Post on 03-Dec-2018
BAIXAS COLATERAIS DA GESTÃO DEMOCRÁTICA EM ESCOLAS
LÍQUIDAS NA PERIFERIA DAS PERIFERIAS
SCHEFER, Maria Cristina
UNISINOS
RESUMO: Legalmente determinado, o Projeto Político Pedagógico (PPP) é um dos
documentos representativos da gestão democrática numa instituição de ensino,
responsável pela singularidade espaçotemporal necessária para a organização didática.
Contudo, é preciso compreender o PPP para além da materialidade impressa, como
elemento vivo no ambiente escolar e que precisa ser retroalimentado (por atos
democráticos) em prol de efeitos práticos. Requer, dessa forma, uma unidade entre ações
escolares e atos dos gestores públicos, sendo ímpar, nesse sentido, que os quadros
docentes representem a conjugação de esforços administrativo-pedagógicos para a
superação das dificuldades num determinado lugar de ensino. O papel crucial do
professor, profissional do ensino, para a democratização dos saberes a todos os
brasileiros, encontra-se enfatizado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) e num compêndio de documentos redigidos a partir dela no País. Este estudo, de
inspiração etnográfica, embasado na legislação nacional e nas contribuições de Bauman,
evidencia o impedimento da gestão do PPP em escolas da periferia das periferias,
otimizado por um “ato público de costume”: o banimento de escolas centrais daqueles
profissionais que não agradam gestores públicos num determinado período
administrativo. Os dados foram coletados numa escola localizada na região metropolitana
de Porto Alegre–RS, em que a reunião de “consumidores falhos”: professores, famílias e
crianças excluídas vêm sendo imposta há mais de vinte anos, revelando, dessa forma,
baixas colaterais na organização democrática do ensino brasileiro. Visto que, quando os
profissionais do ensino chegam à escola a partir de um processo, que envolve a
depreciação de si, de sua atuação profissional, veem-se diante de um dilema: ignorar a
própria exclusão e incluir o outro. Ilusão pedagógica seria crer que todos terão condições
de superar as adversidades e garantir a qualidade ensejada nas propostas democratizantes
para todos.
Palavras-chave: Gestão democrática. Escolas periféricas. Baixas colaterais.
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EdUECE - Livro 301197
Introdução
Entre os princípios descritos no art. 3º da Lei 9.394/1996, que disciplina a
educação escolar no território nacional, dois interessam de forma singular a este estudo:
“VII – valorização do profissional da educação escolar; VIII – gestão democrática do
ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”. (MEC, 1996).
Em vista de que ambos interferem diretamente nas práticas cotidianas da escola, é a partir
da gestão democrática que se dá a construção da Proposta Pedagógica (ou PPP), que
depende, em grande medida, da atuação docente. Conforme a mesma lei, reza o seu art.
12: “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de
ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua proposta pedagógica; [...]”, e
o art. 13 estabelece: “Os docentes incumbir-se-ão de: I – participar da elaboração da
proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir plano de
trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; [...].” (MEC,
1996). Dessa maneira, a LDB condiciona a gestão democrática a uma operacionalização
prática que envolve tanto a construção da Proposta Pedagógica da escola quanto a
participação docente nessa ação.
Essa articulação é necessária, visto que o desmembramento dos objetivos
previstos na Proposta Pedagógica em ações para a educação precisa estar situada num
tempo-espaço específico, a fim de atender às singularidades de um determinado grupo
escolar. Sem isso, na desconsideração das características dos educandos, a probabilidade
de haver insucesso aumenta.
Entendendo-se o papel crucial do professor, profissional do ensino, para a
democratização dos saberes a todos os brasileiros, conforme descrito na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB) e num compêndio de documentos redigidos a partir
dela no País, cabe refletir sobre a prática (os costumes) dos gestores públicos, qual seja a
de “desqualificar profissionais do ensino”, a partir de critérios discriminatórios e os alocar
em escolas periféricas.
