuscá-ladecarro?
Omédicoestavaaturdido.– Peço que me desculpe, Sr. Hersheimmer, mas pensei que tivesse
compreendido.–Compreendidooquê?–ASrta.Vandemeyernãoestámaissobmeuscuidados.
15Tuppencerecebeumpedidodecasamento
Juliuslevantou-sedeformabrusca.–Oquê?–Penseiquejásoubessedisso.–Equandofoiqueelapartiu?–Deixe-mever...Hojeésegunda-feira,nãoémesmo?Devetersidona
últimaquarta-feira...É issomesmo!Foinamesmanoiteemque... caiudaminhaárvore.
–Naquelanoite?Antesoudepois?–Hum...Foidepois.ChegouumrecadourgentedaSra.Vandemeyer.A
jovemeaenfermeiraencarregadadelapartiramnotremnoturno.Juliusafundounovamentenacadeira,murmurando:– Estou lembrando... a enfermeira Edith... foi embora com uma
paciente...Oh,Deus!Epensarqueestivetãoperto!ODr.Hallestavaconfuso.–Nãoestoucompreendendo.Amoçanãoestácomatia?Tuppencesacudiuacabeça.Jáiafalarquandoumolhardeadvertência
deSirJamesaconteve.Oadvogadolevantou-se.– Eu lhe agradeço profundamente por todas as informações que nos
deu, Hall. Mas, infelizmente, teremos que recomeçar a busca pela Srta.Vandemeyer. Sabe por acaso o paradeiro da enfermeira que aacompanhou?
Omédicosacudiuacabeça.–Nãorecebemosqualquernotíciadela,comojáeradeseesperar.Pelo
que eu soube, a enfermeira Edith deveria permanecer por algum tempocomaSrta.Vandemeyer.Masoquepodeteracontecido?Ajovemnãopode
tersidoseqüestrada.–Éoquevamosverificar–comentouSirJames,deformaséria.–Achaquedevoiràpolícia?–Claroquenão!Ébempossívelqueelaestejacomoutrosparentes.O Dr. Hall não estava inteiramente satisfeito, mas percebeu que Sir
James estava decidido a não dizer mais nada. Compreendeu que tentararrancarmaisalgumainformaçãodofamosoadvogadoseriapuraperdadetempoedeesforço.Assim,despediu-sedosvisitantes,quelogodeixaramohotel. Por alguns minutos, os três ficaram parados junto ao carro,conversando.
– Mas que coisa irritante! – exclamou Tuppence. – Quem haveria deimaginarqueJuliuschegouapassarumaspoucashorassobomesmotetoqueJaneFinn?
–Fuiummalditoidiota...–murmurouJulius,demaneiratriste.–Vocênãopoderiasaber–consolou-oTuppence,apelandoemseguida
paraSirJames:–,nãoémesmo?–Euoaconselhariaanãosepreocupar–disseoadvogado,de forma
bondosa.–Nãoadiantachorarsobreoleitederramado.–Temosdepensarénoquefaremosaseguir–disseTuppence,sempre
prática.SirJamesdeudeombros.–Podepôrumanúncioprocurandopelaenfermeiraqueacompanhoua
moça.Éaúnicaidéiaquemeocorrenomomentoedevoconfessarquenãoacredito que isso possa resultar em algo de concreto. Afora isso, não hámaisnadaquepossamosfazer.
–Nada?–balbuciouTuppence.–ETommy?– Só podemos esperar omelhor,minha cara jovem. Issomesmo, não
podemosperderasesperanças.Mas,porcimadacabeçaabaixadadeTuppence,osolhosdeSir James
encontraram-se comosde Julius. Ele sacudiu a cabeçademaneiraquaseimperceptível. Julius compreendeu. O advogado considerava o casoperdido. O rosto do jovem norte-americano assumiu uma expressãosombria.SirJamessegurouamãodeTuppence.
– Deve me informar imediatamente se acontecer alguma coisa. Ascartasserãoencaminhadasaolugarparaondeirei.
–Vaiviajar?–Nãoselembradequejálhefaleiarespeito?VouparaaEscócia.–Falou,sim.Maseupensei...Tuppencehesitou.SirJamesdeudeombros.
–Minha cara jovem, creio que não hámais nada que eu possa fazer.Nossaspistasnos levaramaumbeco semsaída.Podeestar certadequenão há mais nada que possamos fazer. Mas, se surgir algo novo, terei amaiorsatisfaçãoemaconselhá-lanoqueforpossível.
Essas palavras de Sir James deixaram Tuppence profundamentedesolada.
–Achoquetemrazão–murmurouela.–E,dequalquer forma,muitoobrigadaportentarnosajudar.Adeus.
Juliusestavaseinclinandosobreocarro.UmaexpressãomomentâneadecompaixãosurgiunosolhosdeSirJamesaocontemplarorostodesoladodeTuppence.
–Nãofiquetãoabatida,Srta.Tuppence–disseele,emvozbaixa.–Nãoseesqueçadequenemsemprepassamosasfériasinteirasnosdivertindo.Semprepodemostertambémalgumtrabalho.
Algo no tom dele fez com que Tuppence levantasse a cabeçabruscamente.SirJamessacudiuacabeça,comumsorriso.
–Nãovoudizermaisnada.Jáfoiumgrandeerroterfaladoessepouco.Háumacoisaquenãodevenuncaesquecer:jamaisdigatudooquesabe...nemmesmoàpessoaquemaisconhecenestemundo.Entendeu?Eagora...adeus!
Ele se afastou. Tuppence ficou olhando para as suas costas. Estavacomeçando a compreender os métodos de Sir James. Antes, ele já lhelançara outra insinuação com o mesmo jeito descuidado. Será que eramesmooutrainsinuação?Qualseriaosignificadoportrásdaquelaspoucaspalavras?Seráqueeraumaindicaçãodequeeleaindanãoabandonaraocaso? Será que Sir James pretendia continuar a trabalhar em segredo,enquanto...
SuasmeditaçõesforaminterrompidasporJulius,queatrouxedevoltaàrealidadecomum“vamosentrar”.
–Vocêestábastantepensativa–comentouele,assimquepartiram.–Eledissemaisalgumacoisa?
Tuppence abriu a boca impulsivamente, mas fechou-a um instantedepois.AspalavrasdeSirJamesaindaressoavamemseusouvidos:“Jamaisdiga tudo o que sabe... nem mesmo à pessoa que mais conhece nestemundo.”E,derepente,outrarecordaçãolheocorreu.Juliusestavaparadodiante do cofre no apartamento, a pergunta dela e a pausa antes daresposta: “Não temnada.” Será que não havia nada realmente?Ou Juliusteria encontradoalgoquepreferira guardarpara simesmo?Se elepodiaguardar um segredo, Tuppence também tinha o mesmo direito. E ela
respondeu:–Nadadeimportante.TuppenceviuJuliuslançar-lheumolhardelado.–Oquemedizdedarmosumavoltapeloparque?–Sevocêquiser...Osdoispassearamsobasárvores,emsilêncio,poralgumtempo.Estava
umdiamaravilhoso.AbrisaquesopravareanimouTuppence.–Srta.Tuppence,achaquealgumdiavouconseguirencontrarJane?Juliusfalouemtomdesanimado.Eraumadisposiçãotãoestranhanele
queTuppencevirou-seeofitou,surpresa.Eleassentiu.– Estou mesmo desanimado e pensando em abandonar a busca. Sir
Jamesdeu a entender que já nãohámais qualquer esperança.Não gostomuitodeleeparecequenãohápossibilidadedenosdarmosbem.Maseleésemdúvidamuitoespertoenãolargariaocasosehouvessealgumachancedesucesso,pormenorquefosse.Nãoachaqueestoucerto?
Tuppencesentiu-seconstrangida,masateve-seàsuaconvicçãodequeJulius lhe escondera alguma coisa e por isso manteve-se firme em suaposição,limitando-seasugerir:
–Elesugeriuquepuséssemosumanúncioàprocuradaenfermeira.–Eofezcomaqueletomdevozdequemdizquenãovaiadiantarnada.
Jáestoucansadodetudo.EestoupensandoemvoltaraosEstadosUnidos.–Nãofaçaisso!–gritouTuppence.–TemosdeencontrarTommy!–Eu já tinha até esquecidodeBeresford – admitiu Julius, em tomde
arrependimento. – Tem toda razão. Precisamos encontrá-lo de qualquerjeito. Mas depois disso... Sabe, eu tinha uma porção de sonhos quandocomecei esta viagem, mas agora descobri que esses sonhos são inúteis.Estou disposto a esquecê-los. Gostaria que me dissesse uma coisa, Srta.Tuppence.
–Oquedesejasaber?–HáalgumacoisaentrevocêeBeresford?–Nãoestouentendendo.–RespondeuTuppence,comtodadignidade,
acrescentando no mesmo instante, de forma um tanto inconseqüente: –Alémdomais,estáredondamenteenganado!
–Nãoexistenenhumsentimentomaisprofundoentrevocêsdois?–Claroquenão!Tommyeeusomosapenasamigos...maisnada!–Achoquetodasaspessoasqueseamamjádisseramisso,emumaou
outraocasião.– Isso é bobagem! – explodiu Tuppence. – Será que pareço o tipo de
moçaqueseapaixonaportodohomemqueencontra?
–Não,nãoparece.Mas,aocontrário,pareceotipodegarotapelaqualoshomensvoltaemeiaestãoseapaixonando!
–Oh!–exclamouTuppence,surpreendida.–Issoéumelogio?–Claroqueé!Eagoravamosdefinirascoisas.Suponhamosquenunca
encontremosBeresforde...e...– Diga logo de uma vez! Posso perfeitamente enfrentar os fatos!
SuponhamosqueTommy...tenhamorrido!Edaí?–Etodaessahistóriatenhaterminado.Oquepretendefazerdepois?–Nãosei.–Vaificarterrivelmentesozinha...– Pode deixar que sei me cuidar! – retrucou Tuppence de maneira
ríspida,ressentida,comosemprefaziadiantedequalquermanifestaçãodecompaixão.
–Oquemedizdocasamento?–indagouJulius.–Temalgumaopiniãoarespeito?
–Claroquepretendomecasar!Istoé,se...Tuppence fez uma pausa, desejando ansiosamente poder recuar.Mas
acabouseguindoemfrente,bravamente:–...conseguirencontraralguémquesejaricoobastanteparafazercom
queocasamentovalhaapena.Nãoachaqueestousendo francademais?Devemedesprezarporisso...
–Jamaisdesprezooinstintoparaosbonsnegócios.Qualaimportânciaquetememmente?
–Importância?–repetiuTuppence,perplexa.–Estáquerendosaberseprefiroumhomemmuitoimportante?
–Nadadisso.Estouquerendosaberqualasoma...aquantiaquedeseja.–Ah,sim...Aindanãopenseinisso.–Ejápensouemmim?–Você?–Claro.–Oh,eunãopoderia!–Porquenão?–Jálhedissequeeunãopoderia!–Masporquenão?–Porquenãomepareceriajusto.–Nãovejooquepodehaverdeinjusto.Estouapenaspagandoparaver.
Euaadmiro imensamente,Srta.Tuppence,muitomaisdoqueaqualquerumadasoutrasmoçasquejáconheci.Éumbocadocorajosa.Euadorariaaoportunidadedelhedarumaboavida.Bastadizerumapalavraesairemos
correndo para algum joalheiro de alta classe a fim de resolvermos aquestãodasalianças.
–Nãoposso...–balbuciouTuppence.–PorcausadeBeresford?–Não!–Porqueentão?Tuppence continuou a sacudir a cabeça de forma violenta, sem dizer
nada.– Não pode ter a esperança de encontrar alguém que tenha mais
dólaresdoqueeu.–Oproblemanãoéesse! –balbuciouTuppence, soltandoumarisada
quasehistérica.–Masmesmolheagradecendoimensamenteetudoomais,émelhordizerlogonão.
–Eupediriaquemefizesseofavordepensaratéamanhã.–Nãovaiadiantarnada...–Mesmoassim,eugostariaquesódecidíssemosissoamanhã.–Estábem–murmurouTuppence,docilmente.NenhumdosdoisvoltouafalaratéchegaremaoRitz.Tuppencesubiuparaoquarto.Sentia-semoralmenteabaladadepoisdo
conflito com a vigorosa personalidade de Julius. Sentou-se diante doespelho,contemplandoopróprioreflexoporalgunsminutos.
–Suatola!–disseelaporfim,fazendoumacareta.–Suatolinha!Tudooquevocêquer...tudooquesempresonhou!Esempensardizumnão,comoumaidiota!Éasuaúnicachance.Porquenãoaceita?Porquenãoaagarracomunhasedentes?Oquemaisestáquerendo?
Como em resposta a essa pergunta, seus olhos se fixaram nessemomento em um pequeno retrato de Tommy, que estava em cima dapenteadeira.Porummomento,ainda lutouparasecontrolar.Masacabouabandonando todo fingimento, levou a fotografia aos lábios e desatou asoluçar.
–Oh,Tommy,Tommy!Euoamotanto...etalveznuncamaisvolteavê-lo!
Depois de cinco minutos, Tuppence levantou-se, assoou o nariz eempurrouoscabelosparatrás.
–Jáchega!–disseparasimesma,comtodaafirmeza.–Vamosencararos fatos de frente. Parece queme apaixonei... e por um rapaz idiota, queprovavelmentenãomedáamenorimportância.
Elafezumapausa.Levoualgumtempopararecomeçarafalar,comoseestivesseargumentandocomumoponenteinvisível:
–Averdadeéquenãoseirealmenteoqueelepensa.Tommynuncaseatreveria a me dizer. Afinal, sempre combati os sentimentos. E nestemomento estou sendo mais sentimental do que qualquer outra pessoa!Como as mulheres são idiotas! Sempre achei isso. Acho que vou dormircom essa fotografia debaixo do travesseiro e passarei a noite inteirasonhandocomTommy.Éterríveldescobrirqueseestárenegandotodososprincípiosquesempreforamdefendidos!
Tuppencesacudiuacabeçatristementeenquantoreviasuarenúncia.–NãoseioquedizeraJulius.Oh,Deus,comomesintoidiota!Tereique
dizeralgumacoisa,eleétãonorte-americanoemeticulosoquevaiquererumaexplicação.Seráqueeledescobriualgumacoisanaquelecofre?
Os pensamentos de Tuppence enveredaram por outro caminho. Elarecordou de forma sistemática os acontecimentos da noite anterior. Decerta forma, pareciam estar vinculados às palavras enigmáticas de SirJames...
Derepente,elaestremeceueficoubastantepálida.Osolhos,fascinados,fixaram-seàsuafrente,aspupilasdilatadas.
–Impossível!–murmurouela.–Absolutamenteimpossível!Devoestarloucaporpensarumacoisadessas...
Eramonstruoso...mas,aomesmotempo,explicavatudo...Depois de pensar mais um pouco, Tuppence pôs-se a escrever um
bilhete,avaliandocuidadosamentecadapalavra.Porfimsacudiuacabeça,como se estivesse satisfeita. Colocou o bilhete em um envelope eendereçou-oaJulius.Saiuparaocorredorqueiadarnasaladeestardeleebateunaporta.Comojáesperava,asalaestavavazia.Eladeixouobilheteemcimadamesa.
Umgaroto, empregadodohotel, estavaesperandodiantedaportadeseuquarto,quandovoltou.
–Chegouumtelegrama,Srta.Cowley.Tuppence pegou o telegrama e abriu-o cuidadosamente. E soltou um
grito.OtelegramaeradeTommy!
16NovasaventurasdeTommy
De uma escuridão marcada por pontadas de dor terrível, Tommyrecuperou aos poucos os sentidos. Quando afinal abriu os olhos, a únicacoisa de que tinha consciência era uma dor torturante nas têmporas.Percebeu,vagamente,queestavaemumambienteestranho.Ondeestaria?O que acontecera? Piscou os olhos, ainda fraco.Não era o seu quarto noRitz.Equediabohaviacomsuacabeça?
–Oh,céus!–murmurouele,tentandosesentar.Tinha acabado de se lembrar. Estava naquela casa sinistra no Soho.
Deixou escapar um gemido e caiu outra vez. Ainda com as pálpebrassemicerradas,fezumreconhecimentocautelosodoquepodiaavistar.
– Ele está voltando a si – disse uma voz muito perto do ouvido deTommy.
Ele a reconheceu nomesmo instante. Pertencia ao alemão barbado eeficiente.Por isso,decidiucontinuar inertepormaisalgumtempo.Sentiaquenãodeveriademonstrartãocedoquejáhaviarecuperadoossentidos.Além do mais, até que a dor na cabeça se tornasse um pouco menosintensa, seria incapaz de pensar e reagir com lucidez. Dolorosamente,procurou reconstituir o que acontecera. Era evidente que alguém seaproximara em silêncio às suas costas enquanto escutava à porta,derrubando-ocomumgolpeviolentonacabeça.Sabiamagoraqueeraumespião e com certeza iriam liquidá-lo. Estava em uma situaçãoextremamente difícil. Ninguém sabia onde ele estava. Assim sendo, nãopodiacontarcomajudadeforaeteriaquedependerapenasdesimesmo.“Lávoueu!”,pensouTommy,repetindoaexclamaçãoanterior:
–Oh,céus!Dessa vez, conseguiu se sentar. O alemão se adiantou e colocou um
copojuntoaoslábiosdeTommy,ordenando:–Beba!Tommy obedeceu. A força da bebida fê-lo engasgar,mas clareou sua
mentedemaneiramaravilhosa.Descobriuqueestavadeitadoemumsofánasalaondeforarealizadaa
reunião.Oalemãoestavadeumladoedooutroavistouoporteiroderostosinistroqueodeixaraentrarnacasa.Osoutrosestavamagrupadosaumapequena distância. Tommy constatou que alguém estava faltando: ohomemconhecidocomoNúmero1nãoseencontravamaisali.
–Sente-semelhor?–perguntouoalemão,retirandoocopovazio.–Sinto-me,sim,obrigado–respondeuTommy,maisbemdisposto.–Éumasortequeoseucrâniosejatãoduro,meujovemamigo.Obom
Conradbateucomtodaforça.Ele indicou o porteiro de rosto sinistro com um aceno de cabeça. O
homemsorriu.Tommyvirouacabeçacomumtremendoesforçoedisse:–EntãovocêéConrad?Achoquefoitambémmuitasortesuaofatode
meu crânio ser tão duro. Ao vê-lo agora, quase que sinto pena de tê-loajudadoaevitaroencontrofinalcomocarrasco.
Ohomemgrunhiu,enquantooalemãodiziacalmamente:–Conradnãocorreriaesserisco.– Tem direito a essa opinião – comentou Tommy. – Sei que está em
modamenosprezarapolícia,masconfessoquecontinuoaacreditaremsuaeficiência.
Aatitudedeleeraextremamentedespreocupada.TommyBeresforderaumdesses jovens inglesesquenãosedistinguemporqualquer faculdadeintelectualespecial,masquedãoomelhordesiquandoseencontramemuma situação difícil. Esquecem a cautela e a falta de confiança como setivessem tirado uma luva. Tommy sabia que dependia de seus própriosrecursosparaescapar,eportrásdaquelecomportamentodespreocupadovasculhavaocérebrofuriosamenteembuscadeumasaída.
Oalemãovoltouafalarcomsuafriezacaracterística:–Temalgumacoisaadeclararantesdeserexecutadocomoespião?– Tenho uma porção de coisas a dizer – respondeu Tommy, com a
mesmacivilidadeanterior.–Negaqueestivesseescutandoatrásdaporta?– Não, não nego. E devo realmente pedir desculpas por isso. Mas a
conversaestavatãointeressantequesuperoumeusescrúpulos.–Comoconseguiuentrar?–FoiocaroConradquemmeabriuaporta–contouTommy,sorrindo
desdenhosamenteparaohomem.–Hesitoemsugeriraaposentadoriadeumfielservidor,masachoquedeviamarrumarumcãodeguardamelhor.
Conrad rosnou, impotente, e falou rispidamente quando o alemãobarbadoofitou:
–Eledisseasenha.Comoeupoderiasaber?– É isso mesmo – interveio Tommy. – Como ele poderia saber? Não
culpe o pobre coitado. Além domais, foi a ação precipitada dele quemeproporcionouaoportunidadeeoprazerdeconhecervocêstodos.
Ele teve a impressão de que suas palavras causaram algumainquietaçãonogrupo,masovigilantealemãologocontrolouasituaçãocomumacenodemãoimperioso.
–Osmortosnãofalam–disseele,calmamente.
–Ah,maseuaindanãoestoumorto!–Masestarámuitoembreve,meujovemamigo.Osoutrosmurmuraramseuassentimento.OcoraçãodeTommybateu
maisdepressa,maselenãoperdeuatranqüilidadeedissecomfirmeza:–Achoquenão.Façomuitasobjeçõesamorrertãojovem.Ele percebeu que todos estavam perplexos, constatando isso pela
expressãodoalemão,quelheperguntou:–Podenosdarumasórazãoparaquenãoomatemosagora?–Possodarvárias.Atéagora jáme fezváriasperguntas.Permitaque
lhe faça uma só, para variar. Por que não me mataram antes que eurecuperasseossentidos?
O alemão hesitou e Tommy tratou de tirar proveito da pequenavantagem:
– Porque não tinham a menor idéia do quanto eu sabia... e ondeobtiveraasinformações.Sememataremagora,jamaissaberão.
Mas,nessemomento,Borisnão conseguiumais conter suas emoções.Adiantou-se,sacudindoosbraçosegritando:
– Seu espião maldito! Vamos executá-lo sumariamente! Matem-no!Matem-no!
Houveumtroardeaplausos.–Estáouvindo?–disseoalemão,semdesviarosolhosdeTommy.–O
quetemadizersobreisso?–Oquetenhoadizer?Tommydeudeombros.–Elesnãopassamdeunstolos.Seriamelhorquesefizessemalgumas
perguntas.Comofoiqueentreinestacasa?Lembrem-sedoquedisseobomConrad... com a própria senha de vocês, não é mesmo? E como foi quedescobriessasenha?Ouseráqueestãopensandoquebatinaportaedisseaprimeiracoisaquemepassoupelacabeça?
Tommy ficou satisfeito com as palavras finais de seu discurso. SólamentouqueTuppencenãoestivessepresenteparaapreciartodoosaborquehavianelas.
–Issoéverdade!–disseoproletáriosubitamente.–Camaradas,fomostraídos!
Houveummurmúrioaterrador.Tommysorriuparaosconspiradores,encorajando-os.
– Assim é melhor. Como podem esperar ter sucesso em qualquerempreitadasenãosabemusarocérebro?
–Vairevelarquemnostraiu–oalemãoafirmou.–Maspodeestarcerto
dequeissonãoirásalvá-lo.Tenhocertezadequenosdirátudooquesabe.Borisconhecemuitasmaneirasdeobrigaraspessoasafalar.
– Não diga bobagens! – reagiu Tommy de forma desdenhosa,procurandodominarumfriodesagradávelnabocadoestômago.–Nãoirãometorturarnemmematar.
–Eporquenão?–indagouBoris.–Porqueestariammatandoagalinhadosovosdeouro.Houveumapausamomentânea.Pareciaqueasegurançapersistentede
Tommy estava finalmente prevalecendo. Eles já não estavam mais tãosegurosdesicomoaprincípio.OhomemderoupassurradascontemplouTommyemsilêncioporalgumtempo,comatenção,edisseemseguida:
–Eleestáblefando,Boris.Tommyoodiou.Seráqueohomemconseguiralerseuspensamentos?
Comumesforçovisível,oalemãovoltouaseconcentraremTommyedissedeformaríspida:
–Oqueestáquerendodizer?–Oqueacha?–contra-atacouTommy,vasculhandodesesperadamente
amenteàprocuradeumasaída.Subitamente, Boris adiantou-se e sacudiu o punho cerrado diante do
narizdeTommy:–Fale,seuporcoinglês,fale!–Nãofiquetãonervoso,meubomcompanheiro–disseTommy,calmo.
–Éoproblemadevocês,estrangeiros.Nãoconseguemmanteracalma.Eulhefaçoumapergunta:douaimpressãodeserumhomemquepensaqueexistealgumapossibilidade,pormenorqueseja,devocêsmematarem?
Eleolhouaoredor,comumaexpressãoconfiante,sentindo-secontentepor saber que os homens não podiam ouvir as batidas violentas de seucoração, as quais desmentiam inteiramente as palavras que acabara depronunciar.
–Não,nãoparece–admitiuBoris,visivelmentecontrariado.“GraçasaDeusqueelenãosabe lerpensamentos”,pensouTommy.E,
aomesmotempo,procurouaprofundaravantagemadquirida:–Eporqueestou tãoconfiante?Porqueseidealgoquemedeixaem
condiçõesdeproporumabarganha.–Umabarganha?–repetiuoalemão.–Issomesmo...umacordo.Minhavidaeliberdadeemtrocade...Elefezumapausa.–Emtrocadequê?O grupo se inclinou para a frente, ansioso. Seria possível ouvir um
alfinetecaindonochão.Tommyfaloubemdevagar:–OsdocumentosqueDanverstrouxedosEstadosUnidosnoLusitania.Oefeitodesuaspalavrasfoirealmenteelétrico.Todosseadiantaramao
mesmo tempo. O alemão acenou para que tornassem a recuar. Ele seinclinounadireçãodeTommycomorostovermelhodeinquietação:
–Himmel!Querdizerqueestácomosdocumentos?Comumatranqüilidademagnífica,Tommysacudiuacabeça.Oalemão
insistiu:–Masondeestão?Tommytornouasacudiracabeça.–Nãotenhoamenoridéia.–Mas...mas...O alemãoestava tãoaturdidoe furiosoquenão conseguiudizermais
nada.Tommyolhouao redor.Percebeua raivaea confusãoem todososrostos.Massuacalmaesegurançahaviamalcançadoumresultadopositivo.Ninguémduvidavadequehaviaalgoportrásdesuaspalavras.
–Não sei ondeestãoosdocumentos...mas creioquepossoencontrá-los.Tenhoumateoria...
–Essanão!Tommylevantouamão,silenciandoosclamoresdeprotestoerepulsa.–Chamode teoria...mas tenhoplenacertezados fatos,quesãosódo
meu conhecimento edemaisninguém. Seja como for, o que vocês têmaperder?Seeuconseguirencontrarosdocumentos...vocêsmedarãoavidaealiberdadeemtroca.Negóciofechado?
–Eserecusarmos?–perguntouoalemão.Tommyrecostou-senosofá,comentando:–Faltammenosdeduassemanasparaodia29...Oalemãohesitouporummomento.Depois,fezumsinalparaConrad:–Leve-oparaooutroquarto.Tommy ficou sentado na cama do quarto miserável ao lado durante
cincominutos. O coração batia violentamente. Arriscara tudo de uma sóvez.Comoeles iriamdecidir?Enquantopensava, angustiado,nãodeixavade falar zombeteiramente comConrad, irritandoaomáximoo rudevigia,levando-oàbeiradofurorhomicida.
Porfim,aportafoiabertaeoalemãoordenouaConradqueolevassedevolta.
– Vamos torcer para que o juiz não tenha posto a touca preta –comentouTommydemaneirajocosa.–Vamoslogo,Conrad,leve-meatélá.
Oprisioneiroesperapelasentença,senhores!Oalemãoestavaoutravez sentadoatrásdamesa. Fezumgestopara
queTommysesentasseàsuafrente.– Aceitamos sua proposta... sob determinadas condições – disse ele,
numtomríspido.–Teráquenosentregarosdocumentosantesdepodersairdaquiemliberdade.
– Mas que idiotice! – disse Tommy, cordialmente. – Como podereiprocurarosdocumentossememantiverempresoaqui?
–Oqueestavaesperando?– Preciso estar em liberdade para resolver o problema à minha
maneira.Oalemãosoltouumarisada.–Achamesmoquesomoscriançasparadeixá-loescapartãofacilmente,
comumahistóriafantasiosarepletadepromessas?–Temrazão–disseTommy,pensativo. –Embora fosse infinitamente
mais simples para mim, não imaginava que fossem concordar com esseplano.Mas podemos chegar a ummeio-termo.O quemedizemde pôr obomConrad parame acompanhar? Ele é um fiel servidor e sabe usar ospunhosmuitobem.
–Preferimosque continue aqui –disseo alemão, friamente. –Umdenós irá executar suas instruções, de forma meticulosa. Se surgiremcomplicações, ele voltará aprocurá-lopara fazerum relatoda situação epedirnovasinstruções.
–Estámedeixandodemãosamarradas–queixou-seTommy.–Ocasoémuito delicado e quem quer que escolham irá certamente meter os péspelasmãos. E se isso acontecer, onde ficarei? Não creio que nenhum devocêstenhaomínimodetato.
Oalemãodeuummurronamesa.–Essassãoasnossascondições.Senãoquiseraceitar...éamorte!Tommyrecostou-senacadeiracomumaexpressãoresignada.–Gostodoseuestilo.Ébrusco,maseficiente.Estácerto.Masumacoisa
éessencial:tenhoqueveramoça.–Quemoça.–JaneFinn,éclaro.O alemão fitou-o com uma expressão curiosa, por um longo tempo,
antesdedizer,lentamente,comoseestivesseescolhendoaspalavras:–Nãosabequeelanãoestáemcondiçõesdelhedizercoisaalguma?O coração de Tommy bateu um pouco mais depressa. Será que
conseguiria se encontrar frente a frente com a moça que estava
procurando?–Nãopedireiqueelamediganada–respondeuele,calmamente.–Isto
é,nãoqueroquemediganadaempalavras.–Porqueentãodesejavê-la?Tommydemoroualgumtempopararesponder:–Paraobservarorostodelaquandolhefizerumapergunta.Novamente, surgiu nos olhos do alemão uma expressão que Tommy
nãoconseguiuentender.–Elanãoserácapazderesponderàsuapergunta.–Issonãotemimportância.Queroapenasverorostodelaquandolhe
fizerapergunta.–Eachaqueissolhediráalgumacoisa?O alemão soltou uma risada áspera e sinistra. Mais do que nunca,
Tommysentiuquehaviaumfatorqualquerquenãopodiacompreender.Oalemãofitou-ocomatençãoedissesuavemente:
– Será que, no fim das contas, você sabe mesmo tanto quantopensamos?
Tommy sentiuque sua superioridade já não era tão completaquantoummomentoantes.Deraumescorregãoqualquer.Eestavaperplexo.Oquedisseradeerrado?Emumsúbitoimpulso,eledisse:
–Épossívelquehajacoisasquevocêssaibamequeeudesconheça.Nãotenho a pretensão de estar a par de todos os detalhes do espetáculo devocês.Mas tenho um trunfo guardado namanga que vocês ignoram. E écomissoqueestoucontando.Danverseraumsujeitomuitoesperto...
Eleparoudefalarabruptamente,comosejátivesseditocoisademais.Orostodoalemãosedesanuviouumpoucoeelemurmurou:
–Danvers...Estouentendendo...Depoisdeumalongapausa,oalemãoacenouparaConrad,ordenando:–Leve-oláparacima.Jásabeparaonde.–Espereumpouco!–disseTommy.–Eagarota?–Talvezsejapossíveldarumjeito.–Éimprescindível.–Vamosveroquesepodefazer.Somenteumapessoapodetomaressa
decisão.–Equemé?–perguntouTommy,jásabendodaresposta.–OSr.Brown.–Eeuireivê-lo?–Talvez.–Vamos!–disseConrad,bruscamente.
Tommylevantou-seobediente.Aopassarempelaporta,seucarcereirofezumgestoparaquesubisseaescada.Conradfoilogoatrás.Noandardecima, Conrad abriu uma porta e Tommy entrou em um quarto pequeno.Conradacendeuumbicodegásedepoissaiu.Tommyouviuobarulhodachavesendopassadanafechadura.
