Post on 26-Feb-2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)
ANA IGRAÍNE DE GÓIS BARRETO
“IT WAS A PLEASURE TO BURN”: FAHRENHEIT 451 E ADAPTAÇÃO NO
CONTEXTO DA LEITURA CONTEMPORÂNEA
MARINGÁ – PR
2017
ANA IGRAÍNE DE GÓIS BARRETO
“IT WAS A PLEASURE TO BURN”: FAHRENHEIT 451 E ADAPTAÇÃO NO
CONTEXTO DA LEITURA CONTEMPORÂNEA
Dissertação apresentada à Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos
Literários.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado
MARINGÁ – PR
2017
Às vezes na minha saudade eu tenho a impressão que
continuo criança. Que você a qualquer momento vai
aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema ou
bolas de gude. Foi você quem me ensinou a ternura da
vida...
(José Mauro de Vasconcelos)
Às minhas mães, Ivoneth Góis e Antonia Góis.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, que é meu pé de laranja lima e razão de todos os meus feitos. Por ter
me introduzido à literatura e ao cinema, e por ver arte em todas as coisas da vida,
obrigada.
Ao meu pai, que é meu Zezé particular e meu grande herói, por estar me dando a
chance de conhecê-lo (e amá-lo) ainda mais.
À minha avó, que deixou, em toda a minha saudade, um pedaço muito grande de
inspiração.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado, pela infindável paciência e
confiança, e pelos momentos de riso causados meio às minhas crises.
À banca examinadora, Prof. Dr. Jaime dos Reis Sant’Anna, pelas sugestões valorosas,
e Prof.ª Dr.ª e amiga Líliam Cristina Marins, que, com todo seu amor pelas Letras e,
principalmente, pelo ensinar, foi essencial na realização deste estudo e no feitio deste
grau.
À CAPES, pelo apoio financeiro e concessão de bolsas.
RESUMO
A leitura é um dos elementos mais importantes no despertar do pensamento crítico.
Assim, o objetivo deste trabalho é analisar o enredo de Fahrenheit 451 (livro e filme)
em diferentes meios para aplicação à formação do leitor contemporâneo, de modo a
compreender a função de outras práticas de leitura em uma sociedade a partir da
adaptação cinematográfica. Além disso, estudar e comparar as ideologias pregadas
poderá trazer uma compreensão maior da leitura a nível social, a ponto de estabelecer
o que estamos repetindo e o que estamos mudando, bem como entender até que ponto
uma sociedade tem sua própria opinião. A história em Fahrenheit 451, obra de
Bradbury de 1953, trata de um mundo distópico no qual livros são banidos e
literalmente queimados, pois entende-se que a literatura causa infelicidade e rebeldia.
Os bombeiros são quem ateiam fogo a eles, numa total distorção do real. Neste
romance, há a primazia da alienação do ser humano em detrimento do pensamento, o
que transforma o indivíduo em um ser cada vez mais apático face às relações sociais.
O texto de partida é o livro de Ray Bradbury, porém atingiu seu real sucesso com o
filme de François Truffaut (1966). A relação cinema-literatura pode ser explorada a
partir das teorias da adaptação difundidas por Linda Hutcheon (2011), Thais Diniz
(2005) e Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008), das ideias disseminadas por
estudiosos das novas tecnologias, como Henry Jenkins (2009) e estudos a respeito da
ideologia, realizados por Michel Foucault (1972, 1984, 1996) e Mikhail Bakhtin (1997).
Palavras-chave: Cinema; Literatura; Fahrenheit 451; Ideologia; Adaptação.
ABSTRACT
Reading is one of the fundamental elements in eliciting critical thought. Thus, this work
aims at analysing the plot of Fahrenheit 451 (book and film) in different means to apply
in the formation of the contemporary reader, in order to comprehend the role of different
practices of reading in a society as from the film adaptation. Furthermore, studying and
comparing the diffused ideologies may bring up a greater understanding of reading on
a social level, to the point of establishing what we have been repeating and what we
have been changing, as well as to comprehend to what extent a society has its own
opinion. The story of Fahrenheit 451, Bradbury’s work released in 1953, is a dystopia
in which books are banned and literally burned, since people understand that literature
causes unhappiness. The ones who set fire to them are the firemen, what represent a
total distortion of reality. In this futuristic novel, there is the primacy of the human being’s
alienation and the detriment of thinking, what makes the individual more and more
indifferent to social relations. The source text comes from the book by Ray Bradbury,
but it reached its real success with Truffaut’s film (1966). The relationship between
cinema and literature can be exploited from the theories of adaptation disseminated by
Linda Hutcheon (2011), Thais Diniz (2005) and Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008),
the ideas diffused by researchers of new technologies, such as Henry Jenkins (2009),
and studies concerning ideology, carried out by Michel Foucault (1972, 1984, 1996) and
Mikhail Bakhtin (1997).
Keywords: Cinema; Literature; Fahrenheit 451; Ideology; Adaptation.
1
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ........................................................... 2
Problematização e Justificativa ......................................................................... 4
Metodologia e Objetivos ..................................................................................... 5
Roteiro .................................................................................................................. 7
1. ABORDAGEM HISTÓRICA
1.1 O Escritor, O Adaptador............................................................................... 10
1.2 Os Estados Unidos à época da escrita do livro ......................................... 19
1.3 Fahrenheit de 66, Maio de 68 ..................................................................... 22
2. FAHRENHEIT 451: ANÁLISE EM SEUS DIFERENTES SUPORTES ........ 25
2.1 O romance e a adaptação cinematográfica ............................................... 29
2.1.1 Ponto de vista: As reiterações nas mídias .............................................. 31
2.1.2 Ponto de vista: O contraste entre as mídias ........................................... 44
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 65
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 68
2
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
A ideia de ter o livro como algo sagrado tem sido muito questionada, uma
vez que os avanços da tecnologia e, mesmo, a mudança de interesse das novas
gerações têm aumentado. Com isso, exige-se cada vez mais uma transformação na
visão de leitura, como já era proposto por Certeau (1998) ao escrever seu livro A
Invenção do Cotidiano em 1980, época na qual considerar leitura não só a palavra
escrita, mas também imagens, era novidade. Certeau entende a experiência de ler
não apenas como uma mera ação passiva; para ele, ser leitor é ser atuante dentro
do texto, é ser produtor de sentido no ato de ler. O leitor é capaz de diminuir a
autoridade do autor, pois enquanto ele usufrui da leitura, também atribui significados,
muda ordens, lê e relê, anota, e com tudo isso, cria um novo texto, nunca tendo uma
experiência de leitura igual à anterior. Dessa forma, uma literatura sempre será
diferente da outra simplesmente pela forma como ela é lida.
Juntamente com a leitura, o próprio leitor e/ou sujeito social não mais
consegue ter uma identidade fixa, constante. Isso é explicado por Hall (2005, p. 10-
13), ao mostrar que o indivíduo se identificou, outrora, como um sujeito do
Iluminismo, o qual enxergava o ser humano de forma totalmente centrado e
unificado, de identidade inerte. Evolutivamente, veio o sujeito sociológico, que se
define pela interação com o meio (interno ou externo) e que passa a mostrar que o
indivíduo não pode ser separado da sociedade. A partir de então, surge a questão
da identidade e subjetividade serem projetadas no mundo social e cultural, e,
portanto, é impossível que ela se mantenha idêntica, uma vez que as mudanças de
meios provocam a fragmentação do indivíduo. Por fim, entra-se na era do sujeito
pós-moderno, o qual não é capaz de ter uma identidade fixa, essencial ou
permanente, pois a quantidade de informação cultural e social que ele recebe na
atualidade é muito grande, o que faz com que várias identidades sejam, assim,
multiplicadas em um só sujeito, havendo uma constante mudança.
A partir de tais evoluções e, consequentemente, alterações (no indivíduo e
na leitura), foi necessário que novas maneiras de se conseguir a experiência da
imersão numa história fossem buscadas. Tal fato pode ser entendido pelas obras
aqui estudadas. Fahrenheit 451 foi publicado pela primeira vez em 1953, por Ray
Bradbury. Em 1966, o diretor francês François Truffaut adaptou a história para o
cinema, transformando-a no filme que o consagrou como diretor. As supracitadas
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datas sugerem que a tentativa de inserção de outras práticas de leitura não é algo
recente, uma vez que a adaptação cinematográfica já se faz presente desde o início
da história do cinema. Além disso, tais datas são essenciais no entendimento de
uma futura discussão ideológica e de motivos pelos quais algo foi escrito ou
encenado.
No livro, Bradbury relata uma distopia na qual a sociedade é
controlada/manipulada por um governo que preza pela alienação. Distrair-se com
carros velozes e tecnologia excessiva é a cultura que prevalece e é incentivada. A
literatura é quase inexistente, posto que ler e/ou possuir um livro é uma prática ilegal.
Entende-se que a leitura provoca o pensamento crítico, o que causa infelicidade e
rebeldia. Evitando o pensamento, evita-se, também, a resistência. A partir de tal
enredo, torna-se desafiador e favorável unir os estudos ideológicos e de adaptação
ao assunto do qual o livro trata.
Truffaut conseguiu fornecer aos telespectadores a possibilidade de ler o livro
de Bradbury através das telas do cinema, o que fez com que sua história atingisse
público suficiente para que, hoje, a adaptação cinematográfica seja muito mais
conhecida que o livro de Bradbury. Isso mostra, assim como o romance prevê, o
quanto as pessoas se sentem cada vez menos atraídas pela leitura tradicional,
aquela da palavra escrita. Porém, sugere também que há uma tentativa em
recuperar tal interesse a partir de alternativas ao papel, seja no uso de filmes,
internet ou videogames, tudo direcionado a chamar a atenção do “usuário” para o
romance que antecedeu a adaptação.
Com isso, tenta-se entender as funções das práticas contemporâneas de
leitura no desenvolvimento de um leitor crítico, uma vez que a formação de um leitor
competente infere um indivíduo que é capaz de compreender o que lê; que consiga
“ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que
estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários
sentidos podem ser atribuídos a um texto” (BRASIL, 1997, p. 41). Há, ainda, a
tentativa de mostrar a importância da transformação da leitura nos dias de hoje, o
que será essencial no entendimento de que não é possível hierarquizar diferentes
formas de arte – no caso deste trabalho, a constante comparação entre cinema e
literatura, que sempre coloca o livro como arte mais importante.
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Problematização e Justificativa
A evolução tecnológica está sobressaindo-se em relação às formas mais
clássicas de entretenimento, o que faz com que várias questões acabem por surgir.
No que diz respeito à área aqui estudada, o questionamento principal é sempre
quanto ao futuro da leitura, uma vez que o livro, enquanto mídia, tem sido visto como
algo paulatinamente obsoleto e deduz-se queo interesse pelo mesmo vem caindo
conforme o aumento das possibilidades de diversão oferecidas, principalmente, pela
internet. Apesar de a tecnologia estar cada vez mais em evidência, a maneira de
pensar mais habitual não conseguiu se ajustar à rapidez do digital e, por isso, ainda
enxerga obstáculos em situações que podem trazer benefícios. Exemplo disso é a
própria ideia de leitura, que, não raras vezes, continua sendo vista de forma fechada,
apenas prendendo-se à palavra escrita e ao papel, desconsiderando a definição total
do termo.
É possível entender a dificuldade de transição para uns e a facilidade para
outros a partir da explicação de Darnton (2010, p. 11):
Uma geração “nascida digital” está “sempre ligada”, conversando por celulares em toda parte, digitando mensagens instantâneas e participando de redes virtuais ou reais. (...) Gerações mais velhas aprenderam a sintonizar girando botões em busca de canais; gerações mais jovens alternam canais de imediato, apertando um botão. A diferença entre girar e alternar pode parecer trivial, mas deriva de reflexos localizados em áreas profundas da memória cinética. Somos guiados pelo mundo mediante uma disposição sensorial chamada de Fingerspitzengefühl pelos alemães. Se você foi treinado a guiar uma caneta com seu indicador, observe a maneira como os jovens usam o polegar em seus celulares e perceberá como a tecnologia penetra o corpo e a alma de uma nova geração.
Entende-se, então, que até mesmo os mais relutantes em aceitar as novas
maneiras de ler apenas precisam de tempo para se inserir na modernidade conforme
ela avança. Além disso, imagens e sons já se mostraram capazes de substituir o uso
da palavra e ainda acomodar-se enquanto leitura, pois “as imagens são mediadoras
de valores culturais e contém metáforas nascidas da necessidade social de construir
significados” (HERNANDEZ, 2000, p. 1330). Ao aceitar a amplitude da palavra
“leitura”, os questionamentos a respeito da falta de leitores passam a diminuir, pois
pode-se notar que o acesso às formas de ler cresce de forma elevada com a
digitalização, uma vez que a internet possibilita a troca de dados sem que o limite
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geográfico atrapalhe. Dessa forma, o compartilhamento de informação também
cresce – o que faz com que as bibliotecas virtuais sejam cada vez mais alimentadas
– e, com ele, o aprendizado. Em uma entrevista concedida por Pierre Lévy (2011)
ao jornal O Globo, o filósofo afirma que “no futuro, não haverá suportes físicos para
levar a informação”. Será, então, o fim das bibliotecas físicas? Ou as novas práticas
se adaptarão e serão aceitas no mundo literário, de forma a conviver com os livros?
A questão principal é compreender que ao entreter-se com um filme ou livro,
há sempre a intenção de descobrir uma nova história. Isso acontece
independentemente do meio, esta intenção é capaz de inserir o digital na literatura,
pois, como já dito anteriormente (e em todos os lugares), atualmente é possível
encontrar histórias a serem contadas em variados suportes – digitais ou não. A
pergunta se estes novos modelos de leitura são válidos na formação do leitor tem
sido discutida e vista com bons olhos, porém, a resposta definitiva só virá com o
passar do tempo, com a atualização da literatura e com a evolução da tecnologia.
Portanto, esse trabalho é feito para que seja possível, ao menos, supor as
vantagens que as mudanças podem trazer ao leitor porvindouro, e deste modo
analisar e desenvolver as adaptações em estudos e aplicações posteriores. No
momento, é possível apenas pensar nos possíveis reflexos da tecnologia na
literatura. Logo, aprofundar-se em outras formas de escrita e leitura – aqui, a
adaptação – dará suporte para uma previsão do que se pode esperar desta e da
modernização do ato de ler na formação do leitor.
Metodologia e Objetivos
A metodologia de pesquisa utilizada será a qualitativa e, assim, será possível
levantar hipóteses coerentes a respeito da análise feita. A pesquisa será formulada,
portanto, para oferecer uma visão de dentro de determinado assunto estudado, a fim
de que se possa entender os conceitos analisados a partir de um tema comum e
palpável. Para tal, serão utilizadas as atuais teorias de adaptação, defendidas por
Linda Hutcheon (2011) e Robert Stam (2000, 2003, 2006, 2008). Além disso, os
estudos sobre a relação cinema-literatura serão baseados em Diniz (2005), Caughie
e Corseuil (2000), Benjamin (1994), em outros autores e até mesmo no diretor em
estudo, Truffaut (2005, 2016), bem como outros autores estudiosos de apenas um
dos assuntos do duo. Lévy (1996, 1999, 2000) e Jenkins (2009) serão responsáveis
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pela bibliografia relacionada ao ciberespaço e a digitalização da literatura. Ainda,
teorias elaboradas por Foucault (1972, 1984, 1996) servirão de suporte nos estudos
das relações de poder identificadas na história, unindo-se, ainda, a Bakhtin (1997) e
Althusser (1970), que oferecerão significativa base à questão ideológica juntamente
estudada.
Optamos pelo estudo comparativo entre o filme e o livro para que se possa
analisar as histórias a partir de recortes das obras, sejam eles convergentes ou não.
Com as devidas divisões, será possível cumprir a finalidade de estudar duas práticas
diferentes de leitura, ao mesmo tempo que será feita alusão à questão ideológica,
buscando entender as escolhas do escritor e cineasta naqueles momentos e o
quanto suas posições enquanto sujeitos determinaram o porquê de uma frase ou
uma cena. Além disso, a análise comparativa será capaz de mostrar as possíveis
formas de aprendizagem nas mídias aqui analisadas e o desenvolvimento de cada
uma, o que possibilitará um futuro aperfeiçoamento das práticas de leitura visando
a formação do leitor.
A partir da interação entre obras, a análise do livro e do filme tem por objetivo
compreender a função da adaptação cinematográfica em uma sociedade como
prática contemporânea de leitura. O fato de um mesmo texto poder ser entregue em
meios diversos, e em suportes também diferentes, sejam eles verbais ou não-
verbais, quer dizer que é possível que uma leitura – no sentido amplo da palavra –
seja feita no papel, na tela do computador ou do cinema, no celular, no tablet, no
leitor de e-book, etc, e ainda assim ser considerada leitura. Porém, isso não extingue
a possibilidade de ler o livro só porque se pode ver o filme. É intenção, também,
mostrar que ambas experiências são válidas e importantes, e uma não elimina a
outra. Pode-se notar que as novas tecnologias, bem como o diálogo entre um
suporte e outro, mostram que o leitor contemporâneo tem uma nova visão de leitura
e é esta visão que desperta seu interesse ou o mantém ativo. Assim, é possível
estudar a influência e as mudanças que as diferentes maneiras de ler podem trazer
para a formação de leitores partindo do duo cinema-literatura. Esta questão já é, de
certa forma, comentada na educação brasileira, como mostrado nas OCEMs
(BRASIL, 2006, p. 63):
(...) supõe-se que os alunos que ingressam no ensino médio já estejam preparados para a leitura de textos mais complexos da cultura literária, que
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poderão ser trabalhados lado a lado com outras modalidades com as quais estão mais familiarizados, como o hip-hop, as letras de músicas, os quadrinhos, o cordel, entre outras relacionadas ao contexto cultural menos ou mais urbano em que tais gêneros se produzem na sociedade.
Portanto, é necessário que a discussão a respeito das diferentes práticas de leitura
mantenha-se evoluindo, para que eventualmente haja uma nova formulação na
forma de pensar a educação.
Além disso, entendendo que o cinema é uma “criação da coletividade”
(BENJAMIN, 1994, p. 172), por ser preciso envolver bastantes pessoas para se
realizar um filme, há também o objetivo de enxergar a adaptação como uma segunda
obra – porém não secundária (HUTCHEON, 2011, p. 30) – que passa por um
extenso processo até que seja finalizada.
Num segundo momento, a análise ideológica das obras, partindo das
escolhas do autor e do adaptador, objetiva entender até que ponto uma sociedade
tem sua própria opinião ou é forçada a pensar de determinada forma, partindo de
Foucault (1972, p. 200), que doutrina sobre as relações de poder na linguagem, a
qual age como forma de controle, de coerção e de exclusão social. O pensador ainda
defende que o indivíduo respeita leis e cumpre ordens mesmo sem se dar conta
delas pois há um sistema de funcionamento extremamente sutil que permite o
controle sobre a sociedade, a ponto de que o poder que se tem em relação ao
indivíduo não seja nem mesmo notado (idem, 1987, p. 212), – o que poderá ser
facilmente notado em Fahrenheit 451.
Roteiro
O primeiro capítulo será dedicado a introduzir o autor do livro, Ray Bradbury,
e o diretor do filme, François Truffaut, de forma a entender, ao menos basicamente,
qual o estilo de cada um e até que ponto o romance e sua adaptação atingiram
outros trabalhos de seus realizadores. Além disso, uma apresentação da história de
Fahrenheit 451 será realizada, porém sem que haja intenção de aprofundamento
no enredo, visando apenas analisá-lo brevemente para que não falte assimilação
entre o enredo e sua análise no decorrer do estudo por parte de quem o lê.
