Post on 26-Jul-2016
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Nunes, Fernando
Águas para as cerejeiras / Fernando Nunes --
E-book, Curitiba, 2016.
1. Poesia brasileira 2. Literatura brasileira
Capa: Plum Blossom Awakening, Lauren Thompson
Em: http://mudandlotus.blogspot.com.br/2009/11/nice-things-happen.html
Copyright © Todos os direitos reservados.
4
“Bem aventurados os simples de coração,
de mente aberta e criativos, porque conseguirão
compreender o segredo da vida
e a essência das coisas.”
5
Às valentes cerejeiras do hemisfério sul,
que magníficas, florescem o inverno.
E para minha mãe, Maria,
minha melhor flor.
7
(...)
Ela me enche de fé
Me dando um banho de paz
Bebo dela no coité
E vejo bem que me faz
Água de beber
Água de molhar
Água de benzer
Água de rezar
(...)
(Jovelina P. Negra, Labre e Carlito Cavalcante)
8
Um dia nublado, no cair da tarde,
Sentei-me na pedra, de frente para o lago.
E comecei a agoá-las – as cerejeiras da praça –
com as minhas muitas águas.
À luz das quatro e vinte de um céu fechado,
dizia tudo calado.
Canto, som de pássaros, voz.
Barulho de muitas águas.
E foi...
10
~ DEIXA PINGAR
Abre o tempo
Eparrei bela Oyá!
Desanuvia esse céu negro
Não deixa ele se precipitar
Ó mostra a lua clara, brilhante
de São Jorge, o Cavaleiro
Ó pinta ela de vermelho
Vem, deixa ela eclipsar
O céu é teu, sinhá Oyá
Dona do vento!
Se é tua vontade,
tal pote de mal tempo,
agita esse firmamento
e deixa essa chuva pingar
11
~ A VIRGEM DO DESTERRO
Nossa Senhora me defenda de te amar
Bem como as palavras da minha avó
Que me proteja de te olhar
De te querer por mais instantes,
muito mais que um só
De querer te dedicar tempo
Sobre ou longe dos lençóis
De pensar com quem você está
Onde está?
Que horas volta?
Comeu bem hoje?
Não, não quero essa prisão!
Amo demais a liberdade de não ter
esses questionamentos vãos,
que se admite como amor.
Por isso rezo que a Virgem me guarde,
que os anjos que a arrodeiam
descole minha boca da sua
antes que seu sabor dessa ao meu peito
e eu precise de marca-passo
Bem como minha avó dizia:
É melhor romper em cântico,
doravante me alcance o desespero
mas por hora vou restar pedindo,
que te leve Nossa Senhora do Desterro.
12
~ FILHO DAS ÁGUAS
Não sou rio nem mar
Eu sou chuva!
Precipitação que cai
das mãos da Senhora dos Raios,
mas que nasceu nas águas claras
Águas de Janaina em Aiocá
A mão molhada que me pariu,
me lança no calor do céu.
E me veste de branco e prata
e quando ecoa o clarão,
me cobre do vermelho
que raja o firmamento,
e abre à tarde ao meio
Tudo nasceu rio,
Até mesmo o mar!
Portanto trilhar um caminho,
É sempre a mesma coisa:
rio seguindo o mar,
sol a queimar,
rio lançado ao ar.
O baile das águas
de cair e levantar.
13
~ FRUTA MADURA
Só soube que você me queria
na rede daquela tarde de chuva,
sem vento e nem penumbra.
Segurando a minha mão,
com o corpo encangado no meu.
Quando deitado em teu peito,
te olho
e você faz o mesmo que fez.
Abre-se em mim uma porta
Desprendem-se todas as rotas
O desejo bate à porta!
E mesmo a vida se atura
penetrada pelo olhar de quem
vai morder fruta madura.
14
~ FRANCISCA PASTORA
Dias assim me lembram minha avó.
Dias úmidos, de chuva.
de grande figura!
No conforto de sua fala alegre e alta,
riso solto em suas histórias do passado.
Quando era bela, era jovem,
na distante Ibateguara.
Era a filha da índia de mesmo nome
Francisca,
a índia pastora.
Mas pro mundo é Dona Zefa,
A Zefinha, cantora!
Cantando Negue, ou qualquer coisa.
De pele branca, cabelo castanho,
sempre foi mameluca.
Filha do senhorzinho franzino de olho azul
e da índia sem pelo que terminou louca.
