Transcript of As crônicas de gelo e fogo livro um a guerra dos tronos - george r
- 1. AS CRNICAS DE GELO E FOGO LIVRO UM A GUERRA DOS TRONOS
Traduo Jorge Candeias 2010 LeYa Prlogo - Deveramos regressar -
insistiu Gared quando os bosques comearam a escurecer ao redor do
grupo. - Os selvagens esto mortos. - Os mortos o assustam? -
perguntou Sor Waymar Royce com no mais do que uma sugesto de
sorriso no rosto. Gared no mordeu a isca. Era um homem velho, com
mais de cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir. - Um
morto um morto - respondeu. - Nada temos a tratar com os
mortos.
- 2. - Mas esto mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Que
prova temos disso? - Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que
esto mortos, prova suficiente para mim. Will j sabia que o
arrastariam para a disputa mais cedo ou mais tarde. Desejou que
tivesse sido mais tarde. - Minha me disse-me que os mortos no
cantam - contou Will. - Minha ama de leite disse a mesma coisa,
Will - respondeu Royce. - Nunca acredite em nada do que ouvir junto
mama de uma mulher. H coisas a aprender mesmo com os mortos - sua
voz gerou ecos, alta demais na penumbra da floresta. - Temos
perante ns uma longa cavalgada - salientou Gared. - Oito dias,
talvez nove. E a noite est para cair. Sor Waymar Royce olhou o cu
de relance, com desinteresse. - Isso acontece todos os dias por
esta hora. Voc perde a virilidade com o escuro, Gared? Will via o
aperto em torno da boca de Gared, a ira s a custo reprimida nos
olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de seu manto. Ele
passara quarenta anos na Patrulha da Noite, em homem e em rapaz, e
no estava acostumado a ser desvalorizado. Mas era mais do que isso.
Will conseguia detectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho
ferido. Era possvel sentir-lhe o gosto: uma tenso nervosa que se
aproximava perigosamente do medo. Will partilhava o desconforto do
outro homem. Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez
que fora enviado para l, todas as velhas histrias lhe tinham
acorrido ao crebro, e suas entranhas se tinham feito em gua. Era
agora um veterano de cem patrulhas, e a escura e infinita
terra
- 3. selvagem a que os sulistas chamavam floresta assombrada j no
tinha terrores para si. At aquela noite. Algo era diferente ento.
Havia naquela escurido algo de cortante que lhe fazia eriar os
pelos da nuca. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, e
depois de novo para norte, cada vez para mais longe da Muralha,
seguindo sem desvios a trilha de um bando de salteadores selvagens.
Cada dia fora pior que o anterior. Aquele tinha sido o pior de
todos. Um vento frio soprava do norte e fazia as rvores sussurrarem
como coisas vivas. Durante todo o dia Will tivera uma sensao que
era como se alguma coisa o estivesse observando, algo frio e
implacvel que no gostava dele. Gared tambm sentira. Will nada
desejava com tanta fora como cavalgar a toda pressa de volta
segurana da Muralha, mas este no era um sentimento que se pudesse
partilhar com um comandante. Especialmente com um comandante como
aquele. Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga
com demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de dezoito
anos, de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma faca.
Montando em seu enorme corcel de batalha negro, o cavaleiro
elevava-se bem acima de Will e Gared, montados nos seus garranos de
menores dimenses. Trajava botas negras de couro, calas negras de l,
luvas negras de pele de toupeira e uma cintilante cota de malha
negra e flexvel por cima de vrias camadas de l negra e couro
fervido. Sor Waymar era um Irmo Juramentado da Patrulha da Noite
havia menos de meio ano, mas ningum poderia dizer que no se
preparara para a sua vocao. Pelo menos no que dizia respeito ao
guarda-roupa.
- 4. O manto constitua a consumao da sua glria; zibelina, espessa
e negra, suave como pele. "Aposto que foi ele prprio quem as matou
todas, ah, pois aposto", dissera Gared na caserna, entre os vapores
do vinho, torceu-lhes as cabecinhas e arrancou-as, o nosso poderoso
guerreiro". A gargalhada fora partilhada por todos. " difcil
aceitar ordens de um homem de quem nos rimos de copo na mo",
refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorso do garrano, Gared
devia sentir o mesmo. - Mormont nos disse para os encontrarmos, e
encontramos - disse Gared. - Esto mortos. No voltaro a nos causar
problemas, Temos uma dura cavalgada nossa frente. No gosto deste
tempo. Se nevar, poderemos levar uma quinzena para regressar, e a
neve o melhor que podemos esperar. Alguma vez viu uma tempestade de
gelo, senhor? O nobre pareceu no ouvi-lo. Estudava o crepsculo, o
que aprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meio distrado.
Will j cavalgava com o cavaleiro havia tempo suficiente para
compreender que era melhor no o interromper quando tinha aquela
expresso. - Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. No
deixe nada de fora, Will fora um caador antes de se juntar Patrulha
da Noite. Bem, na verdade fora um caador furtivo. Os cavaleiros
livres de Mallister tinham-no apanhado com a boca na botija nos
bosques do prprio Mallister, esfolando um dos seus gamos, e apenas
pudera escolher entre passar a vestir-se de negro e perder uma mo.
Ningum era capaz de se mover pela floresta to silenciosamente como
Will, e os irmos negros no tinham demorado muito tempo para
descobrir seu talento. - O acampamento fica duas milhas mais
frente, para l daquela cumeada, ao lado de um crrego - disse Will.
-
- 5. Cheguei o mais perto que me atrevi. Eles so oito, com homens
e mulheres. No vi crianas. Ergueram um abrigo contra a rocha. A
neve j o cobriu bem, mas mesmo assim consegui descortin-lo. No vi
nenhum fogo ardendo, mas a cova da fogueira ainda estava clara como
o dia. Ningum se movia. Observei durante muito tempo. Nunca um
homem vivo ficou to quieto. - Viu algum sangue? - Bem, no - admitiu
Will. - Viu armas? - Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem
tinha um machado. Com ar de ser pesado, duas lminas, um cruel
bocado de ferro. Estava no cho seu lado, junto sua mo. - Prestou
ateno posio dos corpos? Will encolheu os ombros. - Um par deles est
sentado junto ao rochedo. A maioria est no cho. Como cados. - Ou
dormindo - sugeriu Royce. - Cados - insistiu Will. - H uma mulher
numa rvore de pau- ferro, meio escondida entre os ramos. Uma
olhos-longos - ele deu um tnue sorriso. - Assegurei-me de que no me
conseguiria ver. Quando me aproximei, vi que ela tambm no se movia
- e sacudiu-se por um estremecimento involuntrio. - Est enregelado?
- perguntou Royce. - Um pouco - murmurou Will. - o vento, senhor. O
jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem de armas. Folhas
pesadas de geada suspiravam ao passar por eles, e o corcel de
batalha movia-se de forma inquieta.
- 6. - Que lhe parece que possa ter matado aqueles homens, Gared?
- perguntou Sor Waymar com ar casual, ajustando a posio do longo
manto de zibelina. - Foi o frio - disse Gared com uma certeza
frrea. - Vi homens congelar no inverno passado e no outro antes
desse, quando eu era pequeno. Toda a gente fala de neve com doze
metros de profundidade, e do modo como o vento de gelo chega do
norte uivando, mas o verdadeiro inimigo o frio. Aproxima-se em
silncio, mais furtivo do que o Will. A princpio estremece-se e os
dentes batem, e bate-se com os ps no cho e sonha-se com vinho
aquecido e boas e quentes fogueiras. Ele queima, ah, como queima.
Nada queima como o frio. Mas s durante algum tempo. Ento, penetra
no corpo e comea a ench-lo, e passado algum tempo j no se tem fora
suficiente para combat-lo. E mais fcil limitarmo-nos a nos sentar
ou a adormecer. Dizem que no se sente dor alguma perto do fim.
Primeiro, fica-se fraco e sonolento, e tudo comea a se des-
vanecer, e depois como afundar num mar de leite morno. Como que
pacfico. - Quanta eloquncia, Gared - observou Sor Waymar. - Nunca
suspeitei que a tivesse dentro de si. - Tambm tive o frio dentro de
mim, nobre - Gared puxou para trs o capuz, oferecendo a Sor Waymar
um longo olhar sobre os cotos onde as orelhas tinham estado. - Duas
orelhas, trs dedos dos ps e o mindinho da mo esquerda. Tive sorte.
Encontramos meu irmo congelado no seu posto de vigia com um sorriso
no rosto. Sor Waymar encolheu os ombros. - Deveria vestir coisas
mais quentes, Gared.
- 7. Gared lanou ao nobre um olhar feroz, e as cicatrizes em
redor das suas orelhas ficaram vermelhas de fria nos locais onde o
Meistre Aemon as cortara. - Veremos quo quente poder se vestir
quando chegar o inverno - puxou o capuz para cima e arqueou as
costas sobre o garrano, silencioso e carrancudo. - Se Gared diz que
foi o frio... - comeou Will. - Voc fez alguma vigia nesta ltima
semana, Will? - Sim, senhor - nunca havia uma semana em que ele no
fizesse uma maldita dzia de vigias. Aonde o homem queria chegar? -
E em que estado encontrou a Muralha? - mida - Will respondeu,
franzindo a sobrancelha. Agora que o nobre o fizera notar, via os
fatos com clareza. - Eles no podem ter congelado. Se a Muralha est
mida, no podem. O frio no suficiente. Royce anuiu. - Rapaz esperto.
Tivemos alguns frios ligeiros na semana passada, e uma queda de
neve rpida de vez em quando, mas com certeza no houve nenhum frio
suficientemente forte para matar oito homens adultos. Homens
vestidos de peles e couro, relembro, com um abrigo ali mo e meios
para fazer fogo - o sorriso do cavaleiro ressumava confiana. -
Will, leve- nos l. Quero ver esses mortos com meus prprios olhos. E
a partir desse momento nada mais havia a fazer. A ordem fora dada,
e a honra os obrigava a obedecer. Will seguiu frente, com o pequeno
garrano felpudo escolhendo com cuidado o caminho por entre a
vegetao rasteira. Uma neve ligeira cara na noite anterior, e havia
pedras, razes e covas escondidas por baixo da sua crosta, espreita
dos descuidados e dos imprudentes. Sor Waymar
- 8. Royce vinha logo atrs, com o grande corcel negro de batalha
resfolegando de impacincia. Aquele cavalo era a montaria errada
para uma patrulha, mas tentem dizer isto ao nobre. Gared fechava a
retaguarda. O velho soldado resmungava para si prprio enquanto
avanava. O crepsculo aprofundava-se. O cu sem nuvens tomou um
profundo tom de prpura, a cor de uma velha ndoa negra, e depois se
dissolveu em negro. As estrelas comearam a surgir. Uma meia-lua se
ergueu. Will estava grato pela luz. - Podemos decerto avanar mais
depressa do que isto - disse Royce depois de a lua se erguer por
completo. - Com este cavalo, no - respondeu Will. O medo tornara-o
insolente. - Talvez meu senhor deseje tomar a dianteira? Sor Waymar
Royce no se dignou a responder. Em algum lugar nos bosques um lobo
uivou. Will levou o garrano para baixo de uma velha e nodosa rvore
de pau-ferro e desmontou. - Por que parou? - perguntou Sor Waymar.
- melhor ir o resto do caminho a p, senhor. O lugar logo depois
daquela colina. Royce fez uma pausa momentnea, de olhos presos na
distncia e o rosto pensativo. Um vento frio sussurrou por entre as
rvores. O grande manto de zibelina agitou-se nas costas como uma
coisa semiviva. - H qualquer coisa de errado aqui - murmurou Gared.
O jovem cavaleiro dedicou-lhe um sorriso desdenhoso. - A h? - No o
sentiu? - perguntou Gared. - Escute a escurido. Will sentia. Em
quatro anos na Patrulha da Noite, nunca estivera to temeroso. O que
era aquilo?
- 9. - Vento. Rudo de rvores. Um lobo. Que som te apavora tanto,
Gared? - como Gared no respondeu, Royce deslizou graciosamente da
sela. Atou com segurana o corcel de batalha a uma ramada baixa, bem
afastado dos outros cavalos, e retirou a espada da bainha. Jias
cintilaram no punho e o luar percorreu o ao brilhante. Era uma arma
magnfica, forjada num castelo e, segundo aparentava, novinha em
folha. Will duvidava que tivesse sido alguma vez brandida em fria.