Fahrenheit 451 traz a assustadora ideia de um mundo sem Shakespeare,
Nietzsche, Dickens e outros grandes pensadores, de fundamental importância
cultural. Portanto, a função do primeiro capítulo será a tentativa de imaginar o mundo
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descrito/mostrado por Bradbury e Truffaut, já fazendo referência à dificuldade para
um indivíduo desenvolver criticidade em um mundo alienado. Ainda, o primeiro
capítulo será detentor de um breve estudo histórico, uma vez que o período das
obras coincide com momentos importantes da história, como o período repressor
que precede a publicação do livro, marcado pelos movimentos nazifascistas, os
quais pregavam exatamente a alienação sugerida na história. Em relação ao filme,
há os movimentos estudantis de contracultura ocorridos na França em 1968, dois
anos após o lançamento da adaptação – o que pode ser entendido como resultado
de uma insatisfação que já ocorria há tempos.
No segundo capítulo, desenvolver-se-á a análise propriamente dita das
obras, de modo a observar elementos de afastamento e aproximação, ou seja, em
que o filme e o livro são diferentes e em que se parecem. Mesmo que a utilização
das palavras “afastamento” e “aproximação”, ou mesmo “diferenças” e “reiterações”,
não consigam suprir completamente a imparcialidade entre os meios aqui sugerida
(e buscada), reforça-se que não há intenção de comparação valorativa entre as
obras, pois parece claro que ao transpor um texto de uma mídia para outra, é
impossível que a história seja contada exatamente da mesma forma, uma vez que
cada meio possui suas limitações e peculiaridades. Portanto, a ideia não é discutir
ou buscar fidelidade, limitamo-nos apenas a apresentar as características de cada
obra ainda que de forma comparativa, uma vez que são frutos da mesma história.
Nesta análise, discute-se os impactos de como determinadas cenas são
apresentadas em um suporte ou em outro, bem como a necessidade que existe de
modificar partes da história de partida para que seja possível adaptá-la ao novo
formato. Ao mesmo tempo, busca-se explicar o porquê das modificações a partir da
ideologia da época do filme.
Para que haja a conexão de uma ideia com outra, o segundo capítulo
englobará tanto a análise comparativa quanto o enfoque na ideologia transpassada
na história, usando como gancho o uso exacerbado da tecnologia pela sociedade
descrita. Cada discurso carrega uma opinião que tende a ser propagada conforme
se fala, o que quer dizer que a função de toda e qualquer ideologia é colocar um
indivíduo na posição de sujeito que age a partir do que defende. O fato de o indivíduo
não estar livre para falar o que quer quando quer, posto que é o seu meio que
determina o que pode ser dito, será capaz de explicar o porquê das escolhas do
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escritor e do cineasta, ou seja, o estudo ideológico nos textos tornará possível a
análise do que Truffaut pretendeu ao usar determinadas situações ou falas e,
também, do que Bradbury quis mostrar ao escolher certa escrita e tal tema para seu
livro.
Assim, será necessário enxergar a literatura de forma mais ampla, pois,
como defende Negroponte (1995, p.18), “todas as indústrias, uma após a outra,
olham-se no espelho e se perguntam sobre seu futuro; pois bem, esse futuro será
determinado em 100% pela possibilidade de seus produtos e serviços adquirirem
forma digital”. Não há necessidade em pensar no fim da literatura, uma vez que a
virtualização surge com a função de manter a mesma viva e, ao mesmo tempo,
ampliá-la, visto que é capaz de levar a arte a lugares que seriam mais dificilmente
alcançados pelo livro impresso. É esta a função da transposição de um suporte para
outro, fazer com que a história sobreviva, independentemente de onde. A partir
dessa ideia, as obras de Fahrenheit 451 podem sem enxergadas através dos olhos
de Jenkins (2009, p. 29) e sua Cultura da Convergência, que explica o fato de o
consumidor e o produtor de mídia terem poderes que interagem, ou seja, já não há
mais um controle sobre o que será veiculado ou não, uma vez que hoje é possível
ser veiculador de ideias com apenas alguns cliques. A convergência oferece ao
consumidor – em termos jenkinsianos - diferentes e diversas plataformas de mídia.
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1. ABORDAGEM HISTÓRICA
1.1 O Escritor, O Adaptador, A História
Ray Douglas Bradbury foi um romancista norte-americano, nascido em 22
de abril de 1922. Era o terceiro filho de Leonard Spaulding Bradbury e Esther Marie
Moberg Bradbury. Em 1934, ele e a família mudaram-se para Los Angeles. Enquanto
adolescente, andava de skate pela cidade, na tentativa de encontrar celebridades.
Dessa forma, acabou conhecendo pessoas como o profissional de efeitos especiais
Ray Harryhausen, e o comediante – na época, radialista – George Burns. Foi Burns
quem pagou seu primeiro cachê como escritor, quando Bradbury colaborou com
uma piada para o famoso programa de rádio Burns & Allen Show (OAKES, 2004,
p. 52).
Durante o ensino médio, Bradbury foi influenciado por duas professoras no
caminho da literatura – Snow Longley Housh lhe ensinou poesia e Jeannet Johnson,
a escrever contos –, às quais ele dedica ampla gratidão ao longo de seus anos como
escritor. Também teve influência de grandes autores de fantasia e ficção científica,
como Edgar Allan Poe e Jules Verne, além de romancistas modernistas como Ernest
Hemingway e John Steinbeck. Não se formou na universidade, porém, nunca deixou
de estudar. Trabalhou como entregador de jornais durante o dia e passava suas
noites na biblioteca, lendo e escrevendo. Sua primeira publicação foi em um fanzine
de ficção científica, o Imagination!, em 1938, com o conto Hollerbochen's
Dilemma (ELLER, 2011, p.18). Apenas em 1943 Bradbury desistiu de vender jornais
e passou a se dedicar exclusivamente à escrita.
Conheceu Marguerite "Maggie" McClure em uma livraria e casou-se com ela
em 1947, mesmo ano da publicação de sua primeira coletânea de contos, intitulada
Dark Carnival. Em 49, teve sua primeira filha, Susan (BLOOM, 2010, p. 159).
Ganhou reconhecimento como escritor de ficção científica apenas em 1950, quando
publicou As Crônicas Marcianas. Mais tarde, em 1953, publicou Fahrenheit 451,
livro aqui estudado.
A primeira versão do livro foi escrita e publicada numa revista de ficção
científica, a Galaxy, em fevereiro de 1951. Apenas após tal periódico é que o autor
foi descoberto pela Ballentines Books e incumbido de alongar sua história e
transformá-la, de fato, num livro. A princípio intitulado The Fireman, por ordens
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editoriais, Bradbury (2010) precisou escolher um título diferente para seu trabalho.
Foi neste momento que a curiosidade surgiu no escritor: a qual temperatura o papel
do livro pega fogo? Para descobrir, ele ligou para o departamento de química da
UCLA e para o departamento de ciências da USC, mas nenhuma das universidades
soube dar a resposta. Finalmente, ligou para o corpo de bombeiros de Los Angeles,
de onde obteve o retorno de que o papel do livro queima a 451 graus Fahrenheit.
Absorveu a informação e inverteu o nome.
Quanto à escrita do livro, Bradbury (Id. Ibid.) explica que precisava de um
escritório para poder trabalhar, uma vez que suas filhas atrapalhavam sua
concentração. Porém, por não ter condições financeiras para tal, acabou usando a
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) como local de trabalho, posto
que na mesma havia um porão com doze máquinas de escrever disponíveis para
locação, no valor de dez centavos de dólar por trinta minutos de uso. Com um gasto
de nove dólares e oitenta centavos, Fahrenheit 451 foi escrito.
O romance é conhecido como uma crítica à censura nazista, em virtude da
época de sua publicação. Bradbury (2010) afirma que sua intenção era apenas
mostrar os rumos que a sociedade estava tomando ao privilegiar a tecnologia em
detrimento dos livros e outros meios antecessores à mesma. O escritor enxergava o
leitor numa posição mais elevada que o resto dos consumidores de mídia, colocava-
o acima da massa. Portanto, sua visão lembra os apocalípticos descritos por Eco
(1993, p. 8), os quais recusavam a modernização e os meios de comunicação de
massa (onde o cinema pode ser encaixado), pois para eles só havia uma forma de
leitura: a do livro impresso, e esta forma estava acima de qualquer outra. Esta
suposição pode ser comprovada a partir da resposta do escritor em uma entrevista,
quando lhe perguntaram o porquê de as pessoas não mais lerem como antigamente:
“há muitos computadores, muitos e-mails e muitos dispositivos. Eles ficam no nosso
caminho e nos impedem de ler. Se não tivéssemos os computadores e os e-mails,
poderíamos passar mais tempo lendo e escrevendo” [Tradução da pesquisadora]1.
Isso vai de encontro a contemporaneidade, que ainda exige uma discussão
a respeito das vantagens e desvantagens da cultura de massa, apesar da mesma já
1 There are too many computers, too many e-mails, and too many devices. They get in our way, and prevent us from reading. If we didn't have the computers and the e-mails, we could spend more time reading and writing.
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se encontrar firmemente enraizada. Os integrados de Eco (ibidem, p. 7), como Lévy
(2000, p.203-204), defendem que
(...) as redes de computadores carregam uma grande quantidade de tecnologias intelectuais que aumentam e modificam a maioria de nossas capacidades cognitivas: memória (...) raciocínio (...) capacidade de representação mental (...) e percepção (..). O domínio dessas tecnologias intelectuais dá uma vantagem considerável aos grupos e aos contextos humanos que as utilizam de maneira adequada.
Ainda Bradbury (2010)2, conforme explica em uma entrevista, não planejou
desde o princípio escrever uma história que sairia, de súbito, apenas de sua cabeça,
com apenas as suas ideias. Conta ele que a história vem de muito antes, quando
havia saído de um restaurante com um amigo e foi parado pela polícia. Perguntaram
o que ele estava fazendo, ao que o mesmo respondeu: “estou colocando um pé à
frente do outro”, o que diz acreditar não ter sido a resposta correta, uma vez que o
policial se exaltou e ficou repetindo que não haviam pedestres na rua. A partir de
sua própria história, o escritor teve a ideia de um conto ao qual deu o nome de O
Pedestre (anteriormente citado como The Fireman), publicado na revista Galaxy
Science Fiction, em fevereiro de 1951 (ELLER, 2011, p. 210). Tal conto narra a
história de um professor fora do exercício da profissão que gosta de caminhar pelas
ruas durante à noite e, numa dessas caminhadas, é preso, pois não estava
assistindo à televisão como todos os outros moradores.
Num diálogo intertextual, Clarisse conta, em determinada parte do enredo,
sobre o dia em que seu tio foi preso por estar caminhando, de forma a remeter ao
conto que originou o livro. Bradbury diz que o policial é o responsável pela escrita
de Fahrenheit 451. Ainda a garota nos leva à questão ideológica de forma clara: a
entrevista supracitada, Bradbury (2010) diz que “Clarisse McLellan é Ray Bradbury:
o garoto que se apaixonou pela vida. E Clarisse é a essência da vida e a essência
do amor”3, uma garota que inspira e ensina. Isso mostra que o autor escreveu a
personagem pensando em suas posições e opiniões, como se ela o representasse
ali dentro da história.
O autor, conhecido como autor de obras visionárias, teve muitos
pseudônimos, usados no intuito de, no início de sua carreira, esconder o fato de que
2 Disponível em: https://www.arts.gov/video/nea-big-read-meet-ray-bradbury 3 Clarisse McLellan is Ray Bradbury, the boy who fell in love with life. And Clarisse is the essence of life and the essence of love. (TRADUÇÃO NOSSA)
13
era ele quem escrevia todas as histórias de sua fanzine, Futuria Fantasia. Alguns
deles eram: Doug Rogers, Guy Amory, E. Cunningham, Brian Eldred, D. Lerium
Tremaine, D.R.Banet, Brett Sterling, etc. Bradbury faleceu aos 91 anos, em Los
Angeles, em decorrência de uma longa doença, deixando filhas, um legado de livros,
prêmios e uma adaptação cinematográfica de sucesso de um de seus livros.
Do outro lado, dez anos mais novo que o escritor, temos o cineasta François
Truffaut, nascido na capital francesa, no dia 6 de fevereiro. Foi rejeitado pela mãe e
nunca chegou a conhecer o pai, de forma que foi criado pelos avós, com quem
aprendeu a gostar da leitura e da música. Com a morte de sua avó, voltou a viver
com a mãe, a qual havia se casado com o homem que lhe daria o sobrenome que
marcou o cinema francês. A paixão pelo cinema surgiria ainda cedo, quando matava
aulas para assistir filmes (tal como Antoine Doinel), e seria desenvolvida mais à
frente com a ajuda de seu mentor, o grande crítico de cinema, André Bazin. Foi Bazin
quem o ajudou (dentre muitas coisas) a entrar para a redação da revista Cahiers du
Cinéma, a qual lhe rendeu artigos que fariam com que o diretor fosse por vezes
criticado por suas ideias esquerdistas (2016).
Truffaut sempre foi conhecido por seus filmes em preto e branco, dirigidos e
filmados na língua francesa. Foi um dos fundadores da nouvelle vague e, como todo
filme deste movimento, retratava o amor ou alguma parte específica da vida de
alguém. Acreditava que fazer um filme é uma forma de deixar a vida melhor, “(...)
organizá-la à sua maneira, é prolongar as brincadeiras de infância, construir um
objeto que é ao mesmo tempo um brinquedo inédito e um vaso onde disporemos,
como se se tratasse de um buquê de flores as ideias que temos em determinado
momento ou de forma permanente” (TRUFFAUT, 2005, p. 328).
Utilizando um de seus maiores sucessos, Les quatre cents coups (no
Brasil, Os Incompreendidos), o primeiro da série de filmes de seu Alter ego Antoine
Doinel, é possível criar uma relação entre o cineasta e o autor de Fahrenheit 451,
uma vez que ambos partem de histórias pré-existentes para desenvolver outras. No
sucesso de Truffaut, o garoto de 14 anos rebela-se contra as imposições de sua
escola e deixa de ir às aulas para poder ir ao cinema. A princípio, Truffaut, assim
como Bradbury, não tinha o roteiro completo em sua cabeça e nem mesmo a ideia
de fazer um longa-metragem a partir de tal história. O primeiro vestígio de Os
Incompreendidos surgiu de um curta-metragem de vinte minutos que o cineasta
14
havia feito, chamado Antoine runs away, o qual discorre sobre um menino que não
vai à aula e, por não ter nenhum bilhete que sirva de desculpa por sua falta, inventa
que sua mãe morreu. Não pode voltar para casa, pois haviam descoberto sua
mentira.
Para o desenvolvimento do roteiro na intenção de torná-lo um longa, Truffaut
contou com a ajuda do roteirista Marcel Moussy. A ideia de aumentar a história do
jovem Antoine
Foi porque eu estava decepcionado com Os Pivetes, ou, pelo menos, por sua concisão (...) Eu tinha passado a rejeitar este tipo de filme feito a partir de vários esquetes ou esboços. Então, eu preferi deixar Os Pivetes como um curta e me aventurar com um longa-metragem através da expansão da história de Antoine runs away. Dentre as cinco ou seis histórias que eu já tinha esboçado, está foi a minha preferida, e ela tornou-se “Os Incompreendidos”. (TRUFFAUT, 1984) [Tradução da pesquisadora]4
A intenção do diretor, após Os Incompreendidos, era realizar outro filme
com crianças como foco. Porém, no começo dos anos 60, chegou ao livro de
Bradbury por recomendação do amigo e produtor Raoul Lévy. Como também
quisera realizar um filme em que os livros eram os heróis, sendo os personagens de
carne e osso secundários, obviamente o fascínio foi instantâneo e, logo em seguida,
em 1962, viajou para Nova Iorque para procurar o autor, na intenção de comprar os
direitos do livro e conversar sobre uma adaptação do mesmo.
Classificado como um diretor da chamada “esquerda cinematográfica”, a
qual utiliza dos filmes para questionar as ideias do governo, Truffaut debatia
questões ideológicas em seus artigos para a Cahiers du Cinéma, e seu interesse
em discutir ideologia fica bastante claro em Fahrenheit 451. Tal filme é muitas vezes
visto como um deslize dentre as várias obras do diretor, justamente por que não era
parte de seu estilo utilizar cores, muito menos inovar com ficção científica. O mesmo
responde que não havia, com isso, mudado de estilo, mas, sim, de assunto. A
começar que Truffaut desprezava filmes e livros do gênero, como pode ser visto em
muitos de seus artigos, defendendo que O monstro do ártico (The thing from
another world, 1951), de Christian Nyby, é “o único filme de ficção científica
4 It was because I was disappointed by “Les Mistons,” or at least by its brevity (...) I had come to reject
the sort of film made up of several skits or sketches. So I preferred to leave “Les Mistons” as a short
and to take my chances with a full-length film by spinning out the story of “Antoine Runs Away.” Of the
five or six stories I had already outlined, this was my favorite, and it became “The 400 Blows.”
15
realmente inteligente” (DIXON, 1993, p. 79). Em relação ao gênero, o diretor explica
que ficção científica é algo muito difícil de executar e, muitas vezes, há o risco de
ser ridículo.
Não conseguiu realizar as gravações na França, uma vez que Fahrenheit
451 era algo muito grande para o que o cinema francês podia oferecer, na época. O
gasto financeiro com o filme seria muito alto, algo que não acontecia com o cinema
francês: ninguém colocava mais de cento e vinte milhões em um filme de arte,
enquanto que Fahrenheit 451 custaria setecentos e cinquenta. Devido a isso, foi
preciso deslocar a produção do filme para a Inglaterra, onde havia estrutura, dinheiro
e mão de obra especializada para um trabalho de tal porte. Até mesmo bombeiros
reais fizeram parte dos bastidores, já que muitas cenas foram feitas com fogo, o que
acabou causando alguns pequenos incêndios durante as gravações. Muitos técnicos
da equipe dos filmes de James Bond foram utilizados em Fahrenheit 451, apesar
de serem obras bastante diferentes no sentido de que as séries de Bond são
consideradas parte do mainstream, enquanto Truffaut se encaixa no cinema cult.
Contudo, apesar de possuir estrutura e apoio melhores na Inglaterra, o país
acabou causando grande desconforto ao diretor. Técnicos e atores britânicos eram
obcecados pela fidelidade entre as obras, o que fez com que Truffaut tivesse
problemas em lidar com os mesmos. Este tipo de situação já foi discutido por Diniz
(2005, p. 13-14), quando diz que os críticos vêm buscando fidelidade entre o trabalho
literário e o filme adaptado, de modo a observar se o último foi capaz de absorver
todos os aspectos da história de partida. A adaptação era analisada de forma a
observar se o cineasta usou elementos cinematográficos que substituíssem
eficientemente os literários. Isso quer dizer que as adaptações fílmicas estão
situadas num redemoinho de referências e transformações intertextuais, de textos que geram outros textos, num processo infinito de reciclagem, transformação, transmutação, sem qualquer ponto de origem, necessariamente definido.
Ainda neste sentido, algo pior aconteceu com Oskar Werner, quem
interpretava o personagem principal, pois o ator tinha uma visão já pré-definida sobre
Montag para o estúdio, o que não agradou o diretor. Ao não aceitar as ideias de
Werner, a relação entre ambos acabou ficando desconfortável e Truffaut passou a
dirigir o ator por intermédio de um dublê. Ao fim das filmagens, não mais se falavam
(GUIMARÃES, 2014). Caughie explica que a razão disso se dá porque
16
os atores também encenam (en-act) e incorporam (en-body) sentimentos como se fossem reais, de uma forma que se tornam reais para eles e para nós. (...) Para incorporar sentimentos, os atores aprendem técnicas de relaxamento físico, jogos de risco e acreditam minimizar as barreiras entre um sentimento e a sua expressão: a expressão de uma verdade que é mantida – como que milagrosamente, apesar de toda pretensão – sempre lá dentro do ator. (2000, p. 119)
Isso mostra uma das discussões mais comuns no campo da tradução, algo
bastante debatido por Arrojo (1986, p. 22): ao transpor um texto de uma linguagem
(verbal ou não-verbal, independentemente do suporte) para outra, há uma
impossibilidade na questão da fidelidade justamente porque a pessoa que recebe o
primeiro texto não consegue manter-se a uma distância em que a mesma se anula
e aceita o que lê exatamente da forma como o autor pensou; existe um processo
que não permite que a totalidade do trabalho de partida seja atingida, pois ao
transpor uma história para outra linguagem seria revelado, “inevitavelmente, uma
leitura, uma interpretação desse texto que, por sua vez, será, sempre, apenas lido e
interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado”. Assim, os textos passam
a ser vistos como um palimpsesto, em que se apaga e se escreve novamente, em
diferentes épocas, culturas e lugares, dando espaço a outra leitura da mesma
história (ibidem, p.24).