Casou com o moreno de olho verde,
pariu oito menino-macho
e três mulé-fême
Enviuvou cedo.
Terminou de criar seu meio mundo de menino.
Ah, essa minha véia, namorou!
Guiou rebanhos.
É filha da índia, não é à toa,
que também carregue o nome Pastora.
15
~ SER-TÃO
Sertão é andar errante,
sem ter Diadorim para abraçar
com as asas de todos os pássaros.
Sertão, saiba você,
não é apenas não ter chuva
É a alegria de ver ela chegar.
É o chão onde a gente enterra semente
de uma espécie de planta
que cresce para dentro da gente
E dá árvore alta, verde
Que o povo dessas bandas,
apelidou de esperança.
Dizem que ele vai virar
ou já virou mar.
Só sei que aquele chão de poeira
é como tudo aquilo que muda:
basta derramar água na terra,
juntar os potes de barro no terreiro
e colher os pingos da chuva.
16
~ VERDE SOMBRA
Se eu gosto daqui?
Gosto das cores da cidade!
Dos ipês amarelos e brancos na primavera,
da cor rosada de vocês no inverno,
das senhoras de sobretudo na rua,
escondendo embaixo das roupas
uma peça turquesa.
Gosto do cabelo dos jovens,
Os ruivos ou azuis, como o céu,
que às vezes escapa dos dias nublados
e nos deixa entontecer.
Embora eu seja do Leste,
volta e meia, me pego encantado
com ele assim, fraquinho, friozinho.
Mas de tudo o que eu mais gosto
das árvores eu gosto mais!
Mais do que das pessoas.
Mas isso é em tudo que é canto.
Sempre que eu me encontro,
Há perto uma árvore à toa.
Aqui não foi diferente.
E se cidades e árvores não destoam
Sei que essa cidade vai me dar,
sempre sombra, numa boa.
17
~ TEMPO FECHADO
Desde de muito criança
eu queria o poder dela.
“Senhora das chuvas de junho
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim”
Enquanto todos queriam
tempo aberto,
eu queria tempestade.
Só fui entender isso mais tarde,
já velho e à tarde,
que quando Bárbara mexia os ventos,
jogava em mim a liberdade.
18
~ FESTA JUNINA
Junho
Se vocês pudessem ouvir
as noites do São João não tem fim
Eita mês das águas, de chuva
de regar a terra do povo do Sertão!
E do trio mais querido,
de mais devotos definidos,
que mais recebe oração
É para casar.
É paixão pelo Batista.
É para o céu se abrir.
Se vocês pudessem ouvir,
as noites de São João não tem fim
é bandeirola, é palhoção,
e o fogo de Xangô queima
ardendo a fogueira
a fogueira de São João.
Onde se assa o milho,
ao lado se dança a quadrilha
e em volta o coco de roda
com tanta cantiga bonita
que o trio toca no forró.
Ah, se vocês pudessem ouvir,
as noites de São João não tem fim
19
~ AÇUDE
Todo fim tem seu princípio
O meu fim é lá o princípio,
Lá debaixo, bem embaixo
No açude.
Grande barreira de todas as águas!
Não deixa ser rio, ser lago
ser pântano, lagoa ou freático,
muito menos mar.
De lá toda chuva só pode ser cá.
Aqui em cima,
Donde sonho ser um dia cachoeira
A mais bela princesa de todas nós.
A água movimento e queda,
que esconde segredos na pedra.
A única noiva que veste o véu.
Já o sonho do açude,
É ficar.
O rio, o lago, a lagoa
e, mesmo a cachoeira,
tudo pode secar.
Mas seca menos que ele,
que sabe que não pode ficar,
que rápido volta a ser eu
e eu me demoro demais a ser ele,
do que o homem pode aguentar.
Por isso ele é o mais perene.
Águas de pequeno porte,
A quem se permitiu ajuntar.
Nisso recebeu a maior recompensa,
grande benção suprema,
da sede do sertanejo matar.
20
Para água nenhuma, na terra e no ar,
há maior galardão
Do que dar vida ao sofrido homem
Que do mar está bem distante.
Matar a sede lá no meio do sertão
21
~ DESENCONTROS
Água e saudade
são presença certa,
são sinônimos.
Em fim de dia triste,
em tardes de domingo,
em manhãs de casamento,
em dias de chuva
em pranto desperdiçado,
rios onde não se pode nadar.
