Post on 19-Dec-2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PAR
INSTITUTO DE CINCIAS DA EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
MESTRADO ACADMICO EM EDUCAO
MARCELA DE LIMA GOMES
AS NOES DO TERMO ERRO PARA OS ESTUDOS
LINGUSTICOS E SUAS IMPLICAES AO ENSINO DE
LNGUA PORTUGUESA
Santarm
2016
MARCELA DE LIMA GOMES
AS NOES DO TERMO ERRO PARA OS ESTUDOS
LINGUSTICOS E SUAS IMPLICAES AO ENSINO DE
LNGUA PORTUGUESA
Dissertao apresentada Universidade Federal do
Oeste do Par UFOPA, como parte das exigncias do
Programa de Ps-Graduao em Educao, para
obteno do ttulo de Mestre em Educao.
Orientadora: Profa. Dra. Ediene Pena Ferreira
Linha de Pesquisa: Prticas educativas, linguagens e
tecnologias.
Santarm
2016
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao
(CIP) Sistema Integrado de Bibliotecas
SIGI/UFOPA
________________________________________________________________________
G633n Gomes, Marcela de Lima
As noes do termo erro para os estudos lingusticos e suas
implicaes ao ensino de lngua portuguesa. / Marcela de Lima Gomes.
Santarm, 2016.
117 fls.
Inclui bibliografias.
Orientador Ediene Pena Ferreira
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Oeste do Par, Instituto de
Cincias da Educao, Programa de Ps-Graduao em Educao, 2016.
1. Erro Lingustico. 2. Gramtica. 3. Lingustica. I. Ferreira, Ediene Pena,
ori- ent. II. Ttulo.
CDD: 23 ed. 410
_______________________________________________________________
Bibliotecrio Documentalista: Renata Ferreira CRB/2 1440
MARCELA DE LIMA GOMES
AS NOES DO TERMO ERRO PARA OS ESTUDOS
LINGUSTICOS E SUAS IMPLICAES AO ENSINO DE
LNGUA PORTUGUESA
Dissertao apresentada Universidade Federal do
Oeste do Par UFOPA, como parte das exigncias do
Programa de Ps-Graduao em Educao, para
obteno do ttulo de Mestre em Educao.
Orientadora: Profa. Dra. Ediene Pena Ferreira
Linha de Pesquisa: Prticas educativas, linguagens e
tecnologias.
Conceito: Aprovada
Data de Aprovao: 15/12/2016
_______________________________
Profa. Dra. Ediene Pena Ferreira
Orientadora e Presidente da Banca
Universidade Federal do Oeste do Par
_______________________________
Prof. Dra. Mrcia Teixeira Nogueira
Examinador(a) Externo(a)
Universidade Federal do Cear UFC
_______________________________
Prof. Dr. Roberto do Nascimento Paiva
Examinador(a) Interno(a)
Universidade Federal do Oeste do Par
_______________________________
Prof. Dr. Luiz Percival Leme Britto
Examinador(a) Interno(a) Suplente
Universidade Federal do Oeste do Par
Aos meus sobrinhos Felipe, Maria Eduarda,
Flvio Henrique, Gabriel, Joo, Augustus,
Marla e Gabriela.
AGRADECIMENTO
professora Doutora Ediene Pena Ferreira: pela amizade de muitos anos, desde a graduao,
como bolsista de iniciao cientfica.
Ao professor Doutor Luiz Percival Leme Britto: como coorientador, sempre esteve
disposio para me ouvir, como um amigo, como um pai acadmico e como algum que
tem muita experincia e que no tem medo de compartilhar. Um intelectual, mas acima de
tudo um ser humano sensvel.
Fundao Amaznia de Amparo a Estudos e Pesquisas do Par - FAPESPA, pela bolsa de
estudo recebida durante o curso.
Ao Programa de Ps-Graduao em Educao PPGE, pelo acolhimento e oportunidade de
cursar um Mestrado.
Ao Grupo de Estudos Lingusticos do Oeste do Par GELOPA, um grupo de pesquisa que
abriu os caminhos para a minha vida acadmica. E ao Grupo de Pesquisa Linguagem e
Educao, com o qual tive a oportunidade de dialogar com colegas do universo acadmico,
tanto da graduao como da ps-graduao.
Aos amigos do Mestrado: uma turma amiga e solidria. Em especial, agradeo a parceria de
escrita, de estudos da Maria Eduarda. Desde o incio, tnhamos um objetivo escrever a
dissertao no tempo determinado e concluir o Mestrado! A escrita da dissertao nos
permitiu o incio e a solidificao de nossa amizade.
minha famlia, aos meus pais que no tiveram o direito Educao, mas souberam guiar
seus cinco filhos ao caminho da escola. s minhas irms, Fil, Mrcia, Fabi e ao meu irmo
Fagner pela confiana e apoio.
Ao meu esposo Christiano: um intelectual, um exemplo, um amigo, meu amor!
Ora, hoje estamos preparados, no campo dos
estudos da linguagem, para nos movermos
nesses terrenos, porque uma cincia nos
embala para com rigor nos envolvermos em
todas as manifestaes aparentemente
conflituosas que se apresentam. Assim, por
exemplo, na briga sobre os estrangeirismos
aqueles neologismos tidos esprios, s vezes
sentidos com o impacto de perigosos
elementos extraterrenos estamos
preparados para entender e para explicar os
comportamentos. Tambm na questo da
norma em qualquer das acepes em que se
tome o termo, mas especificamente em
referncia norma prescritiva, tida como
questo de bem e de mal temos como
sustentar posies consistentes, e atuar
sustentadamente. (NEVES, 2012, p. 46).
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo investigar a compreenso de erro para a cincia da
linguagem. Embora busquemos a compreenso de nosso objeto na lingustica contempornea,
ressaltamos a necessidade que tivemos em analisar a questo do erro em duas gramticas
tradicionais e em trs gramticas pedaggicas. Diante da anlise das gramticas de Cunha e
Cintra (1985), de Rocha Lima (1985), de Sacconi (1988), de Cegalla (1998) e de Almeida
(2005), constatamos uma defesa de correo idiomtica, tendo na maioria das obras, o modelo
literrio como a lngua exemplar, aquela a ser seguida e respeitada. A ideia de que a gramtica
tradicional se preocupa quase que exclusivamente com a linguagem literria comprovada
nos argumentos de linguistas como Faraco (2008), Neves (2008), Britto (1997a) quando
esses autores concebem a gramtica tradicional como um conjunto de normas de correo
estabelecidas a partir da escrita dos maiores escritores literrios. Em decorrncia da relao
semntica e conceitual que os termos adequado e inadequado, gramatical e
agramatical e desvio mantm com a noo de erro, fazemos tambm uma abordagem
acerca do que temos chamado de teoria da adequao. Com o advento da sociolingustica,
por volta da dcada de 1960, Dell Hymes, um sociolinguista norte-americano, props o
conceito de competncia comunicativa, em 1966. A teoria da adequao nos diz que os
diferentes usos lingusticos so vistos como relativos s circunstncias de uso, da termos a
ideia de relativizao dos fenmenos lingusticos, contrastando, portanto, com a noo
absoluta de lngua ou dos termos certo e errado postulada(os) pelas gramticas tradicionais
e pedaggicas. Para a compreenso do objeto em si, nossa pesquisa se fundamentou nas
produes dos linguistas brasileiros que tratam da temtica, configurando, portanto, um
trabalho bibliogrfico. A discusso a respeito do erro ocorre quase que exclusivamente nas
produes cientficas dos sociolinguistas; em geral, os estudiosos compreendem o erro como
um fato social, em funo de se aportarem nos fundamentos da adequao da linguagem
conforme o contexto comunicativo; diante da noo de adequao, a sociolingustica rejeita a
noo tradicional de erro e substitui, segundo Bortoni-Ricardo (2006), a palavra erro por
adequao/inadequao; Bortoni-Ricardo (2006) faz a distino, considerando as modalidades
da lngua: na lngua falada, podemos falar em adequao da variedade lingustica e na lngua
escrita, falamos em erro gramatical, devido ao no seguimento das regras da norma padro.
Esta dissertao corrobora com uma proposta de ensino que considera a linguagem a partir de
seus usos sociais.
Palavras-chave: A noo de erro em lingustica. Gramtica. Educao lingustica.
ABSTRACT
This research aims to investigate the understanding of error for the science of language.
Although we seek the understanding of our object in contemporary linguistics, we highlight
the need we had to analyze the question of error in two traditional grammars and three
pedagogical grammars. Given the analysis of grammars Cunha and Cintra (1985), Rocha
Lima (1985) and Sacconi manuals (1988), of Cegalla (1998) and Almeida (2005), we find a
defense of correct language, and in most the works, the literary model as exemplary language,
one to be followed and respected. The idea that traditional grammar is concerned almost
exclusively with literary language is proven in the arguments of linguists as Faraco (2008),
Snow (2008), Britto (1997a) - when these authors conceive the traditional grammar as a set of
standards correction established from the writing of the greatest literary writers. As a result of
semantic and conceptual relationship that the terms "appropriate and inappropriate,
grammatical and ungrammatical and deviation" have with the notion of error, we also
make an approach about what we have called the "theory of adaptation." With the advent of
sociolinguistics, around the 1960s, Dell Hymes, an American sociolinguist, proposed the
concept of communicative competence in 1966. The theory of adequacy tells us that different
linguistic uses are seen as relative to the circumstances of use, hence the idea of relativization
of linguistic phenomena, thus contrasting with the absolute notion of language or the terms
"right and wrong" postulated Traditional and pedagogical grammars. For the understanding of
the object itself, our research was based on the production of Brazilian linguists dealing with
the theme, setting, so a bibliographic work. The discussion about the error occurs almost
exclusively in scientific productions Sociolinguists; in general, scholars understand the error
as a social fact, according to assail the foundations of the adequacy of language as
communicative context; on the concept of adequacy, sociolinguistics rejects the traditional
notion of error and replaces, according Bortoni-Ricardo (2006), the word error for suitability /
unsuitability; Bortoni-Ricardo (2006) makes the distinction, considering the language of
forms: the spoken language, we can talk about adequacy of linguistic variety and written
language, we speak in grammatical error due to failure to follow standard procedure rules.
This thesis confirms a proposal of teaching that considers language from its social uses.
Keywords: The notion of error in linguistics. Grammar. Language education.