Ainda na questão das releituras, a adaptação cinematográfica de Truffaut é
muito mais conhecida que o livro de Ray Bradbury no qual o filme se baseou. O fato
de que, ao se falar de Fahrenheit 451, o filme é o primeiro que vem à mente
demonstra que a imagem cinematográfica tem a capacidade de se inserir com mais
facilidade na memória coletiva das massas. Isso talvez aconteça com Fahrenheit
451 porque o tema da história é a queima de livros, a qual é tão forte que consegue
falar por si. Assim, quando a câmera foca nos livros sendo incendiados, é possível
identificar os exemplares que ali estão, o que faz com que o telespectador consiga
criar uma ligação com aquelas obras que a ele são conhecidas e reais – mesmo que
sejam apenas compartilhadas na memória coletiva. Ali, entende-se que os livros não
são somente parte do plot, mas são, em especial, os personagens principais deste.
Além disso, Truffaut teve uma preocupação com os livros a serem usados
nas gravações, algo que não ocorreu no livro de Bradbury claramente porque não
era relevante para aquela experiência de leitura. Já no filme, a escolha dos livros
que a câmera captava sendo queimados foi importante. Autores como Jacques
17
Audiberti e Jean Genet foram inseridos no filme graças ao amor de Truffaut pelos
mesmos, ao que o diretor diz que se fosse para o acampamento dos homens-livros,
decoraria Marie Dubois, de Audiberti. Além destes, o diretor buscou edições
antigas, em inglês, de Le Livre de Demain, da Arthème Fayard, porque considerou
que muitas pessoas se emocionam com a obra, devido às suas xilogravuras e à
lembrança de antes da guerra. Com isso, Truffaut consegue criar uma conexão do
telespectador com o filme, fazendo com que uma memória seja formada na mente
daquele: cria uma lembrança sobre uma sociedade que vive de esquecimentos. Ao
mesmo tempo, posiciona-se ideologicamente ao mostrar que também teve a
intenção de expor a guerra, como Bradbury, em seu filme.
Truffaut ainda explica que foi porque Bradbury criou a queima de livros em
sua história que ele pôde se divertir tanto nas filmagens dos incêndios, além de
esclarecer que considera o escritor dono de, pelo menos, metade de seu filme:
Na verdade, este filme, como todos que são tirados de um bom livro, pertence parcialmente ao seu autor, Ray Bradbury. Foi ele quem inventou as queimas de livro que eu estou me divertindo tanto em filmar e para as quais eu queria cor. Uma velha senhora que se deixa queimar (...) o herói, que torra seu capitão; são coisas que eu gosto de ver na tela e que eu gosto de filmar, mas que minha imaginação, muito presa ao real, não conseguiria conceber.5 (TRUFFAUT, 1974, p. 157, apud FUMARONI, 2010) [Tradução da pesquisadora]
Neste sentido, Truffaut acaba por defender um dos pontos discutidos nos estudos
pós-modernos da tradução: a questão da coautoria. Para alguns teóricos, a tradução
é, de certa forma, uma nova criação. Portanto, nessa nova forma de representar a
criação de partida há uma necessidade de que o tradutor use o maior conhecimento,
vivência e sensibilidade possíveis ao tema no qual estabelece seu trabalho para que,
só assim, consiga transpô-lo. O rastro que o tradutor deixa é permanente, por mais
que a coautoria não seja pretendida. Portanto, é possível aceitar que a adaptação
cinematográfica tem o próprio escritor do livro como coautor, assim como assume o
cineasta.
Ainda, os incêndios foram o maior gasto da produção, porém, ao mesmo
tempo, foram talvez a parte mais importante da história, uma vez que os livros
5 en fait, ce film, comme tous ceux tirés d'un bon livre, appartient pour moitié à son auteur, Ray Bradbury. C'est lui qui a inventé ces incendies de livres que vais avoir tant de plaisir à filmer e pour lesquels j'ai voulu la couleur. Une vieille dame qui se laisse brûler (...) le héros que “grille” son capitaine, voilà des chose que j'aime voir à l'écran et que j'aime à filmer, mais que mon imagination trop lieé au réel ne pourrait concevoir.
18
representavam, de fato, personagens importantíssimos do enredo, eram eles que se
martirizavam para que toda uma sociedade pudesse continuar defendendo sua
ideologia. Segundo Truffaut, queimar livros foi difícil e, ao mesmo tempo, fascinante:
difícil porque havia certa resistência à queima de alguns e os que ele realmente
queria queimar, era preciso que houvesse várias cópias; fascinante porque algumas
páginas desgrudadas na queima enrolavam-se como se fossem conchas, o que era
algo deveras bonito. Além disso, nas últimas cenas de livros queimados, é possível
ler algumas linhas enquanto as páginas inflamam, o que faz com que o cinema
acabe trazendo uma aproximação da literatura.
Truffaut, o “cineasta apaixonado”, é famoso por fazer filmes que
homenageiam diferentes partes da arte: O Último Metrô (Le Denier Metro, 1980)
mostra seu amor ao teatro; A Noite Americana (La nuit américaine, 1973), ao
cinema; Fahrenheit 451, à literatura. Apesar de ter vivido poucos 52 anos, deixou
filmes que se configuram como marcos no cinema francês, até mesmo pelo fato de
ter sido um dos fundadores da nouvelle vague (GALVÃO, 2008, p. 07). Morreu em
21 de outubro de 1984, em decorrência de um câncer no cérebro. A doença foi
mantida em segredo, porém, pouco antes de seu falecimento, Madeleine
Morgenstern (ex-esposa do diretor) contou ao cineasta Claude de Givray o que
estava acontecendo, uma vez que o mesmo havia sido chamado para dirigir um filme
televisivo e estava tentado a não aceitar por ter, previamente, um compromisso em
relação a roteiro com Truffaut. À indecisão de Givray, Madeleine advertiu: “Claude,
você não deveria recusar nenhum trabalho. François tem câncer em fase terminal”
(BAECQUE; TOUBIANA, 1999, p. 384-385) [Tradução da pesquisadora]6.
Com a apresentação dos realizadores de ambas as obras feita, é possível,
agora, dar um enfoque nos momentos vividos pelos Estados Unidos na época de
publicação do livro, considerando, também, a posição de Bradbury em sua escrita.
Igualmente, o famigerado maio de 68 e, de modo óbvio, os eventos e manifestações
que se desenvolviam ao lançamento do filme – já ocorrendo, portanto, antes da
revolta estudantil francesa – serão tratados. Tal discussão servirá de base para
compreender a questão ideológica no próximo capítulo discutida.
6 Claude, you shouldn’t turn down any work. François has terminal cancer.
19
1.2 Os Estados Unidos à época da escrita do livro
O momento vivido pelos Estados Unidos após o fim da Segunda Guerra
Mundial entra em contraste com os países participantes da mesma e tem relação
profunda com os pontos principais de Fahrenheit 451. O conto Bright Phoenix foi
o precursor de O Pedestre e foi escrito em 1947, dois anos após o fim da guerra.
Nele já há alguns questionamentos que poderiam ser frutos do momento ali vivido
pelo escritor.
Após a guerra, os Estados Unidos passaram por um período próspero e de
paz, pois foi tal conflito que acabou com os problemas decorrentes da crise
econômica de 1929. Foi lá que milhares de pessoas conseguiram arrumar emprego,
o que causou aumento da economia e colocou o país no topo das nações que viviam
em alto padrão. O governo utilizou de muitas estratégias e planos para o cidadão
norte-americano, de modo que aumentou a previdência social e o salário mínimo,
melhorou o sistema educacional e construiu casas para aqueles de renda menor.
Assim, o pós-guerra ainda fez com que o país ficasse nas mãos de grandes
corporações, as quais controlavam a sociedade e a economia norte-americana de
forma conservadora. Ainda nesta época, surgiram os movimentos por direitos civis,
que buscavam igualdade social especialmente dos negros, os quais passavam pela
segregação racial existente nos Estados Unidos, que só teve fim em 1964.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, também se deu início à Guerra Fria,
na qual o estado norte-americano disputava preeminência política, militar e
econômica com a União Soviética, que tinha por objetivo implantar o socialismo em
outras nações. O constante medo em relação ao comunismo fez com que os Estados
Unidos acabassem por entrar em vários outros conflitos ainda na década de 1950,
o que ainda pode ser explicado pelo fato de que o país acreditava que deveria estar
em estado de guerra permanente para ter sua economia estabilizada (KARNAL et
al., 2011, p. 14).
Ainda de grande importância foram as bombas atômicas, as quais atuaram
como mais um ato militar da Segunda Guerra, o qual colocou um item deveras
perigoso nas relações internacionais. Além disso, muitos refugiados (judeus,
socialistas, deficientes físicos, ciganos, lésbicas, gays e outros) perseguidos pelos
nazistas não encontraram exílio nos Estados Unidos nem em outros países aliados
a este, ao mesmo tempo em que o país ignorava as evidências do holocausto e os
20
constantes pedidos dos militantes para que a imigração fosse facilitada. Apenas
quem fosse de alguma forma conveniente ao país, conseguia refúgio – como foi o
caso de Albert Einstein, que foi para os Estados Unidos para trabalhar como
professor universitário. Com isso, Karnal et al. surgem com a pergunta que nos
remete ao próprio livro de Bradbury: se os Estados Unidos estavam, de fato, em
“uma guerra genuína contra o fascismo, por que as vítimas principais do nazismo
não tiveram prioridade na estratégia militar dos aliados?” (ibidem, p. 186).
Bradbury, enquanto cidadão norte-americano vivendo tal momento, insere
sua posição ideológica ao escrever Fahrenheit 451 – ou mesmo os contos que
deram início ao livro. Durante a época de escrita do mesmo, o senador do estado de
Wisconsin era Joseph McCarthy. Ele tornou-se conhecido por ter sido o governante
que iniciou investigações hostis para descobrir todos que eram ou simpatizassem
com os comunistas, independentemente da profissão ou cargo dos inquiridos. A este
período deu-se o nome de “macartismo” ou, ainda, “Caça às Bruxas”, como
referência ao tempo em que mulheres acusadas de praticar magia negra eram
queimadas durante a Idade Média. Como a censura era grande e a perseguição
ainda maior, as atitudes de McCarthy acabaram sendo vistas como uma mancha na
história da democracia dos Estados Unidos.
Em relação a isso, Bradbury explica sua intenção com Fahrenheit 451
Durante o reinado de terror de McCarthy, eu escrevi um romance chamado Fahrenheit 451, o qual era um ataque direto ao tipo de força destruidora de pensamentos que ele (McCarthy) representada no mundo. Ainda assim, poucas pessoas me atacaram por escrever um romance não-macartista. Eu fui capaz de fazer propaganda sem ser apedrejado ou agredido. Mais tarde, os russos piratearam uma edição deste mesmo livro, o qual eu ouvi que vendeu muito bem na Rússia. Obviamente, por ser ficção científica, eles não entenderam a mensagem de todos os tipos de tirania em qualquer lugar do mundo, a qualquer momento, de direita, esquerda ou centro. Então, eu fui uma força subversiva, caso você prefira, na URSS, ao mesmo tempo em que fui igualmente subversivo aqui. (BRADBURY apud AGGELIS, 2003, p. 13) [Tradução da pesquisadora]7
7 During the McCarthy reign of terror, I wrote a novel titled Fahrenheit 451 which was a direct attack on the kind of thought-destroying force he represented in the world. Yet few people attacked me for writing an anti-McCarthy novel. I was able to propangadize without getting myself stoned or pummeled. Later, the Russians pirated an edition of this same book, which I hear has sold very well in Russia. Obviously, because it is science-fiction, they haven’t gotten the message that I means all kinds of tyrannies anywhere in the world at any time, right, left or middle. So I have been a subversive force, if you like, in the USSR, while being equally subversive here.
21
A linguagem da ficção científica possibilitou que acontecesse com Bradbury o que
os compositores brasileiros da época da ditadura faziam: o uso de metáforas,
lugares indefinidos e elementos criados foram capazes de despistar a censura e não
se configurar enquanto problema para o governo.
Assim, pode-se perceber que, apesar da Segunda Guerra Mundial ter sido
o que possibilitou a reorganização dos Estados Unidos, ela também trouxe sintomas
do que é visto no mundo contemporâneo, que é a alienação – proposital ou não –
criada pelo governo, que faz com que os cidadãos fechem os olhos para o que está,
de fato, acontecendo. A crítica de Bradbury se faz clara no livro em momentos em
que a televisão é privilegiada e a guerra é comentada como algo que todos fazem
de conta que não está acontecendo.
Para estabelecer sua crítica, o escritor coloca o capitão Beatty dizendo, de
forma bastante submissa para uns e irônica para outros, o trecho a seguir:
Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? Organizar, tornar a organizar e superorganizar super-superesportes. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão pra cá, pra lá, a toda parte, a parte alguma. Os refugiados da gasolina. Cidades se tornam motéis, as populações em surtos nômades, de um lugar para o outro, acompanhando as fases da lua, vivendo esta noite no quarto onde você dormiu hoje ao meio-dia e eu a noite passada. (...) Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever! Eles o fizeram. As revistas se tornaram uma mistura insossa. Os livros, assim diziam os malditos críticos esnobes, eram água de louça suja. Não admira que parassem de ser vendidos, disseram os críticos. Mas o público, sabendo o que queria, com a cabeça no ar, deixou que as histórias em quadrinhos sobrevivessem. E as revistas de sexo em 3D, é claro. Aí está, Montag. A coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus. Hoje, graças a elas, você pode ficar o tempo todo feliz, você pode ler os quadrinhos, as boas e velhas confissões ou os periódicos profissionais. (BRADBURY, 2012, p. 80-81)
Bradbury usa seus personagens para expressar uma opinião própria a respeito do
período em que ele mesmo vivia. Até mesmo no que tange à tecnologia, sua crítica
é clara: a guerra acabou com vidas, culturas e nações, mas causou o boom
tecnológico norte-americano, o que auxiliou na economia, colocando os Estados
Unidos como potência mundial. O fato de chamarem a Segunda Guerra Mundial de
“boa guerra” deixa claro que é preferível se fingir de cego e surdo, pois, de fato, é
mais fácil ignorar do que revolucionar.
22
1.3 Fahrenheit de 66, Maio de 68
No ano em que o filme foi realizado, a economia sofria uma forte recessão,
que abalou a situação econômica mundial, o que acaba se configurando como uma
grande contradição, uma vez que a recuperação do pós-guerra havia reestabelecido
os bens de consumo duráveis de quase toda a Europa. Na França, a política era
autoritária e reacionária. Ao mesmo tempo, o país foi forçado a orientar a economia
em direção à Europa, uma vez que a mesma estava crescendo em passo acelerado
após a Guerra da Argélia. Com isso, novas partes da indústria eram abertas,
aumentando a necessidade de trabalhadores empregados. Essa abertura causou
um crescimento, também, na esfera educacional, uma vez que técnicos e formados
passaram a ser requeridos com urgência. Na época do filme, o número de
estudantes havia dobrado e, com isso, as universidades ficavam cada vez mais
lotadas, menos bem equipadas e com uma direção com valores desatualizados.
Ainda em 66, a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT)
une-se à Confederação Geral do Trabalho (CGT) na luta de classes. Os
trabalhadores passavam a sentir os primeiros sinais da recessão: apesar do auge
econômico, o salário ainda era baixo e, com o descontentamento e a frustração, o
desemprego aumentava, juntamente com a carga de trabalho. Assim, até a
derradeira greve geral, houve uma junção de estudantes com trabalhadores, ambos
buscando reformas em seus respectivos setores de atuação (WOODS, 2008).
Até mesmo o cinema foi atingido no ano de 1968. A cinemateca francesa
surgiu em 1936 e servia para mostrar e divulgar as obras cinematográficas do
passado, além de colecionar elementos relacionados ao cinema, como câmeras,
figurinos, cartazes, entre outros. Em fevereiro, o ministro da cultura, André Malraux,
demitiu Henry Langlois, o qual era fundador do lugar. Isso fez com que a antiga
equipe da Cahiers du Cinema e outros diretores se reunissem para ir às ruas.
Truffaut estava entre eles (BAECQUE; TOUBIANA, 1999, p. 276).
23
A insatisfação dos estudantes para com a precariedade das universidades,
bem como o tirano sistema educacional, causou os primeiros sinais de revolta. Os
estudantes deram início ao conflito se manifestando contra uma proibição de
homens e mulheres nos mesmo alojamentos, de forma que, assim, conseguiam
buscar mudanças sociais e políticas. Após isso, uma sucessão de conflitos passou
a acontecer: com o fechamento da Universidade de Nanterre, a agitação chegou a
Sorbonne; após, os estudantes passaram a pedir pela renúncia do presidente
Charles de Gaulle. Como houve violência exacerbada por parte da polícia nas
manifestações, o Partido Comunista Francês também passou a apoiar os
universitários, mostrando-se contra as reações do governo. Os trabalhadores, já
insatisfeitos, igualmente uniram-se às manifestações ao cruzar os braços e instaurar
uma greve geral, no dia 13 de maio de 1968.
O maio de 68 ficou marcado na história como o mês em que os franceses
(além de vários outros países do mundo, uma vez que diferentes conflitos
aconteciam ao redor do globo) rebelaram-se para que suas vozes fossem ouvidas.
Os movimentos causaram diversas mudanças na parte ocidental do mundo, bem
como melhora da educação e das condições de vidas, como de fato havia sido
solicitado. Porém, politicamente não teve sucesso, uma vez que o então presidente
organizou eleições para junho e teve como vencedor seus aliados.
Com esse contexto, é possível entender as motivações de Truffaut ao
realizar uma adaptação cinematográfica como Fahrenheit 451. Bradbury, quando
escreveu seu livro, passava por um momento histórico em que a sociedade fingia
não ver nada, e é justamente isso que ele expõe na história; contrariamente, o
cineasta estava numa nação que tinha olhos bem abertos e se mantinha em busca
de seus direitos, o que pode ser personificado por Montag, a face da revolução
Fonte: https://palavrasdecinema.wordpress.com (2015)
24
dentro daquela sociedade. Montag é cada estudante e cada trabalhador que quis
ver e viver em um lugar mais justo, onde o cidadão não é enganado ou manipulado.
25
2. FAHRENHEIT 451: ANÁLISE EM SEUS DIFERENTES SUPORTES
Atualmente, a possibilidade de se ler um texto a partir de diferentes suportes
vem aumentando, uma vez que a tecnologia possibilita a promoção de outras
modalidades textuais. As múltiplas formas de linguagem permitem o intercâmbio de
uma mesma história em diferentes mídias: a HQ The Walking Dead transformou-se
em série de televisão e é recordista em audiência, poemas audiovisuais e audiolivros
trazem uma nova visão de literatura, e histórias saem de um suporte e adaptam-se
a outros rapidamente. Portanto, ao analisar um livro e um filme deve-se ter em mente
que o cinema não é apenas um mero desdobramento do texto de partida, mas possui
uma linguagem própria, a qual é diferente da verbal. Assim, em tal análise, adentra-
se dois mundos de significações múltiplas, o que não impede que a adaptação faça
representações narratológicas de forma distinta do texto de partida, porém tão
expressivas quanto.
Segundo Hutcheon (2011, p. 30), uma adaptação pode ser “uma
transposição”, “um ato criativo e interpretativo” e “um engajamento intertextual”.
Assim, “é uma derivação que não é derivativa” e, principalmente, “uma segunda obra
que não é secundária – ela é sua própria coisa palimpséstica”. Então, o que deve
ser entendido é que atualmente muito pode ser visto como adaptação. Com isso, “no
trabalho da imaginação humana, a adaptação é a norma, não a exceção” (ibidem, p.
