Post on 05-Dec-2014
AS CRÔNICAS DE WARDSTONE
Livro I O APRENDIZ DO MAGO
UM MISTÉRIO ENVOLVE O PONTO MAIS ELEVADO DO CONDADO, DIZEM
QUE MORREU UM HOMEM LÁ DURANTE UMA GRANDE TEMPESTADE,
ENQUANTO APRISIONAVA UM MAL QUE AMEAÇAVA O MUNDO INTEIRO, DEPOIS O GELO VOLTOU E, QUANDO DESA-
PARECEU, ATÉ AS FORMAS DAS COLINAS E OS NOMES DOS LUGARES
NOS VALES TINHAM MUDADO, AGORA, NÃO RESTA QUALQUER VESTÍGIO DO QUE ACONTECEU HÁ TANTO TEMPO NAQUELE PONTO
MAIS ELEVADO DOS CAMPOS, MAS O SEU NOME PERDUROU, CHAMAM-
LHE. .
A PEDRA VIGILANTE.
CAPÍTULO 1
UM SÉTIMO FILHO
Quando o Mago chegou, a luz já começava a diminuir. Fora um dia longo e duro e eu estava pronto para a ceia.
— Tem certeza de que ele é um sétimo filho? —
perguntou. Mirava-me de alto a baixo e abanava a cabeça, cheio de dúvidas.
O meu pai anuiu.
— E você também é um sétimo filho?
O meu pai voltou a anuir e começou a bater impacientemente com os
pés, salpicando-me as calças de gotículas de lama e estrume. A chuva
escorria-lhe pela pala do boné. Chovera durante a maior parte do mês. Havia folhas novas nas árvores, mas o tempo primaveril ainda tardava
muito. O meu pai era agricultor, tal como o pai dele também fora, e a
primeira regra da agricultura é manter a terra unida. Não pode ser dividida pelos filhos, senão vai ficando menor a cada geração, até não
restar nada. Por isso, um pai deixa a fazenda ao filho mais velho. Depois
arranja ocupações para os restantes. Se possível, tenta encontrar um ofício para cada um. Para tal, precisa de muitos favores. O ferreiro local
é uma opção, em especial se a propriedade for grande e ele lhe tiver
solicitado bastante trabalho. Então, é provável que o ferreiro ofereça um aprendizado, mas ainda só fica com um filho arrumado na vida.
Eu era o sétimo e, quando chegou a minha vez, tinham-se esgotado os
favores. O meu pai estava tão desesperado que tentou mesmo convencer o Mago a aceitar-me como seu aprendiz. Ou, pelo menos, foi
o que pensei na altura. Devia ter desconfiado que a mão da minha mãe
andava ali. Ela estava por trás de muitas coisas. Muito antes de eu nascer, fora o
dinheiro dela que comprara a nossa fazenda. De que outra forma poderia
um sétimo filho tê-la adquirido? E a minha mãe não era do Condado. Vinha de uma terra distante, do outro lado do mar. A maioria das
pessoas não reparava, mas por vezes, se escutasse com muita atenção,
havia uma ligeira diferença na maneira como ela pronunciava certas palavras.
Mas não julguem que eu estava sendo vendido como escravo ou algo
assim. Fosse como fosse, estava farto de agricultura e aquilo que chamavam «a vila» pouco mais era do que uma aldeota para lá do Sol
poente. Não era certamente um lugar onde quisesse passar o resto da
minha vida. Por isso, de certa forma, agradava-me bastante a idéia de ser Mago; era bem mais interessante do que ordenhar vacas ou fertilizar
a terra.
Mas sentia-me bastante nervoso, porque era um trabalho assustador.
Iria aprender a proteger fazendas e aldeias das coisas que andam por aí
à noite. Lidar com fantasmas, demônios e todo o tipo de seres maléficos, tudo faria parte de uma rotina normal. Era o que o Mago fazia e eu ia ser
seu aprendiz.
— Quantos anos ele tem? — perguntou o Mago. — Fará treze em Agosto próximo.
— É um bocado baixo para a idade. Sabe ler e escrever?
— Sim — respondeu o meu pai. — Sabe ambas as coisas e também sabe grego. A minha mãe ensinou-o e já conseguia falar antes mesmo de
andar.
O Mago anuiu e olhou para o caminho enlameado que se estendia do
portão em direção à casa da fazenda, como se escutasse algo. Depois
encolheu os ombros.
— Já é uma vida bastante dura para um homem, quanto mais um rapaz — disse. — Acha que ele está à altura?
— Ele é forte e será tão grande quanto eu quando chegar à idade adulta
— retorquiu o meu pai, endireitando as costas e erguendo-se em toda a sua altura. Mesmo assim, o alto da sua cabeça ficava exatamente ao
nível do queixo do Mago.
De repente, o Mago sorriu. Era a última coisa que eu estava esperando. O seu rosto era grande e parecia ter sido esculpido em pedra. Até ali
achara-o um bocado mal-encarado. A sua capa preta e comprida e o
capuz faziam lembrar um padre, mas quando ele nos olhava diretamente, a sua expressão sinistra fazia-o assemelhar-se mais a um
carrasco a avaliar-nos por causa da corda.
O cabelo que aparecia sob a parte da frente do capuz condizia com a barba, que era grisalha, mas tinha sobrancelhas pretas e muito
espessas. Saíam-lhe também uns pêlos pretos das narinas, e os seus
olhos eram verdes, a mesma cor dos meus. Reparei então em algo mais nele. Trazia um bordão comprido. Claro que
o vira mal ele aparecera, mas não percebera até àquele momento de
que o segurava na mão esquerda. Quereria dizer que era canhoto como eu? Fora algo que me trouxera
muitos problemas na escola da aldeia. Até tinham chamado o pároco
local para me observar e ele abanara constantemente a cabeça e dissera-me que teria de contrariar o hábito antes que fosse tarde
demais. Não entendi ao que se referia. Nenhum dos meus irmãos era
canhoto nem tampouco o meu pai. No entanto, a minha mãe é canhota e isso nunca pareceu incomodá-la sobremaneira, por isso, quando o
professor ameaçou fazer-me perder a mania à pancada e me amarrou a
caneta à mão direita, ela tirou-me imediatamente da escola e daquele dia em diante ensinou-me em casa.
— Quanto quer para aceitá-lo? — perguntou o meu pai, interrompendo
os meus pensamentos. Agora é que estávamos verdadeiramente a
negociar. — Dois guinéus por um mês, como experiência. Se ele tiver jeito,
voltarei no Outono e ficará me devendo outros dez. Se não, trago-o de
volta e será só mais um guinéu pelo incômodo que tive. O meu pai voltou a anuir e o negócio se fez. Fomos até ao celeiro e
pagaram-se os guinéus, mas não houve aperto de mãos. Ninguém
queria tocar num Mago. O meu pai era um homem corajoso, ao estar ali a menos de dois metros dele.
— Tenho um assunto a tratar aqui perto — disse o Mago —, mas virei
buscar o rapaz ao raiar do dia. Ele que esteja pronto. Não gosto que me
deixem esperando.
Quando ele se foi, o meu pai bateu-me no ombro.
— Agora é uma vida nova para você, filho — disse-me. — Vá se lavar. Acabou-se a agricultura para você.
Quando entrei na cozinha, o meu irmão Jack envolvia a mulher Ellie com
um braço e ela sorria. Gosto muito de Ellie. É calorosa e amiga de uma forma que sentimos que
ela gosta realmente de nós. A minha mãe diz que foi bom para Jack
casar com Ellie porque o ajudou a ficar menos agitado. Jack é o mais velho e o maior de todos nós e, como o meu pai diz às
vezes na brincadeira, o mais bonito de um grupo feioso. É certo que ele
é grande e forte, mas, apesar dos seus olhos azuis e sadias faces coradas, as suas sobrancelhas farfalhudas quase se juntam no meio,
pelo que sempre discordei dessa opinião. Algo que nunca pus em causa
é o fato de ter conseguido atrair uma mulher boa e bonita. Ellie tem o cabelo da cor da palha da melhor qualidade três dias após uma boa
colheita e uma pele que brilha realmente à luz da vela.
— Vou embora amanhã de manhã — anunciei bruscamente. — O Mago vem me buscar ao raiar do dia.
O rosto de Ellie iluminou-se.
— Quer dizer que ele resolveu aceitá-lo? Anuí.
— Vou ficar um mês como experiência.
— Oh, muito bem, Tom! Fico realmente satisfeita por você — disse ela. — Não acredito! — zombou Jack. — Você, aprendiz de um Mago! Como
pode exercer semelhante ofício, se não consegue adormecer sem uma
vela acesa? Ri da piada dele, mas tinha razão. Às vezes via coisas no escuro e uma
vela era a melhor maneira de mantê-las afastadas para poder dormir um
pouco. Jack veio direto a mim e, com uma gargalhada, prendeu-me a cabeça e
começou a arrastar-me em volta da mesa da cozinha. Era a sua idéia de
brincadeira. Ofereci apenas a resistência suficiente para satisfazê-lo e
passados alguns segundos ele me soltou e deu-me uma palmada nas
costas. — Muito bem, Tom — disse ele. — Vai fazer uma fortuna com esse ofício. No entanto, só há um problema. .
— Qual é? — indaguei.
— Vai precisar de todos os cêntimos que ganhar. Sabe porquê?
Encolhi os ombros.
— Porque os únicos amigos que vai ter serão aqueles que comprar! Tentei sorrir, mas havia um grande fundo de verdade nas palavras de
Jack. Um Mago trabalhava e vivia sozinho.
— Oh, Jack! Não seja cruel! — admoestou Ellie.
— Foi só uma piada — replicou Jack, como se não compreendesse a
razão de tanto desagrado de Ellie.
Mas Ellie olhava para mim e não para Jack e vi o seu rosto de repente esmorecer.
— Oh, Tom! — lamentou-se. — Isto quer dizer que não estará aqui
quando o bebê nascer. . Parecia realmente desapontada e fiquei triste por não estar em casa para
ver a minha nova sobrinha. A minha mãe dissera que ia ser uma menina
e ela nunca se enganava nestas coisas. — Virei fazer uma visita assim que puder — prometi.
Ellie fez um esforço para sorrir, e Jack aproximou-se e apoiou o braço
nos meus ombros. — Terá sempre a sua família — disse. — Estaremos sempre aqui, se
precisar de nós.
Uma hora depois, sentei-me à mesa para jantar, sabendo que partiria de manhã. O meu pai deu graças como fazia todas as noites e todos nós
murmuramos «Amém»
exceto a minha mãe. Limitara-se a olhar para a comida como sempre, esperando educadamente até terminar.
Quando a prece acabou, a minha mãe esboçou-me um pequeno sorriso.
Foi um sorriso caloroso e especial e não creio que mais alguém tivesse percebido. Fez-me sentir melhor.
O fogo continuava aceso na lareira, enchendo a cozinha de calor. No
centro da nossa grande mesa de madeira havia um candelabro de latão, que fora polido até se conseguir ver nele o rosto. Era uma vela cara,
feita de cera de abelha, mas a minha mãe não permitia sebo na cozinha,
por causa do cheiro. O meu pai tomava a maior parte das decisões sobre a fazenda, mas em algumas coisas ela levava a sua por diante.
Quando atacamos os nossos pratões de guisado fumegante, ocorreu-me
que o meu pai parecia envelhecido naquela noite — envelhecido e cansado — e havia uma expressão que se estampava no seu rosto de
tempos em tempos, uma pontinha de tristeza. Mas animou-se um pouco
quando começou a trocar impressões com Jack sobre o preço da carne
de porco e se era ou não o momento certo para chamar o matador de
porcos. — É melhor esperarmos mais um mês ou dois —
afirmou o meu pai. — Com certeza o preço vai subir.
Jack abanou a cabeça e começaram a discutir. Era uma discussão amigável, daquelas que as famílias têm com freqüência, e poderia se
dizer que o meu pai estava gostando. No entanto, eu não participei.
Tudo aquilo chegara ao fim para mim. Como dissera o meu pai, acabara-se a agricultura para mim.
A minha mãe e Ellie riam baixinho. Tentei escutar o que diziam, mas
entretanto Jack estava todo entusiasmado, a sua voz subindo cada vez
mais de tom. Quando a minha mãe olhou para ele, vi que estava
saturada do barulho que ele fazia. Ignorando os olhares da minha mãe e
continuando a discutir sonoramente, Jack estendeu a mão para o saleiro e, sem querer, derrubou-o, entornando um pequeno cone de sal no
tampo da mesa. Logo em seguida, pegou uma pitada e atirou-a por cima
do ombro esquerdo. É uma velha superstição do Condado. Com este gesto, estaremos afastando o azar adveniente do seu derramamento.
— Jack, a verdade é que nem precisa de pôr sal —
ralhou a minha mãe. — Estraga um bom guisado e é um insulto à cozinheira!
— Desculpe, mãe — justificou-se Jack. — Tem razão. Assim está
perfeito. Ela sorriu, depois indicou-me com um gesto de cabeça. — E depois,
ninguém está dando atenção a Tom.
Não deve ser tratado assim na sua última noite em casa. — Eu estou bem, mãe — assegurei-lhe. — Já me satisfaz estar aqui
sentado ouvindo.
A minha mãe anuiu. — Bem, tenho algumas coisas a dizer-te. Depois da ceia fique na cozinha
para termos uma conversinha.
Assim, depois que Jack, Ellie e o meu pai terem ido se deitar, sentei-me numa cadeira junto à lareira e aguardei pacientemente para ouvir o que
a minha mãe tinha a dizer.
A minha mãe não era mulher de grandes espalha-fatos; a princípio não disse muito, além de explicar o que estava preparando para eu levar:
um par de calças de reserva, três camisas e dois pares de meias boas
que só tinham sido cerzidas uma vez cada. Olhei para as cinzas da lareira batendo com os pés nas lajes, enquanto a
minha mãe se levantava da cadeira de balanço e a posicionava de modo
a ficar bem de frente para mim. O seu cabelo preto apresentava alguns fios brancos, mas além disso, parecia-me praticamente igual a quando
eu começara a dar os primeiros passos, mal lhe chegando aos joelhos.
Os seus olhos continuavam brilhantes e, à exceção da pele pálida,
parecia vender saúde.
— Esta é a última vez que vamos poder conversar um pouco — disse ela. — É um grande passo sair de casa e iniciar uma vida nova. Por isso, se
quiser dizer alguma coisa, se precisar perguntar alguma coisa, agora é o
momento para fazê-lo. Não me ocorreu uma só pergunta. Na verdade, não conseguia sequer
pensar. Só de ouvi-la dizer tudo aquilo, senti as lágrimas começarem a
atormentar-me os olhos. O silêncio continuou durante um bom tempo. Apenas se ouvia o ruído
dos meus pés nas lajes. Por fim, a minha mãe soltou um pequeno
suspiro.
— O que se passa? — perguntou-me. — O gato comeu sua língua?
Encolhi os ombros.
— Pare com esse desassossego, Tom, e concentre-se no que estou dizendo — advertiu a minha mãe. —
Em primeiro lugar, está ansioso para que chegue o dia de amanhã, para
começar a aprender o seu novo ofício? — Não tenho certeza, mãe — disse-lhe, recordando a piada de Jack a
respeito de ter de comprar os amigos.
— Ninguém quer se aproximar de um Mago. Não terei amigos. Estarei sozinho o tempo todo.
— Não será tão mau quanto julga — redarguiu a minha mãe. — Terá o
seu mestre com quem conversar. Ele será o seu professor, e sem dúvida acabará por se tornar seu amigo. E estará ocupado o tempo todo.
Ocupado a aprender coisas novas. Não terá tempo para se sentir
sozinho. Não acha toda esta novidade entusiasmante? — Entusiasmante é, mas o ofício assusta-me.
Quero segui-lo, mas não sei se sou capaz. Uma parte de mim quer viajar
e conhecer outros lugares, mas será difícil deixar de viver aqui. Vou sentir saudades de todos. Vou sentir falta de estar em casa.
— Não pode ficar aqui — disse a minha mãe. — O
seu pai está velho demais para trabalhar e no próximo Inverno vai entregar a fazenda a Jack. Ellie terá o bebê em breve, sem dúvida o
primeiro de muitos; acabará por não haver espaço para você aqui. Não,
o melhor é se acostumar antes que isso aconteça. Não pode voltar para casa.
A voz dela pareceu fria e um pouco sacudida, mas ao ouvi-la falar
comigo daquela maneira, senti subitamente uma dor profunda no peito e na garganta, a ponto de mal conseguir respirar.
Só queria ir para a cama, mas ela tinha muito que dizer. Raramente a
ouvira usar tantas palavras de uma só vez. — Tem um trabalho a fazer e vai fazê-lo — disse-me em tom austero. — E não é só fazê-lo; é fazê-lo
bem. Casei com o seu pai porque ele era um sétimo filho.
E dei-lhe seis filhos para poder ter a você. Você é sete vezes sete e
possui o dom. O seu novo mestre ainda é forte, mas já não é o que era e
um dia vai finalmente chegar a sua hora. Há quase sessenta anos que percorre as linhas do Condado cumprindo o seu dever. Fazendo o que
tem de ser feito. Em breve será a sua vez. E, se não o fizer, quem o
fará? Quem olhará pela gente comum? Quem a protegerá do mal? Quem tornará as fazendas, aldeias e vilas seguras, para que as mulheres e as
crianças possam andar nas ruas e veredas sem receio?
Não soube o que dizer e não consegui olhá-la nos olhos. Esforcei-me apenas por reprimir as lágrimas.
— Gosto muito de todos nesta casa — prosseguiu ela, a voz agora mais
branda — mas, em todo o Condado, você é a única pessoa realmente
como eu. E, no entanto, não passa de um menino que ainda tem muito
que crescer, mas é o sétimo filho de um sétimo filho. Possui o dom e a
força para fazer o que tem de ser feito. Sei que vai me encher de orgulho.
— Ora ainda bem — concluiu a minha mãe, pondo-se em pé — que
resolvemos isto. Agora vá se deitar. Amanhã é um grande dia e quero que esteja no seu melhor.
Levei um abraço e um sorriso caloroso e esforcei-me realmente por me
mostrar animado e retribuir o sorriso, mas assim que cheguei ao meu quarto, sentei-me na beira da cama, de olhar vago e a pensar no que a
minha mãe me dissera.
A minha mãe é muito respeitada na vizinhança. Sabe mais de plantas e remédios caseiros do que o médico local, e quando há dificuldade em
fazer nascer um bebê, a parteira manda sempre chamá-la. A minha mãe
é perita no que ela chama de partos pélvicos. Às vezes, um bebê tenta nascer com os pés para a frente, mas a minha mãe sabe virá-lo
enquanto ainda está na barriga. Há dúzias de mulheres no Condado que
lhe devem a vida. Pelo menos era o que o meu pai estava sempre dizendo, mas a minha
mãe era modesta e nunca mencionava semelhantes coisas. Limitava-se
a fazer o que era preciso e eu sabia que ela esperava o mesmo de mim. Por isso queria enchê-la de orgulho. Mas era mesmo verdade que só se
casara com o meu pai e tivera os meus seis irmãos para poder me dar à
luz? Não parecia possível. Depois de pensar muito bem em tudo, fui até a janela virada para o
norte e sentei-me na velha cadeira de vime durante alguns minutos,
olhando lá para fora. A lua brilhava, banhando tudo com a sua luz prateada. Conseguia ver
para lá do pátio da fazenda, os dois campos de feno e a pastagem norte,
e mesmo até o limite da nossa fazenda, que terminava a meio da Colina do Carrasco. Gostava da paisagem. Gostava da Colina do Carrasco ao
longe. Gostava que fosse a coisa mais distante que se conseguia avistar.
Durante anos, fizera isto antes de subir para a cama, todas as noites.
Costumava olhar para aquela colina e imaginar o que haveria do outro
lado. Na realidade, sabia que eram apenas mais campos e a seguir, três quilômetros mais adiante, o que era considerado a aldeia local — meia
dúzia de casas, uma pequena igreja e uma escola ainda menor —, mas a
minha imaginação criava outras coisas. Às vezes imaginava penhascos altos com um oceano do outro lado, ou
quem sabe uma floresta ou uma grande cidade com torres altas e luzes
a cintilar. Mas agora, ao contemplar a colina, recordei também o meu medo. Sim,
era bonita, vista de longe, mas não era um local de que eu quisesse me
aproximar. A Colina do Carrasco, como já terão adivinhado, não obtivera
o seu nome em vão.
Três gerações antes, alastra uma guerra por toda a terra e os homens
do Condado tinham participado dela. Fora a pior de todas as guerras — uma guerra civil amarga em que as
famílias haviam ficado divididas e em que, por vezes, irmão chegara a
lutar contra irmão. No último Inverno da guerra, houvera uma grande batalha cerca de
quilômetro e meio a norte, exatamente nos arredores da aldeia. Quando
finalmente terminou, o exército vitorioso trouxe os prisioneiros até esta colina e enforcou-os nas árvores da vertente setentrional. Enforcaram
igualmente alguns dos seus homens, invocando atos de covardia perante
o inimigo, mas circulava outra versão daquela história. Diziam que alguns destes homens tinham se recusado a lutar contra pessoas que
consideravam seus vizinhos.
Nem mesmo Jack gostava de trabalhar perto da vedação confinante, e os cães não queriam avançar mais que alguns passos na mata. Quanto a
mim, em virtude de conseguir sentir coisas que os outros não sentem,
não era sequer capaz de trabalhar na pastagem norte. Sabem, é que eu os ouvia dali. Ouvia as cordas chiando e os ramos gemendo sob o peso
deles. Ouvia os mortos serem estrangulados e sufocarem do outro lado
da colina. A minha mãe dizia que éramos iguais. Bem, ela era sem dúvida igual a
mim num aspecto: eu sabia que ela também via coisas que os outros
não conseguiam ver. Num Inverno, eu era muito jovem e todos os meus ir-mãos viviam em
casa, os ruídos na colina eram tão fortes à noite que os ouvia até do
meu quarto. Os meus irmãos não davam por nada, mas eu sim, e não conseguia dormir.
A minha mãe vinha ao meu quarto sempre que eu chamava, apesar de
ter que se levantar ao raiar do dia para efetuar as tarefas domésticas.
Por fim, disse que ia resolver o assunto e, uma noite, subiu sozinha à
Colina do Carrasco e foi até junto das árvores. Quando regressou, estava
tudo calmo e assim ainda se mantinha depois de meses. Por isso, havia um aspecto em que divergíamos.
A minha mãe era muito mais corajosa do que eu.
CAPÍTULO 2
PELA ESTRADA FORA
Levantei-me uma hora antes da aurora, mas a minha mãe já se encontrava na cozinha, a preparar o meu desjejum preferido, toucinho
defumado com ovos.
O meu pai veio para baixo quando eu limpava o prato com a última fatia de pão. Quando nos despedimos, ele tirou algo do bolso e colocou-o em
minhas mãos. Era a pequena caixa de mechas que pertencera ao pai
dele e, antes disso, ao avô. Um dos seus objetos pessoais preferidos.
— Quero que fique com isto, filho — disse ele. —
Pode vir a ser útil no seu novo ofício. E venha nos visitar em breve. Só
porque vai sair de casa, isso não significa que não possa regressar para uma visita.
— Está na hora de ir, filho — observou a minha mãe, aproximando-se de
mim para um último abraço. — Ele está ao portão. Não o faça esperar.
Éramos uma família que não gostava de demasiadas efusões e, como já
tínhamos nos despedido, saí sozinho para o pátio. O Mago encontrava-se do outro lado do portão: uma silhueta escura
recortada na luz cinzenta da aurora.
Tinha o capuz sobre a cabeça e erguia-se em toda a sua altura, o bordão na mão esquerda. Encaminhei-me para ele, levando a minha pequena
trouxa de pertences, sentindo-me muito nervoso.
Para minha surpresa, o Mago abriu o portão e entrou no pátio. — Bem, rapaz — disse ele —, siga-me! Agora, poderíamos começar pelo
caminho que tencionamos tomar.
Em vez de se dirigir para a estrada, rumou para o norte, direito à Colina do Carrasco, e não tardamos a atravessar a pastagem norte, o meu
coração já começando a bater forte. Quando chegamos à vedação
confinante, o Mago escalou-a com a agilidade de um homem da metade de sua idade, mas eu fiquei estático. Assim que apoiei as mãos na
extremidade superior da vedação, ouvi os sons das árvores a estalar, os
seus ramos vergados e curvados sob o peso dos enforcados. — O que se passa, rapaz? — perguntou o Mago, virando-se para me
olhar. — Se está com medo de algo bem à sua porta, me será de pouca
serventia. Respirei fundo e passei por cima da vedação. Subimos penosamente, a
luz da aurora escurecendo à medida que penetrávamos na sombra das
árvores. Quanto mais subíamos, mais frio parecia ficar, e não tardou que começasse a tremer. Era o tipo de frio que nos deixa a pele arrepiada e
faz com que os pêlos se ericem na nuca. Já o sentira antes, quando algo
que não pertencia a este mundo se aproximava.
Assim que chegamos ao alto da colina, pude vê-los por baixo de mim. Deviam ser no mínimo uma centena, por vezes dois ou três pendurados
na mesma árvore, vestindo uniformes de soldados com cinturões de
couro largos e botas altas. Tinham as mãos atadas atrás das costas e cada um deles se comportava de maneira diferente. Alguns debatiam-se
desesperadamente, pelo que o ramo por cima deles se agitava e
sacudia, ao passo que outros apenas rodavam lentamente na extremidade da corda, apontando primeiro numa direção, depois na
outra.
Enquanto observava, senti subitamente um vento forte no rosto, um
vento tão frio e intenso que não podia ser natural. As árvores curvaram-
se até o chão e as suas folhas encarquilharam-se e começaram a cair.
Numa questão de momentos, todos os ramos ficaram despidos. Quando o vento cessou, o Mago apoiou a mão no meu ombro e guiou-
me até o enforcado que estava mais perto.
Paramos a poucos passos do mais próximo. — Olhe para ele — disse o Mago. — O que vê?
— Um soldado morto — respondi, a minha voz começando a tremer.
— Que idade aparenta? — Dezessete anos, no máximo.
— Ótimo. Muito bem, rapaz. Agora, diga-me, ainda sente medo?
— Um pouco. Não gosto de estar tão próximo dele. — Por quê? Não há nada a temer. Nada que possa te fazer mal. Pense
no que deve ter sido para ele. Concentre-se nele e não em si. Como terá
se sentido? O que seria a pior coisa? Tentei pôr-me no lugar do soldado e imaginar como deveria ter sido
morrer daquela maneira. A dor e a falta de ar deviam ter sido terríveis.
Mas talvez tivesse acontecido algo ainda pior. — O fato de saber que ia morrer e que nunca mais poderia ir para casa.
Que nunca mais voltaria a ver a família — disse ao Mago.
Ditas aquelas palavras, invadiu-me uma onda de tristeza. Depois, no exato momento em que isso aconteceu, os enforcados começaram a
desaparecer lentamente, até ficarmos sozinhos na vertente da colina e
as folhas voltarem às árvores. — Como se sente agora? Ainda com medo?
Abanei a cabeça.
— Não — respondi. — Sinto-me apenas triste. — Muito bem, rapaz. Está aprendendo. Nós somos os sétimos filhos de
sétimos filhos e possuímos o dom de ver coisas que os outros não
conseguem. Mas, por vezes, esse dom pode ser uma maldição. Se tivermos medo, pode haver coisas que vêm alimentar-se desse medo. O
medo só torna tudo pior para nós. O segredo é concentrar-se naquilo
que consegue ver e parar de pensar em si mesmo.