Começouaexaminarsuaprisão.Eraumquartomenorqueodoandarinferior e a atmosfera parecia estranhamente sufocante. Tommy nãodemorou a compreender que isso acontecia porque não havia nenhumajanela.Deuavoltapeloquarto.Asparedeseramincrivelmentesujas,comotudo o mais. Havia quatro gravuras inteiramente tortas penduradas nasparedes.EramcenasdeFausto:Margueritecomsuacaixade jóias,acenada igreja, Siebel e suas flores, Fausto e Mefistófeles. A última cena fezTommy recordar-se do Sr. Brown. Trancado naquele quarto fechado,sentia-se isoladodomundo,eopodersinistrodoarquicriminosopareciamaisreal.Pormaisquepensasseemgritar,ninguémpoderiaouvi-lo.Eraquaseumatumba...
Comumtremendoesforço,Tommytratoudesecontrolar.Deitou-senacamaepôs-seapensar.Acabeçalhedoíaterrivelmente.Alémdisso,estavacomeçandoasentirfome.Osilênciodesuaprisãoeradeprimente.
–Aconteçaoqueacontecer–disseTommyparasimesmo,procurandose animar –, verei o chefe... omisterioso Sr. Brown. E com um pouco desorte no meu blefe, poderei ver também a misteriosa Jane Finn. Depoisdisso...
Depois disso, Tommy foi forçado a reconhecer que as perspectivaspareciamasmaissombriaspossíveis.
17Annette
Os problemas do futuro, no entanto, logo se desvaneceram diante dasdificuldadesdopresente.Entreessas,amaisimediataeurgenteeraafome.Tommy possuía um apetite saudável e vigoroso. O bife com fritaspartilhados no almoço pareciam agora pertencer a outra década.Pesarosamente, ele reconheceu que não teria qualquer sucesso em uma
grevedefome.Andou a esmo por sua prisão. Por uma ou duas vezes, renunciou à
dignidadeebateunochão.Masninguémrespondeuaosseussinais.–Masquediabo!–gritouTommyfinalmente,indignado.–Elesnãovão
querermematardefome!Ummedo súbito o invadiu. Quem sabe se não seria aquela uma das
maneiras de fazer um prisioneiro falar, técnica em que Boris parecia serperito?Pensandomelhor,Tommyafastouapossibilidade.
– A culpa é daquele animal de cara rabugenta, o tal de Conrad –concluiuele.–Eisumsujeitodequemtereiomaiorprazerdemevingarumdiadesses.Tenhocertezadequeissoépuramaldadedapartedele.
Reflexões adicionais levaram-no a pensar como seria agradável batercomalgumacoisabemdurana cabeçadeovodeConrad.Tommyafagoucomcarinhoaprópriacabeça,entregando-seaosprazeresdaimaginação.Uma idéiabrilhante lheocorreu.Porquenão converter a imaginaçãoemrealidade?NãorestavaamenordúvidadequeConraderaoocupantedacasa. Os outros, com a possível exceção do alemão barbado, usavam-naapenascomopontodereunião.Assim,porquenãoficaremboscadoatrásdaporta,àesperadeConrad,golpeando-onacabeçacomumacadeiraoucomumdosquadrosquandoeleentrassenoquarto?Éclaroquetomariacuidadoparanãobatercomforçademais.Edepois...depoisiriaembora!Seencontrasse alguém ao sair, então... Tommy animou-se ao pensar numcombate a socos. Era algo que o atraía mais do que o combate verbalnaquelatarde.Inebriadocomseuplano,TommytiroudaparedeagravuradeFaustoeMefistófeles, colocando-seemposição. Suasesperançaseramaltas.Oplanoparecia-lhemuitosimples,masexcelente.
O tempo foipassandoeConradnãoapareceu.Anoite eodia eramamesma coisa no quarto-prisão, mas o relógio de pulso de Tommy oinformou que já eram21 horas. Tommy refletiu sombriamente que, se ojantarnãochegasseembreve,sólherestariaesperarpelocafé-da-manhã.Às22horas,perdeu todaequalqueresperançaedeitou-senacamaparaprocurarconsolonosono.Cincominutosdepois,todasassuasatribulaçõesestavamesquecidas.
O barulho da chave girando na fechadura despertou-o do sono leve.Como não pertencia à categoria dos heróis que são famosos pordespertarem na plena posse de todas as suas faculdades, Tommysimplesmente piscou para o teto e imaginou vagamente onde estava.Recordou-senomesmoinstanteeolhouparaorelógio.Eram8horas.
–Deveserocafé-da-manhã–deduziuojovem.
A porta se abriu. Tarde demais, Tommy se lembrou do seu plano deeliminar o antipático Conrad. Um instante depois, ele ficou contente pornão ter executadooplano, poisnão foi Conradquementrounoquarto esimumamoça.Elatraziaumabandeja,quepôsemcimadamesa.
Tommyexaminou-aàluzfracadobicodegás.Concluiuimediatamenteque era uma das jovensmais lindas que já vira. Os cabelos eram de umcastanhobrilhante,comreflexosdourados,comosehouvesseraiosdesolaprisionadosa sedebaterememsuasprofundezas.Osolhos eramcordeavelã,comumtomdouradoquefaziapensarnovamenteemraiosdesol.
UmaidéiadeliranteocorreuaTommyeeleperguntou,muitoagitado:–VocêéJaneFinn?Amoçasacudiuacabeça,umpoucoespantada.–MeunomeéAnnette,senhor.Elafalavauminglêssuave,mashesitante.–Oh,diabo!–exclamouTommy,desolado,arriscandoemseguidaum
palpite:–Française?–Oui,monsieur.Monsieurparlefrançais?–Quasenada.Oqueéisso?Ocafé-da-manhã?A moça assentiu. Tommy saiu da cama e foi inspecionar a bandeja.
Tinhaumpão,algumamargarinaeumacanecadecafé.–OserviçonãoéigualaodoRitz–comentouele,soltandoumsuspiro.
–Mastendoemvistaascircunstâncias,nãopossodeixardeagradeceraoSenhorpeloqueestoufinalmenterecebendo.Amém.
Tommypuxouumacadeiraeamoçavirou-separasair.–Espereumpouco!–gritouTommy.–Háumaporçãodecoisasqueeu
gostariadeperguntaravocê,Annette.Oqueestáfazendonestacasa?Nãomedigaqueésobrinha,filhaouqualqueroutracoisaassimdeConrad,poisnãoireiacreditar.
–Soueuquefaçooserviço,senhor.Enãosouparentedeninguém.– Está certo. Sei que não esqueceu o que lhe perguntei assim que
entrou.Algumavezjáouviufalarnessenome?–AchoquejáouviaspessoasporaquifalaremalgumasvezesemJane
Finn.–Enãosabeondeelaestá?Annettesacudiuacabeça.–Elanãoestáporacasonestacasa?–Oh,não,senhor!Tenhoqueiragora...elesestãomeesperando!Ela saiu apressadamente do quarto. Tommy ouviu a chave girar na
fechadura.Eenquantoatacavaopão,iapensando:“Quemserãoeles?Com
umpoucodesorte,essamoçapodemeajudarasairdaqui.Elanãopareceserdaquadrilha.”
Annettevoltouàs13horascomoutrabandeja,masdessavezConradaacompanhava.
–Bomdia–disseTommy,cordialmente.–Peloqueestouvendo,aindanãotomoubanho,nãoémesmo?
Conradgrunhiuameaçador.–Nãogostadebrincadeiras,hein,companheiro?Masnãoprecisaficar
zangado.Nemsempresepodeunirbelezaeinteligência.Oquetemosparaoalmoço?Guisado,nãoémesmo?Comofoiqueeusoube?Elementar,meucaroWatson!Ocheirodecebolaéinconfundível!
– Continue à vontade com essa sua conversa fiada, pois não levarámuitotempoparaterquecomeçarafalarsério–resmungouConrad.
O comentário era bastante desagradável em suas insinuações, masTommyoignorou.Sentou-seàmesaedisse,comumacenodemão:
– Retire-se, lacaio! Não estrague com sua presença o apetite de seussuperiores!
Naquela noite, Tommy se sentou na cama e pensou muito. Será queConrad voltaria a acompanhar a moça? Se tal não acontecesse, deveriatentaratraí-lacomoaliada?Eleacaboudecidindoquenãopodiadeixarderecorreratudooquefossepossível.Suasituaçãoeradesesperadora.
Às20horas,aoouviroruídojáfamiliardachavegirandonafechadura,levantou-serapidamente.Amoçaestavasozinha.
–Fecheaporta–ordenouTommy.–Querofalarcomvocê.Elaobedeceu.–Precisodasuaajudaparasairdaqui,Annette.Elasacudiuacabeça.–Éimpossível.Trêsdelesestãonoandardebaixo.– Oh! – exclamou Tommy, secretamente satisfeito pela informação. –
Masvocêmeajudaria,sepudesse?–Não,senhor.–Eporquenão?Amoçahesitou.–Achoqueelessãoaminhaprópriagente.Evocêosespionou.Elestêm
odireitodemantê-loaqui.–Elesnãoprestam,Annette.Semeajudar,eualevareiparalongedas
garrasdeles.Eprovavelmenteiráganharmuitodinheiro.Masamoçatornouanegar.–Nãoposso,senhor.Tenhomedodeles.
Elavirou-separasair.–Nãofariaalgumacoisaparaajudaroutramoça?–gritouTommy.–Ela
temmaisoumenosasuaidade.Nãoestariadispostaasalvá-ladasgarrasdeles?
–EstásereferindoaJaneFinn?–Exatamente.Ela fitou-oemsilêncioporummomento,passandoemseguidaamão
pelatesta.–JaneFinn...Estousempreouvindoessenome.Parece-mefamiliar.Tommyadiantou-seansiosamente.–Nãosabecoisaalgumaarespeitodela?Masamoçatornouavirar-seabruptamente.–Nãoseidenada...anãoseronome.Elaseencaminhouparaaporta.Subitamente,soltouumgrito.Tommy
ficou perplexo. Annette estava olhando a gravura que ele encostara naparede na noite anterior. Por um momento, Tommy percebeu umaexpressãodeterrornosolhosdela.Inexplicavelmente,aexpressãomudoupara alívio. Um instante depois, a moça saiu do quarto. Tommy nãoconseguiuentender.Seráqueelaimaginaraqueelepretendiaatacá-lacomo quadro? Claro que não. Ele tornou a pendurar o quadro na parede,pensativo.
Mais três dias se passaram, namais sombria inação. Tommy sentia atensãocadavezmaislheafetarosnervos.NãovianinguémalémdeConrade Annette. A moça agora estava mais calada. Falava apenas emmonossílabos.Podia-seperceberumaexpressãodesuspeitanosolhosdela.Tommy tinha a impressão de que acabaria enlouquecendo se aqueleconfinamentoseprolongassepormuitomaistempo.SoubeporConradqueestavam esperando ordens do “Sr. Brown”. Talvez, pensou Tommy, eleestivesse no exterior ou fora de Londres e tivessemque esperar por suavoltaantesdefazeremqualquercoisa.
Mas,nanoitedoterceirodia,Tommyteveumbruscodespertar.Ainda não eram 19 horas quando ouviu o barulho de passos no
corredor. A porta foi aberta um minuto depois. Conrad entrou,acompanhadopeloNúmero14, ohomemdeaparênciadiabólica.Tommysentiuumapertonocoraçãoaovê-los.
–Boanoite,governador–disseohomem,zombeteiramente.–Trouxeacorda,companheiro?
O silencioso Conrad estendeu-lhe um rolo de corda fina. No instanteseguinte,asmãosdoNúmero14,horrivelmentehábeis,estavampassando
as cordas em torno das pernas e braços de Tommy enquanto Conrad osegurava.
–Masquediabo...?Tommyparoude falar ao perceber o sorriso sinistro e expressivo de
Conrad.O Número 14 concluiu rapidamente a tarefa. Em poucos minutos,
Tommy era uma simples trouxa, impotente, incapaz de qualquermovimento.Conradfinalmentefalou:
– Pensou que tinha conseguido nos enganar, hein? Veio com aquelahistória do que sabia e do que não sabia, querendo fazer uma barganhacomagente...Eeratudoblefe!Puroblefe,nadaalémdeblefe!Nãosabiadenada!Masagoravaiterquepagar,seuporcoimundo!
Tommyficoucalado.Nãohavianadaaserdito.Fracassara.Deumjeitoou de outro, o onipotente Sr. Brown conseguira descobrir o seu ardil.Subitamente,ocorreu-lheumaidéia.
–Umexcelentediscurso,Conrad–disseele,demaneiraaprovadora.–Mas por que iriamme amarrar desse jeito se fosse acontecer o que estádizendo?Nãoseriamaisrazoáveldeixarqueobondosocavalheiroaonossoladomecortasseagargantasemmaisdelongas?
–Nãoperdeporesperar!–alertou-ooNúmero14,inesperadamente.–Achamesmoquesomosinexperientesapontodeexecutá-loaquiedarumaoportunidadeàpolíciadebisbilhotar?SuaSenhoriavai teroquemereceamanhãdemanhã.Atélá,nãovamoscorrernenhumrisco.
–Nadapodiasermaisclaroqueassuaspalavras...anãoseroseurostoeoqueneleestáestampado.
–Cale-se!–ordenouoNúmero14.–Seráumprazer.Mascontinuoadizerqueestãocometendoumerro...
evocêsmesmoséquemsairãoperdendomais.–Nãovaimaisconseguirnosenganar.Pensaporacasoqueaindaestá
refesteladonoRitz?Tommy não respondeu. Estava empenhado em imaginar como o Sr.
Browndescobrira sua identidade. Concluiu queTuppence, dominada poruma terrível preocupação, acabara indo procurar a polícia. Seudesaparecimentoforanoticiadoeaquadrilhasomaradoisedois.
Osdoishomenssaíram,trancandoaporta.Tommyficouentregueaosseuspensamentos.Nãoeramdosmaisagradáveis. Jáestavacomeçandoasentiraspernaseosbraçosdormentes.Estavatotalmenteimpotenteenãolherestavamaisqualqueresperança.
Cerca de uma hora havia se passado quando ouviu a chave girar
lentamente na fechadura. A porta foi aberta. Era Annette. O coração deTommy bateu um poucomais depressa. Esquecera inteiramente amoça.Seriapossívelqueelativessevindoajudá-lo?
Subitamente,eleouviuavozdeConrad:–Saiadaí,Annette!Elenãovaiquererjantarestanoite!–Oui,oui,jesaisbien.Mastenhoquepegaraoutrabandeja.Precisamos
dascoisasqueestãonela.–Estábem,masnãodemore!Sem olhar para Tommy, a moça foi até a mesa e pegou a bandeja.
Depois,levantouamãoeapagoualuz.–Masquediabo!–exclamouConrad,aparecendonaporta.–Porque
apagoualuz?–Sempreapago.Devia terdito antesparanãoapagarhoje.Querque
acendadenovo,senhorConrad?–Nãoprecisa.Saialogodaí!–Lebeaupetitmonsieur...–murmurouAnnette,parandojuntodacama,
noescuro.–Amarrou-odireitinho,hein?Pareceatéumagalinhanoespeto!O tom divertido dela deixou Tommy desconcertado. Um instante
depois, ele ficou ainda mais desconcertado ao sentir a mão de Annettedeslizardeleveporcimadacordaecolocaralgopequenoefrionapalmadesuamão.
–Vamoslogo,Annette!–Maismevoilà.Aportafoifechada.TommyouviuConraddizer:–Tranqueaportaemedêachave.Ospassosseafastaram.Tommyestavaparalisadodeespanto.Oobjeto
queAnnettepusera emsuamãoeraumpequeno canivete, coma lâminaaberta.Pelamaneiracuidadosacomoelaevitoufitá-loeporsuaatitudeaoapagar a luz, Tommy chegou à conclusão de que o quarto estava sendovigiado.Deviahaverumorifíciodeespreitaemalgumpontodasparedes.Recordando agora como a moça se mostrara cautelosa, Tommy deduziuqueestavasendovigiadootempotodo.Seráquedisseraalgumacoisaquepudessedenunciá-lo?Erapoucoprovável.RevelaraavontadedeescapareodesejodeencontrarJaneFinn.Masnadadissopoderiaserumapistaparasuaverdadeira identidade.ÉverdadequeaperguntaaAnnettemostraraque,pessoalmente,nãoconheciaJaneFinn.Mastambémnuncaafirmaraocontrário. Havia agora outra questãomais importante: será que Annettesabia mais do que dissera? Será que suas negativas não se destinavamprimariamenteaoshomensqueestavamdevigia?Tommynãoconseguiu
chegaranenhumaconclusãoarespeito.Masaquestãovital,queexcluíatodasasoutras,eradiferente:seráque,
amarrado como estava, conseguiria cortar a corda? Tommy tentou, comcuidado,passaralâminaaberta,paracimaeparabaixo,nacordaqueuniaos dois pulsos. Era ummovimentodifícil e nãodemoroumuito para quesoltasse um grito abafado de dor ao cortar a própria carne. Mas elecontinuouapassara lâminasobreacorda,demaneira lentaeobstinada.Cortouaprópria carnemaisumavez,masafinal sentiua cordaafrouxar.Comasmãoslivres,orestofoifácil.Cincominutosdepois,eleselevantou,comalgumadificuldade,poisaspernasestavamdormentes.Suaprimeiraprovidência foi passar uma atadura improvisada no pulso sangrando.Depois,sentou-senabeiradacamaepôs-seapensar.Conradficaracomachave da porta. Assim, não podia contar com qualquer outra ajuda deAnnette.Aúnicasaídadoquartoeraaporta.Assim,teriaobrigatoriamentedeesperaratéqueosdoishomensvoltassemparabuscá-lo.Equandoelesvoltassem... Tommy sorriu. Movendo-se com infinita cautela no quartoescuro,eleencontrouetiroudaparedeofamosoquadro.Sentiuprazeraopensarqueseuplanoinicialnãoseriadesperdiçado.Agora,nadamaistinhaafazeranãoseresperar.ETommyesperou.
A noite passou lentamente. Tommy sobreviveu a uma eternidade dehoras. Mas, finalmente, ouviu passos. Ele ficou em pé, respirou fundo esegurouoquadrocomtodaafirmeza.
A porta se abriu. Uma luz fraca veio de lá de fora. Conrad entrou,seguindodiretoparaobicodegás, a fimdeacendê-lo.Tommy lamentouque ele tivesse entrado primeiro. Teria sido extremamente agradáveldesforrar-sedeConradnaquelemomento.ONúmero14entroulogoatrás.Enomomentoemqueelecruzouaporta,Tommybateuoquadrocomtodaforçaemsuacabeça.ONúmero14caiu,emmeioaumtremendoestrépitodevidroquebrado.Nomesmo instante,Tommysaiudoquarto ebateuaporta.Achaveestavanafechadura.Elegirou-aeretirou-anomomentoemque Conrad, dentro do quarto, se arremessava contra a porta, com umarajadadeimprecações.
Tommy hesitou por um momento. Ouviu o barulho de alguém semexendonoandarinferior.Uminstantedepois,oalemãogritou:
–GottimHimmel!Oqueestaacontecendoaíemcima,Conrad?Tommy sentiu uma mão pequena segurar a sua. Virou a cabeça e
deparoucomAnnetteaseu lado.Elaapontouparaumaescada frágilquedevialevaraalgumsótão.
–Vamossubir!Depressa!
Annette quase que o arrastou escada acima. Um momento depois,estavamemumsótãoempoeirado,cheiodemóveisecoisasvelhas.Tommyolhouaoredor.
– Este lugar não serve. É uma verdadeira armadilha. Não tem outrasaída.
–Fiquequieto!Eespereumpouco!A moça levou um dedo aos lábios. Foi até o alto da escada e ficou
escutando. Os golpes contra a porta eram terríveis. O alemão e outrohomemestavamtentandoarrombá-la.Annetteexplicou,sussurrando:
–Elespensamquevocêaindaestá ládentro.NãopodemouviroqueConraddiz.Aportaémuitogrossa.
–Penseiquepudessemouvirtudooquesedizdentrodoquarto.–Epodemmesmo.Háumorifíciodevigiaquedáparaooutroquarto.
Foimuitaespertezasuaadivinhar.Maselesnãovãoselembrardisso,poisestãopreocupadosexclusivamenteementrarnoquarto.
–Ébempossível.Mas...–Deixetudocomigo.Annetteseabaixou.Espantado,Tommyobservou-aamarrarapontade
umbarbantecompridonaalçadeumjarrograndeerachado.Aoterminar,elavirou-separaTommy:
–Estácomachavedaporta?–Estou,sim.–Entãomedê.Tommyentregouachave.– Vou descer agora. Acha que pode ir até omeio da escada e depois
pularparaficaratrásdela,semqueovejam?Tommyassentiu.–Temumarmáriograndenofundodopatamar.Fiqueláatrás.Eleve
estapontadobarbante.Assimqueeudeixarosoutros saírem,puxecomtodaforça!
AntesqueTommytivessetempodedizermaisalgumacoisa,Annettejáestava descendo silenciosamente a escada. Aproximou-se da porta,gritando:
–MonDieu!MonDieu!Qu’est-cequ’ilya?Oalemãovirou-separaela,soltandoumaimprecação.–Saiadaqui!Volteparaoseuquarto!Cautelosamente, Tommy desceu até a metade da escada e depois
balançou-separaficaratrásdela.Contantoqueelesnãosevirassem,estavatudobem.Foiagachar-seatrásdoarmário.Osdoishomensaindaestavam
entreeleeaescada.– Ei! – gritou Annette, parecendo tropeçar em alguma coisa e
inclinando-seemseguida.–MonDieu,voilàlaclef!O alemão arrancou a chave da mão dela. Abriu a porta. Conrad
cambaleouparafora,praguejando.–Ondeéqueeleestá?Vocêsoagarraram?–Nãovimosninguém–disseoalemãobruscamente,empalidecendo.–
Dequemestáfalando?Conradsoltououtraimprecação.–Eleescapou!–Issoéimpossível!Teriaquepassarpornós!Nessemomento,comumsorrisoextasiado,Tommydeuumpuxãono
barbante.Houveumestrondodelouçaquebrandonosótãoláemcima.Nomesmo instante, os homens subiram correndo a frágil escada,desaparecendonaescuridãodosótão.
Rápidocomoumrelâmpago,Tommysaiudeseuesconderijoedesceuaescada correndo, puxando Annette. Não havia ninguém no saguão. Elepuxouostrincoseacorrente,conseguindofinalmenteabriraporta.Virou-seedescobriuqueAnnettetinhadesaparecido.
Tommy ficou paralisado. Será que ela tornara a subir a escada? Queloucuraadominara?Tommyestavafuriosoeimpaciente,masnãosaiudolugar.NãoiriasemAnnette.
Subitamente,ouviuumclamorláemcima,umaexclamaçãoemalemãoedepoisavozclaraealtadeAnnette:
–Mafoi, ele escapou!Emuitodepressa!Quempoderia imaginarumacoisadessas?
Tommyaindaestavapregadonochão.Seráqueaquiloeraumaordemparaqueeleescapassesozinho?Imaginouqueera.
Uminstantedepois,aindamaisaltas,outraspalavrasdesceramatéele:– Esta é uma casa terrível! Quero voltar para Marguerite! Para
Marguerite!ParaMarguerite!Tommycorreudevoltaatéabasedaescada.Annetteestavaquerendo
queelefosseemborasozinho,queadeixasseali.Masporquê?Tinhaquetentarlevá-laconsigo,nãoimportaoquecustasse.Efoinesseinstantequesentiuumapertonopeito.Conraddesciaaescada,aospulos,esoltouumgritoselvagemaoavistá-lo.Osoutrosvinhamlogoatrás.
TommydeteveoímpetodeConradcomumsocoviolento.AcertouemcheionoqueixoeConraddesaboucomoumtroncoderrubado.Osegundohomemtropeçounocorpodeleecaiutambém.Emumpontomaisaltoda
escada,houveumclarãosúbitoeumabalapassouzunindopeloouvidodeTommy.Elecompreendeuqueseriamelhorparaasuasaúdesairdaquelacasaomaisdepressapossível.NadapodiafazeremrelaçãoaAnnette.Mas,pelo menos, desforrara-se de Conrad, o que era uma satisfação. O socoacertaraemcheio.
Elepulouparaaporta,batendo-aaosair.Apraçaestavadeserta.Umfurgãodepadariaestavaestacionadodiantedacasa.EraevidentequeserialevadoparalongedeLondresnaqueleveículo.SeucorposeriaencontradoamuitosquilômetrosdacasanoSoho.OmotoristapulouparaacalçadaetentouimpedirafugadeTommy.Orapazdesfechououtrogolpeviolentoeomotoristaesparramou-senacalçada.
Tommy saiu correndo... e já não era sem tempo.Aportada frente seabriueumarajadadebalasacompanhou-o.Felizmente,nenhumadelasoacertou.Elevirounaprimeiraesquina.
“Háumacoisaameufavor:elesnãoseatreverãoacontinuaratirando”,pensouTommy.“Atrairãoapolíciasecontinuaremetenhocertezadequeissoéalgoquenãodesejam.”
Eleouviuospassosdeseusperseguidoresepassouacorreraindamaisdepressa.Estariaemsegurançaassimquedeixasseparatrásaquelasruassecundárias desertas. Certamente encontraria um guarda nas ruas maismovimentadas. Não que desejasse realmente pedir a ajuda da polícia, sepudesseevitarisso.Casocontrário,eleteriadedarexplicaçõeseseriaumconstrangimento geral. Um instante depois, Tommy teve motivos paraagradecerasuasorte.Tropeçouemumcorpoprostrado,que levantou-seimediatamentecomumgritoalarmadoesaiucorrendo.Tommyrefugiou-se em um portal. E logo depois teve o prazer de ver seus doisperseguidores,umdosquaiseraoalemão,indoatrásdodesconhecido.
Semmaiores dificuldades, Tommy seguiu para um Banho Turco, quesabiaestarabertoanoiteinteira.Emergiuà luzdodiamovimentadocomumanovadisposição,capazdevoltaraformularplanos.
Em primeiro lugar, precisava de uma refeição decente. Nada comeradesde omeio-dia anterior. Entrou em uma lanchonete e pediu ovos combacon e café. Leu um jornalmatutino enquanto comia. Empertigou-se deforma súbita. Havia uma longa notícia sobre Kramenin, que era descritocomo “o homem por trás do bolchevismo” na Rússia e que acabara dechegaraLondres...naopiniãodealguns,comoumenviadonão-oficial.Suacarreiraeraapresentadaporaltoeafirmava-sequetinhasidoeleenãooslíderesnominaisquemfizeraaRevoluçãoRussa.
Nomeiodapáginaestavaafotografiadele.
–EntãoéeleoNúmero1!–murmurouTommy, comabocacheiadeovoscombacon.–Tenhoqueagirdepressa!
ElepagouoquecomeraeseguiudiretoparaWhitehall.Deuoseunomeeorecadodequeeraurgente.Algunsminutosdepois,foilevadoàpresençadohomemquealinãoeraconhecidocomo“Sr.Carter”.Orostodeleestavafranzido.
–Nãodeviatervindoatéaquiàminhaprocuradessaforma.Penseiquetivessedeixadoissobemclaro.
– E deixou, senhor. Mas julguei que o problema era importante eurgentedemaisparaperdertempo.
E o mais sucintamente possível, Tommy relatou as aventuras dosúltimosdias.
Na metade do relato, o Sr. Carter interrompeu-o para dar algumasordens enigmáticas pelo telefone. Todos os vestígios de desagrado jáhaviam desaparecido de seu rosto. Quando Tommy acabou de falar, eleassentiuemaprovação:
– Fezmuito bem, rapaz. Cadamomento é damaior importância. Sejacomofor,receioquechegaremostarde.Elesnãoficarãoesperandopornósnacasa.Devemterpartidoimediatamente.Dequalquermaneira,épossívelque tenhamdeixadoalgumacoisaquepossaservircomopista.Dissequeidentificou oNúmero 1 como sendoKramenin? Isso émuito importante.Precisamosdesesperadamentedealgumacoisacontraele,paraevitarqueoGabinetetomedecisõesprecipitadas.Temalgumaidéiadequemsãoosoutros?Disse que dois rostos lhe pareceram familiares, não émesmo? Eachaqueumdeleséumlídersindical?Dêumaolhadanessasfotografiasevejaseconseguereconhecê-lo.
Umminuto depois, Tommy separouumadas fotografias.O Sr. Carterdemonstroualgumasurpresa.
– É Westway! Eu não teria pensado nele. Apresenta-se como ummoderado.Quantoaooutrosujeito,creioquetenhoumbompalpite.
Eleentregououtra fotografiaaTommyesorriudiantedaexclamaçãodereconhecimentodorapaz.
– Eu estava certo. Quer saber quem é ele? Um irlandês, membro doParlamento,favorávelaoReinoUnido.Mastudonãopassadeumdisfarce,éclaro.Jásuspeitávamosdele,masnãotínhamosprovaalguma.Agiumuitobem,rapaz.Dissequeadataéodia29,nãoémesmo?Issonosdápoucotempo...realmentemuitopoucotempo.
–Mas...Tommyhesitou.OSr.Carterleuseuspensamentos.
–Achoquepodemos lidar facilmentecomaameaçadegrevegeral.Operigo é grande, mas temos uma boa chance. Mas se aquele tratadoaparecer,estamosperdidos.AInglaterrairámergulharnaanarquia.Qualéoproblema?Ocarrojáestápronto?Vamosindo,Beresford.Daremosumaolhadanacasaemqueestevepreso.
DoispoliciaisestavamdeguardadiantedacasanoSoho.UminspetordeuinformaçõesemvozbaixaaoSr.Carter,quecomunicouaTommy:
–Os pássaros voaram, como já tínhamos imaginado. Vamos dar umaolhadanacasa.
A visita à casa deserta assumiu as características de um sonho paraTommy.Tudocontinuavaexatamentecomoantes,oquarto-prisãocomosquadrostortos,o jarroquebradonosótão,asaladereuniõescomamesacomprida. Mas não havia em qualquer parte nenhum papel. Tudo foradestruídooulevadopelosfugitivos.EtambémnãohaviaomenorsinaldeAnnette.
–Oquecontouarespeitodamoçamedeixaintrigado–comentouoSr.Carter.–Achamesmoqueelavoltoudeliberadamente?
–Foioquemepareceu,senhor.Elasubiucorrendoaescadaenquantoeuabriaaporta.
–Hum...Eladevepertenceràquadrilha.Mas,sendomulher,nãopodiadeixarqueumjovembem-apessoadofossemorto.Maséevidentequeelaestádoladodeles,casocontrárionãoteriavoltado.
– Não consigo acreditar que ela seja realmente da quadrilha, senhor.Ela...pareceu-mediferente...
–Eraumamoçabonita?OsorrisodoSr.CarterfezTommycoraratéasraízesdoscabelos.Efoi
umtantoenvergonhadoqueadmitiuabelezaextraordináriadeAnnette.–Porfalarnisso,jáentrouemcontatocomaSrta.Tuppence?Elavem
mebombardeandoincessantementecomcartassobrevocê.–Tuppence?Receioqueelatenhasemovimentadoemexcesso.Sabese
foiprocurarapolícia?OSr.Cartersacudiuacabeça.–Comoseráentãoqueelesmeidentificaram?OSr.Carterfitou-ocomumaexpressãoinquisitivaeTommytratoude
explicar.Ooutroassentiu,pensativo.– Tem razão, é algo estranho. Ou será que a menção do Ritz foi
puramenteacidental?–Podetersido,senhor.Mascreioqueelesdescobriramalgumacoisaa
meurespeito.
– Não hámais nada a fazer aqui – concluiu o Sr. Carter, olhando aoredor.–Gostariadealmoçarcomigo?
– Agradeço imensamente, senhor. Mas acho melhor voltar ao Ritz epegarTuppenceparaalmoçar.
–Claro,claro...Dêlembrançasminhasaelaediga-lheque,dapróximavez,nãodeveficarpensandoquevocêfoiassassinado.
Tommysorriu.–Nãoéfácilmematar,senhor.– É o que estou vendo – constatou o Sr. Carter, secamente. – Até a
próxima.Enãoseesqueçadequeéagoraumhomemmarcadoequedevetomarcuidado.
