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BALAS ZEQUINHA: IMAGINÁRIO COLETIVO E IDENTIDADE PARANAENSE NO
INÍCIO DO SÉCULO XX (1929-1967)
Camila Jansen de Mello de Santana (Doutorado Em História UFPR/UEPG)
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosane Kaminski
Palavras-chave: Balas Zequinha, Imaginário, Identidade
A emancipação do território paranaense em relação à Província de São Paulo,
território ao qual o Paraná pertencia até 1853, formando assim a Província e posteriormente
Estado do Paraná, foi importante elemento constituidor da identidade de sua população. No
entanto, o sentimento identitário não é construído apenas em relação a eventos oficiais, mas
a partir de diferentes práticas, acontecimentos, que por motivos diversos formam um
imaginário compartilhado por grupos e indivíduos distintos de uma sociedade e assim,
forma-se, ou reforça-se um sentimento identitário. Partindo da premissa de que as
identidades não se formam apenas de discursos estatais e eventos oficiais, nos propomos
analisar a constituição de um imaginário coletivo e de uma identidade partilhada pela
população paranaense a partir de um objeto popular: as embalagens das Balas Zéquinha,
que surgiram nas primeiras décadas do século XX.
O fim da Monarquia e o início da República trouxeram o desejo de modernização ao
Brasil, que buscava se aproximar do exemplo europeu da Belle Époque. Em Curitiba esse
desejo se faz perceber através de novas práticas, como o “Footing na rua XV de Novembro,
a UFPR sendo fundada, a febre dos postais, os fotógrafos surgindo, o cinema, iluminação
elétrica, […] revistas ilustradas, primeiros historiadores, pavimentação das ruas, primeiros
pintores e escultores.1” Nesse ambiente de novidades em Curitiba, estimulado pela
economia da erva mate, destaca-se a ampliação do mercado editorial, que se renovava com
1 PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo: Cultura e Imaginário no Paraná da I República. Dissertação
(Mestrado em História) – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. 1986. p. 63 (?)
a criação de rótulos para diferentes tipos de alimentos, revistas ilustradas e outros tipos de
produtos. Um dos personagens que aparece neste contexto é o Zequinha.
Zequinha surge em Curitiba em 1928 ou 1929 – não há uma datação precisa – como
personagem que ilustraria os papeis das embalagens das balas produzidas pela fábrica de
doces dos irmãos Sobania, um quarteto de irmãos poloneses que, em homenagem a uma tia,
nomeou a fábrica de A Brandina. O objetivo inicial para o qual o personagem foi criado era
conquistar público e aumentar os lucros da empresa de doces.
As imagens impressas, naquele momento, constituíam um meio de comunicação
importante, sendo utilizadas para estimular a venda de produtos, com embalagens
atraentes2, transmitir ideias e críticas – como as charges sobre as questões sociais e políticas
do contexto, veiculadas em revistas ilustradas, como O Malho e A Bomba3 -, ou mesmo
fundar identidades, como era o caso do Paranismo, movimento que contratava pintores
como Lange de Morretes e escultores como João Turin para definir artisticamente a
identidade paranaense através de símbolos como, por exemplo, a araucária e o pinhão. O
uso de imagens para diferentes fins se justifica, em partes, pelo fato da imagem ter
importante papel comunicador numa conjuntura de expansão dos meios editoriais e em que
“menos de 20% da população curitibana era alfabetizada” 4.
Zequinha se insere neste período, em que a comunicação visual é uma novidade
que desperta o interesse da população, como aponta Luís Fernando Lopes Pereira ao
estudar o contexto de fins do século XIX e início do XX no Paraná:
assiste-se um deslumbramento visual com a fotografia que gera até mesmo a
subserviência do texto em relação à imagem. Surgem os cartões postais e os clubes
de colecionadores, como o Club Philocartista do Paraná que tem como órgão de
2 BOGUSZEWSKI, José Humberto. A primeira impressão é a que fica: imagens, imaginário e cultura da
alimentação no Paraná (1884-1940). 2012, 172 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História.
Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
3 QUELUZ, Marilda. Traços Urbanos: A Caricatura em Curitiba no início do século XX. São Paulo, 2002.
Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP.
KAMINSKI, Rosane. A presença das imagens nas revistas curitibanas entre 1900-1920. R. Cient./FAP,
Curitiba, v.5, p.149-170, já./jun. 2010.