Funciona sempre. — Foi uma visão terrível, rapaz, mas são apenas imagens
fantasmagóricas — prosseguiu o Mago. — Não há muito que possamos
fazer por elas e com o tempo acabarão sumindo. Daqui a cem anos ou mais, não restará nada.
Queria dizer-lhe que a minha mãe fizera em tempos algo por eles, mas
calei-me. Contradizê-lo teria sido um mau começo para ambos. — Agora, se fossem fantasmas , já seria diferente —
afirmou o Mago. — Pode-se falar com os fantasmas e esclarecê-los sobre
o que se passa. Só o fato de lhes fazer ver que estão mortos é um ato
de enorme bondade e um passo importante para que se vão embora.
Normalmente, um fantasma é um espírito desorientado, preso a esta
terra, mas sem saber o que aconteceu. Por isso, é frequente estarem atormentados. E não só: há outros que estão aqui com uma finalidade
concreta e podem ter algo a dizer. Mas uma imagem fantasmagórica não
é nada mais do que um fragmento de uma alma que alcançou uma situação melhor. Estes eram somente isso, rapaz. Apenas imagens
fantasmagóricas. Viu as árvores mudarem?
— As folhas caíram e era Inverno. — Bem, as folhas agora estão de volta. Por conseguinte, estava apenas
olhando para algo do passado. Apenas uma lembrança das coisas más
que por vezes acontecem nesta terra. Por norma, se for corajoso, não conseguem vê-lo e não sentem nada. Uma imagem fantasmagórica é
apenas como um reflexo num lago que fica para trás quando a pessoa a
quem pertence seguiu caminho. Compreende o que estou dizendo? Acenei com a cabeça.
— Bom, este assunto já está resolvido. De vez em quando, iremos lidar
com os mortos, para que fique bem acostumado a eles. De qualquer forma, vamos começar.
Temos um longo caminho a percorrer.
— Tome, a partir de agora vai levar isto. O Mago entregou-me o seu enorme saco de couro e, sem olhar para
trás, continuou a subir a colina. Segui-o até o alto, depois desci por
entre as árvores em direção à estrada, que era uma cicatriz cinzenta distante a serpentear para sul através da manta de retalhos verde e
castanha dos campos.
— Viajou muito, rapaz? — O Mago falou por cima do ombro. — Viu grande parte do Condado?
Respondi-lhe que nunca me afastara mais de dez quilômetros da fazenda
do meu pai. O mais longe que viajara fora até o mercado local. O Mago murmurou algo entre dentes e abanou a cabeça; pude ver que
não ficara muito satisfeito com a minha resposta.
— Bem, as suas viagens começam hoje — disse-me. — Vamos para sul,
em direção a uma aldeia chamada Horshaw. Fica apenas a vinte e cinco
quilômetros em linha reta e temos de chegar lá antes de escurecer. Ouvira falar de Horshaw. Era uma aldeia mineira e possuía os maiores
depósitos de carvão do Condado, recebendo a produção de dúzias de
minas circundantes. Nunca esperara ir lá e fiquei curioso em relação ao que o Mago poderia
querer de um lugar daqueles.
Caminhava a bom ritmo, dando grandes passadas sem esforço. Não tardei a ter dificuldade em acompanhá-lo; além de carregar a minha
própria trouxa de roupas e outros pertences, tinha também que levar o
saco enorme dele, que parecia ficar mais pesado a cada instante.
Depois, para piorar as coisas, começou a chover.
Cerca de uma hora antes do meio-dia, o Mago parou subitamente. Virou-
se e olhou-me com dureza. Nesta altura, eu estava cerca de dez passos atrás. Doíam-me os pés e já começara a mancar ligeiramente. A estrada
pouco mais era do que uma trilha de terra batida que rapidamente se
transformou em lama. Exatamente quando o alcancei, dei uma topada, escorreguei e quase perdi o equilíbrio.
Ele manifestou impaciência.
— Sente-se tonto, rapaz? — perguntou. Abanei a cabeça. Queria dar um pouco de descanso ao braço, mas não
me pareceu correto pousar o saco dele na lama. — Isso é bom —
comentou o Mago com um ligeiro sorriso, a chuva a escorrer da orla do seu capuz para a barba. — Nunca confie num homem que se
desequilibra. Eis algo que convém mesmo não esquecer.
— Não estou tonto — protestei. — Não? — indagou o Mago, arqueando as sobrancelhas espessas. —
Nesse caso, devem ser suas botas.
Não serão muito úteis nesta ocupação. As minhas botas eram iguais às do meu pai e às de Jack,
suficientemente fortes e adequadas para a lama e o esterco do pátio da
fazenda, mas daquelas a que levávamos tempo a acostumar-nos. Um novo par custava-nos por norma quinze dias de bolhas, antes dos pés se
adaptarem.
Olhei para as do Mago. Eram feitas de couro forte, de boa qualidade, e possuíam solas muito espessas. Deviam ter custado uma fortuna, mas
calculo que, para alguém que caminhava muito, valiam cada cêntimo.
Flexionam-se quando ele andava e percebi que haviam sido confortáveis desde o primeiro momento em que as calçou.
— Um bom par de botas é importante neste ofício
— anunciou o Mago. — Não dependemos nem do homem nem dos animais para nos levarem aonde queremos ir. Se contar com as suas
duas pernas boas, elas não te decepcionarão. Por conseguinte, se eu
resolver aceitá-lo, arranjarei um par de botas iguais às minhas. Até lá,
terá que se arrumar o melhor que puder com essas.
Ao meio-dia, paramos para uma breve pausa, abrigando-nos da chuva num alpendre para gado abandonado.
O Mago tirou um pedaço de pano do bolso e desembrulhou-o, revelando
um grande naco de queijo amarelo. Partiu um pedaço e entregou-me. Já vira pior e estava com fome, por
isso engoli-o vorazmente. O Mago comeu apenas um pequeno pedaço
antes de embrulhar o resto e enfiá-lo de novo no bolso. Uma vez abrigado da chuva, empurrou o capuz pa-ra trás, pelo que tive
finalmente a oportunidade de vê-lo bem. Além da barba comprida e dos
olhos de carrasco, o seu traço fisionômico mais perceptível era o nariz,
sinistro e pronunciado, com uma curvatura que fazia lembrar o bico de
uma ave. A boca, quando fechada, ficava quase escondida pelo bigode e
a barba. A primeira vista, julgara-a grisalha, mas, quando olhei melhor, tentando ser o mais discreto possível para que ele não se desse conta,
reparei que parecia irradiar dela a maior parte das cores do arco-íris.
Havia tonalidades de vermelho, negro, castanho e, obviamente, muito cinzento, mas, como vim a perceber mais tarde, tudo dependia da luz.
«Queixo pequeno, caráter fraco», costumava dizer o meu pai, e ele
acreditava também que alguns homens usavam barba apenas para ocultar esse fato. No entanto, ao olhar para o Mago, podia ver-se,
apesar da barba, que tinha um queixo comprido e, quando abria a boca,
revelava uns dentes amarelos que eram muito aguçados e mais adequados para devorar carne vermelha do que mordiscar queijo. Com
um arrepio, percebi subitamente de que ele me fazia lembrar um lobo. E
não era apenas a forma como olhava. Ele era uma espécie de predador porque perseguia o escuro; vivia unicamente de mordiscadas de queijo
que o deixariam sempre esfomeado e o tornariam ruim. Se concluísse o
meu aprendizado, acabaria igualzinho a ele. — Ainda tem fome, rapaz? — inquiriu, os seus olhos verdes cravando-se intensamente nos meus
até começar a sentir-me um pouco tonto.
Estava encharcado até os ossos e doíam-me os pés, mas tinha sobretudo fome. Então anuí, pensando que ele fosse me oferecer um pouco mais,
mas limitou-se a abanar a cabeça e a murmurar algo para si mesmo.
Depois, e mais uma vez, olhou-me intensamente. — A fome é algo a que vai ter que se acostumar —
disse. — Não comemos muito quando estamos trabalhando e, se for um
trabalho muito difícil, não comemos nada senão depois. O jejum é a coisa mais segura porque nos torna menos vulneráveis ao escuro. Deixa-
nos mais fortes. Por isso pode começar a treinar desde já, pois quando
chegarmos a Horshaw vou submetê-lo a um pequeno teste. Vai passar uma noite numa casa assombrada.
E vai fazê-lo sozinho. Assim, poderei avaliar realmente a sua fibra!
CAPÍTULO 3
O NÚMERO 13 DE WATERY LANE
Chegamos a Horshaw quando o sino da igreja começou a se ouvir ao
longe. Eram sete horas e começava a escurecer. Uma chuva forte batia-
nos diretamente no rosto, mas ainda havia luz suficiente para eu poder ver que este não era um lugar onde quisesse viver e ao qual até uma
curta visita seria de evitar.
Horshaw era uma mancha negra nos campos verdes, um lugarzinho
lúgubre e feio com cerca de duas dúzias de filas de casas humildes de
costas umas para as outras, amontoando-se principalmente na vertente
sul de uma colina úmida e inóspita. Toda a zona estava crivada de minas e Horshaw ficava no meio delas. Bem acima da aldeia via-se um enorme
monte de escórias que assinalava a entrada de mais uma mina. Por
detrás do monte de escórias ficavam os depósitos de carvão, que armazenavam combustível suficiente para aquecer as maiores cidades
do Condado, mesmo durante os Invernos mais longos.
Não tardamos a percorrer as estreitas ruas empedradas, mantendo-nos junto das paredes enegrecidas a fim de evitarmos as carroças
carregadas de bocados de carvão preto, molhado e brilhante da chuva.
Os enormes cavalos de tiro que as puxavam esforçavam-se sob as suas cargas, os cascos escorregando no empedrado reluzente.
Havia poucas pessoas no exterior, mas as cortinas de renda agitavam-se
à nossa passagem, e até nos cruzamos com um grupo de mineiros carrancudos, que subia penosamente a colina para iniciar o turno da
noite. Os homens iam falando em voz alta, mas calaram-se subitamente
e colocaram-se em fila única a fim de passarem por nós, mantendo-se sempre do outro lado da rua. Um deles chegou mesmo a se benzer.
— Vá se habituando, rapaz — resmungou o Mago.
— Somos necessários, mas raramente bem-vindos, e alguns lugares são piores do que outros.
Por fim, dobramos uma esquina para a rua mais inferior e com pior
aspecto de todas. Ninguém vivia ali — via-se logo. Em primeiro lugar, algumas das janelas estavam quebradas e outras vedadas e, apesar de
ser quase noite, não se viam luzes acesas. Num extremo da rua ficava
um armazém de comércio de cereais abandonado, as duas enormes portas de madeira escancaradas e pendendo das dobradiças
enferrujadas.
O Mago parou junto da última casa. Era a que ficava na esquina mais próxima do armazém, a única casa na rua que tinha número. Esse
número fora feito em metal e pregado na porta. Era o treze, o pior e
mais nefasto de todos os números, e havia uma tabuleta com o nome da
rua no alto da parede, pendendo de um único rebite enferrujado e
apontando quase verticalmente para o empedrado. Nela, lia-se, WATERY LANE.
Esta casa tinha vidraças, mas as cortinas de renda estavam amarelas e
cheias de teias de aranha. Devia ser a casa assombrada de que o meu mestre me falara.
O Mago tirou uma chave do bolso, abriu a porta e seguiu na frente até a
escuridão lá dentro. A princípio, até fiquei contente por me abrigar da chuva, mas quando ele acendeu uma vela e a colocou no chão mais ou
menos no meio da pequena divisão da frente, soube que ficaria mais
confortável num estábulo abandonado. Não se via uma única peça de
mobiliário, apenas o chão lajeado despido e um monte de palha suja
debaixo da janela. A divisão também estava úmida, o ar muito
desagradável e frio, e podia ver o vapor da minha respiração à luz tremulante da vela.
Se aquilo que via já era suficientemente mau, o que ele disse foi bem
pior. — Bom, rapaz, tenho uns assuntos a tratar, por isso vou andando, mas
voltarei mais tarde. Sabe o que tem a fazer?
— Não, senhor — respondi, observando o tremular da vela, receoso de que pudesse apagar-se a qualquer instante.
— Bem, é o que te disse antes. Não estava ouvindo? Tem que ficar
acordado, e não sonhando. De qualquer forma, não é muito difícil — explicou, coçando a barba como se algo andasse a rastejar nela. — Só
tem que passar a noite aqui sozinho. Trago todos os meus novos
aprendizes a esta casa velha na sua primeira noite, para avaliar a fibra deles. Oh, mas há uma coisa que ainda não te disse. À meia-noite, quero
que desça à cave1 e enfrente o que quer que se esconde lá. Se
conseguir agüentar, estará no bom caminho para ser aceito em caráter permanente.
Há alguma pergunta que queira fazer?
Perguntas não me faltavam, mas estava assustado demais para ouvir as respostas. Por isso abanei a cabeça e tentei evitar que meu lábio
superior tremesse.
— Como saberá que é meia-noite? — inquiriu ele. Encolhi os ombros. Eu me desvencilhava bastante bem adivinhando as
horas pela posição do sol ou das estrelas e, se por acaso acordasse no
meio da noite, sabia 1 Porão, adega ou divisão subterrânea quase sempre que horas eram, mas aqui não tinha tanta certeza. Em
alguns lugares o tempo parece passar mais lentamente e tinha a
sensação de que esta casa velha iria ser um deles. De repente, lembrei-me do relógio da igreja.
— Deram há pouco as sete — afirmei. — Ouvirei as doze badaladas.
— Bem, pelo menos agora está acordado — disse o Mago com um leve
sorriso. — Quando o relógio der a meia-noite, pegue o toco da vela e
sirva-se dele para encontrar o caminho para a cave. Até lá, durma, se for capaz. Agora, ouça com atenção — há três coisas importantes para
não esquecer. Não abra a porta da rua para ninguém, por mais
insistentemente que bata, e não se atrase para descer à cave. Deu um passo em direção à porta da rua.
— Qual é a terceira coisa? — perguntei em alto e bom som no último
instante. — A vela, rapaz. Faça o que fizer, não deixe que ela se apague. .
A seguir, foi-se, fechando a porta atrás de si, e fiquei completamente
sozinho. Cautelosamente, peguei a vela, fui até à porta da cozinha e
espreitei lá para dentro.
Estava completamente vazia, com exceção de uma pia de pedra. A porta
dos fundos encontrava-se fechada, mas o vento soprava ainda por baixo dela. Havia duas outras portas à direita. Uma estava aberta e deixava
ver as escadas de madeira que conduziam aos quartos no piso de cima.
A outra, a mais próxima de mim, estava fechada. Algo me deixou inquieto a respeito daquela porta fechada, mas decidi ir
dar uma espreitadela rápida. Cheio de nervosismo, agarrei o puxador e
dei um puxão na porta. Não se deslocou e por um momento tive a arrepiante sensação de que alguém a mantinha fechada do outro lado.
Quando lhe dei um puxão ainda mais forte, abriu-se bruscamente,
fazendo-me perder o equilíbrio. Recuei alguns passos e quase larguei a vela.
Uma escada de pedra conduzia à escuridão; estava negra do pó de
carvão. Curvava para a esquerda, pelo que não pude ver diretamente a cave, mas subiu por ela uma corrente de ar frio, fazendo a chama da
vela dançar e tremular. Fechei rapidamente a porta e voltei para a
divisão da frente, fechando igualmente a porta da cozinha. Pousei cuidadosamente a vela no canto mais distante da porta e da
janela. Assim que me certifiquei de que não tombaria, procurei um lugar
no chão onde pudesse dormir. Não havia muito por onde escolher. Certamente não ia dormir na palha úmida, por isso instalei-me no meio
da divisão.
As lajes eram duras e frias mas fechei os olhos. Mal adormecesse, me afastaria daquela casa velha e lúgubre e estava confiante de que
acordaria bem antes da meia-noite.
Normalmente, não tenho dificuldade em adormecer, mas ali era diferente. Não parava de tremer de frio e o vento começava a sacudir as
vidraças. Havia também sussurros e ruídos que vinham das paredes. São
apenas ratos, disse para mim mesmo diversas vezes. Estávamos sem dúvida acostumados a eles, na fazenda. Mas depois, repentinamente,
chegou um novo som perturbador lá de baixo, das profundezas da cave
escura.
A princípio foi fraco, levando-me a apurar o ouvido, mas depois cresceu gradualmente até deixar de ter dúvidas a respeito do que conseguia
ouvir. Acontecia algo lá em baixo, na cave, que não deveria estar
acontecendo. Alguém cavava ritmicamente, revolvendo terra pesada com uma pá
pontiaguda de metal. Primeiro ouviu-se o raspar da extremidade de
metal numa superfície pedregosa, seguido de um som suave de esmagar e sugar na altura em que a pá se cravava fundo no barro pesado e o
libertava da terra.
Continuou por vários minutos até o barulho parar tão subitamente
quanto começara. Reinava o silêncio. Até os ratos pararam com os seus
ruídos. Era como se a casa e tudo nela sustivesse a respiração. Sei que
era o que eu estava fazendo. O silêncio terminou com uma pancada surda ressoante. Depois toda uma
série de pancadas, bem ritmadas.
Pancadas que aumentavam de intensidade. Mais sonoras ainda. E mais próximas também. .
Alguém subia as escadas, vindo da cave. Peguei rapidamente na vela e
encolhi-me no canto mais distante. Pum, pum, o som de botas pesadas cada vez mais próximo. Quem poderia ter estado a cavar lá em baixo, no
escuro? Quem poderia vir neste momento subindo as escadas?
Mas talvez não devesse perguntar quem subia as escadas. Seria talvez mais correto perguntar o quê..
Ouvi a porta da cave abrir-se e o som de botas na cozinha. Encolhi-me
todo ao canto, tentando tornar-me o menor possível, à espera de que a porta da cozinha se abrisse.
E abriu-se, muito devagarinho, com enorme chiadeira. Entrou algo na
sala. Senti então o frio. Verdadeiro frio. O tipo de frio que me dizia que estava próximo de mim algo que não pertencia a esta terra. Era como o
frio na Colina do Carrasco, só que muito, muito pior.
Levantei a vela, a sua chama projetando sombras misteriosas que dançaram pelas paredes acima, até o teto.
— Quem está aí? — perguntei. — Quem está aí?
— A minha voz tremia ainda mais do que a mão que segurava a vela. Não obtive resposta. Até o vento lá fora se silenciara.
— Quem está aí? — tornei a perguntar.
Novamente nenhuma resposta, mas botas invisíveis rasparam nas lajes ao avançarem na minha direção. Estavam cada vez mais próximas e
conseguia ouvir agora uma respiração. Algo grande respirava com
dificuldade. Parecia um enorme cavalo de tiro que acabara de puxar uma carga pesada por uma colina íngreme.
Naquele exato momento, os passos se afastaram de mim e estacaram
perto da janela. Sustive a respiração e a coisa junto à janela pareceu
respirar por ambos, inalando grandes golfadas para os pulmões como se nunca conseguisse ar em quantidade suficiente.
Exatamente quando já não conseguia mais agüentar, aquilo soltou um
grande suspiro que pareceu cansado e triste ao mesmo tempo, e as botas invisíveis rasparam mais uma vez nas lajes, passos pesados que
se afastavam da janela, voltando para a porta. Quando começaram a
descer ruidosamente as escadas da cave, pude voltar finalmente a respirar.
O meu coração começou a desacelerar, as minhas mãos pararam de
tremer e me acalmei gradualmente. Tinha que me recompor. Ficara
assustado, mas se aquilo era o pior que ia acontecer naquela noite,
conseguira ultrapassá-lo, passara no meu primeiro teste. Se ia ser
aprendiz do Mago, então teria que me acostumar a lugares como esta casa assombrada. Ossos do ofício.
Depois de mais ou menos cinco minutos, comecei a me sentir melhor.
Pensei até em tentar dormir mais um pouco, mas, como costuma dizer o meu pai, «Os maus nunca têm descanso». Bem, não sei que mal fizera,
mas outro novo som súbito veio me perturbar.
A princípio foi tênue e distante — alguém batendo em uma porta. Seguiu-se uma pausa, depois voltou a ouvir-se. Três pancadas distintas,
mas um pouco mais próximas, desta vez. Outra pausa e mais três
pancadas. Não demorei muito a perceber o que se passava.
Alguém batia com força a cada porta da rua, aproximando-se cada vez
mais do número treze. Quando chegasse finalmente à casa assombrada, as três pancadas na porta da rua seriam suficientemente sonoras para
acordar os mortos. Iria a coisa na cave subir as escadas para responder
ao chamamento? Senti-me aprisionado entre ambos: algo lá fora querendo entrar; algo lá em baixo que queria libertar-se. E depois,
repentinamente, ficou tudo bem. Uma voz chamou-me do outro lado da
porta da rua, uma voz que reconheci. — Tom! Tom! Abra a porta! Deixe-me entrar!
Era a minha mãe. Fiquei tão contente de ouvi-la que corri para a porta
da rua sem pensar. Chovia lá fora e ela estava se molhando. — Depressa, Tom, depressa! — gritava a minha mãe. — Não me deixe
esperando.
Já levantava a tranca para abri-la, quando me lembrei do aviso do Mago: «Não abra a porta da rua a ninguém, por mais insistentemente que bata.
.»
Mas como eu poderia deixar minha mãe ali no escuro? — Vamos, Tom! Deixe-me entrar — gritou de novo a voz.
Lembrando-me do que o Mago dissera, respirei fundo e tentei pensar. O
senso comum dizia-me que não podia ser ela. Por que motivo me
seguira até ali? Como podia ter sabido para onde íamos? O meu pai ou Jack tê-la-iam acompanhado.
Não, era qualquer outra coisa à espera, lá fora. Algo sem mãos que
mesmo assim conseguia bater à porta. Algo sem pés que conseguia erguer-se no passeio.
As pancadas fizeram-se ouvir com maior intensidade.
— Por favor, deixe-me entrar, Tom — suplicava a voz. — Como pode ser tão insensível e cruel? Estou gelada, molhada e cansada.
Por fim começou a chorar e soube então com certeza que não podia ser
a minha mãe. A minha mãe era forte. A minha mãe nunca chorava, por
pior que fosse a situação.
Decorridos alguns momentos, os sons diminuíram e depois cessaram por
completo. Deitei-me no chão e procurei dormir novamente. Virava-me constantemente, primeiro para um lado e depois para o outro, mas, por
mais que tentasse, não conseguia adormecer. O vento começou a
abanar as vidraças cada vez com mais força, e o relógio da igreja foi dando as horas e as meias horas, aproximando-me cada vez mais da
meia-noite.
Quanto mais perto estava a hora de eu descer as escadas da cave, mais nervoso ia ficando. Queria passar no teste do Mago, mas, oh, como
ansiava estar de novo em casa, na minha rica caminha segura e quente!
E depois, assim que o relógio deu uma única badalada — onze e meia — recomeçaram as escavadelas...
Mais uma vez ouvi o lento pum, pum de botas pesadas a subirem as
escadas da cave; mais uma vez a porta se abriu e as botas invisíveis vieram até à divisão da frente.
Nesta altura, a única parte de mim que se mexia era o meu coração, que
batia com tanta força que parecia prestes a partir-me as costelas. Mas desta vez as botas não se encaminharam para a janela. Continuaram a
avançar — Pum!
Pum! Pum! —, vindo na minha direção. Senti-me levantado bruscamente pelos cabelos e a nuca, tal como uma
gata transporta os gatinhos. Depois, um braço invisível enrolou-se à
volta do meu corpo, prendendo-me os braços aos lados. Tentei encher os pulmões de ar, mas era impossível. O meu peito estava a ser
esmagado.
Era transportado na direção da porta da cave. Não conseguia ver o que me levava mas ouvia a sua respiração asmática e debati-me, em pânico,
porque de certa forma sabia exatamente o que ia acontecer. Sabia por
que motivo se ouvira cavar lá em baixo. Levavam-me pelas escadas da cave para a escuridão e sabia que uma sepultura me aguardava ali. Ia
ser enterrado vivo. Estava aterrado e tentei gritar, mas era pior do que
ser apenas agarrado com toda a força. Ficara paralisado e não conseguia
mover um músculo.
De repente, senti-me cair. . Encontrei-me de quatro, a olhar pela porta aberta que dava para a cave,
a escassos centímetros do degrau de cima. Em pânico, o meu coração
tão acelerado que nem conseguia contar os batimentos, pus-me em pé e fechei com força a porta da cave. Ainda a tremer, voltei para a divisão
da frente, constatando que desrespeitara uma das três regras do Mago.
A vela apagara-se. . Quando me encaminhava para a janela, um clarão súbito de luz iluminou
a divisão, seguido de um forte ribombar de trovão mesmo por cima do
telhado. A chuva fustigava a casa, sacudindo as janelas e fazendo a
porta da rua chiar e gemer como se algo tentasse entrar.
Espreitei lá para fora durante alguns minutos, muito infeliz, vendo os
relâmpagos. Estava uma noite péssima, mas, apesar de os relâmpagos me apavorarem, teria dado tudo para estar lá fora, a andar nas ruas;
tudo para evitar descer àquela cave.
Ao longe, o relógio da igreja começou a dar horas. Contei as badaladas e foram exatamente doze. Agora tinha de enfrentar
o que estava na cave.
Foi então, quando um relâmpago voltou a iluminar a sala, que reparei nas grandes pegadas no chão. A princípio julguei que tivessem sido
deixadas pelo Mago, mas eram negras, como se as botas enormes que
as tinham feito estivessem cobertas de pó de carvão. Vinham da di-reção da porta da cozinha, iam quase até à janela e davam meia volta,
regressando pelo caminho que haviam trazido.
Voltavam para a cave. Para o escuro aonde eu tinha de ir! Obrigando-me a avançar, tentei encontrar no chão o toco de vela.
Depois, procurei às apalpadelas a minha pequena trouxa com as roupas.
Embrulhada no meio dela estava a caixa de mechas que o meu pai me dera.
Remexendo às escuras, despejei a pequena pilha de mechas no chão e
servi-me da pedra e do metal para fazer saltar faíscas. Ateei aquela pequena pilha de madeira até irromperem chamas, apenas com a altura
suficiente para acender a vela. Mal o meu pai sabia que o seu presente
se iria revelar logo tão útil. Quando abri a porta da cave, houve outro relâmpago e um estrondo
súbito de trovão que sacudiu toda a casa e ribombou nas escadas à
minha frente. Desci à cave, a minha mão a tremer e o toco de vela a dançar e a projetar estranhas sombras na parede.
Não queria ir lá abaixo, mas, se não passasse no teste do Mago,
provavelmente seria recambiado para casa assim que fosse dia. Imaginei a minha vergonha ao ter de contar à mãe o que sucedera.
Oito degraus e contornava já a esquina, ficando com a cave à vista. Não
era uma cave grande, mas tinha sombras escuras nos cantos que a luz
da vela não conseguia alcançar plenamente e havia teias de aranha pendendo do teto em imundas cortinas frágeis. Viam-se pequenos
pedaços de carvão e grandes caixotes espalhados pelo chão de terra e
havia uma velha mesa de madeira ao lado de um barril enorme de cerveja. Contornei o barril de cerveja e percebi algo no canto mais
distante. Algo mesmo por detrás de alguns caixotes que me apavorou
tanto que ia deixando cair a vela. Era uma forma escura, quase semelhante a um monte de farrapos, e emitia um ruído. Um leve som
rítmico, como a respiração.
Dei um passo na direção dos farrapos; depois outro, servindo-me de
toda a minha força de vontade para obrigar as minhas pernas a
andarem. Foi então, quando me aproximei tanto que quase lhe podia ter
tocado, que a coisa cresceu de repente. De uma sombra no chão, empinou-se diante de mim até ficar três ou quatro vezes maior.