Instaurando-se, dessa maneira, uma distribuição de esforços pedagógicos
excludentes, que segue a lógica da “arquitetura heterofóbica” do capitalismo atual, da
‘Sociedade de Consumidores’ e que deprecia tudo aquilo e todos aqueles que não lhe
interessam. Os seres, na contemporaneidade capitalista, estão “comidificados”
(BAUMAN, 2008), portanto, à venda, já que “a política de vida [...] assim como a
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natureza das relações interpessoais, tende a ser remodelada à semelhança dos meios e
objetos de consumo e segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista”¹.
(BAUMAN, 2009, p. 108).
Este estudo enfrenta o desafio de narrar o indizível: professores de castigo, PPP
sem legitimidade, processo educativo ‘sob medida’ para os consumidores falhos. Os
dados foram coletados entre 2010 e 2013, e foram utilizados para registrá-los um Diário
de Campo e entrevistas audiogravadas com professores e membros da equipe gestora.
A Constituição Cidadã, os atos administrativos e a Lei 9.394/1996
A Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, é considerada
um dos documentos de referência mundial no que se refere à normatização de um Estado
Democrático de Direito. Entre os princípios fundamentais nela explícitos cabe destacar,
no art. 1º, os seguintes incisos: “II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; V
– o pluralismo político”, e, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, expressos no art. 3º, os incisos:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]; III – erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Lembra-se ainda que, entre os direitos sociais, dispostos no art. 6º, está a
educação, e que o inciso III do art. 19, estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: [...] III – criar distinções entre brasileiros ou
preferências entre si.” Ainda, referentemente ao tema educacional que está sendo
discutido neste estudo, cabe citar o art. 37 e seus incisos específicos:
A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: I – os cargos, empregos e funções
públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II
– a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo
com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma
prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão
declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Sublinhar excertos da Constituição de 1998 fez-se necessário, em vista de que
quaisquer outros documentos legais do País partem dela. A Constituição também é a fonte
disciplinar para os atos administrativos do Poder Público.
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Em contínuo aperfeiçoamento, a Constituição (mesmo sendo rígida) permite
emendas; nesse aspecto, pode-se destacar (em âmbito geral) a definição de atos de
improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), que passou a responsabilizar e a punir
gestores por ações que fragilizem a coisa pública, o bem comum. Já em âmbito
educacional, salienta-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.064/1990),
a LDB (Lei. 9.394/1996) que estão a embasar outros ordenamentos em reforço à
democratização de direitos educativos, cuja “qualidade das relações” no interior das
escolas é referendada.
“Nem só de leis a gestão democrática viverá, mas de todos os atos que procedem dos
governantes públicos”
Quem dera as leis tivessem aplicabilidade incondicional, e os atos
administrativos pudessem ser totalmente controlados pelos elementos que o caracterizam
do ponto de vista estrutural. Para melhor compreender essas limitações legais, buscaram-
se referências na doutrina jurídica, em conceitos básicos que possibilitassem o
entendimento das leis e dos atos de agentes públicos/políticos a partir delas.
Na lição de Meirelles et al.,
Ato Administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da
Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim
imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar
direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria. (2011,
p. 154).
Por sua vez, Carvalho Filho (2008, p. 96) definiu atos administrativos como
sendo “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus
delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de
efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.
Termos diferentes também são utilizados para definir os pressupostos ou
requisitos de validade dos atos administrativos no campo jurídico. Porém, cinco
características são consideradas as principais: a competência, o motivo, o objeto, a
finalidade e a forma.
A competência tem a ver com a pessoa legalmente apta (competente) para
praticar um ato administrativo. No caso de uma nomeação para professor, caberá isso ao
prefeito ou a quem ele legalmente determinar. Por isso, a “colocação em disponibilidade
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ou realocação” de profissionais em uma escola, geralmente, é da alçada dos gestores da
pasta educacional e de suas equipes diretivas.
O motivo tem a ver com a causa do ato administrativo, como, por exemplo:
necessidade de realocação, necessidade de nomeação. Mesmo sendo impresso, não
necessita partir do estabelecimento de vínculo com o servidor. O que, possivelmente,
permite que a subjetividade contida num ato seja ignorada em prol da objetividade.