170).
O que ainda pode ser percebido, é a relação entre adaptação e ideologia na
formação do leitor: a adaptação é responsável pela transição de uma história por
outros suportes que não apenas o papel, de forma a levar a literatura para as telas
(do computador, do cinema, da televisão...), o que possibilita que a mesma seja
encontrada e apreciada de forma mais fácil e condizente com o mundo
contemporâneo, cercado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, a formação discursiva
– ou seja, a ideologia que controla os discursos de uma sociedade – de um sujeito
é capaz de moldar seus gostos e sua produção discursiva. Um mesmo texto pode
ser lido de formas diferentes por povos diferentes em épocas diferentes, devido ao
condicionamento cultural, social e, primordialmente, ideológico das sociedades nas
quais tais indivíduos encontram-se. A ideologia possibilita a leitura, assim como a
leitura possibilita as escolhas ideológicas, sejam elas resistentes ou passivas.
26
A adaptação traz consigo a possibilidade de ler uma história a partir de outro
formato, de modo a inserir na literatura um novo entendimento à palavra “leitura”.
Com a evolução e a tecnologia, a literatura viu-se obrigada a se modernizar e, com
isso, os livros passaram do impresso para o digital. Da mesma maneira, o mundo
digital passou a fazer sua própria forma de literatura. A partir desta ideia, é possível
entender por que "contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” e por que
esta arte “se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela perde-se
porque ninguém mais fia ou tece enquanto as ouve” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Isso
quer dizer que é necessário que haja meios pelos quais a literatura seja difundida,
pois enquanto houver quem a dissemine, ela continuará viva. O espaço digital
permite que a leitura continue ativa ao adicionar à definição desta uma gama maior
de opções.
Naturalmente, é necessário que se estabeleça o que será entendido como
leitura, para que não haja confusão nem generalização da mesma. Ler, na maioria
das vezes, é relacionado ao papel impresso, sem considerar as várias outras
práticas de leitura que as tecnologias contemporâneas têm inserido no cotidiano
coletivo. Hoje em dia, é possível entender que a leitura não faz parte apenas de um
meio. É leitura, segundo Martins (1994), a maneira de interpretar um conjunto de
informações, bem como “a decodificação de dados a partir de determinado suporte”,
independente de qual seja. Assim como as histórias e a tecnologia, a definição de
leitura foi mais uma dentre as várias perspectivas que mudaram em vinte anos. Ler
exige um processo mental, uma atuação significativa de quem recebe as
informações, de forma a criar uma relação entre o que alguém escreveu e o que
alguém está recebendo. Assim, utiliza-se da tecnologia e, aqui, do cinema para
proporcionar artifícios que possibilitam e induzem o interesse pela leitura.
A mudança de definição no termo “leitura” pode causar rebuliço e oposição
por parte de estudiosos da língua, os quais, em sua maioria, veem a questão da
tradução de textos literários como uma destruição e descaracterização (ARROJO,
1986, p. 25-26) do que eles consideram ser o texto superior. Para estes estudiosos,
“a tradução é uma atividade essencialmente inferior, porque falha em capturar a
‘alma’ ou o ‘espírito’ do texto literário ou poético” (ibidem, p. 27).
A partir disso, retomando Benjamin (1994, p. 166), entende-se que uma obra
de arte é e sempre foi passível de reprodução. Acaba-se, então, caindo na questão
27
do melhor e do pior, do maior e do menor, e, justamente por isso, nota-se que é
impossível que haja uma hierarquia entre as artes ou entre as histórias contadas,
visto que uma decorre da outra. Nesta ideia de hierarquia, tem-se Stam (2006, p.
21), que cita os constantes preconceitos sofridos pelas adaptações, como, por
exemplo, a questão da antiguidade: a obra mais antiga é frequentemente
considerada melhor que a mais recente; a ideia provém de que não é possível que
haja duas obras igualmente boas, portanto, o cinema significa uma perda da
literatura. Além disso, há o preconceito em relação às artes visuais (iconofobia), o
qual anda lado a lado com a supervalorização dos textos escritos (logofilia); e o
desgosto pela incorporação, ou seja, pela ideia de fazer com que um texto seja parte
de outros textos.
Devido a tais preconceitos, cai-se na constante cobrança por fidelidade da
adaptação ao texto de partida. Claramente, ao transpor um texto de uma mídia
para outra, é impossível que a história seja contada exatamente da mesma forma,
uma vez que cada meio possui suas limitações e peculiaridades. Com isso, o termo
fidelidade
de maneira geral usando os mais variados disfarces retóricos, ainda representa um elemento de valor presente nas análises de adaptações e nos comentários que se pode colher entre o público espectador de maneira geral. Mas parece-me evidente que a noção de “fidelidade” como um parâmetro em estudos de adaptação não se sustenta. (HATTNHER, 2013, p. 37)
Assim, é possível contar/mostrar essencialmente uma história sem
prender-se a um só meio, por mais que, no meio do caminho, determinados pontos
precisem ser ajustados ao suporte utilizado. Portanto, discutir fidelidade não é nem
deve ser um ponto de importância, uma vez que o próprio termo “adaptação” faz
referência ao ato de acomodar-se, ajustar-se. O desejo de fidelidade existe, sim,
porém a mesma é impossível, não só devido à “presença inevitável de mediações
de todos os tipos na constituição das adaptações, mas devido à instabilidade dos
significados produzidos em quaisquer textos por meio de múltiplas interpretações”
(Id. Ibid.).
De extrema importância, ainda, o que pode ser pensado é justamente no
enfoque diferente dado à palavra “leitura”, o qual é reflexo de uma ideologia presente
28
em determinado grupo social. Segundo Williams (1985, p. 152-157, apud STAM,
2003, p. 155), é possível entender ideologia a partir de três sentidos, sendo eles
(1) um sistema de crenças características de uma determinada classe ou grupo; (2) um sistema de crenças ilusórias – falsas ideias ou falsa consciência – que podem ser contrastadas com o conhecimento verdadeiro ou científico; e (3) o processo geral dos sentidos e ideias.
Já Althusser (1970 apud BRANDÃO, 2004, p. 24) explica que “a ideologia
representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de
existência”, não sendo o elemento-chave na reprodução/transformação das relações
em uma formação social.
Sabendo que a distopia de Ray Bradbury conta a história de uma civilização
comandada por um governo totalitário, que tinha como prioridade manter os
cidadãos alienados, focados apenas em suas novelas e carros de alta velocidade,
pode-se, a princípio, analisar ideologicamente o papel deste governo e o resultado
de suas ações nesta sociedade. O romance retrata um tema de absoluta importância
da época em que foi escrito: de 1953, o livro foi publicado alguns anos após o fim do
Império Nazista, em que
se queimavam livros, não só judaicos, mas aqueles contrários à ideologia [do Nazismo]. A Biblioteca de Alexandria foi queimada na Antiguidade, e na Idade Média também se queimaram livros, e bibliotecas quase foram extintas. Existiram obras que foram destruídas e não sabemos absolutamente nada. Esse perigo é constante ao longo da humanidade. A censura é uma das primeiras coisas que se faz em uma sociedade fascista. (BASTOS, 2013, apud CUNHA, 2013)
De forma consciente ou não, Bradbury teve influência externa do momento
em que ele e o resto da sociedade estavam vivendo quando escreveu Fahrenheit
451, de modo que expôs um mundo sem livros (portanto, sem desenvolvimento do
pensamento crítico) e de total controle do governo – como ocorreu até o fim da
Segunda Guerra Mundial, previamente discutido. E suas ideias vinham desde antes
mesmo do conto O Pedestre, pois este foi também resultado de um pequeno
resquício do que daria vida ao livro aqui estudado: o conto Bright Phoenix, o qual
foi escrito em 1947, mas publicado apenas em 1963. A história trata da queima de
livros enquanto experimento social, uma vez que eles são considerados perigosos.
O chefe deste conto, assim como Beatty, também possui uma explicação para tudo:
“Este é um experimento extraordinário. Uma cidade-teste. Se a queima funcionar
29
aqui, ela funcionará em qualquer lugar. Nós não queimamos tudo, não. Você reparou
que meus homens limparam apenas determinadas prateleiras e categorias?”8.
Na história, tal como em Fahrenheit 451, há ainda várias alusões a outros
nomes da literatura, como as primeiras linhas de The Passionate Shepherd To His
Love, de Christopher Marlowe; o famoso “Call me Ishmael”, do romance Moby Dick;
uma citação do poema The Tyger, de William Blake e outra de To Autumn, de John
Keats. A história ainda mostra que ninguém está preocupado com a queima e explica
tal atitude quando um chama o outro pelo nome de algum escritor, dando a entender
o que Fahrenheit 451 propõe ao fim do enredo: a transformação das pessoas em
livros e, assim, uma forma de manutenção da literatura.
Isso retoma a questão de uma história repetindo a outra, nunca sendo
completamente original, de forma que mostra o próprio autor usando duas histórias
diferentes para montar outra totalmente nova. Corseuil (2009, p. 373) explica a
função da análise comparativa de um filme com um texto literário ao dizer que “serve
(...) para que se busque definir elementos que podem ser transferidos de um meio
ao outro e aqueles que oferecem resistência e exigiram (...) uma narrativa menos
linear, mas nem por isso menos vinculada ao cinema”. Dessa forma, será feito o uso
de tal análise para que seja possível compreender as escolhas de diretor e, com
elas, o papel da ideologia na adaptação, bem como no romance.
2.1 O romance e a adaptação cinematográfica
A obra conta a história de uma civilização comandada por um governo
totalitário, que tinha como prioridade manter os cidadãos alienados, focados apenas
em suas novelas e carros de alta velocidade. Trata-se, então, de um futuro (próximo)
em que os bombeiros deixaram de apagar o fogo e passaram a executar a
contraditória função de queimar livros. Entende-se que a literatura provoca o
pensamento crítico, o que pode causar tristeza e/ou fazer com que as pessoas se
rebelem contra o status quo.
Num mundo onde tudo é controlado, o bombeiro Montag acaba revendo
seus princípios após conhecer a jovem Clarisse McClellan, quem o questiona acerca
8 This is a tremendous experiment. A test town. If the burning works here, it’ll work anywhere. We don’t burn everything, no no. You noticed, my men cleaned only certain shelves and categories? (2017)
30
da vida e de tudo o que o governo evita que seja falado. Ao ser colocado para pensar,
o protagonista revê suas prioridades e prazeres, experimenta a literatura e dela
nunca mais consegue se livrar. Ao ser denunciado por sua esposa, Montag vê sua
equipe prestes a incendiar sua residência. Durante a discussão ele acaba por matar
seu chefe. Foragido e procurado, Montag reúne força e coragem para mudar o rumo
da sua vida perante tal sociedade.
Talvez a escolha da linguagem cinematográfica acabe sendo mais frequente
na adaptação devido ao fato de que ela é capaz de reunir, em um só suporte,
elementos que tornam possíveis a narrativa e a construção fílmica, o que alcança a
memória e o inconsciente do espectador. Há, com isso, um texto do real, uma vez
que o cinema põe a realidade em evidência e, com isso, acaba por criar uma outra
linguagem. (DIAS, 2008, p. 08).
Aqui, a adaptação será vista como o produto filme e, ao mesmo tempo, como
o processo de transportar uma história de um meio para outro. Com isso, será
possível analisar ambas as obras e, assim, compreender as necessidades de
modificação de determinados pontos da história para que a transposição para o
suporte de destino seja bem-sucedido. Nem sempre tais modificações agradam, o
que pode ser explicado caso o processo de adaptação seja pensado da forma ampla
com a qual ele é feito. O próprio diretor comenta que há uma grande dificuldade não
apenas por parte do público em relação à adaptação, mas também no contexto da
indústria cinematográfica:
Os produtores acham sinceramente que faltam roteiristas criativos e talentosos; os roteiristas acham que não é necessário se matar por diretores que enfraquecerão o pensamento deles, produtores que amputarão seus roteiros (...) os diretores invocarão a censura política ou a de costumes, e, sistematicamente, a censura financeira dos produtores, enfim, aquela cujas leis tácitas são decretadas pelo cretinismo do público. (TRUFFAUT, 2005, p. 287)
Todavia, surge a pergunta: se há tanta dificuldade e falta de reconhecimento,
o que faz um roteirista querer adaptar um romance? Segundo Hutcheon (2011, p.
126), diversos podem ser os motivos para se fazer uma adaptação: os estímulos
econômicos, uma vez que os – aqui estudados – filmes são produtos com altos
gastos e que, por isso, buscam apostas seguras num público que dará o retorno e
lucro esperados; capital cultural, na intenção de fazer com que as obras que são
consideradas derivativas e qualitativamente secundárias sejam vistas com novos
31
olhos e, assim, as adaptações conquistem respeito; razões pessoais ou políticas,
sejam como homenagens, críticas, questionamentos, etc.
Um dos motivos pela escolha do cinema como estudo se dá pelo fato de que
o mesmo possui cinco formas de construção do conteúdo: linguagem verbal,
imagens, músicas, efeitos sonoros e de iluminação (STAM, 2000), o que faz com
que um mundo novo de significações seja construído e com que haja a possibilidade
de uma análise substancial. Além disso, as adaptações podem ser entendidas a
partir da hipertextualidade, que enxerga os filmes como hipertextos derivados de
outros hipotextos previamente criados, ou seja, um filme é, então, uma diferente
leitura de uma mesma história.
Para tal, serão utilizados termos de cunho, talvez, carregados de sentidos,
como “diferenças” e “reiterações”, ou mesmo “afastamento” e “aproximação”.
Explicamos que a escolha das palavras se dá no sentido de colocar ambos os
trabalhos em posições semelhantes de distanciamento, enxergando-os como
processos individuais e diferentes, sem valoração de um em detrimento do outro. Ou
seja, nem a literatura, nem o cinema serão privilegiados neste processo: ambos
caminham em direção oposta ou contrastante de maneira igual.
2.1.1 Ponto de vista: As reiterações nas mídias
O que se tem entre as obras, na verdade, é o conceito de dialogicidade de
um meio com o outro, sugerido por Bakhtin (1997, p. 113), o que pode ser
relembrado por Stam (2003, p. 226) quando o autor considera que “qualquer texto
que tenha ‘dormido com’ outro texto (...) também dormiu com todos os outros textos
que o outro texto já dormiu”. Ou seja, obras novas sempre vêm de obras anteriores.
Diniz (2003) também explica esta questão ao dizer que parte do cineasta a decisão
de manter uma história fiel ou não, de usar vários hipotextos para criar um hipertexto
ou de fazer uma grande obra “original”. De qualquer forma, independentemente da
originalidade, um trabalho sempre será passível de ser considerado uma adaptação
de uma história anterior. Portanto, a literatura é ligada a outras manifestações
artísticas de forma inseparável, ou através da relação autor-texto-leitor, ou através
de sua contribuição para a criação de outros textos artísticos.
Assim, é possível perceber que a ideia inicial de adaptação sugerida por
Hutcheon (2011), Diniz (2003) ou Stam (2011), de que uma obra sempre vem de
32
outra, pode ser comprovada tanto pelo escritor quanto pelo diretor de Fahrenheit
451, uma vez que ambos partem de histórias pré-existentes para realizarem seus
trabalhos. As adaptações estão em todos os lugares, nos dias de hoje, então elas
não podem ser consideradas secundárias.
Entende-se, então, que os próprios textos de chegada (sejam livros ou
filmes), de fato, sempre vêm de inspirações anteriores às mesmas, vêm “da boca de
outrem”. A partir deste ponto de vista, a adaptação é também um arranjo de
discursos, talentos e trajetos, de forma que combina diferentes mídias, o que faz
com que a originalidade deixe de ser possível ou, mesmo, desejável. E uma vez que
a originalidade literária perde seu valor, fazer uma adaptação da mesma deixa de
ser uma “ofensa” tão grave (STAM, 2006, p. 23). Isso quer dizer que “(...) pinta-se,
escreve-se ou faz-se filmes porque viu-se pinturas, leu-se romances, ou assistiu-se
a filmes. A arte, neste sentido, não é uma janela para o mundo, mas um diálogo
intertextual entre artistas” (idem, 2008, p. 44).
O primeiro exemplo aqui descrito deve ser um ponto que faz com que seja
possível perceber os primeiros passos da insatisfação de Montag: num dia normal
de trabalho, pela primeira vez, em anos de serviço exemplar, antes de sair para
outro incêndio, Montag esquece seu capacete por se distrair em seus
pensamentos. É uma situação bem marcante tanto no livro quanto no filme, uma
vez que o bombeiro, que até então, nunca havia tirado uns segundos para pensar
acaba perdendo-se completamente, a ponto de não conseguir realizar o trabalho
que sempre realizara com maestria. Além disso, tal passagem representa por si só
o papel do capacete, que é o de proteger a cabeça, o cérebro, o que faz com que
seja possível perceber que, ao esquecê-lo, Montag está abrindo-se ao exercício do
pensamento.
Com isso, nota-se também a mudança de posição de Montag. O
bombeiro, a princípio, defende uma ideologia que prega a ignorância e a alienação
como o caminho para uma vida feliz. Sente-se pleno ao deslizar pelos canos do
corpo de bombeiros e jamais se incomodou com o cheiro constante de querosene
em suas roupas, o qual “não passa de perfume” (BRADBURY, 2012, p. 24) para
ele. A cena do capacete é, portanto, um marco para a compreensão de que o
bombeiro está iniciando sua transição, uma vez que o exercício do pensamento (ali
pouco ou nada utilizado) provoca-lhe estranhamento. Assim, é como se a ideologia
33
dominante fosse, de certa forma, questionada pela parte dominada: é proibido
pensar, mas, ainda assim, pensa-se.
Montag é o personagem escolhido para mostrar a ideologia de sua
sociedade, uma vez que ele é o exemplo de cidadão correto, que não vai contra as
leis e que aproveita a vida a partir das distrações que seu grupo impõe. Evita a
leitura, pois, segundo o governo, praticá-la seria um ato de subversão; assim,
participa das práticas e rituais sociais e os defende, mesmo que inconscientemente.
Isso quer dizer que o indivíduo se assujeita à língua e, com isso, acaba não notando
que sua fala, muitas vezes, não é própria, é apenas uma personificação do que é
dito e defendido pelo seu meio e, principalmente, pelos seus comandantes. Assim,
a materialidade da ideologia encontra-se sempre no discurso, enquanto sua
articulação está no sujeito. Bakhtin explica que
Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia. (1997, p. 31)
Isso quer dizer que os signos nem sempre significarão a mesma coisa; é preciso
entender o meio, a história, os acontecimentos e a formação discursiva do falante
para poder atribuir significado às mesmas. O que para um é apenas uma imagem
de uma mulher, para outros é símbolo de santidade: muda-se o sentido a partir da
referência ideológica de quem vê. Ou seja, há um complexo grupo de discursos no
qual o sujeito toma seu lugar. O lugar de Montag muda ao se dar conta do que antes
não via. Assim, enquanto sujeito, ele não pode ser submisso, pois passa a ocupar
uma posição no discurso e resistir a outras posições. Sendo o assujeitamento da
ordem do político e do simbólico, é também da resistência, a qual Foucault (1984, p.
303) define como uma força produtiva na luta contra a submissão das subjetividades,
como a sobrevivência a condições antagônicas.