Dor de ir um ente querido,
um chá,
um encontro entre amigos,
um brinde à mesa,
um copo cheio de cerveja
um amigo nobre,
um amor bandido,
a coroa e o vício
na vida há sempre um motivo
para a água sair
e a saudade chegar
23
~ MORENA
Quem ousa amar como o tapuia,
ao ponto de não ouvir conselhos e sofrer de amar?
Quem ousa se enovelar
no canto da sereia de água doce,
que procura noivo, que quer casar?
Quem ousa empurrar a canoa,
metê-la no rio de proa,
quando a tarde já se despede para sonhar?
Só quem vê seu cabelo negro.
Ialaó, okê, ialoá
Canta, morena, canta
Para com a voz o esposo chamar.
Canta, bela morena, canta
Esse lábio úmido quer beijar.
Canta, linda Iara, canta
Para o profundo do rio, o índio abraçar.
24
~ ABISMO
Há sempre consolo no caminho
para quem segue por estradas de ladrilhos soltos,
pisando em areia mole, limo escorregadio.
Os que tropeçam em passados imprecisos
e param sem encontrar encosto
Alento aos fartos de dizerem sim,
enquanto vozes reproduzem o oposto
a irromper em cânticos no silêncio,
sem eco, sem coisa alguma que ressoe
Pés cansados dos passos,
pernas que reclamam assento,
imploram parada, qualquer uma, um canto,
onde ficar seja mais que breve:
multiplicidade de momentos
Aos que sonham com o chão batido,
a terra firme, a fria Mãe e seus conselhos
Encontrar em seu seio novo sentindo
E partindo, se entregar em jornada livre
que termine, finde, um porto, um infinito
A esses, embora pareça,
percorrer a beira do precipício,
nunca foi desgosto
fitar a queda sempre foi ofício
e lançar-se no penhasco,
a esse gênero, é gosto
25
Lá no fundo, deles, passa um rio
de águas de nome escuro
Quando caminhar incomoda
na essência, no peito, no risco,
sabem que é chagada a hora.
Aquela, de lançar-se no abismo.
26
~ SIMPATIA
Eu não desgosto dessa gente,
Que tem fama de não ser sorridente
É causo, é coisa antiga
do tempo dos tropeiros
que roubavam as raparigas.
De certo, falta-lhes um pouco
de gente morena,
um pouco de sol
e, até mesmo, um pirão de mocotó
para simpatia desincricriar.
Mas foi aqui que meu rio
encontrou depressão leve,
verde margem em meu peito,
veios que adotei como leito
e minhas águas resolveram demorar.
27
~ DO PRIMEIRO HOMEM
Furtei-lhe pequenas contas brancas
da pulseira que prendia na mente
seu pulso ao redor do meu.
Furtei-lhe os beijos que eu dera,
entre os leves toques que se fizera,
no prazer que somente se deu.
Furtei-lhe das mãos as lembranças,
presas nas contas brancas,
do seu corpo sobre o meu
Furtei-lhe madrugadas pequenas,
que embora entregues ao tempo,
pensam que nunca se deram adeus
28
~ OPÇÕES
Jogado na praça,
encostado na pedra,
vendo a vida passar.
Mirando-a distraído,
a observo sem me espantar.
Faço um oxanã da mata.
Uma rosa vermelha ao lado:
Joguem o amor fora!
Ele só faz é atrapalhar.
Vejo de longe a ave bicando,
catando os talinhos secos
para seu ninho terminar.
Penso: por isso ela voa,
eu aqui numa boa.
e ela agitada a trabalhar.
29
~ RIACHINHO
Vocês já ouviram essa canção
que o Maestro fez pro rio?
“E bandos de nuvens que passam ligeiras”
Um riachinho bem pequeninho,
que passava no fundo de seu quintal?
Ah, a grandeza desse bichinho!
Do seu ser pititotinho,
fluir pros versos do grande poeta
Ora que samba, que bossa!
Ser a coisa mais linda que existe,
e se pede permissão para adorar.