O objeto do ato administrativo, segundo Meirelles et al. (2011, p. 159),
“identifica-se com o conteúdo do ato, através do qual a Administração manifesta seu
poder e sua vontade, ou atesta simplesmente situações preexistentes”, reforçando, assim,
a unilateralidade, a imperatividade e a supremacia da decisão administrativa.
A finalidade do ato administrativo, para Meirelles et al. (2011) é sempre o bem
comum, a coisa pública. Porém, na visão de Granjeiro (2005, p. 86), “há duas
concepções de finalidade: uma, em sentido amplo, que corresponde à consecução de um
resultado de interesse público (bem comum), outra, em sentido estrito, é o resultado
específico que cada ato deve produzir, conforme definido em lei”.
A forma do ato administrativo é o meio padronizado para que a vontade dos
agentes públicos (interna ou externamente) seja exteriozada, no entender de Meirelles et
al. (2011). Apontando, desse modo, que a validade de um ato também pode ser garantida
ou negada pelo layout do documento.
Essa retomada, mesmo que genérica, dos preceitos legais que definem os atos
administrativos, é de suma importância para a compreensão da prática de banimento dos
profissionais indesejados da região central para as periferias, pois desfazem quaisquer
ilusões quanto ao domínio ético da pós-burocratização/normatização. Como descrito, um
ato administrativo pode atender a todos os elementos que o validam e promover situações
pouco condizentes com aquilo que a Constituição Cidadã e os documentos ulteriores
orientam. Configura-se, nesse caso, um desvio de finalidade, que condiz com a
ambivalência da “Sociedade líquido-moderna”, de Bauman (2009).
Com o objetivo de demonstrar a complacência entre administradores e
administrados, no que se refere a um “desvio específico de finalidade” na área educativa,
é que “narra-se aqui o visto lá”, isto é, num lugar escolar. Lá, onde um organograma
excludente, definido, seja por insubordinação às contingências políticas, seja pela falta de
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influência ou por características físicas tem sido (há décadas) reafirmado. Importa dizer-
se, de antemão, que não há PPP, qualidade de ensino e atividade docente que possam ser
sustentados sob “os escombros da desqualificação profissional”.
Do lugar escolar e suas redondezas
Uma escola que quase caiu concretamente, no ano de 2010, dois meses depois
da entrega do imaginado prédio de tijolos (alvenaria) à comunidade escolar, na região
metropolitana de Porto Alegre, é o lócus de análise deste estudo. Quanto às falhas na obra,
investigações técnicas concluíram erro de cálculo por parte da engenharia, subtração de
materiais importantes e excesso de areia na construção.
A instituição conta, atualmente, com mais de duzentos alunos distribuídos entre
a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O espaço educativo
anterior (num prédio de madeira) foi fundado há 22 anos para atender aos dependentes
dos, então, trabalhadores que vieram para a região no período de construção do Polo
Petroquímico de Triunfo. Subempregados, que, após o término da obra, foram “liberados”
pela impossibilidade de aproveitamento no setor.
O interessante é que já haviam sido instalados numa das regiões mais distantes
do centro da cidade, na “periferia das periferias”, evidenciando que a miséria, como
destino final dos forasteiros, já estava prevista, bem como o meio/lugar para mantê-los
afastados dos “nativos do lugar” (obelisco).
Diante da condição de pobre (herdada) e sem capacitação profissional, os
moradores do lugar estão, há duas décadas, sujeitos a vagas trabalhistas sazonais nas
indústrias da região, mescladas com a constante oferta de empregos não formais. É a
informalidade “branda”, em trabalhos que (longe de serem legais²) são “aceitáveis” e a
informalidade “suicida”, que envolve venda de entorpecentes, roubos e prostituição que
emprega grande parte da população.
A falta de contratantes formais no lugar pode ser explicada por Bauman (2008,
p. 15), nos seguintes termos: “As pessoas em busca de trabalho precisam ser
adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um comportamento disciplinado e
possuidoras das habilidades exigidas pelas rotinas de trabalho dos empregos que
procuram.” Características, essas, que estão distantes da realidade dos moradores.
