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(Artigo publicado em: I Seminário Arte e Cidade, 23-26 de maio de 2006, Salvador: EDUFBA, 2006.)
Arquitetura do descartável: estética do consumo, estética dos excluídos Daniela Mendes Cidade Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes – UFRGS, mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura UFRGS e Doutoranda em Teoria, História e Crítica da Arquitetura – PROPAR – UFRGS. Professora e pesquisadora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Arquitetura descartável: o l ixo da sociedade de consumo no espaço de morar
Partindo da expressão “outros tempos, outros costumes”, Paul Virilio, ao abordar a questão da
habitação na sociedade contemporânea, nos diz que hoje vivemos um outro tempo e um outro
espaço. Ele refere-se ao tempo real e ao espaço virtual, que com certeza nos leva a outros costumes,
mas também nos encaminha para vivenciar uma outra habitação. Fala da “miniaturização da
habitação, sua decomposição arquitetônica e seu divórcio com o lugar social tradicional das
sociedades anteriormente sedentárias”.1 Segundo ele, estamos hoje na era da cidade portátil - o
telefone, o computador, etc. Os equipamentos portáteis, no cotidiano estabelecem uma mudança
na relação com o espaço topológico indicando a mudança da relação física e geográfica com o
1 VIRILIO, Paul. Un habitat exorbitant. In: L’Architecture d’aujour’hui. Junho 2000, p.113
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espaço construído. Neste sentido, o homem deixa de ter uma relação sedentária com o lugar para
tornar-se nômade.
Segundo Virilio, a arte, assim como a performance atual da moda caracterizam uma crítica à
questão do lugar e da posição fixa de um objeto. A globalização, e a conseqüente falta de fronteiras,
coloca o homem tanto num universo livre e móvel como o coloca em uma superfície territorial
onde não se identifica mais o que é interior e exterior, o que está dentro ou fora. Neste sentido,
também perdemos a referência de lugar como espaço de identificação com características
específicas e distintas ou que tenham bordas definidas.
A questão da mobilidade já fora abordada no início do século XX pelas vanguardas artísticas,
através das propostas de incorporação da velocidade no cotidiano humano e urbano, idéia que foi
retomada num outro momento da história com uma crítica em relação à sociedade de consumo
dos anos 60. Montaner ressalta que a arte das vanguardas no início do século XX caracterizava-se
também pela mudança e pelo apelo ao novo. No período de afirmação do moderno, influenciado
pela tecnologia da máquina, a experiência do tempo tornou as coisas transitórias e fugidias, como
disse Marx e Berman, “tudo que é sólido desmancha no ar”. A idéia do efêmero e da
transitoriedade rompe com a idéia de continuidade histórica. Conforme David Harvey, “se há
algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo dentro do turbilhão da mudança”2. A
idéia de mudança ocorre em relação ao período anterior referenciado na história. No entanto, o
período moderno caracterizou-se por uma visão homogênea. Já o período posterior a ele, o
chamado pós-moderno, foi marcado pelo pluralismo e pela descontinuidade. Este período, para
Jean-François Lyotard3, caracteriza-se também pelas crises do saber e da noção de ordem, levando
a uma rediscussão da noção de desordem. Para isso, segundo Lyotard, o filósofo pós-moderno, ao
encarar a problemática o novo mundo, deve abandonar a subjetividade e utopia modernas para
buscar o conhecimento baseado na realidade, conceitos mais próximos do concreto, do cotidiano.
A partir dos anos 60, o mito do novo é substituído pela volta à valorização histórica, pelo senso do
comum, do cotidiano e da vida real, pela proliferação da indústria, do consumo e da tecnologia.
Porém, à idéia da fragmentação, do efêmero e do transitório se acrescenta a idéia do consumo. Os
Smithson e o grupo Archigram, a partir da crítica à sociedade capitalista, buscam a diluição das
2 HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as mudanças da origem cultural. São Paulo: Loyola,1993. p. 22 3 LYOTARD, François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
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hierarquias culturais. Existia um ideal de modificar as antigas estruturas urbanas em ambientes
móveis e mutantes, assim como o ato de refletir sobre a velocidade do cotidiano urbano, já
incorporado pela máquina.