Assim, é impossível que haja ideologia sem o discurso ou sem seu
articulador. Ao estado, interessa que o sujeito não perceba que está sendo
influenciado, como explica Foucault (1996) em sua aula inaugural no Collège de
France, em 1970, o que pode ser visto no fato de que as relações de força de um
discurso nunca são iguais, pois sempre há uma subordinação ocorrendo. Assim, o
discurso pode ser analisado em três fases (vide Figura 1), tendo início na superfície
34
linguística, passando-se para o objeto discursivo e finalizando no processo
discursivo, ou seja, na formação ideológica:
Fahrenheit 451 foi escrito em 1953 e desde então representa inúmeras
questões que podem ser vistas no mundo atual. A tecnologia, por exemplo, é um
aspecto de grande importância nas obras, uma vez que o papel da mesma é
controlar a mente da sociedade de forma que não se rebelem contra o sistema. Os
comerciais e as paredes televisionadas são a forma de manter a população entregue
às mordomias da tecnologia sem notar que está sendo manipulada. A própria esposa
de Montag, Mildred/Linda, sofre, de certa forma, uma lavagem cerebral pela
realidade virtual à qual é exposta diariamente. Quanto a isso, entende-se que
Nossos meios de comunicação são nossas metáforas Nossas metáforas criam o conteúdo da nossa cultura”. Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo. (CASTELLS, 1999, p. 414).
Como representação disto, ainda no início (do livro e do filme), tem-se a
cena em que a esposa de Montag desmaia pelo excesso de comprimidos
estimulantes com sedativos. O bombeiro encontra sua esposa inconsciente e liga
para a assistência médica, que de imediato resolve o problema, utilizando de uma
troca de sangue: tira o antigo e substitui com novo, deixando-a, também, “nova”.
Esperando por um médico – que não irá aparecer, uma vez que tal situação é
comum –, Montag escuta dos enfermeiros: “casos como esse... Tratamos 50 por
dia como ela. (...) Ela não será a última esta noite, nem de perto” (TRUFFAUT,
1966). Tal cena reforça a suspeita de Montag de que ninguém em seu mundo é
realmente feliz e que há uma depressão constante sendo camuflada; ao mesmo
35
tempo, é capaz de mostrar ao leitor/telespectador o primeiro contato do que será
visto como normal ao longo da história.
A influência da tecnologia naquela sociedade é fortemente reforçada nas
obras. A poucos passos da Terceira Guerra Mundial, nem o filme nem o livro tocam
muito em tal assunto, justamente para simbolizar a falta de atenção e/ou o quão
pouco as pessoas se importam com eventos que fujam do mundo absorto ao qual
elas estão acostumadas. Apesar de haver bombardeios diários e de,
ocasionalmente, algum meio de comunicação noticiar que “... a guerra pode ser
declarada a qualquer momento” (BRADBURY, 2012, p. 53), não há uma
preocupação genuína por parte dos alienados habitantes daquele coletivo.
Qualquer comentário a respeito da mesma é ofuscado pela obsessão de todos por
entretenimento sem sentido. Quando a guerra, de fato, estoura, a cidade de Montag
é inteiramente destruída, sem deixar sinais de vida. O que ocorre, então, é uma
sátira – caracterizada pelo dicionário Michaelis (2016, online) como uma
“composição poética (...) que censurava as instituições, os costumes e as ideias da
época, em estilo irônico ou indignado” – em relação à tal obsessão do público com
celebridades e cultura pop ao mesmo tempo em que se reconfortam naquilo em
que acreditam ser um status quo imutável.
A própria situação de guerra trata mais profundamente das descobertas de
Montag após ter contato com a literatura. Há nele despertada a consciência de que
a vida que o sistema faz com que todos tenham é camuflada por agitação e felicidade
comprada, e que na realidade é extremamente infeliz e vazia. O bombeiro passa a
dar passos mais largos para longe da ignorância, pois agora sabe que o que ele
chamava de felicidade era apenas distração e nenhum exercício de pensamento. A
ideologia que um dia foi defendida saía do campo do desconhecido e passava para
o lado do esclarecimento.
Seu discurso passa a mudar, o que pode ser entendido pelo fato de que o
mesmo não é apenas um conjunto de signos feitos apenas para que as pessoas
possam se comunicar. É, na verdade, um sistema que serve de suporte para as
representações ideológicas: é o elemento que media o homem e sua realidade
(BRANDÃO, 2004, p. 12), o que pode ser claramente visto nos diálogos e devaneios
de Montag no trecho a seguir:
36
Por que diabos esses bombardeiros passam lá em cima a todo instante de nossas vidas! Por que ninguém quer falar sobre isso? Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas! Será porque estamos nos divertindo tanto em casa que nos esquecemos do mundo? Será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? Tenho ouvido rumores; o mundo está passando fome, mas nós estamos bem alimentados. Será verdade que o mundo trabalha duro enquanto nós brincamos? (...) Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos! (BRADBURY, 2012, p. 97-98)
Enquanto uma guerra acontece, todos mantêm-se como sujeitos
construídos, inscritos num sistema de ideias específico, isto é, são indivíduos
determinados pela formação discursiva dominante – na história, aquela que
defende que a alienação é o melhor caminho a ser seguido –, a qual impõe e
dissimula a tais indivíduos o seu assujeitamento de forma a parecer que o mesmo
é autônomo e não previamente construído. Truffaut faz questão de manter todos
em seu casulo de alienação durante seu filme, de modo que Montag pareça cada
vez mais um “estranho no ninho”, o único que percebe as atrocidades e falta de
humanidade ao seu redor.
Nessas primeiras reiterações, pode-se notar a intenção do adaptador em
fazer com que haja, de fato, um diálogo entre as obras, ao passo que quem recebe
uma conseguirá fazer uma conexão com a outra – contanto que se tenha um
conhecimento prévio das mesmas. Em relação a isso, Jauss (1994, p. 28) explica
que
A obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.
Há, ainda, o capitão dos bombeiros, Beatty, o qual Cyril Cusack interpretou
com maestria no filme. É ele quem exemplifica a ideologia daquela sociedade
absolutista. Beatty é um homem estudado, conhecedor de história e do que está
contido nos livros, porém, ainda assim, mostra seu comodismo perante as leis a todo
momento, durante o livro e o filme inteiros. Afirma que Clarisse “não queria saber
como uma coisa era feita, mas por quê. Isso pode ser embaraçoso. Você pergunta
o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz”
37
(BRADBURY, 2012, p. 84). Tal discurso mostra seu conformismo, pois, apesar de já
tido acesso às informações dos livros, um dia, e ter bagagem suficiente para sair da
alienação, mostra que acha mais fácil manter-se respeitando o que o sistema impõe,
de forma que, assim, consegue evitar que seus pensamentos lhe deprimam.
Ao mostrarem determinada atitude partindo do chefe de um órgão
governamental, tanto escritor quanto cineasta colocam em questão suas opiniões de
que o topo da cadeia organizacional de uma sociedade deve e será o primeiro a
convencer a parte inferior da importância de suas ideias e do porquê elas estão
certas.
Beatty representa todos os líderes daquele sistema, é a ideologia pregada
em tal sociedade, porém ele sabe mais sobre o que contém nos livros que qualquer
outra pessoa. Apesar de queimá-los com veemência, passa boa parte de seu tempo
dedicando-se a citá-los, desde a mitologia até trechos da Bíblia. Beatty, no passado,
provavelmente foi um curioso e rebelde como Montag, alguém que começou a ler e
acabou questionando o sistema, o que fez com que ele também quisesse mudar as
regras. Este questionamento causou o sentimento do capitão em relação aos livros:
eram muitas questões para as quais não havia resposta, não havia uma receita para
viver nem uma explicação sobre o sentido da vida, uma vez que a literatura pode,
sim, - assim como deve – ser contraditória, o que fará com que os pensamentos
venham em milhares, causando ainda mais confusão. Uma vez que não existia a
vontade de pensar, essa desestabilização em sua forma de viver pode ter causado
a repulsa de Beatty por livros. Então, nunca houve um medo, por parte do governo,
das informações contidas no livro. O medo se dá a partir da própria função principal
da literatura, que é causar o pensamento crítico, o questionamento. A questão que
paira, portanto, é: seria o chefe dos bombeiros (ou qualquer representante oficial)
feliz e crente em suas decisões?
Na contramão, tem-se um grande exemplo de situação também aproveitada
no filme, que é a já citada cena da Senhora Blake, uma mulher que mantinha uma
biblioteca em sua casa e que se caracteriza como o primeiro grande contratempo de
Montag. Quando os bombeiros encontram seus livros, ela apenas ri, enquanto desce
as escadas recitando as palavras do bispo Hugh Latimer (mártir, morto por heresia)
ao também bispo Nicholas Ridley: “Aja como homem, mestre Ridley, havemos hoje
de acender uma vela tão grande na Inglaterra, com a graça de Deus, que tenho fé
38
que jamais se apagará”. Sua fala se abre para o fato de que Montag é essa vela, e
que aquele dia será essencial para o despertar do bombeiro; ela é o mártir, a que
morre também por heresia, também por ir contra as ordens do governo.
Tal cena é essencial ao enredo por representar extremamente bem a
mudança de Montag, como mostra o trecho a seguir: “uma fonte de livros jorrou
sobre Montag enquanto ele subia trêmulo pela tosca escada. Que inconveniente!
Antes, sempre fora como apagar uma vela” (ibidem, p. 57) e, só então, o bombeiro
percebia que não queimava apenas objetos: feria pessoas ao destruir uma vida de
histórias lidas. Pelo trecho supracitado, é possível perceber a falha que ocorre no
ritual discursivo, uma vez que algo resistivo já começa a surgir na transformação de
Montag em indivíduo consciente.
Além de tudo, a dona da casa não havia saído – recusava-se a fazê-lo, como
era determinado a todos os subversivos. Montag sentia-se irritado – por ela ou pelo
sistema? –, o que o impedia de concentrar-se em seu trabalho. O momento decisivo
do bombeiro ocorre nesta situação, quando
Os livros bombardeavam seus ombros, braços, o rosto voltado para cima. Um livro pousou, quase obediente, como uma pomba branca, em suas mãos, as asas trêmulas. À luz mortiça, oscilante, uma página pendeu aberta e era como uma pluma de neve, as palavras nela pintadas delicadamente. Em meio à correria e à fúria, Montag teve tempo apenas para ler uma linha, mas esta brilhou em sua mente durante o minuto seguinte, como se marcada a ferro em brasa. “O tempo adormeceu ao sol da tarde.” Soltou o livro. Imediatamente, outro caiu em seus braços. (...) A mão de Montag se fechou como uma boca, esmagando o livro com selvagem devoção, com descuidada insanidade, junto ao peito. Os homens lá em cima lançavam braçadas de revistas para o ar poeirento. Elas caíam como pássaros abatidos e a mulher permanecia ali embaixo, parada como uma garotinha, entre os cadáveres. Montag não fizera nada. Sua mão fizera tudo. Sua mão, com cérebro próprio, com a consciência e a curiosidade em cada dedo trêmulo, tornara-se uma ladra. Agora ela escondia o livro sob seu braço, prendia-o na axila suada, surgia de novo vazia, como num passe de mágica! Olhe aqui! Inocente! Veja! (ibidem, p. 58-59)
O contato com as palavras no papel e a devoção daquela senhora para com
seus livros foram os primeiros passos de Montag em direção à fuga da alienação. O
que havia naquelas páginas para fazer com que a mulher preferisse morrer a viver
sem elas? Se os livros eram tão perigosos, o que fazia com que ela sofresse tanto
a “morte” dos mesmos? Em posse do livro, mesmo sem lê-lo, Montag começa a
descobrir o mundo. Passa a notar que não existe um diálogo substancial entre ele e
sua esposa, apenas superficialidades, como novas tecnologias ou as pessoas nos
39
telões; percebe que vive com uma pessoa complemente vazia e que, até então, ele
mesmo também o era. Poderia ser o que quisesse, mas optou por ser apenas “um
homem ridículo e vazio junto de uma mulher ridícula e vazia” (ibidem, p. 66). Então,
toma-se a posição do sujeito para entender qual peso será dado às palavras ditas.
A emoção deste trecho no livro é transmitida em pouco mais de três páginas;
Truffaut extraiu dessas páginas a cena mais marcante de seu filme: uma mulher que
se recusa a viver sem seus livros e, por isso, ateia fogo a eles e a si mesma. No
filme, o cineasta se insere e usa de uma metalinguagem ao colocar como um dos
livros a serem queimados a revista Cahiers du cinema, para a qual o mesmo
escreveu como crítico por anos, e o próprio livro que deu origem ao filme, Fahrenheit
451. Apesar dessa escolha do cineasta se configurar como uma diferença em
relação ao livro, ela é aqui mencionada para adequar-se à cena da Sra. Blake. Stam
(2003, p. 173) explica que “os filmes podem jogar com as ficções em lugar de
descartá-las por completo; contar histórias, mas também colocá-las em questão;
articular o jogo do desejo e o princípio do prazer e os obstáculos à sua realização”,
que é exatamente o que o cineasta busca fazer ao inserir determinados elementos
em seu filme, como os exemplos supracitados.
Ainda em ambas as obras, nota-se a falta de consciência política ou mesmo
emocional da sociedade. Um exemplo é quando as mulheres estão reunidas na sala,
assistindo à “família” (um programa televisivo que chama as telespectadoras de
“primas”, como uma forma de se aproximar das mesmas e aliená-las cada vez mais),
e conversam sobre filhos. As que não os têm, falam sobre a ideia de tê-los como
impossível; as que têm, os tratam como uma obrigação qualquer. No livro, uma delas
explica que os aguenta “em casa três dias por mês; não é nada de mais. A gente
põe as crianças no “salão” e liga o interruptor. É como lavar roupa: é só enfiar as
roupas sujas na máquina e fechar a tampa”. No filme, quem os defende o faz pelo
fútil motivo de que “Os bebês crescem para se parecerem com você. Isso deve ser
divertido”. Tais mulheres da história possuem uma visão muito limitada de tudo, e a
intenção do governo é exatamente essa.
Retoma-se, ainda, a questão (acima referida) da guerra iminente, posto que
o filme e o livro apresentam a mesma visão das esposas a respeito desta.
- A questão sobre as guerras é, se você quiser chamá-las assim, que apenas os maridos das outras é que morrem.
40
- Isso é verdade. Nunca conheci ninguém que tenha morrido em uma... Ninguém que o marido tenha morrido dessa maneira. Por atropelamento, ao saltar de uma janela, sim. Como o marido da Gloria, há algumas noites atrás. Mas nunca dessa outra maneira. De qualquer modo, é a vida, não é? (TRUFFAUT, 1966)
Isso relembra a questão da Segunda Guerra Mundial, em que todos preferiam fechar
os olhos para os refugiados e para toda a infelicidade que a guerra trouxe. Da
mesma forma, Bradbury encontrou nas mulheres outra forma de retratar esses
cidadãos, mostrando-as como pessoas que veem como algo natural o suicídio ou a
alta velocidade, mas que acham que a guerra só acontece para os outros. Na mesma
ocasião, Montag é retratado com bastante semelhança entre as mídias no momento
em que lê um poema para as amigas de sua esposa. Seja no livro ou no filme, a
atitude causa espanto e, por parte de uma das mulheres, choro, o que mostra que
os sentimentos de tristeza existiam, só eram mantidos adormecidos, mascarados
por uma falsa realidade, como anteriormente dito.
De forma resumida, ainda, Truffaut foi capaz de relatar o fim do capitão
Beatty e o início da fuga de Montag. Quando o bombeiro é denunciado por sua
esposa, sua equipe (junto com ele) direciona-se à sua casa, a fim de queimar todos
os livros encontrados. Seus colegas o julgam, seu patrão o despreza e sua esposa
o abandona. Num ato “caridoso”, Beatty deixa que Montag faça as honras de atear
fogo a seu crime, o que faz com que o bombeiro se rebele ainda mais e passe a
queimar tudo: as paredes, a cama, os armários... Por fim, determinado a não ser
engolido pelas imposições às quais seria condenado, Montag faz a escolha que
contrasta completamente com o indivíduo que se conhece no início de ambas as
obras: com o lança-chamas em mãos, ateia fogo no capitão dos bombeiros e
queima com ele, simbolicamente, toda uma vida mantida na alienação. Isso se dá
após o capitão fazer questão de provocá-lo, ao dizer que
Os romances não são vida. O que Montag esperava sair de toda essa coisa impressa? Felicidade? Que pobre idiota deve ter sido. Esta besteira é suficiente para levar um homem à loucura. Pensou que podia aprender como andar sobre a água, foi? Montag precisa aprender a pensar um pouco. Todas estas escritas, estas receitas pra felicidade se contradizem. Agora deixe este monte de contradições queimar. Somos nós, hoje, que trabalhamos para a felicidade do Homem. (...) Nada a dizer? Esse é o espírito. Essa é a verdadeira sabedoria. (Id. Ibid.)
É como se o capitão quisesse que Montag o matasse – queimando em meio aos
livros, como bem fotografado no filme –, o que mostrou que ele mesmo não
41
aguentava mais o peso de conviver com todos aqueles indesejados pensamentos e
com as ordens às quais devia inutilmente obedecer. Tal cena causou exatamente o
que a literatura propõe e o que Kracauer (1995, p. 24 apud STAM, 2003, p. 81)
acredita que o cinema deveria transmitir: a contradição provocada pelos livros e a
intenção do filme em mostrar que existe, em toda sociedade, um “mal-estar social”,
pois “se (o cinema) retratasse as coisas como realmente são hoje em dia, os
espectadores se sentiriam constrangidos e começariam a indagar sobre a
legitimidade de nossa atual estrutura social”. Entende-se, assim, que “os filmes são
o espelho da sociedade predominante”9 (ibidem, p. 291) [Tradução da
pesquisadora].
Seja no filme ou no livro, há um enternecimento, choque ou mesmo um
fundo de sadismo por parte de quem lê ou vê as últimas cenas, e a emoção sentida
não é a mesma para todos. Isso se dá pelo fato de que assistir a um filme coloca o
espectador em um mundo novo, em que “a identificação com o que o ator está
fazendo quando representa pode às vezes explicar o nó na garganta ou o vazio no
estômago, o que sugere que você está tendo uma experiência” (CAUGHIE, 2000,
p. 120). E é exatamente este o propósito de qualquer história contada/mostrada:
criar uma ligação entre o leitor e a obra. Por isso, nota-se que não há a existência
do “espírito do texto original”, uma vez que
o próprio processo de leitura, hoje, constitui a elaboração de uma “adaptação”, a constituição imagética daquilo que apreendemos na interação com o texto literário. Assim, um filme “adaptado” de um romance, por exemplo, é sempre a expressão de uma das múltiplas leituras possíveis para esse romance. (HATTNHER, 2010, p. 148)
Algo de grande destaque, além disso, são os personagens principais, que,
no filme, personificam de forma fundamental as pessoas descritas no texto de
partida. A cena do envenenamento por comprimidos – anteriormente relatada –,
dentre outras, mostra Mildred/Linda como uma mulher de personalidade vazia e
desinteressada, enganada por tecnologias e comprimidos que lhe dão uma falsa
ideia de que sua vida é feliz; Clarisse é sonhadora, insurgente e tem sede de
mudança, o que é mostrado por todos os seus atos e em todos os momentos em
que a mesma aparece, seja no filme ou no livro; Montag acreditava-se feliz, porém
9 Films are the mirror of the prevailing society.
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é despertado quando Clarisse o coloca para pensar, principalmente, após as várias
perguntas no primeiro encontro dos dois – “você é feliz?”; Beatty é a personificação
do governo, ou seja, do que deve ser dito e feito, e sua morte mostra, também, a
renúncia de Montag em relação àquela sociedade.
Por fim, ambas as obras terminam com o bombeiro como fugitivo. Há uma
perseguição, a qual, apesar de ser retratada em ambas as obras, ocorre
diferentemente em cada uma delas. O filme utilizou-se de policiais para fazê-la e
Montag fugia por si só, já sem a ajuda de Faber, até conseguir chegar a um rio e
esconder-se em uma embarcação. Em momento algum, há o uso de elementos
tecnológicos pertencentes a um mundo futurista. O que ocorre é o emprego de
subsídios antiquados – como telefones antigos, cores básicas e outros pontos em
que a tecnologia é propositalmente incitada – como uma forma de mostrar uma
sociedade repleta de contradições. No livro, a cena da fuga teve o Sabujo como
ajuda dos oficiais. Montag ainda tinha Faber como aliado e foi o mesmo quem lhe
ofereceu roupas, para que seu cheiro não fosse mais facilmente identificado pelo
animal, e que despistou a polícia. Por fim, assim como exposto por Truffaut, o
bombeiro também acaba chegando ao rio.