Quase corri dali para fora. Era alta, escura, encapuzada e aterradora,
com olhos verdes brilhantes. Só então reparei no bordão que segurava na mão esquerda.
— O que o deteve? — perguntou o Mago. — Vem quase com cinco
minutos de atraso!
CAPÍTULO 4
A CARTA
— Vivi nesta casa quando criança — disse o Mago —, e vi coisas que te
deixariam todo arrepiado, mas eu era o único que as conseguia ver e o
meu pai costumava bater-me por dizer mentiras. Era usual sair uma coisa da cave. Deve ter acontecido o mesmo com você. Acertei?
Acenei com a cabeça.
— Bem, não fique preocupado, rapaz. E só mais uma imagem
fantasmagórica, um fragmento de uma alma perturbada que alcançou
uma situação melhor. Se ele não deixasse para trás a sua pior parte,
ficaria preso aqui para sempre. — O que foi que ele fez? — indaguei, a minha voz ecoando ligeiramente
no teto.
O Mago abanou a cabeça pesarosamente. — Tratava-se de um mineiro cujos pulmões estavam tão doentes que teve de deixar de trabalhar.
Passava os dias e as noites a tossir e com falta de ar, e a sua pobre
esposa é que ganhava para o sustento de ambos. Trabalhava numa padaria, mas, para mal dos dois, ela era uma mulher muito bonita.
Poucas são as mulheres em quem se pode confiar e as bonitas são as
piores de todas. «Para complicar, ele era um homem ciumento e a doença tornou-o mais
amargo. Uma noite, ela atrasou-se muito no regresso para casa, do
trabalho, e ele ia constantemente à janela, andando de um lado para o outro, ficando cada vez mais furioso por pensar que ela estava com
outro homem.
«Quando a mulher finalmente chegou, ele estava numa fúria tal que lhe rachou a cabeça com um pedaço grande de carvão. Depois deixou-a ali,
nas lajes, moribunda, e desceu à cave para abrir uma sepultura. Ela
ainda estava viva quando ele voltou, mas não conseguia se mexer, nem sequer gritar. E o terror que se apodera de nós, pois foi exatamente
assim que ela se sentiu quando ele lhe pegou e a levou para a escuridão
da cave. Ela ouvira-o cavar. Sabia o que ele ia fazer. «Mais tarde, naquela noite, ele suicidou-se. É uma história triste, mas,
apesar de agora repousarem em paz, a imagem fantasmagórica dele
permanece aqui, assim como as últimas lembranças dela, ambas suficientemente fortes para atormentarem pessoas como nós. Vemos
coisas que os outros não conseguem ver, o que é simultaneamente uma
bênção e uma maldição. Porém, é algo muito útil, no nosso ofício. Estremeci. Sentia pena da pobre esposa que fora assassinada e sentia
pena do mineiro que a matara. Sentia até pena do Mago. Imagine, ter de
passar a infância numa casa como esta! Olhei para a vela, que colocara
no meio da mesa.
Estava quase no fim e a chama iniciava a sua última dança tremulante, mas o Mago não deu mostras de querer voltar lá para cima. Não gostei
das sombras no rosto dele. Pareciam ir mudando gradualmente, como se
lhe estivesse a nascer um focinho de porco ou outra coisa qualquer. — Sabe como venci o meu medo? — perguntou.
— Não, senhor.
— Uma noite, estava tão aterrado que gritei antes de conseguir me conter. Acordei todo mundo e, num acesso de fúria, o meu pai levantou-
me pelo colarinho e me trouxe pelas escadas abaixo até esta cave.
Depois, foi buscar um martelo e cravou pregos na porta, fechando-me
aqui dentro.
«Eu não era muito crescido. Provavelmente, teria sete anos, no máximo.
Subi as escadas e, gritando até rebentar, raspei e bati na porta. Mas o meu pai era um homem insensível e deixou-me completamente sozinho
no escuro e tive de ficar aqui horas, até muito depois da aurora.
Passados instantes, acalmei e, sabe o que fiz então? Abanei a cabeça, evitando olhá-lo no rosto. Os seus olhos brilhavam com
muita intensidade e pareceu-me mais do que nunca um lobo.
— Desci as escadas e sentei-me aqui nesta cave, às escuras. Depois respirei fundo três vezes e enfrentei o meu medo. Enfrentei a própria
escuridão, que é a coisa mais aterradora de todas, especialmente para
pessoas como nós, porque há coisas que vêm ter conosco no escuro. Procuram-nos com murmúrios e assumem formas que só os nossos
olhos conseguem ver. Mas saí-me bem e quando deixei esta cave, o pior
passara. Naquele momento a vela derreteu por completo e depois apagou-se,
mergulhando-nos na mais absoluta escuridão.
— Agora é que é, rapaz — disse o Mago. — Só estamos você, eu e o escuro. Consegue agüentar? Está preparado para ser meu aprendiz?
A voz dele parecia diferente, mais cava e estranha.
Imaginei-o a caminhar nas quatro patas, pêlo de lobo a cobrir-lhe o rosto, os dentes a aumentarem de tamanho.
Eu tremia e apenas consegui falar depois de respirar fundo pela terceira
vez. Só então lhe dei a resposta. Era o que o meu pai dizia sempre que tinha de fazer algo desagradável ou difícil.
— Alguém tem de o fazer — retorqui. — Portanto, posso ser eu.
O Mago deve ter achado piada, porque a sua gargalhada encheu toda a cave antes de ressoar pelas escadas ao encontro do próximo trovão, que
vinha a descer.
— Há quase treze anos — afirmou o Mago —, enviaram-me uma carta lacrada. Era breve e concisa e estava escrita em grego. Foi a sua mãe
que a mandou. Sabe o que dizia? — Não — respondi tranqüilamente,
sentindo curiosidade pelo que vinha a seguir.
— «Acabei de dar à luz um rapaz», escreveu ela, «e é o sétimo filho de um sétimo filho. Chama-se Thomas J. Ward e é a minha dádiva ao
Condado. Quando ele tiver idade suficiente, mandá-lo-emos chamar.
Prepare-o bem. Será o melhor aprendiz que alguma vez teve, e também o seu último.»
«Nós não usamos magia, rapaz — continuou o Mago, a sua voz pouco
mais do que um murmúrio na escuridão. — As principais ferramentas do nosso ofício são o bom senso, a coragem e proceder a registros
rigorosos, para que possamos aprender com o passado. Acima de tudo,
não acreditamos em profecias. Não acreditamos que o futuro está
determinado. Por isso, se o que a sua mãe escreveu se vier a
concretizar, então é porque nós fizemos com que isso se concretizasse.
Compreende? Havia um tom de raiva na voz dele mas sabia que não me era dirigida e,
por isso, anuí na escuridão.
— Quanto a ser a dádiva da sua mãe ao Condado, cada um dos meus aprendizes era o sétimo filho de um sétimo filho. Por isso não comece a
julgar-se especial.
Tem muito estudo e trabalho árduo pela frente. «A família pode ser um estorvo — prosseguiu o Mago após uma pausa, a
sua voz mais suave, já sem a raiva. — Só me restam agora dois irmãos.
Um é serralheiro e damo-nos bem, mas o outro não fala comigo há mais de quarenta anos, apesar de ainda viver em Horshaw.
Quando abandonamos a casa, a tempestade dissipara-se e havia luar.
No momento em que o Mago fechou a porta da rua, reparei pela primeira vez no que fora talhado na madeira.
O Mago indicou-o com a cabeça.
— Uso símbolos como este para avisar outros com capacidade para os lerem ou por vezes apenas para estimular a minha própria memória.
Reconhecerá a letra grega gama. Tanto pode indicar um fantasma como
uma imagem fantasmagórica. A cruz em baixo, à direita, é o numeral romano para dez, que é o grau mais baixo de todos. Acima de seis é
apenas uma imagem fantasmagórica.
Não existe nada naquela casa que te possa fazer mal, seja corajoso. Lembre-se, o escuro alimenta-se do medo. Seja corajoso e não há muito
que uma imagem fantasmagórica possa fazer.
Se ao menos eu o tivesse sabido desde o início! — Anime-se, rapaz — disse o Mago. — A sua cara chega quase às botas!
Bem, talvez isto te alegre. — Tirou do bolso um bocado de queijo
amarelo, partiu um pequeno naco e entregou-me. — Mastigue-o — advertiu —, mas não o engula de imediato.
Segui-o pela rua empedrada. O ar estava úmido, mas pelo menos não
chovia e a oeste as nuvens pareciam lã de carneiro e começavam a
rasgar-se e a separar-se em faixas irregulares. Deixamos a aldeia e continuamos para sul. Mesmo no seu limite, quando
a rua empedrada se transformava numa viela lamacenta, havia uma
pequena igreja. Parecia abandonada: faltavam telhas de lousa no telhado e a tinta desprendia-se da porra principal. Quase não tínhamos
avistado ninguém desde que saíramos da casa, mas estava ali um
homem de pé, à porta. Tinha cabelo branco, escorrido, gorduroso e desgrenhado.
As roupas escuras indicavam tratar-se de um padre, mas, quando nos
aproximamos dele, o que realmente despertou a minha atenção foi a
expressão no seu rosto.
Olhava-nos ameaçadoramente, o semblante todo distorcido. E depois, de
forma dramática, fez um enorme sinal da cruz, chegando mesmo a pôr-se na ponta dos pés ao começá-lo, estendendo o mais que podia o
indicador da mão direita para o céu. Já vira antes padres fazer o sinal da
cruz, mas nunca com um gesto tão exagerado, tão cheio de raiva. Uma raiva que parecia ser-nos dirigida.
Calculei que tivesse alguma razão de queixa do Mago, ou talvez do
trabalho que ele fazia. Sabia que o ofício deixava a maior parte das pessoas nervosa, mas nunca vira semelhante reação.
— O que tem ele? — inquiri, depois de o deixarmos para trás e estarmos
a uma distância a que não seríamos ouvidos. — Padres! — grunhiu o Mago, a raiva nítida na sua voz. — Sabem tudo mas não vêem nada! E
aquele é pior do que a maioria! É o meu outro irmão.
Teria gostado de saber mais coisas, mas por uma questão de bom senso, não continuei a questioná-lo. Parecia haver muito que saber sobre o
Mago e o seu passado, mas parecia também que eram coisas que ele só
me conta-ria quando se sentisse preparado. Assim, continuei a segui-lo para sul, carregando o seu pesado saco e
pensando no que a minha mãe escrevera na carta. Nunca fora pessoa de
se gabar ou de fazer afirmações precipitadas. A minha mãe só dizia o que tinha de dizer, por isso havia uma intenção em cada palavra sua.
Normalmente, ela limitava-se a levar a vida a diante e a agir conforme
as necessidades. O Mago dissera-me que não havia muito que se pudesse fazer pelas imagens fantasmagóricas, mas uma vez a minha
mãe silenciara as da Colina do Carrasco.
Ser o sétimo filho de um sétimo filho não era nada por aí além, neste tipo de atividade — bastava tão-somente ser aceito como aprendiz do
Mago. Mas eu sabia que havia algo mais que me tornava diferente.
Eu também era filho da minha mãe.
CAPÍTULO 5
DEMÔNIOS E BRUXAS
Dirigíamo-nos para aquilo que o Mago chamava a sua «Casa de Verão».
Enquanto caminhávamos, as últimas nuvens marinais dissiparam-se e
percebi subitamente que o sol estava diferente. Mesmo no Condado, por vezes o sol brilha no Inverno, o que é bom porque normalmente isso
significa que não vai chover; mas há uma altura em cada novo ano em
que percebemos pela primeira vez o seu calor. É como o regresso de um
velho amigo.
O Mago devia estar pensando quase exatamente o mesmo porque de
repente estacou, olhou-me de lado e brindou-me com um dos seus raros sorrisos.
— Este é o primeiro dia de Primavera, rapaz — disse —, por isso vamos
para Chipenden. Pareceu-me uma afirmação um tanto estranha. Ele ia sempre para
Chipenden no primeiro dia de Primavera, e, se sim, porquê? Resolvi
perguntar-lhe. — Instalações de Verão. Passamos o Inverno à beira de Anglezarke Moor
e desfrutamos do Verão em Chipenden.
— Nunca ouvi falar de Anglezarke. Onde fica? — indaguei. — No extremo sul do Condado, rapaz. É o lugar onde nasci. Vivemos lá
até o meu pai se mudar para Horshaw.
Bem, pelo menos ouvira falar de Chipenden, o que me deixou animado. Ocorreu-me que, na qualidade de aprendiz do Mago, teria de viajar
muito e precisava de aprender a orientar-me. Sem mais delongas,
mudamos de rumo, encaminhando-nos para nordeste, na direção das colinas distantes. Não fiz mais perguntas mas, naquela noite, quando
nos abrigamos novamente num celeiro frio e a ceia se re-sumiu a mais
algumas dentadas de queijo amarelo, o meu estômago começar a achar que me tinham cortado a garganta. Nunca sentira tanta fome.
Perguntei-me onde iríamos ficar em Chipenden e se arranjaríamos ali
algo decente para comer. Não conhecia ninguém que lá tivesse estado, mas ouvira dizer que era um lugar isolado e hostil em algum lugar nas
Fel s3 — as distantes colinas de tom cinzento e púrpura que apenas se
vislumbravam da fazenda do meu pai. Sempre me tinham feito lembrar enormes animais adormecidos, mas provavelmente a culpa era de um
dos meus tios, que costumava me contar semelhantes histórias. À noite,
dizia ele, punham-se em movimento, e às vezes, ao raiar do dia, desapareciam aldeias inteiras da face da terra, reduzidas a pó sob o peso
deles.
Na manhã seguinte, escuras nuvens cinzentas encobriam mais uma vez
o sol e tudo indicava que íamos ter de esperar algum tempo pelo
segundo dia de Primavera. Estava também a levantar-se vento, sacudindo as nossas roupas à
medida que começávamos a subir e dispersando as aves por todo o céu,
as nuvens precipitando-se para leste a fim de esconderem os cumes das Fels.
3 Região de charnecas rochosas ou terrenos acidentados no Norte de
Inglaterra. ( N T ) O nosso ritmo era lento e dei graças por isso, visto ter uma bolha
horrível em cada calcanhar. Assim, estávamos quase no final do dia
quando nos aproximamos de Chipenden, a luz começando já a diminuir.
Nessa altura, apesar de o vento soprar ainda com intensidade, o céu
limpara e as colinas púrpura recortavam a linha do horizonte. O Mago
não falara muito durante a viagem, mas agora parecia quase excitado, ao proferir um por um os nomes delas. Havia designações como Parlick
Pike4, a que ficava mais próxima de Chipenden; ou então
— umas visíveis, outras escondidas e distantes — Mellor Knol 5, Saddle Fel e Wolf6 Fel .
Quando inquiri o meu mestre sobre se existiam alguns lobos em Wolf Fel
ele sorriu sinistramente. — As coisas mudam rapidamente aqui, rapaz — disse ele —, e temos de estar sempre atentos.
Quando se avistaram os primeiros telhados da aldeia, o Mago apontou
para um caminho estreito que partia da estrada, subindo a serpentear junto à margem de um pequeno ribeiro gorgolejante.
— A minha casa fica nesta direção — anunciou ele.
— É um percurso ligeiramente mais longo, mas significa que escusamos de atravessar a aldeia. Gosto de manter uma certa distância da
população que ali vive. E ela também prefere que assim seja.
Lembrei-me do que Jack dissera sobre o Mago e caiu-me o coração aos pés. Era uma vida solitária. Acabava-se a trabalhar sozinho.
4 Pico. ( NT)
5 Pequeno monte. ( NT) 6 Lobo. ( NT)
Havia algumas árvores atrofiadas em cada margem, agarrando-se à
vertente da colina por causa da força do vento, mas depois, subitamente, mesmo lá à frente, avistou-se uma mata de sicômoros e
freixos. Quando entramos nela, o vento reduziu-se a pouco mais do que
um suspiro distante. Não passava de um grande maciço de árvores, talvez algumas centenas, que proporcionava abrigo do vento fustigante,
mas, após alguns momentos, percebi que era mais do que isso.
Já antes reparara, de tempos em tempos, que algumas árvores eram ruidosas, com os ramos sempre a chiar ou as folhas a balançar,
enquanto outras quase não emitiam qualquer som. Ouvia lá em cima o
sopro distante do vento, mas dentro da mata os únicos sons audíveis
eram os das nossas botas. Tudo o mais estava sossegado, toda uma
mata cheia de árvores tão silenciosas que até senti um arrepio subir e descer-me pela espinha. Cheguei quase a pensar que estivessem a
ouvir-nos.
Chegamos então a uma clareira, e mesmo lá à frente vislumbrei uma casa. Encontrava-se rodeada por uma sebe alta de espinheiro-alvar, pelo
que só se viam o piso superior e o telhado. Erguia-se uma coluna de
fumaça branca de uma chaminé. Seguia direto para o ar, impassível, até que, mesmo acima das árvores, o vento o empurrava para leste.
A casa e o jardim, reparei então, assentavam numa depressão na
vertente da colina. Era como se um gigante amável tivesse vindo retirar
o solo com a mão.
Segui o Mago ao longo da sebe até chegarmos a um portão de metal.
Este era pequeno, não ultrapassava a minha cintura, e fora pintado de um verde-vivo, um trabalho que parecia concluído tão recentemente que
me perguntei se a tinta secara devidamente e se o Mago ficaria com a
mão suja dela, uma vez que a estendia já para a tranqueta. Subitamente, sucedeu algo que me fez suster a respiração. Antes de o
Mago tocar na tranca, ela levantou-se sozinha e o portão abriu-se
lentamente, como se empurrado por uma mão invisível. — Obrigado — ouvi o Mago dizer.
A porta da rua não se moveu sozinha porque primeiro foi preciso abri-la
com a enorme chave que o Mago retirou do bolso. Parecia idêntica à que usara para abrir a porta da casa em Watery Lane.
— É a mesma chave que usou em Horshaw? — inquiri.
— É, rapaz — disse, olhando-me do alto enquanto abria a porta. — O meu irmão, o serralheiro, deu-me esta.
Abre a maior parte das fechaduras desde que não sejam demasiado
complicadas. Dá muito jeito, na nossa atividade. A porta deslizou com uma sonora chiadeira e um gemido profundo e
segui o Mago até um pequeno átrio obscuro. Havia umas escadas
íngremes à direita e um corredor estreito e lajeado, à esquerda. — Coloque tudo no fundo das escadas — disse o Mago. — Vá lá, rapaz.
Deixe de moleza. Não há tempo a perder. Gosto da comida a escaldar!
Largando então o saco dele e a minha trouxa no lugar que me indicara, segui-o pelo corredor em direção à cozinha e ao apetitoso cheiro de
comida quente.
Quando lá chegamos, não fiquei decepcionado. Fez-me lembrar a cozinha da minha mãe. Cresciam ervas aromáticas em
grandes vasos no parapeito da janela ampla e o sol poente salpicava a
divisão com as sombras das folhas. No canto ao fundo ardia uma enorme fogueira, enchendo a cozinha de calor e, mesmo no centro do chão
lajeado, havia uma grande mesa de carvalho. Encontravam-se em cima
dela dois pratos vazios enormes e, no seu centro, cinco travessas com
comida até em cima, ao lado de um jarro cheio até à borda de molho
quente fumegante. — Sente-se e coma à vontade, rapaz — convidou o Mago, e não precisei que me dissesse uma segunda vez.
Servi-me de fatias grandes de frango e carne de vaca, quase não
deixando espaço suficiente no prato para o monte de batatas assadas e legumes que se seguiu. Por fim, reguei tudo com um molho tão saboroso
que só a minha mãe teria feito melhor.
Perguntei-me onde estava a cozinheira e como soubera que íamos chegar naquele exato momento para ter a comida quente a postos na
mesa. Todo eu era perguntas, mas estava também cansado, pelo que
guardei toda a minha energia para a comida. Quando engoli finalmente a
última bocada, o Mago limpara já o seu prato.
— Gostou? — quis saber.
Acenei com a cabeça, quase cheio demais para falar. Senti-me ensonado.
— Depois de uma dieta de queijo, é sempre bom chegar em casa e
tomar uma refeição quente — disse ele. — Comemos bem, aqui. Compensa as vezes em que estamos a
trabalhar.
Voltei a acenar e comecei a bocejar. — Há muito que fazer amanhã, por isso vá para a cama. O seu quarto é
o da porta verde, no alto do primeiro lance de escadas — informou-me o
Mago. — Durma bem, mas não saia do seu quarto e não ande a passear pela casa durante a noite. Ouvirá tocar uma sineta quando o desjejum
estiver pronto. Desça assim que a ouvir —
quando preparam comida boa, podem ficar aborrecidos se a deixar esfriar. Mas também não desça muito cedo, pois isso seria igualmente
mau.
Anuí, agradeci-lhe a refeição e percorri o corredor em direção à parte da frente da casa. O saco do Mago e a minha trouxa tinham desaparecido.
Curioso sobre quem os teria levado, subi as escadas para me ir deitar.
O meu quarto novo acabou por se revelar muito maior do que o de minha casa, que durante um curto período tivera de partilhar com dois
dos meus irmãos. Neste novo quarto cabiam uma cama, uma pequena
mesa com uma vela, uma cadeira e uma cômoda, mas havia também muito espaço para caminhar. E ali, em cima da cômoda, a minha trouxa
de pertences aguardava-me.
Mesmo em frente da porta ficava uma janela de guilhotina grande, dividida em oito vidraças tão espessas e irregulares que apenas
conseguia ver espirais e volutas de cor lá fora. Parecia que a janela não
era aberta há anos. A cama fora colocada ao longo da parede por debaixo dela, pelo que descalcei as botas, ajoelhei-me na coberta e
tentei abrir a janela. Apesar de estar um pouco emperrada, acabou por
não ser tão difícil quanto supusera. Servi-me do cordão para levantar a
metade inferior da janela com uma série de puxões, apenas o suficiente
para pôr a cabeça de fora e apreciar melhor o que me rodeava. Consegui ver um amplo relvado por baixo de mim, dividido ao meio por
um caminho de pedras brancas que desaparecia nas árvores. Por cima
da linha das árvores, à direita, ficavam as extensões rochosas, a mais próxima tão perto que quase me pareceu possível estender a mão e
tocar-lhe. Inspirei uma profunda lufada de ar fresco e senti o cheiro da
relva antes de meter a cabeça para dentro e desatar a minha pequena trouxa de pertences. Couberam facilmente na gaveta de cima da
cômoda. Quando a ia fechar, reparei subitamente nas inscrições na
parede do fundo, nas sombras defronte dos pés da cama. Estava coberta
de nomes, todos rabiscados a tinta preta no estuque branco. Alguns
nomes eram maiores do que outros, como se quem os escrevera se
tivesse em alta conta. Muitos haviam sumido com o tempo e perguntei-me se seriam os nomes dos outros aprendizes que tinham dormido neste
mesmo quarto. Deveria acrescentar o meu próprio nome ou esperar até
ao final do primeiro mês, altura em que talvez fosse aceite com caráter permanente? Não tinha caneta nem tinta, por isso seria algo a ponderar
mais tarde, mas examinei a parede com mais atenção para determinar
qual o nome mais recente. Decidi que era BILLY BRADLEY — parecia-me o mais nítido e fora
comprimido num pequeno espaço à medida que a parede ia sendo
preenchida. Durante alguns momentos, ansiei saber o que faria Bily agora, mas estava cansado e pronto para dormir.
Os lençóis eram lavados e a cama convidativa, e assim, sem perder mais
tempo, despi-me e, no preciso instante em que a minha cabeça assentou na almofada, adormeci.
Quando voltei a abrir os olhos, o sol entrava pela janela. Estivera a
sonhar e fora acordado de repente por um ruído. Pensei que provavelmente seria a sineta do desjejum.
Fiquei então preocupado. Teria sido realmente a sineta a chamar-me
para o desjejum ou um sino no meu sonho? Como podia ter a certeza? O que deveria fazer?
Provavelmente teria problemas com a cozinheira, se descesse cedo ou
tarde. Então, decidindo que provavelmente ouvira a sineta, vesti-me e desci imediatamente.
No caminho, ouvi um barulho de tachos e panelas vindo da cozinha,
mas, assim que abri a porra, fez-se um silêncio de morte. Cometi então um erro. Devia ter voltado logo para cima, porque era
óbvio que o desjejum não estava pronto.
Tinham sido levantados os pratos e travessas da ceia da véspera mas a mesa estava ainda vazia e a lareira cheia de cinzas frias. Na realidade, a
cozinha estava gelada e, pior do que isso, parecia arrefecer mais a cada
segundo.
O meu erro foi dar um passo na direção da mesa. Assim que o fiz, ouvi algo emitir um som mesmo atrás de mim. Foi um
som irado. Não havia a menor dúvida. Um nítido silvo de raiva muito
próximo da minha orelha esquerda. Tão próximo que senti o seu sopro. O Mago avisara-me para que não descesse cedo e senti subitamente que
corria verdadeiro perigo.
Mal aquele pensamento me ocorreu, algo me atingiu com força na nuca; cambaleei na direção da porta, por pouco não perdendo o equilíbrio e
estatelando-me de comprido.
Não precisei de segundo aviso. Saí dali correndo e subi as escadas.
Depois, a meio, fiquei estático. Encontrava-se um tanto no alto. Alguém
alto e ameaçador, recortado na luz da porta do meu quarto.
Estaquei, sem saber para que lado ir, até ser tranqüilizado por uma voz familiar. Era o Mago.
Era a primeira vez que o via sem a comprida capa preta. Vestia uma
túnica negra e calças cinzentas e pude ver que, apesar de ser um homem alto com ombros largos, o resto do seu corpo era magro,
provavelmente porque havia dias em que apenas conseguia dar umas
mordiscadas no queijo. Fazia lembrar os melhores criados de lavoura quando ficam mais velhos. Alguns, claro, engordam apenas, mas a
maioria — como aqueles que o meu pai contrata para a ceifa, agora que
quase todos os meus irmãos saíram de casa — são magros, com corpos duros e secos. «Magreza é destreza», diz constantemente o meu pai e
agora, ao olhar para o Mago, via por que razão ele conseguia caminhar a
um ritmo tão rápido e durante tanto tempo sem descansar — Avisei-o para não descer cedo — disse-me tranqüilamente. — Deve
ter levado uns bofetões. Que te sirvam de lição, rapaz. Para a próxima é
capaz de ser bem pior. — Pareceu-me ouvir a sineta — respondi. — Mas deve ter sido um sino
no meu sonho.
O Mago riu baixinho. — Essa é uma das primeiras e mais importantes li-
ções que um principiante tem de aprender — disse ele —: a diferença
entre estar acordado e a sonhar. Alguns nunca chegam a aprender. Abanou a cabeça, deu um passo na minha direção e bateu-me
delicadamente no ombro.
— Venha, vou mostrar-lhe o jardim. Tem de começar por algum lado e sempre passa o tempo até o desjejum estar pronto.
* * *
Quando o Mago me levou até lá fora, pela porta traseira da casa, vi que o jardim era muito grande, bem maior do que parecera do lado de fora
da sebe.
Encaminhamo-nos para leste, semicerrando os olhos por causa do sol do
princípio da manhã, até chegarmos a um amplo relvado. No lusco-fusco
da véspera, parecera-me que o jardim estava completamente rodeado pela sebe, mas percebia agora o meu engano. Havia intervalos nela, e
mesmo por cima ficava a mata. O caminho de pedras brancas dividia o
relvado e desaparecia nas árvores. — Na realidade, existe mais de um jardim — disse o Mago. — Melhor
dizendo, três, alcançando-se cada um deles através de um caminho
como este. Vamos ver primeiro o jardim oriental. É bastante seguro quando há sol, mas nunca percorra este caminho depois de escurecer.