A arquitetura, assim como a arte, deve ter um caráter efêmero, pois deve ser consumida como
qualquer outro produto. Warren Clark em 1967 escreve A arquitetura como produto de consumo,
propondo uma arquitetura intercambiável e produzida como objeto de consumo. Pretende essa
idéia defender uma estética dos desperdícios, assim como “um novo idioma vernáculo, algo que
nos aproxime das cápsulas espaciais, dos computadores e das garrafas descartáveis desta era
atômica-eletrônica”4. As propostas do Archigram se baseiam na liberdade de escolha associada ao
consumo, sendo a arquitetura um produto substituível e transportável. Claudia Cabral5 em sua
reflexão teórica sobre o grupo Archigram, ressalta que a mudança estética dos anos 20 para os anos
60 representou a passagem da estética da máquina à estética do consumo.
Na arquitetura, as idéias dos anos sessenta se converteram em uma busca de novas formas à partir
de novas possibilidades tecnológicas, influenciando a produção dos anos seguintes, onde se situam
os metabolistas e as megaestruturas. Neste ensaio, proponho uma reflexão à partir das idéias de
“arquitetura descartável” ou “arquitetura como produto de consumo” começando pela crítica de
David Greene: “As perguntas de Archigram sobre a técnica permanecem sem responder, se alguma
vez foram formuladas, mas parece que os nômades eletrônicos do sistema financeiro global
demandam uma permanência em sua arquitetura que não requerem em seus negócios.”6
Seguindo a afirmação de David Greene, quais aspectos da arquitetura encontraríamos uma relação
com as características contemporâneas relacionadas à mobilidade discutidas em outras disciplinas
teóricas como a filosofia, estética, antropologia? Não seria a arquitetura informal a mais próxima
de uma condição contemporânea estética? Poderia ser a estética do consumo uma estética
também dos excluídos?
Este ensaio tem como objetivo refletir aspectos da vida contemporânea no que diz respeito a
habitar em uma sociedade de consumo e, conseqüentemente, de um mundo descartável. Outra
referência abordada será a filosofia da estética neo-realista, coincidente historicamente com as 4 Warren Chalk, In: MONTANER, Josep Maria. Después del movimiento moderno. Arquitetura de la segunda mitad el siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1993. p.113. 5 CABRAL,Claudia. Grupo Archigram, 1961-1974: Uma fábula da técnica. Barcelona: UPC. Tese de Doutorad, 2001. 6 David Greene, A Prologue, In: CABRAL, op. cit. p.14.
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propostas do grupo Archigram para uma arquitetura descartável, assim como com a arte pop e as
propostas de expansão da pintura para o plano tridimensional. Este conjunto de referenciais
associado a Arquitetura descartável tem o propósito de revelar através do lugar de morar de um
grupo humano pertencente ao mundo dos excluídos.
O conceito arquitetura descartável, neste trabalho, tem um significado metafórico: aquilo que
deixa de ser utilizado por uma determinada camada da sociedade e passa a ser matéria prima para
outra. Nesse processo de reutilização, o descartável passa a ter um sentido de precário. Perde o seu
status de produto de consumo para virar lixo. No entanto, a forma de apropriação do “lixo” gera
um produto que esteticamente revela o sistema da vida contemporânea no que diz respeito aos
acúmulos e excessos e a tudo que é descartável, efêmero, produto de uma sociedade cada vez mais
“vazia” de conteúdo: a estética do lixo, a estética dos excluídos. A vida real se revelaria a partir da
apropriação do descartável. (Figura 1)
Anos 60: do novo-reali smo à arquitetura descartável
A pluralidade de propostas a partir da metade do século XX resultou de críticas ou posturas a uma
realidade que estava baseada principalmente em três aspectos: a destruição pós-guerra, a
tecnologia, e o consumo em massa. Junto a isso, a partir da segunda guerra mundial, nas diversas
áreas do conhecimento e pensamento, o existencialismo e a fenomenologia surgiram como forma
de percepção e reinterpretação da vida real. Na realidade destruída pela guerra, surge uma
revalorização das questões humanas, da realidade e do sujeito comum. Neste período, marcado
pela diversidade, existe uma vontade de interagir tecnologia e elementos do real, da realidade
européia crua e sombria do cotidiano pós-guerra.
