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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIDA CONSAGRADA FEMININA NO BRASIL: SER
FREIRA ANTES E DEPOIS DO CONCÍLIO VATICANO II
Leandro Neri Brito1
Lina Maria Brandão de Aras2
Resumo: Para muitas pessoas, ser freira significa uma total alienação, principalmente se for levada em consideração a
situação das mulheres na Igreja Católica Apostólica Romana, pois esta instituição religiosa, apesar de todos os avanços
e renovação pelos quais passou, sobretudo nas últimas décadas do século XX, com a realização e a aplicação do
Concílio Ecumênico Vaticano II, continua sendo uma instituição machista e patriarcal, onde o poder, a liderança e a
tomada de decisões estão concentrados nas mãos dos homens, principalmente dos homens ordenados- diáconos, padres
e bispos. Porém, um olhar atento para a História deixa evidente que ser Freira nem sempre foi sinônimo de alienação,
submissão e opressão; em muitos casos, a vida consagrada feminina foi um caminho de emancipação e libertação para
muitas mulheres que, ressignificando a vida conventual, conseguiram transpor as barreiras impostas a elas pelo
patriarcado. A vida consagrada feminina, após o Concílio Vaticano II, passou por profundas transformações em todos
os sentidos, elaborando assim uma nova maneira de ser freira, fato que ressignificou os votos religiosos e contribuiu
para a inserção das irmãs em comunidades presentes nos recantos mais pobres e sofridos da sociedade à luz da Teologia
da Libertação e da Teologia Feminista.
Palavras-chave: Freiras; Igreja Católica; Feminismo.
A vida religiosa na Igreja Católica Apostólica Romana teve início no século IV, por
iniciativa de homens e mulheres que, diante da decadência generalizada do Cristianismo da época,
propuseram um “processo mais radical de viver a pureza do Evangelho” (NERY, 2001, p.28).
Segundo Nery (2001), a história da vida religiosa pode ser dividida em três ciclos: Monaquismo,
Ordens Mendicantes e Fase da Diaconia. As mulheres estiveram presentes em todos os ciclos de
maneira ativa, criativa e inovadora, embora as suas contribuições tenham sido, de maneira geral,
desvalorizadas, invisibilizadas e silenciadas pela História, principalmente pela História da Igreja,
marcada profundamente pelo machismo e pelo sexismo.
Ao longo de sua história, a vida religiosa passou por diversas crises, ressignificações e
transformações, destacando-se nesse processo as que ocorreram a partir das aplicações das
orientações do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII, realizado na década de 1960.
Tal concílio foi determinante para a renovação da Igreja em muitos aspectos, dentre eles a liturgia, a
eclesiologia, a relação da própria Igreja com a sociedade civil e mudanças na visão católica sobre o
papel e a importância da mulher dentro e fora da Igreja.
O presente artigo pretende, portanto, apresentar características gerais do modelo de vida
religiosa feminina que vigorou na Igreja, especificamente na realidade brasileira, durante o século
1 Doutorando do PPGNEIM/UFBA, professor de História da SEC/BA, Salvador, Bahia. 2 Professora do PPGNEIM e do PPGH/UFBA, Salvador, Bahia.
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XIX até meados do século XX, denominado de vida religiosa tradicional, bem como as mudanças
ocorridas a partir do Concílio Vaticano II e que influenciaram esse modelo e suas alterações.
Características da vida religiosa tradicional
A vida religiosa feminina tradicional era concebida como um estado de perfeição e, nesse
sentido, era uma instituição contraposta ao mundo. Assim, a mulher que professava os votos
religiosos deveria fugir do mundo, pois este era considerado um lugar de imperfeição, caos,
degeneração e pecado. Em outras palavras, a vida religiosa era assumida como “fuga mundi” pelas
pessoas que aspiravam à perfeição e, por esse motivo, era necessária a separação e distanciamento
entre o convento e a sociedade.