- O arvoredo espesso por aqui - preveniu Will. - Essa espada o
atrapalhar, senhor. Uma faca melhor. - Se precisar de instrues, eu
as pedirei - disse o jovem senhor. - Gared, fique aqui. Guarde os
cavalos. Gared desmontou. - Precisamos de uma fogueira. Tratarei
disso. - Quanta tolice tem nessa cabea, velhote? Se houver inimigos
nesta floresta, uma fogueira a ltima coisa que queremos. - H alguns
inimigos que uma fogueira manter afastados - disse Gared. - Ursos,
lobos gigantes e... e outras coisas... A boca de Sor Waymar
transformou-se numa linha dura. - No haver fogo. O capuz de Gared
engolia-lhe o rosto, mas Will conseguia ver a cintilao dura nos
olhos que se fixavam no cavaleiro. Por um momento, temeu que o
homem mais velho puxasse a espada. Era uma coisa curta e feia, com
o punho desbotado pelo suor e o gume denteado pelo muito uso, mas
Will no daria um pendo de ferro pela vida do nobre se Gared a
desembainhasse. Por fim, Gared olhou para baixo. - No haver fogo -
murmurou de forma quase inaudvel. Royce tomou aquilo como
aquiescncia e virou-se.
- 10. - Indique o caminho - disse a Will. Will teceu um rumo
atravs de um matagal, depois subiu o declive da colina baixa onde
encontrara seu ponto de vigia, por baixo de uma rvore sentinela.
Sob a fina crosta de neve o solo estava mido e lamacento,
escorregadio, com rochas e razes escondidas, prontas para provocar
tropeos. Will no fez nenhum som enquanto subia. Atrs de si ouvia o
suave roar metlico da cota de malha do nobre, o restolhar de folhas
e pragas murmuradas quando ramos espetados se agarravam espada e
puxavam o magnfico manto de zibelina do outro homem. A grande rvore
estava mesmo no topo da colina onde Will sabia que estaria, com os
ramos inferiores no mais que trinta centmetros acima do solo. Will
deslizou por baixo, com a barriga apoiada na neve e na lama, e
olhou a clareira vazia mais abaixo. O corao parou no seu peito. Por
um momento no se atreveu a respirar. O luar brilhava sobre a
clareira, sobre as cinzas na cova da fogueira, sobre o abrigo
coberto de neve, sobre o grande rochedo, sobre o pequeno riacho
meio congelado. Tudo estava como estivera algumas horas antes. Eles
no estavam l. Todos os corpos tinham desaparecido. - Deuses! -
ouviu algum dizer atrs de si. Uma espada golpeou um ramo quando Sor
Waymar Royce atingiu o topo da colina. Ficou em p ao lado da rvore,
de espada na mo, com o manto a ondular nas costas, soprado pelo
vento que se levantava, nobremente delineado contra as estrelas
para que todos o vissem. - Abaixem-se! - segredou Will com urgncia.
- H algo de errado. Royce no se moveu. Olhou para a clareira vazia
e deu risada.
- 11. - Parece que seus mortos levantaram acampamento, Will. A
voz de Will o abandonou. Procurou palavras que no vieram. No era
possvel. Seus olhos percorreram para a frente e para trs o
acampamento abandonado e pararam no machado. Um enorme machado de
batalha de duas lminas, ainda cado onde o vira pela ltima vez,
intocado. Uma arma valiosa... - De p, Will - ordenou Sor Waymar. -
No h ningum aqui. No quero v-lo escondido por baixo de um arbusto.
Relutante, Will obedeceu. Sor Waymar olhou-o com aberta desaprovao:
- No vou regressar a Castelo Negro com um fracasso na minha
primeira patrulha. Vamos encontrar aqueles homens - olhou de
relance em volta. - Suba na rvore. Seja rpido. Procure uma
fogueira. Will virou-se, sem palavras. No valia a pena argumentar.
O vento movia-se. Trespassava-o. Dirigiu-se para a rvore, uma
sentinela abobadada cinzenta esverdeada, e comeou a subir. Em breve
tinha as mos pegajosas de seiva e estava perdido entre as agulhas.
O medo enchia-lhe o estmago como uma refeio que fosse incapaz de
digerir. Murmurou uma prece aos deuses sem nome da floresta e
libertou o punhal da bainha. Colocou-o entre os dentes para manter
as mos livres para a escalada. O sabor do ferro frio na boca o
confortou. Embaixo, o nobre de repente gritou: - Quem vem l? Will
ouviu incerteza na chamada. Parou de escalar; escutou; observou. Os
bosques deram resposta: um restolhar de folhas, o correr gelado do
riacho, o pio distante de uma coruja das neves. Os Outros no faziam
som algum.
- 12. Will viu movimento com o canto do olho. Sombras plidas que
deslizavam pela floresta. Virou a cabea, viu de relance uma sombra
branca na escurido. Logo depois ela desapareceu. Ramos agitaram-se
gentilmente ao vento, coando-se uns aos outros com dedos de
madeira. Will abriu a boca para gritar um aviso, mas as palavras
pareceram congelar na garganta. Talvez estivesse errado. Talvez
tivesse sido apenas uma ave, um reflexo na neve, um truque qualquer
do luar. Afinal, o que vira? - Will, onde est? - chamou Sor Waymar.
- V alguma coisa? - o homem descrevia um crculo lento, de sbito
cauteloso, de espada na mo. Deve t-los pressentido, tal como Will
os pressentia. Nada havia para ver. - Responda! Por que est to
frio? E estava frio. Tremendo, Will agarrou-se com mais fora ao seu
poleiro. Apertou o rosto com fora contra o tronco da rvore. Sentia
a seiva doce e pegajosa na bochecha. Uma sombra emergiu da escurido
da floresta. Parou na frente de Royce. Era alta, descarnada e dura
como ossos velhos, com uma carne plida como leite. Sua armadura
parecia mudar de cor quando se movia; aqui era to branca como neve
recm-cada, ali, negra como uma sombra, por todo o lado sarapintada
com o profundo cinzento esverdeado das rvores. Os padres corriam
como o luar na gua a cada passo que dava. Will ouviu a exalao sair
de Sor Waymar Royce num longo silvo. - No avance mais - preveniu o
nobre. A voz estava quebrada como a de um rapaz. Atirou o longo
manto de zibelina para trs por sobre os ombros, a fim de libertar
os braos para a batalha, e pegou na espada com ambas as mos. O
vento parara. Estava muito frio.
- 13. O Outro deslizou para a frente sobre ps silenciosos. Na mo
trazia uma espada que no era como nada que Will tivesse visto.
Nenhum metal humano tinha entrado na forja daquela lmina. Estava
viva de luar, translcida, um fragmento de cristal to fino que
parecia quase desaparecer quando visto de frente. Havia naquela
coisa uma tnue cintilao azul, uma luz fantasmagrica que brincava
com os seus limites, e de algum modo Will soube que era mais afiada
do que qualquer navalha. Sor Waymar enfrentou o inimigo com
bravura. - Neste caso, dance comigo. Ergueu a espada bem alto acima
da cabea, desafiador. As mos tremiam com o peso da arma, ou talvez
devido ao frio. Mas naquele momento, pensou Will, j no era um
rapaz, e sim um homem da Patrulha da Noite. O Outro parou. Will viu
seus olhos, azuis, mais profundos e mais azuis do que quaisquer
olhos humanos, de um azul que queimava como gelo. Will fixou-se na
espada que estremecia, erguida, e observou o luar que corria, frio,
ao longo do metal. Durante um segundo, atreveu-se a ter esperana.
Emergiram em silncio, das sombras, gmeos do primeiro. Trs...
quatro... cinco... Sor Waymar talvez tivesse sentido o frio que
vinha com eles, mas no chegou a v-los, no chegou a ouvi-los. Will
tinha de cham-lo. Era seu dever. E sua morte, se o fizesse.
Estremeceu, abraou a rvore e manteve o silncio. A espada clara veio
pelo ar, tremendo. Sor Waymar parou-a com o ao. Quando as lminas se
encontraram, no se ouviu nenhum ressoar de metal com metal, apenas
um som agudo e fino, no limiar da audio, como um animal a guinchar
de dor. Royce deteve um
- 14. segundo golpe, e um terceiro, e depois recuou um passo.
Outra chuva de golpes, e recuou outra vez. Atrs dele, para a
direita, para a esquerda, em seu redor, os observadores
mantinham-se em p, pacientes, sem rosto, silenciosos, com os padres
mutveis de suas delicadas armaduras a torn-los quase invisveis na
floresta. Mas no faziam um gesto para intervir. Uma vez e outra, as
espadas encontraram-se, at Will querer tapar os ouvidos,
protegendo-os do estranho e angustiado lamento de seus choques. Sor
Waymar j arquejava por causa do esforo, e a respirao gerava nuvens
ao luar. Sua lmina estava branca de gelo; a do Outro danava com uma
plida luz azul. Ento, a parada de Royce chegou um momento tarde
demais. A espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo de
seu brao. O jovem senhor gritou de dor. Surgiu sangue por entre os
aros, correu ao frio, e as gotas pareciam vermelhas como fogo onde
tocavam a neve. Os dedos de Sor Waymar esfregaram o flanco. Sua
luva de pele de toupeira veio empapada de vermelho. O Outro disse
qualquer coisa numa lngua que Will no conhecia; sua voz era como o
quebrar do gelo num lago de inverno, e as palavras, escarnecedoras.
Sor Waymar Royce encontrou sua fria. - Por Robert! - gritou, e
atacou, rosnando, erguendo com ambas as mos a espada coberta de
gelo e brandindo-a num golpe lateral paralelo ao cho, carregado com
todo seu peso. A parada do Outro foi quase displicente. Quando as
lminas se tocaram, o ao despedaou-se. Um grito ecoou pela noite da
floresta, e a espada quebrou-se numa centena de pedaos quebradios,
espalhando os estilhaos como uma chuva de agulhas. Royce caiu
de
- 15. joelhos, guinchando, e cobriu os olhos. Sangue jorrou-lhe
por entre os dedos. Os observadores aproximaram-se uns dos outros,
como que em resposta a um sinal. Espadas ergueram-se e caram, tudo
num silncio mortal. Era um assassinato frio. As lminas plidas
atravessaram a cota de malha como se fosse seda. Will fechou os
olhos. Muito abaixo, ouviu as vozes e os risos, aguados como
pingentes. Quando reuniu coragem para voltar a olhar, um longo
tempo se passara, e a colina l embaixo estava vazia. Ficou na
rvore, quase sem se atrever a respirar, enquanto a lua foi
rastejando lentamente pelo cu negro. Por fim, com os msculos cheios
de cibras e os dedos dormentes de frio, desceu. O corpo de Royce
jazia na neve de barriga para baixo, com um brao aberto. O espesso
manto de zibelina tinha sido cortado numa dzia de lugares. Jazendo
assim morto, via-se como era novo. Um rapaz. Will encontrou o que
restava da espada a alguns ps de distncia, com a extremidade
estilhaada e retorcida, como uma rvore atingida por um relmpago.
Ajoelhou-se, olhou em volta com cautela e a apanhou. A espada
quebrada seria sua prova. Gared saberia compreend-la, e, se no
soubesse, ento haveria o velho urso do Mormont ou o Meistre Aemon.
Estaria Gared ainda espera com os cavalos? Tinha de se apressar.
Will endireitou-se. Sor Waymar Royce erguia-se sobre ele. Suas
belas roupas eram farrapos, o rosto, uma runa. Um estilhao da
espada trespassara a pupila branca e cega do olho esquerdo. O olho
direito estava aberto. A pupila queimava, azul. Via.