Seu rosto havia sido estampado nos jornais e seu nome havia virado notícia,
fazendo de Montag o símbolo da resistência, visto como um fugitivo, desertor e
rebelde. Isso fez com que a polícia, para dar à cidade um Montag morto, atirasse em
um homem qualquer, meramente parecido com ele, quando perderam o alvo
principal. Isso sugere principalmente que há sempre a intenção de manter a
ideologia dominante como algo inabalável: espera-se que o homem pague por sua
contravenção e, logo, a mídia faz com que isso aconteça – mesmo que de forma
manipulada. Ela decide como a imagem de uma pessoa será pintada; dessa forma,
marca um posicionamento e, obviamente, delimita determinado território ideológico.
Truffaut mostra as televisões passando toda a perseguição em tempo real, o que já
é explicação do ocorrido ao espectador. Bradbury coloca um insurgente para
elucidar o que aconteceu ao bombeiro (e a quem lê):
Estão simulando. Você os despistou no rio. Eles não podem admitir isso. Sabem que não conseguirão manter a audiência por muito tempo. O espetáculo precisa chegar ao fim, depressa! Se começassem a vasculhar toda a extensão do rio, poderiam levar a noite inteira. Por isso, estão em busca de um bode expiatório para chegar a um final sensacional. Observe.
43
Apanharão Montag nos próximos cinco minutos! (BRADBURY, 2012, p.180)
Na questão simbológica, o momento da fuga de Montag é fortemente
marcado pela água. O bombeiro usa o rio para escapar da cidade e chegar à floresta.
É ela que faz com que seja possível a ele desaparecer do mundo distópico e tornar-
se parte dos revolucionários que se livraram da alienação. A água, então, representa
a salvação e o renascimento de Montag, uma vez que, ao cruzar o rio, o bombeiro
torna-se uma pessoa diferente. É, ainda, uma fronteira que divide dois mundos
completamente diferentes (o dos rebeldes e o dos alienados).
A cena final mostra o acampamento das pessoas-livros: fugitivos que
seguiam pela linha do trem e se espalhavam em diversos acampamentos, todos com
o intuito de decorar obras literárias para que as mesmas não se perdessem. Os
andarilhos, enquanto queimadores de livros que o faziam apenas por medo de serem
encontrados, também representam, então, uma nova forma de pensar. E o
acampamento, ao pregar determinadas ideias, formava um novo círculo social
defensor de uma nova ideologia. Ali, é possível entender que eles já esperavam,
conscientemente, pela guerra, pois a mesma acarretaria um avanço em sua causa,
uma vez que causaria a destruição da cidade e o fim das ideias “anti-livros”.
O que se pode notar, então, é que aqueles transgressores da história eram,
agora, livros. Se assim o eram, então eram, obviamente, literatura. Além disso, o
próprio roteiro cinematográfico ou teatral pode ser considerado, também, um texto
literário. Dessa forma, o mesmo filme que teve início com créditos narrados, para
mostrar a proibição da leitura, também tem por fim as letras “The end” sem narração
alguma, como se explicasse que, naquele momento, a literatura já tinha tomado um
sentido tão amplo que não apenas a escrita no papel poderia ser considerada
literária. Atingiu-se um ponto em que não mais era possível censurar a leitura, uma
vez que a mesma se tornara muito abrangente.
A tecnologia que Bradbury descreve em seu livro e que Truffaut busca
mostrar nas telas é resultado de uma sociedade que optou por adotar o
entretenimento ao invés do conhecimento. As histórias tornaram-se fragmentos e
versões condensadas do que um dia foram os livros. Ao mesmo tempo, as famílias
televisionadas substituíram as famílias verdadeiras e, assim, ninguém mais
44
conversa, a sociedade apenas desmorona sob o peso da tecnologia ali mostrada, a
qual afirmam que os torna felizes.
A escolha de Montag é definida ao longo de sua caminhada com o grupo.
Eram anônimos que se apresentavam pelos nomes de escritores famosos (Jonathan
Swift, Charles Darwin, Schopenhauer, Einstein, Albert Schweitzer...) e viviam num
lugar onde todos deixavam de ser quem se era para tornarem-se livros. Talvez por
isso a ordem das palavras tenha sido a de caracterizar as pessoas como livros
(“pessoas-livros”; no inglês, o adjetivo vindo antes do substantivo: “the Book
People”), e não o contrário (“the People Book”). Aquelas eram bibliotecas humanas,
era seu principal vocativo. E este se tornara, também, o caminho de Montag, que,
no livro, passaria a ser o Eclesiastes, da Bíblia, e, no filme, David Copperfield (o
primeiro livro que havia lido e o mesmo que leu para as amigas de Mildred/Linda),
de Charles Dickens.
2.1.2 Ponto de vista: O contraste entre as mídias
Foi visto que Fahrenheit 451 possui diversos pontos em que é possível
perceber as reiterações entre o livro e o filme. Para que a questão da adaptação seja
compreendida de forma mais completa, também as diferenças devem ser
analisadas. É óbvio que as diferenças existem e, conforme explica Rey (1989, p.
58), o aplauso quase nunca será geral, o que pode ser elucidado pelo fato de que
há quem não entenda que
A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios. O que importa é que ela seja uma obra inteiriça, redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as sequências. (...) fidelidade é apenas uma das virtudes exigidas numa adaptação. Ela, sozinha, resulta em desastre (p. 59 e 60)
Assim, para início de análise, tem-se o plot, que se mantém linear e coeso
do começo ao fim; tanto o livro quanto o filme pretendem contar/mostrar a história
do bombeiro Guy Montag, um dos responsáveis pela queima de livros. Tal
personagem carrega até mesmo em seu nome o peso do protagonismo – na história
e na sociedade relatada –, uma vez que este deriva de palavras estrangeiras as
quais podem dedicar ao personagem uma leitura significativa: “Guy”, do inglês “cara,
rapaz”, traz ao bombeiro a imagem de sujeito comum que o mesmo apresenta no
início da história, em que se mostra como mais um igual a todos os outros com quem
45
convive; ao mesmo tempo, “Montag” vem do alemão e quer dizer “segunda-feira”,
dia o qual, apesar de não ser o primeiro da semana, as pessoas dedicam-se a, de
fato, começar qualquer plano ou trabalho que tenham, o primeiro dia “útil” – com
todas as conotações de tal palavra. A imagem do rapaz comum entra em contraste
com aquele que decide mudar seu destino e realmente dar início a algo novo – tal
como seu nome propõe.
O livro é dividido em três partes, sendo elas: “A lareira e a salamandra”, “A
peneira e a areia” e “O brilho incendiário”. Cada uma detalha uma parte da jornada
de Montag na descoberta da literatura. A primeira introduz a vida pacata e
predominantemente racional do bombeiro: feliz em seu emprego, com uma
promoção em vista, casado e cumpridor das leis. Sua esposa, Mildred, não trabalha
e vive à base de pílulas calmantes ou estimulantes (o que é recorrente em todas as
pessoas dessa sociedade). Ela passa seus dias interagindo com as telas nas
paredes da sua casa, que são a forma de riqueza da sociedade retratada: quanto
mais telas, maior o status social. Eles possuem telas em três das quatro paredes (a
última, instalada há menos de dois meses), porém Mildred já anseia pela quarta,
para que possa conversar com a família televisiva – previamente explicada – criada
pela mídia para manter as donas de casa alienadas e viciadas em pessoas que só
existem para distraí-las. Ao conhecer a jovem Clarisse McLellan, Montag passa a
questionar até que ponto sua felicidade realmente é real e como consegue ser
casado com uma pessoa com quem nem mesmo conversa. A primeira parte do livro
é claramente marcada pelos primeiros passos do bombeiro em direção à quebra das
regras. Além disso, seu título faz referência à lareira, que é o centro da casa e fonte
de calor, e à salamandra, que representa o fogo e a justiça, e que é um animal o
qual acreditavam sobreviver ao fogo. Dessa forma, ela é símbolo dos bombeiros
retratados na história, responsáveis por usar do incêndio como modo de cumprir as
leis e a justiça. Ao mesmo tempo, a salamandra simboliza a renovação, o que remete
a Montag em seus primeiros obstáculos pessoais.
“A peneira e a areia”, no segundo capítulo, também possui fortíssima
simbologia. A imagem da areia passando por uma peneira faz com que seja possível
visualizar uma tentativa falha de reter minúsculos grãos numa superfície vazada.
Isso faz referência ao momento em que Montag está no metrô, esforçando-se para
46
memorizar partes da Bíblia, porém não conseguindo concentrar-se devido à alta
propaganda do dentifrício Denham.
Uma vez, quando criança, ele se sentara em uma duna amarela à beira-mar num dia azul e quente de verão, tentando encher uma peneira com areia, porque um primo cruel lhe dissera: “Encha esta peneira que eu lhe dou uma moeda de dez centavos!”. E quanto mais rápido ele despejava, mais rápido a areia passava pela peneira, silvando de calor. (...) Baixou os olhos e viu que levava a Bíblia aberta nas mãos. Havia gente no vagão, mas ele segurava o livro nas mãos e uma ideia tola lhe ocorreu: se você ler rapidamente e ler tudo, talvez parte da areia fique na peneira. (BRADBURY, 2012, p. 102-103)
Com isso, o título se configura como uma explicação para aquele mundo: ao banir
os livros, a mente dos cidadãos acabava tornando-se peneiras, incapazes de reter
qualquer tipo de pensamento, conhecimento ou palavra, todos simbolizados pela
areia.
Já o título final, “O brilho incendiário”, entra como um contraste à primeira
frase do livro: “Queimar era um prazer” (ibidem, p. 21). Enquanto a história se inicia
com uma afirmação condizente ao bombeiro da “lareira e a salamandra”, “o brilho
incendiário” que embaça a visão é tudo o que resta no último capítulo. É nele que a
casa de Montag é queimada e é nele que a cidade toda queima conforme a guerra
chega. Ainda faz referência à fênix, uma vez que a cidade que queima
brilhantemente nascerá novamente, no futuro, talvez de forma que não repita os
erros anteriores. Em inglês (língua na qual o livro foi escrito), o título “Burning Bright”
ainda pode representar uma simbologia mais ampla, uma vez que faz alusão à
primeira estrofe do poema The Tyger, de William Blake – poeta referenciado pela
senhora Blake e poema mencionado no primeiro conto, Bright Phoenix (o qual
também se encaixa nesta análise simbológica). Em "Tyger! Tyger! burning bright,/ In
the forests of the night;/ What immortal hand or eye,/ Could frame thy fearful
symmetry?”10 há o título do livro. Neste poema, o tigre retratado possui uma energia
que pode ser tanto divina quanto demoníaca. No livro, este capítulo mostra Montag
questionando os que controlavam a sociedade, também sem saber se as forças são
positivas ou negativas, principalmente os responsáveis pela queima de livros.
No campo narrativo, é possível perceber que os detalhes e as explicações
são essenciais à leitura e à própria história, uma vez que no livro o principal processo
10 Disponível em: <https://www.poetryfoundation.org/poems-and-poets/poems/detail/43687>
47
é a interpretação do único material do qual o mesmo dispõe, que são as palavras.
Segundo Culler
A obra literária é um evento linguístico que projeta o mundo ficcional que inclui falantes, atores, acontecimentos e um público implícito (um público que toma forma através das decisões da obra sobre o que deve ser explicado e o que se supõe que o público saiba). [...] A ficcionalidade da Literatura separa a linguagem de outros contextos nos quais ela poderia ser usada e deixa a relação da obra com o mundo aberta à interpretação. (1999, p.37-39 )
Já no filme, há uma união de elementos de muitas artes e muitos trabalhos,
como fotografia, figurino, sonoplastia, edição, teatro e, ainda, a literatura. Portanto,
o cinema ainda tem outros meios aos quais recorrer, de forma que se torna
impossível fazer com que a “mesma” história em cada um destes suportes ocorra
em momentos e velocidades semelhantes. Conforme explicado por Corseiul,
é necessário que se ressalte a importância de uma perspectiva crítica que leve em conta os elementos específicos da linguagem cinematográfica (...), responsáveis pela construção de significados no sistema semiótico compreendido pelo cinema. Ainda à linguagem específica do cinema, existem outras diferenças que produzem certas limitações a cada meio: enquanto um filme é exibido em um teatro, pelo tempo médio de 2 horas de duração, um romance pode ser lido durante horas, dias ou meses- fato que impossibilita qualquer adaptação literal de um longo romance. (2005, p. 296)
Assim, enquanto Bradbury mostra calmamente um Montag descobrindo a
literatura, ainda receoso, o filme pede certa agilidade, uma vez que há a necessidade
de transportar mais de duzentas páginas para duas horas de filme. Truffaut usou
determinadas escolhas para expor o desprezo do bombeiro em relação à própria
profissão e a si mesmo: Montag deixa de usar o poste do quartel, passa a usar uma
escada; não entra mais no carro dos bombeiros junto com os colegas; arruma
desculpas para faltar ao trabalho; em seus devaneios, Montag pergunta como seria
se eles tivessem livros e, só então, pensa no porquê de queimá-los. Os primeiros
sinais de resistência são mostrados exatamente nestas situações. Toda essa
rejeição faz com que o espectador consiga perceber que Montag está desistindo de
seu emprego, pois sente-se mal em ser a pessoa que está acabando com a
literatura. Isso acontece de forma ágil e, portanto, diferente no livro, uma vez que há
um narrador contando a história por ele, o que fez do processo algo mais sutil e mais
longo. Sua relação com a literatura só passa a surgir mais tarde.
48
Em seu filme, Truffaut utiliza dos artifícios do cinema para representar o que
no livro acaba não sendo possível: a tentativa de anulação da literatura ao máximo.
Logo de início, os créditos do filme são falados – diferente do que é feito com
qualquer outra obra cinematográfica, já que os mesmos apenas passam na tela e a
leitura destes fica por parte do espectador –, justamente para antecipar a ideia de
um enredo em que não ocorre o ato de ler, em que o mesmo é proibido. No filme,
não há nada que precise ser lido, sejam placas, sinais ou outdooors. É uma obra
absolutamente imagética e até mesmo o uniforme dos bombeiros vem apenas com
o alto-relevo “451” e a fênix bordada, nada mais. Essa metáfora representa uma
grande peculiaridade entre um suporte e outro, uma vez que não é possível utilizá-
la no romance, pois livro não exclui livro.
Aqui, então, é possível apontar a simbologia da história em ambas as obras
a partir dos bombeiros: há, neles, o fogo e a fênix como formas de metaforizar
diferentes mundos. O fogo – fortemente representado pela cor vermelha, no filme –
, na sociedade distópica, é dominante na vida de Montag e possui uma conotação
negativa, uma vez que é usado para terrificar aqueles que vão contra as leis, pois é
ele que queima seus livros e casas, além de apagar qualquer rastro de conhecimento
cultural e de servir para compor cidadãos que cumpram as leis conforme o regime
manda. Já para as pessoas-livros, o fogo é responsável por mantê-las quentes nos
acampamentos, permitir que seus cafés sejam preparados e apagar sua
contravenção ao dar fim aos livros já memorizados. Porém, principalmente, é o fogo
da guerra que destrói o mundo distópico, de forma que representa o ciclo natural da
vida ao mesmo tempo em que dá espaço para a renovação da humanidade.
Em relação à fênix, entende-se de duas formas também o uso da ave
mitológica na história. Ela é para os bombeiros sua insígnia e representa os livros
que são queimados até virarem cinzas, para que, então, sejam queimadas também
as cinzas. Assim, não seria possível restituir as ideias causadoras de infelicidade
que estavam contidas naquelas páginas. Todavia, a humanidade, principalmente
pensada a partir das pessoas-livros (que queimavam o material do livro, mas o
conteúdo permanecia e renascia quando memorizado), também pode ser
simbolizada pela ave, uma vez que ambas optam por se destruir para nascer
novamente a cada autodestruição, como explica Granger, um dos insurgentes do
livro:
49
havia uma ave estúpida chamada Fênix que, a cada cem anos, construía uma pira e se consumia em suas chamas. (...) Toda vez que se queimava, ressurgia das cinzas e novamente renascia. E parece que estivemos fazendo e refazendo inúmeras vezes a mesma coisa, só que com uma vantagem que a Fênix nunca teve. Nós sabemos a estupidez que acabamos de cometer. Conhecemos todas as coisas estúpidas que estivemos fazendo nos últimos mil anos. Desde que não nos esqueçamos disso, que sempre tenhamos algo para nos lembrar disso, algum dia deixaremos de construir as malditas piras funerárias e de saltar dentro delas. (BRADBURY, 2012, p. 197)
Ainda, é possível analisar Montag a partir das diversas fases passadas por
ele, as quais fizeram com que ele mudasse de forma-sujeito. Entende-se como
forma-sujeito o ser social enquanto elemento sócio-histórico, com ações pensadas
a partir de um dado posicionamento. Montag passa por uma primeira fase, em que
acredita verdadeiramente que evitar o pensamento sempre é a forma correta –
mesmo que inconscientemente – de proceder. Respeitava as leis, era marionete de
seus superiores, dos que ditavam as regras. Seu primeiro encontro com Clarisse
mostra sua gratidão por seu trabalho e por ser uma pessoa “racional”, como pode
ser observado no trecho a seguir:
- Você nunca lê nenhum dos livros que queima? Ele riu. - Isso é contra a lei! - Ah, é claro. - É um trabalho ótimo. Segunda-feira, Millay; quarta-feira, Whitman; sexta-feira, Faulkner. Reduza os livros às cinzas e, depois, queime as cinzas. Este é o nosso slogan oficial. Caminharam ainda mais um pouco e a garota disse: - É verdade que antigamente os bombeiros apagavam incêndios em vez de começá-los? - Não. As casas sempre foram à prova de fogo, pode acreditar no que eu digo. (BRADBURY, 2012, p. 26)
Em tal diálogo, logo no início da história, surge os primeiros passos de
Montag em direção ao esclarecimento, seu “acordar para a vida”, quase como uma
epifania. Na interação com o outro, com Clarisse, o bombeiro passa a construir para
si uma nova identidade. Tal interação é criada pelos interlocutores e, ao mesmo
tempo, tem efeito neles. Entende-se, assim, a posição do bombeiro dentro daquela
sociedade, com aquela forma de pensar, sendo esta totalmente oposta à de Clarisse.
Para representar a aquiescência e conformação, o livro de Bradbury mostra
uma história futurista em que a tecnologia é não só presente, mas também essencial
à vida daquela sociedade. É a partir da tecnologia que os indivíduos conseguem se
50
divertir, uma vez que o governo pensa constantemente em formas de fazer com que
as pessoas se sintam servidas pelas máquinas. Tudo é aceitável: dirigir em alta
velocidade para diminuir o estresse (e ser preso caso dirija “devagar”), outdoors
enormes para que as pessoas possam vê-los ao passar velozmente na rodovia,
programas televisivos que propõem a participação do espectador, comprimidos
calmantes e estimulantes tomados como se fossem água, etc. Tem-se, assim,
formas infindáveis de distração dos cidadãos comuns, propostas pelo governo afim
de mantê-los alienados e tolerantes às regras.
Conforme já dito, Montag (de forma diferente e além de Beatty) é o “meio”
que o escritor e o cineasta utilizaram para representar a ideologia nas obras, pois
ele mostra a ideia de Althusser com relação à função primária da ideologia, que é
“reproduzir sujeitos aquiescentes aos valores necessários à manutenção da ordem
social opressiva” (apud STAM, 2003, p. 158). É a partir de Montag que, no
supracitado diálogo, entende-se qual sua posição de pensamento e qual a maneira
determinada para que todos sejam manipulados a pensar. O bombeiro é o exemplo
de cidadão correto, que não vai contra as leis e que aproveita a vida a partir das
distrações que a sociedade impõe. Concorda com a tecnologia e também gasta seu
dinheiro com as grandes televisões, as quais são utilizadas para que a população
assista a programas estipulados e não busquem por algo diferente – sendo esta,
então, uma crítica direcionada às sociedades de lá e de cá; aceita a tecnologia e
almeja carros velozes, pois estas são as formas de diversão autorizadas e porque
“todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a
Constituição, mas todos se fizeram iguais” (BRADBURY, 2012, p. 81). Compartilha
da ideologia do governo, uma vez que participa e defende as práticas sociais
determinadas.