–Obrigado,senhor.Pegandoumtáxi,TommyseguiuparaoRitz,pensandocomprazerna
surpresaqueTuppenceteria.“Oqueseráqueelaandoufazendodurantetodoessetempo?”,pensou
ele.“Certamenteficouvigiando‘Rita’.Porfalarnisso,devetersidoaelaqueAnnette estava se referindo ao falar emMarguerite. Não pensei nisso nahora.”Opensamentoentristeceu-oumpouco,poispareciacomprovarqueaSra.Vandemeyereamoçatinhamumarelaçãoíntima.
OtáxiparoudiantedoRitz.Tommyatravessouquasecorrendooportalsagrado, namaior ansiedade. Mas seu entusiasmo foi saudado com umaducha de água fria. Foi informado que a Srta. Cowley saíra 15 minutosantes.
18Otelegrama
Frustrado,Tommyfoiaorestauranteepediuumarefeiçãodeprimeira.Osquatrodiasdecativeirohaviamensinadoaele,outravez,ovalordeumaboacomida.
EstavalevandoàbocaumpedaçosaborosodaSoleàlaJeanettequandoavistou Julius entrando no restaurante. Tommy acenou com o cardápioalegremente e conseguiu atrair a atenção do norte-americano. À vista deTommy,osolhosdojovemJuliusderamaimpressãodequeiamsaltar.Ele
atravessou o restaurante rapidamente e apertou e sacudiu a mão deTommy,comumvigorquepareceuumtantodesnecessárioparao joveminglês.
–SantaMãedeDeus!–gritouJulius.–Évocêmesmo?–Claroquesoueu.Porquenãohaveriadeser?–Porquenãohaveriadeser?Ora,homem,seráquenãosabeque foi
dadocomomorto?Maisalgunsdiaseteríamosmandadorezarumamissaporvocê!
–Quempensouqueeuestivessemorto?–Tuppence.–Eladeveterselembradodoprovérbiodequeosbonsmorremcedo.
Masdevehaveremmimumaboaquantidadedopecadooriginal,oquemepermitiusobreviver.Porfalarnisso,ondeelaestá?
–Elanãoestáaqui?–Não.Disseram-menaportariaqueelatinhaacabadodesair.– Deve ter ido fazer compras. Trouxe-a de carro para cá há cerca de
umahora.Masseráquenãopodeagoraesqueceressasuafleumabritânicae contar o que aconteceu? Que diabo andou fazendo durante todo essetempo?
–Sevaicomeraqui,peçalogoacomida.Ahistóriaébemlonga.Julius puxou uma cadeira para o lado oposto damesa e fez um sinal
para um garçom que estava por perto. Fez seu pedido e depois virou-separaTommy.
– Comece logo a contar. Imagino que tenha algumas aventurasespetaculares.
–Nãomuitas–respondeuTommy,modestamente.E pôs-se a fazer o relato de tudo o que acontecera. Julius escutou
atentamente, fascinado. Esqueceu inclusive de comer metade dos pratosqueforamcolocadosàsuafrente.Aofinal,eledeixouescaparumsuspiroprolongadoecomentou:
–Bravoparavocê!Pareceatéumadessasobrasdemistério!–Eagoravamosfalarsobreaoutrafrente–disseTommy,estendendoa
mãoparaumpêssego.–Nãopossodeixardeadmitirquetambémtivemosalgumasaventuras.Julius assumiu o papel de narrador. Começou por sua malsucedida
expediçãoaBournemouth,passandoparaoretornoaLondres,acompradocarro, a crescente apreensão de Tuppence, a visita a Sir James e assensacionaisocorrênciasdanoiteanterior.
–Masquemamatou?–indagouTommy.–Nãoconsigoentender.
– O médico estava brincando se achou que ela ingeriu o líquidodeliberadamente–respondeuJulius,secamente.
–EqualéaopiniãodeSirJames?–Porserumjuristaerudito,elesecomportacomoumaostra.Eudiria
que ele sempre faz o que se costuma chamar de “reservar-se umjulgamento”.
E Julius pôs-se a relatar os acontecimentos daquela manhã. Quandoterminou,Tommycomentou,profundamenteinteressado:
–Quer dizer que Jane Finnperdeu amemória, hein? Isso explica porqueelesmeolharamdemaneiratãoesquisitaquandofaleieminterrogá-la.Umdescuidoe tantodaminhaparte.Masnãoerao tipode coisaqueeupudesseadivinhar.
– Eles não lhe deram amenor indicação do lugar onde Jane poderiaestar?
Tommysacudiuacabeça,pesarosamente.–Nãoderamamenorindicação.Mas,comosabe,souumtantoimbecil.
Deviaterencontradoumjeitodearrancardelesmaisalgumasinformações.– Acho que já temmuita sorte por estar aqui. Seu blefe foi uma boa
idéia.Nãoseiseeuconseguiriapensaremalgoparecido.–Euestavanumaencrencatãograndequetinhadepensaremalguma
coisa.HouveumabrevepausaedepoisTommyvoltouafalarsobreamorte
daSra.Vandemeyer:– Não resta mais a menor dúvida de que foi mesmo o cloral que a
matou?– Creio que não. Pelomenos osmédicos disseramque foi um ataque
cardíaco,provocadoporumadoseexcessiva.Ouqualquercoisaparecida.Jáestátudoacertado.Nãoprecisamosnemmesmonospreocuparmoscomapossibilidadedeuminquérito.MasachoqueTuppenceeeu,assimcomooemproadoSirJames,todostivemosamesmaidéia.
–OSr.Brown?–arriscouTommy.–Exatamente.Tommyassentiu.– Seja como for, a verdadeéqueo Sr.Brownnão temasas.Nãovejo
comoelepoderiaterentradoesaídodoapartamento.– O queme diz desse negócio de transmissão de pensamentos? Não
poderia ter havido alguma influência magnética que irresistivelmentecompeliuaSra.Vandemeyeracometersuicídio?
Tommyfitou-ocomtodorespeito.
– Boa idéia, Julius, muito boa mesmo. Sobretudo o palavreado. Masconfessoquenãomeentusiasma.EstouprocurandoporumSr.Brownreal,decarneeosso.Achoqueosjovensdetetivesdetalentodevementraremaçãosemqualquerhesitação,examinandotodasaspistas,pondoamassacinzentaparafuncionar,atéencontraremasoluçãoparaomistério.Vamosdar outra olhada na cena do crime. Eu gostaria que Tuppence estivesseaqui.ORitziriaapreciaroespetáculodaalegrereunião!
PerguntaramnovamentenaportariaeverificaramqueTuppenceaindanãohaviavoltado.
–Achomelhordarumaolhadaláemcima–sugeriuJulius.–Elapodeestarnasaladeestardaminhasuíte.
Elesubiu.Derepente,umgaroto,empregadodohotel,aproximou-sedeTommyedissedemaneiratímida:
–Achoqueamoçafoiviajardetrem,senhor.–Oquê?Tommy virou-se bruscamente para encarar o garoto, que ficou
vermelhodevergonha.–Otáxi,senhor.Ouviquandoeladisseaomotoristaquealevassepara
CharingCrossomaisdepressapossível.Tommynãodisse nada, continuando a olhar fixamente para o garoto
com os olhos arregalados de surpresa. Sentindo-se encorajado, o garotoacrescentou:
–Foioquepensei,quandoelapediuumguiaA.B.C.eumBradshaw.–Equandofoiqueelapediu?–indagouTommy.–Quandoentregueiotelegrama.–Telegrama?–Issomesmo,senhor.–Eaquehorasfoiisso?–Porvoltademeio-diaemeia,senhor.–Diga-meexatamenteoqueaconteceu.Ogarotorespiroufundo.– Levei um telegrama para o quarto 891. A moça estava lá. Abriu o
telegramaesoltouumaexclamaçãodeespanto.Emedisse,comumacaramuito alegre: “Traga-me um guia A.B.C. e um Bradshaw, Henry, o maisdepressapossível.”MeunomenãoéHenry,mas...
–Nãoimportaqualéoseunome–interrompeuTommy,jáimpaciente.–Contelogooresto.
– Sim, senhor. Fui buscar o que elame pediu. Amoçame disse paraesperar.Deuumaolhadanoshorários,consultouorelógioedisse:“Peçalá
embaixo que me providenciem um táxi imediatamente.” E ela se pôs aajeitar um chapéu, diante do espelho. Desceu logo depois. Vi quando elaentrounotáxiemandouomotoristalevá-laparaCharingCross.
O garoto parou de falar, voltando a reabastecer os pulmões de ar.Tommy continuou a observá-lo. Nessemomento, Julius voltou. Trazia namãoumacartaaberta.
– Tuppence foi fazer umas investigações por conta própria,Hersheimmer–informouTommy,virando-separaele.
–Masquedroga!–ElaseguiuparaCharingCrossnamaiorpressadepoisdereceberum
telegrama.Tommyavistouacartanamãodonorte-americanoeacrescentou:–Ora,eladeixouumbilheteparavocê.Issoéótimo.Paraaondeéque
elafoi?Quase que inconscientemente, Tommy estendeu a mão para a carta.
Julius tratou de dobrá-la e guardou-a no bolso. Parecia estar bastanteconstrangido.
– Acho que isso nada tem a ver com a viagemde Tuppence. É sobreoutracoisa...algoquepediaelaquemerespondesse.
–Ah...Tommy estava perplexo. Ficou calado, como se esperasse por mais
explicações.–Émelhorsaberlogodetudo!–exclamouJuliusabruptamente.–Esta
manhã,pediàSrta.Tuppencequesecasassecomigo.–Ah...–murmurouTommy,mecanicamente.Ele ficou completamente desconcertado. As palavras de Julius foram
inesperadas. Por um momento, seu cérebro ficou atordoado, incapaz depensar.
–Gostariaquesoubesseque,antesdefazeropedidoàSrta.Tuppence,deixei bem claro que não queria interferir entre qualquer coisa quepudessehaverentrevocêsdois....
Tommydespertoudesualetargia,apressando-seemdizer:– Não há problemas, Julius. Tuppence e eu somos amigos hámuitos
anos.Emaisnada.Eleacendeuumcigarro,amãotremendoumpouco.– Era de se esperar que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde.
Tuppencesempredissequeestavaprocurandopor...Tommyparoude falarabruptamente,seurostoestavavermelho.Mas
Juliusnãoperdeuacalma:
–Nãosepreocupe.Seiquemeusdólaresserãooargumentodecisivo.ASrta.Tuppencenãofezsegredoquantoaisso.Nãoédeenganarninguém.Creioquevamosnosdarmuitobem.
Tommy o olhou com curiosidade por um minuto inteiro, como seestivesse prestes a dizer alguma coisa. Mas depois mudou de idéia epermaneceucalado.TuppenceeJulius!Masporquenão?Elanãolamentarao fato de não conhecer homens ricos? Não confessara abertamente suaintençãodesecasarpordinheiro,sealgumdiativessetaloportunidade?Oencontrocomojovemmilionárionorte-americanolheproporcionaraessaoportunidade...EseriapoucoprovávelqueTuppencedeixasseescaparumachancedessas.Elaestavaembuscadedinheiro.Sempredisseisso.Porqueculpá-lasóporterpermanecidofielàssuasconvicções?
Apesar de todo esse raciocínio, Tommy acabou culpando-a. Sentiu-sedominado por um ressentimento intenso e extremamente ilógico. Eraperfeitodizeraquelascoisas,masumamoçasincera jamaissecasariapordinheiro.Tuppenceerapordemaisfriaeegoístaeeleficariamuitofelizsenuncamaistornasseavê-la!Ah,quemundopodre!
AvozdeJuliusinterrompeusuasmeditações:–Éissomesmo,achoquevamosnosdarmuitobem.Sempreouvidizer
queumagarotainvariavelmenterecusaoprimeiropedidodecasamento.Éumaespéciedeconvenção.
Tommysegurou-lheobraço.–Recusa?Dissemesmorecusa?–Issomesmo.Euaindanãohaviaditoavocê?Elaacabademedarum
“não”,semqualquerexplicação.Éoeternofeminino,comodizemoshunos,peloquemecontaram.Maselavaiacabarmudandodeidéia.Voudarumjeitode...
MasTommy interrompeu-obruscamente,esquecendoacomposturaeindagandonamaioransiedade:
–Oqueeladissenobilhete?OobsequiosoJuliusentregou-lheobilhete.– Não há qualquer informação sobre o lugar para onde ela foi –
assegurouJulius.–Maspodeler,senãoestáacreditandoemmim.Obilhete,escritocomaletradecolegialdeTuppence,queTommytão
bemconhecia,diziaoseguinte:
CAROJULIUS:É sempre melhor deixar as coisas bem claras. Não poderei
pensaremcasamentoatéqueTommysejaencontrado.Atélá,vamosdeixarascoisascomoestão.
Afetuosamente,
TUPPENCE
Tommy devolveu o bilhete. Seus olhos brilhavam. Sentia-sesubitamenterevitalizado.Tuppencevoltaraasertudooquehaviademaisnobreedesinteressado.Afinal, elanão rejeitaraopedidode Julius semamenor hesitação? É verdade que o bilhete apresentava indícios deenfraquecimento,masTommypodiadesculpá-laporisso.Eraquasecomoumsubornoa Juliuspara fazê-lo redobrar seus esforçosnaprocuradele,Tommy.MasTommyconcluiuquenãoforaexatamenteessaaintençãodeTuppence. Ah, a querida Tuppence!Não havia uma sómulher nomundoquepudessesecompararaela!Quandoavisse...Tommyinterrompeusuasreflexões.
–Comoacaboudedizer,Julius,nãoháamenorindicaçãodolugarparaondeelafoi.Ei,Henry!
O garoto aproximou-se, obedientemente. Tommy tirou 5 shillings dobolso.
– Só mais uma coisa, Henry. Lembra-se do que a moça fez com otelegrama?
Henryrespondeusemhesitar:–Elaoamassouejogounalareira,soltandoumgritodealegria,senhor.– Muito obrigado, Henry. Aqui estão seus 5 shillings. Vamos subir,
Julius.Temosquedescobriressetelegrama.Subiramaescadaquasecorrendo.Tuppencedeixaraachavenaporta.
Oquartocontinuavaexatamentecomoelaodeixara.Nalareira,haviaumabola de papel amassada, laranja e branca. Tommy abriu o telegrama ealisou-o: “Venha imediatamente para Moat House, Ebury, Yorkshire,grandesnovidades.TOMMY.”
Osdoisseentreolharam,estupefatos.Juliusfoioprimeiroafalar:–Nãofoivocêquemandouessetelegrama?–Claroquenão!Oqueseráquesignifica?–Achoquesignificaopior.Elesapegaram.–Oquê?– É isso mesmo. Assinaram seu nome no telegrama e ela caiu na
armadilhacomoumcordeirinho.–SantoDeus!Oquevamosfazeragora?
–Temosqueiratrásdela.Eimediatamente!Nãohátempoaperder.Foimuita sorte ela não ter levado o telegrama. Se tivesse feito isso,provavelmentenuncaconseguiríamosdescobrirseuparadeiro.Mastemosquenosapressar.OndeestáaqueleguiaBradshaw?
A energia de Julius era contagiante. Se estivesse sozinho, Tommyprovavelmenteteriasentadoepensadonosacontecimentosdurantemeiahora antes de se decidir por algum plano de ação. Mas com JuliusHersheimmerporperto,apressaerainevitável.
Depois de algumas imprecações, Julius acabou entregando o guiaBradshawaTommy,queestavamais familiarizadocomseusmistérios.ETommylargou-ouminstantedepois,preferindoestudaroguiaA.B.C.
–Ah,aquiestá!Ebury,Yorks.PartidadeKing’sCross.OudeSt.Pancras.Ogarotodeve ter-seenganado.EraKing’sCrossenãoCharingCross.Eladeveterpartidonotremdas12h50.Otremdas14h10jáfoi.Opróximovaipartiràs15h20...eéumtremquevaiparandoemtodasasestações!
–Nãopodemosirdecarro?Tommysacudiuacabeça.–Mandeocarroparalá,sequiser.Masémelhorirmosdetrem.Antes
demaisnada,oimportanteémanteracalma.Juliusresmungou.–Está certo.Mas fico furioso sódepensarqueaquelamoça inocente
possaestarcorrendoalgumperigo!Tommy assentiu, distraidamente. Estava pensando. Um momento
depois,eledisse:–Ei,Julius,porqueelesestãoatrásdela?–Comoassim?Nãoestouentendendo.– O que estou querendo dizer é que não creio que eles estejam
querendo causar algummal a Tuppence – explicou Tommy, franzindo assobrancelhas sob a pressão de seus processosmentais. – Eles a queremcomorefém.Tuppencenãocorreperigoimediato.Seencontrarmosalgumacoisa,elapodese tornarextremamente importanteparaeles.Enquantoativerememseupoder,elesdispõemdeumaarmaparanoscontrolar.Estáentendendoagora?
–Achoquetemrazão...–murmurouJulius,pensativo.–Alémdomais–acrescentouTommy,comose fosseumpensamento
posterior–,tenhomuitaféemTuppence.Aviagemfoicansativa,comincontáveisparadasevagõessuperlotados.
Tiveramquemudarde tremduasvezes,emDoncastereemumpequenoentroncamento.Eburyeraumaestaçãodeserta,ondesóhaviaumsolitário
carregador,aoqualTommysedirigiuimediatamente:–PodemeindicarocaminhoparaMoatHouse?–MoatHouse? Fica umbocado longe daqui. Está se referindo àquela
casagrandepertodomar,nãoémesmo?Tommy assentiu, com a maior desfaçatez. Depois de escutarem as
instruções meticulosas mas um tanto confusas do carregador, os doisjovensprepararam-separadeixaraestação.Estavacomeçandoachovereeles levantaram as golas de seus casacos ao saírem para a estrada.Subitamente,Tommyparou.
–Espereumpouco,Julius.Elevoltoucorrendoparaaestaçãoeabordounovamenteocarregador.–Lembra-sedeumamoçaquechegouaquinumtremanterior,oque
saiudeLondresàs12h50?ProvavelmenteelaperguntouavocêocaminhoparaMoatHouse.
Tommy descreveu Tuppence da melhor forma possível, mas ocarregador sacudiu a cabeça negativamente. Diversas pessoas haviamchegadonaqueletrem.Nãoserecordavadequalquermoçaemparticular.MastinhacertezaabsolutadequeninguémlheperguntaraocaminhoparaMoatHouse.
TommyvoltouparajuntodeJuliuserelatouaconversa.Adepressãooenvolvia como se fosse uma armadura de chumbo. Estava convencido dequenãoteriamqualquersucessonabusca.Oinimigotiveraumavantagemdetrêshoras.EtrêshoraseraumprazomaisdoquesuficienteparaoSr.Brown.Elenãoiriaignorarapossibilidadedeotelegramaserencontrado.
Ocaminhopareciainterminável.Emdeterminadomomento,seguirampelo caminho errado e percorreram quase um quilômetro antes dedescobrirem o engano. Já passava das 19 horas quando um garotoinformou-os de queMoatHouse ficava logo depois da primeira curva daestrada.
Um portão de ferro todo enferrujado, rangendo sinistramente nasdobradiças! Omato estava alto nos lados do caminho da estrada, e esteestava coberto de folhas! Havia algo naquele lugar que provocou umcalafrio em ambos. Subiram pelo caminho deserto. O tapete de folhasamortecia o ruído dos passos. O dia estava quase chegando ao fim. Eracomo andar em um mundo de fantasmas. Lá em cima, os galhos sesacudiamedevez emquandoestalavam, comummurmúrio lúgubre.Devez emquando, uma folhaúmida flutuava silenciosamentepelo ar e lhesprovocavaumsobressaltoaoroçar,muitofria,norostodeumoudeoutro.
Avistaram a casa logo depois de uma curva no caminho. Também
pareciavaziaedeserta.Asvenezianasestavamfechadas,osdegrausatéaporta estavam cobertos de musgo. Será que Tuppence fora realmenteatraída para aquele lugar tão desolado? Era difícil acreditar que péshumanostivessempassadoporalinosúltimosmeses.
Julius deu um puxão na corda do sino enferrujado. O repique ecooupelovazio ládentro.Ninguémapareceu.Tocaramoutravezemaisoutra,masnãohouvequalquersinaldevida.Contornaramacasa.Estavatudoemsilêncio,todasasjanelastrancadas.Acreditaramnoqueseusolhosestavamvendo,acasaestavamesmovazia.
–Nãotemninguémaqui–constatouJulius.Voltaramlentamenteatéoportão.–Devehaveralgumaaldeiaporperto–especulouonorte-americano.–
Podemosdescobriralgumacoisalá.Elesdevemsaberseapareceualguémporaquirecentemente.
–Nãoéumamáidéia...eéaúnicacoisaquepodemosfazer.Continuaram a seguir pela estrada e pouco depois chegaram a uma
pequenaaldeia.Encontraramumoperárionosarredores, carregandosuasacoladeferramentas.Tommydeteve-oeindagouarespeitodacasa.
–MoatHouse?Estávazia.Eháanosqueestávazia.AchaveestácomaSra.Sweeney,sequeremiratélá.Éaprimeiracasadepoisdaagênciadoscorreios.
Tommy agradeceu. Não demoraram a encontrar a agência, ondefuncionavatambémuma lojadedoceseoutrosartigos.Bateramnaportado chalé ao lado. Uma mulher de aspecto saudável e higiênico atendeu.Entregou-lhesachavedeMoatHousesemamenorhesitação.
– Mas duvido muito que gostem da casa. Está precisando de muitosreparos. O teto está cheio de goteiras, entre outras coisas. Teriam quegastarmuitodinheiroparaarrumartudo.
– Obrigado pelo aviso – disse Tommy de forma cordial. – Mas, dequalquermaneira,ofatoéqueascasasandammuitoescassasnosdiasdehoje.
–É issomesmo!– concordouamulher,efusivamente.–Minha filhaemeu genro estão procurando por uma casa decente há não sei quantotempo.Éporcausadaguerra.Deixoutudonamaiordesordem.Massemepermite a observação, creio que estará muito escuro para poderemexaminar a casa direito. Não seria melhor esperarem até amanhã demanhã?
– Vamos dar uma olhada agora de qualquer maneira. Esperávamoschegaraqui antes,masnosperdemosnocaminho.Qual éomelhor lugar
poraquiparasepassaranoite?ASra.Sweeneypareceuficaremdúvida.–TemoYorkshire,masnãoégrandecoisaparadoiscavalheiros.–Ora,nãosepreocupecomisso.Serviráperfeitamente.Obrigadopor
tudo.Ah,sim...nãoapareceuporaquihojeumamoçapedindoachavedeMoatHouse?
Amulhersacudiuacabeça.–Hámuitotempoqueninguémvemveracasa.–Obrigadonovamente.Os dois voltaram a Moat House. Abriram a porta da frente e
empurraram-na.Aportarangeuestridentemente.Juliusriscouumfósforoeexaminouochãocomatenção.Depois,sacudiuacabeça.
–Soucapazdejurarqueninguémandaporaquihámuitotempo.Olhesóparaapoeira.Nãoháqualquermarcadepegadas.
Circularam pela casa deserta. Por toda parte, era a mesma coisa:grossascamadasdepoeira,semqualquerpegada.
–NãocreioqueTuppencetenhaestadonestacasa–comentouJulius.–Eladeveterentrado!Juliussacudiuacabeça,semresponder.– Voltaremos amanhã de manhã – acrescentou Tommy. – Talvez
possamosdescobriralgumacoisaàluzdodia.Tornaramarevistaracasanamanhãseguintee,relutantemente,foram
forçados a concluir que ninguém estivera naquela casa há um tempoconsiderável. Poderiam ter deixado imediatamente a aldeia se não fosseporumaafortunadadescobertadeTommy.Aovoltaremparaoportão,elesoltou um grito repentino e, abaixando-se, pegou alguma coisa entre asfolhas.MostrouaJulius.Eraumbrochedeouro.
–ÉdeTuppence!–Temcerteza?–Absoluta!Jáaviusá-lomuitasvezes!Juliusrespiroufundo.–Achoque issodiztudo.Agora, temoscertezadequepelomenosela
veioatéaqui.Instalaremosnossoquartel-generalnopubefaremosdetudoparaencontrá-la.Alguémdevetê-lavisto!
A campanha começou imediatamente. Tommy e Julius trabalharamjuntosdesesperadamente,masoresultadofoisempreomesmo.Ninguémvirapor ali qualquermoçaque correspondesseàdescriçãodeTuppence.Os dois ficaram aturdidos, mas não perderam o ânimo. Finalmente,resolverammudar a tática. Era evidentequeTuppencenãopermanecera
muitotemponasproximidadesdeMoatHouse.Issopareciaindicarqueelaforasubjugadaelevadadaliemumcarro.Modificaramosinterrogatórios.AlguémviraumcarropertodeMoatHousenaqueledia?Enovamentenãotiveramqualquersucessonasinvestigações.
JuliustelegrafouparaLondres,mandandoquelheenviassemseucarro.Vasculhavam diariamente a região, com um empenho incessante. Umalimusinecinzenta,naqualdepositavammuitasesperanças,foiinvestigadaaté Harrogate. Mas descobriram que pertencia a uma dama altamenterespeitável.
Todososdiaspartiamparaumanovabusca. Juliuspareciaumcãodecaçanacoleira.Farejavaatéapistamaistênue.Todososcarrosquehaviampassado pela aldeia naquele dia fatídico foram investigados. O norte-americano entrou quase que à força em diversas casas, interrogandometiculosamente os proprietários dos carros. Suasdesculpas eramquasetãoveementesquantoseusmétodos,eraramentedeixavamdeneutralizaraindignaçãodasvítimas.MasosdiasforampassandoeelescontinuavamlongededescobriremoparadeirodeTuppence.Oseqüestroforatãobemplanejadoqueamoçaparecia,literalmente,terdesaparecidoemplenoar.
EoutrapreocupaçãocomeçouacorreramentedeTommy.–Sabeháquanto tempoestamosaqui?–perguntoueleumamanhãa
Julius, ao tomarem café. – Uma semana inteira! E continuamos semdescobriramenorpistadeTuppence.Eopioréqueopróximodomingoéodia29!
– É mesmo... – murmurou Julius, pensativo. – Eu tinha quase meesquecidododia29.NãotenhopensadoemmaisnadaalémdeTuppence.
–Eutambém.Nãochegueiaesquecerodia29,masacheiquenãotinhaamenor importância em comparação com a descoberta do paradeiro deTuppence.Mashojeédia23eotempoécadavezmaiscurto.Precisamosencontrá-ladequalquermaneiraantesdodia29.Depoisdisso, avidadeTuppencenãovalerámaisnadaparaeles,poisnãoprecisarãomaisdeumarefém. Estou começando a pensar que cometemos um grande erro namaneira como temos tratadooproblema.Perdemosum tempoenormeenãoconseguimoschegaralugarnenhum.
–Achoqueestácerto.Somosumadupladeimbecisquemorderamumaporção maior do que podiam mastigar. Vou deixar de enganar a mimmesmoimediatamente!
–Oqueestáquerendodizercomisso?–Voufazeragoraoquedeveríamosterfeitoháumasemana.Voltarei
imediatamenteparaLondres e entregarei o casonasmãosda suapolícia
britânica. Tivemos a ilusão de que éramos detetives. Detetives! Foi umatremendatolice!Jáchegaparamim!AgoravouentregarocasoàScotlandYard!
– Tem toda razão. Gostaria que tivéssemos tomado essa decisãoimediatamente.
–Antestardedoquenunca.Fomosumadupladecriançasbrincandodemocinhoebandido.E agoravoudiretopara a ScotlandYardpedir a elesquemepeguempelamãoemostremocaminhoquedevoseguir!Achoque,no fimdas contas, osprofissionais sãomuitomelhoresqueos amadores.Vaicomigo?
Tommysacudiuacabeça.–Paraquê?Umdenósserásuficiente.Possoperfeitamentecontinuar
poraquieinvestigarmaisumpouco.Talvezaconteçaalgumacoisa.Nuncasesabe...
– Está certo. Voltarei em dois tempos, trazendo alguns detetives.Pedireiqueenviemosmelhores.
Mas os acontecimentos não seguiram o curso fixado por Julius. Maistarde,naquelemesmodia,Tommyrecebeuumtelegrama:
Vá se encontrar comigo noManchesterMidland Hotel. Notíciaimportante.JULIUS.
Às19h30,Tommydesembarcoudotrem.Juliusestavaàsuaesperanaplataforma.
– Achei que viria neste trem, caso recebesse meu telegramaimediatamente.
Tommysegurou-lheobraço.–Oqueaconteceu?Tuppencefoiencontrada?Juliussacudiuacabeça.–Não.MasencontreiestetelegramaàminhaesperaemLondres.Tinha
acabadodechegar.EleentregouotelegramaaTommy,quearregalouosolhosaolê-lo:Jane Finn encontrada. Venham imediatamente para Manchester
MidlandHotel.PEELEDGERTON.Juliustornouapegarotelegramaedobrou-o,murmurando,pensativo:–Estranho...Penseiqueaqueleadvogadotivesseabandonadoocaso...
19JaneFinn
—Meutremchegouhámeiahora–explicouJulius,aodeixaremaestação.–ImagineiquevocêvirianestetremantesmesmodepartirdeLondres.Porisso, passei um telegrama com essas informações para Sir James. Elereservouquartosparanós.Deveremosnos encontrar às20horasparaojantar.
–Oqueofezpensarqueelehaviaperdidotodointeressepelocaso?–perguntouTommy,curioso.
–Oqueeledisse–respondeuJulius,secamente.–Ohomeméfechadocomo uma ostra. Como todos os malditos advogados, ele não é de secomprometer comcoisa algumaaté ter certezadequepoderá fornecer amercadoria.
–Nãosei...–murmurouTommy,pensativo.Juliusvirou-separaele.–Oquevocênãosabe?–Seterásidomesmoessaaverdadeirarazãodele.–Podeapostarquefoi!Tommysacudiuacabeça,aindanãoconvencido.SirJameschegouàs20horasempontoeJuliusapresentouTommy.Sir
Jamesapertou-lheamãocalorosamente.– É um prazer conhecê-lo, Sr. Beresford. Tenho ouvido tanto a Srta.
Tuppencefalaraseurespeito...Ele fez uma breve pausa, sorrindo involuntariamente, antes de
acrescentar:–...queatéparecequejáoconheçohámuitotempo.–Obrigado,senhor–agradeceuTommy,comseusorrisomaiscordial.Como Tuppence, ele logo sentiu o magnetismo da personalidade do
advogado. Fê-lo lembrar-se do Sr. Carter. Os dois homens, emboratotalmente diferentes em termos de semelhança física, produziam umefeito parecido. Por trás da atitude de cansaço de um e da reservaprofissionaldooutrohaviaamesmaqualidadedamente,afiadacomoumflorete.
Aomesmotempoemquepensavanisso,TommysentiuqueSirJamesoexaminavacomatenção.Quandooadvogadobaixouosolhos,Tommyteve
a sensação de que lera através dele, como se fosse um livro aberto. Nãopôdedeixardeseperguntarqual teriasidoo julgamento final.Mashaviapoucapossibilidadedesabê-lo.SirJamesabsorviatudo,massódevolviaoquedesejava.Umaprovadissoocorreuquasequeimediatamente.
Depoisdoscumprimentos,Juliusdesferiuumasaraivadadeperguntasansiosas. Como Sir James conseguira localizar a moça? Por que não osavisaraquecontinuavaatrabalharnocaso?Eassimpordiante.
SirJamescoçouoqueixoesorriu.–Calma, calma... Ela foi encontradae isso éomais importante,nãoé
mesmo?Vamos,diga,nãoéomaisimportantedetudo?–Claroqueé!Mascomoencontrouapistadela?ASrta.Tuppenceeeu
pensamosquetivesseabandonadoocaso.–Ahn...–murmurouoadvogado, lançando-lheumolharpenetrantee
recomeçandoemseguidaacoçaroqueixo.–Pensourealmenteisso,hein?Bom,muitobom...
–Masagoraachoqueestávamosenganados.–Nãoseisepodemoschegaratanto.Masnãorestaamenordúvidade
queéumafelicidadeparatodosofatodeamoçatersidoencontrada.–Masondeelaestá?–indagouJulius,seuspensamentosenveredando
poroutrocaminho.–Nãodeveriatê-latrazido?–Issoseriaimpossível–respondeuSirJames.–Porquê?–Porqueamoçasofreuumacidenteeteveferimentoslevesnacabeça.
