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Luc Ferry nasceu em Paris nametade do sculo XX e formou-se
em filosofia e cincia poltica. Foi
professor de filosofia nas universidades
de Lyon II, Caen e Paris VII e
tambm ajudou a fundar o Collge
de Philosophie. Entre 2002 e 2004
foi ministro da educao na Frana.
Durante esse perodo, criou uma
lei que proibia o uso de vu pelas
estudantes mulumanas no interior das
escolas pblicas. Ferry conhecido
por defender uma filosofia baseada
na razo, afastada de qualquer forma
de religiosidade, o que classifica
como humanismo secular. Em 2006,ganhou o prmio Aujourdhui, um
dos mais prestigiados de no fico
contempornea na Frana, com o seu
livro Aprendendo a viver, que teve
mais de 700 mil cpias vendidas
no planeta. Tambm escreveu outros
livros de grande sucesso como A
nova ordem ecolgica; A tentao docristianismo; Famlias, amo vocs; O
anticonformista; Vencer os medos; La
pense 68; entre outros. Recentemente,
Luc Ferry, este declarado republicano
de direita, lanou A Revoluo do
amor: por uma espiritualidade laica.
O livro, que j considerado um
sucesso de vendas, chegou ao Brasil
pela editora Objetiva com traduo
de Vra Lucia dos Reis.
O subttulo do livro chama
a ateno do leitor logo de cara
pela aparente contradio do termo
espiritualidade laica. Ser possvel
afirmar a existncia de umaespiritualidade afastada de uma
esfera religiosa? esse o esforo
que Luc Ferry faz ao decorrer de seu
livro: asseverar uma espiritualidade
afastada de dogmas e de qualquer
forma de transcendentalidade
religiosa, respaldada na tradio
Amor sustentvel
Luc Ferry.
A Revoluo do amor: por uma espiritualidade laica. Traduo de Vra Luciados Reis. So Paulo: Objeva, 2012, 359 pp.
Gustavo Ramus
Mestre em Cincias Sociais pela PUC-SP. Pesquisador no Nu-Sol e no Projeto
temco FAPESP Ecopoltca.
ecopoltica, 3: 2012
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iluminista, agora revigorada por uma
nova espiritualidade da razo e das
emoes.
De acordo com Ferry, vivemosum momento histrico, o segundo
humanismo, que se afasta daquele
do iluminismo. Esse segundo
humanismo tem como principal
predicado o amor. No o amor a
um Deus, a uma ptria ou a uma
grande causa, mas o amor que cerca
nossas relaes cotidianas. Para ele,
exatamente esse novo amor que
d sentido nossa existncia.
o amor aos prximos e aqui o
prximo no tem um sentido cristo
que sugere um amor incondicional
a qualquer outra pessoa , queles
com quem estabelecemos laos,alianas, ou seja, mais precisamente,
aos nossos amigos, parentes, amantes
e, sobretudo, os filhos, que nos far
atentar ao futuro e, consequentemente,
no nos descuidarmos da poltica.
O autor de A revoluo do amor
se dirige ao leitor de forma clara,
com uma linguagem simples, o que
faz com que seu livro possa ter
alcance no somente entre intelectuais,
mas tambm a um grande pblico.
O autor escreve para um pblico
que ama, portanto, escreve para
todos. Ferry no lana mo de uma
exposio acadmica intrincada para
expor conceitos difceis, o que torna
a sua argumentao convincente. Em
alguns momentos recorre a autores
conceituados como Montaigne, nopara discutir sua obra, mas para
comentar algumas passagens de sua
vida. Da mesma maneira, dedica
algumas pginas comparao do
estilo de vida de suas filhas com os
tempos de sua av para exemplificar
as transformaes culturais nos
ltimos anos. Luc Ferry no est
interessado, em certa medida, com o
que se tem produzido academicamente
em filosofia ou cincia poltica. O
objeto com o qual se preocupa est
no cotidiano das pessoas, presente
nas suas vidas da forma mais simples
que possamos imaginar.Luc Ferry nos apresenta a uma
nova noo de sagrado que, segundo
ele, no est no sentido religioso,
mas sim em seu sentido ideolgico e
filosfico: no o oposto ao profano,
mas antes como aquilo pelo qual
podemos nos sacrificar, nos arriscar
ou dar a vida (p. 16). Essa a
grande mudana que, segundo ele,
marca esse momento histrico
no qual vivemos. Antigamente,
as pessoas se sacrificavam pela
revoluo, pela ptria ou at por
Deus. Mas a que se deve o fim dos
motivos tradicionais do sacrifcio?