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Sabendo-se que as periferias não são excentricidades de uma ou de outra
sociedade fechada, e que as sociedades ocidentais foram erguidas sob a égide do
progresso econômico, intui-se que há um nexo para a manutenção desses lugares.
Segundo Santos (2008), a análise de um espaço social requer algumas
considerações básicas, entre as quais, o entendimento de que a forma tem a ver com o
conteúdo do espaço, o qual está ligado ao modo de produção. Porém, para o autor, não é
local o controle daquilo que pode ou não ser produzido, “quando se fala em modo de
produção, não se trata simplesmente de relações sociais que tomam uma forma material,
mas também de seus aspectos imateriais, como o dado político e ideológico”. (SANTOS,
2008, p. 32).
Dessa maneira, uma região inóspita para a vida humana pouco tem a ver com a
vontade dos habitantes e dificilmente poderá ser modificada sem que haja interferência
daquilo que provocou a aglomeração.
Sobre os profissionais lotados no lugar
Quanto aos professores, aos profissionais da educação, destinados a enfrentarem
os desafios de ensinar num lugar marcado pelo descaso, pela falta de direitos, observou-
se um quadro eclético tanto física quanto emocionalmente. Das 17 professoras, 9 contam
“com riqueza de detalhes” que estão na escola “de castigo”: porque “subverteram” ou não
foram consideradas dignas de outro ambiente, como servidores recém-nomeados, que não
tiveram opção de escolha. Sobre a estada no lugar, muitas revelaram que já chegaram
“loucas para partir”, salienta-se o depoimento de duas professoras, denominadas para a
análise como A e B:
Eu vim porque quis [...], mas a gente vê que muita gente não vem pra
cá porque quer, vem como um castigo, e tem vários outros que moram
perto, fica mais à mão. Não é por uma opção, porque eu acho que
aquele lugar é legal, são poucos os que vieram pra cá assim.
(Transcrição de parte da entrevista sonora com A, em set. 2012).
Normalmente [quem vem para cá] são aquelas que a secretária não as
quer nas outras escolas. Existem muitas razões pelas quais elas vêm,
às vezes por serem pessoas que batem de frente com outras escolas,
com a equipe diretiva e outros grupos ou por “castigo”, pra ti aprender
porque tu não forma o círculo deles, tu é um pouco diferente, então,
normalmente, é por castigo. Eu sou uma. Bati de frente com eles.
(Transcrição de parte da entrevista sonora com B, em set. 2012).
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Quanto à professora B, vale registrar que antes de ser “designada” para a escola
em questão, ela exercia a função de diretora de uma pequena escola na zona rural, onde a
professora viveu os melhores anos de sua docência, fato que gosta de contar a todos.
O organograma também apresenta uma força de trabalho 100% feminina, que
inclui a única professora transexual do município e um auxiliar de nutrição gay, e isso
merece um olhar para a questão da exclusão profissional na perspectiva de gênero, pois
é, no mínimo, curioso que não haja docentes “machos” a serem banidos das escolas
centrais.
Nesse cenário, Almeida dá conta de que
o processo de imputar para homens e mulheres determinismos sexuais
biologicamente herdados implica a existência de uma ditadura de
gênero para os dois sexos que, infalivelmente, leva a hierarquia do
masculino sobre o feminino, numa escala axiológica na qual as fêmeas
sempre saem perdendo, dado que as atividades masculinas sempre
foram consideradas de primeira ordem e as femininas, de segundo
escalão. Essa dupla (des)valorização conduz a diferentes implicações
no mundo do trabalho, no espaço público, nas esferas do privado e nas
instâncias do poder. (1998, p. 44).
Outros pontos da seleção causam similar estranheza, ou seja, duas das assistentes
da Educação Infantil são deficientes físicas: uma é cadeirante, e a outra sofreu paralisia
infantil. Assim, ambas têm dificuldades para se locomover e acompanhar o “tranco” dos
pequenos. Uma professora tem obesidade mórbida (EI) e com a diretora comunga a
permanente possibilidade de sofrer um ataque epilético. Três professoras enfrentam uma
depressão crônica pós-abstinência química por uso de drogas. Na cozinha da escola, dois
dos profissionais desenvolvem doenças degenerativas e contam com o auxílio diário de
duas mães voluntárias que trabalham em troca das sobras da merenda.