4 PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Apud KAMINSKI, Rosane. Op. Cit.
divulgação a revista Cartão Postal que faz um rasgado elogio à técnica e uma
verdadeira profissão de fé em relação ao progresso já em seu primeiro número (...)”5.
As imagens de Zequinha despertaram grande interesse da população curitibana.
Utilizando-se da técnica da litografia, as embalagens de balas ilustradas com o personagem
eram fabricadas em um papel simples, barato, que identificavam o produto e a empresa que
o comercializava. Inicialmente composta por um total de trinta diferentes imagens, o
conjunto das situações vividas por Zequinha passaram a somar cinquenta, depois cem e
finalmente duzentas diferentes representações. As imagens representavam o cotidiano de
uma pessoa comum, que realiza múltiplas ações e cujas atitudes nem sempre são
moralmente corretas. Devido à diversidade de ações representadas com Zequinha, muitos
curitibanos, desde o cidadão de comportamento exemplar, até aquele imoral e violento, se
viram representados nas embalagens das Balas Zequinha. O personagem trabalha,
empobrece, fica bêbado, pratica esportes, namora, casa e enviúva, assalta um cofre, é
atropelado, afoga-se, enforca-se e comete suicídio.
Algumas situações vividas pelo personagem, principalmente aquelas que
representam situações violentas, causam estranhamento, principalmente quando refletimos
sobre o principal público-alvo das balas: as crianças. Porém, mesmo nas representações
violentas, o humor se faz presente e este, segundo Marilda Queluz, tem importante função,
já que cria “oportunidades aos habitantes das grandes cidades para verem e serem vistos nos
espaços públicos como nas ruas, avenidas, bondes, teatros, salas dos cinematógrafos,
pontos de encontro de entretenimentos.” 6
5 PEREIRA. Luís Fernando Lopes. Paranismo: Cultura e Imaginário no Paraná da I República. Dissertação
(Mestrado em História) – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. 1986. P. 57.
6 QUELUZ, Marilda. Traços Urbanos: A Caricatura em Curitiba no início do século XX. São Paulo, 2002.
Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP. P.
25.
Figura 1: Embalagens das Balas Zequinha. Temos Zequinha representado em situações privadas – Casado ou
viajando como Turista -, trabalhando – como Encanador - e em ação violenta - Suicidando-se.
Zequinha é um produto imagético e sua produção jamais é gratuita, pois as imagens
são “fabricadas para determinados usos, individuais ou coletivos”7. Esses usos, por sua vez,
são possíveis devido ao fato de toda imagem ser “utilizada e compreendida em virtude de
convenções sociais que se baseiam, em última instância, na existência da linguagem”8 O
uso de imagens e sua compreensão se dá através da percepção de que o receptor desta
imagem é um ator social, um “parceiro ativo da imagem, emocional e cognitivamente”9,
pois não apenas observa uma imagem, mas a interpreta, relaciona-a a algo vivido, visto,
pensa sobre a imagem e desta maneira, a constroi, assim como é construído pela imagem.
Essa visão de Aumont é ratificada pela fala de Queluz, que, ao analisar as
caricaturas presentes nas revistas ilustradas de Curitiba no início do século XX, afirma que
era necessário construir um público leitor para essas inovadoras revistas ilustradas e as
charges propagadas nos diferentes meios de comunicação. Para tanto, Queluz afirma que
era necessário fazer dos leitores, “parceiros”, senão “cúmplices, em todo caso sujeitos,
unidos em uma mesma maneira de perceber o mundo e de se perceber mutuamente.”10
Esta interação entre imagem e receptor tem, como elemento fundamental, a
memória e o processo de reconhecimento. Segundo Aumont, “reconhecer alguma coisa em
uma imagem é identificar, pelo menos em parte, o que nela é visto com alguma coisa que se
7 AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012. P. 78
8 AUMONT. Idem. P. 213.
9 Idem, p. 81.
10 QUELUZ, Marilda. Op. Cit. P. 20.
vê ou se pode ver no real.”11 Ainda conforme Aumont, esse reconhecimento provocaria
prazer, pois haveria uma “satisfação psicológica pressuposta pelo fato de 'reencontrar' uma
experiência visual em uma imagem”12.
As embalagens das Balas Zequinha tem ilustrações com valor representativo,
considerando-se que “a imagem representativa é a que representa coisas concretas (“de um
nível de abstração inferior ao das próprias imagens”).13 Zequinha, como mencionado
anteriormente, é representado em diferentes atividades cotidianas [figura 1], que seriam
facilmente reconhecíveis pela população curitibana, paranaense e demais regiões do país.