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E no que consiste exatamente? Em
primeiro lugar, essa mudana s foi
possvel pela destruio dos valores
e das autoridades tradicionais queteve como grande marco o maio de
68: os motivos dos sacrifcios hoje
no so mais abstraes, mas sim
as pessoas, seres reais. Contudo, o
autor se preserva com uma ressalva
importante ao sublinhar que essa nova
noo de sagrado e de sacrifcio no
pode ser generalizada, pois se refere
Europa, principalmente a parte
ocidental, e mesmo assim admitindo
algumas excees regra.
A substituio dos ideais polticos
ou religiosos pela vida amorosa
de pessoas comuns culmina num
dos pontos principais do livro:a sacralizao do amor. O amor
passou a ser o pedestal mais
importante dos valores que guiam
a contemporaneidade, o centro das
preocupaes dos cidados comuns.
No obstante, Ferry ressalta que no
estamos perto do fim da sociedade
individualista, pelo contrrio, o
egosmo ainda prepondera no interior
dessa nova tica. Mas esse egosmo
captado de forma positiva e otimista.
No por acaso que agora exigimos
que a poltica sirva primeiramente e
antes de tudo no glria da nao,
muito menos do imprio, mas ao
desenvolvimento de nossa existncia
pessoal e preparao da de nossos
filhos (p. 18).
O primeiro ponto para compreendera argumentao de Ferry entender
como ele situa o processo da
desconstruo das tradies e dos
valores que as seguiam. O incio
dessa desconstruo pode ser
remetido filosofia nietzschiana que
ele classifica como a filosofia do
martelo, responsvel pela destituio
de dolos e dos valores judaico-
cristo. E de maneira anloga est
a contribuio de Heidegger com
a desconstruo da metafsica.
No sculo XX, essa transformao
se acentuou por meio de variadas
mudanas, que fazem deste o sculode inovaes e que encontrou no
maio de 68 seu marco fundamental
para a transformao que ele tanto
insiste em constatar.
Os jovens que embalaram maio
de 68 se voltaram contra o estilo de
vida burgus e iniciaram a destituio
dos valores convencionais dando
forma ao que o autor denomina
de individualismo revolucionrio.
Entretanto, Luc Ferry aponta os
agentes de 68 tambm como os
principais geradores da sociedade de
consumo, e afirma que aqueles jovens
que queimavam carros se tornaram
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o brao armado da expanso do
capitalismo globalizado. Ferry
brinca com a famosa frase pichada
nos muros de Paris: abaixo docalamento est a praia e diz
que se no houve praia, houve a
globalizao liberal. Em outras
palavras, afirma que os contestadores
de outrora formam hoje o grande
mercado consumidor: quanto mais
os valores tradicionais se corroem,
mais ficamos dependentes e mais
nos tranquilizamos consumindo. o
que j se chamava nos anos 1960 de
dessublimao repressiva (p. 74).
Ferry vai ainda mais longe em sua
anlise e aponta esse fato histrico
como ponto crucial para o que
denomina como segunda globalizao.A primeira teria sido a das Luzes,
entre os sculos XVI e XVIII, que
marcaram as grandes revolues como
a francesa. J a segunda globalizao
um processo recente, ou melhor,
ainda em formulao. No entanto
seus sintomas j so visveis. De
acordo com Ferry no existe mais
a distino, pelo menos no que diz
respeito poltica partidria, entre
direita e esquerda. Isso pertence
ao passado, uma questo fora de
poca. Hoje os pases se organizam
e se articulam diante da questo:
como vencer a crise financeira que
assombra a Europa? Como regular
a economia mundial livrando-se da
ameaa da falncia social?
Voltemos questo principal dolivro: o amor. De acordo com Luc
Ferry, a mudana mais notvel que
se pode ter hoje o casamento
por amor. Antes o casamento se
dava por convenincia, ocorria por
interesses econmicos e exercia esta
funo social. Hoje em dia, a maior
parte dos casamentos uma escolha
marcada pela paixo. Antes, o
casamento norteado pelo sentimento
era muito mal visto pela sociedade.
Nessas sociedades a famlia tinha a
funo de preservao dos bens e
da honra, e no tinham, portanto, a
funo afetiva como primordial.Ferry aponta a transio de um
casamento que se d por uma
imposio social para um casamento
de livre escolha, uma conquista,
mais precisamente uma reivindicao
de direito. Nem amor, nem escolha,
mas em compensao, peso da
comunidade e preocupao maior
com a linhagem, a biologia, e a
economia. Em resumo, assim o
casamento antigo. (...) Alis, no sem
razo: se no mais a biologia, a
linhagem ou a economia que decidem,
e se, alm disso, os indivduos so
livres para escolher uma vida que,
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evidentemente, no lhes mais
imposta, nem pela aldeia, nem por
qualquer comunidade tradicional,
por que motivo continuar recusar aadultos complacentes no apenas o
direito sexualidade, mas tambm
ao amor? (p. 88).