SUMRIO
1 INTRODUO ..................................................................................................................... 11
2 AS NOES DE CERTO E DE ERRADO NAS OBRAS GRAMATICAIS .................. 14
2.1 A GRAMTICA DE CUNHA E CINTRA (1985).............................................................. 16
2.1.1 Os gramticos Cunha e Cintra (1985) expem a noo de correo ...................... 21
2.2 A GRAMTICA DE ROCHA LIMA (1985) ...................................................................... 26
2.3 GRAMTICAS PEDAGGICAS E MANUAIS ............................................................... 30
2.4 MANUAIS DE ORTOGRAFIA: A NOO DE NORMA ORTOGRFICA .................. 42
2.4.1 As convenes ortogrficas ............................................................................................. 44
2.4.2 Os erros ortogrficos, segundo uma anlise de Cagliari (1990) .................................. 45
3 PONTOS DE VISTA DA LINGUSTICA BRASILEIRA SOBRE A GRAMTICA
TRADICIONAL ....................................................................................................................... 49
3.1 CONCEITOS DE GRAMTICA TRADICIONAL ............................................................ 49
3.2 O CARTER NO EXPLCITO PRESCRITIVO DAS NOSSAS GRAMTICAS ......... 52
3.3 BREVE HISTRICO DA GRAMTICA TRADICIONAL .............................................. 53
3.4 OS ADJETIVOS QUE ACOMPANHAM O TERMO GRAMTICA ................................. 59
4 TERMOS E CONCEITOS QUE SE RELACIONAM AO ERRO: GRAMATICAL E
AGRAMATICAL, ADEQUADO E INADEQUADO E DESVIO ............................................ 61
4.1 GRAMATICAL E AGRAMATICAL .............................................................................. 61
4.2 DELL HYMES PROPE O CONCEITO DE COMPETNCIA COMUNICATIVA 62
4.3 DESVIO LINGUSTICO ..................................................................................................... 68
5 COMO A LINGUSTICA CONTEMPORNEA COMPREENDE O ERRO
LINGUSTICO/GRAMATICAL ............................................................................................ 75
5.1 A CONSTITUIO DE UM CORPORA DE ANAIS DE CONGRESSO PARA A
ANLISE DO OBJETO ............................................................................................................ 75
5.2 O TERMO/CONCEITO DE ERRO LINGUSTICO/GRAMATICAL ............................... 76
6 SUGESTES GERAIS SOBRE A CONSIDERAO DO ERRO/INADEQUAO
NO ENSINO DE LNGUA ...................................................................................................... 99
6.1 ENSINO E USOS SOCIAIS DE LEITURA, DE ESCRITA E DE ORALIDADE ............. 99
7 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 108
REFERNCIAS ..................................................................................................................... 113
11
1 INTRODUO
A pesquisa geral investiga como a Lingustica moderna compreende o erro
lingustico/gramatical. A realizao da dissertao se justifica pelo fato de compreendermos a
noo do erro como uma temtica que est inserida na prtica pedaggica do professor de
lngua materna, posto que um dos objetos do ensino de nossa lngua explicar o
funcionamento da linguagem de um ponto de vista cientfico, mas sabendo estabelecer a
distino entre o que lingustico (todos os usos tm explicao cientfica) e o que social na
lngua, como, por exemplo, na explicao dos usos de uma norma, sendo esta a norma culta
variedade real falada pelos segmentos mais favorecidos da sociedade. Assim, o que buscamos
a compreenso do erro a partir da norma, do contexto situacional, dos interlocutores, das
intenes comunicativas e etc.
Para chegarmos compreenso do erro na lingustica moderna, primeiramente
precisamos buscar na lingustica clssica a origem da cultura do erro. Sabemos que as noes
de certo e errado tm suas origens na antiguidade clssica, quando do surgimento da
gramtica tradicional. Para entender como as noes de certo e errado aparecem nas
gramticas, analisamos na segunda seo cinco obras gramaticais brasileiras, publicadas na
segunda metade do sculo XX, a saber, Nova gramtica do portugus contemporneo, de
Cunha e Cintra (1985), Gramtica normativa da lngua portuguesa, de Rocha Lima (1985),
Gramtica essencial da lngua portuguesa, de Sacconi (1988), Novssima gramtica da
lngua portuguesa, de Cegalla (1998), Gramtica metdica da lngua portuguesa, de Almeida
(2005).
A seleo de tais obras se justifica pelo fato de estarem no grupo das gramticas
tradicionais mais divulgadas no Brasil ou, nos termos de Faraco (2011), serem bons
instrumentos normativos, com autores de tradio filolgica e lingustica. As trs ltimas
obras sero nomeadas como gramticas pedaggicas, em funo da sua estrutura
composicional, com explicaes mais didticas. Para buscar as noes de correo/erro nessas
gramticas, analisamos as partes de introduo como sumrios e prefcios, notas de rodap,
partes didticas como exerccios, observaes e fragmentos de explicao das regras
gramaticais, principalmente, nos tpicos de concordncia nominal e verbal, de regncia dos
verbos e do uso de alguns pronomes pessoais e oblquos.
Na seo trs, a inteno propor uma discusso sobre os conceitos de gramtica
tradicional, segundo a lingustica; abordar o carter no explcito prescritivo das gramticas
tradicionais, tendo como fundamentao os argumentos de Neves (2008); revisar a histria da
gramtica tradicional, buscando suas origens na antiguidade clssica, como herana da cultura
12
greco-romana, tendo Lyons (1979), Cmara Jr (1986b), Neves (1987), Faraco (2008), Mattos
e Silva (2015), e Silva (2006), como fundamentao terica e, por fim, uma anlise sucinta
dos adjetivos que acompanham o termo gramtica.
Nessa seo, fazemos uma discusso histrica sobre as gramticas tradicionais,
apresentando as principais caractersticas dessas obras luz da lingustica brasileira e
internacional, incluindo tambm uma abordagem resumida da histria da gramaticografia
brasileira do fim do sculo XIX para incio e segunda metade do sculo XX, sendo esse
ltimo perodo de publicao dos instrumentos aqui examinados.
Na seo quatro, nossa pesquisa busca as origens da teoria da adequao da
linguagem de acordo com os linguistas Bortoni-Ricardo (2004, 2005, 2014), Travaglia
(2008), Faraco (2008), Neves (2008). A adequao da linguagem uma teoria da
sociolingustica que postula o relativismo lingustico, sendo contrria, portanto noo
absoluta do erro. Essa seo importante para este trabalho porque a partir da adequao da
linguagem conforme as circunstncias comunicativas que a compreenso do erro em lngua se
flexibiliza. Alm disso, propomos tambm uma discusso terminolgica e conceitual dos
termos gramatical e agramatical, adequado e inadequado e desvio, em funo de tais termos
estarem relacionados com o erro.
Na seo cinco, apresentamos a metodologia para a anlise do que seja o erro em
lngua. Inicialmente constitumos dois corpora, um de anais de congresso, publicados na
internet, e outro de peridicos de revistas na rea da lingustica. No entanto, aps a realizao
dessa primeira etapa, os corpora foram descartados, porque as produes sobre o erro se
mostraram insuficientes. Tais produes traziam em suas referncias os autores j
selecionados para esta pesquisa. Por conta disso, nosso referencial de anlise foi constitudo a
partir de captulos de livros, de artigos cientficos, de ensaios e de dissertao de mestrado e
tese de doutorado, publicados pelos especialistas da lingustica brasileira.
Para a anlise da compreenso do erro em lngua, destacamos as produes
acadmicas dos principais linguistas que tratam do tema, como os sociolinguistas Bagno
(2002, 2004, 2007, 2008, 2009, 2012), Bortoni-Ricardo (2004, 2005, 2006) e outros autores
como Poll (2008), Possenti (1984, 2004), Ferrarezi Jr e Teles (2008), Neves (2008) e Barbosa
(2008). Como nosso objeto est inserido na educao lingustica, inclumos nessa seo de
anlise uma abordagem voltada para o ensino, seguindo assim as orientaes dadas pelos
linguistas, de como, por exemplo, deve proceder o professor de lngua portuguesa diante dos
diferentes usos lingusticos, nas modalidades da lngua falada e escrita.
13
Na sexta seo, propomos uma discusso sobre as orientaes dadas pelos Parmetros
Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa. A inteno mostrar que tais documentos j se
preocupam com um ensino com base nos usos sociais da leitura e escrita, com a adequao da
linguagem conforme as situaes comunicativas, deixando de lado, desse modo, a viso
normativista e abrindo as portas para uma concepo que estuda a lngua a partir do seu uso
real.
14
2 AS NOES DE CERTO E DE ERRADO NAS OBRAS GRAMATICAIS
Esta seo tem como objetivo investigar de que modo as noes de certo e de errado
esto explanadas em gramticas e manuais tradicionais brasileiros, produzidos na segunda
metade do sculo XX1. Sabemos que a gramtica tradicional, como um instrumento
normativo de ensino milenar, tem legitimao tanto nos estudos clssicos quanto nos estudos
da lingustica moderna. Consideramos a importncia do nosso objeto de pesquisa a
compreenso do erro para a lingustica no s terica, como tambm pedaggica porque
contribui para a reflexo de um objeto que se insere no conceito de norma lingustica e,
consequentemente, para a educao lingustica. A gramtica tradicional se constitui ainda
como um objeto histrico/cultural porque as noes de certo e errado na lngua remontam
desde a antiguidade clssica (os manuais de gramtica surgem como um instrumento de
tcnica e arte para resgatar a boa linguagem a partir do estudo dos grandes escritores gregos,
embora reconheamos como uma teorizao das lnguas naturais), quando na ocasio houve a
preocupao em estudar e preservar a lngua grega/latina, ameaada de deturpao pela fala
dos invasores brbaros (fala dos no gregos), no perodo helenstico. (NEVES, 2008).
O critrio de seleo das gramticas para anlise foi com base nos autores mais
consagrados e/ou divulgados no Brasil, aqueles que, segundo Faraco (2011), tm formao e
prtica filolgica e lingustica, cujas obras so consideradas, portanto, bons instrumentos
normativos. Esses autores, ainda segundo o autor, apresentam um discurso relativamente
ponderado, no expressando juzos categricos ou condenatrios em relao explicao dos
fatos lingusticos ou mesmo tendo como referncia quase sempre a lngua literria2.