A organização conventual, de tipo rígido, com horários fixos e espaço físico limitado,
proporcionava o controle quase total dos membros da instituição e funcionava de maneira
praticamente inflexível nas congregações europeias de vida apostólica que chegaram ao Brasil a
partir do século XIX. Apesar dessas congregações não viverem a clausura com o rigor imposto às
ordens religiosas monásticas, as prescrições nelas existentes e o controle sobre seus membros
indicavam que a visão eclesial sobre a mulher não havia mudado. Para a Igreja, as religiosas
precisavam de proteção e vigilância para que elas pudessem progredir na vida de perfeição, vencendo as
tentações oferecidas pelo século (BRUNELLI, 1988).
Os principais valores cultivados na vida religiosa tradicional eram: obediência total aos
superiores; a humildade, confundida muitas vezes com humilhação, para se alcançar a perfeição; a
negação do corpo e da sexualidade; e o esquecimento de si para melhor servir à Igreja sem nada
contestar ou questionar. Entretanto, registram-se situações em que esses valores não foram
cultivados, sobretudo por mulheres que, por diversos motivos, foram forçadas a assumir a vida
religiosa.
Os votos religiosos de castidade, pobreza e obediência no modelo tradicional de vida
religiosa eram vivenciados como elementos essenciais que sustentavam a estruturação rígida e
hierarquizada do modo de ser freira antes do Concílio Vaticano II, pois eles eram compreendidos a
partir da mundivisão religiosa que determinava a dicotomia entre a terra e o céu, por isso era
importante o insulamento dos conventos e dos seus membros, considerados “profissionais da
perfeição” que deveriam se distanciar ao máximo da realidade terrena.
De maneira geral, os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência eram vividos
pelas religiosas de forma moralista, infantil e individualizada. Através deles, as irmãs negavam a
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sua humanidade, principalmente os aspectos relacionados à sexualidade e não constituíam relações
interpessoais profundas, pois eram extremamente dependentes da autoridade dos superiores e
alienadas sobre questões práticas da vida cotidiana como, por exemplo, administrar dinheiro mesmo
que em pequenas quantias ou saber o preço de alimentos e outros itens (NUNES, 1985). Essas
características da vida religiosa estão situadas no processo de romanização da Igreja Católica
ocorrido no Brasil a partir de 1840, que possuía, entre seus objetivos, disciplinar a vida conventual
com o auxílio de congregações europeias, seguindo as orientações e o conservadorismo do
ultramontanismo, visto que nos primeiros séculos da vida religiosa no Brasil, as freiras viviam de
maneira pouco austera os conselhos evangélicos (NASCIMENTO, 1994).
De acordo com o voto de pobreza a freira deveria viver de maneira austera e com
parcimônia, exercendo o seu apostolado gratuitamente e sem fazer uso do dinheiro, salvo nas
situações autorizadas pelos superiores. As religiosas gozavam de uma vida material estável,
proporcionada pela instituição e, nesse contexto, consideravam ter cumprido com as exigências do
voto de pobreza se, a nível pessoal, restringissem austeramente suas necessidades e obtivessesm
licença para usar os bens conventuais. Assim, nada lhe pertencia pessoalmente e tudo que
desfrutavam tinha a chancela da autoridade (MIRANDA, 1999).
O voto de castidade era praticado como um ato de entrega incondicional e total a Deus e
estava interligado à virgindade, à renúncia ao casamento e à negação da realidade sexual das freiras.
Além disso, este voto não consentia, de maneira geral, o estabelecimento de relações interpessoais
profundas e intímas entre as freiras de um convento e suas coirmãs, por isso, nesses espaços, o que
vigorava eram relações superficais entre mulheres que viviam juntas durante anos, mas não se
conheciam profundamente, não demonstravam afetos umas pelas outras e sempre desconfiavam de
gestos e palavras que pudessem colocar em risco a vivência da castidade professada. Tal situação
era estendida às pessoas assistidas pelas freiras em hospitais, escolas, asilos e orfanatos (NUNES,
1985).