Neste período, arte e arquitetura deixam de se reconhecer nas propostas abstratas do modernismo
e voltam o olhar para um outro sentido: o do novo realismo e da aproximação da realidade bruta.
Segundo Pierre Restany, na década de 60 surge uma vanguarda que quer se inserir no mundo
contemporâneo sem recusá-lo, mas com “uma visão das coisas que se inspira no senso da natureza
moderna, que é a da fábrica e da cidade, da publicidade e do mass media, da ciência e da
tecnologia.”7
7 RESTANY, Pierre. Os novos realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.24.
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O neo-realismo, movimento fundado em 1960, representou a ruptura a arte abstrata, subvertendo
o período anterior ao retomar ao realismo. Ao mesmo tempo, manteve o mesmo debate teórico
baseado na consciência de uma natureza moderna, industrial e urbana. Desta vez, através de um
olhar para o mundo que retomasse a forma figurativa. “Desde que o novo realismo soou o dobre
da arte abstrata, assistimos à convergência de dois fenômenos evolutivos: por um lado a
generalidade de um senso moderno da natureza e, por outro, a generalização de um senso
moderno de ligação. É na transição da filosofia para a linguagem que se diversificaram as opções
principais do realismo contemporâneo: a aventura do objeto e da tecnologia; a pretensa nova
figuração e a crítica social; a arte visual e a pesquisa operacional; a escultura-arquitetura e o
urbanismo espacial”.8
A resposta da arte e da arquitetura como crítica social inclui de forma otimista uma ligação com a
tecnologia. Para Pierre Restany, o homem não sofre mais coma alienação da técnica e a arte deixa
de ser uma manifestação de revolta tornando-se uma arte de participação popular que tira partido
da comunicação de massa e da apropriação da realidade de forma direta. Um marco dessa
transição entre abstracionismo e figuração foi a exposição “Cheio” de Arman numa galeria de
Paris em 1960, dois anos depois da exposição “Vazio” de Ives Klein que deixou as paredes da
mesma galeria completamente vazias. Arman, ao contrário de Klein, acumulou na vitrine e no
espaço da galeria até a saída da sala objetos usados catados nos lixos do Les Halles e artigos de série,
um verdadeiro “despejo-lata de lixo em escala arquitetônica.”9 (Figuras 2 e 3)
Sua intenção era a de expandir a obra de arte à escala arquitetônica ultrapassando a noção de
objeto. O monte de entulho, objetos inúteis até mesmo para um colecionador, trazia a intenção do
artista sua busca pela liberdade total em arte. Mas, esta exposição significava também, de forma
irônica, uma crítica à nossa sociedade industrial e tecnológica.
As proposições na arte a partir dos 60 partem da retomada realista de caráter social atingindo
escala mundial, assim como várias outras proposições em arte. A pop art foi uma contribuição
americana que possuiu um caráter mais publicitário e industrial. A retomada realista, segundo
Restany, não consiste na volta ao figurativo apenas, mas na reestruturação da imagem
bidimensional obtida por processos industriais, fruto das técnicas modernas de comunicação de
8 Ibid, p.110. 9 Ibid, p.113.
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massa e das assemblagens. As pesquisas com assemblage dos novos realistas, inicialmente marcam a
transição para uma expansão da pintura bidimensional. Os artistas passam a buscar uma dimensão
espacial e com isso uma maior relação entre espaço físico/obra de arte/expectador. Nesta linha de
trabalho surgem os neo-construtivistas com atualização das propostas da Bauhaus e crítica à
efemeridade da pop art. Eles tratam o tema social à partir de uma experiência piscossensorial e de
síntese da obra de arte.