- 16. A espada quebrada caiu de dedos despidos de fora. Will
fechou os olhos para rezar. Mos longas e elegantes roaram na sua
bochecha e depois se fecharam em volta de sua garganta. Estavam
enluvadas na mais fina pele de toupeira e pegajosas de sangue, mas
seu toque era frio como gelo. Bran A manh chegara lmpida e fria,
com uma aspereza que sugeria o fim do vero. Partiram ao nascer do
dia para ir ver a decapitao de um homem, vinte ao todo, e Bran
cavalgava com os outros, nervoso e excitado. Fora a primeira vez
que se considerara que ele tinha idade suficiente para ir com o
senhor seu pai e os irmos ver fazer-se a justia do rei. Era o nono
ano de vero, e o stimo da vida de Bran. O homem tinha sido
capturado no exterior de um pequeno povoado nos montes. Robb
pensava que se tratava de um selvagem, com a espada a servio de
Mance Rayder, o Rei- para-l-da-Muralha. Pensar nisso fazia a pele
de Bran formigar. Lembrava-se das histrias que a Velha Ama lhes
contava lareira. Os selvagens eram homens cruis, dizia,
escravagistas, assassinos e ladres. Faziam amizade com gigantes e
vampiros, raptavam meninas pela calada da noite e bebiam sangue por
cornos polidos. E suas mulheres deitavam-se com os Outros durante a
Longa Noite e geravam terrveis crianas meio humanas. Mas o homem
que encontraram amarrado pelos ps e mos ao muro do povoado, espera
da justia real, era velho e descarnado, no muito mais alto do que
Robb. Perdera ambas as orelhas e um dedo, queimados pelo frio, e
vestia-se
- 17. todo de negro como um irmo da Patrulha da Noite, no
estivessem as peles esfarrapadas e besuntadas de gordura. As
respiraes de homens e cavalos misturavam-se em nuvens de vapor no
ar frio da manh quando o senhor seu pai ordenou que cortassem as
cordas que prendiam o homem ao muro e o arrastassem at junto do
grupo. Robb e Jon sentavam-se, altos e imveis sobre os cavalos, com
Bran entre eles, no seu pnei, tentando parecer ter mais do que os
seus sete anos, e fingindo que j assistira antes a tudo aquilo. Um
vento tnue soprava atravs do porto do povoado. Sobre suas cabeas
agitava-se o estandarte dos Stark de Winterfell: um lobo gigante
cinzento correndo por um campo branco de gelo. O pai de Bran
sentava-se solenemente sobre o cavalo, com longos cabelos castanhos
a ondular ao vento. A barba bem aparada estava salpicada de branco,
fazendo-o parecer mais velho do que os seus trinta e cinco anos.
Hoje tinha uma sombra severa sobre os olhos cinzentos, e parecia
bem diferente do homem que se sentava em frente ao fogo, noite, e
falava suavemente da era dos heris e das crianas da floresta.
Tirara a cara de pai, pensou Bran, e colocara a de Lorde Stark de
Winterfell. Houve questes que foram postas e suas respostas dadas
ali, ao frio da manh, mas, mais tarde, Bran no recordaria muito do
que fora dito. Por fim, o senhor seu pai deu uma ordem, e dois dos
seus guardas arrastaram o homem esfarrapado at o toco de pau-ferro
no centro da praa. Empurraram-lhe a cabea fora contra a madeira
dura e negra. Lorde Eddard Stark desmontou, e seu protegido, Theon
Greyjoy, apresentou-lhe a espada. Chamavam Gelo quela espada. Era
larga como uma mo de homem e mais alta ainda do que
- 18. Robb. A lmina era de ao valiriano, forjado com feitios e
escuro como fumo. Nada mantinha o fio como o ao valiriano. O pai de
Bran descalou as luvas e as entregou a Jory Cassei, o capito da
guarda de sua casa. Pegou Gelo com ambas as mos e disse: - Em nome
de Robert da Casa Baratheon, o Primeiro do seu Nome, rei dos ndalos
e dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e
Protetor do Domnio, pela voz de Eddard da Casa Stark, Senhor de
Winterfell e Guardio do Norte, condeno-o morte -e ergueu a espada
bem alto sobre a cabea. O irmo bastardo de Bran, Jon Snow,
aproximou-se. - Mantenha rdea curta sobre o pnei - sussurrou. - E
no afaste os olhos. O pai saber se assim fizer. Bran manteve rdea
curta sobre o pnei e no afastou os olhos. Seu pai cortou a cabea do
homem com um nico golpe, dado com segurana. O sangue borrifou a
neve, to vermelho como vinho de vero, Um dos cavalos empinou-se e
teve de ser segurado para que no fugisse. Bran no conseguia tirar
os olhos do sangue. A neve que rodeava o poste bebia-o com
sofreguido, ficando cada vez mais vermelha enquanto ele observava.
A cabea bateu numa raiz grossa e rolou. Parou perto dos ps de
Greyjoy. Theon era um jovem esguio e escuro de dezenove anos que
achava tudo divertido. Soltou uma gargalhada, ps a bota sobre a
cabea e deu-lhe um pontap. - Cretino - resmungou Jon,
suficientemente baixo para que Greyjoy no ouvisse. Ps uma mo no
ombro de Bran, que olhava o irmo bastardo. - Esteve bem - disse-lhe
Jon solenemente. Jon tinha catorze anos, j era experiente na
justia.
- 19. O tempo parecia mais frio durante a longa viagem de
regresso a Winterfell, embora o vento tivesse cado e o sol
estivesse mais alto no cu. Bran cavalgava junto aos irmos, bem
adiantados em relao ao resto dos cavaleiros, com o pnei
esforando-se ao mximo para acompanhar o ritmo dos outros cavalos. -
O desertor morreu com bravura - disse Robb. Era grande e largo e
crescia dia a dia, com as cores da me, a pele clara, os cabelos
vermelho-acastanhados e os olhos azuis dos Tully de Correrrio. -
Tinha coragem, pelo menos. - No - disse Jon Snow calmamente. - No
era coragem. Este estava morto de medo. Podia--se ver em seus
olhos, Stark - os de Jon eram de um cinzento to escuro que pareciam
quase negros, mas pouco havia que no vissem. Tinha a mesma idade
que Robb, mas os dois no eram parecidos. Jon era esguio e escuro,
enquanto Robb era musculoso e claro; este era gracioso e ligeiro;
seu meio-irmo, forte e rpido. Robb no estava impressionado. - Que
os Outros levem seus olhos - praguejou. - Ele morreu bem. Fazemos
uma corrida at a ponte? - Fazemos - disse Jon, impulsionando o
cavalo em frente. Robb praguejou e seguiu-o, e galoparam pela
trilha afora, com Robb aos gritos e assobios, e Jon silencioso e
concentrado. Os cascos dos cavalos levantavam nuvens de neve por
onde passavam. Bran no tentou segui-los. Seu pnei no era capaz de
acompanh-los. Vira os olhos do homem esfarrapado, e estava agora
pensando neles. Aps algum tempo, o som das gargalhadas de Robb
atenuou-se e os bosques ficaram silenciosos novamente.
- 20. Estava to embrenhado nos seus pensamentos que no ouviu o
resto do grupo, at que seu pai ps o cavalo a par com sua montaria.
- Est bem, Bran? - perguntou, no sem simpatia. - Sim, pai - disse
Bran. Olhou para cima. Envolto em peles e couros, montado no grande
cavalo de guerra, o senhor seu pai pairava acima de si como um
gigante. - Robb diz que o homem morreu bravamente, mas Jon disse
que ele tinha medo. - E o que pensa voc? - perguntou-lhe o pai.
Bran refletiu sobre o assunto. - Pode um homem continuar a ser
valente se tiver medo? - Esta a nica maneira de um homem ser
valente - seu pai respondeu. - Compreende por que o fiz? - Ele era
um selvagem - disse Bran. - Eles roubam mulheres e vendem-nas aos
Outros. Seu pai sorriu. - A Velha Ama tem andado outra vez a lhe
contar histrias. Na verdade, o homem era um insurreto, um desertor
da Patrulha da Noite. Ningum pode ser mais perigoso. O desertor
sabe que sua vida est perdida se for capturado, e por isso no
vacilar perante nenhum crime, por mais vil que seja. Mas voc no me
compreendeu bem. A pergunta no era sobre o motivo por que o homem
tinha de morrer, mas sim por que eu tive de faz-lo. Bran no tinha
resposta para aquilo. - O rei Robert tem um carrasco - respondeu,
em tom incerto. - Tem - admitiu o pai. - E os reis Targaryen tambm
tiveram antes dele. Mas o nosso costume o mais antigo. O sangue dos
Primeiros Homens ainda corre nas veias dos Stark, e man- temos a
crena de que o homem que dita a sentena deve manejar a espada. Se
tirar a vida de um homem, deve olh-lo
- 21. nos olhos e ouvir suas ltimas palavras. E se no conseguir
suportar faz-lo, ento talvez o homem no merea morrer. Um dia, Bran,
ser vassalo de Robb, mantendo um domnio seu para o seu irmo e o seu
rei, e a justia caber a voc. Quando esse dia chegar, no deve ter
nenhum prazer na tarefa, mas tampouco dever desviar os olhos. Um
governante que se esconde atrs de executores pagos depressa se
esquece do que a morte. Foi ento que Jon reapareceu sobre o cume da
colina frente do grupo. Acenou e gritou-lhes: - Pai, Bran, venham
depressa ver o que Robb encontrou! - e depois voltou a desaparecer.
Jory ps-se ao lado de Bran e do pai. - Problemas, senhor? - Sem
nenhuma dvida - disse o senhor seu pai. - Vamos, vamos ver que
velhacaria desenterraram agora os meus filhos - ps o cavalo a
trote. Jory, Bran e o resto do grupo seguiram- no. Encontraram Robb
na margem do rio, ao norte da ponte, com Jon ainda montado ao seu
lado. As neves do fim do vero tinham sido pesadas naquela volta da
lua. Robb estava enterrado em branco at os joelhos, com o capuz
atirado para trs, e o sol brilhava nos seus cabelos. Aconchegava
alguma coisa no brao enquanto os rapazes conversavam em vozes
excitadas, mas baixas. Os cavaleiros escolheram o caminho com
cuidado atravs dos detritos empilhados pelo rio, tateando em busca
de apoio slido no terreno escondido e irregular. Jory Cassel e
Theon Greyjoy foram os primeiros a chegar perto dos rapazes.
Greyjoy ria e gracejava enquanto se aproximava. Bran ouviu o flego
sair-lhe do peito.
- 22. - Deuses! - exclamou, lutando por manter o controle do
cavalo enquanto levava a mo espada. A espada de Jory j estava na
mo. - Robb, afaste-se disso! - gritou, enquanto o cavalo empinava
entre suas pernas. Robb sorriu e ergueu o olhar do volume que tinha
nos braos. - Ela no lhe pode fazer mal - disse. - Est morta, Jory.
Por aquela altura, Bran j ardia de curiosidade. Teria esporeado o
pnei para avanar mais depressa, mas o pai os fez desmontar junto
ponte e aproximar-se a p. Bran saltou do animal e correu. Tambm
Jon, Jory e Theon Greyjoy j tinham desmontado. - O que, pelos sete
infernos, isso? - disse Greyjoy. - Uma loba - disse Robb. - Uma
aberrao - disse Greyjoy. - Olha o tamanho da coisa. O corao de Bran
martelava-lhe no peito enquanto abria caminho atravs de uma pilha
de detritos que lhe alcanava a cintura, at que chegou ao lado do
irmo. Meio enterrada na neve manchada de sangue, uma forma enorme
atolava-se na morte. Em sua desgrenhada pelagem cinzenta formara-se
gelo, e um tnue cheiro de putrefao impregnava-a como perfume de
mulher. Bran viu de relance os olhos cegos repletos de vermes, uma
grande boca cheia de dentes amarelados, Mas foi o tamanho da coisa
que o fez ficar de boca aberta. Era maior que seu pnei, com o dobro
do tamanho do maior co de caa do canil de seu pai. - No aberrao
nenhuma - disse Jon calmamente. - Isso uma loba gigante. Eles
crescem mais do que os da outra espcie. Theon Greyjoy disse:
- 23. - No visto nenhum lobo gigante ao sul da Muralha h duzentos
anos. - Vejo um agora - respondeu Jon. Bran desviou os olhos do
monstro. Foi ento que reparou no fardo que estava nos braos de
Robb. Soltou um grito de deleite e aproximou-se. O filhote era uma
minscula bola de pelo cinza-escuro, ainda com os olhos fechados.
Batia cegamente com o focinho contra o peito de Robb, procurando
leite nos couros que o cobriam, soltando um pequeno som lamentoso e
triste, Bran estendeu uma mo hesitante. - V l - disse-lhe Robb, -
Pode toc-lo, Bran fez um afago rpido e nervoso no filhote e depois
se virou quando Jon disse: - Ora, veja aqui - seu meio-irmo ps um
segundo filhote nos seus braos. - H cinco ao todo - Bran sentou-se
na neve e abraou a cria de lobo, encostando-a ao rosto. O pelo do
animal era suave e morno. - Lobos gigantes solta no reino depois de
tantos anos - murmurou Hullen, o mestre dos cavalos. - No me
agrada. - um sinal - disse Jory. O pai franziu a sobrancelha. -
Isto s um animal morto, Jory - disse, apesar de parecer perturbado.