O reconhecimento das situações reais apresentadas de forma representativa nas
imagens de Zequinha permitiriam que adultos e crianças fossem capazes de ler, interpretar,
pensar essas situações e essas imagens. Confirmando a importância da função de
reconhecimento das imagens, Gombrich afirma que “toda representação é sempre
convencional”, sendo resultado de um acordo coletivo, onde aquele que representa faz algo
que corresponda às expectativas daquele que vê a representação, destacando ainda que “o
familiar será, sempre, o ponto de partida para a representação do desconhecido”14.
Acreditamos que, assim como outros produtos imagéticos, as situações vividas por
Zequinha sejam resultado da observação do mundo real, que por sua vez, auxiliaria na
importante relação de reconhecimento e atuação do espectador perante a imagem
observada.
Além de ser resultado de um contexto no qual as artes gráficas e as técnicas de
reprodução de imagens ocorriam como forma de comunicação com o público ou de
conquista de consumidores, Zequinha pode ter sido batizado considerando-se as práticas
daquele contexto. Podemos destacar, deste contexto de início do século XX, personagens
como Zé Povo, que aparecia no periódico O Malho, do Rio de Janeiro. Seu homônimo
aparecia representado nas charges do jornal soteropolitano A Coisa. Podemos apontar ainda
11 AUMONT. Idem, p. 82.
12 Idem, p. 83.
13 Idem, p. 78.
14 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. P. 72.
o personagem Zé Povinho, presente, desde 1875 no periódico Lanterna Mágica, de
Portugal. Em todas estas representações, Zé Povo ou Zé Povinho representam a população
que não participa das decisões políticas nem ocupa cargos de administração, enfim, a
população simples, que circula pelas diversas cidades.15
Todos esses personagens surgiram antes de Zequinha, e assim como ele, não
representavam uma pessoa em particular. Tanto os dois Zé Povo, quanto Zé Povinho ou
Zequinha não representavam um indivíduo em particular, mas uma ampla gama de sujeitos
que compunham a população de suas cidades ou países. Nesta direção, Zequinha não
representava ninguém, mas sim todos, o que explicaria a utilização frequente do nome Zé
ou seus diminutivos ou apelidos, visto que é um nome popular, que serviria para nomear
um personagem que pretende ter apelo junto à população, afim de cumprir o objetivo para o
qual fora criada: aumentar a venda de balas e melhorar os lucros da empresa A Brandina.
O desejo de concorrer aos prêmios distribuídos pela fábrica de doces através das
figurinhas premiadas deve ser listado como outro motivo pelo qual Zequinha conquistou
apelo junto ao público. A busca das figurinhas premiadas e a diversidade de representações
do personagem estimulavam ainda o colecionismo, prática que teria surgido na Europa em
1880, com os cartões postais e imagens colecionáveis incluídas nos produtos alimentícios.
16 As imagens em formatos menores, manipuláveis, ganharam destaque na cultura europeia
e posteriormente brasileira entre fins do século XIX e início do XX, devido à sua
portabilidade e possibilidade de colecionismo. Zequinha se encaixa neste contexto, o que
ajuda a explicar o seu formato.
Com formato pequeno, que girava em torno de 7x5 cm, as embalagens das Balas
Zequinha eram facilmente manipuladas por crianças e adultos, podiam ser guardadas no
15 Sobre o estudo de charges e outras representações imagéticas em periódicos diversos ver, por exemplo,
QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro. Olho da Rua: o humor visual em Curitiba (1907-1911). Curitiba, 1996.
Dissertação de Mestrado em História, UFPR. _____. Traços Urbanos: A Caricatura em Curitiba no início do
século XX. São Paulo, 2002. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUC/SP. VELLOSO, Mônica Pimenta. Sensibilidades modernas: as revistas literárias
e de humor na Primeira República. In: LUSTOSA, Isabel. (Org.). Imprensa, História e literatura. Rio de
janeiro: FCRB, 2008
16 XAVIER, Valêncio. 'Zéquinha' é romance contado em balas. O Estado de São Paulo, Caderno 2,
Figurinhas, D-7, 20 jul. 1996.