Depois dessa experiência dos neo-construtivistas, o caráter sintético da abra de arte culminou em
experiências ligadas à arquitetura de forma crítica em relação à sua forma e destino. O interesse da
arte pela arquitetura e cidade torna-se cada vez maior, assim como os limites tornam-se cada vez
mais difusos. Os artistas rompem com o plano bidimensional da pintura, encaminhando-se para
uma dimensão espacial. Ao mesmo tempo em que existe uma ligação com a arquitetura, como algo
estático, essa mesma condição direciona a arte para a mobilidade com caráter experimental.
A partir da década de 60 do século passado, a tendência da sociedade em todas as áreas estava
voltada à mobilidade. Com o pensamento arquitetônico acontece o mesmo. Surgem as propostas
para um espaço de habitar móvel, assim como uma cidade além dos limites da cidade tradicional
com propostas de construção modular pré-fabricada ou cidade pontes e cidades caminhantes.
As proposições estéticas, tanto na arte quanto na arquitetura, de acordo com o pensamento de
Pierre Restany, buscaram “arranjar o comportamento coletivo em função das relações pessoais,
garantir a transição, o recortamento, a osmose entre o mundo psicosensorial do indivíduo e o da
multidão. É então que nossas utopias se tornarão necessidades vitais.”
A critica à sociedade de consumo e a busca de um caráter social na arquitetura traz implícitas duas
idéias relevantes para este trabalho: uma ligada ao acúmulo de dejetos provenientes da
industrialização e do consumo em massa vinculados à estética neo-realista; a outra relacionada à
mobilidade e caráter de mudança presente nas propostas da arquitetura descartável do grupo
Archigram.
Conforme a revisão de Montaner10, a arquitetura com compromisso social foi um dos temas
dominantes no período do movimento moderno na primeira fase dos CIAM (1928-1932),
retomado com o fim da guerra. Como crítica à rigidez e repetição racionalista, ele salienta as
10 MONTANER, Josep Maria. Las formas del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
7
propostas dos Smithisons nas décadas de 50 a 70, com preocupação social e busca de novas
morfologias urbanas já com um conceito orgânico.
Tecnologia e mobilidade foram um dos aspectos desenvolvidos pelo grupo britânico Archigram
composto por Peter Cook, Warren Chalk, David Greene, Ron Herron, Michael Webb e Denis
Crompton. Eles propuseram um novo conceito de habitar retomando as idéias de incorporação da
tecnologia dos futuristas italianos. No entanto, os participantes do grupo Archigram viveram
numa sociedade diferente do período anterior: uma sociedade do consumo, do excesso e,
conseqüentemente, do desperdício. A partir disso, suas propostas, que iam desde unidades
mínimas de habitação, como cápsulas, à cidades como megaestruturas, havia a intenção de uma
arquitetura intercambiável e descartável com referência na ficção científica e influenciada pela pop
art. Para Montaner, aí se situa uma contradição do grupo: “expressar a cientificidade dos avanços
tecnológicos recorrendo a superficialidade do imaginário pop.”11 No entanto, o pop também
significava uma estética coletiva e de socialização da arte com caráter humanista.
Conforme Claudia Cabral12, a flexibilidade, a reprodutibilidade técnica, a produção em massa, a
tecnologia no cotidiano urbano e doméstico a partir da reestruturação do fordismo permitiu um
caráter individual ao que antes era coletivo. No âmbito da arquitetura, esta intenção foi
apresentada pelo grupo Archigram. Desta forma, traz implícita uma idéia de participação do
sujeito na estrutura do espaço de morar, o caráter móvel e a expressão do indivíduo.