Bem, a menos que tenha uma razão muito forte. Mas nunca se estiver
sozinho.
Segui o Mago, cheio de nervosismo, em direção às árvores.
A erva era mais alta no extremo do jardim e estava salpicada de
campainhas. Gosto das campainhas porque florescem na Primavera e me lembram sempre que os dias longos e quentes de Verão não tardam,
mas naquele momento mal as olhei uma segunda vez. O sol da manhã
estava escondido pelas árvores e de repente o ar ficou muito mais fresco. Fez-me lembrar a visita à cozinha. Havia algo de estranho e
perigoso naquela parte da mata e parecia fazer cada vez mais frio, à
medida que avançávamos para as árvores. Havia ninhos de gralhas lá no alto, por cima de nós, e os gritos
desagradáveis e zangados das aves ainda me causavam mais arrepios
do que o frio. Eram quase tão musicais quanto o meu pai, que começava a cantar assim que terminávamos a ordenha. Sempre que o leite
azedava, a minha mãe atribuía-lhe as culpas.
O Mago parou e apontou para o solo cerca de cinco passos mais à frente. — O que é aquilo? — inquiriu, a sua voz pouco mais do que um
murmúrio.
A erva fora limpa e no centro do grande pedaço de terra estava uma pedra tumular. Era vertical, mas ligeiramente inclinada para a esquerda.
No chão diante dela, um metro e oitenta de solo estava cercado de
pedras mais pequenas, o que era invulgar. Mas havia algo ainda mais estranho: por cima do pedaço de terra, e presas às pedras exteriores por
pernos, encontravam-se treze barras de ferro grossas.
Contei-as duas vezes apenas para me certificar. — Então, rapaz, fiz-lhe uma pergunta. O que se passa? A minha boca estava tão seca que mal
conseguia falar, mas balbuciei três palavras: — É uma sepultura. .
— Muito bem, rapaz. Percebeu de primeira. Notou algo de invulgar? — perguntou ele.
Nesta altura não consegui de todo falar. Limitei-me a acenar com a
cabeça. Ele sorriu e bateu-me no ombro.
— Não há nada a temer. É apenas uma bruxa morta e bastante fraca na
sua arte. Enterraram-na em solo profano do lado de fora de um
cemitério, a não muitos quilômetros daqui. Mas ela insistia constantemente em vir à superfície. Dei-lhe uma boa reprimenda mas
ela não quis ouvir, por isso tive de trazê-la para cá. Faz com que as
pessoas se sintam melhor. Dessa forma, podem prosseguir as suas vidas em paz. Nem querem pensar em coisas como esta. É a nossa função.
Acenei novamente e percebi de repente de que não respirava, por isso,
enchi bem os pulmões de ar. O coração batia-me desalmadamente no peito, ameaçando rebentar a qualquer instante, e eu tremia da cabeça
aos pés.
— Não, ela agora incomoda pouco — prosseguiu o Mago. — Às vezes, na
Lua cheia, consegue-se ouvi-la a agitar-se, mas não tem força para vir à
superfície e as barras de ferro impedi-la-iam na mesma. Mas há coisas
piores lá mais adiante, nas árvores — disse ele, apontando com o seu dedo ossudo para leste. — Dá cerca de vinte passos e chegará ao local.
Pior? O que podia ser pior? Fiquei intrigado, mas sabia que ele faria
questão em me contar. — Há duas outras bruxas. Uma está morta e a outra viva. A morta
encontra-se enterrada verticalmente, de cabeça para baixo, mas mesmo
assim, uma ou duas vezes por ano temos de endireitar as barras por cima da sua sepultura. Mantenha-se bem afastado do local, depois de
escurecer.
— Porque foi enterrada de cabeça para baixo? — quis saber.
— Eis uma boa pergunta, rapaz — observou o Mago. — Sabe, o espírito
de uma bruxa morta é o que chamamos normalmente «preso aos ossos». Encontra-se retido dentro dos ossos dela e, por vezes, elas nem
sequer sabem que morreram. Primeiro, experimentamos colocá-las de
cabeça para cima, e isso é suficiente a maioria das vezes. Todas as bruxas são diferentes, mas há algumas que são realmente teimosas.
Apesar de presa aos ossos, uma bruxa como esta esforça-se ao máximo
por voltar ao mundo. É como se quisesse voltar a nascer, de maneira que temos de lhe criar dificuldades e enterrá-la ao contrário. Não é fácil
sair pelos pés. Às vezes, os bebês humanos têm o mesmo problema.
Mas ela continua a ser perigosa, por isso mantenha-se bem longe. «Certifique-se de que se mantenha afastado da que está viva. Seria mais
perigosa morta do que viva, porque uma bruxa poderosa como aquela
não teria dificuldade nenhuma em voltar ao mundo. Por esse motivo a mantemos num poço. O nome dela é Mãe Malkin e fala sozinha.
Bem, na verdade, é mais um murmúrio. Ela é tão má quanto se pode
ser, mas está no poço há muito tempo e a maior parte do seu poder escoou-se para a terra. Adoraria deitar as mãos em um rapaz como
você. Por isso, mantenha-se bem distante. Prometa-me agora que não
vai se aproximar. Quero ouvir-te dizê-lo. .
— Prometo não me aproximar — murmurei, sentindo-me desconfortável com tudo aquilo. Parecia uma coisa terrível e cruel manter qualquer
criatura viva —
mesmo uma bruxa — no solo, e não estava a ver a minha mãe a gostar muito da idéia. — Lindo menino. Não queremos que se repitam mais
acidentes como o desta manhã. Há coisas piores do que levar um
bofetão. Bem piores. Acreditei nele, mas não queria ouvir falar do assunto. Só que ele tinha
outras coisas para me mostrar, por isso fui poupado de mais palavras
assustadoras. Conduziu-me para fora da mata e percorremos outro
relvado.
— Este é o jardim meridional — anunciou o Mago.
— Também não venha cá depois de escurecer. — O sol foi rapidamente escondido por ramos densos e o ar ficou cada vez mais frio, pelo que
soube estarmos a aproximar-nos de algo mau. Parou a cerca de dez
passos de uma pedra grande que fora colocada deitada no solo, perto das raízes de um carvalho. Cobria uma área um pouco maior do que um
jazigo e, a avaliar pela parte que estava acima do solo, a pedra era
também muito grossa. — Quem acha que está enterrado ali debaixo? —
perguntou o Mago.
Procurei mostrar-me confiante. — Outra bruxa?
— Não — disse o Mago. — Não é necessário tanta pedra para uma
bruxa. Por norma, o ferro funciona. Mas a coisa ali debaixo pode escapulir-se através das barras de ferro num abrir e fechar de olhos.
Preste atenção na pedra. Consegue ver o que está gravado nela?
Anuí. Reconhecia a letra mas não sabia o que significava. — É a letra grega beta — disse o Mago. — É o sinal que usamos para um
demônio7. A linha diagonal significa que se encontra preso
artificialmente debaixo daquela pedra e o nome por baixo diz quem o fez. No canto inferior direito está o numeral romano para um. Quer dizer
que é um demônio da primeira categoria e muito perigoso.
Conforme mencionei, usamos graus de um a dez. Lembre-se disso — um dia poderá salvar-lhe a vida. Um de grau dez é tão fraco que as pessoas
nem sequer reparariam que estava lá. Já se for um de grau um poderia
facilmente matar-te. Custou-me uma fortuna mandar trazer aquela pedra para cá, mas valeu cada cêntimo. Agora é um demônio
aprisionado. Encontra-se preso artificialmente e ficará ali até Gabriel
fazer soar a sua trombeta. «Tem de aprender muito sobre os demônios, rapaz, e vou iniciar a sua
preparação logo a seguir ao desjejum, mas existe uma diferença
significativa entre aqueles que estão presos e os que estão livres. Um
demônio livre consegue muitas vezes afastar-se quilômetros da sua casa
e, se estiver predisposto a isso, fazer maldades infinitas. Se um demônio se tornar particularmente incômodo e não der ouvidos à razão, compete-
nos aprisioná-lo. Se o fizermos bem, fica o que chamamos aprisionado
artificialmente. Desse modo não se consegue sequer mover. Claro, é mais fácil dizer do
que fazer.
O Mago carregou subitamente o cenho, como se recordasse algo desagradável.
— Um dos meus aprendizes meteu-se em sérios apuros ao atentar
aprisionar um demônio — disse, aba-7 Mais uma vez, a letra grega
escolhida não encontra correspondência em português. O termo
constante do original é boggart. (NT) mas como é apenas o seu primeiro
dia, não vamos falar já disso. Precisamente naquele momento, vindo da direção da casa, ouviu-se o
som da sineta. O Mago sorriu.
— Estamos acordados ou a sonhar? — indagou. — Acordados.
— Tem certeza? Acenei com a cabeça.
— Nesse caso, vamos comer — disse ele. — Mostrar-te-ei o outro jardim depois de termos enchido as barrigas.
CAPÍTULO 6
UMA MENINA COM SAPATOS BICUDOS
A cozinha modificara-se desde a minha última visita. Fora acesa uma
pequena fogueira na lareira e estavam dois pratos de toucinho defumado
com ovos em cima da mesa. Havia também pão acabado de assar e uma bola grande de manteiga.
— Coma, rapaz, antes que esfrie — convidou o Mago. Ataquei de
imediato e não demoramos muito a dar conta das duas pratadas e
também de metade do pão. O Mago recostou-se na cadeira, cofiou a
barba e fez-me uma pergunta importante.
— Não acha — inquiriu ele, os seus olhos fitando diretamente os meus — que foi o melhor toucinho defumado com ovos que comeu?
Não concordei. O desjejum fora bem preparado.
Estava bom, sim, sempre era preferível ao queijo, mas já comera melhor. Já comera melhor todas as manhãs quando estivera em casa. A
minha mãe era muito melhor cozinheira, mas de certa forma não me
parecia que fosse a resposta pretendida pelo Mago. Então, disse-lhe uma mentira inofensiva, o tipo de falsidade que realmente não faz mal
nenhum e as pessoas ficam mais satisfeitas ao ouvirem-na.
— Sim — referi —, foi o melhor desjejum que alguma vez saboreei. E peço desculpa por ter descido cedo demais. Prometo que não voltará a
acontecer.
Ante aquelas palavras, o Mago esboçou um sorriso tão rasgado que julguei que o rosto se lhe fosse abrir ao meio; depois deu-me uma
palmada nas costas e levou-me de novo ao jardim.
Só quando chegamos lá fora é que o sorriso desapareceu de vez. — Muito bem, rapaz — disse ele. — Há duas coisas que reagem bem à
lisonja. A primeira é uma mulher e a segunda é um demônio. Nunca
falha. Bem, eu não vira qualquer sinal de uma mulher na cozinha, o que só
vinha confirmar as minhas suspeitas —
que era um demônio que preparava as nossas refeições. O mínimo que posso dizer é que foi uma surpresa. Toda mundo pensava que um Mago
matava demônios, ou que os manipulava para que não pudessem fazer
maldades. Quem iria acreditar que tinha um a cozinhar e a limpar para ele?
— Este é o jardim ocidental — informou-me o Mago, enquanto
percorríamos o terceiro caminho, as pedras brancas fazendo barulho sob os nossos pés. — É um local seguro de estar, seja de dia ou seja de
noite. Eu próprio venho aqui com freqüência, sempre que tenho um
problema que necessita de aturada reflexão. Atravessamos outra
abertura na sebe e não tardamos a caminhar por entre as árvores. Senti
logo a diferença. As aves cantavam e as árvores oscilavam de leve com a brisa da manhã. Era um local mais aprazível.
Continuamos a andar até abandonarmos as árvores e chegarmos a uma
colina com uma vista para as extensões rochosas à nossa direita. O céu estava tão limpo que conseguia ver os muros de pedra que dividiam as
vertentes inferiores em campos e marcavam o território de cada
agricultor. Na realidade, a vista estendia-se até ao alto da extensão rochosa mais próxima.
O Mago indicou um banco de madeira à nossa esquerda.
— Sente-se, rapaz — convidou.
Fiz o que me mandavam. Durante alguns momentos, o Mago ficou a
olhar para mim, os seus olhos verdes cravados nos meus. Depois
começou a andar para cima e para baixo diante do banco, sem dizer nada. Já não me olhava, mas fitava o espaço com uma expressão vaga
nos olhos. Afastou a comprida capa preta e enfiou as mãos nos bolsos
das calças, muito repentinamente, depois sentou-se ao meu lado e fez perguntas.
— Quantos tipos diferentes de demônio acha que existem? Não fazia a
menor idéia. — Já conheço dois tipos — referi —: os livres e os aprisionados, mas não seria sequer capaz de dar um palpite sobre os
outros.
— Isso é duplamente bom, rapaz. Lembrou-se do que te ensinei e revelou-se alguém que não dá palpites à toa. Sabe, há tantos tipos de
demônios quantos os tipos de pessoas e cada um possui personalidade
própria. No entanto, convém salientar que existem alguns tipos que podem ser reconhecidos e designados por um nome. Umas vezes em
virtude da forma que assumem e outras por causa do seu
comportamento e das partidas que pregam. Remexeu no seu bolso direito e retirou um livrinho com encadernação de
couro preto. A seguir entregou-me.
— Tome, agora é seu — disse. — Tenha cuidado com ele e, faça o que fizer, não o perca.
O cheiro do couro era muito forte e o livro parecia novinho em folha. Foi
com uma certa decepção que o abri e encontrei cheio de páginas em branco. Acho que estava à espera de o ver repleto dos segredos das
atividades do Mago — mas não, tudo indicava que teria de ser eu a
escrevê-los, porque logo de seguida o Mago tirou uma caneta e um pequeno frasco de tinta do bolso.
— Prepare-se para tomar notas — disse, levantando-se e recomeçando a
andar para cá e para lá diante do banco. — E tenha cuidado para não entornar a tinta, rapaz. Ela não escorre do úbere de uma vaca.
Consegui desrolhar o frasco e depois, com muito cuidado, mergulhei nele
a ponta da caneta e abri o livro de notas na primeira página. O Mago
iniciara já a lição e falava muito depressa. — Em primeiro lugar, há demônios peludos, que assumem a forma de
animais. São sobretudo cães, mas existem quase tantos gatos e uma ou
outra cabra. Mas não se esqueça de incluir também os cavalos — podem ser muito traiçoeiros. E, seja qual for a sua forma, os demônios peludos
podem dividir-se naqueles que são hostis, naqueles que são amigáveis
ou nos que não são nem uma coisa nem outra. Depois há os barulhentos, que por vezes se trans-formam em
arremessadores de pedras e podem ficar muito zangados quando
provocados. Um dos tipos mais desagradáveis de todos é o estripador de
gado porque tem também um fraco por sangue humano. Mas não fique
com a idéia de que nós, os Magos, só lidamos com demônios, pois os
mortos perturbados nunca andam muito longe. A seguir, e só para complicar, as bruxas constituem realmente um problema no Condado.
De momento, não temos bruxas locais com que nos preocupar, mas a
leste, próximo de Pendle Hill, constituem uma verdadeira ameaça. E lembre-se de uma coisa: nem todas as bruxas são iguais. Inserem-se
em quatro categorias rudimentares —
as malévolas, as benévolas, as falsamente acusadas e as desconhecedoras.
Nesta altura, como certamente terão adivinhado, eu estava mesmo em
apuros. Para começar, ele falava tão depressa que não conseguira escrever uma única palavra.
Em segundo lugar, não conhecia sequer todos as palavras difíceis que
ele estava a usar. Todavia, naquele momento ele fez uma pausa. Acho que deve ter percebido a expressão confusa no meu rosto.
— Qual é o problema, rapaz? — indagou. — Vamos, desembucha. Não
tenha medo de fazer perguntas. — Não compreendi tudo o que disse a respeito das bruxas — respondi.
— Não sei o que significa «malévola».
Ou, já agora, «benévola». — Malévola significa má — explicou-me. — Benévola significa boa. E
uma bruxa desconhecedora significa que é uma bruxa que não sabe que
é bruxa e, por ser mulher, isso torna-a duplamente perigosa. Nunca confie numa mulher — disse o Mago.
— A minha mãe é uma mulher — contrapus, sentindo-me subitamente
um tanto irado —, e eu confio nela. — As mães são normalmente mulheres — afirmou o Mago. — E as mães
são normalmente dignas de confiança, desde que se seja seu filho. De
outro modo, fique atento! Já tive mãe e confiava nela, por isso conheço bem a sensação. Gosta de garotas? — perguntou de repente.
— Na verdade, não conheço quaisquer garotas —
confessei. — Não tenho irmãs.
— Bem, nesse caso, pode ser facilmente vítima das manhas delas. Fique
atento às garotas da aldeia. Em especial a alguma que use sapatos bicudos. Anote isso. É um começo tão bom como qualquer outro.
Perguntei-me o que haveria de tão terrível em usar sapatos bicudos.
Sabia que a minha mãe não ficaria satisfeita com o que o Mago acabara de dizer. Ela defendia que se deviam aceitar as pessoas tal como eram e
não dar ouvidos à opinião de outrem. Mas eu tinha outra escolha?
Então, mesmo no alto da primeira página escrevi «Garotas da Aldeia com Sapatos Bicudos».
Ele me viu escrever, depois pediu-me o livro e a caneta. — Olha — disse
—, vai ter de ser muito mais rápido a tomar notas. Há muito que
aprender e não tardará que tenha enchido uma dúzia de livros destes,
mas, por agora, três ou quatro tópicos serão suficientes para começar.
Depois ele escreveu «Demônios Peludos» no alto da segunda página. A seguir «Barulhentos» no alto da terceira página; e, por último, «Bruxas»
no alto da quarta página. — Pronto — disse. — Já tem um começo.
Escreva apenas algo que aprenda hoje debaixo de cada um destes quatro tópicos. Mas de momento há um assunto mais urgente.
Necessitamos de provisões. Por isso vai ter de ir à aldeia; caso contrário,
amanhã passaremos fome. Nem o melhor cozinheiro consegue apresentar resultados sem provisões. Lembre-se de que terá de vir tudo
dentro do meu saco. É o açougueiro que o tem, portanto dirija-se lá em
primeiro lugar. Pergunte apenas pela encomenda de Mr. Gregory. Deu-me uma pequena moeda de prata, avisando-me que não perdesse o
troco, e depois mandou-me descer a colina pelo caminho mais rápido
para a aldeia. Não tardou que voltasse a caminhar por entre as árvores até chegar finalmente a uns degraus que me levaram a um carreiro
íngreme e estreito. Cerca de cem passos mais adiante, virei uma esquina
e apareceram as placas cinzentas dos telhados de ardósia de Chipenden. A aldeia era maior do que eu esperara. Havia pelo menos uma centena
de pequenas cabanas, depois uma taberna, uma escola e uma igreja
grande com campanário. Não se via sinal de uma praça de mercado, mas a rua principal
empedrada, que era bastante inclinada, estava cheia de mulheres com
cestos carregados que entravam nas lojas e saíam apressadas. Cavalos e carroças aguardavam de ambos os lados da rua, pelo que era evidente
que as mulheres dos agricultores locais vinham aqui às compras e, sem
dúvida, também as gentes dos lugarejos vizinhos. Dei facilmente com o talho e juntei-me a uma fila de mulheres ruidosas,
que gritavam todas com o açougueiro, um homem bem-disposto, grande
e corado de barba ruiva. Parecia conhecer cada uma delas e estas riam sonoramente das suas piadas, que pareciam não ter fim.
Não entendi a maior parte, mas via-se que as mulheres percebiam e
dava a impressão de estarem realmente a divertir-se.
Ninguém me prestou muita atenção, mas chegou finalmente a minha vez de ser atendido.
— Venho buscar a encomenda de Mr. Gregory —
disse ao açougueiro. Assim que falei, fez-se silêncio no estabelecimento e as gargalhadas
cessaram. O açougueiro baixou-se por detrás do balcão e pegou num
saco grande. Ouvi as pessoas cochichar atrás de mim, mas, apesar de ter apurado o ouvido, não percebi muito bem o que diziam. Quando me
virei, olhavam para todo o lado menos para mim. Algumas estavam até
de olhos postos no chão.
Entreguei a moeda de prata ao açougueiro, verifiquei cuidadosamente o
troco, agradeci-lhe e saí da loja com o saco, colocando-o ao ombro
quando cheguei à rua. A visita ao vendedor de hortaliças não demorou nada. As provisões
estavam já embrulhadas, de maneira que meti o volume no saco, que
começava agora a ficar bastante pesado. Até ali correra tudo bem, mas quando me encaminhei para a padaria, vi
o grupo de rapazes.
Eram uns sete ou oito, sentados num muro de jardim. Não havia nada de estranho nisso, exceto o fato de não estarem a conversar uns com os
outros — concentravam-se em olhar-me com rostos famintos, qual
matilha de lobos, observando cada passo que eu dava ao aproximar-me da padaria.
Quando saí de lá, continuavam no mesmo lugar e, no momento em que
principiei a subir a colina, eles começaram a seguir-me. Bem, apesar de ser demasiada coincidência pensar que tinham decidido subir a mesma
colina, não fiquei preocupado. Seis irmãos haviam-me dado montes de
prática de luta. Ouvi o som das suas botas cada vez mais próximo.
Estavam a alcançar-me muito rapidamente, mas isso talvez se devesse
ao fato de eu caminhar cada vez mais devagar. Sabem, não queria que pensassem que estava com medo e, de qualquer forma, o saco pesava e
a colina que subia era muito íngreme.
Apanharam-me cerca de uma dúzia de passos antes dos degraus, precisamente no ponto em que o carreiro se dividia numa pequena
mata, as árvores aglomerando-se de cada lado para bloquearem o sol da
manhã. — Abra o saco e mostre-nos o que temos — ordenou uma voz atrás de
mim. Era uma voz sonora, cava, acostumada a dizer às pessoas o que
fazerem. Possuía um timbre de dureza e perigo que me disse que aquele a que pertencia gostava de infligir dor e andava sempre à procura da sua
próxima vítima.
Virei-me para o enfrentar mas agarrei o saco ainda com mais força,
mantendo-o firmemente ao ombro. Aquele que falara era o líder do
grupo. Não existia a menor dúvida. Os restantes tinham caras magras e chupadas, como se estivessem a precisar de uma boa refeição, mas
parecia que ele andara a comer pelos outros todos. Tinha pelo menos
mais uma cabeça de altura do que eu, com ombros largos e um pescoço semelhante ao de um touro.
O seu rosto também era grande, de faces vermelhas, mas tinha uns
olhos muito pequenos e não dava mostras de pestanejar sequer. Acho que se ele não tivesse estado ali nem tentado desafiar-me, talvez
eu me houvesse compadecido. Afinal, alguns dos rapazes pareciam
meios esfomeados e havia imensas maçãs e bolos no saco. Por outro
lado, não eram meus para os estar a distribuir.
— Isto não me pertence — disse. — Pertence a Mr. Gregory.
— O último aprendiz dele não parecia muito incomodado com isso — redarguiu o líder, aproximando mais o seu rosto grande do meu. — Ele
costumava abrir o saco para nós. Se tivesse algum juízo, faria o mesmo.
Se não o quiser fazer por bem, então terá de ser por mal. Mas não vai gostar muito e no fim virá a dar tudo no mesmo.
O grupo começou a acercar-me e senti alguém atrás de mim puxar o
saco. Mesmo assim, não o larguei e olhei para os olhos miudinhos do líder, esforçando-me por não pestanejar.
Naquele momento, aconteceu algo que nos apanhou a todos de
surpresa. Verificou-se um movimento nas árvores em algum lugar à minha direita e viramo-nos todos para lá.
Estava um vulto negro nas sombras e, quando os meus olhos se
adaptaram ao escuro, vi que era uma garota. Avançava lentamente na nossa direção, mas a sua aproximação era tão silenciosa que até se
podia ouvir cair um alfinete e tão suave que ela parecia flutuar, em vez
de caminhar. Depois parou mesmo à beira da sombra das árvores, como se não quisesse avançar para a luz do sol.
— Porque não o deixam em paz? — inquiriu. Parecia uma pergunta, mas
o tom na voz dela dizia-me que era uma ordem. — O que tem a ver com isso? — perguntou o líder do grupo, espetando o
queixo e cerrando os punhos.
— Não é comigo que deve se preocupar — respondeu ela das sombras. — Lizzie voltou, e se não fizer o que eu digo, terá de responder perante
ela.
— Lizzie? — estranhou o rapaz, recuando um passo. — Lizzie dos Ossos. É minha tia. Não me diga que nunca ouviu falar dela. .
Já alguma vez sentiram que o tempo passa tão devagar que quase
parece parado? Alguma vez ouviram um relógio em que o próximo tique parece levar uma eternidade a seguir o último taque? Bem, foi
exatamente assim até que, muito subitamente, a garota sibilou
sonoramente através dos dentes cerrados. Depois voltou a falar.
— Vamos — disse ela. — Desapareçam! Vão-se embora, e depressa, senão mato-os!
Foi imediato o efeito sobre o grupo. Captei a expressão em alguns dos
rostos deles e vi que não estavam apenas com medo. Estavam apavorados e à beira do pânico. O líder girou nos calcanhares e fugiu
imediatamente colina abaixo, com os outros a segui-lo muito de perto.
Não sabia por que motivo estavam tão assustados mas queria também fugir. A garota fitava-me de olhos arregalados e não me achei capaz de
controlar devidamente as pernas. Sentia-me como um rato paralisado
pelo olhar fixo de um furão prestes a saltar.
Obriguei o meu pé esquerdo a mover-se e, lentamente, virei o meu
corpo para as árvores a fim de seguir a direção em que o meu nariz
apontava, mas continuava a agarrar o saco do Mago. Fosse ela quem fosse, não estava disposto a abrir mão dele.
— Não vai fugir também? — perguntou-me ela.
Abanei a cabeça, mas tinha a boca tão seca que não confiava em mim para tentar falar. Sabia que diria as palavras erradas.
Ela teria provavelmente a minha idade — quando muito seria
ligeiramente mais nova. Tinha um rosto bastante bonito, pois possuía olhos castanhos grandes, malares salientes e cabelo preto comprido.
Envergava um vestido preto cingido na cintura com um pedaço de corda
branca. Mas enquanto eu registrava tudo isto, percebi subitamente de algo que me incomodou.
A garota calçava sapatos bicudos, e lembrei-me de imediato do aviso do
Mago. Mas mantive-me firme, decidido a não fugir como os outros. — Não vai me agradecer? — perguntou ela. — Seria agradável ouvir um
obrigado.
— Obrigado — disse-lhe, desajeitada mente, conseguindo finalmente dizer uma palavra.
— Bem, já é um começo — gracejou ela. — Mas para me agradecer
como deve ser, precisa de me dar algo, não é verdade? Um bolo e uma maçã serão suficientes de momento. Não estou a lhe pedir muito. Há
muitos no saco e o Velho Gregory não irá dar por isso, e se der, não dirá
nada. Fiquei chocado de a ouvir chamar «Velho Gregory»
ao Mago. Sabia que ele não gostava que o tratassem assim e alertou-me
para dois aspectos. Em primeiro lugar, a garota tinha pouco respeito por ele, e, em segundo, não o temia nem um bocadinho. Mas, no lugar de
onde eu vinha, a maioria das pessoas tremia só da idéia de que o Mago
pudesse estar nas proximidades. — Lamento — respondi —, mas não o posso fazer. Não me compete dá-
los.
Ela olhou-me então com dureza e durante um bom bocado não falou.