O mais nobre dos riachos,
dos riachinhos, bem pequenininhos,
que um dia foi batizado assim,
Ganhando o nome de Dindi,
cantado no tom de Maria,
que não conhece o fim
30
~ QUANDO EU ERA MENINO
Quando eu era menino
e terminava de correr na rua,
mãe me botava logo
para debaixo do chuveiro
e me mandava banhar direito
não queria ver meu preto,
um pé todo preto,
ou ia com a japonesa esfregar
Outros banhos tão bons
nunca mais tive,
sob supervisão tão firme,
de mãe d´água da barriga,
toda cheia de ciúme
da mãe d’água de Ijexá
31
~ CURITIBA DO SUL
Vim-me embora para sul
Eu nunca planejei
um dia vir pra cá
Sendo água sou um tanto rio
de veio bem fininho
que não sossega à procura do mar.
Sei que ele está tão longe,
que nem responde direito,
como outrora fora perfeito
o quebrar da onda ao meu chamar.
Por isso estranharam os amigos
perguntaram como ouriços
Por que eu deixava o lar.
Nunca respondi direito
Dei às respostas outros leitos
Para as questões irem a outro lugar.
É que aqui, dentro peito
bate um coração de rio,
do que vê depressão no caminho,
antes de entrar no mar.
32
~ ESTRANGEIRO
É só olhando para o rio,
que eu entendo o estrangeiro
que vem de longe, forasteiro,
até a margem conversar.
Porque ele nunca é o mesmo,
do lado direito ou esquerdo,
quando eu o paro para olhar.
33
~ ORIXÁ DO SERTÃO
Quando eu morrer, por favor,
repousem minhas cinzas na ribeira,
no estuário do Francisco,
o frei, o santo,
o antigo orixá do Sertão,
a velha corredeira.
Único rio que não é mais menino,
mas que carrega barrancos e areia.
Onde rugas são correntezas.
Por isso te quero são,
São Francisco,
mesmo depois de morto.
Porque abraço de velho
é a madeira que queima.
35
~ FORA DO CORPO
...
Aquele momento:
Você sai de si,
Se vê de cima, no alto,
talvez Deus me veja assim!
Diante da vida e no meio
O canto dos pássaros,
o úmido da mãe Terra
- e água é amor -
contempla o lindo lago branco
É pedra miudinha, branca
É água que corre parada
É margem do tudo
Tudo é descanso afora
o verde da mata,
a vida que farsa
toda essa bagagem
no dentro do sonho
viagem
36
~ FADO VADIO
Digo que não, mas volto.
Todas as noites que renasço
De olho vermelho brasa,
Eu volto
Bem de volta para o asfalto,
onde me acho e me desfaço,
e reconstruo de rastros
a esperança do que ainda não fui
37
~ SONETO DO EGOÍSMO
Vive a realidade uma paixão,
que não encontrou jeito de acontecer
A do lago preso no chão cercado
e a frondosa árvore no reflexo a se ver.
Ele lago, logo se encantou com sua majestade
e trocaram juras de amor eterno em setembros.
Se olhando sem fim em domingos, em tardes,
jamais se viram ou se abraçaram por dentro
O lago sofre e chora ao contemplá-la distante.
Ao Imaginar mil formas de levantar-se homem,
derrama lágrimas, que devagar, salgam sua fonte
A árvore de pé mantém-se observante em receio,
temendo que esse abraço estrague o espelho
límpido a seus pés onde aprendeu a se enxergar.
38
~ ÁRVORE DA TERRA
- Quero ser árvore de caboclo -
disse a cerejeira pra mim.
- Ouça, dona cerejeira,
a senhora não é daqui.
No meu quintal
só tem mangueira,
goiabeira e coco,
às vezes maracujá.
Logo eu seria meio louco,
Se de cabocla eu te chamar
Mas não se desespere
nem um pouco,
já vi essa situação acabar
Deixa sair o inverno
e o verde te cobrir de novo.
Aproveite a primavera,
que solução vamos achar?
39
~ BRINQUEDO JOGADO
Se tão cedo vierem me falar do amor,
vou lembrar que foi essa merda!
Essa coisa de dor!
De não saber o que fazer
no fim da tarde
ou mesmo quando o dia começa
Vou dizer que é tudo uma bobagem
A maior que nos fizeram acreditar
Nesse dia, eu sei,
vou praguejar
tudo e quanto o bendiga
E brindar aos que, como eu
Quebram a cara ao ousar
Jogar qualquer, qualquer uma,
coisa pro ar
Olha, se vierem me falar dele,
Que venham preparados:
espada fora da bainha,
pistola engatilhada,
ouvidos compreensivos
Porque eu vou estar armado
e nessa lorota vou dar
certeiro, último e primeiro,
um tiro
40
Antes de falar do amor
Saibam que eu recomecei,
acreditei no samba mais que nele.