A neve rangia sob seus ps enquanto passeava ao redor do corpo. -
Sabemos o que a matou? - H qualquer coisa na garganta - disse Robb,
orgulhoso de ter encontrado a resposta mesmo antes de o pai ter
perguntado. - Ali, por baixo da mandbula. O pai ajoelhou-se e
tateou sob a cabea do animal. Deu um puxo e ergueu a coisa para que
todos a vissem. Trinta centmetros de um chifre estilhaado de veado,
com as pontas partidas, todo vermelho de sangue. Um silncio sbito
caiu
- 24. sobre o grupo. Os homens olharam inquietos para o corno,
mas ningum se atreveu a falar. Mesmo Bran pressentia seu medo,
embora no compreendesse. O pai atirou o chifre para o lado e limpou
as mos na neve. - Surpreende-me que ela tenha vivido tempo
suficiente para parir - disse, e sua voz quebrou o encantamento. -
Talvez no tenha - disse Jory. - Ouvi histrias... talvez a loba j
estivesse morta quando os filhotes chegaram. - Nascidos com os
mortos - interveio outro homem. - Pior sorte. - No importa - disse
Hullen. - No tarda e estaro mortos tambm. Bran soltou um grito
inarticulado de desalento. - Quanto mais depressa, melhor -
concordou Theon Greyjoy e puxou a espada. - D-me o animal, Bran. A
criaturinha enroscou-se nele, como se tivesse ouvido e
compreendido. - No! - gritou Bran ferozmente. - meu. - Guarda a
espada, Greyjoy - disse Robb, que por um momento soou to autoritrio
como o pai, como o senhor que viria a ser um dia. - Vamos ficar com
esses filhotes. - No pode fazer isso, rapaz - disse Harwin, que era
filho de Hullen. - Ser misericordioso mat-los - disse Hullen. Bran
olhou o senhor seu pai em busca de salvao, mas s recebeu um franzir
de cenho, uma testa cheia de sulcos. - Hullen fala a verdade,
filho. melhor uma morte rpida do que uma lenta, de frio e de fome.
- No! - sentia que lgrimas lhe brotavam dos olhos e afastou- se. No
queria chorar na frente do pai. Robb resistia com teimosia.
- 25. - A cadela vermelha de Sor Rodrik pariu de novo na semana
passada - disse. - Foi uma ninhada pequena, s com dois cachorros
vivos. Ela ter leite suficiente. - Ela os despedaar quando tentarem
mamar. - Lorde Stark - disse Jon. Era estranho ouvi-lo chamar o pai
assim, de modo to formal. Bran olhou-o com uma esperana
desesperada. - H cinco crias. Trs machos e duas fmeas. - E ento,
Jon? - O senhor tem cinco filhos legtimos - disse Jon. - Trs filhos
e duas filhas. O lobo gigante o selo da vossa Casa. Os vossos
filhos esto destinados a ficar com essa ninhada, senhor. Bran viu o
rosto do pai mudar e os outros homens trocarem olhares. Naquele
momento, amou Jon de todo o corao. Mesmo com seus sete anos, Bran
compreendeu o que o irmo fizera. A conta estava certa apenas porque
Jon se omitira. Inclura as moas e at Rickon, o beb, mas no o
bastardo que usava o apelido Snow, o nome que, pelo costume, devia
ser dado a todos aqueles que, no Norte, eram suficientemente
infelizes para no possuir um nome seu. O pai tambm o compreendera.
- No quer uma cria para voc, Jon? - perguntou brandamente. - O lobo
gigante honra os estandartes da Casa Stark - Jon retrucou. - Eu no
sou um Stark, pai. O senhor seu pai o olhou, pensativo. Robb
apressou-se a preencher o silncio que ele deixara. - Cuidarei eu
prprio dele, pai - prometeu. - Embeberei uma toalha em leite morno
e assim lhe darei de mamar. - Eu tambm! - disse Bran num eco. O
senhor avaliou os filhos longa e cuidadosamente com os olhos.
- 26. - fcil dizer, mas difcil fazer. No quero v-los desperdiando
com isto o tempo dos criados. Se querem esses filhotes, vocs os
alimentaro. Entendido? Bran acenou com ardor. O animal contorceu-se
nos seus braos e lambeu-lhe o rosto com uma lngua morna. - Devem
trein-los tambm - disse-lhes o pai. - Devem ensin- los. O mestre do
canil no vai querer ter nada a ver com esses monstros, garanto a
vocs. E que os deuses os protejam se negligenciarem, maltratarem ou
treinarem mal esses animais. Esses no so ces que peam festas ou se
esquivem a um pontap. Um lobo gigante capaz de arrancar o brao de
um homem com tanta facilidade como um co mata uma ratazana. Tm
certeza de que querem isto? - Sim, pai - disse Bran. - Sim -
concordou Robb. - Os filhotes podem morrer de qualquer modo, apesar
de tudo o que fizerem. - Eles no morrero - disse Robb. - No
deixaremos que morram. - Fiquem ento com eles, Jory, Desmond,
recolham os demais. tempo de regressarmos a Winterfell. Foi s
depois de terem montado e de se terem posto a caminho que Bran se
permitiu saborear o doce ar da vitria. Nessa altura, seu filhote
estava aconchegado entre seus couros, quente contra seu corpo, a
salvo durante a longa viagem para casa. Bran perguntava-se como
haveria de cham-lo. No meio da ponte, Jon puxou subitamente as
rdeas. - Que se passa, Jon? - perguntou o senhor seu pai. - O
senhor no ouviu?
- 27. Bran ouvia o vento nas rvores, o rudo dos cascos nas tbuas
de pau-ferro, os lamentos da cria faminta, mas Jon escutava outra
coisa. - Ali - disse Jon. Fez o cavalo dar meia-volta e galopou
pela ponte, pelo caminho por onde viera. Viram-no desmontar onde a
loba gigante jazia morta na neve e ajoelhar-se. Um momento mais
tarde, cavalgava de regresso, sorrindo. - Deve ter se afastado dos
outros - ele disse. - Ou sido afastado - disse o pai, olhando a
sexta cria. A pelagem desta era branca, enquanto a do resto da
ninhada era cinzenta. Seus olhos eram to vermelhos como o sangue do
homem esfarrapado que morrera naquela manh. Bran achou curioso que
s aquele cachorro tivesse aberto os olhos, enquanto os outros ainda
estavam cegos. - Um albino - disse Theon Greyjoy com um perverso
divertimento. - Este ainda vai morrer mais depressa do que os
outros. Jon Snow deitou sobre o protegido de seu pai um olhar longo
e gelado. - Penso que no, Greyjoy - disse. - Este me pertence.
Catelyn Catelyn nunca gostara daquele bosque sagrado. Nascera entre
os Tully, em Correrrio, mais ao Sul, nas margens do Ramo Vermelho
do Tridente. O bosque sagrado que l havia era um jardim, luminoso e
arejado, onde grandes rvores de pau-brasil espalhavam sombras
sarapintadas por crregos que rumorejavam entre as margens, aves
cantavam em ninhos escondidos e o ar era perfumado pelo odor de
flores.
- 28. Os deuses de Winterfell mantinham um tipo diferente de
bosque. Era um lugar escuro e primordial, trs acres de floresta
antiga, intocada ao longo de dez mil anos, enquanto o castelo se
levantava a toda sua volta. Cheirava a terra mida e a decomposio.
Ali no crescia o pau-brasil. Aquele era um bosque de obstinadas
rvores sentinelas, revestidas de agulhas cinza-esverdeadas, de
poderosos carvalhos, de rvores de pau-ferro to velhas como o prprio
reino. Ali, espessos troncos negros enroscavam-se uns aos outros,
enquanto ramos retorcidos teciam um denso dossel elevado e razes
deformadas batalhavam sob o solo. Aquele era um lugar de profundo
silncio e sombras meditativas, e os deuses que ali viviam no tinham
nomes. Mas ela sabia que naquela noite encontraria ali seu marido.
Sempre que ele tirava a vida de um homem, procurava depois o
sossego do bosque sagrado. Catelyn fora ungida com os sete leos e
fora-lhe dado o nome no arco-ris de luz que enchia o septo de
Correrrio. Pertencia F, tal como o pai e o av, e o pai deste antes
dele. Seus deuses possuam nomes, e seus rostos eram-lhe to
familiares como os de seus pais. O servio religioso era um septo
com um turbulo, o cheiro do incenso, um cristal de sete lados
animado com luz, vozes erguidas em canto. Os Tully mantinham um
bosque sagrado, como todas as grandes casas, mas era apenas um
lugar para passear, ler ou ficar deitado ao sol. A prece pertencia
ao septo. Por ela, Ned tinha construdo um pequeno septo onde podia
cantar s sete caras de deus, mas o sangue dos Primeiros Homens
ainda corria nas veias dos Stark, e seus deuses eram os antigos, os
deuses sem nome nem rosto da mata verde que partilhavam com os
filhos desaparecidos da floresta.
- 29. No centro do bosque, um antigo represeiro reinava pensativo
sobre uma pequena lagoa onde as guas eram negras e frias. Ned
chamava-lhe "a rvore-corao". A casca do represeiro era branca como
osso e suas folhas, vermelhas como um milhar de mos manchadas de
sangue. Uma cara tinha sido esculpida no tronco da grande rvore, de
traos compridos e melanclicos, com os olhos profundamente
escavados, vermelhos de seiva seca e estranhamente vigilantes.
Aqueles olhos eram velhos; mais velhos do que a prpria Winterfell.
Se as lendas falavam a verdade, tinham visto Brandon, o Construtor,
assentar a primeira pedra; tinham visto as muralhas de granito do
castelo crescer sua volta. Dizia-se que os filhos da floresta
tinham esculpido as caras nas rvores durante os sculos de alvorada,
antes da chegada dos Primeiros Homens, vindos do mar estreito. No
sul, os ltimos represeiros tinham sido derrubados ou queimados
havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde os homens verdes
mantinham sua vigilncia silenciosa e as coisas eram diferentes.
Aqui cada castelo possua seu bosque sagrado, e cada bosque sagrado
tinha sua rvore--corao, e cada rvore-corao, seu rosto. Catelyn
encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa pedra coberta de
musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobre as coxas, e limpava-lhe
a lmina naquelas guas, negras como a noite. Mil anos de hmus jaziam
numa grossa camada no solo do bosque sagrado, engolindo o som dos
ps da mulher, mas os olhos vermelhos do represeiro pareciam
segui-la enquanto se aproximava. - Ned - ela chamou, com suavidade.
Ele ergueu a cabea para olh-la. - Catelyn - disse. Sua voz era
distante e formal. - Onde esto as crianas? Ele sempre lhe
perguntava aquilo.
- 30. - Na cozinha, discutindo nomes para as crias de lobo - ela
estendeu o manto sobre o cho da floresta e sentou-se junto lagoa,
de costas voltadas para o represeiro. Podia sentir os olhos a
observ-la, mas fez o melhor que pde para ignor-los. - Arya j est
apaixonada, e Sansa, enfeitiada e apiedada, mas Rickon no est muito
seguro. - Tem medo? - Ned perguntou. - Um pouco - admitiu ela. - S
tem trs anos. Ned franziu as sobrancelhas. - Ele tem de aprender a
enfrentar seus medos. No ter trs anos para sempre. E o inverno est
para chegar. - Sim - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe
um arrepio, como sempre. As palavras Stark. Todas as casas nobres
tinham as suas palavras. Lemas de famlia, pedras de toque, espcies
de oraes, que alardeavam honra e glria, prometiam lealdade e
verdade, juravam f e coragem. Todas, menos a dos Stark. O inverno
est para chegar, diziam as palavras Stark. Refletiu sobre como
aqueles nortenhos eram um povo estranho, e j no era a primeira vez
que o fazia. - O homem morreu bem, posso lhe assegurar - disse Ned.