Foi levada para uma enfermaria. Ao recuperar os sentidos, disse que sechamava Jane Finn. Assim que eu soube disso, providenciei para que elafosse removida para a casa de ummédico amigomeu. E depois passei avocêum telegrama.Elavoltoua ficar inconscienteenãodissemaisnadadesdeentão.
–Elaestágravementeferida?–Não.Sofreuapenasalgumasescoriaçõesepequenoscortes.Doponto
de vista médico, são ferimentos absurdamente leves para provocar oestadoemqueseencontra.Éprovávelqueissoresultedochoqueporterrecuperadoamemória.
– Quer dizer que ela recuperou a memória? – gritou Julius, muitoentusiasmado.
SirJamestamborilouosdedossobreamesa,impacientemente.–Claroquesim,Sr.Hersheimmer, jáque foicapazdedizerseunome
verdadeiro.Penseiquetivessecompreendidoisso.– E por acaso estava por perto quando isso aconteceu – comentou
Tommy.–Pareceatéumcontodefadas.MasSirJameseracautelosodemaisparasedeixarlevar,limitando-sea
dizer,secamente:–Ascoincidênciassãosempremuitoestranhas.AgoraTommytinhacertezadoqueantessuspeitava.ApresençadeSir
James em Manchester não era apenas acidental. Longe de abandonar ocaso,comoJuliusimaginara,oadvogadoconseguira,pormeiosquesóelesabia, encontrarapistadamoçadesaparecida.Aúnica coisaquedeixavaTommyperplexo era a razãopara tanto segredo. Acabou concluindoqueeraumafraquezadeumamentedasleis.
Juliusdeclarou:–Assimqueacabarojantar,ireiverJaneimediatamente.– Receio que isso seja impossível – informou Sir James. – Não é
provável que permitam visitantes a essa hora da noite. Eu sugiro que oencontrosejaamanhã,às10horas.
Juliusficouvermelho.HaviaalgoemSirJamesquesempreprovocavaoseuantagonismo.Eraumconflitodeduaspersonalidadespoderosas.
– De qualquer maneira, darei um pulo até lá esta noite, para ver seconsigoconvencê-losaesqueceressesregulamentosabsurdos.
–Possolhegarantirqueserátotalmenteinútil,Sr.Hersheimmer.As palavras soaram como o estampido de uma pistola. Tommy ficou
surpreso.Juliusestavabastantenervosoeagitado.Amãocomquelevouocopo aos lábios tremia ligeiramente. Mas os olhos estavam fixos em SirJames, com uma expressão de desafio. Por um momento, a hostilidadeentreosdoisdeuaimpressãodequeiriaexplodiremchamas.Mas,porfim,Juliusbaixouosolhos,derrotado.
– Está certo – disse ele. – Reconheço que, nomomento, é você quemmanda.
–Obrigado.Entãoestamoscombinadosparaamanhãàs10horas?Com a maior tranqüilidade, Sir James virou-se para Tommy e
acrescentou:–Devoconfessar,Sr.Beresford,quefoiumasurpresaetantoparamim
encontrá-loaquiestanoite.Naúltimavezemqueouvifalaraseurespeito,seusamigosestavamextremamentepreocupados como senhor.EaSrta.Tuppence estava inclinada a pensar que se metera em alguma situaçãodifícil.
–Efoirealmenteoqueaconteceu,senhor!Tommysorriu,aorecordar,antesdearrematar:– Acho que jamais estive numa situação tão difícil em toda a minha
vida!EstimuladopelasperguntasdeSirJames,elefezumrelatoabreviadode
suas aventuras. O advogado fitava-o com um interesse intenso quando ahistóriachegouaofim.Ecomentou,emtomgrave:
–Conseguiusair-semuitobemnumasituaçãorealmentedifícil.Dou-lheos parabéns. Demonstrou uma engenhosidade extraordinária erepresentoumuitobemoseupapel.
Tommyficouvermelhocomoumcamarãoaoouviroelogio.–Eunãoteriaconseguidoescaparsemaajudadamoça,senhor.SirJamessorriulevemente.–Temrazão.Foimuitasortesuaqueelativesse...seentusiasmadopor
suapessoa,digamosassim.Tommyfezmençãodeprotestar,masSirJamescontinuouafalar:–Quemsabeseelanãofazpartedaquadrilha?– Infelizmente, senhor, creio que não é isso o que acontece. Pensei a
princípioque a estivessemmantendo lá à força.Mas amaneira comoelaagiunãoconfirmouessasuposição.Afinal,preferiuvoltarparajuntodeles,quandopoderiaterescapadocomigo.
SirJamesconcordou,pensativo.–Oquefoimesmoqueeladisse?Seestoubemlembrado,contouque
elagritouquequeriaserlevadadevoltaparaMarguerite,nãoémesmo?– Exatamente, senhor. Creio que ela estava se referindo à Sra.
Vandemeyer.– Ela sempre assinou Rita Vandemeyer. E todos os amigos só a
chamavamdeRita.Apesardisso,épossívelqueessamoçativesseohábitodechamá-laporseunomeinteiro.Enomomentoemqueestavagritando“Marguerite,Marguerite”,aSra.Vandemeyerjáestavamortaouagonizava!Quecoisaestranha...Háalgunspontosemsuahistóriaquemeparecemumtantoobscuros...comoasúbitamudançadeatitudedelesemrelaçãoavocê,porexemplo.Porfalarnisso,acasafoirevistadadepois,nãoémesmo?
–Foi,sim,senhor.Masnadaconseguimosencontrar.–Eradeseimaginar.–Elesnãodeixaramamenorpista.–Ficopensando...O advogado tamborilou os dedos sobre a mesa outra vez, pensativo.
AlgonotomdevozdelefezTommyterumsobressalto.Seráqueosolhosdaquelehomempoderiamtervistoalgumacoisaondeosolhosdosoutrosnadahaviamencontrado?Emumsúbitoimpulso,Tommydisse:
–Gostariaqueestivessepresentepararevistaracasa,senhor!
–Eutambémgostaria...SirJamesficoucaladoporummomentoedepoisfitou-o,indagando:–Eoquetemfeitodesdeentão?Tommy ficou confuso. Levou algum tempo para compreender que o
advogadoaindanãosabia.Edisselentamente:–EsqueciqueaindanãosabeoqueaconteceucomTuppence...Apreocupaçãoangustiante,esquecidaporummomentonoentusiasmo
de saber que Jane Finn fora encontrada, voltou a dominá-lo. O advogadobaixouogarfoeafacabruscamente.
–AconteceualgumacoisacomaSrta.Tuppence?–Eladesapareceu–informouJulius.–Quando?–Háumasemana.–Como?AsperguntasdeSirJamespareciamdisparosdeumapistola.Tommye
Julius,serevezando,contaramtodososacontecimentosdaúltimasemanaeseusesforçosinúteis.
SirJamesfoiimediatamenteàraizdoproblema:–Dissequeotelegramaestavaassinadocomseunome?Issosignifica
que eles sabemmuita coisa a respeito de ambos. Não tinham certeza doquantovocêdescobriunaquelacasa.OseqüestrodaSrta.Tuppencefoiummovimentoparaneutralizar sua fuga. Senecessário, vãoobrigá-lo a ficarcalado,ameaçando-ocomoquepodeaconteceraela.
Tommyconcordou.–Foiexatamenteissooquepensei,senhor.SirJamesolhoufixamenteparaele.– Já tinha chegado a essa conclusão então? Nadamau, nadamau... O
maiscuriosoéque,comcerteza,elesnadasabiamaseurespeitoquandooprenderam. Tem certeza de que não revelou a eles a sua identidade dealgumaforma?
Tommysacudiuacabeça.– Assim sendo – interveio Julius –, alguém deve tê-los informado de
tudo...enãofoiantesdatardededomingo.–Temrazão.Masquempoderiatersido?–Ora,sópodetersidootodo-poderosoeoniscienteSr.Brown!Haviaumtomdesdenhosonavozdonorte-americanoquefezSirJames
fitá-loatentamente.–NãoacreditanoSr.Brown,nãoémesmo,Sr.Hersheimmer?– Não, não acredito – respondeu o jovem norte-americano,
categoricamente.– Istoé,nãoacreditonelecomoumafiguraoniscienteeonipotente.Achoquenãopassadeumfigurãoqualquer,queusaumnomefalso para assustar as criancinhas. E, no fundo, é apenas uma figuradecorativa. O verdadeiro cabeça disso tudo é aquele russo chamadoKramenin. Acho que ele é bem capaz de promover revoluções em trêspaíses ao mesmo tempo, se assim decidir! O tal de Whittington éprovavelmenteochefedaseçãoinglesadaquadrilha.
–Discordo–afirmouSirJames,bruscamente.–OSr.Brownrealmenteexiste.
Elevirou-separaTommy.–Verificou,poracaso,deondeotelegramafoienviado?–Não,senhor.–Hummm...Trouxeotelegrama?–Estáláemcima,naminhamala.–Gostariadedarumaolhadanele.Masnãohápressa.Jáperderamuma
semanaemaisumdianãofarámuitadiferença.VamoscuidarprimeirodaSrta. Jane Finn. Depois, passaremos a nos dedicar à libertação da Srta.Tuppence. Não creio que ela esteja correndo perigo imediato. Isto é,enquanto eles não souberem que encontramos Jane Finn e que elarecuperou a memória. Temos que manter isso em segredo a qualquercusto.Estácombinado?
Os outros dois assentiram. Depois de acertar os detalhes para oencontronamanhãseguinte,oadvogadosedespediu.
Às10horasdamanhã,osdoisrapazesestavamnolugarcombinado.SirJamesencontrou-secomelesnaporta.Eraoúnicoquepareciaestarcalmo.Apresentou-osaomédico.
–Sr.Hersheimmer,Sr.Beresford...Dr.Roylance.Comoestáapaciente?– Está passando bem. Evidentemente, não tem a menor idéia da
passagem do tempo. Perguntou esta manhã quantos passageiros doLusitania haviam se salvado e se os jornais já tinham noticiado oafundamento. Isso jáeradeseesperar.Maselapareceestarcomalgumaidéiafixa,queapreocupabastante.
–Creioqueiremosaliviá-ladessapreocupação.Podemossubir?–Claro!OcoraçãodeTommybatiaumpoucomaisdepressaaosubiratrásdo
médico.JaneFinn!Amisteriosa,esquivaetãoprocuradaJaneFinn!Comoosucesso parecera improvável! E ali, naquela casa, a memóriamilagrosamente recuperada, estava a moça que tinha em suas mãos ofuturodaInglaterra.UmgemidosubiuaoslábiosdeTommy.Seaomenos
Tuppencepudesseestarnaquelemomentoaoseuladoparacompartilharomomento de triunfo do empreendimento conjunto... Mas ele tratou deafastar taispensamentos.SuaconfiançaemSir Jameseracadavezmaior.Era o homem que iria descobrir de qualquer maneira o paradeiro deTuppence.Atélá,deviaseconcentraremJaneFinn.E,derepente,Tommysentiu uma garra gelada apertar-lhe o coração. Estava parecendo fácildemais...Eseaencontrassemmorta...liquidadapelomisteriosoSr.Brown?
Um instante depois, Tommy estava rindo interiormente dessasfantasias melodramáticas. O médico abriu a porta de um quarto e elesentraram. A moça estava deitada na cama branca, a cabeça envolta porataduras.Eraexatamenteacenaquesepodiaesperar,eatésepodiapensarqueforamuitobemrepresentada.
Amoçaolhoudeumparaoutro,osolhosarregaladoseinquisitivos.SirJamesfoioprimeiroafalar:
–Srta.Finn,esteéoseuprimo,Sr.JuliusP.Hersheimmer.AmoçacorouquandoJuliusavançouesegurou-lheamão.–Comovai,primaJane?Tommypercebeuumligeirotremornavozdonorte-americano.–ÉrealmenteofilhodetioHiram?A voz dela, com um ligeiro sotaque do Oeste norte-americano, era
emocionante. Pareceu vagamente familiar a Tommy, mas ele tratou deafastartalimpressão,comoumaimpossibilidadetotal.
–Claroquesou.– Costumávamos ler a respeito do tio Hiram nos jornais. Mas nunca
imaginei que fosse conhecê-lo um dia. Mamãe sempre achou que o tioHiramjamaisdeixariadeficarfuriosocomela.
–Ovelhoeraassimmesmo–admitiuJulius.–Masanovageraçãoéumpoucodiferente.Essainimizadedefamílianãoserveparanada.Aprimeiracoisa em que pensei, assim que a guerra terminou, foi vir até aqui eprocurá-la.
Umaexpressãoapreensivaseestampounorostodamoça.– Andaram me contando coisas... coisas terríveis... que perdi a
memória...quenuncamaisvoumelembrardetodosessesanos...anosdaminhavidainteiramenteperdidos...
–Nãoselembradenadadoqueaconteceuduranteesseperíodo?Amoçaarregalouosolhosmaisainda.– Não, não me lembro. Tenho a impressão de que foi há poucos
momentosqueembarcamosnosbotes.Possover tudonitidamente,comoseestivesseacontecendo.
Ela fechou os olhos, estremecendo. Julius olhou para Sir James, queassentiu.
–Nãoprecisamaissepreocupar,Jane.Nãovaleapena.Masháalgoqueprecisamos saber já.Havia umhomemnonavio, levandodocumentos damaior importância. E os chefões deste país acham que ele entregou osdocumentosavocê.Foiissomesmooqueaconteceu?
A moça hesitou, olhando para os outros dois visitantes. Juliuscompreendeu.
–OSr.Beresfordfoiencarregadopelogovernobritânicoderecuperaressesdocumentos,Jane.ESirJamesPeelEdgertonéumgrandeadvogadoemembrodoParlamento.Poderiaocuparumcargoimportantenogabinete,seassimdesejasse.Foigraçasaelequeconseguimosfinalmentelocalizá-la.Assim,nãoprecisaterreceioepodenoscontartodaahistória.Danverslheentregouosdocumentos?
– Entregou. Disse que estariam melhor comigo, pois crianças emulheresseriamsalvasprimeiro.
–Exatamentecomopensamos–comentouSirJames.– Ele disse que eram documentos muito importantes, vitais para os
aliados.Masissotudoaconteceuhámuitotempoeaguerrajáacabou.Porquetantointeresseagorapelosdocumentos?
–Achoqueahistóriaserepete,Jane.Aprincípiohouvemuitosrumoresa respeito desses documentos. Depois, os rumores cessaram.Mas, agora,todooclamorestávoltando...porrazõesumpoucodiferentes.Pode,então,nosentregarosdocumentosagora?
–Não,nãoposso.–Oquê?–Nãoestãocomigo.–Não...estão...com...você?–indagouJulius,separandoaspalavrascom
pequenaspausas.–Não.Euosescondi.–Escondeu-os?– Isso mesmo. Fiquei com medo. Todo mundo parecia estar me
vigiando.Efuificandocadavezmaisapavorada.Elafezumapausa,levandoamãoàcabeça.–Épraticamenteaúltimacoisadequemerecordoantesdedespertar
nohospital.– Continue, Jane – pediu Sir James, com sua voz incisiva. – Qual é a
últimacoisadequeselembra?Elavirou-separaele,obedientemente.
– Eu estava emHolyhead. Vim por aquele lado... nãome lembro porquê...
–Issonãotemimportância.Continue.–Naconfusãogeral,escapeidocais.Ninguémmeviu.Pegueiumcarro.
Disse ao motorista que me levasse para fora da cidade. Olhei para trásquando saímos em campo aberto. Não havia nenhum outro carro nosseguindo. Avistei uma trilha ao lado da estrada.Mandei que omotoristaparasseemeesperasse.
Amoçafezagoraumapausaprolongada.–Atrilhalevavaaopenhascoedesciaatéomar,atravésdosarbustos
amarelados, que mais pareciam chamas douradas. Olhei ao redor. Nãohavia ninguém à vista. Na altura da minha cabeça havia um buraco norochedo.Erapequeno,maldavaparaenfiarminhamão,maserabastanteprofundo. Tirei o oleado com os documentos, que estava pendurado emmeu pescoço, enfiei-o nesse buraco, o mais fundo possível. Depois,arranquei umpunhadode galhosdeumamoita, espetando toda aminhamão, e tapei o buraco. Ninguém imaginaria que ali havia uma fenda.Marqueiolugarmentalmente,afimdepoderencontrá-lodenovo,quandofosse necessário. Naquele ponto da trilha, havia uma pedra de formatoesquisito,pareciaumcachorrosentadoasuplicaralgumacoisa.Volteiparao carro, que continuava esperando. Fui para a cidade e peguei o trem.Estavamesentindoumpoucoenvergonhadaportermedeixadodominarpela fantasia. Mas notei que o homem sentado à minha frente piscavafurtivamente para a mulher ao meu lado. Voltei a ficar apavorada, aomesmo tempo emqueme sentia satisfeita por saber que os documentosestavamemlugarseguro.Saíparaocorredorafimderespirarumpoucodear fresco.Penseiemirparaoutrovagão.Masamulhermechamoudevolta, dizendoqueeudeixara cair algumacoisa.Quandomeabaixeiparaolhar,algumacoisameatingiuemcheio...bemaqui.
Elapôsamãoatrásdacabeça,antesdeacrescentar:– Não me lembro de mais nada, até o momento em que acordei no
hospital.Houveumapausaprolongada.–Obrigado,Srta.Finn–agradeceuSirJamesaofinal.–Esperoquenãoa
tenhamoscansadodemais.–Oh, não, estoubem!Minha cabeçadói umpouco.Mas, tirando isso,
sinto-memuitobem.Juliusadiantou-seesegurounovamenteamãodela.–Até logo,prima Jane.Vousairagoraparabuscaressesdocumentos.
Mas voltarei omais depressa possível e a levarei para Londres. E vai sedivertirumbocadoantesdevoltarmosparaosEstadosUnidos.Assim,tratedeficarboaomaisdepressaquepuder!
20Tardedemais
Realizaram na rua um conselho de guerra informal. Sir James tirou orelógiodobolsoeverificouashoras.
– O trem que segue para Holyhead pára em Chester às 12h14. Separtiremimediatamente,achoqueaindaconseguirãoalcançá-lo.
Tommyficouperplexo.–Hámesmonecessidadedetantapressa,senhor?Hojeaindaédia24.–Sempreacheiquefazmuitobemaquelequecedomadruga–filosofou
Julius, antesqueo advogado tivesse tempode responder. –Vamos agoramesmoparaaestação.
SirJamesestavacomatestaligeiramentefranzida.– Gostaria de poder ir com vocês. Mas, infelizmente, tenho que
compareceraumareuniãoàs14horas.Éumapena!A relutância no tom de voz dele era evidente. Por outro lado, era
evidentetambémqueJuliusestavamaisdoquedispostoadispensar,semqualquerhesitação,acompanhiadoadvogado.
–Achoquenãohánadadecomplicadonoquevamosfazer–disseele.–Nãopassadeumjogodeesconde-esconde,nadamais.
–Esperoquesejamesmosóisso–comentouSirJames.–Claroqueé!Oquemaispoderiaacontecer?–Aindaémuitojovem,Sr.Hersheimmer.Quandochegaràminhaidade,
provavelmente terá aprendido uma lição importante: “Jamais subestimeseuadversário.”
AgravidadecomqueelefalouimpressionouaTommy,masnãocausouqualquerefeitoemJulius.
–AchaqueoSr.Brownpodeaparecerequererse intrometer?Seeleaparecer,estareipreparadopararecebê-lo!
Juliusdeuumapancadinhanobolsodopaletó.
–Estouarmado.LittleWilliesempremeacompanhaondequerqueeuvá.
Ele tirou do bolso uma automática de aspecto impiedoso e afagou-acarinhosamenteantesdetornaraguardá-la.
–Mas não precisarei recorrer a LittleWillie nesta expedição. Não háninguémparainformaraoSr.Brownsobreolugarondevamos.
SirJamesdeudeombros.– Não havia ninguém para informar ao Sr. Brown que a Sra.
Vandemeyerpretendiatraí-lo.Apesardisso,aSra.Vandemeyermorreusemfalar.
Julius não fez qualquer comentário e Sir James acrescentou, em tommaisleve:
–Queroapenasqueestejamprecavidos.Tambémachoquenãohaveráproblemas. Adeus e boa sorte. Não corram riscos desnecessários depoisque se apossaremdosdocumentos. Sehouver algummotivoparapensarque foramseguidos,destruamosdocumentos.Agora, tudoestánasmãosdevocês.
Ele apertou as mãos de ambos. Dez minutos depois, os dois jovensestavamsentadosemumcompartimentodaprimeiraclasse,acaminhodeChester. Nenhum dos dois falou por um longo tempo. Foi Julius quemrompeuosilêncio,comumcomentáriototalmenteinesperado:
–Algumavezjábancouoidiotanapresençadeumagarota,Tommy?Depois do espanto inicial, Tommy vasculhou a memória por um
momentoedepoisrespondeu:–Achoquenão.Oupelomenosnãomelembro.Porquê?– Há dois meses que venho me sentindo um tolo sentimental com
relaçãoa Jane.Nomomentoemquevi a fotografiadela,meucoração feztodas aquelas piruetas que se descrevem nas novelas. Eu me sinto umpoucoenvergonhadoemconfessar,masvimatéaquidispostoaencontrá-ladequalquermaneira,resolvertodososproblemaselevá-ladevoltaparaosEstadosUnidoscomoaSra.JuliusP.Hersheimmer!
–Oh!–exclamouTommy,aturdido.Juliusdescruzouaspernasbruscamenteecontinuou:– Isso serveparamostrar comoumhomempodese comportar como
umidiota.Masbastouveragarotaemcarneeossoefiqueicurado!–Sei!–exclamouTommy,novamente,incapazdedizerqualquercoisa.–NãoénenhummenosprezoaJane.Éumaboamoçaetenhocertezade
quealgumsujeitovaiseapaixonarlogoporela.– Achei-a uma moça bastante atraente – comentou Tommy,
recuperandofinalmenteafala.–Claroque é!Masnemde longe éparecida coma sua fotografia.Ou
melhor,ébastanteparecida,poisareconheciimediatamente.Seavissenomeiodeumamultidão,euteriadito,semqualquerhesitação:“Aliestáumamoçacujorostoeuconheço.”Mashaviaalgumacoisanaquelafotografia...
Juliussacudiuacabeça,suspirando.–Achoqueoromanceéacoisamaisesquisitadomundo...–Devesermesmo–disseTommy,friamente.–Especialmentesevocê
chega aqui apaixonadopor uma garota e pede outra em casamentoduassemanasdepois.
Juliusteveodecorodeficardesconcertado.
–Équeeuestava cansado,penseiquenunca fosseencontrar Jane... eque tudo isso não passava de tolice. E depois... Ora, os franceses, porexemplo,sãomuitomaissensatosnamaneiracomoencaramessascoisas.Elesnãomisturamocasamentoeoromance...
Tommycorou.–Masquediabo!Seéisso...Juliusapressou-seeminterrompê-lo:–Ei,nãosejaprecipitado!Nãoestavaquerendodizeroquevocêestá
imaginando. Se quer saber, os norte-americanos são mais moralistas doquevocês.Oqueeuquisdizeréqueos franceses tratamocasamentodeumamaneiracomercial.Encontramduaspessoasquesãoapropriadasumaparaaoutra,resolvemtodasasquestõesdedinheiroecuidamdetudocomumespíritopráticoecomercial.
–Sequersaberminhaopinião,eudiriaqueestamossendopráticosecomerciaisdemaisatualmente.Estamossempredizendocoisascomo:“Seráque vai compensar?” ou “Os homens são ruins, mas as mulheres sãopiores”.
–Acalme-se,filho.Nãoprecisaficarexaltado.–Maseuestoumesmoexaltado!Juliusjulgouprudentenãodizermaisnada.TommytevebastantetempoparaseacalmaratéchegaremaHolyhead.
Osorrisojovialjáretornaraaoseurostoquandodesembarcaram.Depois de algumas perguntas e com a ajuda de ummapa rodoviário,
concordaram sobre o caminho que deveriam seguir. Pegaram um táxi epartirampelaestradaparaTreaddurBay.Determinaramaomotoristaqueavançassebemdevagare foramobservandoaestradaatentamente,a fimde não perderem a trilha. Encontraram-na pouco depois de deixarem acidade. Tommy pediu que o motorista parasse e perguntou, em tomindiferente, se aquela trilha levava ao mar. Ao ser informado que sim,pagouaomotorista.
Ummomentodepois,o táxiestavavoltandoparaHolyhead.TommyeJuliusficaramobservando-odesaparecerantesdeenveredarempelatrilhaestreita.
–Seráqueérealmenteestatrilha?–indagouTommy,aindaemdúvida.–Devehaverinúmeraspelocaminho.
–Claroqueé!Olhesóparaostojos.Lembra-sedoqueJanedisse?Tommycontemplouosarbustosdouradosquemargeavamatrilhanos
dois ladose ficouconvencido.Desceramumatrásdooutro,comJuliusnafrente.Porduasvezes,Tommyvirouacabeça, inquieto. Juliusolhoupara
trás.–Oquefoi?–Nãosei.Apenastenhoaimpressãodequealguémestánosseguindo.–Issoéimpossível.Sehouvessemesmo,nósjáoteríamosvisto.Tommy teve que admitir que era verdade. Mesmo assim, sua
inquietação foi aumentando.Contraa suavontade, estavaacreditandonaonisciênciadoinimigo.
– Eu bem que gostaria que aquele sujeito nos seguisse – comentouJulius,apalpandoobolso.–Willieestáansiosoporfazerumexercício!
–Semprecarregaaarmacomvocê?–indagouTommy,curioso.–Quasesempre.Nuncasesabeoquesevaiencontrar.Tommymanteveumsilêncio respeitoso.Estava impressionadocomo
pequenoWillie.PareciaremoverparamuitolongeaameaçadoSr.Brown.A trilha seguia agora ao longo do penhasco, paralela ao mar. De
repente, Julius parou, tão abruptamente que Tommy chegou a esbarrarnele.
–Oquefoi?–Vejaaquilo!Vejasenãoéoqueestamosprocurando!Tommyolhou.Quasenomeiodatrilha,haviaumpedregulhoquetinha
alguma semelhança com um terrier sentado. Recusando-se a partilhar aemoçãodeJulius,Tommylimitou-seacomentar:
– Ora, é simplesmente o que estávamos esperando encontrar, não émesmo?
– Ah, a fleuma britânica! Claro que estávamos procurando por isso...Mas,mesmoassim, ficoemocionadoporencontrá-loexatamenteno lugaremqueesperávamos!
Tommy, cuja calma era provavelmente mais artificial que natural,mexeuospés,impaciente.
–Nãovamosprocurarotalburaco?Esquadrinharam a encosta do penhasco com todo o cuidado. Tommy
ouviu-semurmurar,comoumidiota:–Otojojánãodevemaisestarnolugar,depoisdetantosanos.EntãoJuliusrespondeu,solenemente:–Achoquevocêestácerto.Subitamente,Tommyapontou,comamãotrêmula:–Seráaquelafendaali?Juliusrespondeucomvoztambémtrêmula:–Deveser...Osdoisseentreolharam.Tommycomentou,comoserecordasse:
–Quando eu estava na França,meu ordenança sempre dizia, quandodeixava de me chamar na hora, que sentira um pressentimento. Jamaisacreditei.Mas quer ele sentisse ounão, a verdade é que issomedeixavaarrepiado.Eestoutendoagoraumestranhopressentimento...
Eleolhouparaafendacomumaexpressãoangustiada.– Mas que diabo! É inteiramente impossível! Afinal, são cinco anos!
Pense nisso! Garotos procurando ninhos de passarinhos, grupos fazendopiqueniques,milharesdepessoaspassandoporaqui!Osdocumentosnãopodem estar ainda aí! É uma chance em cem que não tenham sidoencontrados!Écontratodaarazão!
Tommy sentia que era impossível, provavelmente porque não podiaacreditaremseuprópriosucessoemumaempreitadaemquetantosoutroshaviam fracassado. Fora fácil demais. Portanto, não podia ser verdade.Oburacotinhaqueestarvazio.
Juliusfitou-ocomumsorrisoedissealegremente:–Vocêestámesmoumbocadonervoso.Masjávamosverificarseainda
estáounãonolugar!Eleenfiouamãonafendaefranziuorosto.–Estámuitoapertado.AmãodeJaneémuitomenorqueaminha.Não
estousentindonada...Ei,oqueéisso?Achei!Comumfloreio,eleexibiuumpequenopacotedesbotado.–Érealmenteoqueestamosprocurando!Ooleadoestácosturado.Vou
abrircommeucanivete.Oincrívelacontecera.Tommysegurouopequenopacotecomcarinho.
Tinhamconseguido!– Estranho... – murmurou ele. – Era de se pensar que as costuras
estivessemapodrecidas.Mascontinuamtãoboascomosefossemnovas.Cortaram as costuras cuidadosamente e abriramo oleado. Lá dentro,
haviaumpequenopapel,dobrado.Desdobraram-nocomdedostrêmulos.Opapelestavaembranco!Osdoisseentreolharam,perplexos.
–Seráumembuste?–arriscouJulius.–SeráqueDanversnãopassavadeumchamariz?
Tommy sacudiu a cabeça. A solução não o satisfazia. De repente, seurostoseiluminoucomumsorriso.
–Jásei!Estáescritocomtintainvisível!–Será?–Valeapenatentar.Ocalorgeralmentefazapareceroqueestáescrito.
Peguealgunsgravetos.Vamosacenderumafogueira.Poucosminutosdepois,apequenafogueiradegravetose folhassecas
estava ardendo. Tommy colocou o papel perto das chamas. O papelenroscou-seumpoucocomocalor.Enadamaisaconteceu.
Subitamente,Juliusagarrounobraçodeleeapontouparaasletrasqueestavamcomeçandoaaparecercomumacormarromdesbotada.
– Você conseguiu! Ei, sua idéia foi espetacular! Isso nunca teria meocorrido!
Tommymanteveopapelnamesmaposiçãopormaisalgunsminutos,até julgar que o calor já concluíra sua ação. Puxou o papel para ler e nomesmoinstantesoltouumgrito.
Emletrasmarrons,estavamescritasasseguintespalavras:
COMOSCUMPRIMENTOSDOSR.BROWN
21Tommyfazumadescoberta
Por um longo momento, os dois ficaram se olhando, apalermados,aturdidospelochoque.Dealgumaforma,inexplicavelmente,oSr.Brownseantecipara.Tommyaceitouaderrotacomcalma.OmesmonãoaconteceucomJulius.
– Como ele conseguiu chegar na nossa frente? É isso que me deixalouco!
Tommysacudiuacabeçaemurmurou:– Isso explica o fato de as costuras serem novas. Devíamos ter
adivinhado...– Esqueça as malditas costuras! Como foi que ele chegou na nossa
frente?Viemos omais depressa possível! É inteiramente improvável quealguémtivessechegadoaquimaisdepressadoqueagente!Alémdomais,comofoiqueelesoube?SeráquehaviaumditafonenoquartodeJane?Sópodetersidoisso!
Mas o bom senso de Tommy levantou algumas objeções a essahipótese:
–Ninguémpoderiasaberdeantemãoqueelairiapararnaquelacasa,emuitomenosnaquelequartoemparticular.
–Temrazão–admitiuJulius.–Masumadasenfermeiraspodetersidosubornadaeficadoescutandonaporta.Oqueachadessapossibilidade?
– Acho que isso não faz a menor diferença – respondeu Tommy,subitamente muito cansado. – Ele pode ter descoberto o esconderijo hámuitosmeseseretiradoosdocumentos,paradepois...Não,porDeus!Issonão deve ter acontecido. Afinal, eles teriam divulgado os documentos noinstanteemqueosrecuperassem.
–Temtodarazão!Não foi issooqueaconteceu.Alguémveioatéaquihoje,umahoraoumaisnanossafrente.Sónãoconsigoentendercomofoiqueconseguiram!
– Eu gostaria que Peel Edgerton estivesse aqui conosco – comentouTommy,pensativo.