No contexto tradicional da vida religiosa, marcado profundamente pela hierarquização das
relações, o voto de obediência era sinônimo de respeito total e incontestável aos superiores, ou seja,
às madres, aos confessores espirituais, aos padres, aos bispos e, em última instância, ao papa; a
importância dada à obediência era tão contundente que se afirmava que “ser obediente caracterizava
a boa religiosa” (NUNES, 1985, p. 46).
Neste modelo de vida religiosa, a voz da superiora ou do superior era acolhida como a voz
de Deus que determinava o que a freira deveria fazer, para onde ela deveria ir ou em que ela deveria
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trabalhar. Em outras palavras, havia uma sacralização da obediência que permitia a manutenção da
estrutura rígida e nada democrática da vida religiosa tradicional. Tal sacralização estava em
consonância com a ideologia católica sobre a mulher, aliada a sua posição subalterna na sociedade,
o que fortalecia o caráter de dependência da freira em relação às suas superioras e aos homens da
Igreja (MIRANDA, 1999).
A vida religiosa tradicional teve longa duração porque a sua legitimidade era sustentada por
elementos simbólicos apropriados ao modelo de Igreja da época, uma Igreja conservadora,
moralista, antimoderna e antiliberal, que servia às classes dominantes, sobretudo às oligarquias
brasileiras, e determinava para as mulheres um lugar de subserviência de acordo com os interesses
do patriarcado.
Os elementos citados eram basicamente: referência ao divino para sacralizar ações, exercício
de poder e desenvolvimento de relações assimétricas; concepção de que a instituição religiosa era
uma entidade a-histórica, natural e imutável, e a ela as pessoas deveriam se adaptar, anulando-se
quase que totalmente; e visão negativa do mundo considerado um lugar profano e pecaminoso em
contraposição ao convento, tido como um ambiente sagrado, onde imperava o bem e a perfeição.
O novo jeito de ser freira a partir do Concílio Vaticano II
O modo tradicional de ser freira passou por transformações a partir do Concílio Ecumênico
Vaticano II que, a convite do Papa João XXIII, convocou a Igreja Católica a promover mudanças no
seu jeito de ser, de atuar e de evangelizar num mundo que passava por fortes e inegáveis
transformações naquele momento histórico, a segunda metade do século XX.
[...] a realização do Concílio Vaticano II, nos anos 60, inaugura um tempo de grandes
transformações a partir de uma maior abertura da Igreja para o mundo contemporâneo: a
partir da ideia da Igreja como povo de Deus, a compreensão do próprio trabalho pastoral se
modifica, o cristão deveria fazer-se presença no meio do mundo: ser inserido no mundo
(MIRANDA, 1999, p. 520).
Podemos dizer que a renovação já se vinha sendo gestada dentro dos conventos, resultado do
mesmo movimento que gerou o Vaticano II e, da parte da sociedade, da fermentação político-
econômica, social e cultural da época. Bastou que a Igreja, no Concílio, desse a abertura necessária
às mudanças, para que os religiosos se lançassem ávidos às transformações que urgiam (NUNES,
1985).
A vida religiosa foi afetada pelas discussões e decisões conciliares, sobretudo, porque o “seu
estatuto ficou igualado ao do povo de Deus, quando a vida religiosa deixou de ser vista como um
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estado especial de santidade, o que a distinguia dos simples fiéis no âmbito da Igreja” (GARCIA,
2014, p. 120). Deste modo, a vida religiosa foi convocada pelo Concílio Vaticano II a renovar-se a
partir do retorno às suas fontes fundacionais:
A conveniente renovação da vida religiosa comporta uma volta às fontes de toda a vida
cristã, à inspiração original de cada um dos institutos religiosos e à sua adaptação às
condições dos tempos que mudaram. Essa renovação deve ser feita sob o impulso do
Espírito Santo e sob a orientação da Igreja (Perfectae Caritatis nº 2).
Nesse processo, as religiosas, de maneira especial, dedicaram-se ao movimento renovador
da vida consagrada (MIRANDA, 1999), por isso, as congregações e as ordens femininas, acolhendo
o desafio de ressignificar o seu papel no interior da Igreja e no mundo, redirecionaram suas
estruturas, sua organização interna, suas ações e suas opções pastorais ante o apelo de renovação
proposto pelo Concílio.