bolso e portanto, eram transportadas facilmente. O formato do suporte das imagens de
Zequinha é importante para compreender as formas de sociabilidade que se desenvolveram
em torna delas, pois conforme Jacques Aumont, “o tamanho da imagem está, portanto,
entre os elementos fundamentais que determinam e especificam a relação que o espectador
vai poder estabelecer entre seu próprio espaço e o espaço plástico da imagem”.17
Completar a coleção de duzentas representações não era fácil, o que incentivou
novas práticas sociais, como os jogos de bafo e tique, nos quais se trocavam as figurinhas
repetidas. A circulação de imagens de Zequinha entre a população e as brincadeiras e
momentos de lazer nos quais essas trocas ocorriam, a ansiedade por encontrar a figurinha
premiada e as múltiplas ações realizadas por Zequinha, ajudaram a forjar um imaginário
coletivo em torno do personagem, assim como um sentimento identitário espontâneo. As
imagens de Zequinha circulavam por todos os grupos sociais, devido ao baixo custo da
mercadoria e mesmo à distribuição gratuita de balas feitas pela fábrica nos pátios das
escolas. Desta forma, as embalagens circulam pelos diferentes extratos sociais, as
brincadeiras permitem a troca de imagens entre crianças de grupos distintos e assim
Zequinha torna-se parte da esfera do lazer dos curitibanos da época, caindo nas graças da
população através das brincadeiras, das sociabilidades e do costume de trocar figurinhas,
colecioná-las e disputá-las com amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos.18
Nessas novas práticas sociais, interpretações sobre Zequinha eram difundidas na
sociedade, visto que haveria “um relacionamento circular feito de influências recíprocas,
que se moviam de baixo para cima, bem como de cima para baixo” 19, permitindo a troca de
ideias, que não ficavam restritas ao pequeno grupo no qual surgiam, mas que se expandiam
entre os vários consumidores das Balas Zequinha e colecionadores de seus invólucros.
Nesta direção, colecionar embalagens das Balas Zequinha e participar de atividades
lúdicas com elas, significaria compartilhar dos elementos mais comuns do lazer:
17 AUMONT. Op. Cit.. P. 144.
18 CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In: ____________. À beira da falésia. A história
entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002.
19 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição . São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. P. 10.
sociabilidade, mobilidade e imaginação.20 O lazer é, portanto, uma atividade coletiva, pois
mesmo que feita individualmente, compreende a partilha de práticas comuns a diferentes
indivíduos. É seguindo este pensamento que compreendemos o colecionismo e as
brincadeiras com as Balas Zequinha, como uma prática social importante do período, que
exigia a definição e partilha de regras comumente aceitas para os jogos nos quais as
figurinhas repetidas eram trocadas.21
A participação nas diferentes práticas sociais com as embalagens das Balas
Zequinha é uma escolha do indivíduo, que opta por participar de uma rede de contatos com
outras pessoas que compartilham dessas mesmas práticas. Essa escolha é pessoal e não
imposta, pois outras atividades de lazer poderiam ser realizadas. Ao trocar as figurinhas de
Zequinha ou disputá-las em jogos diferentes, o indivíduo insere-se numa atividade social,
coletiva, pois mesmo estando sozinho, brincando com suas próprias figurinhas, partilhará
com as demais pessoas que possuem as ilustrações de Zequinha, interesses, modos de
sociabilidades, os costumes de colecionar e disputar as imagens pares. A interação com
outras pessoas é, segundo Elias, elemento fundamental das atividades de lazer pois “a
estimulação que se recebe por estar reunido com outros, quer seja de facto quer por meio da
sua própria imaginação, é um dos elementos mais comuns da satisfação do lazer.”22
Além de definir o lazer como uma atividade sociável, não remunerada e escolhida
livremente por ser agradável23, Elias problematiza a função do lazer como algo escolhido
por permitir alcançar momentos de tensão controlada para contrabalançar os momentos de
atividades de trabalho, nas quais as tensões são contidas. Assim, “pode dizer-se que todas
as atividades de lazer integram um controlado descontrole das restrições das emoções”24,
emoções estas que as atividades de não lazer, não permitem expressar.
Esta interpretação de Elias ajuda a compreender as imagens imorais protagonizadas
por Zequinha, pois os invólucros das balas situam-se, pelas práticas sociais criadas, na
20 ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1985. p. 178.