Na contramão, há Clarisse, quem surge para representar, como enxerga
Truffaut, uma outra parte de Montag. A princípio, esta outra parte aparece como um
lado oposto, especialmente quando a garota contradiz tudo o que ele acredita:
Eu raramente assisto aos “telões”, nem vou a corridas ou parques de diversão. Acho que é por isso que tenho tempo de sobra para ideias malucas. Já viu os cartazes de sessenta metros no campo, fora da cidade? Sabia que antigamente os outdoors tinham apenas seis metros de comprimento? Mas os carros começaram a passar tão depressa por eles que tiveram de espichar os anúncios para que pudessem ser lidos. (ibidem, p. 27)
51
Com o contraste de ideias entre Clarisse e Montag, o bombeiro consegue,
pela primeira vez, questionar o que lhe é imposto, ao mesmo tempo em que, também
pela primeira vez, nota que não há uma escolha por parte de ninguém, visto que
algo está, de fato, sendo manipuladoramente inserido em sua cabeça. Clarisse faz
observações, questionamentos e aponta dados para os quais o bombeiro nunca
havia atentado. Ao fim de seu encontro, a garota o instiga ao perguntar se ele é feliz.
Pensar passa a ser, então, uma nova – e frequente – experiência.
Clarisse é a primeira a notar que Montag é diferente do resto dos cidadãos,
visto que ele se interessa e, mesmo de forma relutante, pensa a respeito de tudo o
que ela diz. Por este motivo, ela diz que ele, assim como ela, também é “estranho”:
“às vezes até me esqueço que é bombeiro” (ibidem, p. 43). A crise de identidade de
Montag se inicia logo após poucos encontros com a garota, quando, em seu
trabalho, questiona o capitão a respeito de suas funções como bombeiros e da
história de sua profissão. Num primeiro momento, Clarisse personifica a resistência,
de forma que possui sua própria ideologia e, a partir dela, busca mudanças no meio
social em que se encontra. Enquanto isso, o capitão Beatty, justamente com Montag,
personificam a ideologia de defesa do status quo daquela sociedade. É através dele
que se torna possível entender a questão ideológica a partir do “hábito” e do “uso”,
os quais são capazes de designar, igualmente, o que é e o que deve ser, o que às
vezes acaba sendo mostrado por desvios linguísticos.
A desculpa pela queima de literatura é apresentada, no filme, com uma fala
do capitão a Montag:
Agora, aqui está um livro sobre o câncer de pulmão. Todos os fumantes entraram em pânico! Por isso e para a paz de espírito de todos, nós o queimamos. Agora este deve ser muito profundo: A Ética de Aristóteles. Qualquer um que o tenha lido acredita que está acima de quem não o leu. Entende? Isto não é bom, Montag. Todos nós temos que ser iguais. A única maneira de sermos felizes é se todos formos iguais. Por isso, temos que queimar os livros, Montag. (TRUFFAUT, 1966)
Ainda nesta cena, diferentemente do livro, o capitão dos bombeiros segura
em suas mãos o livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler. Há, então, uma referência ao
período hitlerista em que livros proibidos eram queimados em praça pública. Com
isso, mostra-se a primazia de determinada ideologia em detrimento de outras
correntes de pensamento que buscassem combater aquela. É neste ponto da
história que Montag mostra sinais mais profundos de seu descontentamento com as
52
imposições, de forma que se sente cada vez mais tentado a descobrir o que
escondem os livros, e, assim, inicia sua ruptura com as mesmas. O grande momento
em que se torna possível visualizar tal ruptura é quando Montag demonstra que quer
encarar seus sentimentos, ao invés de fugir (em alta velocidade) dos mesmos, como
mostra o trecho a seguir
Não, eu não quero. Não desta vez. Quero ficar com essa coisa esquisita. Meu Deus, isso ficou grande em mim. Não sei o que é. Estou tão desgraçadamente infeliz, com tanta raiva, e não sei por quê. (...) Tenho a impressão de que deixei de lado um monte de coisas e não sei exatamente o quê. Eu poderia até começar a ler livros. (BRADBURY, 2012, p. 88)
É ainda neste momento que o bombeiro finalmente revela para sua esposa
que vinha estocando livros dentro de casa há cerca de um ano. Mesmo com o
desespero de sua esposa, Mildred, ele admite que não irá queimá-los, que quer olhar
para eles, e nem a presença do capitão Beatty na porta, podendo invadir a casa,
poderá fazer com que ele mude de ideia.
Entende-se, então, que “nos processos discursivos há sempre ‘furos’, falhas,
incompletudes, apagamentos e isto nos serve de indícios/vestígios para
compreender os pontos de resistência” (ORLANDI, 2012, p. 213). Dessa forma, é ao
ser separado pelo Estado, tornando-se individual, que o sujeito possibilita a
visualização de pontos de resistência, pois algo nesse processo acaba falhando e
“a falha é o lugar do possível” (ibidem, p. 230). É na falha que há a “condição para
que os sujeitos e os sentidos possam ser outros, ‘fazendo sentido do interior do não-
sentido’” (ibidem, p. 231). Para Orlandi, é aí que se inicia a resistência.
Na representação das ideias mostradas no livro, o filme busca diferentes
subterfúgios para trazer a ideia de época futurista, como os diálogos, que deixam
claro o momento vivido, ou alguns (poucos) elementos que simbolizem alguma
tecnologia, como as televisões, o serviço de emergência médica e o rápido
transporte dos bombeiros. Não há grande preocupação com efeitos visuais ou
mesmo com uma arquitetura que remeta ao futuro. É nesse sentido que se entende
que “contar uma história em palavras, seja oralmente ou em papel, nunca é o mesmo
que mostrá-la visual ou auditivamente em quaisquer das várias mídias performativas
disponíveis” (HUTCHEON, 2011, p. 49), pois sabe-se que dificilmente será possível,
ou desejado, adaptar tudo o que o texto escrito propõe.
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O cinema possui especificidades próprias de sua linguagem, como a
possibilidade de utilizar imagens para o que, no livro, se tinha na imaginação – ainda
que isto não se enquadre como uma limitação da interpretação. Um exemplo disso
são as telas televisivas. O sonho de consumo da esposa de Montag, Mildred/Linda,
é colocar a quarta tela, visto que ter as quatro paredes de uma sala televisionadas
é o símbolo de ascensão social da referida sociedade. No romance, o leitor pensa
em um cômodo cercado por imagens, correspondendo ao que Bradbury havia
imaginado quando escreveu a história. Já no filme de Truffaut, tais telas são
televisões de tela plana, o que se explica devido ao cineasta de fato ter escolhido
utilizar o maior veículo de manipulação daquela – e desta – sociedade, conforme
mostrado até mesmo no início do filme, em que são filmadas várias antenas nos
tetos das casas. Houve a intenção de que existisse essa diferença entre o filme e o
livro, uma vez que a televisão possui um papel tão importante quanto (e talvez, ainda
mais que) o da própria Mildred. Ela é o veículo de propagação da ideologia do
governo e funciona exatamente como este deseja: de forma que o indivíduo não
perceba que está sendo influenciado.
Dessa forma, é possível entender a comparação de Barthes (1977, p. 45) ao
dizer que o livro faz com que o leitor sinta como se tivesse estado na história, ao
tempo em que o filme traz essa sensação para o presente. Assim como ver a
televisão de tela plana faz com que o espectador aceite aquilo como autêntico, ouvir
os créditos falados também faz com que mesmo imagine-se ali, com alguém lhe
contando uma história.
Ao mesmo tempo, no romance fala-se muito sobre o quanto as pessoas são
dominadas e forçadas a não pensar. O leitor é sempre levado a refletir junto com os
personagens a respeito da manipulação do governo, seja a partir das ideias de
Faber, das pessoas-livros ou até mesmo de Montag, em suas várias divagações. De
forma que tal iteração não iria acontecer no filme, por escolhas do próprio cineasta,
Truffaut usou uma cena na escola onde Clarisse trabalhava para dar vida a essas
críticas reiteradas no livro. Quando a garota e Montag passam pelo corredor que
leva às salas de aula, é possível ouvir várias crianças recitando mecanicamente a
tabuada: “Uma vez dois é igual a dois; duas vezes dois é igual a quatro...”. Assim,
Truffaut verbera a pressão do governo, mostrando os estudantes como robôs que
só repetem o que lhes é imposto. Ainda, expõe a educação como algo construído a
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partir de fórmulas prontas e receitas a serem seguidas, de forma que os alunos não
têm nem mesmo como questionar o porquê das coisas e acabam por se tornar cada
vez menos críticos e/ou conscientes.
Ainda neste sentido, Truffaut, em sua adaptação, mostra um Montag
constantemente desorientado, que oscila entre o medo de que descubram suas
práticas subversivas e a sede por mudança, que faz com que ele queira que todos
descubram o porquê da oposição do governo em relação aos livros. Montag torna-
se sujeito da resistência na medida em que se opõe as ideias que lhe são impostas,
passando a mostrar em seu discurso o que já se encontra ressaltante em seu
subconsciente, o que mostra que as leis de uma sociedade são capazes de regular
a mesma, mas também de fazer com que seus cidadãos resistam. Assim, a
resistência é um meio de mudança, mas não a mudança em si (VENTURA, 2009, p.
157). Para Pêcheux (1977), é nesta luta de classes que haverá a
manutenção/reprodução de um movimento e, ao mesmo tempo, a transformação
deste.
O foco do cineasta, porém, não é apenas mostrar a resistência de Montag,
mas, principalmente, emoldurar a foto de uma sociedade marcada por uma ideologia
dominante. Como explica Common e Narboni (1977 apud STAM, 2003, p. 163), “o
que a câmera de fato registra” é uma reprodução do mundo a partir de como o
mesmo aparenta ser quando visto pelos olhos da ideologia, não como ele de fato é:
“Isso inclui todos os estágios do processo de produção: o tema, os estilos, as formas,
os sentidos as tradições narrativas; todos sublinham o discurso ideológico geral”. O
personagem de Oskar Werner é ajustado ao sistema capitalista e mostra uma forma
de consciência que, para o espectador, parece natural.
Ao longo do filme, Truffaut inverte muitas cenas, sendo uma delas a que
Montag conhece Clarisse. Bradbury relata a volta de Montag do trabalho, a pé; o
bombeiro percebe que está sendo seguido e, após um tempo, Clarisse aparece e se
apresenta. No filme, o primeiro encontro real entre ele e a garota acontece no metrô.
A cena em que o bombeiro é seguido acontece de forma diferente e apenas na
metade do mesmo: Clarisse não está sozinha, tem em sua companhia a Sra. Blake
(anteriormente comentada), a qual foi provavelmente escolhida como forma de
inserir a literatura na cena a partir do nome de (William) Blake. Ambas estão atrás
de Montag, cochichando. Tais inversões mostram que o processo de adaptação se
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deve também ao fato de que o próprio adaptador, antes de tudo, é intérprete da
história que tenta ajustar e, por isso, o mesmo acaba filtrando-a e absorvendo-a a
partir de sua própria sensibilidade e interesse (HUTCHEON, 2011, p. 43).
A própria garota é outro ponto largamente interessante de contraste entre
as mídias. Bradbury descreve Clarisse como uma garota de quase 17 anos que
acabou de abandonar a escola, devido ao fato de que os métodos de educação
utilizados pretendiam moldar o aluno de forma a aceitar tudo o que lhes fosse
imposto e Clarisse, questionadora, não conseguia se adaptar a este padrão. Já
Truffaut coloca a garota como uma mulher nos seus vinte e poucos anos que deseja
ser professora Claramente, a escolha dos realizadores tem conotação ideológica e
possui motivos específicos. Bradbury a retrata como uma aluna, que é em quem
todas as expectativas de mudanças para que haja um mundo melhor são colocadas.
Além disso, alguns anos após a publicação do livro, ocorreu a própria revolução de
68 na França, a qual se deu graças às manifestações dos estudantes. Truffaut, por
outro lado, apresenta Clarisse como professora, profissão responsável por professar
ideologias e por abrir as primeiras portas da revolução em busca de mudanças.
Ainda, a diferença pode ter ocorrido também pelo fato de que Clarisse e
Mildred/Linda, a esposa de Montag, foram interpretadas pela mesma atriz, Julie
Christie. Ao considerar que Mildred tem 30 anos, nada mais evidente que aproximar
a idade das duas para que o mesmo rosto convença o espectador.
A troca do nome talvez tenha acontecido apenas para que uma mulher
comum como a esposa de Montag tivesse, também, um nome comum. Ou, indo um
pouco mais além, para que houvesse uma aproximação fonológica com o nome da
outra mulher presente na vida de Montag – cLArIsse e LIndA –, de forma a contrastá-
las ainda mais como faces diferentes de um mesmo elemento (abaixo explicado). Já
a escolha da atriz é explicada pelo fato de que Truffaut não queria que a esposa
fosse vista como a vilã e a garota como a heroína; a ideia é que as duas deveriam
ser dois lados da mesma moeda, uma vez que elas representariam os desafios de
Montag ao longo de sua descoberta de si mesmo.
Portanto, apesar de diferirem em um ponto bastante importante – duas das
personagens principais –, as obras não dependem uma da outra, ou seja, não é
preciso que se leia o livro para que se entenda o filme, ou vice-versa. Ambos contam
essencialmente a mesma história, porém se diferenciam em relação a alguns
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elementos. Ainda assim, cada texto ainda consegue ser suficiente em si mesmo e
contribuir para a compreensão do universo narrativo em questão. Em relação a isso,
apesar das obras não se encaixarem de forma perfeita ao conceito, a definição de
narrativa transmídia dada por Jenkins faz com que seja possível perceber que há a
utilização de elementos transmídia em ambos os textos, e mostra que
Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. (JENKINS, 2009, p. 138).
Exemplo disso é o fato de que Bradbury mostra dois personagens
primordiais que não aparecem no filme: Faber, o mentor de Montag, que marca toda
a segunda parte do livro; e o Sabujo, um cachorro mecânico que busca por infratores
(= livres pensadores). Na segunda parte do livro, Montag passa a ter contato não só
com livros, mas com outros insurgentes que vivem, de alguma forma, longe das
vistas do governo. É quando conhece Faber, um antigo professor que passa a ser a
única pessoa em quem ele pode confiar, uma vez que Clarisse desapareceu sem
explicações. Faber era professor universitário, mas ficou sem emprego após a
queima de livros e, consequentemente, o fechamento de universidades. A partir de
um ponto em seu ouvido, para que possa se comunicar com Faber antes de
finalmente fugir, Montag consegue saber o que falar e como falar com o capitão dos
bombeiros durante sua transição para a subversão. Reduzir-se a uma voz no ouvido
do protagonista faz com que Faber possa ser visto como a consciência de Montag;
ao mesmo tempo, o próprio Montag também pode ser visto como a coragem
adormecida do professor.
Ainda neste ponto, é possível analisar o porquê do nome do mentor de
Montag: Faber, do latim “artesão”, “criador”, “aquele que faz”, remete-nos a Bergson
e sua noção de homo faber, a qual explica que o indivíduo é primeira e naturalmente
o ser que tem poder sobre a matéria, o qual seleciona possibilidades com sua
inteligência e não responde apenas a impulsos instintivos (ZUNINO, 2010, p. 263).
Ou seja, é a capacidade de fabricar que diferencia o ser humano do animal. Assim,
tal nome vem repleto de significação ao bombeiro da história, que passa a
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diferenciar-se de todos os outros a partir do momento que entende sua capacidade
de modificação do que estava, então, pré-determinado.
Apesar de tamanha significação, a ausência do professor, no filme, não
trouxe prejuízo para a história, uma vez que houve total intenção do cineasta em
mantê-lo de fora, dado que a função do mesmo acabaria sendo suprida por Clarisse
e, mais à frente, pela própria sede de mudança despertada no bombeiro. Além disso,
a forma como Truffaut montou sua narrativa foi eficiente no que diz respeito a
transmitir os desafios de Montag em sua busca pela literatura. Enquanto sujeito-
falante, Montag passa a inverter sua posição-sujeito e tal mudança de posição não
acontece por determinação do sujeito, mas sim, concebida como efeito exterior do
real-ideológico-discursivo, na forma-sujeito. Com suas falas, nota-se que o discurso
de Montag é a ocultação de seu inconsciente. No filme, não há necessidade de um
Faber, pois toda a trama ocorre numa velocidade e coesão que possibilitam a fluidez
e coerência da história: é um macramê muito bem entrelaçado. Assim, entendendo
o trabalho cinematográfico como uma arte independente, é possível perceber que
Truffaut mudou propositalmente determinadas partes do romance Fahrenheit 451
com a intenção de adaptá-lo para o novo suporte e de forma a marcar sua posição.
Quanto ao Sabujo, é descrito um animal mecânico de oito patas, desprovido
de emoções, capaz de farejar insubordinados que mantinham o hábito da leitura. A
partir de um aparelho em seu focinho, injetava doses enormes de morfina ou
procaína no transgressor com apenas uma mordida. Ele fez parte dos maiores
temores de Montag no início de seu interesse pela literatura. No filme, o mesmo não
existe. Fazê-lo a partir de efeitos especiais ou mesmo jogo de iluminação não seria
problema, porém deve-se considerar alguns pontos como: 1) François Truffaut não
é um diretor famoso por filmes com grandes arquiteturas computacionais, seu
cinema é cult e sem pretensão alguma de se tornar o que Star Wars foi para a época
no que diz respeito a efeitos especiais. O próprio diretor (DÜLLMANN, 2007) admitiu
que não tinha intenção de usar muitos elementos futuristas, o que pode ser explicado
pelo fato de que o futuro apenas confirma algo que acontece todos os dias no
presente – no caso, a censura e o combate ao pensamento discordante. 2) Truffaut
escolheu, sim, um Sabujo, porém não sob a forma de cachorro. Em momentos
primordiais do filme, é possível perceber a presença do bombeiro Fabian, sempre
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atento a qualquer movimento de Montag. É ele quem supre a necessidade de um
cachorro mecânico que segue todos os passos do personagem principal.
Dessa forma, apesar de ser um filme que remete ao futuro, o máximo
utilizado na adaptação de Fahrenheit 451, no que diz respeito a efeitos especiais,
foram os bombeiros sobrevoando a cidade à procura de Montag e, ainda assim, é
possível ver perfeitamente os cordões pelos quais eles se mantêm suspensos. Isso
se dá pelo fato de que houve, a todo tempo, a intenção de mostrar que aquilo tudo
era ficção. De tal modo, é possível notar que as escolhas do cineasta
proporcionaram uma ligação maior da história com o espectador, uma vez que
(...) a leitura se realiza a partir do diálogo do leitor com o objeto lido – seja escrito, sonoro, seja um gesto, uma imagem, um acontecimento. Esse diálogo é referenciado por um tempo e um espaço, uma situação; desenvolvido de acordo com os desafios e as respostas que o objeto apresenta, em função de expectativas e necessidades, do prazer das descobertas e do reconhecimento de vivências do leitor. (MARTINS, 1994, p. 33).
Pode-se considerar, também, no corte do personagem de Faber e na
ausência do Sabujo, além da escolha da mesma atriz para Mildred e Clarisse, que a
questão financeira é extremamente marcante em uma adaptação cinematográfica.