Com exceção da Ordem Dominicana e, posteriormente, de um grupo significativo de
franciscanos, carmelitas e jesuítas, a maior parte das congregações e ordens religiosas masculinas
manteve-se, em geral, numa postura conservadora, apesar de todo o estímulo oferecido pela
Conferência dos Religiosos do Brasil, a partir dos anos 1960, para a renovação dos institutos
religiosos, através de publicações e cursos (AZZI, 1983). “A meu ver, foram as congregações
femininas que assumiram uma posição de vanguarda no movimento de renovação pastoral,
procurando reestruturar as suas atividades com os planos de pastoral do episcopado” (AZZI, 1983,
p. 21).
As mudanças ocorridas na vida religiosa foram orientadas e legitimadas pelos documentos
conciliares, principalmente pelo decreto Perfectae Caritatis, cujo conteúdo apresentou diretrizes
para a renovação da vida religiosa ao tratar de aspectos específicos como os votos religiosos, a vida
em comum, a clausura das monjas, o hábito religioso, a fundação de novos institutos, as
conferências de superiores maiores e as vocações religiosas, entre outros.
As mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II foram, de maneira geral, acolhidas e
colocadas em prática pelas congregações e ordens religiosas femininas, mas não de maneira linear e
simultânea, pois elas se configuraram como um difícil processo, permeado por crises, avanços e
retrocessos.
De acordo com Maria José Rosado Nunes (1985), as transformações ocorridas na vida
religiosa feminina a partir da segunda metade do século XX podem ser dividas em duas etapas: a
primeira, denominada de “renovação adaptativa”, que ocorreu entre os anos imediatamente pós-
conciliares até a primeira metade da década de 1970; e, a segunda, chamada de “inovação criativa”,
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que compreendeu o fim dos anos 1970 e estendeu-se até o início dos anos 2000. De acordo com
alguns autores, essa datação não é fixa, pois a vida religiosa continua sendo interpelada e
modificada pelo Concílio Vaticano II, mesmo depois de 50 anos da sua realização.
A etapa de renovação adaptativa caracterizou-se como um período de modernização das
estruturas conventuais, operacionalizado pelos quadros dirigentes das congregações e ordens
religiosas através dos capítulos de renovação, ou seja, através de reuniões especiais que cada
congregação ou ordem religiosa realizou para reelaborar sua organização interna. Esses capítulos de
renovação fundamentaram-se nos documentos conciliares, principalmente no decreto Perfectae
Caritatis.
Alguns elementos merecem destaque nessa primeira fase de renovação da vida religiosa
feminina e, por isso, serão apresentados a partir das análises de Nunes (1985), Azzi (1983) e
Miranda (1999):
- A descentralização do poder: Antes do Concílio Vaticano II, o poder numa congregação ou
ordem religiosa estava totalmente concentrado na pessoa dos superiores. Esse modelo de exercício
do poder foi substituído por estruturas que visavam a participação de todos dos membros dos
institutos religiosos nas tomadas de decisão.
- A vida religiosa passou a valorizar a individualidade da pessoa humana e a preocupar-se
com a realização pessoal de cada freira. Também nesse contexto, a psicologia adentrou o ambiente
da vida religiosa e contribuiu para o estabelecimento de novas e salutares relações comunitárias.
- Foi rompida a ordem sacral que determinava a mundivisão da vida religiosa e, com ela, a
concepção estática do mundo e da Igreja. Deste modo, as formas de oração pessoal e comunitária e
a espiritualidade como um todo ganharam novos conteúdos e expressões.