O número 3 da revista do Archigram abordou o tema da arquitetura como bem de consumo, ou
seja, ”uma discussão sobre o tempo de vida útil dos objetos de uso cotidiano, e - por que não? -
também dos edifícios. Se procurava reunir evidências não apenas desta arquitetura pop descartável,
como o de um entorno social crescentemente envolvido com o problema da substituição através
de toda a gama de artefatos produzidos industrialmente para consumir e dispensar; uma “primeira
geração de descartáveis” à qual logo poderia somar-se a construção arquitetônica.“13
Chalk, neste número da revista ainda firma que: “em uma sociedade tecnológica mais gente irá
jogar um papel ativo na determinação de seu entorno individual, na auto-determinação de uma
forma de vida. Nós não podemos pretender retirar este direito fundamental de suas mãos e
continuar tratando-os como imbecis do ponto de vista criativo e cultural. Devemos abordar isto 11 Ibid, p.94. 12 CABRAL, op. cit. 13 CABRAL, op. cit. p.45
8
por outro lado, de maneira positiva. As qualidades inerentes à produção em massa para uma
sociedade orientada para o consumo são a repetição e a estandardização, mas partes podem ser
trocadas ou intercambiadas dependendo das necessidades e preferências individuais, e dado um
mercado mundial, isso seguiria sendo economicamente factível.”14
Estéti ca do consumo, est éti ca dos excluídos
Esteticamente o trabalho “Cheio” e as caixas com acúmulos de dejetos de Arman, assim como a
sua atitude em busca destes dejetos está muito próxima das atividades dos papeleiros – pessoas que
vivem da coleta, seleção e venda de lixo, construtores dos “seus” espaços de morar e trabalhar.
(Figuras 4 e 5)
Por outro lado, as construções dos papeleiros também trazem uma ligação com a proposta de
arquitetura descartável do grupo Archigram num sentido mais literal da expressão. Pois, para o
Archigram, a arquitetura deveria ter a mesma mobilidade tanto no sentido de deslocamento,
quanto no aspecto efêmero. Como produto de consumo, deveria ser usada, constantemente
modificada e após, descartada. Um exemplo atual destas características aliado à área de moradia é a
“Vila do Chocolatão”, como é conhecida a área ocupada pelos papeleiros atrás do Edifício da
Receita Federal de Porto Alegre. Ela torna-se produto da sociedade de consumo, pois é construída
a partir dos seus dejetos. Uma construção constituída por acúmulos e sobreposições, numa atitude
bicroleur, que nunca cessa, portanto em constante transformação. (Figura 6)
O espaço da Vila do Chocolatão apresenta uma diversidade dentro de uma estrutura fechada e
protegida pelos edifícios institucionais que a cercam. O espaço onde se encontram estes dois pólos
opostos apresenta também um contraste dos elementos que compõem estas estruturas: uma mais
pura e limpa, a outra, complexa e suja. Esta última se caracteriza pelo caráter de exceção dentro de
uma estrutura maior que é a cidade com suas edificações tradicionais, legais e confortáveis.
A vila e o costume dos papeleiros caracterizam-se, portanto, em uma estética dos excluídos, por
configurar uma estrutura que é a exceção dentro da regra geral urbana. Giorgio Agamben, ao tratar
das relações entre poder e vida, fala do sentido paradoxal da estado de exceção à partir do
14 Warren Chalk, Housing as a consumer product, em Archigram, Magazine n.3 Expendability, Lodres, agosto de 1963. citado por CABRAL, op. cit.
9
entendimento do paradoxo da soberania. Uma de suas hipóteses é a de que a normalidade, como
estudo de caso, não prova nada, enquanto que a exceção explica a si mesma e o geral. A relação de
exceção é “a forma extrema da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua
exclusão.”15 Ou seja,o que está fora, paradoxalmente está dentro.