Tinha na mo um bocado de couro oleado com o qual fazia percorrer
com leveza a espada enquanto falava, polindo o metal at soltar um
brilho escuro. - Fiquei contente por causa de Bran. Teria ficado
orgulhosa dele. - Estou sempre orgulhosa de Bran - Catelyn
respondeu, observando a espada enquanto ele a esfregava. Conseguia
ver as ondulaes profundas do ao, onde o metal fora dobrado sobre si
prprio cem vezes durante a forja. Catelyn no sentia qualquer amor
por espadas, mas no podia negar que Gelo possua sua beleza. Tinha
sido forjada em Valria antes de a destruio ter cado sobre a antiga
cidade franca, quando os
- 31. ferreiros trabalhavam seus metais tanto com feitios como
com martelos. Tinha j quatrocentos anos, e era to aguada como no
dia em que fora forjada. O nome que ostentava era ainda mais
antigo, um legado da era dos heris, quando os Stark eram reis no
Norte. - Foi o quarto este ano - disse Ned sombriamente. - O pobre
homem estava meio louco. Algo lhe incutiu um medo to profundo que
minhas palavras no o alcanaram - suspirou. - Ben escreveu-me
dizendo que a fora da Patrulha da Noite j no tem mil homens. No so
s deseres. Tem tambm perdido homens nas patrulhas. - So os
selvagens? - ela perguntou. - Quem mais poderia ser? - Ned ergueu
Gelo e observou o ao frio ao longo de todo seu comprimento. - E s
vai piorar. Pode chegar o dia em que eu no tenha escolha a no ser
reunir os vassalos e marchar para o norte a fim de lidar de uma vez
por todas com esse Rei-para-l-da-Muralha. - Para l da Muralha? - a
idia fez Catelyn estremecer. Ned viu o terror no seu rosto. - Mance
Rayder no nada que devamos temer. - H coisas mais escuras para l da
Muralha - ela olhou de relance a rvore-corao s suas costas, a casca
clara e os olhos vermelhos, observando, escutando, pensando seus
longos e lentos pensamentos. O sorriso dele era gentil. - Voc ouve
em demasia as histrias da Velha Ama. Os Outros esto to mortos como
os filhos da floresta, desaparecidos h oito mil anos. Meistre Luwin
lhe diria que nunca sequer chegaram a estar vivos. Nenhum homem
vivo alguma vez viu um.
- 32. - At hoje de manh, nenhum homem vivo tinha visto um lobo
gigante - recordou Catelyn. - J devia saber que no se pode discutir
com uma Tully - ele disse com um sorriso triste e devolveu Gelo sua
bainha. - No veio at aqui me contar histrias de embalar. Sei bem
como gosta pouco deste lugar. Que se passa, minha senhora? Catelyn
tomou nas suas a mo do marido. - Hoje chegaram dolorosas novas, meu
senhor. No quis incomod-lo at se ter purificado - no havia maneira
de suavizar o golpe, e ela o disse sem rodeios. - Lamento tanto,
meu amor. Jon Arryn est morto. Os olhos dele encontraram os dela, e
Catelyn viu como lhe custou, como sabia que custaria. Na juventude,
Ned tinha sido acolhido no Ninho da guia, e Lorde Arryn, que no
tinha filhos seus, tinha se tornado um segundo pai para ele e para
o seu outro protegido, Robert Baratheon. Quando o Rei Aerys n
Targaryen, o Louco, exigira suas cabeas, o Senhor do Ninho da guia
erguera em revolta os seus estandartes da lua e do falco em vez de
entregar aqueles que jurara proteger. E um dia, h quinze anos, seu
segundo pai tinha se transformado tambm num irmo, quando ele e Ned
se juntaram no septo de Correrrio para desposar duas irms, as
filhas de Lorde Hoster Tully, -Jon... - Ned disse. - Esta notcia
segura? - Trazia o selo do rei, e a carta vinha escrita na
caligrafia do prprio Robert. Guardei-a para voc. Diz que Lorde
Arryn partiu depressa. Nem Meistre Pycelle pde fazer alguma coisa,
mas trouxe o leite da papoula, para que Jon no ficasse por muito
tempo em sofrimento. - Isto foi uma pequena misericrdia, suponho -
ele disse. Catelyn via o pesar em seu rosto, mas mesmo nesse
momento
- 33. seu primeiro pensamento era-lhe dedicado. - A sua irm -
disse Ned. - E o filho de Jon. Que notcias h deles? - A mensagem
dizia apenas que estavam bem e que tinham regressado ao Ninho da
guia - ela respondeu. - Eu preferia que tivessem ido para
Correrrio. O Ninho da guia um lugar alto e solitrio, e sempre foi o
lugar de Jon, no deles. A memria de Lorde Jon assombrar cada pedra.
Conheo minha irm. Ela precisa do conforto da famlia e dos amigos ao
seu redor. - Seu tio espera no Vale, no verdade? Ouvi dizer que Jon
o nomeou Cavaleiro do Porto. Catelyn anuiu com a cabea. - Brynden
far por ela e pelo rapaz o que puder. E algum conforto, mas mesmo
assim... - V ter com ela - Ned tentou anim-la. - Leva as crianas.
Encha aqueles sales de rudo, gritos e risos. Aquele rapaz precisa
de outras crianas a sua volta, e Lysa no deve ficar s na sua dor. -
Gostaria de poder fazer isso - disse Catelyn. - A carta trazia
outras notcias. O rei viaja para Winterfell sua procura. Ned
precisou de um momento para ver o sentido daquelas palavras, mas,
quando as compreendeu, a escurido abandonou seus olhos. - Robert
vem para c? - quando ela anuiu, um sorriso abriu-se no seu rosto.
Catelyn desejou poder compartilhar da alegria do marido. Mas ouvira
o que se dizia pelos ptios; um lobo gigante morto na neve, com um
chifre partido na garganta. O terror retorcia-se no seu interior
como uma serpente, mas forou-se a sorrir para aquele homem que
amava, aquele homem que no punha f alguma nos sinais.
- 34. - Sabia que te agradaria - disse. - Deveramos enviar uma
mensagem ao seu irmo, na Muralha. - Sim, claro - ele concordou. -
Ben vai querer estar aqui. Direi a Meistre Luwin para enviar sua
ave mais rpida - Ned ergueu-se e ajudou a esposa a pr-se em p. -
Demnios, quantos anos j se passaram? E no nos d mais notcias do que
estas? A mensagem dizia quantos homens traz na comitiva? - Penso
que um cento de cavaleiros, pelo menos, com todos os seus
servidores, e vez e meia este nmero de cavaleiros livres. Cersei e
as crianas viajam com eles. - Robert vir em passo moderado por
causa delas - disse Ned. - Ainda bem. Teremos mais tempo para nos
preparar. - Os irmos da rainha tambm vm na comitiva - ela
completou. Ao ouvir aquilo, Ned fez um trejeito. Catelyn sabia que
pouca simpatia havia entre ele e a famlia da rainha. Os Lannister
de Rochedo Casterly tinham chegado tarde causa de Robert, quando a
vitria era praticamente certa, e ele nunca os perdoara por isso. -
Bem, se o preo a pagar pela companhia de Robert uma infestao de
Lannister, que seja. Parece que Robert traz metade da corte. -
Aonde o rei vai, o reino segue - ela respondeu. - Ser bom ver as
crianas. O mais novo ainda mamava da teta da Lannister da ltima vez
que o vi. Agora deve ter o qu? Cinco anos? - O Prncipe Tommen tem
sete anos. A mesma idade de Bran. Por favor, Ned, tenha tento na
lngua. Lannister nossa rainha, e diz-se que seu orgulho cresce a
cada ano que passa. Ned apertou-lhe a mo.
- 35. - Ter de haver um festim, bem-composto, com cantores, e
Robert vai querer caar. Enviarei Jory para o sul com uma guarda de
honra ao seu encontro, a fim de escolt-los no caminho at aqui pela
estrada do rei. Deuses, como iremos alimentar a todos? Maldito seja
o homem. Maldito seja o seu real couro. Daenerys O irmo ergueu o
vestido para que ela o inspecionasse. - Isto uma beleza! Toque-o.
Vamos. Acaricie o tecido, Dany o tocou. O tecido era to macio que
parecia correr-lhe pelos dedos como gua. No conseguia se lembrar de
alguma vez ter usado algo to suave. Assustou-se. Afastou a mo. -
mesmo meu? - Um presente de Magster Illyrio - disse Viserys,
sorrindo. Seu irmo estava de bom humor naquela noite. - A cor
realar o violeta dos seus olhos. E voc tambm ter ouro e jias de
todos os tipos. Illyrio prometeu, Esta noite deve se parecer uma
princesa. Uma princesa, pensou Dany. J se esquecera de como aquilo
era. Talvez nunca tivesse realmente sabido. - Por que ele nos d
tanto? - ela perguntou. - O que quer de ns? - h quase meio ano que
viviam na casa do magster, comiam da sua comida, eram paparicados
pelos seus criados. Dany tinha treze anos, idade suficiente para
saber que tais presentes raramente vm sem preo ali, na cidade livre
de Pentos. - Illyrio no nenhum tolo - Viserys respondeu. Era um
jovem magro com mos nervosas e um ar febril nos olhos de
- 36. um tom claro de lils. - O magster sabe que no esquecerei os
amigos quando subir ao trono. Dany no disse nada. Magster Illyrio
era um comerciante de especiarias, pedras preciosas, ossos de drago
e outras coisas menos palatveis. Tinha amigos em todas as Nove
Cidades Livres, dizia-se, e mesmo para l delas, em Vaes Dothrak e
nas terras das fbulas junto ao Mar de Jade. Tambm se dizia que
nunca tinha tido um amigo que no fosse capaz de vender alegremente
pelo preo justo. Dany escutava o falatrio nas ruas e ouvia essas
coisas, mas tambm sabia que era melhor no questionar o irmo
enquanto tecia suas teias de sonho. Quando era despertada, a ira de
Viserys era algo terrvel. Ele a chamava "o acordar do drago". O
irmo pendurou o vestido ao lado da porta. - Illyrio enviar as
escravas para lhe darem banho. Assegure- se de se livrar do fedor
dos estbulos. Khal Drogo tem mil cavalos e hoje vem procura de um
tipo diferente de montaria - estudou-a criticamente. - Ainda tem as
costas tortas. Endireite-se - ps-lhe as mos nos ombros e puxou-os
para trs. - Deixe-os ver que tem agora a forma de uma mulher - os
dedos do irmo roaram levemente seus seios em boto e apertaram num
mamilo. - No me falhar esta noite. Seno, ser mau para voc. No quer
acordar o drago, quer? - os dedos torceram-se, um belisco cruel e
duro atravs do tecido grosseiro da tnica. - Quer? - ele repetiu. -
No - respondeu Dany docilmente. O irmo sorriu. - timo - tocou-lhe
os cabelos, quase com afeio. - Quando escreverem a histria do meu
reinado, minha doce irm, diro que comeou esta noite. Quando ele
saiu, Dany foi at a janela e olhou, melanclica, as guas da baa. As
torres quadradas de tijolo de Pentos
- 37. eram silhuetas negras delineadas contra o sol poente. Ela
conseguia ouvir os sacerdotes vermelhos cantando, enquanto acendiam
as piras noturnas, e os gritos de crianas esfarrapadas que jogavam
para l dos muros da propriedade. Por um momento desejou poder estar
l fora com elas, de ps nus, sem flego e vestida de farrapos, sem
passado nem fu- turo, sem banquete para ir na manso de Khal Drogo.
Em algum lugar para l do pr do sol, do outro lado do estreito mar,
havia uma terra de colinas verdes e plancies cobertas de flores e
grandes rios caudalosos, onde torres de pedra negra se erguiam por
entre magnficas montanhas azul- acinzentadas e cavaleiros de
armadura cavalgavam para a batalha sob os estandartes dos seus
senhores. Os dothrakis chamavam a essa terra Rhaesb Andahli, a
terra dos ndalos. Nas Cidades Livres, falavam de Westeros e dos
Reinos do Poente. O irmo tinha um nome mais simples. Chamava-lhe
"nossa terra". Para ele, as palavras eram como uma prece, Se as
dissesse o nmero de vezes suficientes, os deuses certamente
ouviriam. " nosso direito de sangue, usurpado por meios traioeiros.
No se rouba um drago, ah, no. O drago se lembra." E o drago talvez
recordasse mesmo, mas Dany no. Nunca vira aquela terra que o irmo
dizia que lhes pertencia, este domnio para l do estreito mar.
Aqueles lugares de que falava, Rochedo Casterly e o Ninho da guia,
Jardim de Cima e o Vale de Arryn, Dorne e a Ilha das Caras, para
ela eram apenas palavras. Viserys era um rapaz de oito anos quando
fugiram de Porto Real para escapar ao avano dos exrcitos do
Usurpador, mas Daenerys no passava de uma partcula de vida no
ventre da me. Mesmo assim, por vezes, Dany conseguia visualizar os
acontecimentos, tantas tinham sido as ocasies em que ouvira
- 38. o irmo contar as histrias. A fuga no meio da noite para a
Pedra do Drago, com o luar cintilando nas velas negras do navio.