Destacamos como gramticas pedaggicas as obras de Sacconi (1988), de Cegalla (1998) e de
Almeida (2005). Tais estudiosos tm uma postura condenatria e preconceituosa, chegando
a ser engraados na exposio das regras gramaticais, alm de no utilizar exemplos da
literatura. Para a apresentao das obras, seguimos o contnuo de normatividade. As
gramticas tradicionais selecionadas foram: Nova gramtica do portugus contemporneo, de
Cunha e Cintra (1985), Gramtica normativa da lngua portuguesa, de Rocha Lima (1985), e
as gramticas pedaggicas foram: Gramtica essencial da lngua portuguesa, de Sacconi
1 pertinente mencionar um problema recorrente que acontece at mesmo em trabalhos acadmicos que dizer,
segundo Neves (2008, p. 29) que a gramtica tradicional simplistamente chamada de gramtica normativa,
coisa que pode parecer estranho ao desavisado no reflete a verdade das coisas. Por conta disso, adotaremos
o termo tradicional e s mencionaremos o termo gramtica normativa, conforme o uso dos especialistas aqui
consultados. 2 Faraco (2008, 2011) apresenta o termo norma curta para se referir mediocridade gramatical, ao discurso que
condena os erros, o que est fora do que ele chama de bons instrumentos normativos, sendo representados
pelos autores Cunha e Cintra, dicionrio Aurlio, dicionrio Houaiss, Rocha Lima, Celso Luft e o fillogo
Cndido Juc Filho.
15
(1988), Novssima gramtica da lngua portuguesa, de Cegalla (1998), Gramtica metdica
da lngua portuguesa, de Almeida (2005)3.
H algumas pesquisas que versam sobre a anlise de gramticas tradicionais da lngua
portuguesa, destacamos especificamente aqui o trabalho de Suassuna (2003), que aborda em
um dos seus captulos um breve histrico da gramtica, para, em seguida, examinar manuais
de expresso escrita e de algumas gramticas normativas ou pedaggicas (SUASSUNA,
2003, p. 32). Outros autores que realizaram anlises da produo gramatical brasileira foram
Mattos e Silva (2015), Britto (1997, 2003), Flores et al. (2004) e Barros (2011). Nesta seo,
pretendemos analisar nas gramticas e manuais acima citados, como as noes de certo e
errado aparecem prescritas, incluindo, desse modo, as partes introdutrias das obras, como
prefcios e sumrios, notas de rodap, alm de fragmentos e explicaes das regras
gramaticais e partes didticas como exerccios.
H alguns critrios que convm explicar no que diz respeito anlise dos trechos,
exemplos ou fragmentos retirados dos instrumentos sob anlise. Como dissemos, a anlise dos
trechos tem o propsito de explicitar com fidelidade os pensamentos dos autores sobre as
noes de correo e incorreo/erro.
Segundo Britto (2003), o discurso normativo se baseia em exemplos da ortografia,
erros de concordncia verbal e nominal, regncia de verbos, pronomes e empregos de
palavras no autorizadas, como neologismos e estrangeirismos, estes ltimos se enquadram
no que os gramticos denominam de vcios de linguagem. Em geral, os exemplos extrados
das gramticas/manuais foram do componente morfossinttico e algumas particularidades de
estilo, como bem apontou Britto (2003, p. 56) acima, alguns poucos exemplos fogem a essa
constatao.
Faraco (2008, p. 45) afirma que, nas gramticas tradicionais do sculo XIX, comum
encontrarmos os principais aspectos sintticos da linguagem urbana comum que caracteriza
boa parte das manifestaes orais mais monitoradas dos falantes que poderiam ser
classificados de cultos, pouco se distinguindo da norma culta brasileira falada, coletada
pelo NURC projeto Norma Urbana Culta. Essas caractersticas sintticas so listadas pelos
gramticos mais conservadores como erros comuns da fala brasileira. Faraco (2008) conclui
dizendo que o que a gramtica tradicional chama de erro corresponde s formas lingusticas
correntes, habituais e normais na linguagem urbana comum e tambm da linguagem popular.
3 As edies seguem as ordens das gramticas: Celso Cunha e Cintra (1985) 2 edio; Rocha Lima (1985) 26
edio; Sacconi (1988) 4 edio; Cegalla (1998) 41 edio e Almeida (2005) 45 edio.
16
Segundo Faraco (2015a), o sistema de ensino prefere dar crdito ao discurso
dogmtico, categrico e negativo da cultura do erro, que se tornou hegemnica no Brasil,
afetando o ensino de lngua portuguesa, os meios de comunicao e o senso comum.
Expressando pensamento semelhante ao de Britto (2003), sobre os padres de correo da
tradio normativa, Faraco (2015, p. 68) afirma que os instrumentos normativos costumam
iludir os aprendizes com a ideia de que a mera correo de determinado fenmeno de
regncia, de colocao, de concordncia, de mistura pronominal (em geral abordados pelo
vis da norma curta) suficiente para garantir aos alunos o acesso expresso culta e ao seu
domnio.
Antes de passarmos anlise das gramticas brasileiras, gostaramos de enfatizar que,
assim como Neves (2008), acreditamos no estabelecimento da relao equilibrada entre a
cincia lingustica e a atitude prescritiva, visto que a normatizao necessria ao
estabelecimento dos padres lingusticos, em decorrncia de concebermos a lngua como
instrumento de interao entre os membros de uma sociedade. Alm disso, as lnguas
compreendidas nas relaes sociais so vistas como um fato social que dependem tambm do
estabelecimento de normas sociais/culturais, da termos nos estudos da linguagem a viso de
que a lngua pode ser descrita cientificamente, a partir da legitimao dos fenmenos
lingusticos, tendo como fundamentos a variao e a mudana, mas tambm temos a
necessidade de estabelecer uma norma que compreenda a relao entre uso e contexto
comunicativo - que regule, que seja parmetro para a lngua falada e escrita, nas diversas
instncias sociais, principalmente, na esfera educacional/escolar, do ensinoaprendizagem da
lngua materna.
Rajagopalan (2011, p. 127), em uma discusso sobre os conceitos de norma
lingustica, de um ponto de vista da poltica lingustica afirma que O que no se pode negar,
de forma alguma, a necessidade de eleger uma norma para servir de modelo para todos os
usurios de uma lngua. Segundo Rajagopalan (2011), ignorar a existncia de normas
lingusticas tambm rejeitar o processo histrico de seu surgimento, em funo das relaes
entre o estabelecimento de uma norma e seus respectivos estados-naes.
2.1 A GRAMTICA DE CUNHA E CINTRA (1985)
Analisaremos cinco obras gramaticais nesta pesquisa e as distinguiremos tendo como
base um contnuo de normatividade: as gramticas tradicionais, as gramticas pedaggicas e
os manuais de uso. As gramticas tradicionais so orientadas pelos textos da Nomenclatura
17
Gramatical Brasileira (doravante NGB). Assim como as tradicionais, as gramticas
pedaggicas apresentam essa mesma organizao tpica, com base na NGB. Os manuais tm
natureza essencialmente prescritiva e sua funo oferecer orientaes sobre os usos
lingusticos socialmente prestigiados, dando dicas de como falar, elencando usos certos e
errados. Chamamos de gramticas tradicionais as obras de Bechara (2009), Rocha Lima
(1985) e Cunha e Cintra (1985). So consideradas pedaggicas as obras de Sacconi (1988),
Cegalla (1998) e Almeida (2005) e manuais as obras de Sacconi (1977) e (1990).
Em 1957, foi publicado (Portaria N 152, de 24 de abril de 1957) o Anteprojeto de
Simplificao e Unificao da NGB. Nesse anteprojeto, h uma orientao para a parte
Introduo: Gramtica (normativa ou histrica); a diviso da gramtica se d pela Primeira
parte: fontica, Segunda parte: morfologia e Terceira parte: sintaxe. Em 1959, o Ministrio do
Estado da Educao e Cultura recomenda a adoo de uma nova NGB, anexa Portaria N
36, de 28 de janeiro de 1959. As mudanas propostas so irrisrias, do tipo, tem-se
primeiramente a Diviso da gramtica: fontica, morfologia, sintaxe; Introduo: tipos de
anlise (fontica, morfolgica e sinttica). Permanece a diviso em primeira parte, segunda
parte e terceira parte, respectivamente, fontica, morfologia e sintaxe. No Apndice, aparecem
as Figuras de sintaxe, Gramtica Histrica, Ortografia, Pontuao, Significao das palavras e
Vcios de linguagem. A Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 foi publicada por meio
da Portaria, I srie, de 28 de abril pelo Ministrio da Educao Nacional. O texto recomenda
que se tenha Partes da Gramtica: morfologia, sintaxe; Tipos de anlise Gramatical:
morfolgica, sinttica. Outras nomenclaturas lingusticas so propostas como: Fontica
descritiva, Ortografia, Pontuao, Lexicologia, Semntica, Histria da lngua e Outras
denominaes.
Mais recentemente, houve a publicao da Portaria do Ministrio da Educao (MEC)
N 476/2007, que prope uma Terminologia Lingustica para os ensinos bsico e secundrio.
O texto deve apresentar um carter cientfico com a lista de termos e definies destinados
aos professores e um carter didtico-pedaggico que apresente propostas de materiais a
utilizar pelos professores em sala de aula. A adoo de uma nova terminologia tem como
objetivo superar a desatualizao da Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967. Os termos
so definidos por Domnios em ordem alfabtica. Domnio A: lngua, comunidade lingustica,
variao e mudana (conhecimento da lngua e do seu uso pelos falantes, variao
(geogrfica, social...), normalizao. Domnio B: lingustica descritiva; Domnio B.1:
fontica e fonologia; Domnio B.2: morfologia; Domnio B.3: classes de palavras; Domnio
B.4: sintaxe; Domnio B.5: lexicologia; Domnio B.6: semntica. Domnio C: anlise do
18
discurso, retrica, pragmtica e lingustica textual. Domnio D: lexicografia. Domnio E:
representao grfica (formas convencionadas de representao escrita da linguagem verbal).
No Domnio E, h uma meno de cinco gramticas de referncia que so: BECHARA, E.
Moderna gramtica portuguesa. 37 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna,1999.
CUNHA, C; CINTRA, L. Nova gramtica do portugus contemporneo. Lisboa: S da
Costa, 1984. CUESTA, P. V.; LUZ, M. A. M. Gramtica da lngua portuguesa. Lisboa:
Edies 70, 1980. MATEUS, M.H. et al. Gramtica da lngua portuguesa. Lisboa:
Caminho, 2003. VILELA, M. Gramtica da lngua portuguesa. Coimbra: Almedina, 1999.
Sobre a NGB, Henriques (2009) afirma que
Estamos em 2009, o texto da Nomenclatura Gramatical Brasileira completa 50 anos
de elaborao, continua oficialmente em vigor e citado em nossas gramticas com
constncia, mesmo que seja para acrescentar-lhe algo que no tenha sido
considerado pela comisso que o props ou para dizer que ele est
irremediavelmente superado.
No sumrio da gramtica de Cunha e Cintra (1985), os 22 captulos so apresentados
da seguinte maneira, a saber, 1-7: conceitos gerais, domnio atual da lngua portuguesa,
fontica e fonologia, ortografia, classe e estrutura e formao de palavras, derivao e
composio, frase, orao, perodo; 8-17: as dez classes de palavras; 18-22: o perodo e sua
construo, figuras de sintaxe, discurso direto, indireto e indireto livre, pontuao, noes de
versificao.