Cruzei a fossa nadando peito
e refiz meus caminhos
com um milheiro de tijolo de fim
Se um dia pensarem em falar do amor
De amor!
Eu vou dizer que ele,
bem como tudo acaba.
E mal e só e dolorido,
sempre deixa algo apreendido
do tempo que o moleque
bem travesso, destino
largou no terreiro,
sob o sol e sobre a grama,
depois de brincar
41
~ À ESPERA
Eu tenho inveja de lagoa!
Porque que ora há ser d'Oxum,
Ora domínio de Janaína,
mas sem recanto de Olossá,
vira posse de qualquer pessoa
Nela, águas se misturam
O amor é, de fato, água doce
e a paixão, sua antítese, salgada
Como do canto do poeta que:
"Queria que a vida fosse
Essas águas misturadas"
As mesmas que sonham,
Quase assim paradas
o dia de juntar-se ao sal
de comando da Grande Lagoa
e escorrer de vez seu destino
embaixo de qualquer proa
O mais que invejo: seu espelho
Não é parado, mas ficou no meio
que do tudo ao redor margeia
Ela é depressão cheia,
precipitação acumulada
É a vazante à espera
O rio na retaguarda
42
~ FLOR MISTA
Sou bom te amando em silêncio
Em segredo secreto, fechado a chaves
no fundo do meu coração
É tão bom te amar em silêncio,
parado à sua frente,
te olhando por cima dos óculos,
que sofro com o medo,
de numa farra, nessas de virada,
nessas que a verdade dá.
O medo de você nunca mais voltar
praquele nosso lugar, sabe?
Da flor sem nome, naquela pedra
ao lado da planta de flor mista
Sou melhor te amando em silêncio
Em segredo excreto, abertos olhares
Do fundo do meu coração
E é tão melhor ser em silêncio
Presente ou ausente
Por entre as lentes dos meus óculos
que perco o medo
qualquer hora, nessas de virada
nessas que a cidade dá
Eu deixo o medo escapar
Te levo praquele lugar, sabe?
Da flor sem nome, naquela planta
ao lado da pedra de flor mista
43
~ PEDRA FILOSOFAL
Todos os dias invento um cigarro,
aquele pra ficar ao seu lado
dizendo bobagens,
olhando sua nuca e
como o vento balança seu cabelo
Te olho discretamente
mil vezes,
mil dias
e a cada hora
e te registro com a luz
do azul do brilho de seus olhos
Volta e meia você me ri
e a onda bate forte no rio
é maré cheia, irrigação
vez de umidificação
é dia
Saio para casa em silêncio
na expectativa do outro dia
onde tudo se repete no meio
mesmo esplêndido
ao sons de outros silêncios
que me seguram até
o outro take dessa vida
recomeçar
44
~ ÁGUA DO POÇO
Ia te amar muito
e tanto e pra sempre,
Se assim o fosse,
Se eu fosse
Essa fonte doce,
no meio do alagadiço
e da cidade agridoce,
um poço.
Ia te drenar pelo pescoço,
Devorar todo teu torso
Te secar e por no bolso
Te moer que nem um osso
E te cuspir
que nem caroço,
de pitomba carnuda.
Mas não dá outra, seu moço
Eu só fico nisso e nem ouço
tá pra mais de lá de légua
Tá é mesmo é um sufoco
só de uma cuia vir a ser
esse danado desse poço.
45
~ PAI CONHECIDO
Eu venho de lá,
lá onde há lagoas
- águas doces e salobras –
que se encontram com o mar.
Namoram, se pegam,
se mergulham e geram
bastardinhos sem contar.
É um chamego tão lindo,
consensual e infinito,
que da areia branca
só se pode contemplar.
E quando a tarde cai,
vira tudo, mais bonito olhar
o beijo silencioso, quietinho.
Quentinho, quietinho!
Que a lagoa dá no mar.
47
~ JANGADEIRO
Acorda jangadeiro!
Hoje é dois de fevereiro,
tira a jangada para o mar
Trago flor, espelho e pente
e um perfume de alfazema
para a Rainha do Mar
Se apresse seu menino,
não quero me tardar, não!
Vou voltar para rezar o teço
da Imaculada Conceição.
Mas antes, bem antes disso
quero na praia adorar
Olhe o brilho dessa prata,
que vou dar à Iemanjá!