No entanto, a vila dos papeleiros caracteriza-se com uma estrutura que, ao se apropriar daquilo
que é excluído pela sociedade consumo, gera uma área de riqueza estética proveniente destes dois
campos distintos de morar. Desta forma, podemos aproximar esta área o conceito de Ecótono:
“zona de passagem de um bioma e outro; por exemplo, entre floresta e campo há uma zona de
passagem: a mata de arbustos. Neste local, normalmente a diversidade de espécies é muito maior
do que as espécies de cada bioma separadamente. É nesta zona de contato que as trocas e embate
entre espécies diferentes ocorrem na tentativa de partilhar o mesmo espaço. É da relação entre
biomas e da adaptação e este local de contato que nasce o ecótono como interface entre as duas
comunidades. A tendência ao aumento da diversidade e o aparecimento de organismos resultantes
desta zona de passagem é chamada de efeito de borda.”16
O resultado estético é algo similar ao que se verificou na história da arte à partir dos anos sessenta,
e ainda ao que se verificou durante os anos oitenta do século anterior: a pesquisa de um novo
academicismo como um retorno às expressões do passado surgiu na arte e na arquitetura como um
novo método experimental de investigação através da revisão e manipulação de elementos
anteriores. Tratava-se de uma apropriação de outros tempos. Desta forma, a pós-modernidade
instaurou o direito à citação. “Reapropriação de estilos, prática da citação, maneirismo, utilização
do kitsh: é claro que de certa maneira o pós-modernismo joga o jogo do ecletismo, do gosto dos
sabores misturados, reciclando os usos, integrando e se apropriando sem jamais inventar.
Recusando hierarquias, ele mantém a confusão entre arte e kitsch, entre cultura e comunicação
mediática.”17 Há, numa revisão, uma atitude diferente daquilo que acontece no modernismo: esse
sempre negou o movimento que o precedeu. No pós-modernismo ao contrário admiti-se a revisão
dos períodos anteriores como releitura e reapropriação de estilos.
15 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer : o poder soberano e vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.26. 16 citado em: Efeitos de borda subjetividade e espaço público In: Perdidos no espaço. www.6.ufrgs/escultura/ acessado em 07.10.2005. Edição III do Jornal do grupo de pesquisa Perdidos no Espaço. 17 BAQUÉ, Dominique. La photographie plasticienne. Paris: Regard, 1998. p. 178.
10
Segundo Dominique Baqué, o pós-modernismo nos Estados Unidos adquire uma postura crítica e
descontrutivista. “Podemos identificar três critérios eminentemente pós-modernos nesta cultura
de citações e de apropriações: depreciação da obra inicialmente escolhida, efeito de sobreposição e
reorientação da leitura da obra.“18
Se uma obra no campo da arte pode ter uma reorientação passando a dar outro valor aquilo que
foi apropriado pelo artista, porque não podemos encarar as construções que também tem um
caráter apropriativo de forma positiva. Isso somente não acontece pelo fato de suas construções ao
apresentarem dois aspectos importantes no campo da arquitetura: a tecnologia e a legitimação.
Interrogações f inais
Em relação à crítica dos anos sessenta à dominação da máquina, hoje, a história se repete, ou
melhor, continua, porém com uma crítica mais feroz em relação ao sedentarismo devido à
mecanização em nossas tarefas diárias, como aborda Paul Virilio.
Primeiro, nos tornamos sedentários. Neste sentido, penso que ainda a arquitetura móvel tal qual
foi proposta pelos metabolistas, ainda não se concretizou como forma do habitar. A arquitetura,
no sentido da mobilidade, está mais restrita à arquitetura de eventos. Existem, sim, estruturas
móveis. E a tecnologia nos permite isso cada vez mais, porém não voltada para o problema da
habitação. O problema da habitação existe. E os sem teto é que estão se aproximando cada vez
mais de um conceito de arquitetura móvel, pela sua própria condição: em suspensão, pela condição
nômade e de excluídos. E a tecnologia ainda não é acessível a este sujeito sem casa.
Tendo em vista a tecnologia voltada para a mobilidade, que nos permite falar e trabalhar em
qualquer lugar, poderíamos dizer que nesse particular haveria uma retomada dos ideais nômades
propostos pelos Situacionaistas e pelo grupo Archigram. Mas isso caracteriza mais um
sedentarismo cibernético do que uma retomada do nomadismo. Paul Virilio vê uma mutação
comportamental à partir da influência do mundo virtual no cotidiano humano, onde existe uma
renovação das noções de nomadismo e sedentarismo. O mundo virtual e móvel, hoje renova nas
manifestações mais distantes da arquitetura dita erudita, como é o caso particular aqui citado da
“Vila dos Chocolatão” em Porto Alegre.