Temos acima uma descrio que se resume na exposio de forma separada dos
principais componentes da lngua portuguesa, como fontica e fonologia, morfologia, sintaxe4
(GRSKI e COELHO, 2009), sem esquecer os outros contedos referentes rea como as 10
classes de palavras, ortografia, noes de estilstica e versificao, os tipos de discurso e
pontuao.
Interessante mencionar alguns escritos do prefcio desta obra que acabam nos dando
pistas sobre as vises/intenes que os autores tiveram ao constituir essa gramtica. Segundo
Cunha e Cintra (1985), essa gramtica foi idealizada com o desejo de publicar uma obra
voltada no s para o Brasil e Portugal, mas tambm para todos os pases em que se estuda o
idioma. O objetivo era lanar uma gramtica que descrevesse o portugus contemporneo,
considerando as diversas normas5 tanto no Brasil como em Portugal. Alm de ser uma fonte
4 Organizao compartimentada e estanque que tambm se repete de forma semelhante nas demais gramticas
analisadas. 5 Como dissemos, para Cunha e Cintra (1985), as diversas normas se referem, principalmente, as vigentes e
admitidas como padro em Portugal e no Brasil. Os gramticos empregam os termos padro, forma culta, lngua
padro, modelo, norma, ideal lingustico, linguagem coloquial, variedade prestigiosa para se referirem a
descrio do portugus atual (p. xiv).
19
de informao, tambm ser um guia que orientasse sobre a expresso oral e, principalmente,
escrita e que se pudesse considerar a forma correta, conforme o conceito de correo
adotado pelos autores.
A descrio do portugus atual , nas palavras dos autores, na sua forma culta, que
para eles, a lngua utilizada pelos escritores portugueses, brasileiros e africanos do
Romantismo adiante. H tambm, segundo Cunha e Cintra (1985), uma preocupao em
observar os fatos da linguagem coloquial (registro distenso), no que se refere, principalmente,
aos valores afetivos das formas idiomticas. Embora percebamos nesse prefcio tal inteno
de uma tentativa de descrio/normativa de usos da lngua falada, e encontramos muitas
observaes em relao a certos usos dessa modalidade da lngua, no decorrer da obra,
conclumos que, considerando a sua totalidade, a inteno global a descrio de regras com
base nos escritores literrios.
Cumpre frisar que os prprios autores admitem uma descrio que utiliza tanto os
conceitos e terminologias tradicionais quanto os achados da lingustica, como por exemplo,
conceitos da fontica acstica e da fonologia moderna. O mesmo ocorre com o estudo das
palavras, em sua forma e funo, de acordo com os princpios da morfossintaxe.
oportuno dizer tambm que esta gramtica j se diferenciava um pouco das demais
por considerar em sua anlise alguns usos da lngua falada6 no Brasil (variedade americana),
em Portugal (variedade nacional europeia) e nas naes lusfonas da frica, embora, como j
dissemos, houvesse a predominncia do carter normativo.
O captulo de nosso interesse apenas o 1, por tratar de conceitos mais especficos
sobre o estudo de uma lngua, como por exemplo, as noes de linguagem, lngua, discurso,
estilo, a relao entre lngua e sociedade - variao e conservao lingustica, diversidade
geogrfica da lngua dialeto e falar, a noo de correto. O captulo 2, apenas como
exemplificao, discute os seguintes temas: unidade e diversidade, as variedades do
portugus, os dialetos do portugus europeu, os dialetos das ilhas atlnticas, os dialetos
brasileiros, o portugus da frica, da sia e da Oceania.
Cunha e Cintra (1985), ao abordar as denominaes linguagem e lngua, demonstram
conhecimento e concordncia com alguns conceitos da lingustica contempornea. Segundo
os autores, linguagem um sistema de sinais que serve de meio de comunicao entre os
indivduos, com valor convencional. Para Cunha e Cintra (1985, p. 1), lingustica interessa
6 Mais adiante analisaremos algumas regras retiradas dessa gramtica, para melhor, exemplificar o que estamos
dizendo nesse texto. Em resumo, os gramticos sempre que apresentam alguma forma coloquial, o fazem a partir
da escrita dos escritores modernos.
20
particularmente uma espcie de LINGUAGEM, ou seja, a LINGUAGEM FALADA OU
ARTICULADA. Quanto ao conceito de lngua, os autores dizem que um sistema
gramatical pertencente a uma coletividade, isto , utilizao social da faculdade da linguagem;
a lngua mutvel e est em evoluo o tempo inteiro. De acordo com tais informaes,
podemos dizer que os autores reconhecem a heterogeneidade, dinamicidade das lnguas e,
principalmente, o seu carter social, relacionando, assim, lngua e sociedade.
Os autores citam tambm as contribuies da sociolingustica, apresentando, desse
modo, trs tipos de diferenas internas das lnguas, a saber, variao diatpica diferena no
espao geogrfico, variantes regionais, variao diastrtica diferenas nas camadas
socioculturais e variao diafsica diferena na modalidade da lngua.
Cunha e Cintra (1985, p. 3) reconhecem a variao como fenmeno inerente s
lnguas, podendo ocorrer em todos os nveis: fontico, fonolgico e morfossinttico. Assim,
nas palavras dos autores essa multiplicidade de realizaes do sistema em nada prejudica as
suas condies funcionais.
Nesse momento, no foco de anlise a investigao dos termos/conceitos, conforme
os autores da lingustica, do que seja lngua padro. No entanto, achamos relevante
mencionar como Cunha e Cintra (1985, p. 3) concebem a lngua padro:
A lngua padro, por exemplo, embora seja uma entre as muitas variedades de um
idioma, sempre a mais prestigiada, porque atua como modelo, como norma, como
ideal lingustico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua funo
coercitiva sobre as outras variedades, com o que se torna uma pondervel fora
contrria variao.
Conforme os autores, a lngua padro/forma e/ou lngua culta/padro7 uma
variedade, dentre as muitas que existem no portugus h o reconhecimento de que a
variao constitutiva das lnguas -, o modelo, a norma, o ideal lingustico de mais prestgio
modelo este representado pela lngua literria, pela classe prestigiada dos escritores
consagrados. Por expressar um carter modelar, ela exerce funo coercitiva sobre as demais
variedades, sendo, assim, uma fora que se ope variao lingustica.
Os gramticos pontuam ainda que, na lngua, existem duas foras atuando, uma da
inovao e a outra da conservao, e a segunda fora envolve a primeira de tal forma que
garante a unidade do portugus8. O primeiro termo inovao refere-se lngua em uso, ou nos
7 Outros termos encontrados nessa gramtica foram: linguagem coloquial, popular versus formal. Ao abordar
sobre os objetivos do projeto Norma Urbana Culta NURC, Cunha (1985a) expe os termos lngua padro,
lngua culta, norma prescritiva, norma histrico-literria, dialeto prestigioso, uso culto, forma culta e padro
lingustico adotado na escola como sinnimos. 8 Ver anlise da gramtica de Rocha Lima (1985).
21
termos dos gramticos linguagem coloquial, popular; a expresso conservao mesmo que
implicitamente est relacionada com a concepo de pureza do idioma, conservar, preservar a
lngua dos escritores clssicos.
2.1.1 Os gramticos Cunha e Cintra (1985) expem a noo de correo
De acordo com Cunha e Cintra (1985), uma gramtica que pretenda registrar e analisar
os fatos da lngua culta deve fundar-se no claro conceito de norma e de correo idiomtica.
Segundo os autores, alguns linguistas modernos9 procuram fundamentar a correo idiomtica
em critrios mais objetivos, tais como, histrico-literrio: este o critrio tradicional de
correo, baseado nos exemplos dos escritores clssicos; histrico-natural: a linguagem se
desenvolve em estado de completa liberdade, no h assim nada correto ou incorreto na lngua
e por fim, temos o critrio racional: aquele em que a melhor fala a mais simples, mas com
a inteligibilidade.
Cunha e Cintra (1985) comentam tambm as ideias do linguista dinamarqus Otto
Jespersen10. Esse linguista elenca sete critrios de correo: autoridade, geogrfico, literrio,
aristocrtico, democrtico, lgico e esttico. Existe algo que justifica a correo, assim, o
elemento comum a norma lingustica que ambos aceitaram de fora (da sociedade), ou seja,
tanto quem fala como quem ouve e que, consequentemente, lhes facilita a compreenso.
Com base em Jespersen, os autores apresentam os termos linguisticamente correto e
incorreto; o primeiro, o falar correto, significa o falar que a comunidade espera, por outro
lado, o segundo, ou melhor o erro em linguagem, equivale a desvios desta norma. Assim, os
gramticos concluem:
Todo o nosso comportamento social est regulado por normas a que devemos
obedecer, se quisermos ser corretos. O mesmo sucede com a linguagem, apenas com
a diferena de que as suas normas, de um modo geral, so mais complexas e mais
coercitivas. (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 6).
No texto acima, percebemos que h uma comparao entre comportamento social e
linguagem. Segundo os gramticos, assim como seguimos regras de comportamento em
sociedade, devemos tambm seguir normas quanto lngua, destacando apenas a diferena de
que, na lngua, a norma carrega mais coero e complexidade.
9 Esses critrios so baseados nas ideias de Adolf Noreen, linguista sueco. 10 Humanidad, nacin, individuo, desde el punto de vista lingustico. Traduo por Fernando Vela. Buenos
Aires, Revista de Occidente, 1947. P. 113-114. Segundo Faraco (2008), pode-se ler uma apresentao da
inconsistncia de critrios socioculturais de correo, exposta por Jespersen, em Mansur Gurios (1968) e
Bechara (2000).
22
Em relao aos critrios de correo que, aplicveis em alguns casos e em outros no,
h que considerar o da aceitabilidade social. Cunha e Cintra (1985) advertem para a
necessidade de a lingustica desenvolver mtodos de investigao e descrio para que assim,
se possa chegar a um conceito mais preciso de correo, para que possamos dizer na lngua o
que obrigatrio, facultativo, tolervel, grosseiro, inadmissvel, ou mesmo o que ou o que
no correto o que correto/certo e o que incorreto/erro. Com base em Mattos e Silva
(2015), os gramticos assumem uma posio moderada em relao ao que correto, embora
eles apresentem por ora a lngua padro como a que deve ser seguida.
