Post on 11-Jul-2016
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AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da Unicamp,
1992.
TRECHOS
Prefácio:
“[...] um dos [mitos] mais prejudiciais para a compreensão do papel exato
desempenhado por essas disciplinas [ciências da linguagem] no desenvolvimento
cultural da humanidade é inconstetavelmente o da “cientificidade”. P. 7
“Os comparatistas, considerando que sua disciplina era uma “ciência”, entendiam por aí
três coisas: i. ela perseguia um objetivo de conhecimento puramente desinteressado; ii.
ela construía a representação dos fenômenos lingüísticos; iii. ela não exercia – e não
devia exercer – nenhuma ação sobre esses mesmos fenômenos.” P. 7
“[...] quando e em que circunstâncias nasceram as disciplinas consagradas à linguagem?
Qual é o impacto sobre o desenvolvimento cultural humano? Quais são os grandes
movimentos?” p. 8
“[...] Os historiadores, os lingüistas e os filósofos habitualmente fazem desse
aparecimento [das ciências da linguagem] uma das causas do nascimento da escrita. [...]
sustento o contrário, a escrita que é um dos fatores necessários ao aparecimento das
ciências da linguagem, as quais remontam à virada dos terceiro e segundo milênios
antes de nossa era, entre os acadianos. [...] A segunda tese concerne ao que chamo de
gramatização [...]. Podemos formulá-la assim: o Renascimento europeu é o ponto de
inflexão de um processo que conduz a produzir dicionários e gramáticas de todas as
línguas do mundo (e não somente dos vernáculos europeus) na base da tradição greco-
latina. Esse processo de “gramatização” mudou profundamente a ecologia da
comunicação humana e deu ao Ocidente um meio de conhecimento/dominação sobre as
outras culturas do planeta. Trata-se propriamente de uma revolução tecnológica que não
hesito em considerar tão importante para a história da humanidade quanto a revolução
agrária do Neolítico ou a Revolução Industrial do século XIX.” P. 9
I- O nascimento das metalinguagens
“[...] Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo que seu modo de existência
real não é a atemporalidade ideal da ordem lógica do desfraldamento do verdadeiro, mas
a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber. Porque é limitado, o ato
de saber possui, por definição, uma espessura temporal, um horizonte de retrospecção
(Auroux, 1987b), assim como um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o
fazem trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com freqüência; ele
o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que atencipa
seu futuro sonhando-o enquanto o constrói. Sem memória e sem projeto, simplesmente
não há saber.” P. 11-12
“[...] Ser historiador é se colocar a questão global da mudança (porquê, como, quando) e
da essência dos objetos submetidos à mobilidade em si e para si. [...]” p. 12
“[...] 1. Sob que formas se constitui, no tempo, o saber lingüístico?; 2. Como essas
formas se criam, evoluem, se transformam ou desaparecem? Isto nos conduziu a adotar
três princípios: o da definição puramente fenomenológica do objeto, o da neutralidade
epistemológica e o do historicismo moderado.” P. 13
“[...] Seja a linguagem humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas;
saberes se constituíram a seu respeito; este é nosso objeto. [...]” p. 13
“[...] O valor dos conhecimentos é ele mesmo uma causa em sua história. [...]” p. 15
“O saber lingüístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do homem
falante. Ele é epilingüístico, não colocado por si na representação antes de ser
metalingüístico, isto é, representado, construído e manipulado enquanto tal com a ajuda
de uma metalinguagem [...].” p. 16
Nota 4, p. 33:
“Deve-se essa noção a A. Culioli [...]. Culioli utiliza o termo para designar o saber
inconsciente que todo locutor possui de sua língua e da natureza da linguagem (“a
linguagem é uma atividade que supõe ela própria uma perpétua atividade epilingüística
(definida com „atividade metalingüística não consciente‟)”). Assumimos que
inconsciente significa não-representado: em outras palavras, se esse saber é
inconsciente como saber (não sabemos o que sabemos) é porque não dispomos de meio
(metalinguagem ou sistema de notação) para falar da linguagem. [...] Ainda que a
existência de elementos de representação metalingüística coloque um limite entre o
epilingüístico e o metalingüístico, é evidente que é preciso antes considerar a relação
entre os dois como uma continuum: o primeiro não pára com o aparecimento do
segundo; este último não traz automaticamente um conteúdo novo sem entrar no
metalingüístico; enfim, podemos constatar a elaboração de procedimentos codificados
(jogos de linguagem etc.) para manifestar a consciência epilingüística.”