21 CHARTIER. Op. Cit.
22 ELIAS. Op. Cit. P. 170.
23 Idem. P. 107.
24 Idem. p. 146.
esfera dos jogos, brincadeiras e lazer, o que permitiria a expressão de emoções ou a
realização de ações não expressas ou aceitas em outras ocasiões:
No conjunto das actividades de lazer, todas integram um tipo peculiar de risco. São
capazes de desafiar a rigorosa ordem da vida rotineira das pessoas sem colocar em
perigo os meios de subsistência ou o seu estatuto. Permitem às pessoas tornar mais
fáceis ou ridicularizar as normas da sua vida de não lazer, e todos o fazem sem
ofender a consciência ou a sociedade. Envolvem «brincar com as normas» como
um «brincar com o fogo».25
Como as ilustrações de Zequinha retratam situações cotidianas, desde as mais
comuns até aquelas que ganham destaque pela violência e paixão, essas embalagens seriam
uma esfera de escape das tensões cotidianas por permitirem, de forma segura, a recusa de
regras socialmente estabelecidas, de violência reprimida, de ações vistas como imorais. O
lúdico permite esse afrouxamento das regras, pois o jogo realiza-se sob regras determinadas
pelo grupo que compartilha de suas práticas, oferecendo assim risco controlado.
Esse conjunto de práticas de lazer, de circulação de informações, de estabelecimento
de sociabilidades realizadas em torno das embalagens das Balas Zequinha provocam,
segundo Humberto Boguszewski, uma identidade e um imaginário coletivo, já que estas
imagens “fazem parte hoje da experiência de ser paranaense, mesmo para aqueles nascidos
quando as balas já não eram mais comercializadas. O imaginário das Balas Zequinha
serviu, e serve até hoje, como vínculo entre gerações de paranaenses.”26
Posto que “o imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um
Estado nação, de uma comunidade, etc., o imaginário estabelece vínculo. É cimento social.
Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual.”27 O
imaginário é também elemento capaz de atingir não só a cabeça, mas, o coração, isto é, as
25 Idem. P. 151.
26 BOGUSZEWSKI. Op. Cit. P. 27.
27 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003. P. 76.
aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas
identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro.28
O imaginário coletivo é formado pela existência prévia de um conjunto de imagens
que possui elementos universais e predominantes que se articulam a imagens criadas por
um grupo e criam discursos instauradores de significados coletivos.29 Nesta direção, as
múltiplas atividades vivenciadas na Curitiba do início do século XX, assim como as ações
violentas, presentes nas manchetes dos periódicos daquele contexto e as representações
destas ações nas embalagens das Balas Zequinha, que desencadeiam práticas sociais novas,
provocando a interação de pessoas de diferentes círculos sociais em torno do personagem,
teriam contribuído para a criação de uma identidade que é forjada nas práticas cotidianas.
Zequinha, quando de seu surgimento na década de 1920, não seria propagador de
um discurso identitário sobre o Paraná ou Curitiba, mas apenas um produto comercial.
Paulatinamente, as situações representadas nas imagens do personagem, despertaram um
mútuo reconhecimento dos paranaenses, que se viram representados nas imagens e que
criaram um imaginário em torno de Zequinha. Nesta direção, é através do consumo das
balas e das práticas surgidas em torno das figurinhas, que Zequinha ganha espaço nos
costumes curitibanos e ajuda a constituir uma identidade curitibana, espontânea, que
aparece de “baixo para cima”.
A identidade formada em torno de Zequinha é muito diversa daquela que se
objetivava criar através do Paranismo, movimento contemporâneo ao surgimento de
Zequinha. O Paranismo foi um movimento vinculado à elite paranaense e principalmente
curitibana iniciado em 1853, quando da emancipação da província do Paraná em relação à
província de São Paulo. Neste contexto, estes grupos articularam-se para criar um
movimento de mobilização e criação de uma identidade para o Paraná. Embora tendo seu
início datado de 1853, é apenas em 1927 que o movimento é nomeado por Romário Martins
– seu principal representante - como Paranismo ou Paranista, conquistando também maior
28 CARVALHO, José Murilo de . A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. P. 10.
29 KERN, Maria Lúcia Bastos. A imagem visual na nova história e história da arte. 1996. PP. 97-109. Porto
Arte, Porto Alegre, v.7, n.13, p. 97-109, nov. 1996. P. 102.