Britto (1997a) expe, em sua anlise da gramtica de Cunha e Cintra (1985), que tais
gramticos embora busquem articular a tradio gramatical com a lingustica contempornea
e que saibam que a norma pode variar em qualquer comunidade lingustica, h nesses
conceituados gramticos a defesa de uma norma considerada culta e correta, como modelo e a
mais prestigiada, como ideal lingustico. Britto (1997, p. 53) nos alerta que, conforme
registram Cunha e Cintra (1985), o que se entende por norma padro sempre a variedade
lingustica dos segmentos socialmente privilegiados, o que evidencia a relao entre o valor
que se d a esta variedade lingustica e a estrutura socioeconmica.
Em uma anlise de Barros (2011), sobre o discurso da gramtica do portugus,
constatamos tambm esse dilogo entre a gramtica aqui examinada e o discurso da
lingustica, como bem apontou Britto (1997a). Esse dilogo com a lingustica gera um nmero
maior de usos considerados possveis e aceitveis. Entretanto esses usos at so aceitos ou
aceitveis, mas no so prescritos. Barros (2011) afirma que, nas gramticas brasileiras do
sculo XX, predominam o discurso da norma prescritiva e da concepo de lngua como
heterognea (em funo desses usos possveis e aceitveis) e que tais usos so hierarquizados.
Essa noo de hierarquizao dos usos lingusticos advm da sociedade de classes que
fortemente hierarquizada. Nas palavras de Barros (2011, p. 295), ensina-se a lngua,
concebida como seu uso mais prestigioso e qualificado, s camadas sociais que tm usos
menos prestigiosos ou mesmo considerados como usos desqualificados e incorretos.
Suassuna (2003, p. 34) tambm expe em sua anlise consideraes sobre as questes
certo e errado da gramtica de Cunha e Cintra (1985):
Todavia, ainda vejo alguns problemas quanto questo certo x errado na gramtica
mencionada. Em primeiro lugar, levo em conta a adjetivao empregada (por
exemplo: portugus culto); em segundo lugar, persistem o Romantismo como marco
cronolgico e a modalidade literria como o uso a ser descrito; em terceiro lugar,
patente ainda um certo determinismo social (o qual nos impe uma unidade
idiomtica), sem que se sugiram critrios de discusso do prestgio da variedade
culta.
23
Suassuna (2003, p. 35) acrescenta ainda que tal gramtica no to descritiva como se
prope ser, pois a descrio de uma modalidade de lngua o caminho para se determinar, ao
final, o que certo e errado em matria de uso lingustico.
A gramtica em anlise de Cunha e Cintra (1985) tem um carter
descritivo/normativo11 e, por conta dessa dualidade, para tornar a exposio mais clara,
apresentaremos alguns exemplos extrados da prpria gramtica.
No captulo 7 (Frase, orao, perodo), ao tratar da Orao sem sujeito, Cunha e Cintra
(1985, p. 126-128) abordam os principais casos de inexistncia do sujeito:
(01) Com verbos ou expresses que denotam fenmenos da natureza: Anoitecia e tinham acabado de jantar. (. Verssimo, LS, 147)
Era maro e ainda fazia frio. (M. Torga, NCM, 120)
(02) Com o verbo haver na concepo de existir: Ainda h jasmins, ainda h rosas,
Ainda h violes e modinhas
Em certas ruas saudosas. (Ribeiro Couto, PR, 315)
Na sala havia ainda trs quadros do pintor. (F. Namora, DT, 206)
(03) Com os verbos haver, fazer e ir, quando indicam tempo decorrido: Faz hoje oito dias que comecei. (A. Abelaira, B, 133).
Vai para uns quinze anos escrevi uma crnica do Curvelo. (M. Bandeira, PP, II,
338)
(04) Com o verbo ser, na indicao do tempo em geral: Era inverno na certa no alto serto. (J. Lins do Rego, ME, 57)
Era por altura das lavouras. (A. Bessa Lus, S. 187)
Eis que, em um tpico com letras menores e pouco destaque, h o que denominam de
observaes.
(05) Nas oraes impessoais o verbo ser concorda em nmero e pessoa com o predicativo e impessoalidade nas locues verbais:
Como podia haver tantas casas e tantas gente? (G. Ramos, VS, 114)
Devo estar esfacelada, deve ter pedaos de mim por todos os cantos. (M. J. de
Carvalho, AV, 56). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 127).
Aps a explicao dos exemplos acima, os autores dizem que, semelhana do verbo
haver, na linguagem coloquial do Brasil corrente o emprego do verbo ter como impessoal.
Assim, para exemplificao, os gramticos dizem que escritores modernos e alguns dos
maiores no tm duvidado em alar a construo lngua literria (p. 127). Eis os
exemplos:
(06) Hoje tem festa no brejo! (C. Drummond de Andrade, R, 16) (07) Em Pasrgada tem tudo, outra civilizao... (M. Bandeira, PP, 222). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 127).
O uso do verbo ter impessoal tambm se estende ao portugus das naes africanas,
vejamos exemplos retirados do escritor angolano Luandino Vieira.
11 De acordo com a percepo dos autores.
24
(08) No tem morte para o riso, no tem morte. (NM, 74) Aqui tem galinha, tem quintal... (L, 63)
Verdes amores no tem mais, nunca mais. (N. M, 62). (CUNHA e CINTRA, 1985,
p. 127).
Passemos a outros exemplos, com o propsito de demonstrar que h usos que
permeiam a linguagem coloquial ou popular, nos termos de Cunha e Cintra (1985), mas que
certas construes acabam entrando nas obras literrias dos escritores. Britto (2003, p. 88) diz
que, quanto regularidade da correo, quase sempre, se corrige expresses populares e
insiste-se em casos idiossincrticos e formas de uso restrito, algumas bastante incomuns12.
Faraco (2008, p. 151) assinala a situao paradoxal em que vivem hoje as gramticas
tradicionais ao se deparar com os erros da linguagem coloquial, mas tendo como explicao
a insero desses erros, alguns pelo menos, na lngua literria. O linguista faz a seguinte
reflexo: se os puristas consideravam que os clssicos no podiam ser referncia segura,
considerando que alguns gramticos advertem como deslizes ou desatenes alguns
exemplos de escritores que contrariam alguma regra prescrita, no sobraria nenhuma
referncia com o direito de ditar normas.
Sirva de exemplo a apresentao do sujeito como o pronome relativo quem, os
gramticos dizem que o pronome relativo quem constri-se de regra, com o verbo na 3
pessoa do singular:
(09) s tu quem murmura nas guas, Tu s quem respira por mim. (M. Mendes, P. 181).
(CUNHA e CINTRA, 1985, p. 491).
Ao apresentar a construo preferida da linguagem popular, os autores dizem que
no faltam, porm, exemplos de bons autores em que o verbo concorda com o pronome
pessoal, sujeito da orao anterior (p. 491). Nesse caso, o sujeito efetivo da ao expressa
pelo verbo. Vejamos os exemplos abaixo:
(10) No sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mo colora algum em mim. (F. Pessoa, OP, 55)
Eram os filhos, estudantes nas Faculdades da Bahia, quem os obrigavam a
abandonar os hbitos frugais. (J. Amado, GCC, 249). (CUNHA e CINTRA, 1985, p.
491).
Na tentativa de demonstrar de que modo as noes de certo e errado so
explanadas/usadas em gramticas tradicionais, temos a seguir alguns exemplos que ilustram
tais noes, mesmo que de forma atenuada.
12 Essa ideia de corrigir a linguagem popular, coloquial tambm evidente nas demais gramticas aqui
analisadas.
25
Cunha e Cintra (1985), ao tratar da locuo um e outro, com a possibilidade de levar o
verbo ou ao plural ou ao singular dizem que as duas construes so admissveis ainda
quando a locuo usada como pronome adjetivo, caso em que precede sempre um
substantivo no singular (p. 503). Os exemplos so:
(11) Mas uma e outra cousa duraram apenas rpido instante. (A. Herculano, E, 207)
(12) Um e outro jugo nos odioso; contra ambos protestamos. (A. de Quental, P, I, 167). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 503).
Na parte que contempla a regncia verbal, encontramos alguns termos que se
assemelham com certo e errado, como por exemplo, gramaticalmente condenada,
condenada pelos puristas, no admisso de outra forma.
Em relao regncia do verbo aspirar, Cunha e Cintra (1985, p. 507) apresenta a sua
acepo de pretender, desejar, como transitivo indireto. Nesse caso, o objeto indireto vem
introduzido pela preposio a ou por, no admitindo a substituio pela forma pronominal
lhe (ou lhes), mas somente por a eles (s) ou a ela(s). Observe os exemplos abaixo:
(13) Sua vigilncia exaspera-me, no ntimo, fazendo-me aspirar, com nsia, libertao. (C. dos Anjos, DR, 407).
(14) Aspiramos a uma terra pacfica. (C. Drummond de Andrade, OC, 830). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 507).
O regime direto, segundo Cunha e Cintra (1985, p. 508) invariavelmente condenado
pelos gramticos, mas, vez por outra, aparece na pena de escritores brasileiros modernos e
contemporneos, como em:
(15) Ele sente, ele aspira, ele deseja A grande zona da imortal bonana. (Cruz e Sousa, OC, 212)
(16) Oh! o que eu no aspirava, no titanismo das minhas nsias de moo, para o meus pas. (G. Amado, PP, 49). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 508).
Outra regncia gramaticalmente condenada, mas a que escritores modernos tm dado
acolhida, a acepo do verbo assistir com objeto direto, acepo esta observada na
linguagem coloquial brasileira:
(17) Trata-se de um filme que eu assistia. (C. Lispector, AV. 32) (18) Dava dinheiro e corrompia para fazer de novo e sempre as fitas que no assistira. (Autran Dourado, IP, 38). (CUNHA e CINTRA, 1985, p. 508).
Vimos, em alguns exemplos extrados de Cunha e Cintra (1985), a explicao dos usos
(linguagem popular) que fogem s regras gramaticais sempre tendo como respaldo a pena dos
escritores literrios. , portanto, o que Bagno (2002, 2009) chama de que h uma defesa
(conforme a concepo tradicional) de que os melhores escritores tm licena potica para
empregar formas coloquiais ou mesmo os membros das classes privilegiadas, ao contrrio,
26
por exemplo, do que acontece com a fala/escrita de pessoas estigmatizadas, pois, nesses casos,
temos os termos vcios de linguagem e atentado contra a lngua.
Para concluir a anlise dos fragmentos gramaticais expostos, retomamos o que j
afirmamos sobre o carter ponderado dos autores da gramtica examinada. Tais autores usam
termos atenuados como prefira-se dizer e ainda se colocam como gramticos no puristas, ao
dizer, por exemplo, que algumas construes so gramaticalmente condenadas pelos puristas.