Esse agrupamento tendencioso de profissionais na escola evidencia que o
controle de corpos no lugar tem obedecido a critérios mercadológicos, e que o “castigo”
na escola na “periferia das periferias” engloba as mais variadas funções.
Quanto à retenção de “profissionais em acordo com os gestores” nas escolas
centrais, cabe asseverar sobre o poder de persuasão para garantir a qualidade de ensino
que detêm historicamente os mais abastados, além das expectativas de economicidade
que costumam se estabelecer em relação a determinados grupos e em detrimento de
outros.
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Conforme Clark apud Bauman,
toda a ideia de escolas e universidades é para aumentar a taxa de
crescimento econômico e ajudar-nos a competir com nossos “parceiros
europeus”, e assim também (poderíamos acrescentar) ajudar o governo
a vencer a próxima eleição. (2009, p. 40).
A prática “de costume”³ (mesmo que inapropriada a atos administrativos) a que
recorrem (certos) gestores públicos quando passam a “dar menos aos que têm menos”,
demonstra o quanto as fronteiras público-privadas andam à mercê das relações capitais,
bem como o quanto à gestão democrática das escolas pode estar restrita à elaboração
obrigatória do PPP.
Sobre o PPP, o abc, as probabilidades/estatísticas
Ícone da gestão democrática, da socialização de saberes, da possibilidade de se
fazer justiça social por meio do ensino, o PPP permite à equipe de profissionais e à
comunidade que busquem alternativas conjuntas (a partir da realidade) para garantir o
aprendizado na escola.
Entretanto, segundo Veiga,
a gestão democrática implica principalmente o repensar da estrutura do
poder da escola, tendo em vista sua socialização. A socialização do
poder propicia a prática da participação coletiva que atenua o
individualismo; da reciprocidade, que elimina a exploração; da
solidariedade, que supera a opressão da autonomia, que anula a
dependência de órgãos intermediários que elaboram políticas
educacionais das quais a escola é mera executora. (2002, p. 3).
Dessa forma, quando os profissionais do ensino chegam à escola a partir de um
processo, que envolve a depreciação de si, de sua atuação profissional, veem-se diante de
um dilema: ignorar a própria exclusão e incluir o outro. Ilusão pedagógica seria crer que
todos terão condições de superar as adversidades e garantir a qualidade ensejada nas
propostas democratizantes para todos.
A escola em estudo tem um PPP muito bem-guardado na sala da direção,
elaborado solidariamente, como refere a diretoria:
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“De um recorta e cola entre as escolas, pois mandaram a gente fazer e
daí acabei eu tendo que assumir a bronca, pedi ajuda de uma diretora
de outra”. (Relato /Diário de Campo, jun. 2010).
Obviamente, a direção tomou uma medida administrativa e cumpriu com a
“tarefa” de encaminhar o PPP para aprovação. Ademais, diante das contingências,
dificilmente, haverá clima para a elaboração conjunta de uma proposta educacional.
Conforme Vasconcelos (2004, p. 176), “o projeto deve ser iniciado quando houver por
parte da instituição o desejo, a vontade política, de aumentar o nível de participação da
comunidade educativa, o real compromisso com uma educação democrática”.
Não há como abordar (por falta de espaço), neste texto, o modo como ocorrem
as práticas pedagógicas no lugar, porém se ressalta a solidão como característica do
trabalho docente e a dificuldade de articulá-los em prol de melhorias na aprendizagem.
Ideias pedagógicas tradicionais: cópias, memorizações, sanções, castigos pareceram
consensuais no lugar, bem como um possível modo de resistência ao sistema (aos
gestores) verificado em faltas e atrasos constantes dos profissionais.
Resulta desse todo: evasões, faltas e baixo índice de aprovação. Em 2012, a
escola ficou com a pior nota na “Prova Brasil”, no município e na região. Algo previsto,
segundo o expressado:
“Achamos até que se saíram bem, pois a maioria deles nem sabe ler.”
(Comentário de uma das professoras/Diário de Campo, out. 2012).
