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UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS
ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA
LISBOA - 2008
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UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS
ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA
Monografia sobre o estudo analiacutetico simboacutelico
e intertextual do livro de contos ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca Destina-se a conclusatildeo do curso de
Mestrado em Liacutenguas Literaturas e Culturas da Univer_
sidade Nova de Lisboa na Faculdade de Ciecircncias Sociais
e Humanas tendo por autora Jaqueline Barbosa Murta e
orientador Prof Doutor Nuno Juacutedice
FEVEREIRO - 2008
3
JAQUELINE BARBOSA MURTA
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS
EM FLORBELA ESPANCA
Aprovada em ___________________ de 2008
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof Dr (a)___________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
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DEDICATOacuteRIA
A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi
ldquoMeu grande alicercerdquo
A Israel (in memoriam) e Daniel
ldquo Amores eternosrdquo
A Noel
ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo
Ao Centro de Estudos Florbela Espanca
da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR
ldquoNosso primeiro encontrordquo
5
IacuteNDICE
RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06
ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07
INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08
CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16
CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24
CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29
31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33
CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38
41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38
42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50
6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
2
UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS
ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA
Monografia sobre o estudo analiacutetico simboacutelico
e intertextual do livro de contos ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca Destina-se a conclusatildeo do curso de
Mestrado em Liacutenguas Literaturas e Culturas da Univer_
sidade Nova de Lisboa na Faculdade de Ciecircncias Sociais
e Humanas tendo por autora Jaqueline Barbosa Murta e
orientador Prof Doutor Nuno Juacutedice
FEVEREIRO - 2008
3
JAQUELINE BARBOSA MURTA
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS
EM FLORBELA ESPANCA
Aprovada em ___________________ de 2008
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof Dr (a)___________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
4
DEDICATOacuteRIA
A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi
ldquoMeu grande alicercerdquo
A Israel (in memoriam) e Daniel
ldquo Amores eternosrdquo
A Noel
ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo
Ao Centro de Estudos Florbela Espanca
da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR
ldquoNosso primeiro encontrordquo
5
IacuteNDICE
RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06
ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07
INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08
CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16
CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24
CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29
31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33
CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38
41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38
42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50
6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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3
JAQUELINE BARBOSA MURTA
AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS
EM FLORBELA ESPANCA
Aprovada em ___________________ de 2008
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof Dr (a)___________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
____________________________________________________
Prof Dr (a)__________________________
Universidade Nova de Lisboa
4
DEDICATOacuteRIA
A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi
ldquoMeu grande alicercerdquo
A Israel (in memoriam) e Daniel
ldquo Amores eternosrdquo
A Noel
ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo
Ao Centro de Estudos Florbela Espanca
da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR
ldquoNosso primeiro encontrordquo
5
IacuteNDICE
RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06
ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07
INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08
CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16
CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24
CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29
31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33
CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38
41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38
42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50
6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
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httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
4
DEDICATOacuteRIA
A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi
ldquoMeu grande alicercerdquo
A Israel (in memoriam) e Daniel
ldquo Amores eternosrdquo
A Noel
ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo
Ao Centro de Estudos Florbela Espanca
da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR
ldquoNosso primeiro encontrordquo
5
IacuteNDICE
RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06
ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07
INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08
CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16
CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24
CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29
31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33
CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38
41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38
42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50
6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
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httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
5
IacuteNDICE
RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06
ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07
INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08
CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12
12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16
CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19
22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24
CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29
31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33
CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38
41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38
42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50
6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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6
RESUMO
A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca
mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a
marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da
alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes
da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de
contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando
pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de
seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da
representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos
como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas
em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo
textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma
multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um
estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um
poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite
observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que
vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo
assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada
como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que
ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e
desejos que foi a vida e obra de Florbela2
PALAVRAS ndash CHAVE
Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei
interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo
ultra-romantismo
1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute
Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela
7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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7
ABSTRACT
Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her
poems Her stories have its particular mark which is characterized by such
stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring
The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the
gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing
through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration
of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of
symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as
the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in
which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual
construction where superposition absorption and the transformation of a
multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for
the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a
poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the
observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it
confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop
reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by
Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent
Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work
Of Florbelardquo
Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero
Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality
Ultra-romanticism
8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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8
INTRODUCcedilAtildeO
A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as
primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3
eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em
um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie
Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as
belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas
fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-
fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de
seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua
inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal
As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento
para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava
por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por
uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a
sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves
vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As
agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela
escritora
Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas
indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia
esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos
de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute
descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com
uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos
coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte
Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de
Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas
tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte
passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante
da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes
3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo
9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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9
mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso
destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a
seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees
existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores
mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas
representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus
textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do
real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia
De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca
pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar
sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de
repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse
descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara
Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim
quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua
realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem
adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua
obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em
seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade
construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos
deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com
transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de
intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser
casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente
apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da
charneca erma e selvagemrdquo9
Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a
prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os
contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada
de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes
mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo
6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276
10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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10
deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do
texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage
com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo
esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o
livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu
irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas
paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja
uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada
que jaacute em versos reclamava
ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees
Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas
Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees
Longehellip noutras esferas luminosas
E pelo meu olhar passam visotildees
Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip
E eu penso que liberta de grilhotildees
Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11
Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a
cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua
obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma
intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros
tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de
vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua
inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na
narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um
conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e
imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante
10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75
11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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11
emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e
acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12
Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute
em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de
interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora
aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo
objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por
Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo
dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa
mulher que dizia natildeo conhece a si mesma
O que sou eu AmorSei laacute que sou
Sou tudo e nada grande e pequenina
Sou a que canta uma ilusatildeo divina
Sou a que chora um mal que acabou
Eu sei laacute que quimera me beijou
E nunca o soube assim desde pequenina
Haacute neste mundo tanta amarga sina
A minha eacute saber nunca quem sou
Esfinge sonho tonto de desejos
Na tua boca sou uma asa aberta
A palpitar vermelha como os beijos
Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip
12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78
12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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12
CAPIacuteTULO 01
11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO
Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de
textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes
um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos
daacute-se o nome de intertextualidade
Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que
deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto
Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois
implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a
obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do
interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em
questatildeo
Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de
produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a
intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos
preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo
de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na
construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos
Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo
significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como
um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute
na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a
intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo
do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o
texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e
delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses
objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave
recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que
natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo
entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo
de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor
13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
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navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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13
A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande
rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que
dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico
poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas
musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade
Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para
contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos
que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise
comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os
textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os
ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada
de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores
Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar
ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com
um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as
puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a
invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER
199071)
No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa
verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso
intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a
intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios
de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o
claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de
citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo
(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem
torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da
apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos
observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo
de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como
intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro
enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua
totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)
14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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14
Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora
seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como
ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a
intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto
literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas
sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o
evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma
situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as
disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e
distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de
escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria
e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)
A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade
reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos
inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia
tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes
transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria
sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem
manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais
realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e
comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa
seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa
enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um
maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem
Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem
anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees
impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal
talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que
mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip
talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso
intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14
14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora
15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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15
A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia
registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16
ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Pedaccedilos de sorrisos branca espuma
Gargalhadas de luz cantos dispersos
Ou peacutetalas que caem uma a umahellip
VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar
Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluccedilar
Aos peacutes de sua estremecida amante
Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip
Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo
Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip
Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip
Meus soluccedilos de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo
15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao
paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando
seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da
escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208
16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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16
13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio
de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia
significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17
Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs
Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do
irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que
Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz
Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre
as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra
A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era
ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo
amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a
aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de
perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia
bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo
para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute
a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los
Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo
ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo
ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo
Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de
convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de
Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte
da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas
das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua
perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade
Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma
observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio
17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de
Florbela Espanca 199810
17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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17
fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias
intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza
por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado
generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos
de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus
terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se
de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO
Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como
se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas
caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de
existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus
relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso
devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um
redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo
de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a
viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma
infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees
racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis
devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos
estados moacuterbidos de sua consciecircncia
Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute
ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que
soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e
cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um
intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos
remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as
formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas
mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo
disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os
detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da
mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs
Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim
vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando
no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento
18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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18
comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos
aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios
contos
Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar
do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas
sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem
constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira
referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de
si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA
ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre
matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA
1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas
para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais
luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas
blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA
1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute
nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase
dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente
invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se
acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a
aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina
Bessa-Luiacutes
Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a
intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima
envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o
texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das
vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido
quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos
maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns
com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que
Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para
descobrirmos suas maacutescaras
19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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19
CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo
ldquoVoar voar subir subir
Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair
Ou mudar de cor anjos de gaacutes
Asas de ilusatildeo e um sonho audaz
Feito um balatildeo
No ar no ar eu sou assim
Brilho do farol aleacutem do mais
Amargo fim simplesmente sol
Fugir meu bem eacute ser felizhellip
Ir ateacute que um dia chegue enfim
Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18
A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu
Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os
deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar
margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural
levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas
sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e
suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um
de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute
sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da
existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se
repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada
acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente
participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem
consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a
proacutepria morte pode ter sentido
18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor
brasileiro Byafra
20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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20
Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de
aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste
histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer
barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees
Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da
sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que
norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo
Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse
local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos
consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e
lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o
alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o
atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com
sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo
humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um
grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos
Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade
em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo
O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos
do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com
preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna
como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses
Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem
aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo
19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser
com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria
devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele
deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto
Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e
prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas
Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai
recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do
Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas
pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e
elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas
precipitando-se no mar e morrendo afogado
21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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21
Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo
que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair
nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores
largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos
homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades
param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o
ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida
numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela
significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de
incompreensatildeo e de grande solidatildeo
Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o
enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos
leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute
em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute
em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a
suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de
pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua
miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em
asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem
liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade
intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus
conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi
conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o
labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse
argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar
as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles
assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto
que levaria a traacutegica morte
Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade
que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a
morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado
20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua
labuta diaacuteria
22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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22
Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a
bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um
tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante
que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o
inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de
vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os
matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As
palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos
lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute
inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma
dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos
heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se
estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de
cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos
do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede
a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A
representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que
simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a
presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a
mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais
tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza
e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos
deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas
pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em
redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A
sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma
nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee
protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com
tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de
imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito
21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega
23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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23
a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na
eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA
199846)
Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas
entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos
determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no
sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que
tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos
remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a
libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador
eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a
acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a
libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e
penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se
esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela
que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira
indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998
129)
A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos
princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na
representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do
caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro
lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia
paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os
compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os
crimeshelliprdquo22
22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122
24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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24
22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI
ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23
Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode
descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo
Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram
venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira
veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de
honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades
fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria
heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos
retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-
se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas
pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol
mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute
um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida
intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago
pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila
brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens
natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo
pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as
miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)
Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela
ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute
os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais
da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o
homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de
comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA
1998133)
Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua
maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos
23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38
25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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25
bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual
com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora
sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua
sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta
o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte
dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar
eterno junto aos astros
A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica
Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma
pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute
mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela
consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial
razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus
escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de
seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande
luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo
(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito
disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam
constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela
Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com
as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma
realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo
imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido
uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto
Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei
grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e
24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma
personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu
Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)
pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas
quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as
Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais
como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes
a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera
com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
26
navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a
coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a
solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o
enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio
multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos
diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio
Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os
naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de
navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS
Maacutescaras do Destino 1998 p 125)
Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada
com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a
renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que
convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos
escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a
partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental
aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A
viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas
suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte
recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os
heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas
ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o
navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira
de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que
nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era
eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que
deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-
1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado
a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe
herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico
sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O
romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como
tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar
que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os
Lusiacuteadas de Camotildees
27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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27
no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo
da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)
Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida
funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo
conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente
nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de
alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva
Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer
tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos
heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os
portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens
tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que
de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os
navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por
deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da
Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do
texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute
simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no
poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES
1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou
passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da
Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas
natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer
vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de
ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um
heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com
o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas
forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um
aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem
mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva
30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos
Lisboa
Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal
28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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28
presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de
Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura
greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito
especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela
escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a
morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem
para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de
transformaccedilatildeo fantaacutestica
Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que
na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena
confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir
uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute
infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu
desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma
personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo
inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade
aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios
filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa
escritora o seu carma
Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei
que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora
quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem
ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles
desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma
as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista
o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de
movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos
esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do
pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam
As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes
ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)
29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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29
CAPIacuteTULO 03
31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS
ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de
doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32
No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute
intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em
todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do
proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade
de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma
comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro
cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser
estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute
antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de
alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas
oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir
as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava
perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o
fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo
para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que
muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da
escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e
complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e
pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma
formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela
graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa
assume
32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122
30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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30
De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete
agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem
Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites
nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute
podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido
conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao
inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um
ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma
palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a
intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda
e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas
pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma
onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo
(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um
recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o
renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio
inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a
matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada
ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe
mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata
cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de
voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e
122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso
indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam
tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele
o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as
suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA
ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um
emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados
que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e
intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica
33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ
31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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31
Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado
transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas
Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e
que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a
imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de
dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada
dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais
significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa
escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e
sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-
as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar
inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos
era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade
existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)
A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio
Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo
tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens
que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de
tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta
ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a
proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo
Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante
notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe
de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e
medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca
mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho
branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a
socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua
presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo
(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo
deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo
queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a
intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia
humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para
32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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32
sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo
pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no
mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais
apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva
enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente
foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)
A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja
como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo
atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute
reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em
busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito
junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos
satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad
que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que
han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas
mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como
meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do
inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os
aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias
34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939
33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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33
32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO
ldquoA vida vem em ondas
Como o mar
Num indo e vindo infinitohelliprdquo35
A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente
foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram
o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios
da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-
portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo
ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura
universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e
nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a
esquizofrenia de sua alma
O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos
grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma
visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes
de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-
racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas
fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma
encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no
espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada
ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar
duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava
que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se
35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos
em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria
imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia
grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios
Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e
cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam
da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela
Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a
sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor
34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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34
sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o
olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de
um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo
(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o
seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No
reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que
constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia
Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor
das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que
participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na
claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma
a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial
apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se
imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA
ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta
solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser
acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas
pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de
existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas
dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma
mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar
agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa
mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)
As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar
aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de
Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a
37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta
nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet
tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido
advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte
de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga
(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre
1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a
questatildeo (Hamlet ato III cena I)
38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)
que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era
destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar
35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
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Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
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35
travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes
questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a
vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa
loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz
a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair
numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua
frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico
mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de
transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a
morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano
capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas
ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de
integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de
totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma
ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade
de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida
dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a
seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas
iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives
mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas
dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a
cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute
perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras
velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida
de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar
costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras
por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e
grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme
O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu
amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do
Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para
toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos
36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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36
Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser
salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma
dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo
desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave
liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos
secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a
uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo
desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a
boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia
pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a
mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais
alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se
nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira
as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de
alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora
julga existir no seu misteacuterio
O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e
forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e
sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que
orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente
num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das
contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute
traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas
que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas
figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas
narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um
imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e
39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII
mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a
bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por
alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua
tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar
Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A
histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito
em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que
aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas
aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma
37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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37
refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus
fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a
sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades
da dinacircmica universal
Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar
simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos
narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos
siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um
contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da
efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma
capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde
diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e
exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia
essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel
mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo
do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do
Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)
e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo
social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)
na representatividade literaacuteria do mar
38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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38
CAPIacuteTULO 04
41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA
ldquoGosto de ti apaixonadamente
De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo
De ti que me trouxeste pela matildeo
Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40
Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso
a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade
directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na
poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua
dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees
Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita
capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e
um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz
e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a
dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas
conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute
e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria
serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem
quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto
anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse
em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita
maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte
com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e
quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e
emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos
paradoxos
40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no
livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004
Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo
Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11
39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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39
Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos
toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-
romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido
num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia
com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes
profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas
sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo
acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando
a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A
derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a
conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas
da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da
sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No
entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas
romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a
impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo
definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha
aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento
em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o
passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era
tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto
A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos
acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-
Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs
Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os
Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de
Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de
Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o
egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo
narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica
Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute
neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o
poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
40
esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma
essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no
iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma
questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos
encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem
sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos
interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas
as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um
exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo
tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo
daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita
conteacutem
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
41
42 - UM PERCURSO COMPARATIVO
ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os
vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e
outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que
ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute
foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41
ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto
Olhou em roda natildeo achou ningueacutem
Por entre as campas arrastando o manto
Com lentos passos caminhou aleacutem
Abandonado neste chatildeo repousa
Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui
Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por tirdquo42
A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e
o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-
romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua
linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa
o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se
O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando
proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos
moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na
literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror
Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou
comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas
circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de
comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e
sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos
41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda
Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos
42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
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um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
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obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
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50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
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ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
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Lisboa
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CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
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HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
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Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
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52
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42
ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de
outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou
Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)
Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal
de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma
optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada
pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada
no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus
sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa
suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois
dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)
Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade
todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional
natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute
afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute
tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima
do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo
Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela
e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a
prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua
intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a
dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as
influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente
que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz
directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para
a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o
intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era
partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada
por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das
rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de
branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza
43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
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43
ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas
Longas roupagens de neveda cor
Singela croa de virgiacutenias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43
ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de
branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila
devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa
nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)
Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de
conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se
para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da
imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a
partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a
presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os
uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem
eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera
absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor
ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria
A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a
intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um
testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista
e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas
caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da
temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao
fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma
retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras
masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo
homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma
mulher
43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote
Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
Editora Aacutetica Satildeo Paulo
CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
Editora Rocco Rio de Janeiro
FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
Perspectiva SA Satildeo Paulo
HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas
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JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina
Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona
JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa
JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa
JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
Teorema Lisboa
KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila
Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo
WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
44
(hellip)
Mulher formosa que adorei na vida
E que na tumba natildeo cessei damar
Por que atraiccediloas desleal mentida
O amor eterno que te ouvi jurar
Amor engano que na campa finda
Que a morte despe da ilusatildeo falaz
Quem dentros vivos se lembrara ainda
ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)
Talvez que rindo dos protestos nossos
Gozes com outro dinfernal prazer
E o olvido cobriraacute meus ossos
Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44
Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o
vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as
bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis
e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma
essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o
podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA
ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de
sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a
eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos
na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto
com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais
de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas
palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o
esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal
seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu
passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre
44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
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Passiva
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CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
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FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
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HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
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JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
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Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
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Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
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WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
45
que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as
matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos
das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam
para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)
Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno
num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista
melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias
possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela
um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica
natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem
fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo
intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas
rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso
consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo
intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas
solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou
com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a
todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas
as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os
sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado
daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)
Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do
Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais
significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO
MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do
quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e
estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que
desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo
da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina
agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das
espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute
presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote
Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
Editora Aacutetica Satildeo Paulo
CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
Editora Rocco Rio de Janeiro
FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
Perspectiva SA Satildeo Paulo
HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas
Valecircncia
JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina
Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona
JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa
JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa
JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
Teorema Lisboa
KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila
Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo
WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
46
ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido
Das sepulturas o gelado poacute
Dois esqueletos um ao outro unido
Foram achados num sepulcro soacuterdquo45
Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de
imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da
intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo
buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma
enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo
recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as
laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas
deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo
sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais
moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas
austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade
dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete
palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam
pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e
59)
Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao
ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram
escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia
literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo
exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde
ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais
tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo
merecida
45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote
Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
Editora Aacutetica Satildeo Paulo
CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
Editora Rocco Rio de Janeiro
FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
Perspectiva SA Satildeo Paulo
HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas
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JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina
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JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa
JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa
JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
Teorema Lisboa
KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila
Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo
WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
47
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas
interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca
Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo
depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves
transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo
sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia
ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas
metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver
com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao
sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas
tambeacutem ao que relaciona a morte
A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua
eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela
mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e
sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo
quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade
que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas
personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a
humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de
enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e
sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas
e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o
que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte
presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais
condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus
contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e
desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse
interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural
equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes
interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute
Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem
uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
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Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
Editora Aacutetica Satildeo Paulo
CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
Editora Rocco Rio de Janeiro
FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
Perspectiva SA Satildeo Paulo
HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas
Valecircncia
JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina
Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona
JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa
JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa
JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
Teorema Lisboa
KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila
Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo
WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
48
elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o
inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela
tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses
elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma
civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor
sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam
sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do
intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea
Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o
menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que
para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro
compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo
que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou
seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua
imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que
essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar
atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a
outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual
proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque
esconde-se ou projecta-se no discurso do outro
Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o
caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo
relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens
marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um
significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um
desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos
de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e
fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave
realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande
maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe
um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo
46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de
Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada
Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a
verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes
50
REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA
Activa
ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand
Editorial Venda Nova
ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial
Venda Nova
ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote
Lisboa
REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa
Passiva
CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios
Editora Aacutetica Satildeo Paulo
CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri
CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio
Rio de Janeiro
COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores
Editora Rocco Rio de Janeiro
FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de
Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona
GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones
Akal SA Madrid
HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora
Perspectiva SA Satildeo Paulo
HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro
(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas
Valecircncia
JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina
Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona
JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa
JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa
JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial
Teorema Lisboa
KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila
Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo
LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash
Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo
MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf
ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa
Lisboa
NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal
Almeria
52
RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La
Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta
Malaciana Maacutelaga
SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo
WEBIBLIOGRAFIA
httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
49
obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a
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Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a
infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute
aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo
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CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa
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50
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51
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52
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SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a
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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15
httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm
httparestasdeventonosapoptlabaredas2html
51
GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y
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NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar
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