2.2 A GRAMTICA DE ROCHA LIMA (1985)
Semelhante gramtica de Cunha e Cintra (1985), Rocha Lima (1985) organizou sua
gramtica da seguinte forma: dados biobibliogrficos do autor, prefcio, uma parte
introdutria que trata de conceitos como lngua, linguagem, gramtica normativa e correo;
em seguida vem a exposio dos componentes fontica e fonologia (estudo dos fonemas e sua
composio e dos caracteres prosdicos da fala, como acento e entoao e ortografia)
morfologia (estudo da forma, estrutura e classificao das palavras), sintaxe (estudo da
construo da frase, concordncia, regncia, colocao) e rudimentos de estilstica e potica.
O prefcio escrito por Silva Neto (1985)13 ilustra bem a dualidade exposta por Rocha
Lima quanto compreenso, ou melhor, explanao das regras de sua gramtica. Nessa
contradio, podemos observar uma discreta exposio das teorias da lingustica moderna14,
em contraposio com as regras do bem falar e escrever (obviamente que o vis tradicional
predomina). Ressaltamos que essa contradio reveladora, no sentido de demonstrar a
influncia dos achados da lingustica moderna, nas gramticas tradicionais brasileiras, mesmo
de forma sucinta e expostas em espao reduzido, como em notas de rodap.
Para esse autor, a profisso de gramtico, j nessa poca, recebia muitas crticas
(campanha contra o ensino da gramtica) em relao ao carter amador e no mais
desordenado empirismo, gerando assim um labirinto de classificaes e uma nomenclatura
to rebarbativa intil (p.xvi). Em outras palavras, a gramtica deve ser simplificada e
rigorosamente justificada pelos fatos da lngua. Segundo Silva Neto (1985), o fillogo dota a
lngua portuguesa com uma gramtica que, sem erro ou fastio, lhe desse as normas cultas do
bem escrever e do bem falar, a partir de trechos de bons escritores de nossa lngua (p.xvi).
Ainda, com base nas palavras do autor, a lngua se aprende, principalmente, na minuciosa
13 Prefcio escrito por Serafim da Silva Neto. Rio de Janeiro, em 18 de maio de 1957. 14 Observando os estudiosos consultados por Rocha Lima (1985), achamos por bem mencionar alguns nomes de
obras e de estudiosos da linguagem com o objetivo de demonstrar tal contradio no gramtico. Eis os
especialistas/obras: gramticas espanholas, castelhanas e francesas; Mattoso Cmara Jr, Ferdinand de Saussure,
Manuel Said Ali, Rodrigues Lapa, Epifnio Dias, Othon M. Garcia e etc. Cf. em Rocha Lima (1985), para mais
detalhes, as notas de rodap.
27
leitura dos textos clssicos de todas as pocas15. Essas caractersticas, pois, so encontradas
em Rocha Lima.
Vimos, na apresentao de Neto (1985), a defesa de fundamentar ou exemplificar os
fatos da lngua a partir dos escritores consagrados da literatura, eis a mesma ideia em Rocha
Lima (1985, p.xviii):
[...] em matria de bom uso da lngua literria, os ensinamentos at aqui esposados
pela Gramtica Normativa so confirmados, em sua quase totalidade, pela lio dos
prosadores e poetas de hoje o que patenteia, de maneira solar, a continuidade
histrica das formas verdadeiramente afinadas com o sentimento idiomtico.
Conclui o gramtico dizendo que a rebeldia Modernista de 1922 no passou de um
boato falso, pois embora tenha havido uma revoluo no estilo literrio, as mudanas no
terreno da lngua no surtiram efeito, no lograram romper os compromissos com o passado.
Na parte introdutria, o gramtico expe alguns conceitos como lngua, linguagem e
estilo a partir das produes da cincia da linguagem. Semelhante a Cunha e Cintra (1985),
Rocha Lima (1985) diz que a lngua como fato social, depende do equilbrio de duas
tendncias: de um lado, a diferenciao fora natural, espontnea; de outro, a unificao
fora coercitiva, disciplinante e conservadora.
Em outros termos, Rocha Lima (1985, p. 4) afirma que a lngua no se desfigura,
apesar da variabilidade de estilos dos indivduos; a variedade na unidade a preservao
histrica do seu gnio, da sua ndole, qual se ho de adaptar todas as particularidades.
Segundo o gramtico, o escritor literrio o protetor da lngua, o guardio, aquele que
a preserva dos indivduos ignorantes e de suas particularidades.
Ao defender a sua concepo de gramtica normativa, Rocha Lima (1985, p. 6) diz
que:
uma disciplina didtica por excelncia, que tem por finalidade codificar o uso
idiomtico, dele induzindo, por classificao e sistematizao, as normas que, em
determinada poca, representam o ideal da expresso correta. [...] Fundamentam-se
as regras da Gramtica Normativa nas obras dos grandes escritores, em cuja
linguagem as classes ilustradas pem o seu ideal de perfeio, porque nela que se
espelha o que o uso idiomtico estabilizou e consagrou.
Nas palavras do autor, a gramtica normativa examina a lngua como cdigo do bem
falar e do bem escrever16. Compreenso explcita tambm em Cegalla (1998), Almeida (2005)
15 Em pesquisa no minuciosa, encontramos na gramtica escritores portugueses e brasileiros de diferentes
perodos literrios como: Lus Vaz de Cames, Antnio Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco,
Ea de Queirs, Castro Alves, Rui Barbosa, Machado de Assis, Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Clarice
Lispector, Guimares Rosa. 16 O conceito de correo assim exposto e segundo Amado Alonso e Pedro Henrquez Urea. Gramtica
Castellana, primer curso, terceira edicin. Buenos Aires, 1943, p. 16: Son formas correctas de decir aquellas
28
e Bechara (2009). Bechara (2009) prope a diferena entre gramtica descritiva e normativa.
A gramtica descritiva, sendo uma disciplina cientfica, registra e descreve os componentes
fontico/fonolgico, morfossinttico e lxico de um sistema lingustico. Bechara (2009)
afirma que a gramtica descritiva no est preocupada em estabelecer o certo ou errado, ao
contrrio, portanto, da gramtica normativa. Essa ltima no uma disciplina com finalidade
cientfica, mas sim pedaggica, pois sua funo eleger os fatos da lngua ditos modelares da
exemplaridade idiomtica. Nas palavras do gramtico Bechara (2009, p. 52) a normativa
recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos
e dos gramticos e dicionaristas esclarecidos.
Embora Rocha Lima (1985) apresente uma concepo de gramtica/lngua com base
no falar e escrever bem, corretamente, encontramos em nossa anlise poucas passagens em
sua obra que nos remetessem de forma explcita a tais noes. Nesse sentido, mencionaremos
a seguir alguns fragmentos que julgamos caracterizar sua compreenso tradicional de correo
da lngua, exemplificando quase sempre com textos/frases dos escritores (poetas e prosadores)
clssicos e modernos.
As expresses preferidas do gramtico encontradas foram: erros comuns
generalizados e condenveis, diz-se corretamente assim, normas boas e inviolveis, desvios
inconscientes, irregularidades e construo pura. Vejamos abaixo tais expresses
contextualizadas na gramtica.
Rocha Lima (1985, p. 15) explica que as consoantes laterais podem ser: Alveolares
(ponta da lngua e alvolos): /l/ em palavras como lapa e lua e Palatais (dorso da lngua e
palato): /lh/ em palavras como malha e ilha.
Com o propsito de exemplificar uma diferena de pronncia, o gramtico diz em:
Observao: Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a
consoante /l/, quando em final de slaba, apresenta uma pronncia relaxada, que a
aproxima do som da semivogal /w/.
Este fato faz que desapaream oposies como as de mal e mau, alto e auto, serviu e
servil oposies que a lngua culta procura cuidadosamente observar. (ROCHA
LIMA, 1985, p. 15).
Ao tratar de regras de duplicidade de gnero de substantivos, como por exemplo, as
palavras personagem, faringe, pijama, laringe, Rocha Lima (1985, p. 70) faz novamente uma
correo:
aceptadas y usadas por los grupos ms cultos dela sociedade. Correccin quiere decir aqui prestigio social de
cultura. Traduo nossa: So formas corretas de dizer aquelas aceitadas/aceitas e usadas pelos grupos mais
cultos da sociedade. Correo quer dizer aqui prestgio social de cultura.
29
Embora seja palavra etimologicamente masculina (o grama), diz-se hoje,
corretamente, a grama, duzentas gramas, etc. isto no obstante, mantm-se o gnero
masculino nos mltiplos e submltiplos: o quilograma, um miligrama.
Em outro fragmento retirado do autor, sobre o emprego dos pronomes pessoais do
caso reto e formas oblquas, Rocha Lima (1985, p. 285) diz que so erros comuns,
generalizados e condenveis formas oblquas do tipo:
(19) So erros comuns dar forma oblqua ao pronome sujeito de verbo no infinitivo: ... para mim fazer... (para eu fazer).
E dar forma reta aos pronomes mim e ti em regime preposicional: Tudo ficou
resolvido entre mim e ti devemos dizer.
J no exemplo:
(20) Entre eu ir agora e voltar amanh... O caso diverso: no o pronome que est regido pela preposio, mas a frase toda ir agora eu.
Cumpre ter sempre em vista o carter reflexivo dos pronomes si e consigo para
evitar erros muito generalizados, alis tolerados, se no defendidos por gramticos
lusitanos. condenvel o emprego de si e consigo em construes como estas:
(21) Quero falar consigo. Trouxemos um presente para si. Isso no depende de si. Ele ir entender-se consigo.
Tais pronomes reflexivos- so de legtimo emprego quando se referirem ao prprio
sujeito da orao: criatura egosta; s pensa em si. Leve consigo quanto seu.
Sobre a concordncia de casos particulares, como por exemplo, sujeitos unidos por
nem, Rocha Lima (1985, p. 364) diz o seguinte:
caso difcil de disciplinar; mas pode-se ter por norma empregar o verbo no plural
quando os sujeitos so da 3 pessoa. Exemplos:
(22) Nem a natureza, nem o demnio deixaram a sua antiga posse. (Manuel Bandeira).
(23) Nem a resignao, nem o consolo so possveis para ti neste momento. (Alexandre Herculano).
Ainda no captulo da concordncia verbal, Rocha Lima (1985, p. 374-375) faz
consideraes gerais sobre algumas irregularidades como a concordncia ideolgica.
A concordncia campo vastssimo, em que constantemente entram em conflito a
rigidez da lgica gramatical e os direitos superiores da imaginao e da
sensibilidade. Razes de ordem psicolgica, ou esttica, acutilam fundo, por vezes,
as normas que a disciplina gramatical estabeleceu por boas e inviolveis.
Mais adiante, compreende a concordncia mental, a snese ou silepse como desvio:
So desvios, quase sempre inconscientes, que correspondem a matizes do
sentimento e da ideia. O estudo e explicao dessas irregularidades faz parte de uma
cincia especial chamada Estilstica.