“Estávamos esperando esse resultado, não há o que fazer [...], a
Secretaria de Educação sabe a situação aqui.” (Relato de um membro
da diretoria/Diário de Campo, out. 2012).
A conformidade da equipe com o resultado na prova coloca as crianças na
posição de “vítimas colaterais, sujeitas a baixas colaterais, afetadas por danos colaterais”
da gestão democrática do ensino brasileiro, como escreveu Bauman (2008). Os adjetivos
colaterais (de vítimas, baixas e danos) aqui empregados também “pertencem ao
vocabulário dos advogados e têm raízes na pragmática defesa jurídica, ainda que tenham
sido usados pela primeira vez por porta-vozes militares em seus comunicados para a
imprensa”. (BAUMAN, 2008, p. 149).
Para Cohen apud Bauman (2008), “pertencem ao arsenal linguístico dos ‘estados
da negação’: negação de responsabilidade-responsabilidade moral, assim como jurídica”.
Em suma, invocar a imprevisibilidade do planejamento democrático “sob o argumento da
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falta de intencionalidade, tem o objetivo de negar ou isentar a cegueira ética, condicionada
ou deliberada”. (p. 150).
Se tudo, inclusive a terminologia, para disfarçar atos omissivos ou comissivos
que afetam os administrados está posto na Sociedade de Consumidores, cabe relacionar
as práticas danosas ao bem comum e às mentalidades capitalistas vigentes.
Da infeliz conclusão
A LDB estabelece, mas não precisa a gestão democrática, como posto no seu
art. 14. “Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino
público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades” (Lei 9.394/1996), o
que possibilita o aumento da alçada dos agentes políticos em detrimento de um processo
paritário.
O conteúdo deste estudo tem sido discutido em várias salas de pesquisa nos
últimos anos e provocado muitas identificações. Situações similares às de profissionais
da educação “de castigo”, relatadas por docentes e pesquisadores, levam a crer que o tal
“costume” ultrapassa as fronteiras estatais. O cenário é quase sempre o mesmo, “a escola
aonde ninguém quer ir”, para onde estão sendo enviados os consumidores falhos, que o
“centro não quer”.
O que tem garantido isso? A estrutura heterofóbica da sociedade capitalista que
está concentrando nos consumidores falhos (mercadorias que não interessam ao mercado
de trabalho, num determinado momento) a ira contemporânea para o banimento
(modalizado) de excedentes. Eliminando-se ilusões, resta dizer que as escolas líquidas da
“periferia das periferias” não refletem desajustes, não são anomalias, pois atendem ao
Projeto Capitalista Global, mesmo que esse não se encontre impresso em gaveta alguma.
REFERÊNCIAS
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Edunesp, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301207
______. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal, 1988.
_______. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF: 23
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de
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GRANJEIRO, Wilson J. Manual de Direito Administrativo. Brasília: Vescton, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes et. al. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo:
Malheiros, 28ª ed. 2011.
SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Editora da USP, 2008.
VASCONCELOS, Celso dos Santos. Coordenação do trabalho pedagógico: do Projeto
Político-Pedagógico ao cotidiano da sala de aula. São Paulo: Libertad, 2004.
VEIGA, Ilma Passos A. (Org.). Projeto Político-Pedagógico: uma construção possível.
Campinas: Papirus, 2002.
______________________________________
1 Conceito utilizado pelo autor para expressar um comportamento adquirido na experiência e internalizado
pelos ocidentais em sociedades capitalistas da atualidade.
2 Diariamente, antes de o sol nascer, alguns veículos estacionam na entrada da vila em busca de boias-frias,
que seguem com suas marmitas improvisadas para a coleta de frutas, corte de mato ou limpeza de terrenos.
Retornam no final do dia, já com o dinheiro da lida (R$, 35,00) em mãos.
3 A Lei reconhece o ‘costume’, que, diferentemente do Direito, surge espontaneamente na sociedade e
resulta dos acontecimentos sociais. Os costumes integram o Direito Consuetudinário. Fonte: O que são
costumes e como eles influenciam o Direito? Disponível em: www.jurisway.org.br. Acesso em: abr. de
2014.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301208