Seu irmo, Rhaegar, combatendo o Usurpador nas guas sangrentas do
Tridente e morrendo pela mulher que amava. O saque de Porto Real
por aqueles a quem Viserys chamava os ces do Usurpador, os senhores
Lannister e Stark. A princesa Elia de Dorne suplicando misericrdia
quando o herdeiro de Rhaegar lhe fora arrancado do seio e
assassinado perante seus olhos. Os crnios polidos dos ltimos drages
a olhar sem ver do alto das paredes da sala do trono quando o
Regicida abrira a garganta do Pai com uma espada dourada. Nascera
em Pedra do Drago quatro luas depois da fuga, durante a fria de uma
tempestade de vero que ameaava destroar a estabilidade da ilha.
Diziam que aquela tempestade tinha sido terrvel. A frota Targaryen
fora esmagada enquanto estava ancorada e enormes blocos de pedra
foram arrancados dos parapeitos e precipitados sobre as guas
encapeladas do mar estreito. A me morrera ao d-la luz, e por este
fato o irmo Viserys nunca a perdoara. Tampouco se lembrava de Pedra
do Drago. Tinham fugido de novo, imediatamente antes de o irmo do
Usurpador zarpar com sua nova frota. Por essa altura, dos Sete
Reinos que tinham pertencido aos seus, apenas Pedra do Drago
restava, a antiga sede de sua Casa. Mas no por muito tempo, A
guarnio estava preparada para vend-los ao Usurpador, mas, uma
noite, Sor Willem Darry e quatro homens leais invadiram o quarto
das crianas, raptaram-nas e sua ama de leite, e zarparam sob a
escurido da noite em busca da segurana da costa bravosiana.
Lembrava-se vagamente de Sor Willem, um homem que mais parecia um
grande urso cinzento, meio cego, a rugir e berrar
- 39. ordens de sua cama de doente. Os criados tinham vivido
aterrorizados por causa dele, que sempre fora bondoso para Dany.
Chamava a "pequena princesa" e, por vezes, "minha senhora", e suas
mos eram suaves como couro velho. Mas nunca deixava a cama, e o
cheiro da doena impregnava-o de dia e de noite, com um odor quente,
mido, de uma doura doentia. Nessa altura viviam em Bravos, na casa
grande de porta vermelha, Dany tinha seu prprio quarto, com um
limoeiro junto janela. Depois da morte de Sor Willem, os criados
roubaram o pouco dinheiro que lhes restava e em breve os irmos
foram postos fora da casa grande, Dany chorara quando a porta
vermelha se fechara s suas costas para sempre. Desde ento, tinham
andado de um lado para outro, de Bravos para Myr, de Myr para
Tyrosh e da para Qohor, Volantis e Lys, sem nunca ficarem muito
tempo no mesmo lugar. O irmo no permitia. Insistia que os traidores
contratados pelo Usurpador viriam atrs deles, embora Dany nunca
tivesse visto nenhum. A princpio, os magsteres, arcontes e prncipes
mercadores tinham se sentido felizes por dar as boas-vindas aos
ltimos Targaryen s suas casas e mesas, mas, medida que os anos
foram passando e o Usurpador continuou sentado no Trono de Ferro,
as portas foram se fechando e suas vidas tornaram- se mais pobres.
Anos antes, tinham se visto forados a vender os ltimos tesouros, e
agora, at o dinheiro que tinham obtido pela coroa da me
desaparecera. Nas vielas e tabernas de Pentos chamavam o irmo de
"rei pedinte". Dany no queria saber do que a chamavam. "Um dia
teremos tudo de volta, minha doce irm", prometia- lhe Viserys. s
vezes as mos tremiam-lhe quando falava daquilo. "As jias e as
sedas, Pedra do Drago e Porto Real, o
- 40. Trono de Ferro e os Sete Reinos, tudo o que nos roubaram,
teremos tudo de volta." Ele vivia para esse dia. Tudo o que
Daenerys queria de volta era a grande casa de porta vermelha com o
limoeiro em frente janela do seu quarto, a infncia que nunca
conhecera. Ouviu-se um suave toque na porta. - Entre - disse Dany,
virando as costas janela. As criadas de Illyrio entraram com
reverncias e comearam a tratar de suas tarefas. Eram escravas, um
presente de um dos muitos amigos dothrakis do magster. A
escravatura no existia na cidade livre de Pentos. E, no entanto,
elas eram escravas. A mulher mais velha, pequena e cinzenta como um
rato, nunca dizia uma palavra, mas a moa compensava. Era a favorita
de Illyrio, uma jovem de dezesseis anos, cabelos claros e olhos
azuis, que tagarelava sem cessar enquanto trabalhava. Encheram a
banheira com gua quente trazida da cozinha e perfumaram-na com leos
odorferos. A moa puxou a tnica de algodo grosseiro pela cabea de
Dany e a ajudou a entrar na banheira. A gua escaldava, mas Daenerys
no hesitou nem gritou. Gostava do calor. Fazia-a sentir-se limpa.
Alm disso, o irmo dissera-lhe com frequncia que nunca nada estava
quente demais para um Targaryen. "A nossa a Casa do drago", dizia.
"O fogo est em nosso sangue." A mulher mais velha lavou seus longos
cabelos esbranquiados e removeu suavemente os ns com uma escova,
sempre em silncio. A moa esfregou-lhe as costas e os ps e disse-lhe
como tinha sorte. - Drogo to rico que at seus escravos usam colares
de ouro. Seu khalasar tem cem mil cavaleiros, e seu palcio em Vaes
Dothrak, duzentos quartos e portas de prata slida - e houve mais do
mesmo gnero, muito mais; como o khal era um homem bonito, alto e
feroz, destemido em batalha, o melhor
- 41. cavaleiro que alguma vez montara um cavalo, um arqueiro
demonaco. Daenerys nada disse. Sempre assumira que se casaria com
Viserys quando chegasse idade adulta. Durante sculos, os Targaryen
tinham se casado irmo com irm, desde que Aegon, o Conquistador,
tomara as irms como noivas, Viserys dissera-lhe mil vezes que a
pureza da linhagem devia ser mantida, que o sangue real era deles,
o sangue dourado da antiga Valria, o sangue do drago. Os drages no
acasalavam com os animais dos campos, e os Targaryen no misturavam
seu sangue com o de homens menores. E, no entanto, agora Viserys
conspirava para vend-la a um estranho, a um brbaro. Quando ficou
limpa, as escravas ajudaram-na a sair da gua e secaram-na com
toalhas. A moa escovou-lhe os cabelos at faz-los brilhar como prata
derretida, enquanto a mulher mais velha a untava com o perfume de
flores de especiarias das plancies dothrakianas, um salpico em cada
pulso, atrs das orelhas, na ponta dos seios e, por fim, um
refrescante, l embaixo, entre as pernas. Vestiram-lhe a roupa de
baixo que Magster Illyrio lhe enviara e depois o vestido, de seda,
com um profundo tom de ameixa para realar o violeta dos seus olhos.
A moa enfiou-lhe as sandlias douradas nos ps enquanto a mulher mais
velha lhe fixava a tiara na cabea e fazia deslizar pulseiras
douradas incrustadas de ametistas em seus pulsos. O ltimo adorno
foi o colar, um pesado cordo de ouro torcido ornado com antigos
glifos valirianos. - Agora, sim, se parece com uma princesa - disse
a moa, sem flego, quando terminaram. Dany olhou de relance para sua
imagem no espelho prateado que Illyrio to previdentemente lhe
fornecera. Uma princesa, pensou, mas lembrou-se do que a moa
dissera, de como Khal Drogo era to rico que at seus
- 42. escravos usavam colares de ouro. Sentiu um sbito arrepio
percorrer os braos nus. O irmo a esperava na frescura do trio,
sentado na margem da fonte, arrastando a mo pela gua. Ps-se em p
quando ela surgiu e observou-a com olhos crticos. - Venha aqui -
disse. - Vire-se. Sim. timo. Voc tem um ar... - Real - disse
Magster Illyrio, entrando por uma arcada. Movia-se com uma
delicadeza surpreendente para um homem to corpulento. Sob
vestimentas soltas de seda cor de fogo, nuvens de gordura oscilavam
enquanto ele caminhava. Pedras preciosas cintilavam em todos os
dedos, e seu criado oleara-lhe a barba amarela bifurcada at que
brilhasse como ouro verdadeiro. - Que o Senhor da Luz a banhe em
bnos neste to afortunado dia, Princesa Daenerys - disse o magster
quando lhe tomou a mo. Inclinou a cabea, mostrando um fino relance
de dentes amarelos e tortos atravs do dourado da barba. - Ela uma
viso, Vossa Graa, uma viso - exclamou, dirigindo-se a Viserys. -
Drogo ficar arrebatado. - magra demais - disse Viserys. Seus
cabelos, do mesmo tom louro-prateado dos dela, tinham sido puxados
para trs e bem atados com uma presilha de osso de drago. Era um
visual severo que dava nfase s linhas duras e magras de seu rosto.
Pousou a mo no punho da espada que Illyrio lhe emprestara e disse:
- Tem certeza de que Khal Drogo gosta das suas mulheres assim to
novas? - Ela j teve o seu sangue. Tem idade suficiente para o khal
- respondeu Illyrio, e j no era a primeira vez que dizia aquilo. -
Olhe para ela. Aqueles cabelos louro-prateados, aqueles olhos
prpuros... ela do sangue da antiga Valria, sem dvida, sem dvida...
e bem-nascida, filha do antigo rei, irm
- 43. do novo, no possvel que no arrebate nosso Drogo - quando
Illyrio largou sua mo, Daenerys percebeu que estava tremendo. -
Suponho que sim - disse o irmo em tom duvidoso. - Os selvagens tm
gostos estranhos. Rapazes, cavalos, ovelhas... - melhor no sugerir
isso a Khal Drogo - disse Illyrio. A ira flamejou nos olhos lils de
Viserys. - Toma-me por tolo? O magster fez uma ligeira reverencia.
- Tomo-o por um rei. Aos reis falta a cautela dos homens vulgares.
Minhas desculpas se o ofendi - virou-se e bateu palmas para chamar
os carregadores. As ruas de Pentos estavam escuras como breu quando
saram na liteira elaboradamente esculpida de Illyrio. Dois criados
iam frente para alumiar o caminho, transportando ornamentadas
lanternas a leo com vidraas de um vidro azul-claro, e uma dzia de
homens fortes conduziam a liteira aos ombros. O espao l dentro, por
trs das cortinas, era quente e apertado. Dany conseguia sentir o
fedor da carne plida de Illyrio sob seus pesados perfumes. O irmo,
esparramado em almofadas a seu lado, nada notava. Sua mente estava
longe, do outro lado do mar estreito. - No necessitaremos de todo o
seu khalasar - disse Viserys. Os dedos brincavam no punho da lmina
emprestada, embora Dany soubesse que ele nunca usara uma espada a
srio. - Dez mil sero suficientes, posso varrer os Sete Reinos com
dez mil guerreiros dothrakis. O domnio se erguer em nome do seu rei
de direito. Tyrell, Redwyne, Darry, Greyjoy no sentem mais amor
pelo Usurpador do que eu. Os homens de Dome ardem pela
possibilidade de vingar Elia e os seus filhos. E as pessoas simples
estaro conosco. Elas choram pelo seu rei - olhou ansioso para
Illyrio. - Choram, no verdade?
- 44. - So o vosso povo, e o amam bastante - disse amavelmente
Magster Illyrio. - Em povoados por todo o territrio, os homens
fazem brindes secretos vossa sade, enquanto as mulheres cosem
estandartes do drago e os escondem at o dia do vosso regresso do
outro lado das guas - encolheu os macios ombros. - Ou pelo menos o
que me dizem meus agentes. Dany no tinha agentes, nenhuma maneira
de saber o que algum estaria fazendo ou pensando do outro lado do
mar estreito, mas desconfiava das palavras doces de Illyrio do
mesmo modo que desconfiava de tudo o que dizia respeito a ele. Mas
o irmo acenava com ardor. - Matarei eu prprio o Usurpador -
prometeu, ele que nunca matara ningum -, tal como ele matou meu
irmo Rhaegar. E tambm Lannister, o Regicida, pelo que fez ao meu
pai. - Isso ser muito adequado - disse Magster Illyrio. Dany viu a
minscula sugesto de sorriso que brincava nos lbios cheios do homem,
mas o irmo no reparou em nada. Acenando, ele afastou uma cortina e
perdeu o olhar na noite, e Dany soube que estava lutando de novo a
Batalha do Tridente. A manso de nove torres de Khal Drogo erguia-se
junto s guas da baa, com hera de tons claros cobrindo seus grandes
muros de tijolo. Tinha sido oferecida ao khal pelos magsteres de
Pentos, Illyrio lhes disse. As Cidades Livres eram sempre generosas
com os senhores dos cavalos. - No que temamos esses brbaros -
explicava Illyrio com um sorriso. - O Senhor da Luz poderia
defender nossas muralhas contra um milho de dothrakis, ou pelo
menos isso que prometem os sacerdotes vermelhos... Mas para que
correr riscos quando a amizade deles sai to barata?