Acompanhemos o raciocnio e os mtodos de um estilista. [...].
(24) A formosura de Pris e Helena foram causa da destruio de Troia. (Heitor Pinto).
(25) Os povos desta ilhas de cor baa e cabelo corredio. (Joo de Barros). (ROCHA LIMA, 1985, p. 375).
Rocha Lima (1985) dispe da Estilstica para explicar formas de concordncia no
aceitas pela gramtica disciplinar. Diz o gramtico que a concordncia ideolgica e afetiva
tem sido cada vez mais restrita por fora da autocrtica coercitiva que a gramtica impe aos
30
que escrevem (p. 376). Essa coero contribui para maior ordem e nitidez de expresso,
porm gera escassez de audaciosos artistas, escritores, prosadores, poetas, pois no ousam
transcender os limites em seus momentos de inspirao e de entusiasmo.
Para finalizar a exposio de regras a partir de explicaes disciplinares e coercitivas,
apresentamos adiante a regncia do verbo preferir, conforme Rocha Lima (1985, p. 408):
No se diz preferir uma coisa que ou do que outra.
Em nota de rodap, o gramtico afirma que o verbo preferir... do que no se
estabilizou nem na escrita dos prosadores/poetas modernistas Se bem seja sintaxe usual na
lngua falada, preferir... do que no alcanou estabilizar-se nem na lngua literria dos
Modernistas de vanguarda, entre os quais s apareceu esporadicamente. (p. 408).
Rocha Lima (1985, p. 408) baseia-se na explicao dada por Mrio Barreto: Preferir,
construdo com que ou do que, s se explica, enquanto a mim, por uma falsa analogia, por
influncia de outra locuo: querer antes. Mas, segundo Mrio Barreto, preferir e querer
antes no tm a mesma sintaxe. Assim, a construo pura : Prefiro morrer a viver, posto
que se diga muito bem: Antes quero as mas que os morangos.
A gramtica de Rocha Lima (1985) nos revela uma caracterstica muito presente no
conjunto das obras gramaticais aqui examinadas que corresponde exatamente defesa de um
falar e escrever correto, tendo como parmetro, modelo, a produo literria de escritores de
autoridade e prestgio. Porm, relevante dizer que as noes de certo e errado na exposio
acima foram poucas e atenuadas ou, nos termos de Faraco (2011), podemos no mximo dizer
que seu discurso modernoso, s vezes, solicitando ao leitor uma leitura implcita como no
exemplo (19) pra mim fazer a forma errada e entre parntese para eu fazer a forma
correta ou mesmo em casos mais explcitos quando o autor utiliza termos do tipo devemos
dizer e no se diz ou ainda quando explica que tal uso corrente na lngua falada, como
o caso da regncia do verbo preferir + do que, mas condenvel porque no alou na pena
dos escritores literrios.
2.3 GRAMTICAS PEDAGGICAS E MANUAIS
No novidade dizer que as noes de certo e errado difundidas nas
gramticas/manuais tradicionais permeiam o cotidiano e os modos de pensar o brasileiro a sua
prpria lngua materna. Como exemplos, apresentaremos os ttulos de algumas obras que
trazem a noo de correo explicitamente, e de outra que se contrape ao erro: de um lado,
temos No erre mais e 1000 erros de portugus da atualidade, de Sacconi (1977, 1990),
31
Esto a assassinar o portugus (1983)17; de outro lado, temos No errado falar assim: em
defesa do portugus brasileiro, de Bagno (2009).
A expresso isso no existe na lngua muito conhecida e expressada quando
algum quer dizer que um uso que foge do padro est errado, da simplesmente no existir na
lngua. Alm dessa, outras expresses so tambm corriqueiras no senso comum e, sobretudo,
no discurso de gramticos ou simpatizantes defensores da lngua. So exemplos os ttulos
das obras mencionadas acima: no erre mais, 1000 erros de portugus, esto a assassinar a
lngua e etc. Esses termos so ttulos de obras, manuais que ensinam o falar correto, sem
erros; que garantem a sobrevivncia da lngua e no seu assassinato.
Diferentemente do que encontramos, nos gramticos acima analisados, em Sacconi
(1988), peculiar expresses como nunca voc diz assim, isso no existe na lngua. Outra
diferena tambm quanto aos exemplos expostos para explicar as regras. Os exemplos no
so retirados de escritores literrios, mas como Sacconi (1988) diz so, muitas vezes, simples
e corriqueiros, outras constituem verdadeiras mensagens de experincia e saber, que
propiciam reflexo e quase sempre temas de redao18.
Vale frisar que, assim como Cunha e Cintra (1985), Rocha Lima (1985), Cegalla
(1998) e Almeida (2005), Sacconi (1988) apresenta a mesma padronizao de organizao de
sua gramtica, tendo o seu sumrio constitudo resumidamente de: noes de fontica e
fonologia/ortografia, estrutura, formao e classes das palavras, frase, orao e perodo,
pontuao, significao das palavras e figuras e vcios de linguagem. Essa varincia tem
explicao na adoo da nomenclatura gramatical brasileira.
As noes de certo e errado so expostas em Sacconi (1988) de forma explcita. O
autor apresenta dois tpicos logo aps a exposio das regras: principais dvidas sobre o
assunto e exerccios de fixao. Vejamos agora alguns trechos retirados do manual em
anlise.
Quanto ao emprego dos pronomes possessivos, Sacconi (1988, p. 135) afirma que:
No h necessidade nenhuma de dizer machuquei o meu dedo, porque o ouvinte
no vai entender que o dedo de outra pessoa s porque se deixou de usar o
possessivo. Quando o dedo for de outra pessoa, naturalmente se usar: Machuquei o
dedo dele (ou dela). Outros exemplos:
(26) Rapei a cabea. (e no: Rapei a minha cabea) (27) Vou escovar os dentes. (e no: Vou escovar os meus dentes).
No que diz respeito sintaxe de concordncia, Sacconi (1988, p. 284-285) explica as
regras tendo como base termos do tipo: concordncia boa? Voc nunca vai construir assim,
17 Obra portuguesa: Esto a assassinar o portugus! 17 depoimentos. Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1983. 18 Ver o tpico Apresentao de Sacconi (1988).
32
irrecomendado, voc no pode fazer a concordncia, voc dever, no se usa, no existe,
assim e no. O autor tambm comenta que usar uma linguagem coloquial para que o leitor
possa assimilar melhor as regras. H, nesse sentido, sempre uma preocupao em levar o
aluno a conversar com o livro, por isso, sempre uma referncia ao leitor (como voc).
Convm mencionar uma observao, sobre a relao que o gramtico estabelece com o leitor
subestimando-o, ao explicar as correes:
Trataremos dos principais casos, sempre de forma simples, usando uma linguagem
coloquial, a fim de que voc possa guardar melhor o que aprendeu.
Tomaremos muitas vezes como ponto de referncia uma construo ou uma frase
pertencente lngua cotidiana, lngua do dia-a-dia, para lhe ensinar a norma culta,
ou seja, a construo da lngua do padro culto. (SACCONI, 1988, p. 284).
No exemplo (28) Comprei abacate e melo maduro, Sacconi (1988, p. 284-285)
pergunta e responde:
concordncia boa? . Quando o adjetivo modifica dois ou mais substantivos do
mesmo nmero (abacate e melo esto no singular), independentemente do gnero
de ambos, pode concordar com o substantivo mais prximo. [...] Voc poder
perguntar: mas no posso usar o adjetivo no plural? Tambm pode: (28) Comprei
abacate e melo maduros. [...]
Note: quando os substantivos so de gneros diferentes, o masculino prevalece.
Claro que voc nunca vai construir assim: (29) Veio ao supermercado com melo e
pra estragadas. [...].
Se, porm, o adjetivo vier antes dos substantivos, a concordncia obrigatria com
o substantivo mais prximo. Exemplos: (30) Comprei maduro abacate e melo e
(31) Trouxe da feira importada pra e ma. Nesse caso o plural irrecomendado.
(grifos do autor).
Para explicar o seguinte exemplo: (29) Passei dia e noite fria na Europa, diz Sacconi
(1988, p. 285):
No, nesse caso voc no pode fazer a concordncia com o substantivo mais
prximo. Por qu? Porque os substantivos so antnimos (dia e noite). Sempre que
isso acontecer, o adjetivo dever ir obrigatoriamente ao plural. Portanto: (30) Passei
dia e noite frios na Europa.
Outros exemplos de Sacconi (1988, p. 289):
(31) Pois j estou com menas curiosidade. Menas no, menas nunca! Use sempre menos, revelando que tem mais
conhecimento da nossa lngua. Exemplos (32) Estou com menos curiosidade. Hoje
ela veio com menos roupa. Mais amor e menos confiana.
Sacconi (1988, p. 366-367) apresenta vcios de linguagem do dia a dia:
(33) Neste ano o Natal vai cair de sbado
No, nesse caso tambm no se usa a preposio de, que dever ser substituda pela
contrao num ou numa: (34) Neste ano o Natal vai cair num sbado.
(35) No viajei por causa que estou doente. Por causa que no existe. Use porque:
(36) No viajei porque estou doente.
Em outros exemplos, temos:
33
(37) A nenen est com sapinho. A nenen ainda no nasceu; sapinho sapo pequeno.
Ento, ser melhor usar o que existe: O nenen est com sapinhos.
(38) Voc tirou raio X do brao? Raio X no existe, ningum tira. O que temos so
raios X. fora disso asneira.
(39) Tambm no se deve perguntar: O que voc tem na vista? Pergunta-se: O que
voc tem no olho? (SACCONI, 1988, p. 374-375).
O autor no expe explicitamente sua compreenso de lngua/norma, embora anuncie
os termos norma culta e lngua do padro culto; suas explanaes das regras tambm no se
baseiam na escrita dos escritores literrios, como ele mesmo disse, so muitas vezes com base
na sua experincia, possivelmente como professor de lngua portuguesa, alm de tratar regras
supostamente erradas com tom de brincadeira. Esse autor se encaixa no que Faraco (2008,
2011) chamou de uma tradio de norma curta que, para Faraco (2011, p. 268), So
manuais que emitem juzos sempre categricos sobre os fatos lingusticos; manuais que tm
uma atitude sempre condenatria ( erro, e pronto). Alm dessa atitude condenatria,
acrescentamos o que o linguista diz ser tal discurso recheado de expresses cheias de
graolas, vozes iradas, tendo como inteno desqualificar o falante pela sua linguagem.