O autor no trata da importncia
do casamento em outras sociedades,
o que curioso, porque chega a
mencionar, ainda que timidamente,
o nome de Claude Lvi-Strauss. O
antroplogo francs famoso, entre
outras coisas, pelo seu estudo das
relaes de parentesco, apontando
a importncia do casamento nas
sociedades tribais como mecanismo
de circulao de bens, mulheres
e palavras, e tambm meio parareafirmar ou afirmar alianas
polticas. Contudo, isso no abala
a argumentao no trabalho de
Luc Ferry porque, como disse
anteriormente, ele est interessado
na sociedade europeia e na transio
do casamento por convenincia para
o casamento por amor. Por fim,
a tese defendida no livro que
o casamento por amor, somado
desconstruo das tradies e uma
nova globalizao, propiciaram uma
nova viso de mundo.
Ferry chama ateno para outra
mudana decorrente do casamento: a
das relaes familiares, principalmente
entre pais e filhos. Nas sociedades
antigas os filhos eram tidos como mo
de obra. Uma criana de sete anosj ajudava nos trabalhos de campo,
ao passo que hoje teramos outro
tipo de investimento nas crianas
e foi na educao que ocorreram
grandes mudanas. Antigamente
era comum aos pais entregarem
seus filhos aos cuidados das amas,
e tambm que muitos filhos no
voltassem vivos para seus pais. Ferry
volta a Montaigne quando este fala
tranquilamente a um amigo que no
sabia o nmero exato de filhos que
morreram nas mos das amas, e
tambm ao caso de Rousseau, que
abandonou seus cinco filhos. O queera comum naquela poca hoje
inconcebvel. A perda de um filho
hoje jamais seria encarada de forma
tranquila, com normalidade, como
nos casos acima; pelo contrrio,
seria a pior tragdia que poderia
acontecer a uma famlia por certo
esta famlia europeia classe mdia,
que ele no nomeia diretamente, e
que a grande fonte da produo da
verdade sobre o amor e o casamento
contemporneos.
A falta de afetividade entre pais
e filhos, ou o desapego por parte
dos pais era tamanho que era at
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mesmo comum os pais se livrarem
de filhos recm nascidos. Ferry
recorre ao historiador Philippe Aris
para mostrar que a diminuio damortalidade infantil que se observa
no sculo XVIII no pode ser
explicada exclusivamente por razes
mdicas e sanitrias: apenas no se
deixava mais morrer ou ajudar a
morrer as crianas que no eram
mais desejadas (p. 99). Dito de
outra forma, aliado ao avano da
medicina, essa mudana cultural, a
da afetividade entre pais e filhos, ou
como coloca Ferry, quando a criana
passa a ser considerada um bem
emocional, o que faz com que a
taxa de mortalidade infantil diminua
consideravelmente.Ao final do livro o autor retoma
o tema da morte para afirmar que,
sob o prisma do amor, ela ganha
uma nova dimenso, um novo
significado. Isso tambm desponta
em uma transformao significativa,
na medida em que a partir de
determinado momento as famlias
passam a se organizar em funo
das crianas. A preocupao com os
filhos o que determina tambm uma
nova postura poltica predominante
nos dias de hoje.
Como criar nossos filhos, como
equip-los para que venam na vida
do melhor modo possvel? O que
significa, alis, a expresso vencer
na vida, se no a reduzirmos
dimenso puramente social e material?Que mundo ns queremos lhes
deixar, legar s geraes futuras, no
apenas em termos de ecologia, mas
tambm de economia, de poltica, de
cultura? (p. 116).
Essa preocupao com o futuro
do planeta e das geraes futuras
foi o que propiciou o surgimento
dos ecologistas que, segundo Ferry,
constituram o movimento poltico
mais consistente do sculo XX. Os
ecologistas, mais interessados pela
sociedade civil do que pelo Estado,
perceberam isso desde cedo, tirando
proveito, jogando habilmente com omedo do futuro que a preocupao
com os filhos no deixa de provocar
(p. 353). Na dcada de 70 surge a
preocupao com o fim dos recursos
naturais devido ao aceleramento
incontrolvel do capitalismo. O
medo de um possvel apocalipse
reflete em uma poltica de
conscientizao. Como consequncia,
surge a preocupao, no apenas dos
dirigentes, mas tambm dos cidados
comuns, com um desenvolvimento
durvel. Desde ento, emergiu o
discurso da sustentabilidade.