fôlego a partir desta data, como apontam os trabalhos de Geraldo Leão Veiga de Camargo30
e Luís Fernando Lopes Pereira31. O movimento Paranista objetivava criar e impor uma
identidade paranaense pensada pela elite, na qual os indígenas eram vistos de forma
romanceada, os negros não existiam no território paranaense e os imigrantes eram
trabalhadores, porém não pertenciam aos grupos politicamente representativos. Este
discurso buscava fortalecer a posição social da elite agrária, principalmente aquela ligada à
produção de erva-mate, reforçando simultaneamente as posições adequadas dos demais
grupos que compunham a população do Paraná. Desta forma, as elites, reunidas no Clube
Curitibano e utilizando como meios de propagação de seu discurso as revistas do Clube
Curitibano e Ilustração Paranaense, definiram mitos fundadores (o indígena romanceado e o
português), símbolos (pinhão, araucária e gralha azul). Este discurso, pensado, criado e
propagado pelas elites, era imposto, propagando-se de cima para baixo.
A identidade que se forma em torno de Zequinha, diferentemente daquela do
Movimento Paranista, é espontânea e não imposta ou deliberadamente construída. Essa
identidade é resultado de uma população que é sujeito nesta constituição identitária. Ao
analisar a formação de identidades nacionais Stuart Hall afirma que
As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são
formadas e transformadas no interior da representação. (…) Segue-se que a nação
não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de
representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma
nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura
nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu “poder
para gerar um sentimento de identidade e lealdade”32
Ao afirmar que as pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação, mas que
30 CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná. 1853-1953.
Tese de doutorado. UFPR, 2007. 31 PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo: Cultura e Imaginário no Paraná da I República. Dissertação
(Mestrado em História) – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. 1986
32 HALL, Stuart. Op. Cit. P. 49.
elas participam da ideia da nação, temos a população sendo percebida como sujeito de um
processo de criação e fortalecimento de uma identidade. As identidades, no entanto, não
pertencem apenas ao âmbito nacional, mas são constituídas em diferentes níveis, entre
múltiplos sujeitos. Nesta pesquisa específica, a população é vista como sujeito da
constituição de uma identidade regional. Ao contrário do modelo identitário paranista,
cívico, proposto “de cima para baixo” por elites políticas e culturais, no caso deste estudo
essa percepção decorre da identidade construída em torno de Zequinha, que aparece de
forma espontânea a partir do compartilhamento de práticas como a compra das balas
envolvidas com imagens do personagem, o colecionismo e as trocas das imagens duplas em
momentos de sociabilidades, através do costume criado em torno das atividades de lazer.
O sentimento identitário formado em torno das embalagens das Balas Zequinha é
histórica e culturalmente criado, reiterando a afirmação de Stuart Hall de que a identidade é
definida “historicamente, e não biologicamente, [pois] o sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um 'eu'
coerente”33, sendo formada e transformando-se “continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”34.
As várias identidades, que são despertadas ou acionadas conforme os diferentes
momentos vividos por um sujeito condizem com a multiplicidade de representações de
Zequinha, que consegue congregar sujeitos heterogêneos, diferente do que ocorre com um
discurso que traz apenas características e elementos análogos, que apenas serão capazes de
representar uma parcela restrita da população e de comportamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012.
BOGUSZEWSKI, José Humberto. A primeira impressão é a que fica: imagens, imaginário
e cultura da alimentação no Paraná (1884-1940). 2012, 172 f. Tese (Doutorado em História)
– Departamento de História. Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
33 Idem. P. 13
34 Idem. PP. 12-13.
CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no
Paraná. 1853-1953. Tese de doutorado. UFPR, 2007.
CARVALHO, José Murilo de . A formação das almas: o imaginário da República no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In: ____________. À beira da
falésia. A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS,
2002.
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1985. p. 178.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição . São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São
Paulo: Martins Fontes, 2007
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
KAMINSKI, Rosane. A presença das imagens nas revistas curitibanas entre 1900-1920.
R. Cient./FAP, Curitiba, v.5, p.149-170, jan./jun. 2010.
KERN, Maria Lúcia Bastos. A imagem visual na nova história e história da arte. 1996. PP.
97-109. Porto Arte, Porto Alegre, v.7, n.13, p. 97-109, nov. 1996.
PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo: Cultura e Imaginário no Paraná da I
República. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História. Universidade
Federal do Paraná. 1986
QUELUZ, Marilda. Traços Urbanos: A Caricatura em Curitiba no início do século XX.
São Paulo, 2002. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUC/SP.