- 45. A liteira em que seguiam foi parada ao porto e as cortinas,
puxadas rudemente para trs por um dos guardas da casa. Possua a
pele acobreada e os olhos escuros e amendoados de um doth-raki, mas
tinha o rosto livre de pelos e usava o capacete guarnecido de
pontas agudas dos Imaculados. Avaliou-os friamente. Magster Illyrio
rosnou-lhe qualquer coisa no rude idioma dothraki; o guarda
respondeu-lhe no mesmo tom e lhes deu passagem com um gesto atravs
dos portes. Dany reparou que a mo do irmo estava cerrada com fora
no punho de sua espada emprestada. Parecia quase to assustado como
ela se sentia. - Eunuco insolente - murmurou Viserys enquanto a
liteira subia aos balanos at a manso. As palavras de Magster
Illyrio eram mel. - Esta noite estaro muitos homens importantes no
banquete. Homens assim tm inimigos. O khal deve proteger seus
convidados, vs acima de todos, Vossa Graa. No h dvidas de que o
Usurpador pagaria bem pela vossa cabea. - Ah, sim - disse
sombriamente Viserys. - Ele tentou, Illyrio, asseguro-lhe. Seus
traidores contratados nos seguem para todo o lado. Sou o ltimo
drago, e ele no dormir descansado enquanto eu viver. A liteira
desacelerou e parou. As cortinas foram puxadas e um escravo
ofereceu a mo para ajudar Daenerys a sair. Seu colar, reparou ela,
era de bronze comum. O irmo a seguiu, com uma das mos ainda cerrada
com fora no punho da espada. Foram precisos dois homens fortes para
pr Magster Illyrio de p. Dentro da manso, o ar estava pesado com o
cheiro de especiarias, noz-de-fogo, limo-doce e canela. Foram
levados atravs do trio, onde um mosaico de vidro colorido
retratava
- 46. a Destruio de Valria. leo ardia em lanternas negras de
ferro dispostas ao longo das paredes. Sob uma arcada composta por
folhas de pedra interligadas, um eunuco cantou a chegada: - Viserys
da Casa Targaryen, o Terceiro de seu Nome - gritou numa voz doce e
aguda -, Rei dos ndalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, Rei
dos Sete Reinos e Protetor do Territrio. Sua irm, Daenerys, Filha
da Tormenta, Princesa de Pedra do Drago. Seu honorvel anfitrio,
Illyrio Mopatis, Magster da Cidade Livre de Pentos. Passaram pelo
eunuco e entraram num ptio orlado de pilares cobertos de hera
clara. O luar pintava as folhas em tons de osso e prata enquanto os
convidados vagueavam por entre elas. Muitos eram senhores dos
cavalos dothrakis, grandes homens de pele vermelho-acastanhada, com
os bigodes pendentes presos por anis de metal e os cabelos negros
oleados, tranados e atados a campainhas. Mas por entre eles
moviam-se sicrios e mercenrios de Pentos, Myr e Tyrosh, um
sacerdote vermelho ainda mais gordo que Illyrio, homens peludos
vindos do Porto de Ibben e senhores das Ilhas do Vero com a pele
negra como bano. Daenerys olhou a todos maravilhada... e
compreendeu, com um sbito sobressalto de medo, que era a nica
mulher ali presente. Illyrio sussurrou-lhes: - Aqueles trs so os
companheiros de sangue de Drogo, ali - ele mostrou. - Junto ao
pilar est Khal Moro com o filho Rhogoro. O homem de barba verde
irmo do Arconte de Tyrosh, e o homem que est atrs dele Sor Jorah
Mormont. O ltimo nome capturou a ateno de Daenerys. - Um cavaleiro?
- Nem mais, nem menos - Illyrio sorriu sob a barba. - Ungido com os
sete leos pelo prprio Alto Septo.
- 47. - Que faz ele aqui? - ela perguntou. - O Usurpador quis
v-lo morto - disse-lhes Illyrio. - Uma afrontazinha qualquer.
Vendeu alguns caadores furtivos a um negociante de escravos de
Tyrosh em vez de entreg-los Patrulha da Noite. Uma lei absurda. Um
homem deve ser autorizado a fazer o que bem entenda com seus bens.
- Quero falar com Sor Jorah antes do fim da noite - disse Viserys.
Dany deu por si olhando com curiosidade o cavaleiro. Era um homem
velho, com mais de quarenta anos e perdendo cabelo, mas mantinha-se
forte e em forma. Em vez de sedas e algodo, trajava l e couro. Sua
tnica era verde-escura, bordada com a imagem de um urso negro em p
sobre duas patas. Ainda observava aquele estranho homem vindo da
ptria que nunca conhecera quando Ma-gster Illyrio colocou a mo mida
em seu ombro nu. - Ali, doce princesa - sussurrou -, est o prprio
khal. Dany quis fugir e se esconder, mas o irmo a estava
observando, e ela sabia que se lhe desagradasse acordaria o drago.
Ansiosa, virou-se e olhou o homem que Viserys esperava que pedisse
para despos-la antes de a noite acabar. A jovem escrava no se
enganara muito, pensou. Khal Drogo era uma cabea mais alto do que o
mais alto dos presentes na sala, mas de certo modo leve de ps, to
gracioso como a pantera que havia na coleo de Illyrio. Era mais
novo do que ela pensara, no tinha mais de trinta anos. A pele era
da cor de cobre polido, e o espesso bigode estava preso com anis de
ouro e bronze. - Devo ir fazer as minhas apresentaes - disse
Magster Illyrio. - Esperem aqui. Eu o trarei at vs.
- 48. O irmo tomou-lhe o brao quando Illyrio se dirigiu,
bamboleante, at o khal, e seus dedos apertaram-na com tanta fora
que a machucaram. - V a sua trana, querida irm? A trana de Drogo
era negra como a meia-noite, pesada de leo perfumado e repleta de
minsculas campainhas que tiniam suavemente quando ele se movia.
Chegava-lhe bem abaixo do cinto, at mesmo abaixo das ndegas; a
ponta roava-lhe a parte de trs das coxas. - V como longa? -
continuou Viserys. - Quando os dothrakis so derrotados em combate,
cortam as tranas em desgraa para que o mundo saiba da sua vergonha.
Khal Drogo nunca perdeu um combate. Aegon, o Senhor do Drago
regressado, e voc ser a sua rainha. Dany olhou Khal Drogo. Seu
rosto era duro e cruel, os olhos to frios e escuros como nix. O
irmo s vezes a magoava, quando acordava o drago, mas no a assustava
como aquele homem. - No quero ser sua rainha - ouviu sua voz dizer
num tom fraco e agudo. - Por favor, por favor, Viserys, no quero.
Quero ir para casa. - Para casa? - ele manteve a voz baixa, mas ela
conseguia ouvir a fria na entoao. - Como havemos de ir para casa,
minha doce irm? Eles roubaram nossa casa! - levou-a para as
sombras, para fora da vista dos convidados, com os dedos enterrados
em sua pele. - Como havemos de ir para casa? - repetiu,
referindo-se a Porto Real, Pedra do Drago e a todo o territrio que
tinham perdido. Dany se referira apenas aos seus quartos na
propriedade de Illyrio, que certamente no seria uma casa
verdadeira, mas era tudo o que possuam; no entanto, seu irmo no
quis ouvir assim, Ali no havia para ele uma casa. Mesmo a casa
- 49. grande com a porta vermelha no tinha sido uma casa para
ele. Seus dedos enterravam-se com fora no brao dela, exigindo uma
resposta. - No sei... - Dany disse por fim, com a voz perdendo a
firmeza. Lgrimas jorraram-lhe dos olhos. - Mas eu sei - disse ele
com voz cortante, - Vamos para casa com um exrcito, minha doce irm.
Com o exrcito de Khal Drogo, eis como vamos para casa. E se para
isso tiver de se casar com ele e com ele dormir, isto o que far. -
sorriu-lhe. - Deixaria que todo o seu khalasar a fodesse se fosse
preciso, minha doce irm, todos os quarenta mil homens e tambm os
seus cavalos, se isto fosse necessrio para obter o meu exrcito.
Fique grata que seja s o Drogo. Com o tempo, pode at aprender a
gostar dele. Agora seque os olhos. Illyrio o est trazendo para c, e
ele no vai v-la chorar. Dany virou-se e viu que era verdade.
Magster Illyrio, todo sorrisos e reverncias, escoltava Khal Drogo
em direo ao lugar onde se encontravam. Afastou com as costas da mo
as lgrimas que no tinham sado dos seus olhos. - Sorria - murmurou
Viserys nervosamente, com a mo caindo sobre o punho da espada. - E
fique ereta. Deixe que ele veja que voc tem seios. Bem sabem os
deuses que os tem bem pequenos. Daenerys sorriu e se aprumou.
Eddard Os visitantes entraram pelos portes do castelo como um rio
de ouro e prata e ao polido, trezentos homens, um esplendor de
vassalos e cavaleiros, soldados juramentados e cavaleiros livres.
Sobre suas cabeas, uma dzia de estandartes dourados
- 50. abanavam de um lado para outro ao sabor do vento do Norte,
adornados com o veado coroado de Baratheon. Ned conhecia muitos dos
cavaleiros. Ali vinha Sor Jaime Lannister com os cabelos to
brilhantes como ouro batido, e ali estava Sandor Clegane com a face
terrivelmente queimada. O rapaz alto ao seu lado s podia ser o
prncipe herdeiro, e aquele homenzinho atrofiado ao lado era
certamente o Duende, Tyrion Lannister. Mas o homem enorme que vinha
cabea da coluna, flanqueado por dois cavaleiros que usavam os
mantos brancos como a neve da Guarda Real, pareceu a Ned quase um
estranho... At saltar de cima de seu cavalo de guerra com um rugido
familiar e o esmagar num abrao de partir ossos. - Ned! Ah, como bom
ver essa sua cara congelada - o rei o observou de cima a baixo e
soltou uma gargalhada. - No mudou nem um bocadinho. Ned gostaria de
poder dizer o mesmo. Quinze anos antes, quando tinham cavalgado
juntos para conquistar um trono, o Senhor de Ponta Tempestade era
um homem sem barba, de olhos claros e musculoso como um sonho de
donzela. Quase com dois metros de altura, erguia-se acima dos
outros homens e, quando punha a armadura e o grande capacete
provido de chifres de sua Casa, transformava-se num autntico
gigante. Tambm tinha a fora de um gigante, e sua arma predileta era
um martelo de batalha com ponta aguada que Ned quase no conseguia
erguer do cho. Nesses tempos, o cheiro do couro e do sangue aderia
sua pele como perfume. Agora era perfume mesmo que aderia sua pele,
e ele tinha uma largura que se equiparava a altura. Ned tinha visto
o rei pela ltima vez nove anos antes, durante a rebelio de Balon
Greyjoy, quando o veado e o lobo gigante tinham se juntado para
acabar com as pretenses do auto-proclamado Rei das
- 51. Ilhas de Ferro. Desde a noite em que estiveram lado a lado
no quartel-general cado de Greyjoy, quando Robert aceitara a rendio
do senhor rebelde e Ned tomara seu filho Theon como refm e
protegido, o rei ganhara pelo menos cinquenta quilos. Uma barba to
grosseira e negra como fio de ferro cobria-lhe a face, escondendo o
duplo queixo e o descaimento das reais bochechas, mas nada
conseguia esconder seu estmago ou os crculos escuros sob os olhos.