–Porquê?Mesmoqueeleviesse,atrocajáestariafeitaaochegamos.–Seidisso,mas...Tommy hesitou. Não podia explicar o que estava sentindo, a idéia
ilógica de que a presença do advogado teria de alguma forma evitado acatástrofe.Assim,retomouaoseupontodevistaanterior:
–Nãoadiantaagoratentarimaginarcomofoifeito.Ojogoterminou.Eperdemos.Agora,sómerestafazerumacoisa.
–Eoqueé?–VoltarparaLondresomaisdepressapossível.OSr.Carterdeveser
avisado.Agora,éapenasumaquestãodehorasatéqueogolpetenhaseudesfecho.Sejacomofor,eledevesaberqueopioraconteceu.
O dever era dosmais desagradáveis,mas Tommy não tinha amenorintençãodeseesquivar.DeviacomunicarseufracassoaoSr.Carter.Depoisdisso, sua missão estava encerrada. Pegou o trem da meia-noite paraLondres.JuliuspreferiupassaranoiteemHolyhead.
Meia hora depois de chegar à capital, Tommy estava diante de seuchefe,comorostopálidoeumaexpressãoangustiada.
– Vim comunicar os resultados da minha missão, senhor. Fracasseiinteiramente.
–Estáquerendodizerqueotratado...–EstánasmãosdoSr.Brown.–Hummm...AexpressãodoSr.Carternãosealterou,masTommypercebeuobrilho
dedesesperonosolhosdele.Issoconvenceu-o,comonadamaispoderiaterfeito,queasperspectivaseramasmaissombriaspossíveis,quenãorestavaqualqueresperança.
Depoisdeumlongotempo,oSr.Carterdisse:
–Bom,nãopodemosrenunciaràlutasóporcausadisso.Ficocontenteporsaberagoracomcerteza.Devemosfazertudooqueforpossível.
Tommynão tevemaisamenordúvida: “Nãohámaisesperançaeelesabedisso.”OSr.Carterfitou-oedissebondosamente:
– Não fique muito desconsolado, rapaz. Fez o possível. Estavaenfrentandoumdosmaiorescérebrosdesteséculoequaseobtevesucesso.Nãoseesqueçadisso.
–Obrigado,senhor.Émuitagenerosidadesua.–Culpoamimmesmo.Eovenhofazendodesdequerecebiumaoutra
notícia.AlgonotomdelechamouaatençãodeTommy.Sentiuumnovotemor
invadi-lo.–Hámaisalgumacoisa,senhor?–Infelizmente,hásim.OSr.Carterestendeuumpapelqueestavasobresuamesa.–Tuppence...?–balbuciouTommy.–Leiavocêmesmo.AspalavrasdatilografadasdançaramdiantedosolhosdeTommy.Eraa
descrição de um chapéu verde, um casaco com um lenço no bolso, ondeestavam bordadas as iniciais P.L.C. Tommy lançou um olhar angustiadoparaoSr.Carter,querespondeu:
–EncontraramtudoissonacostadeYorkshire,pertodeEbury.Aoqueparece,houvealgoterrível.
–Oh,Deus!Tuppence!Aquelesdemônios...Jamaisdescansareienquantonãotivermevingadodeles!Voucaçá-losatéofimdomundo!Vou...
AexpressãodecompaixãonorostodoSr.CarterfezcomqueTommysecalasse.
– Sei o que está sentindo, meu pobre rapaz. Mas não adianta. Vaidesperdiçar suas forças inutilmente. Pode parecer algo cruel,mas omeuconselhoéoseguinte:nãoaumentesuasperdas.Otempoémisericordioso.Acabaráesquecendo.
–EsquecerTuppence?Jamais!OSr.Cartersacudiuacabeça.–Éoqueestápensandoagora.Nãosuportapensar...naquelamoçatão
corajosa!Lamentotudooqueaconteceu...lamentoprofundamente.Tommyestremeceuebalbuciou,comumtremendoesforço:–Estoutomandooseutempo,senhor.Nãohánecessidadedeculpara
simesmo.Eudiriaquefomosumadupladetolosaoaceitarmosamissão.Alertou-nosdesdeo iníciosobreosperigosque iríamosenfrentar.Agora,
eusódesejariaquetivesseacontecidocomigo.Adeus,senhor.De volta ao Ritz, Tommy arrumou os seus poucos pertences
mecanicamente, os pensamentos estavam longe dali. Ainda estavaperturbado com a tragédia em sua existência alegre e banal. Como ele eTuppence haviam se divertido juntos! E agora... oh!, ele não podiaacreditar...nãopodiaserverdade!Tuppence...morta!ApequenaTuppence,cheiadevida!Eraumsonho,umpesadeloterrível!Nadamais!
Trouxeram-lhe umbilhete, algumas palavras de condolências de PeelEdgerton,que leraanotíciano jornal.O títulodanotíciaera imenso:EX-VOLUNTÁRIA DA GUERRA PROVAVELMENTE AFOGADA! O bilheteterminavacomaofertadeumempregoemumranchonaArgentina,ondeSirJamestinhauminteresseconsiderável.
–Ah,ovelhomiserável!–murmurouTommy,jogandoobilheteparaolado.
De repente, a porta se abriu e Julius entrou, com o ímpeto habitual.Tinhaumjornalabertonamão.
–Quehistóriaéessa?ParecequeelesestãocomalgumaidéiaidiotaarespeitodeTuppence!
–Éverdade,Julius.–Estáquerendodizerqueelesaliquidaram?Tommyassentiu.–Quandoelesencontraramotratado,Tuppencedeixoudeterqualquer
utilidade.E,aomesmotempo,ficaramcomreceiodelibertá-la.–Masquediabo!–exclamouJulius.–LogoapequenaTuppence!Eraa
garotamaiscorajosa...De repente, algo pareceu se romper no cérebro de Tommy. Ele
levantou-seabruptamente:–Saiadaqui!Nãoestárealmenteseimportando!Pediu-aemcasamento
àsuamaneirafriaenojenta,maseuaamava!Dariaaminhavidaeaminhaalmaparasalvá-ladequalquerperigo!Teriaficadodelado,semdizerumasópalavra,deixando-asecasarcomvocê,sóporquepoderiaproporcionara vida que ela merecia, enquanto eu não passo de um pobre-diabo semposses!Masnãoseriaporqueeunãomeimportavacomela!
–Ora,meucaro...–começouJulius,apaziguadoramente.– Ora, coisa nenhuma! Vá para o inferno! Não suporto sua presença
aqui falando sobre a “pequena Tuppence”! Vá procurar sua prima!Tuppence é a minha garota! Sempre a amei, desde o tempo em quebrincávamosjuntosquandoéramoscrianças!Crescemosecontinueiaamá-la!Jamaismeesquecereidaquelaocasiãoemqueeuestavanohospitaleela
apareceudeaventalecomaquelatoucaridícula!Pareciaummilagreveramoçaqueeuamavaaparecerderepentenaqueleuniformedeenfermeira...
Juliusinterrompeu-obruscamente:–Umuniformedeenfermeira!Éisso!Oh,eudeviaserdespachadopara
um hospício! Posso jurar que também vi Jane com uma touca deenfermeira!Eissoéinteiramenteimpossível!Não,porDeus,nãoé,não!Foiela que eu vi falando com Whittington naquela casa de saúde emBournemouth!Elanãoeraumapacienteali!Eraumaenfermeira!
– Parece que ela está com eles desde o início – disse Tommy,furiosamente. – Eu não duvido de que elamesma não tenha roubado osdocumentosdeDanvers!
– Ela não fez nada disso! – gritou Julius. – É minha prima e é tãopatriotaquantoqualqueroutragarota!
–Nãomeimportocomoqueelaéoudeixedeser!–respondeuTommy,tambémaosberros.–Queroéquevocêsaiajádaqui!
Osdoisjovensestavamquasechegandoàschamadasviasdefato.Mas,subitamente, com uma brusquidão quase fantástica, a raiva de Julius sedesvaneceu.Eeledissecomcalma:
–Estácerto,filho.Vouembora.Nãopossoculpá-lopeloqueacaboudedizer.E foimuitasortevocê terdito tudo isso.Tenhosidoomaior idiotaquesepossaimaginar!
TommyfezumgestoimpacienteeJuliusacrescentou:–Calma,calma... Jáestou indoembora.EvouparaaestaçãodaNorth
WesternRailway,seestáinteressadoemsaber.–Nãomeinteressaemabsolutoparaaondevocêpossair!Juliussaiu,fechandoaporta.Tommyacaboudearrumaramalaetocou
acampainha.–Leveminhamalaparabaixo.–Sim,senhor.Vaiembora,senhor?–Vouparaoinferno!–respondeuTommy,indiferenteaossentimentos
doempregadodohotel.Masohomemlimitou-searesponder,respeitosamente:–Sim,senhor.Querquechameumtáxi?Tommyassentiu.Paraaonde iria?Nãotinhaamenor idéia.Alémdeumadeterminação
obstinadaemvingar-sedoSr.Brown,nãotinhaoutroplano.Releuobilhetede Sir James e sacudiu a cabeça. Tuppence tinha que ser vingada. Dequalquerforma,eramuitagenerosidadedoadvogado.
– Acho que não custa nada responder – murmurou Tommy para si
mesmo.Foi até a escrivaninha. Como sempre acontece em quartos de hotel,
havia muitos envelopes e nenhum papel. Tommy tocou a campainha.Ninguématendeuaochamado.Eleficoufurioso.Recordou-sedequehaviabastantepapeldecartanasaladevisitasdasuítedeJulius.Comoonorte-americano anunciara sua partida imediata, não haveria a menorpossibilidadedeencontrá-lo.Alémdomais,nãoseimportariadeencontrarJulius. Estava começando a sentir-se um pouco envergonhado das coisasque dissera. O bom Julius ficara visivelmente magoado. Iria pedir-lhedesculpas,seoencontrasse.
Masasalaestavavazia.Tommyfoiatéaescrivaninhaeabriuagavetadomeio.Haviaumafotografiaporcimadospapéis.Aovê-la,Tommyficouparalisado de surpresa por um momento. Depois, pegou a fotografia,fechou a gaveta e foi sentar-se em uma poltrona. Ficou olhando para afotografia.
Quediaboumafotografiadagarota francesa,Annette,estaria fazendonaescrivaninhadeJuliusHersheimmer?
22NaDowningStreet
Oprimeiro-ministrotamborilouosdedossobreamesadeformanervosa.Suaexpressãoeracansadaeinquieta.RetomouaconversacomoSr.Carternopontoemqueforainterrompida:
–Não estou entendendomuitobem.Estáquerendodizerque, no fimdascontas,asituaçãonãoétãodesesperadoraquantoparecia?
–Pelomenoséoqueorapazparecepensar.–Deixe-meveroutravezacartadele.O Sr. Carter entregou-a. Estava escrita com uma letra esparramada e
infantil:
PREZADOSR.CARTER:Aconteceu algo inesperado que me deixou estupefato. É claro
quepossosimplesmenteestarbancandooidiota,masnãocreioque
sejaocaso.Seminhasconclusõesestiveremcertas,aquelagarotadeManchester não passava de uma farsa. Tudo fora devidamenteencenado para fazer com que pensássemos que o jogo estavaterminado.Porisso,creioquedevíamosestarnapistacerta.
Acho que sei quem é a verdadeira Jane Finn e tenho inclusiveuma idéia do lugar onde estão os documentos. É apenas umasuposição, é claro, mas tenho o pressentimento de que seráconfirmada.Sejacomofor,segueanexadoumenvelopelacradocomaindicaçãodessepossívellugar.Voupedir-lhequenãooabraatéoúltimoinstante.Ouseja,atéameia-noitedodia28.Compreenderáomotivodessepedidomaisadiante.AchotambémqueaquelascoisasdeTuppenceencontradasnapraianãopassamdeumembusteequeela está tão afogada quanto eu.Meu raciocínio é o seguinte: comoúltimachance,elesdeixarãoJaneFinnescapar,naesperançadequeela tenha recuperado a memória e corra para o esconderijo dosdocumentos assim que estiver em liberdade. É claro que será umtremendoriscoparaeles,poisJaneFinnsabetudoarespeitodeles.Maselesestãodesesperados,querendoseapoderardosdocumentosdequalquermaneira.Masseelessouberemqueosdocumentosforamrecuperadospornós,asduasmoçasestarãocorrendoperigodevida.TenhoquetentarlibertarTuppenceantesqueJanefuja.
Preciso de uma cópia do telegrama que foi enviado paraTuppence no Ritz. Sir James Peel Edgerton disse que poderiaprovidenciarissoparamim.Eleéumhomemterrivelmenteesperto.
Umaúltimacoisa:por favor,mandevigiaraquelacasanoSohodiaenoite.
Atenciosamente,
THOMASBERESFORD
Oprimeiro-ministrofitouoSr.Carter.–Ondeestáoenvelopequeveioanexado?OSr.Cartersorriufriamente.–EstánoscofresdoBancodaInglaterra.Nãovoucorrernenhumrisco.–Nãoacha...Oprimeiro-ministrohesitouporummomento,antesdeacrescentar:–...queseriamelhorabri-loagora?Devemosgarantirimediatamentea
posse dos documentos. Isto é, se a suposição do rapaz for correta. Epodemosmanterofatonomaisabsolutosegredo.
–Seráquepodemosmesmo?Nãotenhotantacertezaassim.Háespiõespor toda parte. E assimque eles souberemque os documentos estão emnossopoder,aquelasduasmoçasestarãoirremediavelmenteperdidas.Nãopossofazerisso.Orapazconfiouemmimenãopossodecepcioná-lo.
–Estácerto.Vamosagircomoacharmelhor.Comoéesserapaz?–Exteriormente,éumjoveminglêscomum,nãomuitobrilhante.Seus
processos mentais são um tanto lentos. Por outro lado, é praticamenteimpossíveldesencaminhá-lopela imaginação.Nãotemnenhuma.Assim,émuitodifícilenganá-lo.Ruminaascoisaslentamente.Masassimquemeteuma idéiana cabeça,nãoa largamais.Amoçaébastantediferente.Temmaisintuiçãoemenosbomsenso.Osdoisformamumaduplaquefuncionamuitobem.Ímpetoeperseverança.
–Eleparecebastanteconfiante.– É justamente isso queme dá alguma esperança. É o tipo de rapaz
hesitantequesósearriscaadarumaopiniãoquandotemcertezaabsoluta.Oprimeiro-ministrosorriu.– E é um rapaz assim que vai derrotar o maior mestre do crime do
nossotempo?–Exatamente.Mas,devezemquando, tenhoa impressãodeveruma
sombraportrásdele.–Aquemestásereferindo?–PeelEdgerton.–PeelEdgerton?–repetiuoprimeiro-ministro,atônito.–Issomesmo.Estouvendoamãodeleportrásdissotudo.OSr.Carterbateunacartaabertaantesdecontinuar:–Ele está emação, trabalhandonoescuro, silenciosa e secretamente.
SempreacheiquesealguémtinhacondiçõesdederrotaroSr.Brown,erajustamentePeelEdgerton.Possoinformá-lodequeeleestátrabalhandonocaso, embora não queira que ninguém saiba. Por falar nisso, recebi umestranhopedidodeleoutrodia.
–Qualfoi?–Enviou-meumrecortedeumjornalnorte-americano.Eraanotíciado
encontrodocadáverdeumhomemnoportodeNovaYork,hácercadetrêssemanas. Pediu-me que obtivesse todas as informações possíveis arespeito.
–Eoquedescobriu?Carterdeudeombros.–Nãoconseguidescobrirmuitacoisa.Ohomemtinhacercade35anos,
estava malvestido, com o rosto bastante desfigurado. Nunca foi
identificado.–Eachaqueosdoiscasosestãoligados?–Creioquesim.Maspossoestarerrado,éclaro.Houveumapausa,antesqueoSr.Cartercontinuasse:–PediaPeelEdgertonqueviesseatéaqui.Nãoquepossamosarrancar
dele qualquer coisa que não queira nos dizer. Seus instintos legais sãofortes demais. Mas tenho certeza de que ele poderá esclarecer algunspontosobscurosnacartadojovemBeresford.Ah,lávemele!
Os dois homens se levantaram para cumprimentar o recém-chegado.Um súbito pensamento ocorreu ao primeiro-ministro: “Talvez seja ele omeusucessor!”
– Recebemos uma carta do jovem Beresford – informou o Sr. Carter,indodiretoaoponto.–Estevecomele,nãoémesmo?
–Estáenganado–respondeuoadvogado.–Oh!–exclamouoSr.Carter,desconcertado.SirJamessorriuecoçouoqueixo.–Falamospelotelefone.–Temalgumaobjeçãoemnosrelatarexatamenteoqueconversaram?–Absolutamente.Eleagradeceu-meporumacartaque lheescrevi.Se
estãointeressados,ofereci-lheumemprego.Depois,elerecordoualgoqueeulhedisseraemManchester,arespeitodotelegramaforjadoqueatraíraaSrta.Cowleyaumaarmadilha.Perguntei-lheseaconteceraalgoimprevisto.Eledissequesim,queencontraraumafotografianaescrivaninhadasuítedoSr.Hersheimmer.
Oadvogadofezumabrevepausa.–Perguntei em seguida se a fotografia tinhanomee endereçodeum
fotógrafodaCalifórnia.Elerespondeuquetinha.Disse-meemseguidaalgoqueeunãosabia.AmoçaqueestavanafotografiaeraAnnette,afrancesaquelhesalvaraavida.
–Oquê?–Exatamente.Pergunteiaorapaz,comalgumacuriosidade,oquefizera
com a fotografia. Respondeu que a pusera no mesmo lugar em que aencontrara–oadvogado fezumanovapausa. –Oque foiumaboa idéia.Aquelerapazsabeusaracabeça.Dei-lheosparabéns.Adescobertafoidasmais felizes. É claro que tudomudou a partir domomento emque ficoucomprovado que a moça de Manchester não passava de um embuste. Ojovem Beresford percebeu isso sozinho, sem que eu precisasse explicar.Mas ele achava que não podia confiar em seu próprio julgamento comrelação à Srta. Cowley. Será que eu tambémachava que ela ainda estava
viva?Disse-lheque,pesando-sedevidamentetodasasevidências,erabempossível.Oquenoslevoudevoltaaotelegrama.
–Oquehácomessetelegrama?–Aconselhei-oapedir-lheumacópiadotelegramaoriginal.Havia-me
ocorrido que era bem possível que, depois que a Srta. Cowley jogou otelegramanochão,alguémtivessealteradoaspalavrasafimdedespistarosperseguidores.
Carterassentiu.Tirouumacópiadotelegramadobolsoeleu-aemvozalta:
Venha imediatamente para Astley Priors, Gatehouse, Kent.Grandesnovidades.Tommy.
–Muitosimplesemuitoesperto–comentousirJames.–Bastavamudarumaspoucaspalavraseoproblemaestavaresolvido.Elessóesqueceramumapistaimportante.
–Equalfoi?–A informaçãodoempregadodohoteldequeaSrta.Cowleyseguira
paraCharingCross.Elesestavamtãosegurosquenãosepreocuparamcomisso.
–EondeojovemBeresfordestánestemomento?–EmGatehouse,Kent,amenosqueeuestejaredondamenteenganado.OSr.Carterfitou-ocomcuriosidade.–Porquenãofoitambémparalá,PeelEdgerton?–Estoutrabalhandoemumcaso.–Nãotinhatiradoférias?– Infelizmente tive que voltar a trabalhar. E talvez sejamais correto
dizer que estou preparando um caso. Descobriu mais alguma coisa arespeitodaquelenorte-americanomorto?
–Não,nãodescobri.Étãoimportanteassimdescobrirquemeleera?–Euseiquemeleera–confidenciouSirJamescalmamente.–Aindanão
possoprová-lo...massei.Os outros dois não fizeram nenhuma pergunta. Tinham o
pressentimentodequeseriapuraperdadetempo.– O que não consigo compreender – disse subitamente o primeiro-
ministro – é como aquela fotografia foi parar na escrivaninha do Sr.Hersheimmer.
–Talveznuncatenhasaídodelá–sugeriuoadvogado,delicadamente.
–EofalsohomemdaScotlandYard,oinspetorBrown?– Hum, hum... – murmurou Sir James, pensativo, levantando-se em
seguida. – Já lhes tomei tempo demais. Podem continuar a tratar dosproblemasdanação.Tenhoquevoltar...paraomeucaso.
Doisdiasdepois,JuliusHersheimmervoltoudeManchester.HaviaumbilhetedeTommyemcimadesuaescrivaninha:
PREZADOHERSHEIMMER:
Lamento ter perdido a calma.No caso de não voltarmos a nosencontrar,adeus.Ofereceram-meumempregonaArgentinaetalvezeuoaceite.
Cordialmente,
TOMMYBERESFORD
Umsorrisoestranhoestampou-seporummomentonorostodeJulius.Elejogouobilhetenacestadepapelemurmurou:
–Ah,omalditotolo!
23Umacorridacontraotempo
DepoisdetelefonarparaSirJames,TommyfezumavisitaaSouthAudleyMansions. Descobriu que Albert estava de serviço e apresentou-se comoumamigodeTuppence.Albertanimou-seimediatamente.
–As coisas têm andadomuito quietas por aqui ultimamente. Amoçaestábem,senhor?
–Éjustamenteesseoproblema,Albert.Eladesapareceu.–Estáquerendodizerqueosbandidosacapturaram?–Exatamente.–Levaram-naparaosubmundo?–Nadadisso!Elaestánestemundomesmo!– É apenas uma expressão, senhor. Nos filmes, os bandidos sempre
operamnosubmundo.Masseráqueelesaliquidaram,senhor?–Esperoquenão.Porfalarnisso,Albert,vocêtemalgumatia,primaou
avóquesepossadizerqueestejaprestesabaterasbotas?Umsorrisodeliciadoestampou-senorostodeAlbert.– Claro que tenho, senhor.Minha pobre tia quemora no campo está
gravementedoentehámuitotempoesempresuplicaporminhapresençaàsuacabeceiraparaoseuúltimosuspiro.
Tommyassentiuemaprovação.– Pode alegar isso como um pretexto para tirar uma licença aqui e
encontrar-secomigoemCharingCrossdentrodeumahora?–Estareilá,senhor.Podecontarcomigo.ComoTommyprevira,ofielAlbertprovouserumaliadoextremamente
valioso.OsdoissehospedaramnaestalagememGatehouse.CoubeaAlbertatarefadecoletarinformações.Elenãoteveamenordificuldade.
AstleyPriorserapropriedadedeumcertoDr.Adams.Eraummédicojáaposentado, segundo informou o senhorio, mas que ainda aceitava unspoucospacientes.Nesseponto,obomhomembateunatestacomumardeconspiradoremurmurou:
–Sógenteboa,entende?O médico era bastante popular na aldeia, contribuía generosamente
paraos esportes locais.Era “umcavalheiromuito simpático e afável”.Háquantotempoestavalá?Hádezanosoumais.Eeratambémumhomemdaciência.Professoresegenteimportantevinhamdemuitolongeparavê-lo.Suacasaerabastantealegre,estavasemprerepletadevisitantes.
Tommy sentiu algumas dúvidas diante de tanta verbosidade. Seriapossível que um homem tão cordial e bem conhecido pudesse ser narealidadeumcriminoso?Avidadelepareciaserabertaeacimadequalquersuspeita. Não havia qualquer indício de atos sinistros. E se estivessecometendoumgigantescoerro?Tommysentiuumcalafriosódepensar.
Recordou-se, então, da referência aos pacientes particulares. Fezalgumas indagações cautelosas para descobrir se não havia algumapaciente que correspondesse à descrição de Tuppence. Mas ninguémparecia sabermuita coisa a respeito dos pacientes, que raramente eramvistos fora da propriedade. Uma descrição de Annette também nãoprovocouqualquerreconhecimento.
AstleyPriorseraumacasasimpática,detijolosvermelhos,cercadaporarvoredos bem cuidados, que a escondiam de qualquer observador quepassassepelaestrada.
Na primeira noite, Tommy explorou o terreno ao redor da casa,acompanhadoporAlbert.PorcausadainsistênciadeAlbert,arrastaram-sepelo chão dolorosamente e com amaior dificuldade, fazendomuitomais
barulhodoqueteriamfeitosecaminhassemnormalmente.Oterreno,comoo de qualquer outra casa particular depois do anoitecer, pareciainteiramentedesocupado.Tommyimaginaraquetalvezpudesseencontrarumcãodeguardaferoz.AfantasiadeAlbertlevou-oatemerumpumaoutalvezumacobradomesticada.Mas chegaramaumamoitabempertodacasasemseremimportunados.
As venezianas da janela da sala de jantar estavam abertas. Havia umgrandegruposentadoemtornodeumamesa.OvinhodoPortopassavademão emmão. Parecia uma reunião normal e cordial. Pela janela aberta,fragmentos de conversa flutuavam pelo ar noturno. Era uma discussãoacaloradasobregrilos!
Tommy sentiu outra vez o calafrio da incerteza. Parecia impossívelacreditar que aquelas pessoas pudessem ser outra coisa além do quepareciam.Seráqueeleseenganaramaisumavez?Ocavalheirodebarbalouraequeusavaóculos,sentadoàcabeceiradamesa,pareciaumhomemhonestoenormal.
Naquela noite, Tommy teve um sono agitado. Na manhã seguinte, oincansávelAlbertestabeleceuumasólidaamizadecomogarotoentregadordamerceariaesubstituiu-oemumaentregaemAstleyPriors.Insinuou-senas boas graças da cozinheira e voltou com a informação de que ela eracertamente “da quadrilha”. Mas Tommy desconfiou da exuberância daimaginação de Albert. Interrogado, ele não pôde acrescentar nada queapoiasseainformação,anãosersuaopiniãopessoaldequenãosetratavadeumamulhercomum.Podia-seperceberissoaoprimeiroolhar.
A substituição se repetiu no dia seguinte – para vantagem doverdadeiro entregador damercearia – e Albert trouxe, então, a primeirainformaçãorealmentevaliosa.Haviarealmenteumamoçafrancesanacasa.Tommy afastou suas últimas dúvidas. Ali estava a confirmação da teoriaqueformulara.Masotempoeracadavezmaisescasso.Jáeradia27.Odia29seriaotãopropalado“DiadoTrabalho”.Osrumoreseramcadavezmaisintensos.Osjornaisestavamficandoeufóricos.Noticiava-seabertamenteapossibilidade de um golpe de Estado trabalhista. O governo nada dizia.Estavaapardetudooquepodiaaconteceresepreparavaparaenfrentaracrise. Havia rumores de divergências entre os líderes trabalhistas. Nemtodospensavamdamesmamaneira.Osmaisperspicazespercebiamqueamanobra proposta podia ser um golpe mortal para a Inglaterra, que nofundotodosamavamprofundamente.Temiamafomeeamisériaqueumagrevegeraliriaacarretareestavampropensosaentraremumacordocomo governo. Mas, por trás deles, havia forças sutis e insistentes em ação,
reavivando recordações de erros antigos, condenando a fraqueza dasmedidasdecompromissoefomentandoasincompreensões.
Tommyachavaque,graçasaoSr.Carter,compreendiaperfeitamenteasituação. Com o documento fatídico nas mãos do Sr. Brown, a opiniãopública penderia para o lado dos líderes trabalhistas extremistas e dosrevolucionários. Se o documento não aparecesse, a batalha seria de igualpara igual. Com o exército e a força policial leais, o governo poderiavencer...mas à custa demuito sofrimento. Tommy cultivava outro sonhoextremamente absurdo. Com o Sr. Brown desmascarado e capturado,achava,certoouerrado,quetodaaorganizaçãoiriadesmoronardeformaignominiosaeinstantânea.Eraainfluênciaestranhaeonipresentedochefeinvisível que mantinha aqueles homens unidos. Sem o chefe, Tommyachava que haveria um pânico imediato. E se os homens honestospudessemdecidirpor simesmos, semprehaveriaapossibilidadedeumareconciliaçãodeúltimahora.
“É o que se pode chamar de espetáculo de um homem só”, pensouTommy.“Bastacapturarochefeetudoacabará.”
ForaparapoderexecutaresseprojetoambiciosoqueTommypediraaoSr. Carterquenão abrisseo envelope lacrado.O esboçodo tratado era aiscaqueeleusaria.Voltaemeia,eleduvidavadesuassuposições.Comoseatrevia a pensarquedescobrira oque tantoshomensmais inteligentes eespertos não haviam conseguido? Não obstante, Tommy se apegavatenazmenteàsuaidéia.
Naquelanoite,eleeAlbertpenetraramnovamentenoterrenodeAstleyPriors.OobjetivodeTommyeraencontraralgummeiodeentrarnacasa.E,subitamente, quando se aproximavam cautelosamente da casa, Tommydeixouescaparumaexclamaçãodeespanto.
Emuma janeladosegundoandar,haviaalguémparadodianteda luz,que lhedelineavanitidamentea silhueta.EeraumasilhuetaqueTommyreconheceriaemqualquerlugar.Tuppenceestavanaquelacasa!
EleagarrouobraçodeAlbert.–Fiqueaqui!Quandoeucomeçaracantar,observeaquelajanela!Recuando rapidamente até o caminho principal, Tommy pôs-se a
cantar,emvozbemalta,enquantoandavaempassostrôpegos:
Souumsoldado,Umalegresoldadobritânico,Pode-severquesouumsoldadopormeuspés...
Eraumadascantigasquemaisseouvianogramofonenos temposdehospital de Tuppence. Tommy tinha absoluta certeza de que elareconheceria a cantiga e tiraria conclusões. Ele não tinha a menorpropensãoparaocanto,masseuspulmõeseramexcelentes.Obarulhoqueconseguiuproduzirfoisimplesmenteformidável.
Nãodemoroumuitoparaqueummordomo impecável, acompanhadoporumcriadodelibréigualmenteimpecável,saíssepelaportadafrente.Omordomo reclamou. Tommy continuou a cantar, dirigindo-seafetuosamente aomordomo como “meu bom homem”. O criado de librésegurou-oporumbraço,omordomopelooutro.Levaram-noatéoportão.Omordomo ameaçou chamar a polícia caso Tommy voltasse a entrar napropriedade. Foi um serviço bem-feito, de maneira sóbria e serena.Qualquer um teria juradoque omordomo era ummordomode verdade,queocriadodelibréeraumcriadodelibrédeverdade.OúnicosenãoeraofatodequeomordomoeraWhittington!
TommyretornouàestalagemeficouesperandopelavoltadeAlbert.– O que aconteceu? – indagou Tommy, ansioso, assim que Albert
apareceu.–Enquantoolevavamparafora,ajanelafoiabertaejogaramalgopara
fora.EleentregouumpapelaTommyeacrescentou:–Estavaenroladonumpesodepapel.No papel, estavam rabiscadas quatro palavras: “Amanhã – à mesma
hora.”–SantoDeus!–exclamouTommy.–Descobrimos!–Escreviumamensagemnumpedaçodepapel,enroleinumapedrae
jogueipelajanela–continuouAlbert,ofegante.Tommygemeu.– Seu zelo ainda será a nossa perdição, Albert. O que disse na sua
mensagem?–Disse que estávamos na estalagem. Se ela conseguisse escapar, que
viesseatéaquiegrasnassecomoumarã.– Tuppence saberá que a mensagem é sua – disse Tommy, com um
suspirodealívio.–Suaimaginaçãoédelirante,Albert.Sónãoseicomovocêreconheceriaumarãgrasnando,seaouvisse.
Albertficouabatido.Tommyprocuroureanimá-lo:–Anime-se,rapaz.Nãohouvemalalgum.Aquelemordomoéumvelho
amigo meu. E aposto que ele soube quem eu era, apesar de não terdemonstrado.Elesqueremdaraimpressãoquenãosuspeitamdenada.É
por isso que não encontramos a menor dificuldade. Não querem medesencorajar inteiramente.Poroutro lado, tambémnãoqueremtornarascoisasfáceisdemais.Souumpeãonojogodeles,Albert.Afinal,seaaranhadeixaramoscaescaparcommuitafacilidade,amoscapodepensarquefoitudo tramado. É justamente essa a utilidade do jovem e promissor Sr. T.Beresford,queapareceunomomentomaisoportunoparaeles.Maistarde,porém,oSr.T.Beresfordvaiacabarlevandoamelhor!