Pensei a dada altura que fosse sibilar entre dentes. Olhei para ela,
tentando não pestanejar, até que um tênue sorriso lhe iluminou o rosto e ela voltou a falar. — Então terei de me contentar com uma promessa.
— Uma promessa? — estranhei, perguntando-me o que pretenderia.
— Uma promessa de me ajudar assim como eu te ajudei. Não preciso de qualquer ajuda neste momento, mas talvez venha a precisar um dia.
— Está bem — respondi-lhe. — Se alguma vez vier a precisar de ajuda, é
só pedir. — Como se chama? — indagou ela, brindando-me com um largo sorriso.
— Tom Ward.
— Bem, o meu nome é Alice e vivo acolá — disse, apontando para o
meio das árvores. — Sou a sobrinha preferida de Lizzie dos Ossos.
Lizzie dos Ossos era um nome estranho mas teria sido indelicado da
minha parte mencioná-lo. Fosse lá quem fosse, o seu nome bastara para apavorar os rapazes da aldeia.
E a nossa conversa terminou ali. Viramo-nos os dois e seguimos
caminhos separados, mas enquanto nos afastávamos, Alice gritou por cima do ombro.
— Agora tenha cuidado. Não queira ter o mesmo fim que o último
aprendiz do Velho Gregory. — O que lhe aconteceu? — inquiri. — É melhor perguntar ao Velho
Gregory! — gritou ela enquanto desaparecia por entre as árvores.
Quando regressei, o Mago verificou cuidadosamente o conteúdo do saco, dando baixa na lista.
— Tive algum problema na aldeia? — perguntou, depois de finalmente
terminar. — Uns rapazes seguiram-me colina acima e mandaram-me abrir o saco
mas eu neguei-me a fazê-lo — referi.
— Foi muito corajoso — afirmou o Mago. — Para a próxima não haverá nenhum problema se os deixar tirar alguns bolos e maçãs. A vida já é
bastante difícil, mas alguns deles são de famílias muito pobres.
Encomendo sempre a mais, para o caso de eles pedirem. Fiquei aborrecido. Se ele me tivesse dito aquilo antes! — Não o quis
fazer sem antes lhe perguntar — redargui.
O Mago arqueou os sobrancelhas. — Querias dar-lhes alguns bolos e maçãs?
— Não gosto que me provoquem — disse —, mas alguns deles tinham
um ar realmente esfomeado. — Para a próxima confie nos seus instintos e use a sua iniciativa —
replicou o Mago. — Confie na voz dentro de si. Raramente se engana.
Um Mago depende muito dela, porque às vezes pode significar a diferença entre a vida e a morte. Mas isso é outra coisa que precisamos
de descobrir a eu respeito. Se pode ou não confiar nos seus instintos.
Fez uma pausa, fitando-me intensamente, os seus olhos verdes
perscrutando o meu rosto. — Algum problema com garotas? — inquiriu
subitamente. Como ainda estava aborrecido, não dei uma resposta direta à pergunta
dele.
— Problema nenhum — disse. Não era uma mentira, pois Alice ajudara-me, o que era precisamente o
oposto. Mesmo assim, julguei que me estivesse a perguntar se
encontrara alguma garota e sabia também que lhe devia ter falado dela. Especialmente porque usava sapatos bicudos.
Cometi muitos erros como aprendiz e aquele foi o meu segundo mais
grave — não contar toda a verdade ao Mago.
O primeiro, mais grave ainda, foi fazer a promessa a Alice.
CAPÍTULO 7
ALGUÉM TEM QUE FAZER
Depois daquilo, a minha vida entrou numa rotina atarefada. O Mago
ensinava-me depressa e obrigava-me a escrever até ficar com o pulso a
doer e os olhos a arder. Uma tarde, levou-me até ao fundo da aldeia, para lá da última cabana
de pedra, onde havia um pequeno círculo de salgueiros que, no
Condado, têm o nome de «vimes». Era um lugar triste e havia ali uma
corda pendendo de um ramo. Olhei para cima e vi um sino grande de
latão. — Quando alguém precisa de ajuda — disse o Mago —, não vem
até em casa. Ninguém o faz, a menos que tenha sido convidado. Sou muito rigoroso nisso.
Descem aqui e tocam aquele sino. Depois nós vamos ter com eles.
O problema era que, mesmo depois de terem passado semanas, ninguém viera tocar o sino, e só precisei de ir para lá do jardim ocidental
quando houve necessidade de ir buscar as provisões semanais à aldeia.
Sentia-me também sozinho, com saudades da minha família, por isso foi boa idéia o Mago manter-me ocupado — isso queria dizer que não tinha
tempo para me pôr a pensar no assunto. Quando ia me deitar estava tão
cansado que adormecia mal a minha cabeça pousava na almofada. As lições eram a parte mais interessante de cada dia, mas não aprendi
muito sobre imagens fantasmagóricas, fantasmas e bruxas. O Mago
explicou-me que, no primeiro ano do aprendizado, os temas principais eram os demônios, juntamente com assuntos como a botânica, o que
implicava aprender tudo sobre plantas, algumas das quais eram
realmente úteis em mezinhas ou podiam ser comidas se não se encontrasse outro alimento. Mas as minhas lições não se limitavam a
tomar notas. Parte do trabalho era tão duro e físico como o que eu fazia
lá na nossa fazenda. Começou numa manhã quente e ensolarada, em que o Mago me mandou
pôr de lado o livro de notas e segui-lo até ao jardim meridional.
Entregou-me duas coisas para levar: uma pá e uma vara de medição comprida.
— Os demônios livres deslocam-se através de linhas — explicou. — Mas
por vezes algo corre mal. Pode ser conseqüência de uma tempestade ou talvez de um tremor de terra. Nunca se registrou um tremor de terra a
sério no Condado desde que há memória, mas isso não importa, porque
as linhas estão todas interligadas e algo que acontece numa, mesmo a milhares de quilômetros, pode afetar todas as outras. Então, os
demônios ficam presos no mesmo lugar durante anos e chamamos-lhes
«aprisionados naturalmente». Muitas vezes não conseguem se mover
mais de uma dúzia de passos em qualquer sentido e causam poucos
problemas. A menos que se aproxime demais de um deles. Por vezes, no entanto, podem ficar presos em lugares estranhos, perto de uma casa ou
mesmo dentro dela. Então, talvez precise de mudar dali o demônio e
aprisioná-lo artificialmente noutro lugar. — O que é uma linha? — inquiri.
— Não existe um consenso, rapaz — explicou-me ele. — Há quem pense
que são apenas caminhos antigos que atravessam a terra, os caminhos que os nossos ante-passados percorreram em tempos antigos, quando
os homens eram homens de verdade e a escuridão conhecia o seu
devido lugar. Havia mais saúde, vivia-se mais tempo e toda a gente
estava feliz e contente.
— O que aconteceu?
— A camada de gelo desceu do norte e a terra ficou gelada durante milhares de anos — esclareceu o Ma-go. — Foi tão difícil sobreviver que
os homens se esqueceram de tudo o que haviam aprendido. O
conhecimento antigo não era relevante. Tudo o que importava era manterem-se quentes e terem comida. Quando o gelo finalmente
recuou, os sobreviventes eram caçadores vestidos com peles de animais.
Haviam esquecido como se obtinham boas colheitas e criavam animais. As trevas eram soberanas.
«Bem, agora está melhor, apesar de ainda termos um longo caminho
pela frente. Tudo o que resta daqueles tempos são as linhas, mas, na verdade, são mais do que meros caminhos. As linhas são verdadeiras
vias de poder, bem nas profundezas da Terra. Estradas secretas
invisíveis que os demônios livres podem usar para se deslocarem a grande velocidade. São estes demônios livres que causam a maior parte
dos problemas. Quando se instalam num novo local, com freqüência não
são bem-vindos. E isso deixa-os irados. Pregam peças — às vezes perigosas — e isso significa trabalho para nós. Então, é preciso
aprisioná-los artificialmente num poço. Como aquele que vai abrir agora.
. «Este é um bom local — disse, apontando para o solo perto de um
enorme carvalho antigo. — Acho que deve haver espaço suficiente entre
as raízes. O Mago entregou-me a vara de medição para que eu pudesse abrir o
poço exatamente com um metro e oitenta de comprido, um metro e
oitenta de profundidade e noventa centímetros de largura. Mesmo à sombra, fazia demasiado calor para cavar e levei horas e horas até
conseguir acertar porque o Mago era um perfeccionista.
Depois de abrir o poço, tive de preparar uma mistura malcheirosa de sal, limalhas de ferro e um tipo especial de cola feita com ossos.
— O sal pode queimar um demônio — informou o Mago. — Por outro
lado, o ferro faz a ligação ao solo: tal como um raio dá com o caminho
até à terra e perde a sua força, o ferro pode por vezes fazer com que as coisas que habitam o escuro percam a força e a substância. Pode pôr fim
à malvadez de demônios incômodos. Usados juntos, o sal e o ferro
formam uma barreira que um demônio não consegue atravessar. Na realidade, o sal e o ferro podem ser usados em diversas situações.
Depois de agitar a mistura num balde grande de metal, servi-me de uma
trincha para revestir o interior do poço. Era como se pintasse, mas mais trabalhoso, e a camada tinha de ficar perfeita para evitar que até o
demônio mais habilidoso conseguisse escapulir.
— Faça um trabalho minucioso, rapaz — disse-me o Mago. — Um
demônio é capaz de fugir por um buraco do tamanho de uma cabeça de
alfinete.
Claro que, assim que o poço ficou concluído a contento do Mago, tive de tapá-lo e recomeçar. Obrigou-me a abrir dois poços por semana para
treinar, o que era um trabalho duro e fatigante e me ocupava grande
parte do tempo. Metia também um certo medo porque eu estava a trabalhar perto de poços que continham demônios verdadeiros e, mesmo
à luz do dia, era um lugar medonho. No entanto, reparei que o Mago
nunca se afastava muito e parecia sempre atento e alerta, dizendo-me que nunca se devia correr riscos com demônios, mesmo quando estavam
presos.
O Mago disse também que eu ia precisar de conhecer cada palmo do Condado — todas as suas vilas e aldeias e o caminho mais rápido entre
quaisquer dois pontos. Só que, apesar de o Mago dizer que possuía
muitos mapas lá em cima na biblioteca, parecia que eu tinha sempre de seguir o caminho mais difícil, e então começou por me mandar desenhar
o meu próprio mapa.
No meio situava-se a casa dele e os jardins e foi preciso incluir a aldeia e a extensão rochosa mais próxima.
A idéia era ele ir ficando gradualmente maior, de modo a incluir cada vez
mais a região em redor. Mas o desenho não era o meu forte e, como referi, o Mago era um perfeccionista, pelo que o mapa levou muito
tempo a crescer.
Só então ele começou a me mostrar os seus próprios mapas, mas obrigava-me depois a passar mais tempo a dobrá-los cuidadosamente do
que propriamente a estudá-los.
Comecei também a ter um diário. Para o efeito, o Mago entregou-me outro livro de notas, dizendo-me pela enésima vez que eu precisava de
registrar o passado para que pudesse aprender com ele. Não escrevia
nele todos os dias e às vezes doía-me demais o pulso de tanto rabiscar à pressa no outro livro de notas, enquanto tentava acompanhar o que o
Mago dizia.
Depois, uma manhã, ao desjejum, estava eu com o Mago apenas há um
mês, ele perguntou-me: — Qual a sua opinião até aqui, rapaz?
Estaria a referir-se ao desjejum? Talvez houvesse um segundo prato para compensar o toucinho fumado, que ficara um pouco esturricado
naquela manhã. Limitei-me a encolher os ombros. Não queria ofender o
demônio, que estaria provavelmente à escuta. — Bem, é um trabalho difícil e não o culparia se decidisse desistir neste
momento — disse ele. — Decorrido o primeiro mês, dou sempre a cada
novo aprendiz a oportunidade de ir a casa e pensar a sério se quer ou não continuar. Gostaria de fazer o mesmo?
Esforcei-me por não me mostrar demasiado ansioso mas não consegui
esconder o sorriso que afluiu ao meu rosto. Só que, quanto mais eu
sorria, mais triste o Mago parecia. Deu-me a impressão de que ele
queria que ficasse, mas eu estava ansioso por partir. A idéia de voltar a
ver a minha família e poder saborear os cozinhados da minha mãe parecia-me um sonho.
Numa hora, estava pronto para ir a casa.
— É um rapaz corajoso e de espírito vivo — disse-me ao portão. — Passou no seu mês à experiência por isso pode dizer ao seu pai que, se
quiser continuar, irei visitá-lo no Outono para receber os meus dez
guinéus. Possui os predicados de um bom aprendiz, mas é com você, rapaz. Se
não voltar, então saberei que decidiu o contrário. De outro modo,
espero-o de volta dentro de uma semana. Depois receberá cinco anos de preparação que te tornarão quase tão bom quanto eu, no ofício.
Parti para casa, animado. Sabem, não quisera dizer nada ao Mago, mas
no momento em que ele me dera a oportunidade de ir a casa e possivelmente não voltar, eu decidira fazer exatamente isso. Era um
trabalho horrível.
Pelo que o Mago me contara, para além da solidão, era perigoso e aterrador. Ninguém se importava se sobrevivíamos ou morríamos. Só
queriam que os livrássemos do que quer que os atormentava, mas não
pensavam nem por um segundo nas implicações que isso poderia ter para nós.
O Mago mencionara-me que uma vez quase fora morto por um demônio.
Mudara, num abrir e fechar de olhos, de barulhento para arremessador de pedras e por pouco não lhe rachara a cabeça com uma pedra do
tamanho de um punho de ferreiro. Disse que nem sequer lhe tinham
pago ainda, mas contava receber o dinheiro na Primavera seguinte. Bem, a Primavera seguinte ainda vinha muito longe, por isso de que
servia? Quando parti rumo a casa, parecia-me que estaria melhor a
trabalhar na fazenda. Mas foram quase dois dias de viagem e tive muito tempo para pensar
durante o caminho. Lembrei-me das vezes que me sentira enfadado na
fazenda. Conseguiria realmente agüentar trabalhar ali o resto da minha
vida?
A seguir, comecei a pensar no que diria a minha mãe. Ela estava firmemente decidida a que eu fosse o aprendiz do Mago e, se desistisse,
decepcioná-la-ia muito.
Portanto, a parte mais difícil seria contar-lhe e observar a sua reação. Ao anoitecer do meu primeiro dia de regresso a casa, consumira já todo
o queijo que o Mago me dera para a viagem. Assim, no dia seguinte só
parei uma vez, para mergulhar os pés num riacho, chegando a casa mesmo antes da ordenha. Quando abri o portão do pátio, o meu pai
dirigia-se para o estábulo. Ao ver-me, o seu rosto iluminou-se num
amplo sorriso. Ofereci-me para ajudá-lo na ordenha, a fim de podermos
conversar, mas ele mandou-me ir falar imediatamente com a minha
mãe.
— Ela sentiu a sua falta. Será um deleite para a vista. Batendo-me nas costas, foi ordenhar as vacas, mas eu ainda não dera meia dúzia de
passos quando Jack saiu do celeiro e veio direito a mim.
— O que o traz de volta tão depressa? — perguntou. Pareceu-me um pouco frio. Bem, para ser sincero, ele estava mais gélido do que frio. O
seu rosto apresentava-se contorcido, como se tentasse carregar o cenho
e sorrir ao mesmo tempo. — O Mago mandou-me a casa por uns dias. Tenho de decidir se quero ou
não continuar.
— E o que é que vai fazer? — Vou conversar com a minha mãe sobre o assunto.
— Levará sem dúvida a água ao seu moinho, como sempre — disse Jack.
Nesta altura, Jack estava mesmo carrancudo e fiquei com a impressão de que acontecera algo enquanto eu estivera fora. Por que outro motivo
ficaria de repente tão antipático? Seria porque não queria que eu
voltasse para casa? — E nem quero acreditar que levou a caixa de mechas do pai — acrescentou.
— Ele me deu — retorqui. — Quis que eu ficasse com ela.
— Ele ofereceu-a, mas isso não significava que tivesse de aceitá-la. O seu mal é só pensar em si. Pense no pobre do pai. Ele adorava aquela
caixa de mechas.
Não disse nada porque não estava interessado em criar uma discussão. Sabia que ele estava errado. O pai quisera que eu ficasse com a caixa de
mechas, tinha a certeza absoluta.
— Enquanto aqui estiver, poderei dar uma ajuda — disse, tentando mudar de assunto.
— Se quer realmente ganhar o seu sustento, então vá dar comida aos
porcos! — gritou enquanto se afastava.
Era uma tarefa de que nenhum de nós gostava. Os porcos eram
grandes, peludos e malcheirosos e estavam sempre tão esfomeados que
nunca era seguro virar-lhes as costas. Apesar do que Jack dissera, não deixei de me sentir satisfeito por estar
em casa. Enquanto atravessava o pátio, olhei para a casa. As rosas
trepadeiras da minha mãe re-vestiam a maior parte da parede das traseiras, e sempre se tinham dado bem ali, não obstante estarem
viradas a norte. Agora começavam a rebentar, mas em meados de Ju-
nho estariam cobertas de flores vermelhas. A porta de trás encravava constantemente porque uma vez a casa fora
atingida por um raio. A porta incendiara-se e fora substituída, mas a
ombreira continuava ligeiramente empenada e eu tive de empurrá-la
com bastante força. Valeu a pena, pois a primeira coisa que vi foi o rosto
sorridente da minha mãe.
Estava sentada na sua velha cadeira de balanço, no canto mais afastado da cozinha, um local onde o sol poente não conseguia chegar. Se a luz
fosse demasiado intensa, feria-lhe os olhos. A minha mãe preferia o
Inverno ao Verão e a noite ao dia. Claro que ficou satisfeita de me ver, e a princípio tentei dizer-lhe o mais
tarde possível que viera para ficar.
Assumi uma expressão corajosa e fingi estar feliz, mas ela não se deixou enganar. Nunca lhe conseguia esconder nada.
— O que se passa? — perguntou-me. Encolhi os ombros e procurei
sorrir, provavelmente disfarçando os meus sentimentos ainda pior do que o meu irmão.
— Fale — ordenou-me. — E inútil guardar tudo só para si. Durante um
grande bocado não respondi porque estava tentando encontrar uma maneira de o expressar por palavras. O ritmo da cadeira de balanço da
minha mãe abrandou gradualmente, até acabar por cessar
completamente. Aquilo não era bom sinal. — Passei no meu mês à experiência e Mr. Gregory disse que tenho de
decidir se continuo ou não. Mas sinto-me sozinho, mãe — acabei por
confessar. — É tão mau quanto esperava. Não tenho amigos. Ninguém da minha idade com quem conversar. Gostaria de voltar a trabalhar
aqui.
Podia ter continuado, referindo-lhe o quanto costumávamos ser felizes quando todos os meus irmãos viviam ali. Não o fiz — sabia que ela
também sentia saudades deles. Pensei que se pudesse compadecer, mas
estava muito enganado. Seguiu-se uma longa pausa antes de a minha mãe falar e ouvi El ie a
varrer na divisão ao lado, cantando baixinho enquanto trabalhava.
— Sozinho? — perguntou a minha mãe, a sua voz cheia de raiva em vez de compaixão. — Como pode sentir-se sozinho? Tem a si próprio, não
tem? Se alguma vez se perder, então é que estará realmente sozinho.
Entretanto, pare de se queixar. Já é quase um homem e um homem tem
de trabalhar. Desde que o mundo é mundo, os homens têm trabalhado
naquilo de que não gostam. Porque haveria de ser diferente no seu caso? É o sétimo filho de um
sétimo filho, e este é o trabalho que nasceu para fazer.
— Mas Mr. Gregory preparou outros aprendizes — saiu-me abruptamente. — Um deles podia voltar e olhar pelo Condado.
Porque tem de ser eu?
— Ele preparou muitos, mas pouquíssimos foram até ao fim — disse a minha mãe —, e aqueles que o fizeram não lhe chegam nem aos
calcanhares. Ou são imperfeitos ou fracos ou covardes. Seguem um
caminho desonroso, recebendo dinheiro a troco de muito pouco. Por isso
agora só resta você, filho. É a última oportunidade. A última esperança.
Alguém tem de fazê-lo. Alguém tem de enfrentar o escuro. E você é o
único capaz disso. A cadeira recomeçou a balançar, ganhando lentamente velocidade.
— Bem, fico contente por isto estar resolvido.
Quer esperar pela ceia ou que te sirva assim que ficar pronta?— perguntou a minha mãe.
— Não comi nada o dia inteiro, mãe. Nem sequer o desjejum.
— Bem, é coelho guisado. Deverá conseguir animar-te um pouco. Sentei-me à mesa da cozinha, sentindo-me mais desanimado e triste do
que nunca, enquanto a minha mãe se atarefava em volta do fogão. O
coelho guisado cheirava deliciosamente e começou a dar-me água na boca. Não havia melhor cozinheira do que a minha mãe e valia a pena
voltar para casa, nem que fosse para uma única refeição.
Sorrindo, a minha mãe trouxe um grande prato fumegante de guisado e colocou-o diante de mim.
— Vou preparar o seu quarto — disse. — Já que está aqui, pode
perfeitamente ficar um dia ou dois. Murmurei os meus agradecimentos e não perdi tempo a começar. Assim
que a mãe foi para cima, Ellie entrou na cozinha. — Que bom voltar a
ver-te, Tom — disse ela, com um sorriso. Depois olhou para a minha generosa pratada de comida. — Quer acompanhar com pão?
— Sim, por favor — respondi e Ellie cortou-me três fatias grossas com
manteiga, antes de se sentar à mesa defronte de mim. Terminei tudo sem parar uma só vez para respirar, limpando finalmente o prato com a
última fatia grande de pão acabado de cozer.
— Sente-se melhor, agora? Anuí e tentei sorrir, mas sabia que não estava a resultar porque de
repente Ellie mostrou-se preocupada.
— Não pude deixar de ouvir o que disse à sua mãe — aludiu. — Estou certa de que não é tão mau quanto isso. Só que o
trabalho é novidade e estranho. Não tardará a acostumar-se. De
qualquer forma, não precisa voltar imediatamente. Após alguns dias em
casa, se sentirá melhor. E será sempre bem-vindo aqui, mesmo quando
a fazenda pertencer a Jack. — Não creio que Jack tenha ficado satisfeito de me ver.
— Ora essa, o que te leva a pensar semelhante coisa? — inquiriu Ellie.
— Ele não me pareceu muito amistoso, é tudo. Acho que não me quer aqui.
— Não se preocupe com o seu irmão grande e mau. Eu resolvo tudo com
ele num instante. Sorri então amplamente, porque era verdade. Como dissera uma vez a
minha mãe, Ellie conseguia dar a volta a Jack com o dedo mindinho.
— O que mais o preocupa é isto — disse Ellie, passando a mão pela
barriga. — A irmã da minha mãe morreu do parto e a nossa família ainda
hoje fala disso.
Deixa Jack nervoso, mas eu não estou nada preocupada porque não podia encontrar-me em melhor lugar, com a sua mãe a cuidar de mim.
— Fez uma pausa. — Mas há outra coisa. O seu novo ofício preocupa-o.
— Ele parecia bastante satisfeito antes de eu ir embora — respondi. — Estava a fazê-lo por você, porque é irmão dele e se preocupa com
você. Mas o trabalho de Mago assusta as pessoas. Deixa-as inquietas.
Acho que se tivesse ido logo embora, provavelmente não haveria problema. Mas Jack afirmou que no dia em que se foi, subiu a colina até
à mata e desde então os cães têm andado agitados. Agora nem sequer
querem ir à pastagem norte. «Jack pensa que você perturbou algo lá em cima.
Acho que se resume tudo a isto — prosseguiu Ellie, batendo
delicadamente na barriga. — Ele só está querendo proteger-nos, é tudo. A pensar na família dele. Mas não se preocupe. Tudo irá se resolver.
Acabei por ficar três dias, tentando mostrar-me corajoso, mas depois
senti que estava na hora de ir. A minha mãe foi a última pessoa que vi antes de partir. Estávamos os dois na cozinha e ela apertou-me o braço
e disse-me que se orgulhava de mim.
— Você é mais do que sete vezes sete — afirmou, sorrindo-me calorosamente. — Também é meu filho e possui a força para fazer o que
tem de ser feito.
Não pude deixar de anuir porque queria que ela ficasse feliz, mas o sorriso desapareceu do meu rosto assim que deixei o pátio. Arrastei-me
penosamente até casa do Mago com o coração mesmo aos pés,
sentindo-me magoado e desiludido por a minha mãe não me querer de volta. Choveu o tempo todo até Chipenden e quando cheguei estava
gelado, molhado e infeliz. Mas quando me aproximei do portão, para
minha surpresa, a tranca levantou-se sozinha e o portão abriu-se sem que eu lhe tocasse.
Foi uma espécie de boas-vindas, um encorajamento a entrar, algo que
eu julgara estar unicamente reservado ao Mago. Acho que aquilo me
deveria ter deixado satisfeito, mas não. Causou-me arrepios. Bati à porta três vezes, antes de perceber que a chave estava na
fechadura. Como não respondessem às minhas pancadas, rodei a chave
e depois abri a porta. Verifiquei todas as divisões aqui em baixo, exceto uma. Depois chamei
das escadas. Não obtive resposta, de modo que arrisquei entrar na
cozinha. O fogo ardia na lareira e a mesa fora posta para uma pessoa. No seu centro estava um enorme tacho de guisado fumegante. Tinha
tanta fome que me servi e quase limpara tudo quando vi o bilhete
debaixo do saleiro.
Tive de ir a Pendle. Problema com bruxa, por isso vou estar ausente
algum tempo. Instala-se à vontade mas não se esqueça de ir buscar as
provisões para esta semana. Como sempre, o açougueiro tem o meu saco, por isso passe lá primeiro.
Pendle era uma enorme extensão rochosa — quase uma montanha, na
realidade — na região leste do Condado. Toda a zona estava infestada de bruxas e era um local arriscado onde ir, especialmente sozinho.
Recordou-me novamente quão perigoso podia ser o trabalho do Mago.
Mas, ao mesmo tempo, não pude deixar de ficar um pouco aborrecido. Todo aquele tempo à espera de que acontecesse algo, depois, assim que
viro costas, o Mago vai-se embora sem mim!
Dormi bem naquela noite, mas não tão profunda-mente que não ouvisse a sineta a chamar-me para o desjejum. Desci a tempo e fui
recompensado com o melhor prato de toucinho defumado com ovos que
alguma vez comera na casa do Mago. Fiquei tão satisfeito que, antes mesmo de me levantar da mesa, falei em voz alta, usando as palavras
que o meu pai proferia todos os Domingos depois do almoço.
— Estava excelente — disse. — Parabéns ao cozinheiro. Mal acabei de pronunciá-las, as chamas brilharam com mais intensidade
na lareira e um gato começou a ronronar. Não via nenhum gato, mas o
barulho que fazia era tão sonoro que era capaz de jurar que as vidraças estremeciam. Obviamente o elogio fora apreciado.
Então, sentindo-me bastante satisfeito comigo mesmo, pus-me a
caminho da aldeia para ir buscar as provisões. O sol brilhava num céu azul sem nuvens, as aves cantavam e, depois da chuva da véspera, o
mundo parecia brilhante, resplandecente e novo.
Comecei pelo açougueiro, recolhi o saco do Mago, passei ao vendedor de hortaliças e terminei na padaria.
Havia alguns rapazes da aldeia encostados a um muro próximo. Não
eram tantos quanto da última vez e o líder deles, o rapagão com pescoço de touro, não se encontrava ali.
Lembrando-me do que o Mago dissera, fui ter com eles.