Mas Robert era agora o rei de Ned, e no apenas um amigo; portanto,
limitou-se a dizer: - Vossa Graa. Winterfell vossa. Por essa altura
j os outros estavam tambm a desmontar, e avanavam moos de
estrebaria para lhes recolher as montadas. A rainha de Robert,
Cersei Lannister, entrou a p com seus filhos mais novos. A caravana
em que tinham vindo, uma enorme carruagem de dois pisos feita de
carvalho untado e metal dourado, puxada por quarenta cavalos de
trao pesada, era larga demais para passar pelo porto do castelo.
Ned ajoelhou-se na neve a fim de beijar o anel da rainha, enquanto
Robert abraou Catelyn como a uma irm h muito perdida. Depois as
crianas foram trazidas, apresentadas e aprovadas por ambas as
partes. Assim que aquelas formalidades de saudao se completaram, o
rei disse ao anfitrio: - Leve-me sua cripta, Eddard. Quero
apresentar os meus respeitos. Ned o adorou por isso, por se lembrar
ainda dela, depois de tantos anos. Gritou por uma lanterna. No
foram necessrias mais palavras. A rainha comeara a protestar. Que
tinham viajado desde a madrugada, que estavam todos cansados e com
frio, que decerto deveriam descansar primeiro. Que os mortos podiam
esperar. No disse mais que isso; Robert
- 52. olhou-a, o irmo gmeo Jaime pegou-lhe calmamente no brao e
ela no disse mais nada. Desceram juntos para a cripta, Ned e seu
rei, que quase no reconhecia. Os degraus de pedra em espiral eram
estreitos. Ned seguiu frente com a lanterna. - J comeava a pensar
que nunca mais chegaramos a Winterfell - queixou-se Robert enquanto
desciam. - No Sul, do modo como falam dos meus Sete Reinos, um
homem se esquece de que a sua parte to grande quanto as outras seis
juntas. - Espero que tenha apreciado a viagem, Vossa Graa. Robert
resfolegou. - Lodaais, florestas e campos, e quase sem uma
estalagem decente a norte do Gargalo. Nunca vi um vazio to vasto.
Onde esto todas as suas gentes? - Provavelmente estavam muito
acanhadas para sair - brincou Ned. Sentia o frio que subia as
escadas, a respirao gelada vinda das profundezas da terra. - Os
reis so uma viso rara no Norte. Robert resfolegou. - O mais certo
que estivessem escondidas debaixo da neve. Neve, Ned! - o rei ps a
mo na parede para se manter firme enquanto descia. - As neves do
fim do vero so bastante comuns - disse Ned. - Espero que no lhe
tenham causado problemas. So geralmente suaves. - Que os Outros
carreguem as suas neves suaves - praguejou Robert. - Como ser este
lugar no inverno? Estremeo s de pensar. - Os invernos so duros -
admitiu Ned. - Mas os Stark os suportaro. Sempre os
suportamos.
- 53. - Tem de vir at o Sul - disse Robert. - Precisa
experimentar o vero antes que ele fuja. Em Jardim de Cima h campos
de rosas douradas que se estendem at perder de vista. Os frutos
esto to maduros que explodem na boca: meles, pssegos,
ameixas-de-fogo, nunca saboreou tamanha doura. Ver, eu trouxe
algumas. Mesmo em Ponta Tempestade, com aquele bom vento da baa, os
dias so to quentes que quase no conseguimos nos mexer. E precisa
ver as vilas, Ned! Flores por toda parte, os mercados a rebentar de
comida, os vinhos estivais to bons e baratos que podemos nos
embebedar s de respirar o ar. Toda a gente gorda, bbada e rica -
soltou uma gargalhada e deu uma palmada no amplo estmago. - E as
moas, Ned! - exclamou com os olhos faiscando. - Juro, as mulheres
perdem toda a modstia ao calor. Nadam nuas no rio, mesmo por baixo
do castelo. At nas ruas est calor demais para l ou peles, e elas
andam por a com aqueles vestidos curtos de seda, se tiverem prata,
ou algodo, se no tiverem, mas tudo igual quando comeam a suar e o
tecido lhes adere pele, como se andassem nuas - o rei riu, feliz.
Robert Baratheon sempre fora um homem de enormes apetites, um homem
que sabia como conquistar seus prazeres. Essa no era uma acusao que
algum pudesse deixar porta de Eddard Stark. No entanto, Ned no
podia deixar de notar que esses prazeres estavam cobrando seu preo
do rei. Robert respirava pesadamente quando chegaram ao fundo das
escadas, e com a cara vermelha luz da lanterna quando penetraram na
escurido da cripta. - Vossa Graa - disse Ned respeitosamente. Moveu
a lanterna num largo semicrculo. As sombras moveram-se e balanaram.
A vacilante luz tocou as pedras do cho e roou numa longa procisso
de pilares de granito que marchavam em frente a eles, dois a dois,
na direo das trevas. Entre os
- 54. pilares sentavam-se os mortos nos seus tronos de pedra
apoiados nas paredes, de costas voltadas para os sepulcros que
continham seus restos mortais. - Ela est l ao fundo, com o Pai e
Brandon. Indicou o caminho por entre os pilares e Robert seguiu-o
sem uma palavra, estremecendo com o frio subterrneo. Ali fazia
sempre frio. Seus passos soavam nas pedras e ecoavam na abbada que
se erguia sobre suas cabeas enquanto caminhavam por entre os mortos
da Casa Stark. Os Senhores de Winterfell viam-nos passar. Suas
imagens tinham sido esculpidas nas pedras que selavam as tumbas.
Sentavam-se em longas filas, olhos cegos virados para a escurido
eterna, enquanto grandes lobos gigantes de pedra se aninhavam junto
aos seus ps. As sombras mveis faziam com que as figuras de pedra
parecessem mover-se quando os vivos passavam por elas. Seguindo um
costume antigo, uma espada de ferro tinha sido colocada sobre o
colo de todos os que tinham sido Senhores de Winterfell, a fim de
manter os espritos vingativos em suas criptas. A mais antiga j h
muito enferrujara at a inexistncia, deixando apenas algumas manchas
vermelhas onde o metal tocara na pedra. Ned perguntou a si prprio
se isso significava que aqueles espritos estavam agora livres para
passear pelo castelo. Esperava que no. Os primeiros Senhores de
Winterfell tinham sido homens to duros como a terra que governavam.
Nos sculos anteriores vinda dos Senhores do Drago do outro lado do
mar, no tinham jurado fidelidade a ningum, fazendo tratar-se por
Reis do Norte. Ned parou, finalmente, e ergueu a lanterna de leo, A
cripta continuava sua frente, mergulhando na escurido, mas para l
daquele ponto as tumbas estavam vazias e por selar;
- 55. buracos negros espera de seus mortos, espera dele e de seus
filhos. Ned no gostava de pensar naquilo. - Aqui - disse ele ao seu
rei. Robert acenou em silncio, ajoelhou-se e inclinou a cabea.
Havia trs tumbas, dispostas lado a lado. Lorde Rickard Stark, o pai
de Ned, tinha um rosto longo e austero. O esculpidor conhecera-o
bem. Estava sentado com uma calma dignidade, com os dedos de pedra
agarrados com fora espada que tinha no colo, mas em vida todas as
espadas lhe tinham falhado. Em dois sepulcros menores, de ambos os
lados, estavam seus filhos. Brandon morrera com vinte anos,
estrangulado por ordem do Rei Louco Aerys Targaryen, poucos dias
apenas antes de se casar com Catelyn Tully de Correrrio. O pai fora
obrigado a v-lo morrer. Era ele o verdadeiro herdeiro, o mais
velho, nascido para governar. Lyanna tinha apenas dezesseis anos,
uma menina-mulher de inigualvel encanto. Ned amara-a de todo o
corao. Robert amara-a ainda mais. Ela estava destinada a ser sua
noiva. - Era mais bela que isto - disse o rei aps um silncio. Seus
olhos demoravam-se no rosto de Lyanna, como se pudesse traz-la de
volta vida por um esforo de vontade. Por fim, ergueu-se, com o peso
a torn-lo desajeitado. - Ah, maldio, Ned, tinha de enterr-la num
lugar como este? - sua voz estava enrouquecida com a lembrana do
desgosto. - Ela merecia mais que trevas... - Ela era uma Stark de
Winterfell - disse Ned calmamente. - Este seu lugar. - Podia estar
em algum lugar numa colina, sob uma rvore de fruto, com o sol e
nuvens acima dela e a chuva para lav-la.
- 56. - Eu estava com ela quando morreu - lembrou Ned ao rei. -
Queria regressar nossa casa para descansar ao lado de Brandon e do
Pai - por vezes ainda conseguia ouvi-la. Promete-me, suplicara, num
quarto que cheirava a sangue e a rosas. Promete-me, Ned. A febre
levara-lhe as foras e a voz era tnue como um suspiro, mas quando
ele lhe dera sua palavra, o medo sara dos olhos da irm. Ned
recordava o modo como ento sorrira, a fora com que seus dedos
agarraram os dele quando ela desistira de se agarrar vida, as
ptalas de rosa que se derramaram de sua mo, mortas e negras. Depois
daquilo, no se lembrava de mais nada. Tinham-no encontrado ainda
abraado ao seu corpo, silenciado pela dor. O pequeno cranogmano,
Howland Reed, retirara a mo dela da dele. Ned nada recordava. -
Trago-lhe flores sempre que posso - disse. - Lyanna era... amiga
das flores. O rei tocou o rosto da esttua, roando os dedos na pedra
spera to suavemente como se fosse carne viva. - Jurei matar Rhaegar
pelo que lhe fez. - E foi o que Vossa Graa fez - lembrou-lhe Ned. -
S uma vez - disse Robert amargamente. Tinham chegado juntos ao
baixio do Tridente enquanto a batalha rugia em seu redor, Robert
com seu martelo de batalha e seu grande elmo dos chifres de veado,
e o prncipe Targaryen revestido de armadura negra. No peitoral
trazia o drago de trs cabeas de sua Casa, todo trabalhado com rubis
que relampejavam como fogo luz do sol. As guas do Tridente corriam
vermelhas sob os cascos de seus cavalos de batalha, enquanto eles
andavam em crculos e entrechocavam as armas, uma e outra vez, at
que, por fim, um tremendo golpe do martelo de Robert abriu um rombo
no drago e no
- 57. peito que estava por baixo. Quando Ned finalmente chegou ao
local, Rhaegar jazia morto na corrente, enquanto homens de ambos os
exrcitos escarafunchavam as guas rodopiantes em busca de rubis que
se tivessem soltado de sua armadura. - Nos meus sonhos mato-o todas
as noites - admitiu Robert. - Mil mortes ainda sero menos do que
ele merece. No havia nada que Ned pudesse responder quilo. Depois
de uma pausa, disse: - Devemos regressar, Vossa Graa. Sua esposa
est espera. - Que os Outros carreguem minha esposa - murmurou
Robert em tom azedo, mas encaminhou-se com passos pesados na direo
de onde tinham vindo. - E se ouvir mais alguma vez "Vossa Graa",
enfio sua cabea num espeto. Somos mais que isso um para o outro. -
No me esqueci - respondeu Ned calmamente. - Fale-me dejon. Robert
sacudiu a cabea. - Nunca vi um homem adoecer to depressa.
Organizamos um torneio no dia do nome do meu filho. Se tivesse
visto Jon nesse dia, poderia jurar que viveria para sempre. Uma
quinzena depois, estava morto, A doena foi como um incndio em suas
tripas. Queimou-o todo por dentro - fez uma pausa junto a um pilar,
em frente tumba de um Stark h muito morto. - Adorava aquele velho.
- Ambos o adorvamos - Ned fez uma pausa momentnea. - Catelyn teme
pela irm. Como Lysa est suportando a dor? A boca de Robert fez um
trejeito amargo. - No muito bem, na verdade - admitiu. - Penso que
a perda de Jon levou a mulher loucura, Ned. Levou o rapaz de volta
para o Ninho da guia. Contra os meus desejos. Tinha planejado
cri-lo com Tywin Lannister em Rochedo Casterly.
- 58. Jon no tinha irmos nem outros filhos. Deveria eu deix-lo
ser educado por mulheres? Ned mais depressa confiaria uma criana a
uma vbora do que ao Lorde Tywin, mas guardou para si essa opinio.
Algumas velhas feridas nunca chegavam a sarar de verdade, e
voltavam a sangrar primeira palavra. - A mulher perdeu o marido -
disse cuidadosamente. - Talvez a me tema perder o filho. O rapaz
muito novo. - Tem seis anos, enfermio e Senhor do Ninho da guia,
que os deuses