Tommy passou o resto da noite em um estado de relativa exultação.Tinhaelaboradoumplanocuidadosoparaanoiteseguinte.EstavacertodequeoshabitantesdeAstleyPriorsnãoiriaminterferiremsuasatividadesatécertoponto.EraalémdessepontoqueTommypretendiaproporcionar-lhesumasurpresa.
Por volta do meio-dia, no entanto, sua serenidade foi abalada.Informaram-no que alguém desejava lhe falar. Era um carroceiro, deaspectorude,quaseinteiramentecobertodelama.
–Eentão,meubomhomem,oquedeseja?–indagouTommy.–Estáesperandoporestamensagem,senhor?O carroceiro estendeu um papel dobrado, bastante sujo, por fora do
qual estava escrito: “Leve isto para o cavalheiro na estalagem perto deAstleyPriors.Elelhedará10shillings.”
AletraeradeTuppence.Tommyapreciouaespertezadela,percebendoque ele poderia estar na estalagem sob um nome suposto. Pegou amensagem.
–Émesmoparamim.–Eosmeus10shillings?–indagouohomem.Tommyentregou-lheodinheiroedepoisleuamensagem:
CAROTOMMY:Eusoubelogoqueeravocênanoitepassada.Nãováestanoite,
pois eles estarão à sua espera. Vão levar-nos embora pelamanhã.Ouvi falar em Gales... Holyhead, se não me engano. Jogarei estebilhete na estrada, se tiver uma oportunidade. Annette contou-mecomovocêconseguiuescapar.Ânimo!
Sempresua,
TWOPENCE
TommygritouporAlbert antesmesmode terminar a leituradaquelaepístolacaracterística.
–Arrumeminhasmalas!Vamospartir!–Sim,senhor.O barulho das botas de Albert subindo a escada era estrondoso.
Holyhead?, pensou Tommy. Será que isso significava que, no fim dascontas...Tommyestavaperplexo.Leuobilheteoutravez.
As botas de Albert continuavam a fazer omaior barulho lá em cima.Subitamente,umsegundogritosoouláembaixo:
–Albert!Souumcompletoidiota!Nãoprecisamaisfazerasmalas!–Sim,senhor.Tommyalisouopapel,pensativo.–Issomesmo,nãopassodeumcompletoidiota–disseele,baixinho.–
Masháoutrocompletoidiotanessahistória!Efinalmenteeuseiquemé!
24Juliusrecebeumaajuda
Em sua suíte no Claridge’s, Kramenin estava recostado em um sofá editavaparaseusecretárioemumrussosibilante.
Daliapouco,otelefoneaoladodosecretáriotocou.Eleatendeu,falouporumminutoedepoisvirou-separaochefe:
–Háumhomemláembaixoquedesejafalarcomosenhor:–Quemé?–DissequeéoSr.JuliusP.Hersheimmer.–Hersheimmer... – repetiu Kramenin, pensativo. – Já ouvi esse nome
antes.– O pai dele foi um dos reis do aço dos Estados Unidos – explicou o
secretário,cujafunçãoerasaberdetudo.–Ojovemdeveserváriasvezesmilionário.
OsolhosdeKrameninseestreitaramcomumaexpressãodesatisfação.–Émelhorvocêdescereconversarcomele, Ivan.Descubraoqueele
quer.Osecretárioobedeceu,fechandoaportasilenciosamenteaosair.Voltou
poucosminutosdepois.–Eleserecusaadizeroquedeseja.Declarouqueoassuntoéparticular
epessoalequeprecisavê-loimediatamente.–Umjovemváriasvezesmilionário...–murmurouKramenin.–Traga-o
atéaqui,meucaroIvan.OsecretáriosaiueretornoupoucodepoiscomJulius.–Sr.Kramenin?–indagouonorte-americano.Orusso,examinando-oatentamentecomseusolhosclarosevenenosos,
fezumamesura.–Prazeremconhecê-lo–disseonorte-americano.–Tenhoumassunto
muitoimportanteatratar,sepuderfalar-lheasós.Eleindicouooutrocomosolhos.–Meu secretário, senhor Grieber, está a par de tudo o que faço. Não
tenhosegredosparaele.–Podeaténãoter...maseutenho–disseJulius,secamente–Porisso,
agradeceriaseomandasseseretirar.–Talveznãoseimporte,Ivan,deseretirarparaoaposentoaolado...–Oaposentoaoladonãoserve–interrompeu-oJulius.–Conheçoessas
suítesreais...equeroqueestaestejainteiramentevazia,anãoserpornósdois.Mande-oatéalojadaesquinaparacomprarumpacotedeamendoim.
Emboranãoapreciassemuitoa liberdadecomqueonorte-americanofalava,Krameninestavadominadopelacuriosidade.
–Oassuntoqueotrouxeatéaquivaitomarmuitotempo?–Podetomaranoiteinteira,casoestejainteressado.–Está certo.Nãovoumaisprecisardevocêestanoite, Ivan.Váaum
teatro...tireanoitedefolga.–Obrigado,excelência.Osecretáriofezumamesuraeseretirou.Juliusficouparadonaporta,observando-oseafastar.Finalmente,com
umsuspirosatisfeito,fechouaportaevoltouparaomeiodasala.– Agora, Sr. Hersheimmer, não quer fazer a gentileza de dizer o que
deseja?–Achoquenãovailevarumminuto.E no instante seguinte, com uma brusca mudança de atitude, Julius
gritourispidamente:–Levanteasmãos...oueuatiro!Kramenin ficou olhando para a automática por um momento,
completamenteaturdido.Depois,comumapressaquasecômica,ergueuasmãos acima da cabeça. Foi nesse instante que Julius pôde avaliá-lo. Ohomemcomquemestavalidandoeraumcovardemiserável.Orestoseriafácil.
– Isso é um ultraje! – gritou o russo, histericamente. – Um ultraje!Pretendemematar?
– Não, se baixar a voz. E não vá se aproximando de lado,sorrateiramente,dacampainha.Assimémelhor.
–Oqueestáquerendo?Nãocometanenhumaimprudência.Lembre-sedequeminhavidapossuiumimensovalorparaomeupaís.Possotersidodifamado,mas...
–Achoqueohomemquedeixassealuzdodiaentraremvocêestariaprestando um serviço à humanidade.Mas não precisa se preocupar.Nãotenho intenção de matá-lo... isto é, desde que se mostre um homemcompreensivo.
O russo encolheu-se diante da ameaça nos olhos de Julius. Passou alínguapeloslábiosressecados.
–Oqueestáquerendo?Dinheiro?–Não.QueroJaneFinn.–JaneFinn?Nuncaouvifalardela!–Estámentindo.Sabeperfeitamentedequemestoufalando.–Juroquenuncaouvifalardessamoça.– E eu lhe digo que LittleWillie está louco de vontade de entrar em
ação.Orussoseencolheuaindamais.–Nãoseatreveria...–Podeestarcertodequeeunãoteriaamenorhesitação.Kramenin deve ter percebido uma firme convicção no tom de Julius,
poisdissesombriamente:–Supondo-sequeeusaibaoqueestáquerendodizer...edaí?–Irámedizeragora,nesteinstante,ondepossoencontrá-la.Krameninsacudiuacabeça.–Nãoposso.–Porquenão?–Estápedindoalgoimpossível.–Estácommedo,hein?Dequem?DoSr.Brown?Ora,estáapavorado!
QuerdizerqueexistemesmootaldeSr.Brown?Euduvidava.Easimplesmençãodoseunomeodeixaapavorado!
– Já estive com ele – disse o russo, devagar. – Falei com elepessoalmente.Massódepoiséquesoube.Eraumrostonamultidão.Nãopoderia reconhecê-lo. Quem é ele realmente? Não sei.Mas de uma coisatenhocerteza:éumhomemquesedevetemer.
–Elenuncasaberá.
–OSr.Brownsabedetudo...esuavingançaéimediata.Nemmesmoeu,Kramenin,escaparia.
–Querdizerquenãovaifazeroqueestoupedindo?–Estápedindoalgoimpossível.– É uma pena para você mesmo – disse Julius, jovialmente. – Mas o
mundosebeneficiará.Elelevantouaarma.–Pare!–gritouorusso,estridentemente.–Pretendemesmoatirarem
mim?– Claro que pretendo. Sempre ouvi dizer que vocês, revolucionários,
nãodãoomenorvaloràvidahumana.Masparecequeháumadiferençaquandosetratadesuasprópriasvidas.Eulhedeiumachancedesalvarapele,masnãoquisaproveitá-la.
–Elesmematariam!–O problema é seu.Mas uma coisa posso lhe dizer: LittleWillie tem
umapontariacerteira.Seeufossevocê,prefeririacorreroriscocomoSr.Brown.
–Vocêseráenforcadosemematar–disseorusso,indeciso.–Énissoqueseengana.Estáseesquecendodosdólares.Umamultidão
de advogados entrará em ação. Os médicos mais respeitáveis serãoconvocadosparadepor.Eaconclusãoseráadequeeuestavamentalmenteperturbado por ocasião do crime. Passarei alguns meses num sanatório,minhasaúdementalirámelhorareosmédicospoderãodeclararqueestounovamente são. E tudo terminará bem para o pequeno Julius. Acho queposso suportar uns poucosmeses de isolamento para livrar omundo devocê.Nãoseenganepensandoquesereienforcado.
O russo acreditou. Como era corrupto, acreditava implicitamente nopoder do dinheiro. Já lera histórias de julgamentos por homicídio nosEstadosUnidosquehaviamsedesenroladodamaneiraqueJuliusindicara.Elepróprio jácompraraevendera justiça.Aquele jovemnorte-americanotãoviril,comsuafalaarrastada,tinha-oemseupoder.
– Vou contar até cinco – continuou Julius. – Se me deixar passar dequatro,achoquenãoprecisarámaissepreocuparcomoSr.Brown.Talvezelemandealgumasfloresparaoseuenterro,sóquenãopoderácheirá-las.Estápronto?Voucomeçar.Um...dois...três...quatro...
Orussointerrompeu-ocomumgritoestridente:–Nãoatire!Fareitudooquequiser!Juliusabaixouorevólver.–Eusabiaqueteriajuízo.Ondeestáamoça?
–EmGatehouse,emKent.AcasatemonomedeAstleyPriors.–Elaéprisioneiralá?– Não tem permissão para deixar a casa, embora isso não causasse
qualquerproblema.Aidiotaperdeuamemória.–Oquedeve ter sido terrívelparavocêe seusamigos.Eondeestáa
outramoça,aquevocêsatraíramparaumaarmadilhaháumasemana?–Elaestálátambém.– Isso é ótimo! Não acha que está tudo correndo bem? E que noite
maravilhosaparaumpasseio!–Quepasseio?–indagouKramenin,atônito.–AtéGatehouse,éclaro.Gostadepasseardecarro?–Oqueestáquerendodizer?Eumerecusoair!–Nãoprecisa ficar tão irritado.Deve saber quenão sou criançapara
deixá-loaqui.Assimqueeusaísse,telefonariaparaseusamigos.Julius observou a expressão de desânimo no rosto do russo e
acrescentou:–Tudocombinado,nãoémesmo?Aquelaportaéadoseuquarto?Pois
vá para lá. Little Willie e eu iremos logo atrás. Ponha um casaco bemgrosso. Esse serve. Revestido de pele, hein? E você é um socialista! Jápodemos ir. Vamosdescer, atravessar o saguão e entrar nomeu carro. EnãoseesqueçadequeLittleWillieestaráapontadoparavocêdurantetodoocaminho.Atiromuitobematravésdobolsodocasaco.Bastaumapalavraoumesmoumsimplesolharparaumdoscriadosehaveráumacaranovanasprofundezasdoinferno!
Desceramaescadaesaíramparaocarro.Orussotremiaderaiva.Osempregados do hotel estavam por perto. Um grito aflorou a seus lábios,mas,noúltimo instante, faltou-lhecoragem.Onorte-americanoerao tipodehomemquecumpririaumaameaça.
Ao chegarem ao carro, Julius deixou escapar um suspiro de alívio. Operigomaiorjápassara.Omedodeixarahipnotizadoohomemaoseulado.
–Entrenocarro!AoperceberoolhardeKrameninparaomotorista,Juliusacrescentou:–Nãoesperequalquerajudadomotorista.EleeradaMarinha.Estava
numsubmarinonaRússiaquandoestourouaRevolução.Umirmãodelefoiassassinadoporsuagente.Ei,George!
–Poisnão,senhor?–disseomotorista,virandoacabeça.–Estecavalheiroéumrussobolchevique.Nãoqueremosalvejá-lo,mas
talveznãohajaoutrojeito.Estáentendendo?–Perfeitamente,senhor.
–QueroiratéGatehouse,emKent.Conheceaestrada?–Conheço,senhor.Aviagemdeverálevarumahoraemeia.–Façaemumahora.Estoucompressa.–Fareiopossível,senhor.Ocarrodisparouporentreotráfego.Juliusrefestelou-seconfortavelmenteaoladodesuavítima.Mantevea
mão no bolso, mas sua atitude era mais cortês. E começou a falar,jovialmente:
–HaviaumhomemnoArizonaemquematirei...Ao fimdaviagemdeumahora,o infelizKrameninestavamaismorto
quevivo.DepoisdahistóriadohomemdeArizona,houveraorelatodeumepisódio em São Francisco e outro nas Montanhas Rochosas. O estilonarrativodeJuliuserapitoresco,senãorigorosamenteacurado.
Diminuindoavelocidade,omotoristaavisouqueestavamchegandoaGatehouse. Julius ordenou ao russo que passasse a dar a orientação. Seuplanoeraseguirdiretoatéacasa.Chegandoali,Kramenindeviapedirquelhetrouxessemasduasmoças.JuliusexplicouqueLittleWillienãotolerariaumfracasso.Aessaaltura,Kramenineraumfantochenasmãosdonorte-americano.Aviagememaltavelocidadedeixara-oaindamaisacovardado.Considerou-semortoacadacurvadaestrada.
Ocarroseguiupelocaminhoeparounopórtico.Omotoristaolhouparatrás,esperandopelasordens.
–Vireocarroprimeiro,George.Depois,toqueacampainhaevolteparaseu lugar. Mantenha omotor funcionando e fique preparado para sair omaisdepressapossível,quandoeuoavisar.
–Estácerto,senhor.A porta da frente foi aberta pelomordomo. Kramenin podia sentir o
canodorevólvercomprimidocontrasuascostelas.–Agora!–sussurrouJulius.–Etomecuidado!O russoassentiu. Seus lábios estavambrancos, e a voznãoeramuito
firmequandodisse:–Soueu...Kramenin!Tragamamoça imediatamente!Nãohátempoa
perder!Whittington tinha descido os degraus. Soltou uma exclamação de
espantoaoreconhecerorusso.–Você?Oqueaconteceu?Devesaberdoplano...Kramenin interrompeu-o,usandoaspalavrasque já causarammuitos
pânicosdesnecessários:–Fomostraídos!Osplanosdevemserabandonados!Precisamossalvar
nossasvidas!Tragaamoçaimediatamente!Éanossaúnicachance!Whittingtonhesitou,masapenasporummomento.–Temordens...dele?– Claro que tenho! Eu estaria aqui se não tivesse? Depressa! Não há
tempoaperder!Eémelhortrazertambémaoutramoça!Whittingtonvirou-seeentroucorrendonacasa.Minutosangustiantes
sepassaram.Depois,doisvultosenvoltosemmantosdesceramosdegrause entraram no carro. O vulto menor fez menção de resistir, masWhittington empurrou-o de forma rude, sem a menor cerimônia. Juliusinclinou-separaafrente.Nessemomento,aluzquesaíapelaportaabertailuminou-lhe o rosto. Outro homem que estava nos degraus, atrás deWhittington,soltouumaexclamaçãodeespanto.Osegredoterminara.
–Vamosembora,George!–gritouJulius.Omotoristapisounoaceleradoreocarrodeuumpuloparaafrente.O
homemnosdegraussoltouumaimprecação.Levouamãoaobolso.Houveumclarãoeumestampido.Abalapassoupertodagarotamaisalta.
–Abaixe-se,Jane!–gritouJulius.–Deitenofundodocarro!Eleempurrou-aparabaixo,depoisergueu-se,apontouedisparou.–Acertou?–perguntouTuppence,ansiosamente.– Claro! – confirmou Julius. – Mas ele não está morto. Os canalhas
custamamorrer.Vocêestábem,Tuppence?–Claroqueestou!OndeestáTommy?Equeméessehomem?ElaindicavaotrêmuloKramenin.–Tommydeve estar viajandopara aArgentina. Achoque ele pensou
quevocê tinhabatidoasbotas.Nãoparenoportão,George! Issomesmo.Eles levarãopelomenoscincominutosparaviratrásdenós.Maspodemusarotelefoneemandaremalguémficarnatocaia.Porisso,tomecuidado.Estáquerendosaberqueméessehomem,Tuppence?Deixe-meapresentá-la ao senhor Kramenin. Persuadi-o ame acompanhar nesta viagem, poisestavapreocupadocomasaúdedele.
Orussopermaneceucalado,aindalívidodeterror.– Mas por que eles nos deixaram ir embora? – indagou Tuppence,
desconfiada.–AchoqueosenhorKrameninpediu-lhesdeumjeitotãoconvincente
queelesnãopuderamrecusar.Erademaisparaorusso,queexplodiusubitamente:–Váparaodiabo!Elessabemagoraqueos traí!Minhavidanãoestá
maisseguranestepaís!– Tem razão – concordou Julius. – Eu o aconselharia a partir para a
Rússiaimediatamente.–Poisentãomedeixesaltardestecarro!Jáfizoquemepediu!Porque
aindamemantémprisioneiro?–Podeapostarquenãoépeloprazerdasuacompanhia.Masachoque
já pode saltar. Só estava pensando que iria preferir que eu o levasse devoltaaLondres.
–TalveznuncachegueaLondres!Deixe-mesairimediatamente!– Está certo. Dê uma parada, George. O cavalheiro não vai fazer a
viagemdevolta.SealgumdiaeuforàRússia,Sr.Kramenin,esperoterumarecepçãocalorosae...
MasantesqueJuliusterminassedefalareantesqueocarroparassedetodo,orussojátinhasaltado,desaparecendorapidamentenanoiteescura.
–Ele estavamesmoumpouco impaciente emnosdeixar – comentouJulius,quandoocarroganhouvelocidadeoutravez.–Enemselembroudese despedir polidamente dasmoças. Ei, Jane, agora já pode se sentar nobanco!
Amoçafaloupelaprimeiravez:–Comofoiqueo“persuadiu”?Juliusdeuumapancadinhanorevólver.–LittleWillieéquemerecetodoocrédito.– Esplêndido! – exclamou a moça, olhando para Julius com uma
expressãodeadmiração.–Annetteeeunãotínhamosamenoridéiadoqueiaacontecer–disse
Tuppence. – O velho Whittington disse-nos que tínhamos de ir emboraimediatamente. Pensamos que fôssemos cordeirinhos a caminho domatadouro.
–Annette...–repetiuJulius.–Éassimqueachama?Suamentepareciaestarseajustandoaumanovaidéia.–Éonomedela–disseTuppence,arregalandoosolhos.–Nadadisso!– reagiu Julius.–Elapodepensarqueéesseseunome,
porque perdeu amemória.Mas amoça que temos aqui é a verdadeira eoriginalJaneFinn.
–Oquê?–gritouTuppence.Mas ela foi bruscamente interrompida.Houveumestampido súbito e
umbalafoicravar-senoestofamentodocarro,apoucoscentímetrosdesuacabeça.
–Abaixem-se! – gritou Julius. –Éumaemboscada!Esses sujeitosnãoperderamtempo!Dêtudooquepuder,George!
O carro deu outro pulo para frente. Soaram mais três tiros, mas
felizmenteerraramoalvo.Juliusolhouparatrás.–Nãovejocoisaalgumaemqueatirar–anunciouele,sombriamente.–
Masachoquepodemosesperaroutropiqueniquepelafrente.Ai!Elelevouamãoaorosto.–Estáferido?–indagouAnnette.–Éapenasumarranhão.Amoçaempertigou-se.–Deixe-mesair!Deixe-mesair!Pareocarro!Elesestãoatrásdemim!
Souaúnicaquequerem!Nãopodemmorrerporminhacausa!Deixem-mesair!
Ela estava sacudindo freneticamente a maçaneta da porta. Juliussegurou-acomosdoisbraçosefitou-aatentamente.Elafalarasemomenorvestígiodesotaqueestrangeiro.
–Sente-se,menina–disseele,gentilmente.–Achoquenãohánadadeerradocomasuamemória.Conseguiuenganá-losotempotodo,hein?
Amoçafitou-o,assentiuedepoisdesatouachorar.Juliusafagou-anosombros.
– Pronto, pronto. Fique tranqüila agora. Não vamos deixar que nadamaislheaconteça.
Porentreossoluços,amoçabalbuciou:–Vocêénorte-americano...Reconheçoosotaque...Tenhotantasaudade
decasa...– Claro que sounorte-americano. Emais do que isso: sou seuprimo,
Julius Hersheimmer. Vim para a Europa tentar encontrá-la. E devoconfessarquenãofoinadafácil.
Ocarrodiminuiuavelocidade.Georgeinformouomotivo:–Háumaencruzilhadaadiante,senhor.Nãoseiqualéocaminhocerto.Ocarroestavaquaseparando.Efoinessemomentoquealguémsubiu
derepenteportrásdacapotaecaiudecabeçanomeiodeles.–Desculpem–disseTommy,procurandoseendireitar.Um tumulto de exclamações confusas saudaram seu aparecimento
súbito.Eleexplicou:–Euestavaescondidoatrásdasmoitas,pertodacasa.Segurei-meatrás
do carro. Não pude avisar antes, pela velocidade em que estavam. Paradizeraverdade,malconseguimesegurar.Eagoraqueroqueasduasmoçassaiamdocarro.
–Sair?– Isso mesmo. Há uma estação perto daqui, seguindo por aquela
estrada.Vaipassarumtremdentrodetrêsminutos.Poderãopegá-lo,sese
apressarem.–Masquediaboestáquerendo?–perguntou Julius. –Achaquepode
conseguirenganá-losdeixandoocarroaqui?–Nósdoisnãovamosdeixarocarro.Sóasmoçaséquevãosaltar.–Vocêestádoido,Beresford!Nãopodedeixarasmoças iremembora
sozinhas!Tommyvirou-separaTuppence.–Salteimediatamente,Tuppence.Eleve-acomvocê.Façaoqueestou
dizendo,semperguntas.Nadalhesacontecerá.Estãoseguras.PegueotremparaLondres.ProcuremSirJamesPeelEdgerton.OSr.CartermoraforadeLondres,masestarãosegurascomele.
–Masquediabo!–gritouJulius.–Vocêestáinteiramentedoido!Fiqueiondeestá,Jane!
Comummovimentorápidoerepentino,TommyarrancouorevólverdamãodeJuliuseapontou-oparaele.
–Eagora,vaiacreditarqueestoufalandosério?Saiamlogo,vocêsduas!Enãotenteimpedir...casocontrárioatirarei!
Tuppencesaiuimediatamente,arrastandoarelutanteJane.–Vamoslogo.Nãoháproblema.SeTommyestácertodoquediz...então
devemosfazeroqueelemanda.Vamosdepressa,ouperderemosotrem.Asduascomeçaramacorrer.AraivaacumuladadeJuliusexplodiu:–Masquediabo...Tommyinterrompeu-o:–Cale-se!Precisamosterumaconversinha,Sr.JuliusHersheimmer!
25AhistóriadeJane
Com o braço passado em torno de Jane, quase a arrastá-la, Tuppencechegoufinalmenteàestação.Seusouvidosatentosperceberamoruídodotremqueseaproximava.
–Depressaouvamosperderotrem!Chegaramàplataformanomomentoemqueo tremparou.Tuppence
abriuaportadeumcompartimentodeprimeiraclassequeestavavazio.Asduasafundaram,ofegantes,nosassentosestofados.
Umhomemdeuumaolhadanocompartimentoedepoisseguiuparaovagão seguinte. Jane estremeceu, nervosamente. Seus olhos estavamdilatadosdeterror.OlhouparaTuppenceebalbuciou:
–Seráqueéumdeles?Tuppencesacudiuacabeça.–Claroquenão!Estátudobemagora.ElapegouamãodeJaneeacrescentou:–Tommynãonosteriamandadopegarestetremsenãotivessecerteza
dequeestátudobem.– Mas é que ele não os conhece como eu! – exclamou a moça,
estremecendo. – Você não pode compreender! Foram cinco anos, cincolongosanos!Houveocasiõesemquepenseiquefosseenlouquecer!
–Issonãotemmaisimportância.Estátudoacabado.–Seráqueestámesmo?O trem estava agora em movimento, avançando pela noite a uma
velocidadecadavezmaior.Subitamente,JaneFinnestremeceu.–Oquefoiisso?Penseitervistoumrosto...olhandopelajanela!–Nãohánadaali.Veja!Tuppencefoiatéajanelaebaixouacortina.–Temcerteza?–Absoluta.Aoutramoçaachouquedeviadarumaexplicação:–Estoumecomportandocomoumcoelhoassustado,masnãoconsigo
mecontrolar.Seelesmepegassemagora...Osolhosdelasearregalaramdepavor.–Não!–implorouTuppence.–Deite-seenãopense!Podeestarcertade
queTommynãoteriaagidoassimsenãoestivesseabsolutamentecertodoqueestáfazendo!
–Meuprimonãoestavatãocerto.Nãoqueriaquesaíssemosdocarro.–Temrazão–murmurouTuppence,umtantoconstrangida.–Emqueestápensando?–perguntouJane,abruptamente.–Porquepergunta?–Asuavozestá...esquisita.–Euestavapensandonumacoisa...Masnãoquerodizernada.Ou,pelo
menos, não agora. Posso estar errada, embora não acredite muito nessapossibilidade.Éapenasumaidéiaquejámeocorreuhábastantetempo.EtenhoquasecertezadequeTommytambémpensounamesmacoisa.Mas
você não precisa se preocupar agora. Haverá tempo suficiente para issomais tarde.Epode ser atéqueeuesteja redondamenteenganada.Agora,façaoqueestoudizendo.Deite-seeprocurenãopensaremnada.
–Voutentar.Aspálpebrascompridasdesceramsobreosolhoscordeavelã.Tuppence continuou sentada, empertigada, quase na atitude de um
terrierdeguardavigilante.Contraasuavontade,estavabastantenervosa.Os olhos deslocavam-se sem parar de uma janela para outra. Já tinhaverificadoaposiçãoexatadacampainhadeemergência.Nãosabiaexprimirexatamente o que estava temendo. Mas a verdade é que não sentiainteriormenteamesmaconfiançademonstradaemsuaspalavras.NãoquenãoacreditasseemTommy,masdevezemquandosentia-seabaladapordúvidas,semsabersealguémtãohonestoesimplescomoelepoderiaserumadversárioàalturaparaainteligênciadiabólicadoarquiinimigo.
Se conseguissem chegar até Sir James Peel Edgerton em segurançaestariatudobem.Masseráqueconseguiriam?Seráqueasforçassinistraseinvisíveis do Sr. Brown já não estavam se concentrando para atacá-las?MesmoaúltimaimagemdeTommy,comorevólvernamão,nãoconseguiutranqüilizá-la. Àquela altura, Tommy já podia estar dominado, subjugadopelasforçassuperioresdoinimigo.Tuppencetratoudeelaborarseuplanodecampanha.
Quandootremdiminuiuavelocidade,entrandoemCharingCross,JaneFinnsentou-se,estremecendo.
–Chegamos?Penseiquenuncairíamosconseguir!– Eu tinha certeza de que conseguiríamos chegar a Londres. Se vai
acontecer alguma coisa, omomento é agora.Vamos sair logo. Pegaremosumtáxi.
Levaram umminuto para atravessar a barreira, pagar a passagem eentraremumtáxi.
–King’sCross–disseTuppenceaomotorista.Elateveumsobressaltonessemomento.Umhomemolhoupelajanela,
no instanteemqueotáxiarrancava.Tuppencetevequasecertezadequeera omesmo homem que as olhara no trem. E teve também a sensaçãoterríveldequeestavamcercadasportodososlados.
– Se eles estão pensando que vamos procurar Sir James, isso osdespistará–explicouelaparaJane.–Vãoimaginaragoraqueestamosindoao encontro do Sr. Carter. A casa dele fica em algum lugar ao norte deLondres.
Havia um engarrafamento em Holborn e o táxi teve que parar. Era
justamenteissooqueTuppenceestavaesperando.–Vamossaltar!–sussurrouela.–Depressa!Doisminutosdepois,elasestavamemoutrotáxi,seguindoparaCarlton
HouseTerrace.– Issodeve tê-losdespistado! – comentouTuppence, satisfeita. –Não
posso deixar de pensar que sou um bocado esperta! Como o motoristadaquele outro táxi deve estar nos xingando!Mas anotei o númerodele eamanhã lhemandarei umaordemdepagamentopostal, a fimde que elenãotenhaprejuízo,seformesmoautêntico.Ei,ocarroestáderrapando!
Houveumestrondonomomentodoimpacto.Outrotáxicolidiracomocarrodelas.
Num relance, Tuppence saltou. Um guarda estava se aproximando.Antes que ele chegasse, Tuppence entregou 5 shillings ao motorista edesapareceunomeiodamultidãoemcompanhiadeJane.
– Falta pouco agora – disse ela, pois o acidente ocorrera perto daTrafalgarSquare.
–Achaqueacolisãofoiacidentaloudeliberada?–Nãosei.Podetersidoqualquerumadasduas.De mãos dadas, as duas moças caminharam apressadamente.
Subitamente,Tuppencedisse:–Podeserimaginaçãominha,mastenhoasensaçãodequealguémestá
nosseguindo...–Depressa!–murmurouJane.–Oh,depressa!ElasestavamagoranaesquinadaCarltonHouseTerraceesentiam-se
umpoucomaisanimadas.Derepente,umhomemimensoeaparentementeembriagadobarrou-lhesapassagem.
–Boanoite,moças–disseele,avozengrolada.–Paraondeestãoindotãodepressa?
–Deixe-nospassar,porfavor–disseTuppence,firmemente.–Ora,queroapenasdarumapalavrinhaàsualindaamiguinha!O homem estendeu a mão muito firme e agarrou o ombro de Jane.
Tuppence ouviu passos atrás delas. Não procurou verificar se eram deamigosouinimigos.Abaixandoacabeça,elarepetiuumamanobradosseustemposdecriança,acertandoumacabeçadanaamplabarrigadoagressor.O resultado dessa tática pouco esportiva foi imediato. Abruptamente, ohomemcaiusentadonacalçada.TuppenceeJanesaíramcorrendo.Acasaque procuravam ficava um pouco mais adiante. Outros passos ecoavamatrás delas. Estavam ofegantes, respirando com dificuldade, quandoalcançaram a porta da casa de Sir James. Tuppence puxou a campainha,
enquantoJanebatiacomaaldrava.O homem que as detivera chegou ao pé da escada. Hesitou por um
momento e nesse instante a porta foi aberta. As duas cambalearamparadentrodosaguão.SirJamessaiudabiblioteca.
–Oqueestáacontecendo?EleseadiantourapidamenteeestendeuobraçoparaampararJane,que
cambaleava,prestesadesfalecer.Levou-aatéabibliotecaedeitou-aemumsofádecouro.Despejouumpoucodeconhaqueemumcopoeobrigou-aabeber. Com um suspiro, Jane sentou-se, os olhos ainda arregalados eapavorados.
– Está tudo bem agora. Não precisa temer mais nada, menina. Estáseguraaqui.
ArespiraçãodeJanefoisenormalizandoeacorvoltouaseurosto.SirJamesolhouparaTuppencecomumaexpressãoestranha.
–Querdizerentãoquenãoestámorta,Srta.Tuppence,assimcomooseuTommytambémnãoestava!
– Não é muito fácil liquidar os Jovens Aventureiros – gabou-seTuppence.