18 Ibid, p. 179.
11
A estética dos excluídos, como uma estética popular, coloca duas questões: uma a da
espontaneidade e da autenticidade de suas produções; a outra, sobre o valor estético. Dufrenne19
questiona em que medida manifestações populares, como essa dos excluídos, assim com as danças
regionais, são produtos da grande arte ou se devem ser julgadas para ter valor estético: não
deveríamos deixar o prazer inspirar esse julgamento? Na verdade se são produtos da arte, isso não
importa, pois nunca existiu a intenção da arte por parte dos seus construtores. Como também não
existe a intenção de colocar estas habitações no patamar de valor arquitetônico. No entanto,
podemos deixar de reconhecer o seu valor estético independente da intenção e do reconhecimento
institucional?
Poderia a arte popular nos convidar a uma revisão do conceito da arte ou da arquitetura, de sua
extensão, e de sua compreensão? Poderia, no sentido político esclarecer a arte e sua praticas através
da apropriação e da liberdade da arte?
O caráter transitório da sociedade contemporânea envolve todos os domínios, assim como
desmaterializa o espaço concreto do morar. Lyotar diz que “o contrato temporário está
suplantando na prática as instituições permanentes nos domínios profissionais, emocionais,
sexuais, culturais, familiares, internacionais, bem como nos assuntos políticos”.20 Um certo
individualismo no campo político e da arquitetura justificaria o esquecimento aos excluídos?
A pluralidade e sobreposição da contemporaneidade, como nos lembra David Harvey, geram uma
falta de comunicação entre mundos diferentes que coexistem no mesmo espaço, com é o caso da
Vila do Chocolatão junto ao edifício da Receita Federal e tantos outros edifícios institucionais.
Estes dois mundos caracterizam uma justaposição na qual se articulam noções opostas, como
observa Piedad Solans a partir da idéia de Jameson sobre corpo e tecnologia: “modelo difuso de
espacialidade se converteu em uma realidade múltipla e fragmentária que atua desde a nova
reconstrução temporal e espacial a numerosos âmbitos da percepção. Uma percepção que se
constrói no tecido transparente da tecnologia.”21 A critica pós-moderna em relação ao
modernismo, como sugeriu Robert Ventury, não consiste na retomada de elementos históricos,
mas a uma aproximação da realidade, do cotidiano, e daquilo que se aproxima da estética popular e
19 Mikel Dufrenne, In: SOURIAU, Ethienne. Vocabulaire d’esthetique. Paris: PUF, 1990. 20 LYOTARD, op. cit. p.81. 21 Solans, Lo sublime tecnológico. Cuerpo, pantlla e identidad em la estética posmoderna. In: PÉREZ, David. La certeza vulnerable: cuerpo y fotografia en el siglo XXI. Barclona: Gustavo Gili, 2004. p.282.
12
não de uma imposição elitista, abstrata e desvinculada do homem “real”, assim como, na
valorização da justaposição, da apropriação e da diversidade.
A reflexão sobre estas manifestações nos traz uma interrogação sobre os espaços que construímos
hoje na qualidade de “arquitetura”: em que sentido a arquitetura contemporânea incorpora a
mobilidade e os elementos do cotidiano tecnológico? Em que sentido a arquitetura cumpre o seu
papel social?
13
Figura 1: “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.
Figura 3: Arman montando a exposição “Le Plein” (Cheio), outubro, 1960.
Figura 2: Vitrine da Galeria Iris Clert, durante a Exposição “Le Plein” (Cheio), outubro, 1960.
Figura 4: Arman em seu processo de trabalho.
14
Figura 6: “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.
Figura 5: Seleção de materiais realizada por moradores da “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.