- As freiras começaram a usufruir de uma liberdade que antes não possuíam e este fato foi
demonstrado através de situações práticas do cotidiano: às irmãs foi permitido sair sozinhas quando
necessário, ter as chaves da casa, alterar horários preestabelecidos, lidar com dinheiro, fazer
compras, etc. Tal situação contribuiu para a profissionalização das religiosas, uma vez que elas
começaram a frequentar cursos técnicos e universitários. Muitas irmãs, a partir de suas aptidões,
desejo de realização pessoal e motivadas pela mentalidade moderna, optaram por cursos que não se
restringiam às áreas da saúde e da educação, fato determinante para que um número significativo de
freiras passasse a trabalhar em estabelecimentos não pertencentes às obras dos seus institutos
religiosos.
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- As comunidades religiosas organizaram-se de maneira inovadora: em pequenos grupos. As
numerosas comunidades de irmãs, antes concentradas nos grandes conventos e nas obras, como
colégios, asilos e hospitais, foram substituídas por pequenas comunidades que optaram por morar
em casas simples e até mesmo em apartamentos de bairros periféricos.
Através das pequenas comunidades, a vida religiosa feminina se abriu para o engajamento
pastoral, o que aproximou as congregações e ordens religiosas das Igrejas locais, ou seja, das
paróquias e dioceses, retirando as freiras do insulamento dos seus conventos e das suas obras
sociais, situação que apresentou pontos positivos e negativos:
Tornaram-se membros de equipes diocesanas de catequese e de liturgia, campos de especial
atenção dos bispos. As religiosas foram chamadas para realizar uma experiência inédita no
país: substituir, parcialmente, os vigários, em paróquias de pequenas cidades do interior.
[...] Comunidades de religiosas foram então constituídas, com essa finalidade, a partir da
iniciativa da hierarquia da Igreja. As pequenas comunidades de trabalho pastoral ficaram
mais dependentes das decisões do clero e, em contrapartida, estreitaram-se as relações entre
superioras religiosas e autoridades episcopais. Enfim, reforçou-se o controle clerical sobre a
vida religiosa feminina (NUNES, 2012, p. 502).
- Uma nova maneira de conceber e viver os votos religiosos surgiu a partir do Vaticano II e
se fez sentir desde os primeiros momentos do processo renovador da vida religiosa feminina, ou
seja, os conselhos evangélicos passaram por uma ressignificação: o voto de castidade deixou de ser
concebido como sinônimo de negação do corpo e da sexualidade humana, passando a ser
vivenciado com alegria e leveza.
Nesse processo, as freiras assumiram-se como mulheres, depositárias de corpo, sexualidade
e capacidade de estabelecer amizades tanto com homens como com outras mulheres, sem colocar
em risco o seu voto de entrega total a Deus.
Ser mulher é sentido agora como valor e dom a ser cultivado e colocado a serviço, e não
algo a ser reprimido, escondido, negado. A descoberta da outra e do outro, e a valorização
do relacionamento interpessoal com base, sobretudo, na amizade, criaram novos espaços e
possibilidades de amadurecimento para a mulher religiosa (BRUNELLI, 1988, p. 29).
Um sinal visível da nova maneira de se viver o voto de castidade foi a simplificação do
hábito religioso ou a sua substituição por roupas civis. Usar roupas comuns ou simplificar o hábito,
tornando-o mais feminino, passou a ser uma exigência do apostolado, bem como uma resposta às
interpelações secularizantes da vida religiosa no período pós-conciliar; além disso, as mudanças nas
vestimentas das freiras significava um “caminho privilegiado para a irmã experimentar e afirmar
sua identidade como mulher, sua liberdade e individualidade” (BRUNELLI, 1988, p. 31).
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A nova maneira de viver o voto de pobreza foi influenciada pela tomada de consciência do
valor e dos direitos das mulheres, desse modo, as freiras passaram a exercer trabalhos remunerados
e, portanto, a ter dinheiro em mãos, fato que auxiliou a mulher religiosa a conquistar liberdade,
autonomia e responsabilidade. Nesse processo, as comunidades religiosas reivindicaram de suas
superioras e superiores o direito de opinar sobre a administração dos bens dos institutos religiosos e
sobre o estilo de vida condizente com a opção de vida que fizeram. Muitas congregações
preocuparam-se em capacitar suas irmãs nas áreas administrativa e contábil.