Segundo Savioli (2014), as noes de certo e errado so indefinidas e desencontradas
nas gramticas tradicionais, como por exemplo, apoiando-se em julgamentos de
correo/incorreo nos usos consagrados pelos clssicos. No caso de Sacconi (1988),
acreditamos que se trata do que Savioli (2014, p. 137) chama de conselho do prprio autor
para justificar a correo (ele a autoridade), pois de acordo com o autor Havia a aceitao
consensual, embora no formalizada, de que o julgamento da correo idiomtica era
atribuio de um conselho de gramticos, algo como um supremo tribunal da correo.
Cegalla (1998), semelhante a Cunha e Cintra (1985) e Rocha Lima (1985), organiza
sua gramtica em cinco partes distintas: fontica (ortografia), morfologia, semntica,
sintaxe e estilstica, mas com distines, como, por exemplo, Cegalla (1998) utiliza o termo
fontico, no sentido tradicional, sem colocar o par fontica/fonologia. Outra diferena
tambm que no h em Cunha e Cintra (1985) e nem em Rocha Lima (1985) uma parte
destinada ao estudo da semntica. Convm mencionar algumas informaes dadas pelo
estudioso no prefcio e na introduo da obra.
Cegalla (1998) denomina sua gramtica de normativa e a considera como um
instrumento para disciplinar a linguagem e para alcanar um ideal da expresso oral e
escrita. Em outras palavras, diz que este manual deve auxiliar para os que aspiram a falar e
escrever com acerto e elegncia (p. 14). A gramtica normativa:
Enfoca a lngua como falada em determinada fase de sua evoluo: faz o registro
sistemtico dos fatos lingusticos e dos meios de expresso, aponta normas para a
34
correta utilizao oral e escrita do idioma, em suma, ensina a falar e escrever a
lngua-padro corretamente. (CEGALLA, 1998, p. 16).
Segundo Cegalla (1998), houve a preocupao de expor os fatos lingusticos em
harmonia com o atual estgio evolutivo da lngua, bem como a extrao de exemplos e
abonaes das principais obras literrias (bons escritores) e de autores contemporneos.
possvel perceber certos termos que remetem s noes de erro e acerto em Cegalla
(1998), tais como a gramtica normativa deve ensinar a falar e escrever corretamente a
lngua padro. H, em Britto (2003), uma explicao sobre Cegalla (1998), sobre a clara
posio insustentvel, etnocntrica e preconceituosa deste estudioso como smbolo do modelo
conservador da educao lingustica. Britto (2003, p. 20) critica o argumento categrico de
que a gramtica representa e ensina a existncia de normas de polidez universais, assim, nas
palavras do gramtico conservador maldizer da gramtica seria um despropsito quanto
malsinar os compndios de boas maneiras s porque preceituam as normas de polidez que
todo civilizado deve acatar (p. 14). oportuno agora fazermos uma anlise do uso desses
termos na obra em si, com o objetivo de explicar tais termos para a exposio das regras
gramaticais.
Cegalla (1998, p. 410) explica a seguinte regra de concordncia do verbo passivo:
O verbo concorda com o seu sujeito quando apassivado pelo pronome apassivador
se:
(40) Precisavam-se astcia e coragem. (Gustavo Barroso)
(41) Deviam-se reduzir ao mnimo as relaes com o poder pblico. (Ciro dos
Anjos). [...].
Observao: o gramtico diz que h na literatura moderna exemplos em contrrio,
porm no devem ser seguidos:
(42) Vendia-se seiscentos convites e aquilo ficava cheio. (Ricardo Ramos)
(43) Em Paris h coisas que no se entende bem. (Rubem Braga).
Essa parte Observao frequente na gramtica e apresenta funes variadas, como
explicaes das regras, s vezes com censura, isto , apresentando um uso como errado,
como, para dizer que tal uso ocorre na linguagem coloquial, vulgar e outras vezes para dizer
que alguns escritores literrios contrariam a regra correta e como tambm apenas
acrescentando informaes sobre determinada regra ou indicando outros captulos para
explanaes mais detalhadas.
A exemplo de Cunha e Cintra (1985), Cegalla (1998, p. 411) tambm na seo que
trata dos verbos impessoais, destaca o uso generalizado do verbo ter, impessoal, por haver,
existir, na lngua popular brasileira.
(44) Soube que tem um cavalo morto, no quintal. (Carlos Drummond de Andrade).
(45) verdade. Tem dias que sai ao romper de alva e recolhe alta noite, respondeu
ngela. (Camilo Castelo Branco). [...].
35
Existir no verbo impessoal. Portanto:
(46) Nesta cidade existem (e no existe) bons mdicos.
(47) No deviam (e no devia) existir crianas abandonadas.
Sendo tambm uma obra de natureza didtica j que destinada aos estudantes e
estudiosos da lngua portuguesa, convm mencionar as ideias de correo presentes na parte
Exerccios. Foi nessa seo que mais encontramos os termos19 erro, certa ou errada,
correo, corretamente, inaceitvel, norma culta, linguagem coloquial20. Vejamos nos
fragmentos abaixo o uso dos termos acima mencionados:
Assinale o nico perodo em que h erro de concordncia verbal.
Aponte o perodo em que a concordncia inaceitvel.
Faa concordar corretamente os verbos em destaque nos tempos indicados.
Anteponha aos perodos as letras C ou E, conforme a concordncia verbal estiver
certa ou errada.
Assinale as frases em que as concordncias postas entre parnteses esto
erradas.
Complete cada perodo com uma das formas do verbo ser propostas entre
parnteses, atendendo concordncia preferida pela norma culta.
Corrija os erros de concordncia verbal e nominal. (CEGALLA, 1998, p. 417-426).
Para ilustrar usos diferenciados pelo autor a partir da distino entre lngua culta e
coloquial ou mesmo a partir do que censurado e erro na lngua, apresentaremos
explicaes sobre a regncia dos verbos assistir, chegar, implicar, preferir e simpatizar.
Em relao regncia do verbo assistir com acepo de presenciar, estar presente a
transitivo indireto (com a preposio a). Nesta acepo, segundo Cegalla (1998, p. 436), o
verbo no admite a voz passiva, assim em vez de em (48) A festa foi assistida por altas
autoridades, prefira-se dizer (49) festa assistiram altas autoridades.
Cegalla (1998, p. 437) faz a distino entre lngua culta e coloquial. Na regncia do
verbo chegar, na lngua culta, o adjunto adverbial de lugar regido da preposio a:
(50) Chegamos a (e no em) So Paulo pela manh. [...].
(51) Ao alvorecer devemos chegar s portas de Jerusalm (Ea de Queirs). Na
linguagem coloquial, admite-se a preposio em:
(52) Chegamos em So Paulo no dia seguinte.
(53) Ele chegou na cidade ao meio-dia.
O verbo implicar como transitivo direto, constri-se com objeto direto, na acepo de
trazer como consequncia, acarretar:
(54) A assinatura de um contrato implica a aceitao de todas as suas clusulas.
Nesta acepo, censurada a regncia indireta (preposio em): A quebra de um
compromisso implica em descrdito. (CEGALLA, 1998, p. 441).
19 Encontramos o termo adequado nessa seo como em: Escolha as concordncias adequadas para completar
as frases (p. 400). 20 Outros termos empregados pelo gramtico so: forma ideal da expresso oral e escrita, lngua padro,
conforme falam e escrevem as pessoas cultas na poca atual, na lngua/norma culta, na linguagem vulgar,
familiar, na fala popular, lngua hodierna, as normas.
36
Para Cegalla (1998, p. 444-446), o verbo preferir como transitivo direto e indireto
exige a preposio a:
(55) o que eu faria, se ela me preferisse a voc. (A. Olavo Pereira)
(56) Tive uma suspeita e preferi diz-la a guard-la. (Machado de Assis)
Observao: Esse verbo no se constri com a locuo conjuntiva do que nem com o
advrbio mais:
(57) Prefiro trabalhar a passar fome (certo)
(58) Prefiro trabalhar do que passar fome (errado)
Quanto ao verbo simpatizar, o autor afirma que este no pronominal. No se dir,
portanto, (59) simpatizei-me com ele, mas simpatizei com ele.
Observando a anlise, percebemos algumas caractersticas da gramtica desse autor.
Dentre elas, destacamos o conceito de gramtica normativa tal gramtica ensina a falar e
escrever corretamente a lngua padro - um conceito que inclusive foi encontrado nos
instrumentos normativos de Cunha e Cintra (1985), Rocha Lima (1985), Almeida (2005).
Cegalla (1998) utiliza a expresso normas para a correta utilizao da lngua oral e escrita,
na qual o termo normas est no plural. Vimos que os principais termos utilizados por ele para
fazer a correo das regras so descritos da seguinte forma: os exemplos considerados
errados encontrados nas obras dos escritores modernos no devem ser seguidos; alguns
usos so generalizados na lngua popular brasileira; prefira-se dizer assim e no assim; tal
acepo censurada. Para concluir a anlise, destacamos ainda a clara distino estabelecida
pelo autor entre os termos lngua culta como falam e escrevem as pessoas cultas e lngua
coloquial a que deve ser censurada, corrigida, a que no deve ser seguida.
No prefcio de Almeida (2005), h algumas informaes que julgamos necessrias
para a compreenso do autor em relao s noes de certo e errado. O autor inicia sua
exposio comentando sobre a importncia de ensinar gramtica, pois, ao contrrio do fato
histrico, o fato lingustico necessita de explicao, justificao, de exemplos, arguio.
Almeida (2005, p. 4) diz que por no saber analisar que um indivduo coloca mal um
oblquo, flexiona mal um verbo, pratica um barbarismo? Nada disso: to-somente por
desconhecer as leis do idioma.
Almeida (2005, p. 4), ao comentar sobre o que significa a anlise por diagrama que,
para o autor, a anlise fruto do estudo da gramtica, afirma que tal anlise mecanizao
improfcua e nefasta do raciocnio. Para ele, a anlise por diagrama no traz conhecimento
ao aluno e nem evita barbarismos crassos de concordncia, de regncia, de colocao. (p.
4), pois se isso acontecesse ele seria o primeiro a defender e a propalar tal proposta de anlise.
Seguem suas concepes de lngua e ensino:
O professor deve ser guia seguro, muito senhor da lngua; se outra for a orientao
de ensino, vamos cair na lngua brasileira, refgio nefasto e confisso nojenta de
37
ignorncia do idioma ptrio, recurso vergonhoso de homens de cultura falsa e de
falso patriotismo. Conhecer a lngua portuguesa no critrio de gramticos, seno
dever do brasileiro que preza sua nacionalidade. erro de consequncias
imprevisveis acreditar que s os escritores profissionais tm a obrigao de saber
escrever. Saber escrever a prpria lngua faz parte dos deveres cvicos. A lngu