Pegue o remo jangadeiro,
Ora me leve para o meio do mar
Tenho sete rosas brancas
para a princesa de Aiocá
48
~ ALIMENTO
Coisas sem sentido, nada.
Me volto para o mar,
dispensa em espírito
Folheio a mente e resgato versos
Me alimento!
Sacio a fome de quem me havia perdido
Engolindo maresia, brisa e algas
preencho vazios, preces,
me ajoelho em mim e em silêncio
Ser contemplação, tempo
achado à beira, à praia,
no corpo velho da maré
Dá-me Olorum melhor comida,
letras que constroem momentos
Dá-me essa farinha poesia,
misturada em coentro
Da horta de Aiocá, unguento
e faz essa minha alma lavar
49
~ VOCÊ ROUBOU MEU CORAÇÃO
Você me olhou, eu te olhei
Eu te namorei ali, eternamente
E por tanto tempo, que nem posso
É melhor mesmo, não contar
Você sorria e me olhava
no balanço da música, no ritmo das luzes.
Havia som, mas eu não o ouvia
Havia dança, mas só ao meu redor
O meu corpo tremia e fingia dançar
na esperança de prender mais olhares teus
Num ensaio de que tudo
e de nós podia ser:
o seu corpo e o meu juntos.
Beijos e barbas se percorrendo
Olhos vermelhos se cruzando
Um calor.
Tua voz dizendo teu nome,
A minha o meu
Momento antes do beijo
Que eu fui até você
E que você me devolveu assim:
escapado dos lábios e corrido
bem por cima da mão
Ainda hoje te procuro em moldura
Buscando o verde de seus olhos
E a parte que me roubou
Mesmo em preto e branco
Te caçando em olhares na rua
nessa eterna ânsia do reencontro
Eu e você.
50
~ TE ENCONTRO NA PRAIA
Uma das coisas mais difíceis para o poeta,
é versar as águas do mar,
porque elas são tão misteriosas e incertas.
Berço de tantas pérolas,
que é bem fácil naufragar.
Mas quando esses capitães de palavras
ousam
nas largas águas se aventurar,
os sons saem sempre bonitos,
trazem sempre aquele ritmo das ondas,
mansinhas,
quebrando em sequência
no sempre encontro da calma areia
com o intempestivo mar.
51
~ MAR ALTO, FORTE, SENSUAL
O mar já me disse tantas coisas
na escuridão de seu horizonte,
na sombra da lua
ou em seu reflexo perverso
(de pura beleza)
O mar já ficou em silêncio comigo
Eu e ele, ali
parados...
Parados a nos contemplar
Ele em seu balançar
Eu em um pra-lá e pra-cá sem Deus
Eu já fugi com mar
Sim, fugi!
Eu dentro de seu corpo denso
me envolvendo, desenvolvendo
Era vazio, corpo no vento,
Não me continha, não me prendia,
não me resumia naquele lugar
Sumia! Fugia! Era fuga.
Mas eu também já briguei com mar
que me bradou sua vastidão,
me apequenou,
naquela terra, erguido
enquanto tinha medos contidos
de ao Senhor Mar enfrentar
E assim rompi em todas
em todas essas idas e ondas
muitas vezes e em ressaca
minha relação com o mar
52
Nós dois sempre voltamos!
Ele porque dona Lua é sempre tão sábia,
que lhe empurra de volta com sua vara maré
E eu porque a brisa a seu lado
tem o quo de "foi quente!'
Seu cheiro umedece a gente
Seus braços, ambos maresia,
me envolvem, me cansam, me enfadam
e se eu ficar para sempre,
me destroem!
Isso me outorga volta
a dentro dele, adentro dele
em fuga solta
no silêncio do não ar
Nós sempre nos amaremos!
Eu, mesmo que vá pelo caminho de todos,
voltarei em instantes, em momentos de morto
a recobrar junto a ele o que não vivi
Ele, que em volta do meu corpo ou à frente,
a me aquecer ou a congelar
me invadia pela ar, osmose
sem eu nada demandar sobre:
o assim se dar. Ser um do outro
Eu parado e ele onda
Eu pequeno e ele tanto
Eu derramando, e ele não
De perto ou bem assim,
preso nessa garrafa
que cabe no imenso átrio
do meu coração
53
~ ELEMENTOS
É brisa,
é mar na virada,
na beira da areia
É brasa a amar
o corpo todo
canto que incendeia
a vez que a deixei calado
na minha longe alagação
Longa cor de seus cabelos
nos retratos no mural
Eu só sinto a Saudade
balançar o vendaval.