A ressignificação do voto de obediência fez surgir nos institutos religiosos mecanismos de
participação de todos os membros nas decisões e exercício do poder, antes concentrado na pessoa
dos superiores e das superioras. Desse modo, em muitas congregações o título de superiora foi
substituído por coordenadora, animadora ou outro semelhante. Em diversas comunidades locais
aboliu-se a figura da superiora, passando a função para toda a comunidade.
As irmãs obtiveram o direito de eleger os quadros de governo de suas congregações e ordens
religiosas e, também, romperam com a dependência e a relação assimétrica com os confessores e
orientadores espirituais; essa ruptura fez surgir um relacionamento fundamento na confiança, na
colaboração mútua e na amizade entre freiras e orientadores espirituais. É importante registrar que a
função de orientação espiritual, monopolizada pelos homens ao longo da história da Igreja, a partir
desse período, passou a ser exercida também pelas mulheres, principalmente por religiosas.
A segunda etapa de renovação da vida religiosa feminina, denominada inovação criativa,
desenvolveu-se, no Brasil, no contexto da ditadura militar e das novidades ocorridas na Igreja da
América Latina, principalmente durante as décadas de 1960 e 1970, com as Conferências
Episcopais de Medellín e Puebla, o surgimento e a consolidação da Teologia da Libertação, da
Teologia Feminista e a efervescência das Comunidades Eclesiais de Base e a evangélica opção
preferencial pelos pobres.
As alterações sofridas pela vida religiosa feminina nas décadas de 1960 e 1970 seguiram
então de perto, em certo sentido, o que se passou na Igreja na mesma época. [...] A década
de 70 marcou significativamente a Igreja Católica no Brasil. Politicamente, após um
primeiro momento de entusiasmo com a instalação dos militares no poder, ela passou a
integrar o movimento civil de resistência ao regime de ditatorial militar. Por essa época,
surgiu um novo pensamento teológico, que procurava fundamentar-se numa análise
sociológica da realidade e era respaldado pelo patrimônio ideológico do catolicismo, com
seu ideal de aproximação dos pobres. Trata-se da Teologia da Libertação. A expressão
pastoral desse discurso teológico foram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Organizadas no contexto das paróquias tradicionais, desenvolveram-se, sobretudo, nas
áreas rurais e na periferia das grandes cidades, entre as camadas pobres da população
(NUNES, 2012, p. 503-504).
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A partir desse período, muitas freiras, desejosas de “ir aos pobres”, não de uma maneira
assistencialista como sempre fizeram, mas com a consciência político-social que compreendia a
pobreza como uma realidade histórica que poderia ser superada a partir da organização e das lutas
do povo, optaram pelos pobres, marginalizados e sofredores com a perspectiva de que
“comprometidos com os pobres, condenamos como antievangélica a pobreza extrema que afeta
numerosíssimos setores em nosso continente” (Conferência de Puebla, nº 1159).
Grupos de irmãs passaram a viver nas favelas, nas periferias e na zona rural, partilhando de
iguais condições de trabalho numa fábrica e em outros ambientes e adotando um estilo de vida
semelhante ao da maioria da população brasileira da época. Em outras palavras, as religiosas, na
segunda fase de renovação da vida consagrada, inseriram-se, radicalmente, nos meios populares.
A opção pelos pobres assumida pelas religiosas inseridas nos meios populares ganhou
contornos definidos e limites precisos. Neste contexto, ser freira nos meios populares, em
solidariedade e comunhão com o povo, significava “posicionar-se conscientemente, frente à
realidade das classes sociais e comprometer-se efetivamente com sua luta pela superação de sua
condição de classe dominada” (NUNES, 1985, p. 131).
Nem todas as congregações e ordens religiosas fizeram a opção pelos pobres e pelos meios
populares; muitas delas não passaram da primeira fase de renovação da vida religiosa, outras
levaram décadas até realizarem uma radical transformação em suas estruturas e no seu jeito de viver
os conselhos evangélicos, mas as que fizeram puderam vivenciar uma nova maneira de ser freira
que, nem de longe, lembrava a vida religiosa tradicional.