— Desculpem da última vez — disse —, mas sou novo e não conhecia
bem as regras. Mr. Gregory disse que podiam ficar com um bolo e uma
maçã cada um. — Dizendo isto, abri o saco e entreguei a cada rapaz o que prometera. Os olhos deles arregalaram-se tanto que quase saltaram
das órbitas, e balbuciaram agradecimentos.
No alto do caminho estava alguém à minha espera. Era a garota chamada Alice, e mais uma vez se colocara na sombra das
árvores, como se não gostasse da luz do sol. — Pode ficar com uma
maçã e um bolo — disse-lhe. Para minha surpresa, ela abanou a cabeça. — Não tenho fome de momento — respondeu. —
Mas há algo que quero realmente. Preciso que honre a sua promessa.
Preciso de ajuda.
Encolhi os ombros. Uma promessa é uma promessa e lembrava-me de a
ter feito. Por conseguinte, que mais podia fazer, a não ser cumprir a
minha palavra? — Diga-me o que quer e farei o melhor que puder
— repliquei.
Mais uma vez o rosto dela se iluminou num sorriso verdadeiramente rasgado. Trazia um vestido preto e os sapatos bicudos mas, não sei
como, aquele sorriso fez-me esquecer tudo isso. Mesmo assim, o que ela
disse a seguir deixou-me apreensivo e estragou por completo o resto do dia.
— Não vou te contar agora — disse ela. — Fá-lo-ei esta noite, pode ter a
certeza, assim que o Sol se puser. Venha ter comigo quando ouvir o sino do Velho Gregory.
Ouvi o sino mesmo antes do pôr do Sol e, com um peso no peito, desci a
colina em direção ao círculo de salgueiros onde os caminhos se cruzavam. Não me parecia certo ela estar a tocar o sino daquela
maneira. A menos que fosse trabalho para o Mago, mas tinha as minhas
dú- vidas. Lá no alto, os últimos raios de sol incidiam nos cumes das colinas
rochosas com um tênue brilho cor-de-laranja, mas aqui em baixo, entre
os vimes, estava cinzento e cheio de sombras. Estremeci ao ver a garota porque ela puxava a corda apenas com uma
mão e, no entanto, os badalos do sino grande soavam exageradamente.
Apesar de ter os braços magros e a cintura estreita, devia ser muito forte.
Parou de tocar assim que apareci e pousou as mãos nas ancas enquanto
os ramos continuavam a dançar e a tremer lá em cima. Ficamos a olhar um para o outro uma eternidade, até os meus olhos serem atraídos para
um cesto aos pés dela. Havia algo lá dentro coberto com um pano preto.
Pegou no cesto e estendeu-o na minha direção. — O que é? — perguntei.
— É para você, para que possa cumprir a sua promessa. Aceirei-o, mas
não me sentia satisfeito. Curioso, meti a mão lá dentro para levantar o
pano preto. — Não, deixe assim — Alice falou bruscamente, um tom cortante na sua
voz. — Não podem apanhar ar, senão estragam-se.
— O que são? — indaguei. Escurecia mais a cada minuto que passava e começava a sentir-me nervoso.
— São apenas bolos.
— Muito obrigado — disse-lhe. — Não são para você — retorquiu ela, começando a bailar-lhe um tênue
sorriso aos cantos da boca. — Esses bolos são para a Velha Mãe Malkin.
Fiquei com a boca seca e um arrepio percorreu-me a espinha. Mãe
Malkin, a bruxa viva que o Mago mantinha no poço no seu jardim.
— Não creio que Mr. Gregory vá gostar disto —
disse. — Ele disse-me para me afastar dela. — O Velho Gregory é um homem muito cruel — respondeu Alice. — A
pobre Mãe Malkin está naquele buraco escuro e úmido no solo faz agora
quase treze anos. Está certo tratar tão mal uma mulher idosa?
Encolhi os ombros. Aquilo também não me agradara. Era difícil
concordar com o que ele fizera, mas alegara possuir muito bons motivos para tal.
— Olha — prosseguiu ela —, não se meterá em apuros porque o Velho
Gregory não precisa saber. Só lhe vai levar consolo. São os bolos preferidos dela, feitos pela família. Não há nada de mal nisso. É só para
ela se fortalecer por causa do frio, que atinge até os ossos.
Voltei a encolher os ombros. Parecia que todos os melhores argumentos lhe pertenciam.
— Dê-lhe apenas um bolo cada noite. Três bolos para três noites. É
melhor fazê-lo à meia-noite porque é nessa altura que ela tem mais apetite. Dê-lhe o primeiro esta noite.
Alice preparava-se para ir embora mas parou e virou-se para me sorrir.
— Podíamos ser bons amigos, você e eu — disse com uma risada. Depois desapareceu nas sombras cada vez mais densas.
CAPÍTULO 8
A VELHA MÃE MALKIN
De regresso à cabana do Mago, comecei a ficar preocupado, mas, quanto
mais pensava no assunto, menos esclarecido me sentia. Sabia qual seria
a reação do Mago. Deitaria fora os bolos e dar-me-ia uma longa lição sobre bruxas e os problemas com meninas que usam sapatos bicudos.
Mas ele não estava ali, por isso excluía-se a hipótese. Havia duas coisas
que me faziam ir à escuridão do jardim oriental, onde ele mantinha as
bruxas. A primeira era a minha promessa a Alice.
— Nunca prometa nada que não esteja preparado para cumprir — dizia-
me sempre o meu pai. Mas eu tinha pouca escolha. Ele ensinara-me a distinguir o certo do errado, e lá porque era o aprendiz do Mago, isso
não significava que tivesse de mudar tudo na minha maneira de ser.
Em segundo lugar, não concordava que se mantivesse uma velha prisioneira num buraco no solo. Fazê-lo a uma bruxa morta ainda vá,
mas não a uma viva. Lembro-me de me perguntar que crime terrível
teria cometido para merecer tal destino. Que mal poderia haver em dar-lhe três bolos? Um pouco de conforto da
família contra o frio e a umidade, nada mais. O Mago dissera-me que
confiasse nos meus instintos e, depois de ponderar a questão, achei que estava a tomar a atitude certa.
O único problema era ter de ser eu a levar os bolos, à meia-noite. O
escuro é mais que muito nessa altura, especialmente se não houver luar. * * *
Aproximei-me do jardim oriental levando o cesto.
Estava realmente escuro, mas não tão escuro quanto eu esperara. Por um lado, a minha visão sempre foi bastante apurada à noite. A minha
mãe sempre viu bem no escuro e acho que herdei isso dela. E, por outro
lado, como estava uma noite sem nuvens, o luar ajudou-me a dar com o caminho.
Quando penetrei nas árvores, ficou subitamente mais frio e senti um
arrepio. Quando cheguei à primeira sepultura, aquela que tinha a cercadura de pedra e as treze barras, senti ainda mais frio. A primeira
bruxa fora enterrada ali. Era fraca, com pouca força, ou pelo menos o
Mago assim afirmara. «Não precisa de se preocupar», disse para com os meus botões, esforçando-me por acreditar.
Decidir dar os bolos à Mãe Malkin à luz do dia era uma coisa, mas agora,
ali no jardim, quase à meia-noite, já não tinha tanta certeza. Ele avisara-me mais de uma vez, por isso devia ser uma regra importante e
agora eu estava a violá-la.
Ouvia-se todo o tipo de sons tênues. Os sussurros e agitações
provavelmente não eram nada, apenas pequenas criaturas que eu
incomodara ao sair do meu caminho, mas recordaram-me que não tinha o direito de estar ali.
O Mago informara-me que as outras duas bruxas estavam cerca de vinte
passos mais adiante, por isso contei-os com cuidado. Cheguei a uma segunda sepultura que era exatamente igual à primeira. Aproximei-me
mais, apenas para me certificar. Lá estavam as barras e podia ver-se a
terra logo por baixo delas, solo calcado, sem uma única erva. Esta bruxa estava morta, mas ainda era perigosa. Era a tal que fora enterrada de
cabeça para baixo. Isso significava que as solas dos pés estavam em
algum lugar mesmo por debaixo do solo.
Quando olhei para a sepultura, pareceu-me ver algo mexer-se. Foi uma
espécie de contração; provavelmente, apenas fruto da minha
imaginação, ou talvez algum animal pequeno — um rato, um musaranho ou assim. Avancei rapidamente. E se tivesse sido um dedo do pé?
Mais três passos levaram-me ao local que procurava
— não havia qualquer dúvida. Mais uma vez, tinha uma cercadura de pedras com treze barras. No entanto, apresentava três diferenças. Em
primeiro lugar, a zona por debaixo das barras era um quadrado em vez
de um losango. Em segundo lugar, era maior, provavelmente cerca de quatro passos por quatro. E em terceiro, não havia terra calcada por
debaixo das barras, apenas um buraco muito negro no solo.
Parei e escutei cuidadosamente. Não houvera muitos ruídos até ao momento, apenas os tênues sussurros de criaturas notívagas e uma
suave brisa. Uma brisa tão ligeira que mal dei por ela. No entanto,
percebi quando cessou. De repente ficou tudo muito sossegado e a mata tornou-se estranhamente silenciosa.
Sabem, estivera à escuta para tentar ouvir a bruxa e agora sentia que
era a mim que ela escutava. O silêncio pareceu prolongar-se eternamente, até que, subitamente,
percebi uma leve respiração vinda do poço. De certa forma, aquele som
fazia com que parecesse possível mover-me, de modo que dei mais alguns passos até me encontrar muito próximo da sua beira, com a
ponta da minha bota mesmo a tocar na cercadura de pedra.
Naquele instante, lembrei-me de algo que o Mago me dissera a respeito de Mãe Malkin:
«A maior parte do seu poder escoou-se pela terra, mas ela adoraria
deitar as mãos a um rapaz como você.» Recuei então um passo — não me afastando demais, mas as palavras do
Mago tinham-me feito pensar. E
se saísse uma mão do poço e me agarrasse o tornozelo? Querendo acabar aquilo rapidamente, chamei baixinho no escuro. — Mãe
Malkin — disse. — Trouxe-lhe uma coisa.
É um presente da sua família. Está aí? Consegue ouvir-me?
Não obtive resposta, mas o ritmo da respiração lá em baixo pareceu
acelerar. Então, não perdendo mais tempo e desesperado por voltar para o calor da casa do Mago, enfiei a mão no cesto e apalpei debaixo do
pano. Os meus dedos fecharam-se sobre um dos bolos. Pareceu-me
mole e um bocado pegajoso e úmido. Retirei-o e segurei-o por cima das barras.
— É apenas um bolo — disse-lhe baixinho. —
Espero que a faça sentir-se melhor. Trar-lhe-ei outro amanhã à noite. Ditas aquelas palavras, larguei o bolo e deixei que ele caísse na
escuridão.
Devia ter voltado imediatamente para a cabana mas fiquei mais alguns
segundos à escuta. Não sei o que esperava ouvir, mas foi um erro.
Registrou-se um movimento no poço, como se algo se arrastasse pelo
solo. E depois ouvi a bruxa começar a comer o bolo. Pensei que alguns dos meus irmãos faziam ruídos desagradáveis à mesa,
mas este era muito pior. Parecia ainda mais repugnante do que quando
os nossos porcos grandes e peludos enfiavam os focinhos no balde da lavagem, uma mistura de fungadelas, resfôlegos e mastigação
juntamente com respiração pesada. Não soube se ela estava ou não a
gostar do bolo, mas certamente fazia bastante barulho a comê-lo. Naquela noite, tive imensa dificuldade em adormecer. Não pensava
senão no poço escuro e que teria de lá voltar na noite seguinte.
Desci para o desjejum mesmo à tangente e o toucinho defumado estava queimado e o pão um bocado para o seco e duro. Não conseguia
entender — ainda na véspera o trouxera do padeiro. E não apenas isso:
o leite estava azedo. Acaso estaria o demônio zangado comigo? Sabia o que eu andara a fazer? Estragara o desjejum de propósito como
uma espécie de aviso?
O trabalho numa fazenda é duro, e eu estava acostumado a ele. O Mago não me destinara quaisquer tarefas, por isso não tinha nada que me
ocupasse o dia. Fui até à biblioteca, pensando que provavelmente não se
importaria se eu tentasse encontrar algo útil que ler, mas, para minha decepção, a porta estava trancada.
O que me restava, a não ser ir dar um passeio? Decidi explorar as
colinas rochosas, subindo primeiro Parlick Pike; uma vez no alto, sentei-me no monte de pedras e admirei a vista.
Estava um dia de céu limpo e dali conseguia ver o Condado estender-se
por baixo de mim, com o mar distante de um azul convidativo e cintilante, mais para noroeste. A extensão rochosa continuava
indefinidamente, grandes colinas com nomes como Calder Fel e Stake
House Fel — tantas que parecia ser necessária uma vida inteira para as explorar.
Ali próximo ficava Wolf Fel e pus-me a pensar se haveria realmente
lobos na região. Os lobos podiam ser perigosos e diziam que no Inverno,
quando o tempo arrefecia, eles por vezes caçavam em alcatéias. Bem, estávamos na Primavera, e claro que não vi qualquer sinal deles, mas
isso não significava que não estivessem lá. Fez-me perceber que estar
nas colinas rochosas depois de anoitecer poderia ser bastante assustador.
Não tão assustador, decidi, quanto ter de ir dar outro bolo de comer à
mãe Malkin e não tardou que o Sol começasse a descer em direção ao ocaso e me visse obrigado a regressar a Chipenden. Dei comigo mais
uma vez a transportar o cesto pela escuridão do jardim. Desta vez,
decidi despachar tudo rapidamente. Sem qualquer perda de tempo, atirei
o segundo bolo pegajoso para o poço negro através das barras.
Só quando já era tarde demais, no preciso instante em que deixou os
meus dedos, é que percebi de algo que me gelou logo o coração. As barras por cima do poço tinham sido dobradas.
A noite anterior estavam perfeitamente retas, treze barras de ferro
paralelas. Agora, as do meio tinham quase largura suficiente para fazer passar uma cabeça.
Podiam ter sido dobradas por alguém no exterior, acima do solo, mas
tinha as minhas dúvidas. O Mago dissera-me que os jardins e a casa estavam guardados e que ninguém conseguia entrar. Só não referira
como, nem pelo quê, mas palpitava-me que era algum tipo de demônio.
Talvez o mesmo que preparava as refeições. Por isso, só podia ser a bruxa. Ela devia ter saído de alguma forma pela
parte lateral do poço e começado a trabalhar nas barras. De repente,
fez-se luz no meu espírito sobre a verdade do que estava a acontecer. Fora tão estúpido! Os bolos fortaleciam-na.
Ouvi-a, lá em baixo na escuridão, começar a comer o segundo bolo,
emitindo os mesmos ruídos horríveis a mastigar, fungar e resfolegar. Abandonei rapidamente as árvores e voltei para a cabana. Cá para mim,
ela nem sequer precisava do terceiro.
Após outra noite insone, tomara uma decisão. Estava resolvido a ir ver Alice, devolver-lhe o último bolo e explicar-lhe o motivo por que não
podia cumprir a minha promessa.
Primeiro precisava encontrá-la. Logo a seguir ao desjejum, fui até a mata onde nos tínhamos encontrado da primeira vez e atravessei-a até
ao fundo. Alice dissera que vivia «acolá», mas não havia sinal de
quaisquer edifícios, apenas colinas pouco elevadas e vales e mais matas ao longe. Pensando que seria mais rápido perguntar, desci à aldeia.
Surpreendentemente, andavam por ali pouquíssimas pessoas, mas, tal
como esperara, alguns dos rapazes rondavam a padaria. Parecia ser o seu local preferido.
Talvez gostassem do cheiro. Eu cá gostava. O pão acabado de assar tem
um dos melhores cheiros do mundo.
Não se mostraram muito simpáticos, atendendo a que da última vez que nos tínhamos encontrado eu dera um bolo e uma maçã a cada um deles.
Provavelmente porque agora o rapagão de olhos miudinhos estava com
eles. Mesmo assim, ouviram o que eu tinha a dizer. Não entrei em pormenores — disse-lhes apenas que precisava de encontrar a garota
que tínhamos visto na orla da mata.
— Eu sei onde ela talvez possa estar — disse o rapagão, com uma expressão muito carregada —, mas seria uma estupidez ir lá.
— E porque haveria de ser?
— Não ouviu o que ela disse? — perguntou, arqueando as sobrancelhas.
— Ela disse que Lizzie dos Ossos era tia dela.
— Quem é Lizzie dos Ossos?
Entreolharam-se e abanaram as cabeças como se eu fosse maluco. Porque seria que todos tinham ouvido falar dela menos eu?
— Lizzie e a avó passaram aqui um Inverno inteiro, antes de Gregory
lhes tratar da saúde. O meu pai está sempre a falar delas. Eram só as bruxas mais medonhas que alguma vez houve nestas paragens. Vivia
com elas algo igualmente assustador. Parecia um homem mas era muito
grande, com demasiados dentes para lhe caberem na boca. Foi o que o meu pai me contou. Ele disse que nessa altura, durante o tal Inverno
longo, as pessoas nunca saíam depois de escurecer. Que grande Mago
há de ser, se nunca ouviu falar de Lizzie dos Ossos! Não me agradou nem um pouco aquela parte. Percebi que fora bem
estúpido. Se tivesse falado ao Mago da minha conversa com Alice, ele
teria percebido que Lizzie voltara e haveria feito algo para o remediar. Segundo o pai do rapagão, Lizzie dos Ossos vivera numa fazenda cerca
de cinco quilômetros a sueste da casa do Mago. Há anos que estava
abandonada e nunca lá ia ninguém. Por isso era o local mais provável onde se encontrar de momento. Pareceu fazer sentido, para mim,
porque fora nessa direção que Alice apontara.
Nesse momento, saiu da igreja um grupo de pessoas com expressão soturna. Viraram a esquina numa fila desordenada e subiram a colina em
direção à extensão rochosa, o pároco da aldeia na frente. Vestiam
roupas quentes e muitas delas levavam cajados. — O que vem a ser aquilo? — perguntei.
— Desapareceu uma criança a noite passada —
respondeu um dos rapazes, cuspindo para as pedras. — De três anos. Acham que ela foi até lá acima. Mas, olha, já não é a
primeira. Há dois dias, deram por falta de um bebê numa fazenda para
as bandas de Long Ridge. Era demasiado pequeno para andar, por isso deve ter sido levado.
Acham que podem ter sido os lobos. Tem sido um mau Inverno e isso às
vezes os traz até aqui.
As indicações que me deram revelaram-se bastante boas. Sem contar que voltei atrás a buscar o cesto de Alice, em menos de uma hora avistei
a casa de Lizzie.
Naquela altura, com o sol forre, levantei o pano e examinei o último dos três bolos. Cheirava mal mas o aspecto era ainda pior. Parecia feito de
pequenos pedaços de carne, pão e mais outras coisas que não consegui
identificar. Estava úmido e muito pegajoso e quase negro. Nenhum dos ingredientes fora cozinhado, apenas ligado e comprimido. Reparei então
noutra coisa ainda mais horrível. Havia minúsculas coisinhas brancas a
rastejar pelo bolo, que pareciam ser larvas.
Senti um arrepio, tapei-o com o pano e desci a colina até à fazenda
abandonada. As vedações estavam partidas, faltava metade do telhado
do celeiro e não se viam animais. Porém, houve um pormenor que me deixou mesmo apreensivo. Saía
fumaça da chaminé da casa da fazenda.
Parecia estar alguém em casa e comecei a ficar preocupado com a coisa que tinha dentes demais para lhe caberem na boca.
Estava contando com o quê? Ia ser difícil. Como conseguiria falar com
Alice sem ser visto pelos outros membros da família dela? Quando parei na vertente, tentando decidir o que fazer em seguida,
fiquei com o problema resolvido. Saiu uma figura esbelta e escura pela
porta de trás da casa da fazenda e começou a subir a colina mesmo na minha direção. Era Alice — mas como soubera que eu estava ali?
Havia árvores entre a casa da fazenda e o lugar onde me encontrava,
mas nenhuma janela virada naquela direção. Mesmo assim, ela não subia a colina por acaso.
Veio direita a mim e estacou a cerca de cinco passos.
— O que quer? — perguntou rispidamente. — Só pode ser estúpido, para vir até aqui. Felizmente para você que estão todos dormindo lá dentro.
— Não posso fazer o que me pediu — disse-lhe, estendendo o cesto.
Cruzou os braços e carregou o cenho. — Porque não? — quis saber. — Prometeu-me, não foi?
— Não me disse o que iria acontecer — referi. —
Ela comeu já dois bolos e está ficando mais forte. Já dobrou as barras por cima do poço. Mais um bolo e ficará livre e acho que você sabe. Não
foi essa a idéia desde o início? — acusei, começando a ficar furioso. —
Enganou-me, por isso a promessa já não conta. Ela deu um passo na minha direção, mas agora a sua própria raiva fora
substituída por algo mais. Subitamente, pareceu assustada.
— A idéia não foi minha. Eles obrigaram-me a fazê-lo — disse, gesticulando na direção da casa da fazenda.
— Se não cumprir o que prometeu, estaremos ambos em maus lençóis.
Vá lá, dê-lhe o terceiro bolo. Que mal pode fazer? A Mãe Malkin já teve o
castigo que merecia. Está na hora de libertá-la. Vá lá, dê-lhe o bolo e ela irá embora esta noite e nunca mais te incomodará.
— Acho que Mr. Gregory deve ter tido um motivo muito forte para a
meter naquele poço — afirmei lentamente. — Sou apenas o novo aprendiz dele, por isso, como posso saber o que é melhor? Quando ele
voltar vou contar-lhe tudo o que aconteceu.
Alice esboçou um pequeno sorriso — o tipo de sorriso de alguém que sabe algo que nós desconhecemos.
— Ele não vai voltar — disse. — Lizzie pensou em tudo. Tem bons
amigos perto de Pendle. Fariam qualquer coisa por ela. Enganaram o
Velho Gregory. Quando estiver perto, vai ter o que merece. Nesta altura
provavelmente já estará morto e enterrado. Espera para ver se não
tenho razão. Em breve nem sequer estará seguro lá em cima, na casa dele. Uma noite virão buscar-te. A menos, claro, que ajude agora. Nesse
caso, talvez te deixem em paz.
Mal ela disse aquelas palavras, virei costas e subi a colina, deixando-a ali especada. Acho que ela me chamou diversas vezes, mas não ouvi. O que
ela dissera sobre o Mago dava voltas dentro da minha cabeça.
Só mais tarde percebi que levava ainda o cesto, de maneira que o atirei junto com o último bolo para um rio; depois, de volta à cabana do Mago,
não levei muito tempo a perceber o que acontecera e a decidir o que
fazer de seguida. Fora tudo planejado desde o começo. Tinham arranjado um ardil para afastar o Mago dali, sabendo que, na qualidade
de seu novo aprendiz, eu seria ainda inexperiente e fácil de enganar.
Não me parecia que o Mago fosse tão fácil assim de matar, senão não teria sobrevivido tantos anos, mas não podia contar que ele chegasse a
tempo de me ajudar. Tinha de impedir Mãe Malkin de sair do poço.
Necessitava desesperadamente de ajuda e pensei descer à aldeia, mas sabia ter à mão um tipo de ajuda mais especial. Então entrei na cozinha
e sentei-me à mesa.
Fiquei à espera de levar um bofetão a qualquer momento, por isso falei rapidamente. Expliquei tudo o que sucedera, sem omitir nada. Disse
depois que a culpa era minha e agradecia que me dessem uma ajuda.
Não sei o que esperava. Não me senti ridículo a falar sozinho para o ar porque estava muito transtornado e assustado, mas à medida que o
silêncio se prolongava, fui percebendo que estivera a perder o meu
tempo. Porque haveria o demônio de me ajudar? Tanto quanto sabia, estava encarcerado, preso à casa e ao jardim pelo Mago. Podia ser
apenas um escravo, desesperado por se libertar; podia até estar
satisfeito por me ver em apuros. No momento em que me preparava para desistir e sair da cozinha, lembrei-me de algo que o meu pai
costumava dizer antes de partirmos para o mercado local: «Toda a gente
tem o seu preço. É tudo uma questão de fazer uma proposta que agrade
ao outro mas tão te prejudique em demasia.»
Então fiz uma proposta ao demônio. . — Se me ajudar neste momento, não o esquecerei
— disse-lhe. — Quando me tornar o próximo Mago, dar-te-ei folga todos
os Domingos. Nesse dia, prepararei as minhas próprias refeições para que possa descansar e fazer o que lhe agradar.
De repente, senti algo roçar nas minhas pernas debaixo da mesa. Ouviu-
se também um barulho, um ligeiro ronronar, e saiu de lá um grande gato cor de camarão que avançou na direção da porta.
Devia ter estado o tempo todo debaixo da mesa —
era o que me dizia o senso comum. Todavia, tinha a certeza de que não
era verdade, por isso segui o gato pelo corredor e depois escadas acima,
onde se deteve do lado de fora da porra trancada da biblioteca. A seguir
esfregou nela o dorso, como costumam fazer os gatos nas pernas das mesas. A porta abriu-se lentamente, mostrando mais livros do que
alguém alguma vez conseguiria ler numa vida inteira, dispostos
ordenadamente em filas de prateleiras paralelas. Entrei lá dentro, perguntando-me por onde começar. E quando me virei novamente, o
gato cor de camarão desaparecera.
Cada livro tinha o título bem visível na capa. Havia muitos escritos em
latim e uns quantos em grego. Não se via pó nem teias de aranha. A
biblioteca estava tão limpa e bem cuidada quanto a cozinha. Percorri a
primeira fila até algo me despertar a atenção. Perto da janela, havia três
prateleiras muito compridas cheias de livros de notas encadernados, tal
como aquele que o Mago me dera, mas a prateleira de cima tinha livros
maiores com datas nas capas. Cada um parecia abranger um período de
cinco anos, de maneira que peguei no que estava ao fundo da prateleira
e abri-o cuidadosamente. Reconheci a caligrafia do Mago. Folheando-o,
percebi que era uma espécie de diário. Continha o registro de cada
trabalho que fizera e da quantia que lhe fora paga. Mais importante,
explicava o que fizera a cada demônio, fantasma e bruxa. Voltei a
colocar o livro na prateleira e dei uma vista de olhos às outras lombadas.
Os diários vinham quase até à atualidade e recuavam centenas de anos.
Ou o Mago era muito mais velho do que aparentava, ou os primeiros
livros tinham sido escritos por outros Magos que haviam vivido há
séculos. De repente, perguntei-me se, mesmo que Alice estivesse certa e
o Mago não voltasse, existia a possibilidade de eu conseguir aprender
tudo o que era necessário estudando apenas aqueles diários. Melhor
ainda, em algum lugar naqueles milhares e milhares de páginas poderia
estar a informação que me ajudaria naquele momento. Mas como
poderia encontrá-la? Bem, poderia levar tempo, mas a bruxa estivera no
poço quase treze anos. Tinha de haver uma descrição da maneira como
o Mago a pusera lá. Eis senão quando, numa prateleira inferior, vi algo
muito melhor.
Os livros ali eram ainda maiores, cada um dedicado a um tema em
particular. Um intitulava-se Dragões e Serpentes. Estavam arrumados por ordem alfabética, pelo que não demorei muito a encontrar
exatamente aquilo que procurava.
Bruxas. Abri-o com mãos trêmulas e verifiquei que estava dividido nas quatro
secções previsíveis...
As Malévolas, As Benévolas, As Falsamente Acusadas e As Desconhecedoras.
Passei rapidamente à primeira secção. Estava tudo escrito na caligrafia
legível do Mago e, mais uma vez, cuidadosamente organizado por ordem alfabética. Numa questão de segundos, encontrei uma página intitulada:
Mãe Malkin.