“O processo de aparecimento da escrita é um processo de objetivação da linguagem, isto
é, de representação metalingüística considerável e sem equivalente anterior. [...] Poderia
parecer natural fazer remontar, como o fez a maior parte dos historiadores, o nascimento
das tradições lingüísticas à constituição dos sistemas de escritas. [...] No entanto, em
nenhuma tradição parece ter sido conservado algo das reflexões teóricas intensas que
um processo desse gênero devesse engajar. Compreender-se-ia a rigor que não se
pudesse constituir-se simultaneamente o sistema de escrita e o texto que teoriza esse
sistema. [...] Se a escrita é a condição de possibilidade de saber lingüístico, é entretanto
impossível ver em seu aparecimento a verdadeira origem deste último, se entendemos
por isso o desenvolvimento e a transmissão de um saber metalingüístico codificado,
ligado às artes da linguagem.” P. 20-21
“[...] O que aparece em primeiro lugar são listas de palavras (ou de caracteres, para os
chineses). Sua utilidade não é muito clara no início; elas têm talvez um papel
mnemotécnico e, no caso dos silabários, serviram provavelmente à aprendizagem da
escrita. Mas o que faz deslanchar verdadeiramente a reflexão lingüística é a alteridade,
considerada essencialmente do ponto de vista da escrita. [...]” p. 22
“[...] Em outras palavras, nessas tradições o florescimento do saber lingüístico tem sua
fonte no fato de que a escrita, fixando a linguagem, objetiva a alteridade e a coloca
diante do sujeito como um problema a resolver. Esta alteridade pode ter muitas fontes:
pode provir da antigüidade de um texto canônico, de palavras ou textos estrangeiros que
é preciso transcrever. [...]” p. 23
“[...] desde que exista um sistema de escrita, para utilizá-lo é preciso aprendê-lo de
modo especial. Contrariamente à competência lingüística, é um sistema já
completamente formado que é transmitido. É sem dúvida isto que redobra o papel da
escrita no desenvolvimento dos saberes lingüísticos. [...]” o. 26
“As causas que agem sobe o desenvolvimento dos saberes lingüísticos são
extremamente complexas. Pode-se notar conjuntamente: administração dos grandes
Estados; a literarização dos idiomas e sua relação com a identidade nacional, a expansão
colonial, o proselitismo religioso, as viagens, o comércio, os contatos entre línguas, ou o
desenvolvimento dos conhecimentos conexos como a medicina, a anatomia ou a
psicologia. [...] Mas o aparecimento da imprensa – no contexto da diversidade de
línguas das nações européias, e do desenvolvimento do capitalismo mercantil (os
caracteres móveis da imprensa aparecem na China no século XI) – é um motor decisivo
para a gramatização e a estandardização dos vernáculos europeus. As grandes
transformações dos saberes lingüísticos são, antes de tudo, fenômenos culturais que
afetam do modo de existência de um cultura do mesmo modo que dela procedem.” p.
28-29
II – O fato da gramatização
“Vamos nos dar o longo prazo da história e considerarmos globalmente o
desenvolvimento das concepções lingüísticas européias em um período que vai da época
tardo-antiga (século V da nossa era) até o fim do século XIX. No curso desses treze
séculos de história vemos o desenrolar de um processo único em seu gênero: a
gramatização massiva, a partir de uma só tradição lingüística inicial(a tradição greco-
latina), das línguas do mundo. Esta gramatização constitui – depois do advento da
escrita no terceiro milênio antes da nossa era – a segunda revolução técnico-lingüística.
Suas conseqüências práticas para a organização das sociedades humanas são
consideráveis. Essa revolução – que só terminará no século XX - vai criar uma rede
homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa. [...] É às ciências da
linguagem que devemos a primeira revolução científica do mundo moderno. [...]” p. 35
III – O conceito de gramatização
“[...] Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a
instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de
nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário.” P. 63
“[...] A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-
la também como um instrumento lingüístico: do mesmo modo que um martelo prolonga
o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a
um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo
locutor. Isto é ainda mais verdadeiro acerca dos dicionários: qualquer que seja minha
competência lingüística, não domino certamente a grande quantidade de palavras que
figuram nos grandes dicionários monolíngües que serão produzidos a partir do final do
Renascimento.” P. 69
“[...] Assim como as estradas, os canais, as estradas-de-ferro e os campos de pouso
modificaram nossas paisagens e nossos modos de transporte, a gramatização modificou
profundamente a ecologia da comunicação e o estado do patrimônio lingüístico da
humanidade. É claro, entre outras coisas, que as línguas, pouco ou menos “não-
instrumentalizadas”, foram por isso mesmo mais expostas ao que se convém chamar
lingüicídio, quer seja ele voluntário ou não.” P. 70