Viver no meio dos pobres, como os pobres e assumindo com eles/elas suas lutas por vida
digna, modificou algumas concepções sobre os votos religiosos, que já tinham passado por
transformações na primeira fase de renovação da vida consagrada feminina: o voto de pobreza
passou a ser vivenciado “na concreta opção pelos pobres e em estar no seu lugar social, o que se
desdobra na dupla dimensão do ético e do politico” (MIRANDA, 1999, p. 543); o voto de
obediência, compreendido a partir da dimensão da liberdade humana, deu prioridade às decisões
comunitárias numa tentativa de evitar o autoritarismo; e o voto de castidade abriu espaço para a
amizade, sobretudo com mulheres e homens das CEBs e dos movimentos populares, que passaram a
ser frequentados, animados e organizados pelas freiras dos meios populares; estas amizades foram
essenciais para o desenvolvimento da maturidade e da afetividade das irmãs fora dos limites de
convivência de seus institutos religiosos.
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Nesse processo, convivendo com as mulheres, testemunhando seus sofrimentos, suas dores e
suas esperanças, as irmãs foram despertadas para a necessidade de lutar pelos direitos das mulheres,
tanto no ambiente eclesial como na sociedade civil, por isso assumiram posturas feministas dentro
do contexto da vida consagrada, mesmo não usando essa terminologia, afinal, a prática das freiras
dos meios populares nessa fase de renovação da vida religiosa feminina, “se enquadra nas
características do segundo feminismo, que postula mudanças radicais na sociedade, para que
homens e mulheres possam viver como companheiros, promovendo relações simétricas, com base
na igualdade de direitos e deveres” (BRUNELLI, 1988, p. 36-37).
A história da vida religiosa demonstra que as mulheres tiveram uma participação
fundamental na origem, no desenvolvimento, na inovação e na renovação dessa instituição
reconhecida pela Igreja como dom do Espírito Santo. No entanto, suas atuações nem sempre foram
reconhecidas, valorizadas e devidamente estudadas; na verdade, “pouco ainda se conhece sobre a
vida dessas mulheres” (MIRANDA, 1999, p. 526).
Numa perspectiva feminista, este artigo dedicou-se a apresentar alguns aspectos sobre a
trajetória da vida consagrada feminina no Brasil e suas transformações suscitadas pelo Concílio
Vaticano II, com a intenção de contribuir para que esse tema, ainda tão marcado por preconceitos e
estereótipos, seja conhecido e discutido a partir de outras concepções cujos marcadores não sejam
as posturas patriarcais dos homens que escrevem a história oficial e governam a Igreja.
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VALLE, Edênio. O século XX interpela a vida religiosa brasileira: Guia para uma reflexão
histórica. Aparecida: Santuário, s/d.
Historical Aspects of Consecrated Female Life in Brazil: Being a Nun before and after the
Second Vatican Council
Astract: For many people, being a nun means total alienation, especially if the situation of women
in the Roman Catholic Church is taken into account, because this religious institution, despite all
the advances and renovations it has undergone, especially in the last decades of the 20th century ,
With the realization and application of the Second Vatican Ecumenical Council, remains a macho
and patriarchal institution where power, leadership and decision-making remain concentrated in the
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
hands of men, especially ordained men-deacons, priests, and bishops. However, a close look at
history makes it clear that being a Nun was not always synonymous with alienation, submission and
oppression; In many cases, the Consecrated Women's Life was a way of emancipation and
liberation for many women who, signifying convent life, managed to overcome the barriers
imposed on them by patriarchy. Since the Second Vatican Council, the Consecrated Life of Women
has undergone profound changes in all its senses, thus creating a new way of being a nun, a fact that
reaffirmed religious vows and contributed to the insertion of sisters in communities in the poorest
and suffered from society in the light of Liberation Theology and Feminist Theology.
Keywords: Nuns; Catholic church; Feminism