–Éoqueestáparecendo.Estoucertoaopensarqueoempreendimentoconjunto terminou com sucesso e que esta – ele virou-se para a moçasentadanosofá–éaSrta.JaneFinn?
–SourealmenteJaneFinn–murmurouamoça.–Etenhomuitacoisaparacontaraosenhor.
–Assimqueestivermaisforte...–Não! Temque ser agora! Eume sentireimais segura depois de lhe
contartudooquesei.–Comoacharmelhor.SirJamessentou-seemumadaspoltronasdecourodiantedosofá.Em
vozbaixa,Janecomeçouacontarsuahistória:– Vim para cá no Lusitania, a caminho de Paris. Pensava muito na
guerraequeriaajudar,deumjeitooudeoutro.TinhaestudadofrancêseminhaprofessorainformouqueprecisavamdeajudanumhospitaldeParis.Escrevi uma carta, oferecendomeus serviços.Aceitaram.Comonão tinhaparentes próximos, não foi difícil tomar as providências necessárias.QuandooLusitania foi torpedeadoumhomemveio falar comigo. Eu já otinhanotadoantes,maisdeumavez,ehaviaficadocomaimpressãodequeeleestava commedodealguémoudealgumacoisa.Perguntou-meseeueraumanorte-americanapatriotaedissequeestavalevandodocumentosde importância vital para os aliados. Pediu-me que ficasse com os
documentos.EudeveriaficaresperandoporumanúncionoTimes.Senãoaparecesse em três dias, deveria levar os documentos ao embaixadornorte-americano. A maior parte do que se seguiu ainda parece umpesadelo. De vez em quando, sonho com tudo. Vou relatar essa parte damaneiramais brevepossível.O Sr.Danverspediuque eu tivesse cautela.Podia ter sido seguido desde Nova York, embora achasse que não. Aprincípio, não desconfiei de nada. Mas no bote, a caminho de Holyhead,comecei a me sentir apreensiva. Havia uma mulher que procurava meajudar a todo instante e tentava fazer amizade comigo. Era a Sra.Vandemeyer. Não pude deixar deme sentir grata pelamaneira bondosacom que ela me tratava. Apesar disso, sentia durante todo o tempo quehavia algo nela que não me agradava. No barco irlandês, observei-aconversando com alguns homens de aparência esquisita. Pelo jeito comoolhavam,compreendiqueestavamfalandoameurespeito.
Janecontinuouseurelato:–Lembrei-medequeaSra.Vandemeyerestavabempertodemimno
LusitanianomomentoemqueoSr.Danversmeentregaraopacote.Antesdisso, ela tentara inclusive iniciar conversa com ele. Comecei a ficarapavorada,masnãosabiaoquefazer.PenseiemficaremHolyhead,emnãoir para Londres naquelemesmodia.Mas logo compreendi que isso seriatolice. Tinha que me comportar como se não tivesse percebido coisaalgumaeesperarqueacontecesseomelhor.Nãoviaqualquerpossibilidadede eles me agarrarem sememantivesse vigilante. Já havia tomado umaprecaução:abriooleado,substituíosdocumentosporpapéisembrancoecosturei-onovamente.Assim,nãoteriaqualquerimportânciasealguémmeroubasseopacote.Mas fiqueisemsaberoque fazercomosdocumentos.Finalmente, tiveumaidéia.Desdobrei-os,poiseramapenasduasfolhas,ecoloquei-osentreduaspáginasdeanúnciosdeumarevista.Coleiasduaspáginaspelasbeiras,comcolatiradadeumenvelope.Eenfieiarevistanobolso do meu casacão. Chegando a Holyhead, tentei entrar numcompartimento do trem em companhia de pessoas que me parecessemdireitas.Mas,estranhamente,parecia-mehaversempreumamultidãomecercando,empurrando-menadireçãoparaaqualnãodesejavair.Eraalgoapavorante.Porfim,acabeinomesmocompartimentodaSra.Vandemeyer.Saíparaocorredor,mastodososoutroscompartimentosestavamcheios.Nãotiveoutrojeitoanãoservoltareficarsentadalámesmo.Consolei-mecomopensamentodequehaviaoutraspessoasnocompartimento,comoumhomembastantesimpáticoeaesposa,sentadosnooutrobanco.Assim,senti-me quase feliz, até nos aproximarmos de Londres. Recostei-me no
bancoefecheiosolhos.Creioqueelespensaramqueeuestavadormindo.Masmeus olhos não estavam totalmente fechados e de repente avistei ohomem simpático tirar alguma coisa de sua mochila e entregar à Sra.Vandemeyer.E,aofazê-lo,piscouparaela...
Janeseguiuemsuanarrativa:–Nãopossodizeroquantoaquelapiscadelamedeixouaterrorizada.A
únicacoisaemquepenseifoisairparaocorredoromaisdepressapossível.Levantei-me, procurandoparecernatural e tranqüila. Talvez eles tenhampercebido alguma coisa, não posso dizer com certeza. O fato é que, derepente, a Sra. Vandemeyer gritou “Agora!”, encostando algo em minhaboca e nariz, enquanto eu tentava gritar. Um instante depois, recebi umgolpeviolentonacabeça.
JaneFinnfezumapausa,estremecendo.SirJamesmurmuroualgumaspalavrasdesimpatia.Umminutodepois,elarecomeçouafalar:
–Nãoseiquantotempopassouatéqueeurecuperasseossentidos.Nãome sentia bem, o estômago estava embrulhado. Descobri que estavadeitadanuma cama imunda.Havia umbiombo ao redor,mas pude ouvirduas pessoas conversando no quarto. A Sra. Vandemeyer era uma delas.Tentei escutar, mas a princípio não pude entender direito as palavras.Quando finalmente comecei a compreender o que estava acontecendo,fiqueitãoapavoradaquenãoseicomonãosolteiumgrito.Elesaindanãohaviam encontrado os papéis. Tinham descoberto as folhas em brancodentrodooleadoeficaramfuriosos.Nãosabiamseeutrocaraospapéisouse Danvers estava levando documentos falsos, enquanto os verdadeiroseram despachados por outro portador. Falaram em me torturar paradescobrir!
JaneFinnfechouosolhosporuminstante.–Eununcasouberaantesoqueeraomedo,medodeverdade,terrível,
que domina inteiramente a gente. Emdeterminadomomento, eles forammeolhar.Fecheiosolhosefingiquecontinuavainconsciente.Tivemedodeque ouvissem as batidas do meu coração. Mas eles logo se retiraram.Comecei a pensar desesperadamente. O que podia fazer? Sabia que nãoconseguiria resistir à tortura por muito tempo. Subitamente, pensei naperdadamemória.Oassuntosempremeinteressaraetinhalidobastantearespeito. Sabia perfeitamente como fingir. E se o blefe desse certo, podiamesalvar.Fizumapreceerespireifundo.Depois,abriosolhosecomeceiabalbuciar... em francês! A Sra. Vandemeyer contornou imediatamente obiombo.Orostodela tinhaumaexpressão tãodiabólicaquequasemorri.Massorri-lhe,timidamente,indagandoemfrancêsondeestava.Percebique
elaficouperplexa.Chamouohomemcomquemestiveraconversando.Eleficou parado junto ao biombo, com o rosto nas sombras. Falou-me emfrancês.Tinhaumavozsuaveetranqüila.Mas,nãoseiporque,assustou-memaisqueamulher.Tiveasensaçãodequeeleviaatéofundodemim,mascontinueiadesempenharopapel.Pergunteinovamenteondeestavaedepoisdissequehaviaalgumacoisadequeprecisavamelembrar,masquenomomentominhamente parecia estar totalmente vazia. Fui parecendocadavezmaisaflita.Ohomemperguntouqual eraomeunome.Eudissequenãosabia,quenãoconseguiamelembrardenada.Derepente,elemesegurouopulsoecomeçouatorcê-lo.Adoreraterrível.Solteiumgrito.Elecontinuou a torcer. Gritei e gritei uma porção de vezes. Mas, de algumaforma,conseguisógritarcoisasemfrancês.Nãoseiporquantotempomaisconseguiriaagüentar.Mas,felizmente,desmaiei.Aúltimacoisaqueouvifoiavozdeledizer:“Nãoéumblefe.Alémdomais,umagarotadaidadedelanão saberia o bastante para fazer uma encenação dessas.” Acho que eleestavaesquecendoqueasgarotasnorte-americanassãomaismadurasqueasinglesaseseinteressammaisporassuntoscientíficos.
Ahistóriaganhavatonscadavezmaisdramáticos:–Quandorecupereiossentidos,aSra.Vandemeyerestavametratando
com extrema gentileza. Falou-me em francês, disse que eu sofrera umchoquemuitograndeeestiverabastantedoente.Garantiuqueembreveeuestariamelhor. Fingi estar aturdida,murmurei algoa respeitodomédicoquememachucara o pulso. Ela ficou aliviada ao ouvir tais palavras. Elaacabou saindo do quarto.Mas continuei desconfiada e fiquei deitada pormais algum tempo. Depois me levantei e caminhei pelo quarto,examinando-o. Achei que não haveria qualquer problema se alguémestivessemeobservando,poisminhaatitudeerabastantenatural,dadasascircunstâncias.Eraumquartinhomiseráveleimundo.Nãotinhajanelas,oquepareciamuitoestranho.Imagineiqueaportadeviaestartrancada,masnão tentei abri-la. Havia algumas gravuras antigas nas paredes,representandocenasdoFausto.
Os dois espectadores de Jane soltaram uma exclamação dereconhecimentosimultânea.Amoçaassentiu.
–ÉomesmolugarnoSohoondeoSr.Beresfordesteveaprisionado.Éclaro que, naquela ocasião, eu nem sequer sabia que estava em Londres.Havia uma coisa que me preocupava terrivelmente. Mas meu coraçãodisparoudealívioquandoavisteiocasacãojogadoemcimadeumacadeira,comarevistaenroladaeaindaenfiadanobolso!Seaomenoseupudessetercertezadequenãoestavasendoobservada...Examineiasparedescomtoda
atenção.Nãopareciahaverqualquerburaco.Apesardisso,eutinhacertezadequedeviater.Derepente,sentei-menabeiradamesaeleveiasmãosaorosto, pondo-me a soluçar: “Mon Dieu! Mon Dieu!” Tenho ouvidos muitoaguçados. Ouvi nitidamente o farfalhar de um vestido e um pequenorangido.Foiobastanteparamim.Tinhaagoracertezadequeestavasendoobservada!Deitei-menacamaedaliapoucoaSra.Vandemeyertrouxe-meojantar.Continuavaametratarcomtodasuavidade.Imagineiquehaviampedido a ela que tentasse conquistarminha confiança. Elamemostrou opacote do oleado e me perguntou se o reconhecia, observando-meatentamente com seusolhosde lince. Peguei-o e revirei-o entre asmãos,com uma expressão aturdida. Depois, sacudi a cabeça. Disse que tinha asensaçãodequedeviamerecordardealgumacoisa,quetudopareciaestarvoltando,masminhamentevoltavaa ficar embrancoantesquepudesseapreenderalgumacoisa.Elamedisseentãoqueeuerasuasobrinhaequedevia chamá-la de “tia Rita”. Assim a chamei, obedientemente. Elaacrescentouqueeunãodeviamepreocupar,queminhamemóriaembrevevoltaria. Foiumanoitehorrível. Fizumplanoenquantoesperavaqueelavoltasse.Osdocumentostinhamestadoemsegurançaatéaquelemomento,maseunãopodiacorreroriscodedeixá-losnarevistapormaistempo.Aqualquermomento podiam folhear a revista. Fiquei acordada, deitada nacama, até calcular que já deviam ser 2 horas. Levantei-me, o maissilenciosamentepossível,fuitateandonoescuropelaparededaesquerda.Cuidadosamente, tireiumdosquadrosdaparede,odeMarguerite comacaixadejóias.Fuiatéocasacãonacadeira,pegueiarevistaemaisdoisoutrêsenvelopesquetinhaguardado.Depois,fuiatéolavatórioeumedeciopapelpardoatrásdagravura.Játinhaarrancadoasduaspáginasdarevista.Coloquei-as, comas folhas tão importantes entre elas, atrásda gravura epusopapelpardoporcima,colando-ocomumpoucodecolaquetireidosenvelopes.Ninguémpoderia reparar que eumexera no quadro. Tornei apendurá-lo,pusarevistanobolsodocasacãoevolteiparaacama.Estavasatisfeitacomomeuesconderijo.Eles jamaispensariamemprocurarnosprópriosquadros.Efiqueicomaesperançadequechegassemàconclusãode que Danvers estava levando apenas papéis falsos e acabassem medeixando irembora.Paradizeraverdade,achoque foiexatamente issooque eles pensaram, pelo menos a princípio. O que, de certa forma, erabastanteperigosoparamim.Descobrimaistardequequasemeliquidaramnaquelaocasião,poisnunca chegarama cogitar emmedeixar ir embora.Masoprimeirohomem,queeraochefe,preferiumemanterviva,achandoque havia a possibilidade de eu ter escondido os documentos e poder
revelar onde estavam se recuperasse a memória. Observaram-meconstantemente,durantesemanasafio.Devezemquando,interrogavam-meporhorasehoras.Dealgumaforma,conseguiresistir.Masatensãoeraterrível...
Janecontinuouarelatarsuaaventura:– Levaram-me de volta à Irlanda, reconstituindo todo o percurso até
Londres,prevendoapossibilidadedeeu terescondidoosdocumentosenroute.Falaram-medeumajovem,parentedaSra.Vandemeyer,cujamenteficaraafetadapeloafundamentodoLusitania.Nãohavianinguémaquemeupudessepedirsocorrosemmedenunciar.Setentasseefracassasse–oque parecia inevitável, pois a Sra. Vandemeyer parecia rica e se vestiamuito bem, o que me fazia concluir que, no caso de ser a palavra delacontra a minha, ela não teria a menor dificuldade em convencer asautoridades de que eu sofria das faculdades mentais e que tal denúnciafaziapartedo“complexodeperseguição”–,sentiaqueiriasofrerhorroresindescritíveis, que se abateriam sobre mim no momento em quedescobrissemqueaperdadememórianãopassavadeumblefe.
SirJamesassentiucomumaexpressãocompreensiva,ecomentou:– A Sra. Vandemeyer era umamulher de grande personalidade. Com
isso emais a sua posição social, não teria amenor dificuldade em fazerprevalecer a palavra dela contra a sua. Suas acusações sensacionais nãoreceberiamomenorcrédito.
–Foiexatamenteoquepensei.Acabeisendoenviadaparaumsanatórioem Bournemouth. A princípio, fiquei sem saber se era um sanatório deverdadeouapenasumafarsa.Umaenfermeiracuidavademim.Eueraumapacienteespecial.Aenfermeirapareciatãosimpáticaenormalqueacabeitomando a decisão de confiar nela. Foi por muita sorte que não caí naarmadilha.Umatarde,aportadomeuquartoestavaentreabertaeouvi-aconversando com alguém no corredor. Ela era da quadrilha! Aindapensavamque eu podia estar blefando e colocaram-na cuidando demimparasecertificarem.Depoisdisso,perdi inteiramenteacoragem.Nãomeatrevia a confiar emninguém. Creio que quase hipnotizei amimmesma.Depoisdealgumtempo,haviapraticamenteesquecidoqueeranarealidadeJane Finn. Estava tão empenhada em representar o papel de JanetVandemeyer que meus nervos começaram a pregar-me peças. Fiqueirealmentedoente,passeimesesimersanumestadodesemiletargia.Acheiqueiriamorrerembreveequenadaimportava.Dizemqueumapessoasã,trancada num asilo de lunáticos, pode perfeitamente acabar insanatambém. Acho que era isso o que estava acontecendo comigo.
Desempenharmeupapeltornou-seumaespéciedesegundanaturezaparamim.Nofim,sequermesentiainfeliz,estavaapenasapática.Nadapareciaterqualquerimportância.Eosanosforampassando.
Janeprosseguiu:– E umdia, subitamente, tudo começou amudar. A Sra. Vandemeyer
veio de Londres para me visitar. Ela e o médico me fizeram perguntas,cogitaram diversos tratamentos. Falaram em me mandar para umespecialista em Paris. Mas acabaram concluindo que não podiam correresse risco. Ouvi algo que parecia indicar que outras pessoas, pessoasamigas, estavam à minha procura. Soube depois que a enfermeira quecuidarademimtinhaidoparaPariseconsultadoumespecialista,comosefosseeu.Omédicosubmetera-aadiversostesteseverificaraqueaperdade memória dela era fraudulenta. Mas ela anotou os métodos dele e osreproduziuemmim.Tenhoaimpressãodequeeunãoconseguiriaenganarum especialista por muito tempo. Afinal, um homem que passa a vidainteiraestudandoumassuntonãosedeixaenganarcomfacilidade.Mas,dequalquer forma, consegui enganá-los outra vez. O fato de eu já não meenxergarmaiscomoJaneFinntornoutudomaisfácil.Umanoite,levaram-medevoltaaLondres,inesperadamente.FomosparaacasanoSoho.Senti-mediferenteapartirdomomentoemquedeixeiosanatório,comosealgoque estivera enterrado por muito tempo dentro de mim começasse adespertarnovamente.Mandaram-meserviroSr.Beresford.Éclaroqueeunãosabiaonomedelenaocasião.Fiqueidesconfiada,penseiquesetratavadeoutraarmadilha.Maselepareciatãohonestoquecomeceiapensarquetalveznãofosse.Contudo,continueiatomarcuidadocomtudooquedizia,pois sabia que podíamos ser ouvidos.Há umpequeno orifício no alto daparede.Masnuma tardededomingo, chegouumamensagem.Todoselesficaramperturbados. Semque soubessem, escutei a conversa. E descobrique tinhamrecebidoumaordemparamataroSr.Beresford.Nãoprecisocontaroqueaconteceuaseguir,poisjásabemdetudo.Quandoestávamosnaporta,acheiqueaindateriatempodecorreratéláemcimaepegarosdocumentos.Masfuiapanhada.Porisso,griteiparaqueelefugissesozinho.E disse também que queria voltar para Marguerite. Gritei o nome trêsvezes,bemalto.SabiaqueosoutrospensariamqueestavamereferindoàSra.Vandemeyer,masesperavaqueo sr.Beresfordpensassenagravura.Ele havia tirado o quadro da parede no primeiro dia, o que me fizerahesitaremconfiarnele.
JaneFinnfezumapausaeSirJamesperguntou:–Querdizerqueosdocumentosaindaestãoatrásdoquadronaparede
daquelequarto?–Exatamente.A moça afundou no sofá, exausta após o esforço de relatar toda a
história.SirJameslevantou-seeolhouorelógio.–Vamos.Temosqueirláimediatamente.–Estanoite?–indagouTuppence,surpresa.–Amanhãpodesertardedemais–disseSirJames,solenemente.–Além
disso,se formosestanoitetalveztenhamosaoportunidadedecapturarograndeesupercriminoso...Sr.Brown!
Houveumlongomomentodesilêncio,atéqueSirJamesvoltouafalar:–Nãorestaamenordúvidadequevocêsduasforamseguidasatéaqui.
Quandodeixarmosestacasa,seremosseguidostambém,masninguémiránosmolestar.Oplano do Sr. Brown é deixar que o levemos ao lugar ondeestãoosdocumentos.MasacasanoSohoestásobvigilânciadapolícia,diaenoite. Há vários homens postados em torno dela. Quando entrarmos nacasa,oSr.Brownnãoirárecuar.Iráarriscartudo,naesperançadechegarao pavio para explodir o barril de pólvora. E vai imaginar que não corregranderisco,jáqueentrarádisfarçadocomoumamigo!
Tuppencecorouedepoisfalouimpulsivamente:–Masháumacoisaqueaindanãosabe...algoquenãolhecontamos!OsolhosdelasefixaramemJane,namaiorperplexidade.– E o que é? – indagou Sir James, bruscamente. – Não pode haver
hesitação,Srta.Tuppence.Precisamosestarabsolutamentecertosdetudo.MasTuppence,derepente,pareciaestartendodificuldadeemfalar:–Étãodifícil...seeuestivererrada...oh,seriaterrível!Ela fitava Jane, que de nada desconfiava, com uma expressão
angustiada.Eacrescentou,enigmaticamente:–Vocênuncameperdoaria,Jane...–Querqueeuaajude,nãoquer?–sugeriuSirJames.–Porfavor.VocêsabequeméoSr.Brown,nãoémesmo?–Seisim–respondeuoadvogado,comumtomsério.–Finalmenteeu
sei.–Finalmente?Maseupensei...Elainterrompeuafrasenomeio.– Pensou corretamente, Srta. Tuppence. Há algum tempo que estou
certo da identidade dele. Para ser mais exato, desde a noite da mortemisteriosadaSra.Vandemeyer.
Tuppence deixou escapar uma exclamação de alívio. Sir James
continuou:–SóhaviaduasexplicaçõespossíveisparaamortedaSra.Vandemeyer.
Ou o cloral foi administrado por ela mesma, uma teoria que rejeitototalmente,ouentão...
–Ouentãooquê?–Ouentãofoiadministradonoconhaquequedeuaela.Sótrêspessoas
tocaramnaqueleconhaque:você,eue...oSr.JuliusHersheimmer!JaneFinnremexeu-senosofá,olhandoatônitaparaoadvogado.–Aprincípio,talpossibilidadepareceu-meinteiramenteimpossível.O
Sr. Hersheimmer, como filho de um famoso milionário, era uma pessoabastanteconhecidanosEstadosUnidos.PareciaimpossívelqueeleeoSr.Brownpudessem ser amesmapessoa.Masnão se pode escapar à lógicados fatos.Éprecisoaceitarascoisascomosão.Lembre-sedonervosismosúbitoeinexplicáveldaSra.Vandemeyer.Eraoutraprova,seéquealgumaprovaeranecessária.Depois,aproveiteiaprimeiraoportunidadeparalhefazerumainsinuação.PoralgumascoisasqueoSr.HersheimmerdisseemManchester, calculeique tinhacompreendidoeagidocombasenaminhainsinuação.Empenhei-me,então,emprovarqueoimpossívelerapossível.O Sr. Beresfordme telefonou e informou, o que eu já desconfiava, que afotografiadaSrta.JaneFinnjamaissaíradasmãosdoSr.Hersheimmer...
Masamoçainterrompeu-o,levantando-seegritandofuriosamente:–Oqueestáquerendoinsinuar?QueoSr.BrownéJulius...meupróprio
primo?–Não,Srta.Finn,nãoéseuprimo–disseSirJames,inesperadamente.–
OhomemqueseintitulaJuliusHersheimmernãotemqualquerparentescocomasenhorita.
26OSr.Brown
AspalavrasdeSir Jamestiveramoefeitodeumabomba.Asduasmoçasficaram atônitas. O advogado foi até a escrivaninha e voltou com umpequenorecortede jornal,queentregoua Jane.Tuppence leu-oporcimado ombro da moça. O Sr. Carter teria reconhecido aquele recorte. Era a
notíciadohomemmisteriosoqueforaencontradomortoemNovaYork.–ComoeuestavadizendoàSrta.Tuppence–recomeçouoadvogado–,
tomei a decisão de provar que o impossível era possível. O grandeobstáculoeraofatoinegáveldequeJuliusHersheimmernãoeraumnomefictício. Quando descobri essa notícia, compreendi que meu problemaestavaresolvido.JuliusHersheimmerhaviatomadoadecisãodedescobriroqueaconteceracomsuaprima.FoiparaoOestenorte-americano,ondeobtevenotíciasdelaeumafotografiaparaajudá-lonabusca.NavésperadesuapartidadeNovaYorkfoiassassinado.Vestiramocadávercomroupasandrajosasedesfiguraramorosto,paraevitaraidentificação.OSr.Browntomouo lugar dele. E partiu para a Inglaterra.Nenhumdos amigosmaischegados de Hersheimmer o viu imediatamente antes da partida. E setivessem visto, isso não teria feitomuita diferença, pois a caracterizaçãoera perfeita. Desde então, o Sr. Brown é unha e carne com aqueles queestão empenhados em destruí-lo. Conhece todos os segredos deles. Sóesteve muito perto do desastre uma vez. A Sra. Vandemeyer conhecia osegredodele.Ejamaispoderiaimaginarqueiriamoferecerumasomatãofabulosa na tentativa de suborná-la.Mas se a Srta. Tuppence não tivessemudadodeidéia,aSra.Vandemeyerjáestariamuitolongedoapartamentoquando lá chegássemos. O Sr. Brown percebeu que estava prestes a serdenunciado.Eadotouumamedidadesesperada,imaginandoquenãoiriamdesconfiardeleemsuafalsapersonalidade.Equaseconseguiu.
– Não consigo acreditar... – murmurou Jane. – Ele parecia tãomaravilhoso...
–OverdadeiroJuliusHersheimmerera,defato,umsujeitoesplêndido,Srta. Finn. E o Sr. Brown é um ator de primeira. Mas pergunte à Srta.Tuppenceseelatambémnãosuspeitavadele.
Jane virou-se para Tuppence, com uma súplica muda. Tuppencelimitou-seaassentir.
–Eunãoqueriadizer, Jane,poissabiaqueissoiriamagoá-la.Alémdomais,nãotinhacerteza.Aindanãocompreendoporqueelenossalvou,seédefatooSr.Brown.
–FoiJuliusHersheimmerquemajudou-asaescapar?Tuppence relatou a Sir James os acontecimentos daquela noite,
concluindo:–Masaindanãoconsigocompreenderporquê!–Nãoconsegue?Poiseupossoperfeitamentecompreender.Eojovem
Beresford tambémpode, a julgar por seus atos. Comoúltima chance, eraprecisodeixarJaneFinnescapar...eafugatinhaqueserarquitetadadetal
maneira que ela não suspeitasse que era encenada. Eles não seincomodariam com a presença do jovem Beresford nas proximidades,talvezaté, senecessário fosse, comunicando-se comvocê.Cuidariamdeledevidamente se começasse a interferir demais. E, de repente, JuliusHersheimmerentraemcenainesperadamenteesalvaasduas,deformaumtantomelodramática.Balasvoamportodaparte...masninguéméatingido.Oqueaconteceriaemseguida? IriamdiretoparaacasanoSohoeaSrta.Finnprovavelmente confiariaosdocumentosàguardadoprimo.OuseopróprioJuliusHersheimmerconduzisseabusca,fingiriaquejáencontrarao quadro saqueado. Com certeza, ele encontraria umadúzia demaneirasdiferentes de resolver o problema,mas o resultado final seria sempre omesmo. E tenho a impressão de que, em seguida, aconteceria algumacidente com vocês duas. Afinal, sabem demais, o que é uma tremendainconveniênciaparaeles.Admitoquefuiapanhadodesurpresaemmuitospontos.Mashouvealguémquenãosedeixouenganar.
–FoiTommy–murmurouTuppence,suavemente.–Exatamente.Quandochegouomomentodeselivraremdele...ojovem
Beresfordprovouqueeramaisespertodoqueimaginavam.Sejacomofor,nãoestoumuitotranqüilocomrelaçãoaele.
–Porquê?–Porque JuliusHersheimmeréoSr.Brown.Eéprecisomaisqueum
homemeumrevólverparaconteroSr.Brown...Tuppenceempalideceuligeiramente.–Oquepodemosfazer?–Nada, enquanto não formos até a casa no Soho. SeBeresford ainda
estivercontrolandoasituação,nãoháoquetemer.Seissonãoacontecereoinimigovierànossaprocura...estaremospreparados!
SirJamespegouumrevólvernagavetadaescrivaninhaeguardou-onobolsodocasaco.
– Já podemos ir. Sei que nem adianta sugerir que não vá, Srta.Tuppence...
–Eunãodeixariadeirpornadanessemundo!–MassugiroqueaSrta.Finnfiqueaqui.Estaráperfeitamentesegurae
imaginoqueestejaesgotada,depoisdetudoporquepassou...Mas,parasurpresadeTuppence,Janesacudiuacabeça.–Não ficarei aqui! Prefiro ir junto. Aqueles papéis foram confiados a
mim.Tenhoqueiratéofim.Ejáestoumesentindomuitomelhor.Sir Jamesmandouque trouxessemocarro.Durantea curtaviagem,o
coração de Tuppence batia de maneira descompassada. Apesar das
apreensões momentâneas em relação a Tommy, não podia deixar de sesentirexultante.Iamvencer!
Ocarroparounaesquinadapraçaeostrêssaltaram.SirJamesdirigiu-se até um policial à paisana que estava de vigia, juntamente com váriosoutroshomens,efalou-lheporummomento.Depois,voltouparajuntodasmoças.
–Ninguémentrounacasaatéagora.Estãovigiandotambémosfundosdacasa,eporissopodemtercerteza.Quemquerquetenteentrardepoisdenósserápresoimediatamente.Vamos?
Um outro policial lhe entregou a chave. Todos conheciam Sir James.Também tinham ordens para respeitar Tuppence. Só não conheciam aterceira pessoa do grupo. Os três entraram na casa e fecharam a porta.Subiramlentamenteaescada.Lánoalto,estavaacortinarasgadaatrásdaqualTommyseesconderanoprimeirodia.TuppenceouviraahistóriaporJane,quandoamoçaaindaseapresentavacomo“Annette”.Elaolhouparaoveludorasgadoepuídocomomaiorinteresse.Mesmoagora,podiaquasejurarqueestavasemexendo,comosehouvessealguémaliatrás.A ilusãoeratãofortequeelaquasetevea impressãodeenxergaroscontornosdeumcorpo...SeoSr.Brown–Julius–estivesseàespera...
Era impossível, é claro. Contudo, Tuppence quase voltou paraentreabriracortinaesecertificar.
Entraram no quarto-prisão. Ali não havia lugar para ninguém seesconder,pensouTuppence, soltandoumsuspirodealívio.Censuroua simesma, com toda veemência. Não podia permitir que suas fantasias adominassem, tinha que resistir àquela insistente sensação de que o Sr.Brownestavana casa... Ei, o que seria aquilo?Passos furtivosna escada?Haviamaisalguémnacasa!Elaestava,simplesmente,ficandohistérica.
Jane foi direto ao quadro deMarguerite. Tirou-o da parede, asmãosfirmes.Estavacobertoporumacamadadepoeira, tinhaalgumas teiasdearanha.Sir Jamesentregou-lheumcaniveteeelacortouopapelpardodetrás... As páginas de anúncio da revista caíram no chão. Jane pegou.Separando-as,tirouduasfolhasfinas,cobertasporpalavras!
Destaveznãoeraumembuste!Eraoverdadeirotratadoqueestavaali!–Conseguimos!–exclamouTuppence.–Finalmente...Era um momento emocionante. Ela esqueceu os rangidos tênues, os
ruídosimagináriosqueouviraumminutoantes.OstrêsolhavamfixamenteparaasduasfolhasqueJanesegurava.
SirJamespegou-aseexaminoucomatenção.–Éissomesmo!–disseelefinalmente.–Esteéoesboçodomalfadado
tratado!–Conseguimos!–repetiuTuppence.Haviaumtomrespeitoso,quasedeincredulidade,emsuavoz.SirJames
dobrou as duas folhas cuidadosamente e guardou-as no bolso. Depois,correuosolhospeloquartinhomiserável.
–Foiaquiqueonosso jovemamigo ficouconfinadopor tanto tempo,não émesmo? – disse ele. – É um quarto realmente sinistro. Devem ternotado a ausência de janelas e a espessura da porta. O que quer queacontecesseaqui,jamaisseriaouvidonomundoexterior.
Tuppenceestremeceu.Aquelaspalavrasdespertaramumvagoalarmenela. E se houvesse mais alguém escondido na casa? E se esse alguémfechasse a porta subitamente e os deixasse presos ali dentro, paramorrerem como ratos em uma armadilha? Um instante depois, elacompreendeu o absurdo de tal pensamento. A casa estava cercada pelapolícia. Se elesnão saíssem, apolícianãohesitaria ementrar e revistá-lameticulosamente. Tuppence sorriu de sua própria tolice. Estremeceu aolevantaracabeça,descobrindoqueSirJamesafitava.Eleassentiu.