Ó, deixa ela entrar!
Quem mandou essa foi a Sereia
Inda hoje que planejo
meu retorno contramão
- Grão tempestade -
para voltar pros braços dela,
bem para perto, odoyá
Quando aperta a saudade
Pranto corre, vai em vão
Digo a flor do nome dela
E vai de mim o enguiçar
54
~ VELHO MODUS
Todos os dias, em silêncio,
eu te conto sobre o mar
aquele ser maior que nós
distante, imenso, salgado
que você nunca vai conhecer
Talvez essa seja a coisa ruim
na beleza de ser árvore,
não poder partir.
Amar para sempre um só lugar
e esperar continuamente que venha o novo,
sem poder ir atrás dele
Eu e você somos livres
notei diversas vezes feliz,
em nossas conversas.
Cada um do seu jeito.
Você naquele velho modus raiz
Fincada na terra e solta nas folhas,
ao balanço do vento
Eu errante, no vento,
achando que o certo para o tempo
é passar com as coisas
Um dia, quem sabe?
Cheguemos a um acordo
Onde eu abra mão de ser livre
para com a terra comungar
e você aceite existir,
assim por muito tempo, nua:
sem fronde, sem folha, sem caule
Sem o encanto rosa de suas flores
55
~ GOZO CHAMADO
Vem!
Tá me ouvindo?
Derrame dentro de mim!
Mornamente dentro de mim
porque eu sou homem
e essas águas correm em mim
fontes de mim
saem de mim
podem ser outros de mim
e só repousam tranquilas
no fim
quando encontram o mar
no meio
dentro de mim
56
~ PESCADOR
A minha rede eu teço de palavras
e faço de arrasto, faço tarrafa,
para pegar lagosta vermelha,
quando muito cioba
se eu só lançar na beira.
O peixe grande tá no profundo.
mar adentro,
berço seguro,
bem onde nadam as baleias.
Tem bacia, água-viva,
redemoinho.
É na maré onde se pesca,
que ouço o canto da sereia.
57
~ ÁGUAS PARA AS CEREJEIRAS
Atenção minhas senhoras,
trago água engarrafada
Doces águas de amor
Sal do mar, as minhas lágrimas
Pra aguar suas raízes,
e lavar o meu caminho
Já teci o meu filé
e vou cantar devagarinho
Derramar minhas palavras,
mãos me colheram na beira
Vou deitar nas tuas terras
águas pras cerejeiras
Há quem diga que amores
que se perdem no caminho
São levados pelo vento,
onda do mar, queda do rio
Mas a chuva traz de volta,
quando cai pela estrada
Vai juntando cada um
na luz do sol, na poça d’água
canto assim essas palavras
com a voz da divina sereia
pra deitar nas tuas terras
águas pras cerejeiras
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Barulho de muitas águas.
Silêncio!
Disse-lhes tudo: das alegrias, das dores,
de amores e paixões, do Divino.
Que são a mesma coisa, águas da mesma fonte,
que jorra incessante.
Dentro de cada um de nós.
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Notas
1. O poema “Ser-tão” (p. 15) começa com uma alusão à
obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,
mais especificamente ao trecho: “Abracei Diadorim com
as asas de todos os pássaros.”
2. O poema “Tempo fechado” (p. 17) traz versos da
canção “Iansã”, dos compositores baianos Caetano
Veloso e Gilberto Gil.
3. O poema “Morena” (p. 23) faz referência ao texto “A
perigosa Iara” da obra “Como Nasceram as Estrelas –
Doze lendas brasileiras”, de Clarice Lispector. Traz
também o verso “Ialaô, Okê, ialoá”, do samba-enredo de
1976 do G.R.E.S. Império Serrano (RJ): A Lenda Das
Sereias, Rainhas do Mar, composição de Vicente Mattos,
Dinoel Sampaio e Arlindo Velloso.
4. O poema “Riachinho” (p. 29) faz alusão à canção
“Dindi”, escrita pelo maestro Antônio Carlos Jobim, o
Tom Jobim, e traz o verso “E bandos de nuvens que
passam ligeiras”.
5. O poema “À espera” (p. 41) traz os versos “Queria que a
vida fosse / Essas águas misturadas", da canção “Memória
das Águas”, dos compositores baianos Roberto Mendes e
Jorge Portugal.