Era pior do que eu esperara. Mãe Malkin era quase tão má quanto se podia imaginar. Vivera em muitos lugares e em cada zona onde
permanecera algum tempo acontecera algo terrível, tendo a pior coisa
de todas ocorrido num pântano a oeste do Condado. Vivera ali numa fazenda, proporcionando guarida às mulheres jovens à
espera de bebê mas que não tinham maridos a apoiá-las. Era daí que
vinha a denominação «Mãe». Isto continuara durante vários anos, mas algumas das mulheres jovens nunca mais haviam sido vistas.
Estivera um filho seu a viver ali com ela, um homem novo, de força
incrível, chamado Tusk. Tinha dentes grandes e assustava tanto as pessoas que nunca ninguém se aproximava do lugar. Mas a população
local acabara por se revoltar e Mãe Malkin fora obrigada a fugir para
Pendle. Após a sua partida, tinham sido encontradas as primeiras sepulturas. Havia um campo cheio de ossos e carne putrefata,
principalmente os restos mortais das crianças que ela assassinara para
alimentar a sua necessidade de sangue. Alguns dos corpos pertenciam
àquelas mulheres; em cada caso, o corpo fora esmagado, as costelas
partidas ou estaladas.
Os rapazes da aldeia tinham falado de uma coisa com demasiados dentes para lhe caberem na boca. Poderia tratar-se do tal Tusk, filho de
Mãe Malkin? Um filho que provavelmente atacara aquelas mulheres,
tirando-lhes brutalmente a vida? Fiquei com as mãos a tremer de tal forma que mal consegui manter o livro suficientemente firme para o ler.
Parecia que algumas bruxas recorriam à «magia dos ossos». Eram
necromantes que obtinham o seu poder invocando os mortos. Mas Mãe Malkin era muito pior. Mãe Malkin usava a «magia do sangue». Obtinha
o seu poder usando sangue humano e gostava particularmente do
sangue de crianças.
Pensei nos bolos pretos e pegajosos e senti um arrepio. Desaparecera uma criança em Long Ridge. Uma criança jovem demais para andar.
Teria sido raptada por Lizzie dos Ossos? Teria o seu sangue sido usado
para fazer aqueles bolos? E a segunda criança, aquela de que os aldeãos andavam à procura? E se Lizzie dos Ossos a tivesse raptado também,
para que, quando Mãe Malkin fugisse do poço, pudesse usar logo o
sangue dela para efetuar a sua magia? A criança podia estar neste momento na casa de Lizzie!
Fiz um esforço para continuar a ler.
Há treze anos, no princípio do Inverno, Mãe Malkin viera viver em
Chipenden, trazendo consigo a neta, Lizzie dos Ossos. Quando
regressara da sua casa de Inverno em Anglezarke, o Mago não perdera
tempo a tratar dela. Depois de expulsar Lizzie dos Ossos, prendera Mãe Malkin com uma corrente de prata e levara-a para o poço no seu jardim.
O Mago parecia estar a argumentar consigo próprio no relato. Via-se que
não lhe agradava enterrá-la viva, mas explicava por que motivo tivera de o fazer. Acreditava que seria por demais perigoso matá-la: uma vez
morta, teria poderes para voltar e se tornaria ainda mais forte e perigosa
do que antes. A questão era: poderia ela ainda escapar? Só com um bolo conseguira
dobrar as barras. Apesar de não ter comido o terceiro, dois seriam talvez
suficientes. Podia ainda sair do poço à meia-noite. Como agir? Se era possível prender uma bruxa com uma corrente de prata, então
talvez valesse a pena tentar passá-la por cima das barras dobradas, para
impedi-la de sair do poço. O problema era que a corrente de prata estava no saco do Mago, que o acompanhava sempre para todo o lado.
Vi outra coisa quando saí da biblioteca. Estava ao lado da porta, por isso
não reparara ao entrar. Era uma longa lista de nomes em papel amarelo, exatamente trinta e todos escritos pelo punho do próprio Mago. O meu
nome, Thomas J. Ward era mesmo o último, e logo acima dele estava o
nome Wil iam Bradley, que fora riscado com um traço horizontal; ao lado viam-se as letras DEP.
Fiquei então completamente gelado, porque sabia que queriam dizer
Descansa em Paz e que Bily Bradley morrera. Mais de dois terços dos nomes no papel tinham sido riscados; daqueles, outros nove tinham
morrido.
Calculei que uma parte deles tivesse sido simplesmente riscada porque não haviam conseguido alcançar o nível de aprendizes, talvez nem
chegando sequer ao final do primeiro mês. Aqueles que tinham morrido
eram mais preocupantes. Perguntei-me o que sucedera a Bily Bradley e lembrei-me do que Alice dissera: «Não queira ter o mesmo fim que o
último aprendiz do Velho Gregory.»
Como é que Alice sabia o que acontecera a Bily?
Provavelmente seria do conhecimento de toda a gente na localidade, ao
passo que eu era um forasteiro. Ou tivera a família dela algo a ver com isso? Esperava que não, mas só serviu para aumentar as minhas
preocupações. Não perdendo mais tempo, desci à aldeia. O açougueiro
parecia ter algum contato com o Mago. De que outra forma arranjava o saco onde colocar a carne? Decidi então falar-lhe das minhas
desconfianças para tentar persuadi-lo a ir procurar a criança
desaparecida na casa de Lizzie. A tarde ia já no fim quando cheguei à loja dele, e esta estava fechada. Bati às portas de cinco cabanas antes
de alguém me responder. Confirmaram o que eu já suspeitava: o
açougueiro partira com os outros homens para procurar nas colinas
rochosas. Não voltariam senão na tarde do dia seguinte. Parecia que
depois de andarem à procura nas colinas da região, iam atravessar o
vale até à aldeia no sopé de Long Ridge, onde desaparecera a primeira criança. Ali efetuariam uma busca mais exaustiva e passariam a noite.
Tinha de encarar a realidade. Estava entregue a mim próprio.
Pouco depois, triste e receoso, subia o caminho em direção à casa do Mago. Sabia que se Mãe Malkin saísse da sepultura, então a criança
estaria morta antes do amanhecer. Sabia igualmente que era o único
que poderia tentar fazer algo para impedi-lo.
CAPÍTULO 9
NA MARGEM DO RIO
De volta à cabana, fui ao quarto onde o Mago guardava as roupas de
caminhar. Escolhi uma das suas capas velhas.
Claro que me estava enorme e a bainha dava-me quase pelos tornozelos, enquanto o capuz me caía constantemente sobre os olhos.
Mesmo assim, não deixaria entrar o frio mais desagradável. Levei
também emprestado um dos seus bordões, o que melhor me serviria de
apoio: era mais curto do que os outros e ligeiramente mais grosso numa
das extremidades.
Era quase meia-noite quando deixei finalmente a cabana. O céu estava iluminado e havia uma Lua cheia que acabara de surgir por cima das
árvores, mas sentia o cheiro a chuva e soprava um vento refrescante de
oeste. Fui até ao jardim e encaminhei-me diretamente pa-ra o poço de Mãe
Malkin. Estava cheio de medo, mas alguém tinha de o fazer e quem mais
a não ser eu? Além disso, a culpa fora minha. Se ao menos tivesse contado ao Mago que encontrara Alice e que ela dissera aos rapazes que
Lizzie estava de volta! Ele teria resolvido logo tudo.
Não teria sido atraído a Pendle. Quanto mais pensava, pior era. A criança de Long Ridge podia não ter
morrido. Sentia-me culpado, tão culpado, e não conseguia suportar a
idéia de outra criança poder morrer e também isso ser culpa minha. Passei a segunda sepultura onde a bruxa morta estava enterrada de
cabeça para baixo, e avancei muito lentamente, em bicos de pés, até
alcançar o poço. Um raio de luar filtrava-se por entre as árvores, iluminando-o, pelo que
não havia dúvida em relação ao que acontecera.
Chegara tarde demais. As barras haviam sido afastadas ainda mais, estavam quase com a forma de um círculo. Até o açougueiro teria
conseguido enfiar os seus ombros maciços por aquele intervalo.
Espreitei para a escuridão do poço mas não consegui ver nada. Acho que tinha remotamente esperança de que ela pudesse ter-se esgotado a
dobrar as barras e estivesse agora por demais cansada para subir.
A sorte sorriu-me. Naquele momento, uma nuvem encobriu a Lua, tornando tudo muito mais sombrio, mas consegui ver o mato pisado.
Percebi a direção que ela tomara. Havia luz suficiente para seguir o seu
rasto.
Então, fui atrás dela pelo escuro. Não me deslocava rápido demais e
estava a ser muito, muito cauteloso. E se ela estivesse escondida à
minha espera, lá mais adiante? Sabia também que provavelmente não fora muito longe.
Por um lado, não passariam mais de cinco minutos ou assim da meia-
noite. Independentemente do conteúdo dos bolos que ela comera, sabia que a magia negra devia ter surtido alguma influência na recuperação
das forças. Era uma magia que supostamente seria mais forte durante as
horas de escuridão — particularmente à meia-noite. Ela só comera dois bolos, não três, pelo que isso jogava a meu favor, mas pensei na terrível
força necessária para dobrar aquelas barras.
Uma vez fora do abrigo das árvores, não tive dificuldade em seguir o
rasto dela sobre a erva. Descia a colina mas numa direção que a
afastava da cabana de Lizzie dos Ossos. A princípio, fiquei intrigado, até
me lembrar do rio lá em baixo na ravina. Uma bruxa malévola não conseguia atravessar água corrente — o Mago ensinara-me isso — por
conseguinte, teria de seguir ao longo das suas margens até ele se curvar
sobre si mesmo, deixando-lhe o caminho livre. Uma vez avistado o rio, parei na colina e perscrutei a terra lá em baixo.
A Lua saiu de trás da nuvem, mas no começo, mesmo com a sua ajuda,
não conseguia ver nada junto ao rio porque havia árvores em ambas as margens, projetando sombras escuras.
Mas, então, reparei subitamente em algo muito estranho. Havia um
rasto prateado na margem de cá. Só era visível quando o luar incidia nele, mas fazia lembrar o rasto brilhante deixado por um caracol. Alguns
segundos depois vi uma coisa escura, umbrosa, toda curvada,
arrastando-se muito perto da margem do rio. Comecei a descer a colina o mais rapidamente possível. A minha
intenção era interceptá-la antes de chegar à curva do rio e avançar
diretamente para casa de Lizzie dos Ossos. Consegui-o e fiquei ali, o rio à minha direita, virando para jusante. Mas a seguir vinha a parte difícil.
Tinha agora de enfrentar a bruxa.
Eu tremia e agitava-me e estava tão sem fôlego que se poderia pensar que passara uma hora ou mais a correr para baixo e para cima pelas
colinas. Era um misto de medo e nervos e dava a impressão de os meus
joelhos irem ceder a qualquer momento. Só apoiando-me pesadamente no bordão do Mago é que me conseguia manter de pé.
Para rio, este nem tinha assim muita largura, mas era profundo,
engrossado pelas chuvas da Primavera, a ponto de quase galgar as margens. A água deslocava-se também rapidamente, passando por mim
para se ir precipitar na negrura por debaixo das árvores onde estava a
bruxa. Olhei com muito cuidado, mas levei ainda alguns momentos a encontrá-la.
Mãe Malkin deslocava-se na minha direção. Era um tanto mais escura do
que as sombras das árvores, uma espécie de negrura onde podíamos
cair, uma negrura que nos engoliria para sempre. Ouvi-a então, mesmo acima do ruído feito pelo rio de águas rápidas. Não era apenas o som
dos seus pés descalços, que emitiam uma espécie de ruído deslizante ao
avançarem para mim pela erva comprida à beira do rio. Não — havia outros sons que lhe vi-riam da boca e talvez do nariz. O mesmo tipo de
ruídos que fizera quando lhe dera o bolo. Havia resfôlegos e fungadelas
que me trouxeram mais uma vez à mente a lembrança dos porcos peludos a comerem do balde da lavagem. Depois um som diferente, um
ruído de sugar.
Quando ela saiu de baixo das árvores para campo aberto, o luar incidiu
nela e vi-a bem pela primeira vez.
Tinha a cabeça curvada, o rosto escondido por uma massa emaranhada
de cabelo branco e grisalho, pelo que dava a idéia de estar a olhar para os pés, que se viam mesmo por debaixo do vestido escuro que lhe
descia até aos tornozelos. Usava também uma capa preta e, ou era
demasiado comprida para ela ou os anos que passara na terra úmida tinham-na feito encolher. Arrastava-a pelo solo atrás de si e era este
arrastar pela erva que parecia estar a deixar o rasto prateado.
O vestido apresentava-se manchado e rasgado, o que não causava surpresa, mas algumas das nódoas eram recentes — manchas escuras e
úmidas. Escorria algo para a erva ao lado dela e as gotas vinham do que
ela agarrava com força na mão esquerda. Era um rato. Estava comendo um rato. A comê-lo cru.
Não parecia ter dado ainda por mim. Estava agora muito perto e, se não
acontecesse nada, colidiria comigo. Subitamente, tossi. Não era para a avisar. Tratou-se de uma tosse
nervosa e nada intencional.
Ela olhou então para mim, erguendo para o luar um rosto que era algo saído de um pesadelo, um rosto que não pertencia a uma pessoa viva.
Oh, mas ela estava viva e bem viva. Via-se bem pelos ruídos que fazia
ao comer aquele rato. Contudo, houve algo mais nela que me apavorou a ponto de quase
desfalecer ali. Eram os seus olhos. Pareciam dois carvões em brasa
ardendo dentro das órbitas, dois pontos vermelhos de fogo. E depois falou comigo, a sua voz algo entre um murmúrio e um
resmungo. Pareciam folhas mortas secas a roçagar em conjunto ao
vento de finais do Outono. — Olha, um rapaz — disse ela. — Gosto de rapazes. Venha aqui, rapaz.
Claro que não me mexi. Limitei-me a ficar ali pregado ao chão.
Sentia-me tonto e de cabeça vazia. Ela continuava a avançar para mim e os seus olhos pareciam ir ficando
maiores. Mas não eram apenas os olhos dela: todo o seu corpo dava a
impressão de estar a inchar. Expandia-se numa imensa nuvem de
negrura que dentro de momentos escureceria os meus olhos para
sempre. Sem pensar, levantei o bordão do Mago. As minhas mãos e os meus
braços é que o fizeram, não eu.
— O que é isso, rapaz, uma varinha de condão? — resmungou. Depois riu-se sozinha e largou o raro morto, erguendo
ambos os braços na minha direção.
Era a mim que ela queria. O meu sangue. Em ab-soluto terror, o meu corpo começou a oscilar de um lado para o outro. Eu fazia lembrar uma
árvore nova agitada pelos primeiros sopros de um vento, o primeiro
vento tempestuoso de um Inverno escuro que nunca iria terminar. Eu
podia ter morrido então, na margem daquele ri-o. Não havia ninguém
para me ajudar e sentia-me incapaz de me ajudar a mim próprio.
Mas eis que aconteceu algo. O bordão do Mago não era uma varinha mágica, e não existe apenas um tipo de magia. Os meus braços
invocaram algo especial, movendo-se mais depressa do que eu
conseguia sequer pensar. Levantaram o bordão e atiraram-no com força, apanhando a bruxa na
têmpora com uma pancada forte.
Ela soltou uma espécie de resmungo e tombou para o lado, no rio. Ouviu-se um grande chapinhar e ela foi submersa mas apareceu muito
perto da margem, cerca de cinco ou seis passos logo abaixo. A princípio
julguei que tivesse sido o seu fim, mas, para meu horror, o braço esquerdo saiu da água e agarrou um tufo de erva. A seguir, o outro
braço estendeu-se para a margem e ela começou a arrastar-se para fora
de água. Sabia que tinha de fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.
Então, usando toda a minha força de vontade, obriguei-me a dar um
passo na sua direção, enquanto ela ia içando mais o corpo para a margem.
Quando me aproximei o suficiente, fiz algo que continuo a recordar
vivamente. Ainda tenho pesadelos. Mas havia outra alternativa? Era ela ou eu. Só um de nós ia sobreviver.
Atingi a bruxa com a extremidade do bordão. Atingi-a com força e
continuei a bater-lhe até ela finalmente se soltar da margem e ser levada para a escuridão.
Mas ainda não terminara. E se ela conseguisse sair da água mais a
adiante? Podia ainda assim alcançar a casa de Lizzie dos Ossos. Tinha de me certificar de que isso não sucedia. Sabia que era errado matá-la e
que um dia provavelmente ela voltaria mais forte do que nunca, mas
como não dispunha de uma corrente de prata, não a podia prender. O que importava era o presente, não o futuro.
Por mais difícil que fosse, sabia que tinha de seguir o rio em direção às
árvores.
Muito lentamente, comecei a caminhar ao longo da margem do rio, parando a cada cinco ou seis passos para escutar. Ouvia apenas o vento
a suspirar tenuamente através dos ramos lá em cima. Estava muito
escuro, apenas um esporádico raio de luar conseguia penetrar a abóbada de folhas, cada um como uma comprida lança de prata cravada no solo.
Da terceira vez que parei, aconteceu. Sem qualquer aviso. Não ouvi
nada. Senti simplesmente. Uma mão deslizou até à minha bota e antes que me pudesse afastar, agarrou ferreamente o meu tornozelo
esquerdo.
Senti a força daquele aperto. Era como se o meu tornozelo estivesse a
ser esmagado. Quando olhei para baixo, tudo o que consegui ver foi um
par de olhos a fitar-me da escuridão. Apavorado, bati às cegas na
direção da mão invisível que me agarrava o tornozelo. Tarde demais. O meu tornozelo foi torcido violentamente e caí por terra,
o impacto expulsando todo o ar do meu corpo. E, pior, o bordão voou da
minha mão, deixando-me indefeso. Fiquei ali um momento ou dois, tentando recuperar o fôlego, até me
sentir arrastado para a margem do rio.
Quando ouvi o chapinhar, soube o que estava acontecendo. Mãe Malkin servia-se de mim para sair do rio. As pernas da bruxa debatiam-se na
água e calculei que fosse acontecer uma de duas coisas: ou ela
conseguia sair ou eu iria acabar no rio com ela. Desesperado por fugir, rebolei para a esquerda, destorcendo o tornozelo.
Ela não o largou, de maneira que voltei a rebolar e imobilizei-me com o
rosto comprimido contra a erva úmida. Avistei então o bordão, a sua extremidade mais grossa banhada por um raio de luar. Estava fora do
meu alcance, à distância de três ou quatro passos.
Rebolei na direção dele. Rebolei uma vez e outra, cravando os dedos na terra macia, torcendo o meu corpo como um saca-rolhas. Mãe Malkin
agarrava com força o meu tornozelo, mas era tudo o que ela tinha. A
metade inferior do seu corpo continuava dentro de água, por isso, apesar da sua enorme força, não conseguia me impedir de rebolar nem
de torcê-la na água acompanhando os meus movimentos.
Alcancei finalmente o bordão e apontei-o bruscamente na direção da bruxa. Mas a mão dela deslocou-se para o luar e agarrou a outra
extremidade.
Pensei que acabara então. Julguei que era o meu fim, mas, para surpresa minha, Mãe Malkin gritou subitamente muito alto. Todo o seu
corpo ficou rígido e os olhos se reviraram. Depois soltou um longo e
profundo suspiro e ficou muito silenciosa.
Permanecemos ambos estendidos na margem do rio o que pareceu uma
eternidade. Só o meu peito subia e descia, ao respirar; Mãe Malkin não
se mexia sequer. Quando finalmente o fez, não foi para respirar. Muito lentamente, uma
mão largou o meu tornozelo e a outra soltou o bordão e ela deslizou pela
margem para o rio, entrando na água quase sem ruído. Não sabia o que sucedera, mas ela estava morra — disso tinha certeza.
Vi o corpo dela ser levado da margem pela corrente e rodopiar direito ao
meio do rio. Ainda iluminada pela lua, a cabeça dela mergulhou. Desaparecera. Morrera de vez.
CAPÍTULO 10
POBRE BILLY
Fiquei tão fraco depois que me ajoelhei, e passados instantes senti-me
indisposto — mais indisposto do que alguma vez estivera. Vomitei sem
parar, mesmo quando já só saía bílis pela minha boca e as minhas entranhas pareciam dilaceradas e reviradas.
Por fim acabou e consegui levantar-me. Mesmo assim, a minha
respiração demorou bastante a regularizar e o meu corpo a parar de
tremer. Só queria voltar para casa do Mago. Já fizera o suficiente para
uma noite, não?
Mas não podia — a criança estava em casa de Lizzie. Era o que os meus instintos me diziam. A criança estava prisioneira de uma bruxa que era
capaz de assassinar.
Portanto, eu não tinha alternativa. Não havia mais ninguém senão eu e se não ajudasse, então quem o faria? Tinha de ir a casa de Lizzie dos
Ossos.
Estava a formar-se uma tempestade a oeste, uma linha escura e irregular de nuvens que encobria as estrelas.
Muito em breve começaria a chover, mas quando desci a colina em
direção à casa, a lua ainda brilhava — uma Lua cheia, maior do que eu alguma vez me lembrava de a ter visto. A minha sombra projetava-se lá
à frente, ao caminhar. Vi-a crescer, e quanto mais me aproximava de
casa, maior ela parecia ficar. Tinha o capuz puxado e levava o bordão do Mago na mão esquerda, pelo que a sombra já não parecia pertencer-me.
Movia-se à minha frente, até que incidiu na casa de Lizzie dos Ossos.
Virei-me então, esperando em parte ver o Mago de pé atrás de mim. Não estava lá. Fora apenas uma ilusão da luz. Continuei a avançar até
transpor o portão aberto e entrar no pátio.
Parei diante da porta da frente para pensar. E se eu chegara tarde demais e a criança já estivesse morta? Ou, então, se o seu
desaparecimento não fora obra de Lizzie e eu me expusera
desnecessariamente ao perigo? A minha mente não parava de pensar, mas, tal como sucedera na margem do rio, o meu corpo sabia o que
tinha a fazer.
Antes que a conseguisse suster, a minha mão esquerda bateu pesadamente três vezes com o bordão na madeira.
Durante alguns momentos reinou o silêncio, seguido do som de passos e
uma súbita nesga de luz debaixo da porta.
Enquanto esta se abria lentamente, recuei um passo. Para meu alívio,
era Alice. Segurava uma lanterna ao nível da cabeça pelo que uma
metade do seu rosto era iluminada enquanto a outra estava no escuro. — O que quer? — perguntou, a sua voz cheia de raiva. — Sabe o que
quero — repliquei. — Vim buscar a criança. A criança que vocês
roubaram. — Não seja ridículo — falou rispidamente. — Vá embora antes que seja
tarde demais. Eles foram encontrar-se com Mãe Malkin. Podem voltar a
qualquer instante. De repente, uma criança começou a chorar, um lamento fraco vindo de
algum lugar dentro da casa. Afastei então Alice e entrei.
Havia apenas uma única vela a tremular no corredor estreito, mas as
divisões propriamente ditas estavam às escuras. A vela era invulgar.
Nunca vira uma feita de cera preta, mas agarrei-a na mesma e deixei
que os ouvidos me guiassem até ao quarto certo. Abri a porta. O quarto não tinha qualquer mobília e a criança estava
deitada no chão, em cima de um monte de palha e bocados de pano.
— Como se chama? — perguntei, esforçando-me ao máximo por sorrir. Encostei o bordão na parede e aproximei-me.
A criança parou de chorar e pôs-se em pé, vacilante, de olhos muito
arregalados. — Não se preocupe. Não precisa de ter medo — disse-lhe, tentando incutir a maior tranqüilidade possível à minha voz. — Vou levá-
lo à sua mãe.
Pousei a vela no chão e peguei na criança. Cheirava tão mal quanto o resto do quarto e estava fria e molhada.
Envolvi-a com o braço direito e embrulhei-a o melhor que pude na minha
capa. Subitamente, a criança falou.
— Sou Tommy — disse. — Sou Tommy.
— Bem, Tommy — disse-lhe —, temos o mesmo nome. Também me chamo Tommy. Agora está seguro.
Vai voltar para casa.
Ditas aquelas palavras, peguei no meu bordão, dirigi-me para o corredor e saí pela porta da frente. Alice estava no pátio, próximo do portão. A
lanterna apagara-se, mas a lua brilhava ainda e, ao encaminhar-me para
ela, projetou a minha sombra na parte lateral do celeiro, uma sombra gigante, dez vezes maior do que eu.
Tentei passar, mas ela barrou-me diretamente o caminho, pelo que fui
obrigado a parar. — Não se intrometa! — advertiu-me, a sua voz muito ríspida, os dentes
reluzindo brancos e afiados ao luar. — Este assunto não te diz respeito.
Não estava disposto a perder tempo com discussões e, quando avancei direito a ela, Alice não tentou impedir-me. Saiu do meu caminho e gritou
atrás de mim: —
É um tolo. Devolva-o antes que seja tarde demais. Eles irão atrás de
você. Nunca conseguirá escapar.
Não me dei ao trabalho de responder. Nem sequer olhei para trás. Transpus o portão e comecei a subir, afastando-me da casa.
A chuva principiou então a cair com intensidade, diretamente sobre o
meu rosto. Era o tipo de chuva que o meu pai costumava chamar «chuva que molha». Toda a chuva molha, mas alguns tipos parecem deixar-nos
encharcados mais rapidamente do que outros. Esta era mesmo muito
molhada e dirigi-me para casa do Mago o mais rapidamente possível. Não sabia ao certo se estaria seguro mesmo ali. E
se o Mago tivesse realmente morrido? Continuaria o demônio a guardar
a casa e o jardim?
Não tardaram a surgir preocupações mais imediatas. Comecei a perceber
que era seguido. Da primeira vez que o senti, parei e pus-me à escuta,
mas não havia nada senão o uivar do vento e a chuva a fustigar as árvores e a tamborilar na terra. Também não tinha grande visibilidade
porque agora estava muito escuro.
Continuei então, dando passos ainda maiores, esperando estar a seguir na direção certa. Uma vez, me deparei com uma sebe espessa e alta de
espinheiro-alvar e tive de efetuar um longo desvio até encontrar um
portão, sentindo o tempo todo que o perigo lá atrás estava cada vez mais próximo. Só depois de ter alcançado uma pequena mata é que tive
certeza de que alguém estava ali.
Subindo uma colina, parei para respirar perto do seu cume. A chuva abrandara por um momento e olhei para a escuridão lá atrás, na direção
das árvores. Ouvi o estalar e partir de ramos. Alguém se deslocava
muito rapidamente pela mata, direito para mim, não se preocupando com o lugar onde punha os pés.
No topo da colina olhei mais uma vez para trás. O
primeiro relâmpago iluminou o céu e o solo lá em baixo e vi duas figuras saírem das árvores e começarem a subir a vertente. Uma delas era
feminina, a outra tinha a forma de um homem, grande e corpulento.
Quando o trovão voltou a ribombar, Tommy desatou a chorar. — Não gosto de trovões! — lamuriou-se.
— Não gosto de trovões!
— Os trovões não podem lhe fazer mal, Tommy — disse-lhe, sabendo que não era verdade. Também me metiam medo.
Um dos meus tios fora atingido por um raio quando tentava recolher o
gado. Acabara por morrer. Não era seguro andar ao ar livre com um tempo daqueles.
Mas, apesar de os relâmpagos me apavorarem, não deixavam de ter a
sua utilidade. Mostravam-me o caminho, cada clarão intenso iluminando-me o percurso de volta a casa do Mago.