– Tem toda razão, Srta. Tuppence. Está farejando o perigo. Pois eutambémestou.EomesmoacontececomaSrta.Finn.
– É isso mesmo – admitiu Jane. – Sei que é um absurdo, mas... nãoconsigomecontrolar.
SirJamestornouaassentir.– Está sentindo... todos nós estamos sentindo... a presença do Sr.
Brown...Tuppencefezummovimentoeeleacrescentou.–Nãohácomoduvidar...oSr.Brownestáaqui...–Nestacasa?–Nestequarto...Seráqueaindanãoperceberam?EusouoSr.Brown...Estupefatas, incrédulas, as duasmoças ficaramparalisadas, fitando-o.
AsprópriasfeiçõesdeSirJameshaviammudado.Eraumhomemdiferentequeestavaagoradiantedelas.Elesorriu,umsorrisolentoecruel.
–Nenhumadasduasdeixaráestequartoviva.Acabaramdedizerquenós conseguimos. Eu consegui! O esboço do tratado está agora em meupoder!
OsorrisosealargoueosolhossefixaramemTuppence.–Querque eu lhedigaoque acontecerá?Mais cedooumais tarde, a
polícia entraránesta casa e encontrará três vítimasdoSr.Brown... três enão duas, entende? Mas, felizmente, a terceira não estará morta, masapenas ferida. Epoderádescrever com riquezadedetalhes o agressor.O
tratado?EstáempoderdoSr.Brown.Assim,ninguémpensaráemrevistarosbolsosdeSirJamesPeelEdgerton!
Elevirou-separaJane.–Conseguiusermaisespertadoqueeu.Tenhoquelhedarosparabéns.
Masjamaisconseguirárepetirafaçanha.Houveumpequeno ruído atrás dele.Mas, inebriadopelo sucesso, Sir
Jamesnãovirouacabeçaparaveroqueera.Enfiouamãonobolso.– Fim da linha para os Jovens Aventureiros – disse ele, erguendo
lentamenteaautomática.E foi nesse momento que mãos de ferro o agarraram por trás. O
revólver foi arrancado de sua mão. E a voz arrastada de JuliusHersheimmerdisse:
–Achoquefoiapanhadoemflagrante,comabocanabotija!O sangue subiu ao rosto do advogado. Mas seu autocontrole era
maravilhoso. E parecia calmo quando contemplou seus dois captores. OsolhossefixarampormaistempoemTommyeelemurmurou:
–Você!Eudeviaterimaginado...Vendoqueelenãopareciadispostoaoferecerqualquerresistência,os
dois jovens o largaram. Rápida como um relâmpago, a mão esquerda,aquelaemqueestavaoaneldesinete,foierguidaatéoslábios...
–Ave,Caesar!Temoriturisalutant–disseSirJames,aindaolhandoparaTommy.
Um instante depois, o rosto dele mudou. E com um estremecimentolongo e convulsivo, ele caiupara frente, enquantoumodorde amêndoasamargasimpregnavaoar.
27UmafestanoSavoy
A festa oferecida pelo Sr. Julius Hersheimmer a uns poucos amigos, nanoite do dia 30, será lembrada por muito tempo nos círculos dosfornecedores de alimentos e bebidas finos. Foi realizada em uma salaparticular,easordensdoSr.Hersheimmerforamsucintaseclaras.Eledeucartabranca...equandoummilionáriodácartabranca,geralmenteobtémo
melhorquesepodeimaginar!Todasas iguarias foradaestação foramdevidamenteprovidenciadas.
Osgarçonslevavamasgarrafasdevinhosrequintados,safrasantigas,comumcarinho todoespecial.Adecoração floraldesafiavaasestações, assimcomo as frutas. A lista de convidados era pequena, mas seleta: oembaixador norte-americano, o Sr. Carter, que tomara a liberdade, disseele,delevarumvelhoamigo,SirWilliamBeresford,oarquidiáconoCowley,oDr.Hall,osdoisjovensaventureiros,Srta.PrudenceCowleyeSr.ThomasBeresford,efinalmenteaconvidadadehonra,Srta.JaneFinn.
Juliusnãomedira esforçosparaquea apresentaçãode Jane fosseumsucesso estrondoso. Antes do banquete, uma misteriosa batida levouTuppence à porta do apartamento que dividia com a jovem norte-americana.EraJulius.Eletinhaumchequenamão.
–Podemefazerumgrandefavor,Tuppence?PegueistoevistaJanedamelhormaneirapossívelparaestanoite.VocêsvãojantarcomigonoSavoy.Combinado?Nãoseimportecomasdespesas,estábem?
– Está certo, Julius. Vamos nos divertir um bocado. Será um prazervestirJane.Elaéacoisamaislindaquejáconheci.
–Tambémacho–concordouoSr.Hersheimmer,fervorosamente.O fervordeleprovocouumbrilho súbitonos olhosdeTuppence, que
dissetimidamente:–Porfalarnisso,Julius,aindanãolhedeiaminharesposta.–Queresposta?Juliusempalideceusubitamente.–Lembra...mepediu...emcasamento...Tuppence estava balbuciando, os olhos recatadamente abaixados, ao
melhorestilodeumaheroínavitoriana.– Sei que não aceitaria um não como resposta... Tenho pensado
bastantearespeito...–E...GotasdesuorbrotavamnatestadeJulius.Tuppencesentiupenadele.–Seugrandeidiota!Porquediabofoimepediremcasamento?Percebi,
logonaocasião,quenãomedavaamenorbola!– Absolutamente! Eu tinha... e ainda tenho... os mais elevados
sentimentosdeestimaerespeito...amaioradmiraçãoporvocê...–Poissão justamenteossentimentosquemaisdepressaseesquecem
quandoumoutrosentimentoentraemcena!Nãoéissomesmo,meuvelho?–Não sei do que está falando... –murmurou Julius, ficando vermelho
comoumcamarão.
Tuppence começou a rir e fechou a porta. Tornou a abri-laimediatamenteeacrescentou,comtodadignidade:
–Moralmente,sempreireiconsiderarquefuirejeitada!Quando Tuppence voltou para junto de Jane, a norte-americana
perguntou:–Quemera?–Julius.–Oqueelequeria?–Paradizeraverdade,achoqueelequeriavê-la.Maseunãoiadeixá-lo
entrar de jeito nenhum. Não quero que ninguém a veja até esta noite,quandoiráaparecerparatodoscomooreiSalomãoemtodaasuaglória!Vamos!Temosquefazercompras!
Paraamaioriadaspessoas,odia29,otãoanunciado“DiadoTrabalho”,transcorreu como outro dia qualquer. Houve comícios em Hyde Park eTrafalgar Square. Procissões errantes, cantando a “Bandeira vermelha”,vaguearampelas ruas, semrumocerto.Os jornaisque tinhamanunciadoumagrevegeraleo iníciodeumreinadode terror tiveramquedisfarçarseuconstrangimentodiantedanãoconcretizaçãodasprediçõessombrias.Osmaisousadoseespertostrataramdeclamarqueapazforaobtidapelaadoçãodeseusconselhos.Osjornaisdedomingopublicaramumapequenanotícia sobre a súbita morte de Sir James Peel Edgerton, o famosoadvogado. Os jornais de segunda-feira publicaram reportagens sobre suabrilhante carreira. Jamais foramdivulgadas as circunstâncias e causasdesuamorterepentina.
Tommy acertara em cheio na sua avaliação da situação. Era umespetáculo de um homem só. Sem o chefe, a organização desmoronou.KrameninvoltouàspressasparaaRússia,deixandoaInglaterranamanhãde domingo. A quadrilha fugira em pânico de Astley Priors, deixando láinúmeros documentos altamente comprometedores que incriminavam atodos. Com essas provas da conspiração nas mãos e mais um pequenodiáriodecapamarrom,encontradonobolsodeSir James,comumrelatoresumido de toda a trama, o governo convocou uma reunião de últimahora.Oslíderestrabalhistasforamforçadosareconhecerquetinhamsidousadoscomosimples instrumentos.Ogoverno fez certas concessões,queforamansiosamenteaceitas.Deviahaverapazenãoaguerra!
Mas o Gabinete sabia muito bem por quão pouco todos haviamescapadoaodesastretotal.EestavagravadaparasemprenocérebrodoSr.Carter a estranha cena que ocorrera em uma casa no Soho, na noiteanterior.
Eleentraraemumquartinhosórdidoparaencontrarograndehomem,o amigo de uma vida inteira, caído no chão,morto, envenenado por suaprópriamão.Elehavia tiradoomalfadadoesboçode tratadodobolsodofalecidoeoqueimaranapresençadosoutros...AInglaterraestavasalva!
Eagora,nanoitedodia30,emumasalaparticulardoSavoy,oSr.JuliusP.Hersheimmerestavarecebendoseusconvidados.
O Sr. Carter foi o primeiro a chegar. Estava acompanhado por umcavalheiroidoso,deaspectoirascível.Aovê-lo,Tommycorouatéasraízesdos cabelos. Ele se adiantou e o cavalheiro idoso examinou-o com umaexpressãoapoplética.
–Ah!Entãovocêémeusobrinho,hein?Nãoparecegrandecoisa...masdizem que fez um bom trabalho. No fim das contas, sua mãe deve tê-loeducado direito. Vamos esquecer o que passou, está bem? É o meuherdeiro,sabedisso.Proponho,daquipordiante,dar-lheumamesada...epodeconsiderarChalmersParkcomosuacasa.
–Obrigado,senhor.Émuitabondadesua.–Ondeestáatalmoçasobrequemtenhoouvidofalartantascoisas?TommyapresentouTuppence.–Asmoçasjánãosãomaiscomoeramnomeutempo!–comentouSir
William,contemplando-a.– São, sim – protestou Tuppence. – As roupas podem ser diferentes,
maselascontinuamasmesmas.–Talvezvocêtenharazão.Eramatrevidasnaqueletempoecontinuam
atrevidasagora!–Exatamente.Epodeestarcertodequeeumesmasouterrivelmente
atrevida!– Não duvido! – exclamou Sir William, soltando uma risadinha e
beliscandoaorelhadeTuppencejovialmente.A maioria das jovens tinha pavor do “velho rabugento”, como o
chamavam.ApetulânciadeTuppencedeixoudeliciadoovelhomisógino.O tímido arquidiácono chegou em seguida, umpouco aturdido coma
ilustre companhia em que se encontrava, contente por saber que a filhatanto se distinguira, mas incapaz de se dominar e fitando-aapreensivamentedevezemquando.Tuppence,noentanto,comportou-seadmiravelmente. Absteve-se de cruzar as pernas, manteve a língua sobcontroleerecusou-seterminantementeafumar.
ODr.Hallfoiopróximoachegar,seguidologodepoispeloembaixadornorte-americano.
– Jápodemosnossentar–disse Julius,depoisdeapresentar todosos
convidados.–Tuppence,quer,porfavor...Eeleindicouolugardehonranamesa,comumfloreio.MasTuppence
sacudiuacabeça.–Não!Esse lugarpertencea Jane.Quandosepensanamaneiracomo
elaresistiubravamentedurantetantosanos,chega-seàconclusãodequenãopodedeixardeserarainhadafestadessanoite!
Julius lançou um olhar agradecido para Tuppence. Jane adiantou-se,timidamente, para ocupar o lugar que lhe era indicado. Já pareciamuitobonita antes, mas agora estava deslumbrante, plenamente adornada.Tuppencefizerasuapartedemaneiraeficiente.Ovestidodegala,feitoporumdoscostureirosmaisemvoga,tinhaonomede“LírioTigrino”.Eratodoemdourado, vermelho emarrom,dele emergindo a coluna imaculadadaalvagargantadamoçaeamassadecabeloscordebronzequeencimavaaquele belíssimo rosto. Havia uma expressão de admiração em todos osolhosquandoelaocupouolugar.
Não demorou muito para que a admiração dominasse a todos, epediramaTommyquedesseumaexplicaçãocompletadosacontecimentos.
– Você foi muito reservado em toda a história – acusou-o Julius. –Deixou-mepensarquetinhaidoparaaArgentina...emboraeuimaginequetenhatidoboasrazõesparaisso.Econfessoquefiqueiarrepiadocomsuaidéia e de Tuppence de me escolherem para representar o papel do Sr.Brown.
– A idéia não foi originalmente deles – interveio o Sr. Carter. – Foidevidamente sugerida por um mestre, o veneno sendo instiladocuidadosamente.AnotícianojornaldeNovaYorkéquesugeriuoplanoaele.E combasenisso, ele teceuuma teiaquequaseo envolveude formafatal.
–Jamaisgosteidele–disseJulius.–Senti,desdeoinício,quehaviaalgoerrado nele. E sempre desconfiei de que fora ele quem silenciara a Sra.Vandemeyeremummomentotãooportuno.MassóquandoeusoubequeaordemparaaexecuçãodeTommyforadadalogodepoisdanossaconversanaqueledomingoéquecomeceiaacharqueeraelequemestavaportrásdetudo.
– Confesso que nunca desconfiei dele – lamentou-se Tuppence. –Sempre me julguei mais esperta que Tommy... mas não resta a menordúvidadequeelemevenceu.
Juliusconcordou.– Tommy é que foi o grande responsável pelo final feliz. Tenho uma
propostaafazer:nãovamospermitirqueelecontinuesentadoaí,deboca
fechada.Temquenoscontartudo!–Apoiado!Apoiado!– Não há muito o que contar – balbuciou Tommy, visivelmente
constrangido. – Banquei o completo idiota... até o momento em queencontrei a fotografia de Annette e compreendi que ela era Jane Finn.Recordei-me de como ela gritara insistentemente a palavra “Marguerite”,penseinosquadrose...Ora,foisóisso.Eéclaroquerepasseitambémtodososfatos,paradescobriremquepontometornaraumasno.
– Continue, por favor – disse o Sr. Carter, quando Tommy deu aimpressãodequeirianovamenteserefugiarnosilêncio.
– Fiquei bastante preocupado quando Julius me contou o que tinhaacontecidocomaSra.Vandemeyer.Pareciaqueoculpadosópodiasereleou então Sir James. Mas eu não sabia qual dos dois. Ao descobrir afotografianagaveta,depoisdaquelahistóriadequetinhasido levadaporumtal inspetorBrown,passeiadesconfiardeJulius.Masrecordei-meemseguidaqueforaSirJamesquemdescobriraafalsaJaneFinn.Nãoconseguichegaraumaconclusãoeacabeidecidindoquenãopodiacorrernenhumrisco.DeixeiumbilheteparaJulius,napossibilidadedeeleseroSr.Brown,dizendoqueestavadepartidaparaaArgentina.DeixeinaescrivaninhaacartadeSirJamesoferecendooemprego,paraqueeleficasseconvencido.Depois, escrevi a cartaparao Sr. Carter e telefonei para Sir James.Acheique,dequalquermaneira,omelhoreracontar tudoaele.E foioque fiz,abstendo-me apenas de revelar o provável esconderijo dos papéis. AmaneiracomoelemeajudouaredescobrirapistadeTuppenceeAnnettequasemedesarmou.Masnãointeiramente.Fizumesforçoparacontinuarapensarquepodiaserqualquerumdosdois.EfoientãoquerecebiobilheteforjadodeTuppence...etivecerteza!
–Mascomo?Tommytirouobilhetedobolsoeomostrou.–É realmente a letradeTuppence,maseu compreendiqueobilhete
nãoeradelaporcausadaassinatura.Elanuncaescreveraseuapelidocomo“Twopence”.Masalguémquejamaisotivessevistoescritopoderiapensarqueeraassim.AcontecequeJulius já tinhavisto,poismehaviamostradoumbilhetedela.ESirJamesnuncatinhavisto.Depoisdisso,foitudomuitofácil.DespacheiAlbertimediatamenteaoencontrodoSr.Carter.Fingiquetinhaidoemboratambém,masvolteisemqueninguémmevisse.QuandoJuliusapareceudecarro,compreendiqueaquilonãoerapartedoplanodeSir Jamesequepoderiacriarproblemas.AmenosqueSir Jamespudesseserapanhadoemflagrante,eusabiaqueoSr.Carterjamaisacreditariana
minhapalavraapenas...–Temrazão–confirmouoSr.Carter,pesaroso.– Foi por isso que mandei as moças procurarem Sir James. Estava
convencidodequeacabariamindoparaacasanoSoho,maiscedooumaistarde.AmeaceiJuliuscomorevólverporquequeriaqueTuppencecontasseissoaSirJames,afimdequeelenãosepreocupasseconosco.Nomomentoem que asmoças sumiram das nossas vistas, disse a Julius que seguissepara Londres o mais depressa possível. No caminho, contei-lhe toda ahistória.ChegamosàcasanoSohocombastanteantecedência.OSr.Carterestava nos esperando. Depois de combinarmos tudo, entramos e nosescondemos atrás da cortina. Os policiais tinham ordens para dizer, sefossemindagados,queninguémhaviaentradonacasa.Eissoétudo.
Tommyparoudefalarabruptamente.Houvesilêncioporummomento,quebradoporJulius:– Por falar nisso, estava enganado a respeito da fotografia. Ela foi
realmentetiradademim,masencontrei-anovamente.–Onde?–indagouTuppence.–NaquelepequenocofrenaparededoquartodaSra.Vandemeyer.–Eusabiaquevocêtinhaencontradoalgumacoisa!–disseTuppence,
em tom de censura. – Para dizer a verdade, foi por isso que comecei adesconfiardevocê.Porquenãomedissenada?
– Acho que eu também estava um pouco desconfiado. Já me haviamtirado a fotografia uma vez e decidi que isso não voltaria a acontecerenquantonãoalevasseparaumfotógrafoemandassefazerumadúziadecópias!
– Todos nós escondemos uma coisa ou outra – comentou Tuppence,pensativa. – Acho que trabalhar para o serviço secreto faz a gente secomportarassim!
Napausaqueseseguiu,oSr.Cartertiroudobolsoumpequenolivrodecapamarrom.
–BeresfordacaboudedizerqueeunãoacreditariaqueSirJamesPeelEdgertonfosseculpado,amenosqueoapanhasseemflagrante.Etemtodarazão.Paradizeraverdade, foi somentedepoisque li asanotaçõesnestepequeno livroéquepasseiaacreditarplenamentenaespantosaverdade.Este livro será entregue à Scotland Yard, mas jamais será divulgado. Alonga associação de Sir James com a justiça torna tal divulgaçãoindesejável. Mas para vocês, que conhecem a verdade, desejo ler algunstrechos, quepodem lançar alguma luz sobre amentalidadedesse grandehomem.
Eleabriuolivroefoifolheandoaspáginasfinas,lendoalgunstrechos:“...É loucuramanter estediário. Seidisso.Constituiumaprova contra
mim.Mas jamaisme esquivei a assumir riscos. E sinto uma necessidadeprementedemeexpressar...Estediárioserátiradodomeucadáver...
...Muitojovemainda,compreendiquepossuíafaculdadesexcepcionais.Somenteumtolosubestimasuacapacidade.Minha inteligênciaeramuitoacimadamédia.Seiquenasciparatersucesso.Minhaaparênciaeraoúnicofatoradverso.Eradiscretoeinsignificante,umtipoquesepodeclassificardeindefinido...
...Quando era criança, assisti a um famoso julgamento de homicídio.Fiquei profundamente impressionado com a força e a eloqüência doadvogadodedefesa.Pelaprimeiravez,tiveaidéiadededicarmeustalentosa isso...Estudeiocriminosoqueestavasendo julgado...Ohomemeraumtolo,foraincríveleinacreditavelmenteestúpido.Nemmesmoaeloqüênciado seu advogado poderia salvá-lo. Senti um imenso desprezo por ele...Ocorreu-meentãoqueopadrãodoscriminososeramuitobaixo.Eramosfracassados, osmarginais – a ralé, em suma – que descambavam para ocrime... Era estranho que os homens inteligentes não percebessem asextraordinárias oportunidadesdo crime... Fiquei pensandona idéia... Quecampomagnífico, cheio de possibilidades ilimitadas!Meu cérebro entrouemação...
...Li as obras básicas sobre crimes e criminosos. Todas confirmaramminhaopinião.Degeneração,doença, jamais a escolhadeliberadadeumacarreiraporumhomeminteligente.Pus-meapensar.Supondoqueminhasmaioresambiçõesserealizassem,queeumetornasseumbomadvogado,alcançasse o auge da profissão... Depois, poderia ingressar na política,talvez mesmo tornar-me primeiro-ministro da Inglaterra. E então? Seráque isso era o poder? Estaria sempre atrapalhado por meus colegas,reprimidopelosistemademocrático,doqualseriaapenasochefenominal.Não,nadadisso.Opodercomoqualeusonhavatinhaqueserabsoluto.Umautocrata! Um ditador! E tal poder só podia ser obtido atuando-se àmargemdalei.Jogarcomasfraquezasdanaturezahumana,depoiscomasfraquezas das nações, formar e controlar uma vasta organização, atéderrubar a ordem existente e dominar totalmente! O pensamento medeixouinebriado...
...Compreendiqueprecisavalevarduasvidas.Umhomemcomoeuestáfadado a atrair as atenções gerais. Devia ter uma carreira bem-sucedida,paradisfarçarminhasverdadeirasatividades...Deviatambémcultivarumapersonalidade.Escolhicomomodeloumfamosoadvogado.Reproduziseus
maneirismos, seumagnetismo. Se euescolhesse aprofissãodeator, teriasidoomaioratordomundo!Semdisfarces,semmaquiagens,sembarbaspostiças!Personalidade!Euavistocomoumaluva!Quandoatiro,voltoaser eumesmo, insignificante, discreto, um homem como qualquer outro.EscolhionomedeSr.Brown.ExistemcentenasdehomensquesechamamBrown,existemcentenasdehomensqueseparecemcomigo...
...Obtive sucesso em minha falsa carreira. Estava fadado ao sucesso.Terei sucesso também na outra carreira. Um homem como eu não podefracassar...
...LiumabiografiadeNapoleão.Eleeeutemosmuitoemcomum...
...Dediquei-me adefender criminosos.Umhomemdeve cuidarde suaprópriagente...
...Sentimedoumaspoucasvezes.AprimeiravezfoinaItália.Comparecia um jantar. O professor D., o grande alienista, estava presente.Conversamos sobre insanidade. E ele disse: “Muitos grandes homens sãoloucos eninguémsabedisso.Elesmesmosnão sabem.”Não compreendopor que ele me olhou quando disse isso. Foi um olhar estranho... Nãogostei...
...Aguerrameatrapalhou...Penseiquefossefavorecermeusplanos.Osalemãessãomuitoeficientes.Osistemadeespionagemdeleseraexcelente.Asruasestãocheiasderapazesvestidosdecáqui.Jovenstolos,ascabeçasvazias...Masnãosei...Elesganharamaguerra...Issomeperturba...
...Meusplanosestãoindobem.Apareceuumamoça–nãoacreditoqueela realmente saiba de alguma coisa...Mas temosde desistir daEstônia...Nãopodemoscorrerriscosagora...
...Tudovaibem.Aperdadememóriaéirritante.Nãopodesersimulada.NenhumagarotaconseguiriaenganaraMIM!...
...Dia29...Écedodemais...”OSr.Carterfezumapausaantesdedizer:– Não lerei os detalhes do golpe que foi planejado. Mas há duas
pequenasanotaçõessobrevocêstrês.Tendoemvistaoqueaconteceu,sãomuitointeressantes.
“...Induzindo a moça a vir por sua espontânea vontade, conseguidesarmá-la.Masela tem lampejos intuitivosquepodemserperigosos...Épreciso removê-la domeu caminho... Não posso fazer nada com o norte-americano.Eledesconfiaenãogostademim.Masnãopodesaber.Minhaarmaduraéimpenetrável...Hámomentosemquereceiotersubestimadoooutrorapaz.Elenãoémuitoesperto,masédifíciltorná-locegoaosfatos...”
OSr.Carterfechouopequenolivroemurmurou:
–Umgrandehomem...Gênio?Ouinsanidade?Quempodedizer?Houveumsilêncio.OSr.Carterlevantou-se.– Vou fazer um brinde. Ao Empreendimento Conjunto, que justificou
enormementesuacriaçãosendobem-sucedido!Odrinquefoitomadocomaclamações.– Há mais uma coisa que gostaríamos de ouvir – disse o Sr. Carter,
olhandoparaoembaixadornorte-americano.–Eseiquefalotambémemseunome,embaixador.GostariaqueaSrta.FinnnoscontasseahistóriaqueatéagorasóaSrta.Tuppenceconhece.Antesdisso,porém,vamosfazerumbrindeàsaúdedela,àsaúdedeumadasmaiscorajosasfilhasdosEstadosUnidos,comosagradecimentoseagratidãodedoisgrandespaíses!
28Edepois
—Foi um brinde maravilhoso, Jane – disse o Sr. Hersheimmer para aprima,aovoltaremjuntosparaoRitz,noRolls-Royce.
–Obrindeaoempreendimentoconjunto?–Não...obrindeavocê.Nãoexistenenhumaoutramulhernomundo
que pudesse ter feito o que você conseguiu fazer. Foi simplesmentemaravilhosa!
– Não me sinto maravilhosa. No fundo, estou apenas cansada esolitária...emorrendodesaudadedaminhaterra!
– Issome leva a outra coisa que eu queria dizer. Ouvi o embaixadordizendoàesposaqueesperavaquevocêfosseseinstalarimediatamentenaEmbaixada.Nãoémá idéia,masacontecequetenhooutrosplanos. Jane...queroquesecasecomigo!Não fiqueassustada,nemdiganãoagora.Nãopodemeamarimediatamente,éclaro.Issoseriaimpossível.Maseuaamodesdeomomentoemquepusosolhosnasuafotografia.Eagoraqueavipessoalmente,estouloucoporvocê!Sesecasarcomigo,podeestarcertadeque não vou apressá-la... poderá levar o tempo que quiser para decidir.Talvez nunca venha ame amar. Se for esse o caso, darei um jeito de lhedevolver a liberdade. Mas quero ter o direito de cuidar de você, deprovidenciartudooquedesejar.
–Éjustamenteoqueestouquerendo...alguémquesejabomparamim...Oh,nãotemidéiadecomomesintosozinha!
– Claro que posso imaginar! Nesse caso, está tudo combinado. Vouprocurar o arcebispo amanhã e arrumarei uma licença especial parapodermoscasar.
–Oh,Julius!–Nãoqueroapressá-la,Jane,masnãotemsentidoficaresperando.Não
seassuste,nãoestouesperandoquecomeceameamaragoramesmo.AmãodeJaneprocurouadele.–Eujáoamo,Julius.Amei-odesdeaqueleprimeiromomentonocarro,
quandoabalapassouderaspãoporseurosto...Cincominutosdepois,Janemurmurou:– Não conheço Londresmuito bem, Julius,mas é tão grande assim a
distânciadoSavoyaoRitz?–Dependedopercursoqueseescolhe–respondeuJulius,calmamente.
–EestamosindopeloRegent’sPark!–Oh,Julius...oqueomotoristavaipensar?– Com o salário que lhe pago, ele sabemuito bem que émelhor não
pensarporcontaprópria.Ora,Jane,aúnicarazãoporqueescolhioSavoyparaojantarfoiporqueassimteriaoportunidadedelevá-ladevoltaparacasa. Eunão sabia como ia conseguir ficar a sós comvocê.Afinal, você eTuppence não desgrudavamuma da outra. Pareciam até irmãs siamesas.AchoquemaisumdiaassimetantoeucomoBeresfordficaríamosdoidos!
–Oh!Eleestá...?–Claroqueestá!Eloucamente!–Eraoqueeupensava...–Porquê?–PortodasascoisasqueTuppencenãodisse.–Nessecaso,vocêestávendomaisdoqueeu!Janeselimitouasorrir.Nesse exato momento, os Jovens Aventureiros estavam sentados em
umtáxi,muitoempertigados, sentindo-seextremamenteconstrangidos.Ecom uma singular falta de originalidade, o táxi deles também estavavoltandoparaoRitzpeloRegent’sPark.
Um terrível constrangimento dominava os dois. Sem que soubessemdireito o que acontecera, tudo parecia estar mudado. Não sabiam o quedizer,sentiam-separalisados.Todaaantigacamaradagemdesaparecera.
Tuppencenãoconseguiuimaginarnadaparafalar.Tommyestavaigualmenteaflito.
Evitavamolharumparaooutro.Finalmente,Tuppencefezumesforçodesesperado:–Nãoachoutudodivertido?–Achei.Outrosilêncio.–GostodeJulius–tentouTuppencenovamente.Derepente,Tommysereanimouedisse,emtomditatorial:–Nãovaisecasarcomele,estáouvindo?Euaproíbo!–Oh!–exclamouTuppence,submissa.–Emhipótesealguma,entende?– Ele não quer se casar comigo. Pediu-me em casamento apenas por
bondade.–Issonãoélámuitoprovável!– Mas é verdade! Julius está perdidamente apaixonado por Jane. E
imaginoqueaestápedindoemcasamentonesteexatomomento.– Ela será uma ótima esposa para Julius – disse Tommy,
condescendente.–Nãoachaqueelaéacoisamaisadorávelquevocêjáviu?–Provavelmente.–Imaginoquevocêpreferealgomelhor...–Masquediabo,Tuppence!Vocêsabemuitobem!– Simpatizei com seu tio, Tommy – disse Tuppence, mudando de
assunto apressadamente. – Por falar nisso, o que pretende fazer? Vaiaceitar a oferta do Sr. Carter, de um cargo no governo, ou o convite deJulius, de um posto altamente remunerado no rancho dele nos EstadosUnidos?
– Acho que vou continuar no velho navio, embora tenha ficadosensibilizadocomagenerosidadedeHersheimmer.MastenhoaimpressãodequevocêsesentemelhoremLondres.
–Nãovejoondeentronessahistória.–Poiseuvejo!Tuppencelançou-lheumrápidoolhardeesguelha,antesdemurmurar,
pensativa:–Ehátambémaquestãododinheiro...–Quedinheiro?–Vamosreceberumcheque.OSr.Cartermedisse.–Evocêperguntoudequanto?–indagouTommy,sarcasticamente.–Perguntei!–respondeuTuppence,triunfante.–Masnãovoulhedizer.–Vocênãoexiste,Tuppence!
– Foi um bocado divertido, não é mesmo, Tommy? Espero quetenhamosumaporçãodeoutrasaventuras!
– Você é insaciável, Tuppence. Daminha parte, devo dizer que estoucansadodeaventuras,pelomenosporenquanto.
–Hum,hum...Masfazercompraséquasetãobomquanto...Pensesóemcomprar móveis antigos, tapetes, cortinas de seda, uma mesa de jantarenvernizada,umdivãcomumaporçãodealmofadas...
–Espereumpouco!Paraquetudoisso?–Talvezparaumacasa...masachoquetalvezsejaumapartamento.–Apartamentodequem?–Estápensandoqueeumeimportodedizer,masnãomeimportonão.
Nosso,éclaro!– Oh, querida! – exclamou Tommy, abraçando-a. – Eu estava
determinadoafazercomquevocêdissesse.Eulhedeviapelomenosisso,porcausadamaneiracomomecensuravasempreque tentavametornarsentimental.
TuppenceergueuorostoparaTommy.Otáxicontinuouoseucaminho,contornandooladonortedoRegent’sPark.
–Aindanãomepediuemcasamento–comentouTuppence.–Oupelomenosnãooquenossas avós chamariamdeumpedidodeverdade.Masdepois de ouvir um pedido horrível como o de Julius, estou propensa adispensá-lodaformalidade.
–Nãovaiconseguirescaparaocasamentocomigo,mesmoquequeira.–Ah,comovaiserdivertido!Ocasamentoéchamadodeumaporçãode
coisas: de abrigo, refúgio, paraíso, glória, estado de escravidão e váriasoutrascoisas.Masquersaberoqueeuachoqueé?
–Oquê?–Umadiversão!–Eumadiversãofantástica!–concluiuTommy.
fim
Notas
*SinnFein:organizaçãopolíticaquedefendiaalibertaçãodaIrlandadaInglaterra.(N.doT.)** ASE – Automotive Service Excellence. No Brasil, Instituto Nacional para Excelência de ServiçoAutomotivo.(N.doE.)