A prioridade não é apenas a arte pela arte. No cinema, ao mesmo tempo em que
tudo visa lucros, tudo acarreta gastos. Quaisquer mudanças exigidas numa
adaptação são feitas pensando no dinheiro gasto e no dinheiro esperado. Por isso,
uma adaptação bem-sucedida é aquela que rendeu financeiramente, que encheu
salas de cinema com telespectadores pagantes. Considerando as questões
corporativas e financeiras, além de uma história bem contada, há também a
pretensão de fazer o máximo com o mínimo e ainda tirar algum proveito. Com isso,
mais uma vez pode-se notar a presença de uma ideologia que rege até mesmo
aqueles que têm intenção de levar cultura a determinado público. A adaptação
cinematográfica é fruto de uma sociedade que é comandada pela ideologia do
dinheiro, em que o capitalismo é algo que deve ser simplesmente aceito como fato.
Isso pode ser percebido pelo fato de que os filmes mainstream quase sempre
acabam com um final feliz, de forma a privilegiar o público que busca histórias mais
leves. Por mais que Truffaut, com Fahrenheit 451, tivesse a vontade de pregar o
oposto do consumismo, ele acaba sendo forçado a tal ideologia, pois a indústria de
seu trabalho visa o lucro antes da arte.
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Malcom Bradbury (1994, p. 101) explica que o processo de recriar todo o
enredo de um romance não tem custo algum, até porque tal processo acontece na
imaginação do leitor e, nela, cada versão é diferente. Porém,
Quando se está escrevendo um roteiro para a televisão, é como se (o adaptador) estivesse sentado em um táxi; o taxímetro está sempre rodando e tudo deve ser pago. Sempre pode-se ver o preço aumentando, em todo lugar para o qual se vá, ou as dificuldades da performance e da produção; esta é a arte de escrever para tal meio. O romance, porém, tem o taxímetro desligado; é possível escrever o que quiser, falar sobre Buenos Aires, sobre a lua, sobre o que quer que seja. [Tradução da pesquisadora]11
Truffaut (1984), por outro lado, enxerga o fato do taxímetro estar sempre
rodando como uma das vantagens do cinema em relação ao romance: “você não
pode simplesmente largar tudo. A máquina está com as engrenagens ligadas,
contratos são assinados...” [Tradução da pesquisadora]12. Dessa forma, é natural
que haja uma economia no enredo na realização de uma adaptação.
Ainda o cineasta (2005, p. 13) retoma a ideia de Hutcheon (2011, p. 45) no
que diz respeito à criação na adaptação: não depende apenas de uma pessoa o
fazer de um filme, portanto, o fim do roteiro não determina o fim da obra; sempre
há o olhar do diretor, a reação ou improvisação do ator, a edição e todas as outras
peças que são essenciais na montagem de um filme. Diniz (2003, p. 66) também
defende esta ideia ao buscar no teatro fundamentações para seus estudos. Explica
que o filme “apresenta a peça que está sendo escrita como um trabalho
colaborativo”, pois havia ajuda por parte de todos que naquela arte trabalhavam,
uma vez que “os dramaturgos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros,
num verdadeiro trabalho de equipe”. Assim sendo, o diretor e sua equipe agem
continuamente como intérpretes antes de, finalmente, serem adaptadores:
interpretam, criam e recriam em uma nova mídia. Isso significa que não há uma
receita a ser seguida na adaptação, o que pode ser comprovado quando Truffaut
(2005, p. 317) explica que realizou Fahrenheit 451 porque “quis fazer minhas
ideias de cineasta coincidirem com as minhas ideias de cidadão francês”, não por
11 When you are writing a TV script, it is like sitting in a taxi; the meter is always running, and everything
has to be paid for. You can always see the price turning over everywhere you go, or the difficulties of
performance and production; that is the art of writing for the medium. But the novel has the meter
switched off; you can write what you like, have Buenos Aires, have the moon, have whatever you
want.
12 […] is that you can’t just drop it. The machine’s in gear, contracts are signed.
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haver uma obrigação ou necessidade de seguir o enredo do livro. Ainda nesse
ponto, Arrojo diz que
[...] mesmo que considerássemos o autor o “pai absoluto‟ do texto que lemos ou traduzimos, ele será irremediavelmente nosso “convidado‟ nessa empresa; sua atuação, sua própria “presença‟ nesse projeto dependerá sempre do papel que, explícita ou implicitamente, lhe outorgamos. (1986, p. 41)
Isso quer dizer que a história tem seu autor inicial, mas passa a ser colaborativa no
momento em que o roteiro é construído de maneira a caminhar junto com o texto de
partida, porém, sem deixar de lado as ideias do cineasta ou dos roteiristas.
Na convergência entre as obras, tem-se, ainda, um aspecto de grande
importância e exposto de forma diferente em cada uma das mídias: o
desaparecimento de Clarisse. No livro, ela simplesmente desaparece em algum
ponto da história. Bradbury afirma que a garota morre, perseguida por suas ideias
antagônicas e sua curiosidade desigual. Já Truffaut a mantém viva, deixando isso
explícito primeiramente em uma cena que mostra sua fuga quando os bombeiros
invadem a casa em que ela morava com seu tio. Por fim, a garota reaparece no
acampamento das pessoas-livros (explicado adiante) – não por acaso – como
Memoirs of Duc de Saint-Simon. Truffaut brilhantemente escolheu tal livro para
representar a nova vida de Clarisse, de forma que explicita uma ideologia ao utilizar
do clássico literário francês, escrito por Louis de Rouvroy, dando uma imagem
completa da Corte de Versalhes, e nos remetendo a um princípio absolutista.
Com o desaparecimento de Clarisse, Montag passa a ser o subversivo da
trama, uma vez que começa a agir um pouco como a garota, isolando-se de todos,
adquirindo gostos diferentes. Isso é resultado da mudança de posição ideológica do
bombeiro, que se aproxima cada vez mais de uma identidade insurgente, e dos
efeitos dessa nova ideologia. Assim como a garota, Montag não aceita mais a vida
com todas aquelas normas impostas. A consciência passa a ser sua realidade, não
mais algo do qual não tinha conhecimento, e ela aparece ao revelar o mundo. O que
Truffaut buscou manter da história de partida é a ideia de que Montag vê sua
liberdade nos livros e em Beatty, vê uma ameaça a tal liberdade. Há, então, dois
discursos diferentes, sendo um que representa uma vida nova e outro que é apenas
mais do mesmo. Manter a garota viva foi uma forma de mostrar que Montag se
espelhava e se direcionava a partir de alguém, e que houve uma pessoa que o
61
ajudou a construir sua recém-descoberta consciência. E, de fato, tal escolha agradou
tanto Bradbury que o próprio autor utilizou o final do filme em sua peça teatral de
Fahrenheit 451 (1979).
Ainda, não por acaso são os livros escolhidos para o novo Montag. O
Eclesiastes tem como tema principal o absurdo da vida, de forma que mostra a
depressão causada pela constante busca da felicidade no que é mundano, material.
Por fim, a história mostra que a produção de livros é algo negativo, o que torna a
escolha de Bradbury um tanto paradoxal. Tal livro busca ensinar o desapego dos
bens que existem “debaixo do sol” (o mundo mortal) e nega a felicidade dos que têm
dinheiro, pois
tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma, pois eu me alegrava com todas as minhas fadigas, e isso era a recompensa de todas elas. Considerei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o trabalho que eu, com fadigas, havia feito; e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol. (BÍBLIA, Eclesiastes 2.10-11, grifo da pesquisadora)
Ao mesmo tempo, Truffaut diferencia-se, colocando Montag como o grande
livro de Dickens, David Copperfield. Uma vez que o cineasta busca refletir em seus
personagens elementos pessoais, faz sentido que este tenha sido o livro escolhido
para Montag, visto que (muitos creem que) Dickens tenha feito o mesmo, incluindo-
se em David Copperfield. Este conta a história do homem que o intitula, mostrando
toda sua infância e juventude. É uma das primeiras obras a delatar a hipocrisia e o
rigor absurdos da moral vitoriana, retratando uma época em que a educação
enxergava a criança como um indivíduo a ser ensinado a se civilizar, uma vez que a
considerava naturalmente perversa. Ainda, mostra uma sociedade sem pretensões
de revolução e que defende cegamente um governo inquestionável. Com David
Copperfield, Dickens tornou-se um símbolo do pensamento revolucionário do
século XVIII. Assim, tanto Bradbury quanto Truffaut conseguiram eximiamente
escolher obras que se encaixavam no papel que Montag havia passado a
desempenhar.
Com tais diferenças, torna-se possível entender que o filme tenta
reproduzir a realidade de forma mais rápida, visto que é uma linguagem ouvida e
assistida, que exige determinada velocidade. A literatura surge com a ideia, o
abstrato: o narrador guia o leitor a formar, em sua imaginação, todos os
62
personagens, os espaços, as expressões e reações; já o cinema precisa recriar a
noção de tempo e espaço, para, então, apresentar aquele mundo sendo exibido na
tela. Assim, o filme mostra, ao tempo que o livro descreve. Segundo Jauss, em sua
Estética da Recepção (1964), o espectador do filme que já tenha lido a história
que deu origem a este já tem o conhecimento sobre o conteúdo do mesmo e,
devido a isto, possui um “horizonte de expectativas”, o qual pode ser modificado
e/ou questionado. Retomando esta ideia, Clüver (2006, p. 15) explica que
O repertório que utilizamos no momento da construção ou da interpretação textual compõe-se de elementos textuais de diversas mídias, bem como, freqüentemente, também de textos multimídias, mixmídias e intermídias. As comunidades interpretativas, que determinam e autorizam quais códigos e convenções nós ativamos na interpretação textual, influenciam também o repertório textual e o horizonte de expectativa.
Tal influência faz com que haja esse desejo contínuo por fidelidade entre
trabalhos feitos para suportes completamente diferentes, pois, ao buscar a
associação, torna-se natural ao indivíduo ler uma história e esperar que o filme seja
“tão bom quanto” o livro, como é comumente dito.
Ainda nesse ponto, conforme explica Stam:
A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (2008, p. 20).
É indesejável, de fato, uma vez que transpor uma história de um livro para
as telas e mantê-la exatamente igual faria com que a mesma acabasse sendo
extremamente monótona ou incoerente. Assim, há pontos de convergência entre
as obras que não necessariamente acontecem da mesma forma ou de forma
completamente diferente. Truffaut utilizou de peças distintas para mostrar uma
mesma situação descrita por Bradbury, como é o exemplo do comercial da pasta
de dentes Dentifrício Denham. Como se trata de uma sociedade constantemente
mantida em alienação e dependente dos meios de comunicação não-literários, a
propaganda é um símbolo do controle do governo sobre a população. O comercial,
alto, passava no metrô, impedindo que qualquer pessoa conseguisse se concentrar
em algo que não fossem aquelas palavras: “Dentifrício Denham”; “Denham
resolve”; “creme dental Denham”.
63
Neste momento, conforme citado anteriormente, Montag tenta se
concentrar nos escritos de uma Bíblia que carregava em mãos. Como uma
referência ao título do capítulo, “A peneira e a areia”, o bombeiro tenta ler o mais
rápido possível, com a esperança de que algo daquilo fique em sua memória, como
se passasse areia em uma peneira e, ali, conseguisse reter alguma coisa. Com as
palavras sendo invariavelmente repetidas, ele não conseguia entender o que lia. E
quanto menos entendia, mais irritado ficava, a ponto de gritar, insano, no metrô:
— Calado, calado, calado! — Foi uma súplica, um brado tão terrível que Montag se viu em pé, os passageiros do vagão barulhento espantados, afastando-se desse homem de rosto demente, inflamado, a boca seca tartamudeando, o livro se agitando em seu punho. As pessoas que, um minuto antes, estavam sentadas, batendo os pés ao ritmo do Dentifrício Denham, o Creme Dental Denham, Dentifrício Dentifrício Dentifrício Denham, um dois, um dois três, um dois, um dois três. Pessoas cujas bocas se agitavam levemente repetindo as palavras Dentifrício Dentifrício Dentifrício. Em retaliação, o rádio do trem vomitava sobre Montag uma tonelada de música feita de estanho, cobre, prata, cromo e bronze. O clangor reduziu as pessoas à submissão; não corriam, não havia lugar nenhum para onde correr; (BRADBURY, 2012, p. 103-104)
Já no filme, a cena do comercial não existe, uma vez que ela precede a
primeira ida de Montag à casa de Faber. A solução encontrada por Truffaut foi a de
colocar Clarisse e a Sra. Blake no metrô, observando o bombeiro. Ao saírem do
veículo, Clarisse passa a segui-lo até esbarrarem-se, como num acaso. Neste
momento, ambos saem para tomar um café e Clarisse conta que foi demitida, sem
explicações, da escola onde trabalhava. A forma que Montag encontra para
extravasar, como correlação com a cena do comercial, no livro, é a de faltar ao
trabalho e voltar com a garota à escola para buscar explicações à injustiça a ela
cometida. Com relação a isso, Truffaut (2005, p. 259) supõe que há cenas
passíveis e não passíveis de filmagem num romance adaptado – o que é
claramente questionável, uma vez que o que é não-filmável para um diretor não
necessariamente o é para outro. Assim, ao invés de eliminar tais partes, a opção é
pela criação de cenas análogas, de forma que pareça que o autor do romance as
escreveu especialmente para o cinema. De tal forma, Truffaut conseguiu adicionar
ao filme ora sua opinião, ora os elementos ideológicos que pretendia mostrar.
Portanto, o essencial de uma adaptação é que haja momentos de
afastamento bem como de aproximação entre as obras. Como previamente dito, a
fidelidade total não garante o sucesso da adaptação, uma vez que o que foi
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pensado para um suporte nem sempre pode ser aproveitado em outro, e, com
certeza, não o será totalmente. Entende-se, portanto, que a posição de seu
realizador tem fundamental importância no resultado da história contada, pois
Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal. Nenhuma tradução será, portanto, “neutra” ou “literal”; será, sempre e inescapavelmente, uma leitura. (ARROJO, 2003, p.77).
As diferenças são partes primordiais da adaptação, pois são elas que
garantirão à história novas leituras: são as imagens, cores, atores, atuações,
figurinos e todas as coisas feitas especialmente para um filme que garantem ao
espectador uma visão em relação ao que está sendo contado, visão a qual seria
diferente – não melhor, nem pior – caso a leitura estivesse ocorrendo em um livro
ou qualquer outro suporte. Portanto, assim como no livro, uma adaptação
proporcionará uma leitura única e diferente todas as vezes, visto que as ideologias,
as situações e o próprio leitor estão sempre em transformação.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fahrenheit 451 é considerada uma distopia, aquilo que destoa
absurdamente da realidade. Mas será possível que seja tão destoante assim? Ou
Bradbury foi, de certa forma, visionário ao escrever seu livro? Pinto (2012 apud
BRADBURY, 2012, p. 17), responsável pelo prefácio do livro, explica que "Bradbury
não imaginou um país de analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita
foi reduzida a um papel meramente instrumental e no qual a literatura e a arte têm
função ‘culinária’”.
As previsões de Bradbury mostram-se a cada dia mais verdadeiras. Hoje em
dia, as regras ainda são impostas todos os dias e a sociedade age da forma que o
governo determina mesmo sem perceber. Isso inclui a propaganda e a primazia da
televisão, as quais são usadas para moldar o cidadão “perfeito”: aquele que não se
rebela. Isso nos remete a Montag, que pode representar qualquer alienado da época
Nazista, qualquer um que estava longe do fogo cruzado e acreditava não sofrer
impacto algum daquela situação; pode representar o cidadão francês que aprendeu
a importância de sua voz após ver todas as manifestações das classes de
estudantes e trabalhadores em busca de seus direitos; pode até mesmo representar
o aluno, professor, cidadão – contemporâneo ou não – que entra em contato com
uma obra (literária, cinematográfica, virtual...) e abre uma nova janela em sua mente,
pronta para receber novas informações e mais conhecimento.
E é pelo fato de a intelectualidade estar se tornando algo de menor
importância que é fundamental aceitar que o alfabeto deixou de ser constituído
apenas por letras escrita. Deve-se conviver com as multissemioses da nossa
sociedade, que hoje é multiletrada e precisa, de fato, dessa combinação de
diferentes meios para que se mantenha informada e atualizada.
Isso mostra que a vida passa em uma velocidade tal qual na história quanto
atualmente. Porém, ao mesmo tempo, há, por trás da tecnologia de hoje, Montags
do nosso tempo, aqueles que se rebelam contra o status quo e buscam usar do que
se tem para fazer algo melhor. Apesar da tecnologia por vezes fazer com que os
indivíduos se fechem cada vez mais – para outras pessoas, para o mundo exterior,
para a literatura... –, existem pessoas que buscam usá-la em favor da inteligência,
como ferramenta para manter o interesse pelas histórias – de ficção ou não – vivo.
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Da mesma forma, segundo Benjamin (1994), “a reprodutibilidade técnica da
obra de arte altera a relação das massas com a arte”, ou seja, o cinema, com o poder
de atingir muitas pessoas, pode fazer com que o espectador se conecte ou tenha o
interesse em buscar as histórias de partida.
A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. (p. 172)
O cinema existe para que não se possa ver todo o processo que houve na
escrita: cria-se uma ilusão da realidade ao mesmo tempo que trabalha para não
mostrar que essa realidade não existe. Assim, é incoerente dizer que a adaptação
cinematográfica não é válida ou que o cinema quer acabar com as outras artes, visto
que ele quem pode fazer com que a literatura chegue de forma mais abrangente a
quem o assiste. Segundo Jenkins (2009, p. 41), "palavras impressas não eliminaram
as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o
rádio. Cada meio antigo foi forçado a conviver com os meios emergentes".
Assim, é possível perceber que as práticas de leitura disponíveis para
Fahrenheit 451 são capazes de formar um indivíduo tanto como leitor quanto como
sujeito. Stam (2003, p. 173) defende que apesar de haver “os prazeres da narrativa
convencional, o cinema também poderia estimular o espectador a questioná-los,
fazendo deste próprio questionamento algo prazeroso”. Isso quer dizer que durante
a leitura do filme, questionamentos a respeito da história ou mesmo da conexão da
mesma com a vida real irão surgir no espectador, e essa é a função primordial da
leitura: criar indivíduos que consigam pensar, julgar e compreender o meio social no
qual se encontram, de modo a construírem seu processo de cidadania.
Dessa forma, é crucial que se compreenda que o surgimento dessas novas
práticas de leitura são elementos integrantes de um processo mais amplo e mais
complexo. Tais formatos pressupõem novos espaços e métodos de interação, dentro
de um contexto que altera critérios convencionais de leitura, graças à “pluralidade
de tempos e de espaços” (LÉVY, 1996, p. 22) que a internet propicia, já que, na
virtualização, “os lugares e tempos se misturam” (ibidem, p. 25). A questão, portanto,
não é temer o fim da literatura, uma vez que a própria adaptação é uma forma de
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levá-la a outros lugares e pessoas, mas sim esperar que crítica e a teoria da
literatura, bem como os professores e instituições, encontrem meios e aparatos
formais para analisar, compreender e ajustar-se à era da informação, de modo a ter
um posicionamento quanto ao papel do meio eletrônico na arte literária.
Assim, as diferentes e atuais práticas possibilitam que um grande desafio do
educador seja concluído: atrair o aluno na aquisição do gosto pela leitura,
independente do suporte que será utilizado para tal. Se a intenção é despertar seu
interesse, torna-se óbvio que se deve buscar artifícios que façam parte de seu
cotidiano (como filmes, videogame, internet...).
Entendemos, portanto, que não é a literatura (ou a música ou a pintura...)
que vem antes do cinema ou de qualquer outra arte para a qual ela sirva como
inspiração. O cinema precisa de várias artes para que possa formar seu alicerce,
mas consegue manter-se em pé e passível de análise a partir de elementos próprios.
Todas as artes “são produtos não do gênio de escritores individuais, mas da cultura
que os produziu” (DINIZ, 2005, p. 63), o que faz de quem as lê também um autor
daquela obra. As ideias finais do texto – em qualquer que seja o suporte – serão
sempre extraídas do horizonte do leitor, independente da forma que este receberá a
história. A função do contar uma história é justamente inserir quem escuta naquele
mundo. E quem sai de uma sala de cinema (assim como quem termina a leitura de
um livro, de uma HQ, de uma poesia interativa...), nunca sai imparcial.
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