Essa a chave principal de A
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revoluo do amor: esse amor ao
homem, ou o que Ferry denomina
de sacralizao do Homem, a nova
face do sagrado. E exatamente essenovo sagrado que funda o que ele
classifica como segundo humanismo.
Ferry insiste no segundo humanismo,
porque considera que o primeiro
humanismo, o das Luzes, esteve
centrado no cidado, no homem
jurdico de direito, que exerce uma
relao, no caso da democracia,
de sdito e soberano ao mesmo
tempo, ao passo que esse segundo
humanismo considera as paixes dos
indivduos. Isso no significa o fim
dos direitos. O autor defende que
esse amor-paixo um acrscimo,
que aos poucos vai ganhando maiorimportncia. No est mais em
jogo o humanismo da razo e dos
direitos, mas um humanismo tomado
pelas emoes e, sobretudo, pela
afetividade nas relaes de parentesco
e de amizade. Esse humanismo,
segundo Luc Ferry, rompe com
uma tradio metafsica, baseada
em transcendncias, e se firma na
imanncia do mundo ou, o que o
autor toma emprestado de Husserl,
a transcendncia da imanncia. O
autor se refere ao amor s pessoas
que nos so prximas, e no ao
amor como abstrao. Dito de outra
forma, no mais o filho da nao
o centro do discurso poltico e da
preocupao dos cidados alis,
atualmente seria at inadequado oemprego desse termo , mas sim os
de filhos dos cidados, pessoas reais.
Enfim, o primeiro humanismo tinha
como base a secularizao da moral
crist, no entanto, seus efeitos se
limitavam a direitos formais, ou seja,
estava enredada no interior do que
foi institudo como Estado-nao.
Na terceira e ltima parte do
livro, Luc Ferry tenta firmar seu
novo conceito o de espiritualidade
laica. Uma espiritualidade sem Deus.
Sem dvida, o autor rompe com um
pensamento abstrato e transcendental,
mas no abre mo dos valores cristos,como bondade, benevolncia e o
respeito pelo prximo. Est interessado
em uma espiritualidade prxima de
uma filosofia que busca, atravs da
razo, a resposta do que seria uma
vida boa. Em outras palavras,
a busca por uma sabedoria, longe
de uma definio religiosa, que por
sua vez se aproxima da filosofia. A
preocupao com as geraes futuras
fez com que as pessoas passassem
a se preocupar com o planeta. Luc
Ferry aponta para um novo caminho
para se pensar o mundo hoje. Ser
que podemos falar em um amor ao
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planeta, fruto do amor aos filhos?
Talvez isso seja um dos pontos de
partida, ou um grande pilar que
sustenta o discurso da sustentabilidadeto em voga atualmente. Luc Ferry
se coloca a partir de uma perspectiva
liberal de direita, na qual expe o
desencanto em relao poltica
partidria. Estaria essa poltica dando
lugar a essa nova cultura imposta
pelo amor? Para ele, a poltica
liberal, associada ao mercado e a
uma certa preocupao com a moral,
o que garante a democracia e,
consequentemente, eleies livres,
liberdade de expresso, os direitos
bsicos como a educao e sade,
assim como a liberdade individual
e de consumo. Por isso, defendeque impossvel se voltar contra
o capitalismo, principalmente quando
este est sob uma perspectiva liberal.
Luc Ferry nos fornece pistas
interessantes para uma anlise da
poltica mundial, a importncia da
ecologia, da economia e, sobretudo,
a emergncia do discurso da
sustentabilidade. O amor, desdobrado
na secularizao do Homem,
reorganizou a poltica como um
todo. O medo de um futuro
desastroso para as geraes futuras
fez com que as pessoas repensassem
o desenvolvimento capitalista e seus
estilos de vida. primeira vista,
surge a ideia da desacelerao da
economia, contudo, como fazer isso
sem causar a falncia de empresase consequentemente o aumento do
desemprego e da misria? O desafio
do mundo hoje encontrar meios
para que a economia no pare, ao
mesmo tempo em que no esgote
os recursos naturais e diminua os
impactos ambientais. Tudo isso sem
perder de vista o amor e a preocupao
com o futuro que queremos deixar
para as prximas geraes.
De maneira plstica e direcional,
o livro de Luc Ferry contribui para
que compreendamos o estgio da
produo da verdade sustentvel
enquanto discurso filosfico-poltico.