Não tardou que a respiração me saísse entrecortada, um misto de medo
e exaustão, ao mesmo tempo que fazia um esforço para seguir cada vez
mais depressa, esperando apenas que estivéssemos a salvo mal entrássemos no jardim do Mago. Ninguém estava autorizado a pôr os
pés na propriedade do Mago a menos que fosse convidado —
dizia constantemente de mim para mim, porque era a nossa única hipótese. Se conseguíssemos lá chegar primeiro, o demônio proteger-
nos-ia. Avistara as árvores, o banco debaixo delas, o jardim à espera do
outro lado, quando escorreguei na erva molhada. A queda não foi aparatosa, mas Tommy começou a chorar ainda mais alto. Quando
consegui levantá-lo, ouvi alguém correr atrás de mim, os pés batendo
com força na terra. Olhei para trás, respirando a custo. Foi um erro. O
meu perseguidor vinha cerca de cinco ou seis passos à frente de Lizzie e
alcançava-me rapidamente. Um novo relâmpago e vi a metade inferior
do rosto dele. Parecia ter chifres saindo de cada lado da boca e, ao correr, movia a cabeça de um lado para o outro. Recordei o que lera na
biblioteca do Mago a respeito das mulheres mortas que tinham sido
encontradas com as costelas esmagadas. Se Tusk me apanhasse, me faria o mesmo.
Por um momento, fiquei pregado ao chão, mas ele começou a emitir um
bramido, tal como um touro, e isso pôs-me novamente em movimento. Neste momento, quase corria. Se pudesse, teria acelerado, mas
carregava Tommy e estava cansado demais, as minhas pernas pesadas e
lentas, a respiração áspera na garganta. Contava ser agarrado por trás a qualquer momento, mas passei o banco onde o Mago me dera lições e
depois, finalmente, vi-me debaixo das primeiras árvores do jardim.
Mas estaria a salvo? Se assim não fosse, seria o fim de ambos, porque era impossível caminhar mais rapidamente do que Tusk até à casa.
Cessei de correr e tudo o que consegui foi dar alguns passos antes de
parar completamente, tentando recuperar o fôlego. Foi nesse instante que algo roçou pelas minhas pernas. Olhei para baixo,
mas estava escuro demais para ver fosse o que fosse. Primeiro senti a
pressão, a seguir ouvi um ronronar, uma vibração cava que sacudiu o chão por debaixo dos meus pés. Senti-o passar por mim, em direção à
orla das árvores, posicionando-se entre nós e aqueles que nos tinham
seguido. Agora não ouvia nada correr, mas escutei uma outra coisa. Imaginem o miado zangado de um gato macho multiplicado por cem.
Era uma mistura semelhante a um miado vibrante e um grito, enchendo
o ar com o seu desafio admoestador, um som que se poderia ouvir numa extensão de quilômetros. Era o som mais aterrador e ameaçador que
jamais ouvira e percebi então por que motivo os aldeãos nunca se
aproximavam da casa do Mago. Aquele grito anunciava a morte. Atravessem esta linha, dizia, e arrancar-lhes-ei o coração.
Atravessem esta linha, e reduzir-lhes-ei ossos a pasta e sangue
coagulado. Atravessem esta linha e arrepender-se-ão de terem nascido.
Por conseguinte, de momento estávamos a salvo. Entretanto, Lizzie dos Ossos e Tusk correriam colina abaixo. Ninguém
seria tolo a ponto de se meter com o demônio do Mago. Não admirava
que tivessem precisado de mim para dar os bolos de sangue à Mãe Malkin.
Havia sopa quente e um fogo vivo à nossa espera na cozinha. Embrulhei
o pequeno Tommy num cobertor grosso e dei-lhe um pouco de sopa. Mais tarde, trouxe para baixo duas almofadas e preparei-lhe uma cama
perto da lareira. Dormiu que nem uma pedra enquanto eu ouvia o vento
a uivar lá fora e a chuva a bater com força nas janelas.
Foi uma noite longa, mas eu estava quente e confortável e sentia-me em
paz na casa do Mago, que era um dos lugares mais seguros em todo o
mundo. Sabia agora que nada de indesejável conseguiria sequer entrar no jardim, muito menos transpor a soleira da porta. Era mais segura do
que um castelo com ameias altas e um fosso largo. Comecei a ver o
demônio como meu amigo, um amigo mesmo muito poderoso. Pouco antes do meio-dia, levei Tommy até à aldeia. Os homens tinham
já voltado de Long Ridge e, quando me dirigi a casa do açougueiro, mal
ele viu a criança, o seu cenho carregado transformou-se num sorriso rasgado.
Expliquei sumariamente o que acontecera, adiantando apenas os
pormenores necessários. Assim que terminei, ficou novamente carrancudo.
— Eles têm de ser eliminados de vez — disse.
Não me demorei muito. Depois de entregar Tommy à mãe e ela me agradecer pela décima vez consecutiva, tornou-se óbvio o que ia
suceder. Nesta altura, tinham-se reunido mais de trinta aldeãos. Alguns
deles traziam mocas e varapaus e falavam furiosamente em «apedrejar e queimar».
Sabia que tinha de se tomar uma atitude, mas não me queria envolver
diretamente. Apesar de tudo o que se passara, não suportava a idéia de Alice ser queimada, de modo que fui dar um passeio pelas colinas
rochosas durante uma hora ou mais para desanuviar as idéias, antes de
regressar lentamente a casa do Mago. Resolvi sentar-me um pouco no banco e desfrutar do sol da tarde, mas lá já se encontrava alguém.
Era o Mago. Afinal escapara! Até aquele momento, evitara pensar no que
fazer em seguida. Quer dizer, quanto tempo teria permanecido em sua casa antes de decidir que ele não ia voltar? Agora estava tudo resolvido,
porque ele se encontrava ali, a olhar através das árvores para o lugar
onde uma nuvem de fumaça castanha se elevava. Estavam a queimar a casa de Lizzie dos Ossos.
Quando me aproximei do banco, reparei numa enorme equimose roxa
por cima do seu olho esquerdo. Ele viu-me olhar para ela e esboçou-me
um sorriso cansado. — Fazemos muitos inimigos, nesta atividade —
disse ele —, e por vezes são precisos olhos na nuca.
Mesmo assim, as coisas não correram muito mal, porque agora temos menos um inimigo com que nos preocupar nas imediações de Pendle.
Sente-se. — indicou o lugar a seu lado no banco. — O que andou
tramando? Conte-me o que tem acontecido aqui. Comece pelo princípio e vá até ao fim, sem omitir nada.
Assim fiz. Contei-lhe tudo. Quando terminei, ele levantou-se e mirou-me
do alto, os seus olhos verdes fitando os meus com imensa dureza.
— Quem me dera ter sabido que Lizzie estava de volta. Quando coloquei
Mãe Malkin no poço, Lizzie partiu um bocado à pressa e não julguei que
ela alguma vez tivesse o descaramento de voltar a aparecer. Devia ter-me contado o encontro com a garota. Teria poupado incômodos a toda a
gente.
Baixei o olhar, incapaz de corresponder ao dele. — Qual foi a pior coisa que aconteceu? — perguntou-me. Voltou a
lembrança, com toda a nitidez, da bruxa velha a agarrar-me a bota e a
tentar sair da água. Recordei o grito dela quando se agarrou à extremidade do bordão do
Mago.
Quando lhe mencionei o sucedido, ele soltou um suspiro longo e profundo.
— Tem certeza de que ela morreu? — indagou.
Encolhi os ombros. — Ela não respirava. Depois o seu corpo foi levado para o meio do rio e
arrastado.
— Bem, é certo que foi uma péssima experiência — comentou —, e a sua lembrança ficará contigo para o resto da sua
vida, mas irás aguentar. Teve muita sorte em levar consigo o mais
pequeno dos meus bordões. É de sorveira-brava, a madeira mais eficaz de todas quando lidamos com bruxas. Em circunstâncias normais, não
teria afetado uma bruxa tão velha e tão forte. Mas ela encontrava-se
dentro de água corrente. Por isso teve sorte, mas saiu-se bem para um novo aprendiz. Mostrou coragem, verdadeira coragem, e salvou a vida
de uma criança. Mas cometeu dois erros gravíssimos.
Baixei a cabeça. Estava convencido de que, provavelmente, cometera mais de dois, mas não ia contestar.
— O seu erro de maior gravidade foi matar aquela bruxa — afirmou o
Mago. — Ela devia ter sido trazida de volta para cá. Mãe Malkin é tão forte que até se conseguiria libertar dos seus ossos. É muito raro, mas
pode suceder. O espírito dela há de conseguir voltar a nascer neste
mundo, juntamente com todas as suas lembranças. Depois, virá à sua
procura, rapaz, e há de querer vingança.
— Isso pode levar anos, não pode? — inquiri. — Um bebê recém-nascido não tem muito poder. Primeiro ela tem de
crescer.
— Essa é a pior parte — disse o Mago. — Pode acontecer mais cedo do que julga. O espírito dela apodera-se do corpo de alguém e usa-o como
se fosse o seu.
Chama-se «possessão» e é péssimo para todos os intervenientes. Depois disso, nunca saberá quando, nem de que direção virá o perigo.
— Ela pode possuir o corpo de uma mulher jovem, uma mulher com um
sorriso estonteante, que conquistará o seu coração antes de te tirar a
vida. Ou pode servir-se da beleza dela para subjugar um homem forte à
sua vontade, um cavaleiro ou um juiz, que te atirará para uma
masmorra, onde ficará à mercê dela. E, mais uma vez, o tempo estará do seu lado. Ela pode atacar quando eu não estiver aqui para ajudar —
talvez daqui a muitos anos, quando houver perdido a juventude, quando
a sua visão falhar e as suas articulações começarem a estalar. «Mas existe outro tipo de possessão, aquele que é mais provável neste
caso. Muito mais provável. Sabe, rapaz, é problemático manter uma
bruxa viva num poço como aquele. Em especial uma bruxa tão poderosa que passou a sua longa vida a praticar a magia do sangue. Terá andado
a comer vermes e outras coisas viscosas, com a umidade a ensopar-lhe
constantemente a carne. Por conseguinte, da mesma maneira que uma árvore pode ficar petrificada aos poucos e transformar-se em rocha, o
corpo dela terá começado a mudar lentamente. Ao agarrar o bordão de
sorveira-brava, o coração dela pode ter parado, lançando-a para lá da barreira, na morte, e o fato de ter sido levada pelo rio talvez acelerasse
o processo.
«Neste caso, ela ainda estará presa aos ossos, tal como a maior parte das outras bruxas malévolas, mas, em virtude da sua enorme força,
conseguirá mover o seu corpo morto. Sabe, rapaz, ela estará o que nós
chamamos «latente». É um termo antigo do Condado, o qual lhe será, sem dúvida,
familiar. Assim como uma cabeleira postiça pode estar cheia de piolhos
que não se vêem, o corpo morto dela hospeda o seu espírito malévolo. Este se agitará como uma tigela de larvas e rastejará, deslizará ou se
arrastará em direção à vítima escolhida. E, em vez de ser duro como
uma árvore petrificada, o corpo morto dela estará mole e maleável, capaz de se enfiar no espaço mais ínfimo. Capaz de se infiltrar pelo nariz
ou pelos ouvidos de alguém e possuir o seu corpo.
«Só existem duas maneiras de termos a certeza de que uma bruxa tão poderosa como Mãe Malkin não conseguia voltar. A primeira é queimá-la.
Mas ninguém deveria ter de sofrer semelhante dor. A outra maneira é
por demais horrível para se pensar sequer nela. Trata-se de um método
de que poucos ouviram falar porque foi praticado há muito tempo, numa
terra distante, do outro lado do mar. De acordo com os seus livros antigos, se comer o coração de uma bruxa, ela nunca mais consegue
voltar. E
tem de o comer cru. «Se usássemos qualquer dos métodos, não seríamos melhores do que a
bruxa que matamos — disse o Mago.
— São ambos bárbaros. A única alternativa que resta é o poço. É igualmente cruel, mas fazemo-lo para proteger os inocentes, aqueles
que seriam as suas futuras vítimas.
Bem, rapaz, de uma maneira ou de outra, ela agora está livre. Vem aí
apuros na certa, mas pouco poderemos fazer neste momento para os
evitar. Teremos apenas de estar muito atentos.
— Não se preocupe comigo — disse-lhe. — Hei de desvencilhar-me. — Bem, era melhor começar a aprender a ter mão num demônio — disse
o Mago, abanando pesarosamente a cabeça. — Esse foi o seu outro
grande erro. Um domingo de folga por semana? Foi excessivamente generoso!
De qualquer forma, o que deveríamos fazer em relação àquilo? —
inquiriu, indicando a fina nuvem de fumaça que era ainda visível a sudeste.
Encolhi os ombros. — Acho que entretanto já terá acabado tudo —
respondi. — Havia muitos aldeãos irados e eles estavam a falar em apedrejamento.
— Tudo acabado? Não acredite nisso, rapaz. Uma bruxa como Lizzie
possui um faro mais apurado do que qualquer cão de caça. Ela consegue cheirar as coisas antes de elas acontecerem e há muito que terá partido,
antes de alguém conseguir se aproximar. Não, ela terá fugido
novamente para Pendle, onde vive a maior parte do grupo. Devíamos ir atrás dela, mas estou caminhando há cinco dias e estou
cansado demais e dolorido e necessito de recuperar forças. Mas não
podemos deixar Lizzie livre por tempo demais, senão ela voltará a fazer das suas. Tenho de ir procurá-la antes do final da semana e você vem
comigo. Não vai ser fácil e, agora, já podia ir se acostumando à idéia.
Mas primeiro o mais importante, por isso, siga-me. . Enquanto o seguia, reparei que apresentava um ligeiro mancar e
caminhava mais lentamente do que de costume. Portanto, o quer que
acontecera em Pendle não deixara de ter custos para ele. Levou-me até a casa, subimos as escadas e entramos na biblioteca, parando ao lado
das prateleiras mais distantes, as que ficavam perto da janela.
— Gosto de guardar os meus livros na biblioteca — disse —, e gosto que a minha biblioteca vá crescendo em vez de
diminuir. Mas, em virtude do que aconteceu, vou abrir uma exceção.
Estendeu a mão e tirou um livro da prateleira mais acima e entregou-
me. — Precisa mais disto do que eu —
disse. — Muito mais. Como livro, não era muito grande. Era até mais pequeno do que o meu
livro de notas. Tal como a maioria dos livros do Mago, estava
encadernado a couro e tinha o título impresso tanto na capa como na lombada. Dizia: Possessão: os Malditos, os Desequilibrados e os
Desesperados.
— O que significa o título? — inquiri. — O que diz, rapaz. Exatamente o que diz. Lê o livro e descobrirá.
Quando abri o livro, fiquei decepcionado. Lá dentro, cada palavra de
cada página estava impressa em latim, uma língua que eu não conseguia
ler. — Estude-o bem e traga-o sempre com você — frisou o Mago. — É
uma obra decisiva.
Deve ter-me visto fazer uma careta porque sorriu e apontou para o livro com o dedo. — Decisivo significa que até ao momento é o melhor livro
que alguma vez foi escrito sobre a possessão, mas trata-se de um tema
muito difícil e foi escrito por um homem jovem que ainda tinha muito que aprender. Por isso, não é a última palavra sobre o assunto e há mais
para desvendar. Vai ao fim do livro.
Fiz o que ele me mandava e verifiquei que as últimas dez ou mais páginas estavam em branco.
— Se descobrir algo novo, então anote-o aí. Cada pedacinho ajuda. E
não se preocupe com o fato de estar em latim. Vou começar a ensiná-lo assim que tivermos comido.
Fomos tomar a refeição da tarde, que fora preparada quase na
perfeição. Mal engoli a última bocada, algo se moveu debaixo da mesa e começou a roçar-se nas minhas pernas. Subitamente, ouviu-se o som de
ronronar. Foi ficando gradualmente mais alto até todos os pratos e
travessas no aparador começarem a tilintar. — Não admira que esteja satisfeito — comentou o Mago, abanando a
cabeça. — Um dia de folga por ano teria sido a conta ideal! Mas não
fique preocupado, vai correr tudo bem e a vida continua. Traga o seu livro de notas, rapaz, temos muito que estudar hoje.
Segui então o Mago pelo caminho até ao banco, desarrolhei o frasco de
tinta, mergulhei a caneta e preparei-me para tirar notas. — Assim que passam no teste em Horshaw —
disse o Mago, começando a mancar para trás e para frente defronte o
banco —, normalmente tento iniciar os meus aprendizes no ofício o mais suavemente possível. Mas dado que já estive frente a frente com uma
bruxa, sabe o quão difícil e perigosa pode ser a tarefa, além disso, acho
que está preparado para descobrir o que aconteceu ao meu último aprendiz. Tem a ver com demônios, o tema que temos estado a estudar,
por conseguinte, podia também aprender com ele. Procure uma página
em branco e escreva o seguinte como cabeçalho. .
Fiz o que ele me mandava. Escrevi: «Como Prender um Demônio.» Depois, enquanto o Mago contava a história, tomei notas, esforçando-
me, como sempre, por acompanhá-lo.
Tal como já sabia, era necessário muito trabalho árduo, que o Mago chamou «preparativos», para prender um demônio. Primeiro, tinha de se
abrir um poço o mais perto possível das raízes de uma árvore grande e
adulta. Depois de todas as escavações que o Mago me obrigara a fazer, fiquei
surpreendido ao saber que raramente um Mago abria pessoalmente o
poço. Quem se encarregava disso eram um aparelhador e o seu
ajudante.
A seguir, eram precisos os serviços de um pedreiro para cortar uma laje
de pedra que encaixasse no poço como uma pedra tumular. Era muito importante que a pedra fosse cortada rigorosamente, para vedar bem.
Depois de revestidos a parte inferior da pedra e o interior do poço com a
mistura de ferro, sal e cola forte, era chegado o momento de enfiar o demônio seguramente lá dentro.
Isso não era demasiado difícil. Sangue, leite ou uma mistura de ambos
resultava sempre. A parte realmente difícil era deixar cair a pedra corretamente enquanto ele se alimentava. O êxito dependia da qualidade
da ajuda contratada.
Era conveniente ter um pedreiro a postos e dois aparelhadores usando correntes controladas por um cavalete de madeira colocado por cima do
poço, de modo a descer a pedra com rapidez e segurança. Fora esse o
erro cometido por Billy Bradley. Estava-se no final do Inverno, fazia um tempo péssimo e Bily estava com pressa de voltar para a sua cama
quente. Então, resolveu economizar.
Contratou mão-de-obra local que nunca efetuara esse tipo de trabalho. O pedreiro fora cear, prometendo regressar daí a uma hora, mas Bily
estava impaciente e não conseguiu esperar. Meteu o demônio no poço
sem grandes problemas mas teve dificuldades com a pedra. Estava uma noite chuvosa e ela escorregou, prendendo-lhe a mão
esquerda debaixo da extremidade.
A corrente encravou, pelo que não foi possível levantar a pedra, e enquanto os operários estavam a braços com ela, e um deles foi a correr
chamar o pedreiro, o demônio, furioso por se ver preso debaixo da
pedra, começou a atacar os dedos de Bily. Sabem, era um dos demônios mais perigosos. Chamam-lhes «Estripadores» e normalmente
alimentam-se de gado, mas este gostava de sangue humano.
Quando conseguiram levantar a pedra, decorrera quase meia hora, e nessa altura já era tarde demais. O demônio comera os dedos de Bily
até à base dos dedos e estivera entretido a sugar-lhe o sangue do corpo.
Os seus gritos de dor tinham-se reduzido a uma lamúria e quando lhe
libertaram a mão só restava o polegar. Morreu pouco depois, do choque
e da perda de sangue. — Foi um caso triste — disse o Mago —, e agora ele está sepultado
debaixo da sebe, mesmo do lado de fora do cemitério de Layton —
aqueles que seguem o nosso ofício não conseguem fazer repousar os ossos em solo sagrado. Aconteceu há mais de um ano, e se Bily tivesse
vivido, eu não estaria agora a conversar com você porque ele ainda seria
meu aprendiz. Pobre Bily, era um excelente rapaz e não merecia tal sorte, mas é um trabalho perigoso e se não for bem feito. .
O Mago olhou para mim com tristeza, depois encolheu os ombros.
— Aprenda com isto, rapaz. Precisamos de coragem e paciência, mas,
acima de tudo, nunca podemos ter pressa. Usamos o cérebro, pensamos
com cuidado, depois fazemos o que tem de ser feito. Por via de regra,
nunca mando um aprendiz sair sozinho antes de terminado o primeiro ano de preparação. A menos, claro — acrescentou com um tênue sorriso
—, que ele resolva agir por sua própria iniciativa. Mais uma vez, preciso
de ter certeza de que ele está preparado. Bom, vamos ao que interessa —
disse ele. — Está na hora da sua primeira lição de latim.
CAPÍTULO 11
O POÇO
Aconteceu apenas três dias depois...
O Mago mandara-me à aldeia buscar os gêneros alimentícios para a
semana. A tarde ia já bastante avançada e, no momento em que saí da casa dele levando o saco vazio, as sombras principiavam a alongar-se.
Quando me aproximei dos degraus, vi alguém de pé mesmo na orla das
árvores, próximo do alto do caminho estreito. Quando percebi que era
Alice, o meu coração começou a bater mais depressa. O que fazia ali?
Porque não fora para Pendle? E se ela ainda ali estava, onde parava
Lizzie? Abrandei, mas tinha de passar por ela para chegar à aldeia. Podia ter
voltado para trás e efetuado um percurso mais longo, mas não lhe
queria dar a satisfação de pensar que estava com medo. Não obstante, depois de subir os degraus, permaneci do lado esquerdo do caminho,
mantendo-me junto da sebe alta de espinheiro-alvar, mesmo à beira da
vala funda que seguia ao longo dela. Alice estava de pé no escuro, apenas com as pontas dos seus sapatos
bicudos a saírem para a luz do sol.
Fez-me sinal para que me aproximasse mais, mas mantive a distância, ficando a uns bons três passos dela. Depois de tudo o que acontecera,
não confiava nela nem um bocadinho, mas, ainda assim, estava
satisfeito por não ter sido queimada ou apedrejada. — Vim despedir-me — anunciou Alice —, e avisá-lo para nunca se
aproximar de Pendle. É para lá que vamos. Lizzie tem família a viver ali.
— Ainda bem que escapou — comentei, parando e virando-me diretamente para ela. — Vi a fumaça quando incendiaram a sua casa.
— Lizzie sabia que eles vinham — disse Alice —, por isso fugimos com
bastante antecedência. No entanto, ela não o pressentiu, não é? Todavia, sabe o que fez à Mãe Malkin, mas só descobriu depois de ter
acontecido. Não deu sequer por você e isso a preocupa. E disse que a
sua sombra tinha um cheiro esquisito. Não pude deixar de soltar uma sonora gargalhada.
Quer dizer, era absurdo. Como podia uma sombra ter cheiro?
— Não tem piada — acusou Alice. — Não é para rir. Ela só cheirou a sua sombra no lugar onde incidiu no celeiro. Na realidade, eu a vi e estava
completamente errada. A lua mostrou a verdade em você.
De repente, ela aproximou-se mais dois passos, na direção da luz do sol e cheirou-me. — Tem um cheiro esquisito — disse ela, franzindo o nariz.
Recuou rapidamente e, de repente, pareceu amedrontada.
Sorri e pus a minha voz simpática. — Ouça — disse-lhe —, não vá para
Pendle. Só tem a ganhar mantendo-se à distância deles. Olhe que são
péssima companhia. — As péssimas companhias não me afetam. Não vão me mudar, não é?
Já sou má companhia. Má por dentro. Nem se passam pela cabeça as
coisas que tenho sido e feito. Desculpe — disse —, voltei a ser má. Não sou suficientemente forte para dizer não.
Então, tarde demais, compreendi a verdadeira razão do medo no rosto
de Alice. Não estava com medo de mim. Era do que se encontrava atrás de mim.
Não vira nem ouvira nada. Quando isso sucedeu, já era tarde demais.
Sem aviso, o saco vazio foi arrancado da minha mão e enfiado pela
minha cabeça e os meus ombros e ficou tudo escuro. Mãos fortes
agarraram-me, prendendo-me os braços ao lado do corpo. Debati-me
durante alguns instantes, mas em vão: fui levantado e levado com a mesma facilidade com que um criado de lavoura carrega uma saca de
batatas. Enquanto era transportado, ouvi vozes — a voz de Alice e
depois a voz de uma mulher; supus que se tratasse de Lizzie dos Ossos. A pessoa que me levava limitou-se a grunhir, por isso só podia ser Tusk.
Alice atraíra-me para uma armadilha. Fora tudo cuidadosamente
planejado. Deviam ter estado escondidos na vala, quando desci a colina vindo da casa.
Estava apavorado, mais apavorado do que alguma vez estivera na minha
vida. Quer dizer, eu matara a Mãe Malkin e ela era avó de Lizzie. Por conseguinte, o que iriam me fazer agora?
* * *
Passada uma hora ou mais, atiraram-me para o chão com tanta força que todo o ar foi expelido dos meus pulmões.
Assim que consegui voltar a respirar, fiz um esforço para me libertar do
saco, mas alguém me bateu duas vezes nas costas — e bateu com tanta força que me mantive muito quieto. Teria feito qualquer coisa para evitar
voltar a ser agredido daquela maneira, pelo que fiquei ali, mal ousando
respirar, enquanto a dor diminuía lentamente para uma pontada constante.
Ataram-me com uma corda, passando-a pela boca do saco, à volta dos
meus braços e da cabeça e dando-lhe um nó apertado. Depois Lizzie disse algo que me enregelou até aos ossos.
— Pronto, agora ele já não foge. Pode começar a cavar.
O rosto dela estava muito perto do meu de modo que pude cheirar o seu mau hálito através do tecido grosseiro. Era como o bafo de um cão ou de
um gato. —
Bem, rapaz — disse ela. — Qual a sensação de saber que nunca mais voltará a ver a luz do dia?
Quando ouvi o som distante de alguém a cavar, comecei a tremer de
medo. Lembrei-me da história do Mago sobre a mulher do mineiro,
especialmente a pior parte de todas, em que ela ficara ali paralisada, incapaz de gritar, enquanto o marido cavava a sua sepultura. Agora
estava a me acontecer o mesmo. Ia ser enterrado vivo e teria feito tudo
para voltar a ver a luz do dia, nem que fosse por um momento. A princípio, quando cortaram as cordas e me retiraram o saco, fiquei
aliviado. Nesta altura, o Sol pusera-se, mas olhei para cima e consegui
ver as estrelas, com a Lua em quarto minguante sobre as árvores. Senti o vento no rosto e nunca me senti tão bem. Porém, o meu alívio não
durou mais de uns momentos, porque comecei a perguntar-me o que
teriam ao certo em mente. Não me ocorria nada pior do que ser
enterrado vivo, mas provavelmente a Lizzie dos Ossos sim.
Para ser sincero, quando vi Tusk de perto pela primeira vez, não me
pareceu tão mau quanto esperara. De certa forma, afigurara-se pior na noite em que me perseguira. Não era tão velho quanto o Mago, mas o
seu rosto estava enrugado e queimado do sol e uma massa de cabelo
grisalho gorduroso cobria-lhe a cabeça. Os dentes eram grandes demais para lhe caberem na boca, o que significava que nunca a conseguiria
fechar bem, e dois deles curvavam para cima como presas amarelas, de
cada lado do nariz. Também era grande e muito peludo, com fortes braços musculados. Sentira aquele aperto e achara-o bastante mau, mas
sabia que ele possuía naqueles ombros força suficiente para me apertar
tão firmemente que todo o ar seria expulso do meu corpo e as minhas costelas se partiriam.
Tusk tinha uma faca grande e curva no cinto, com uma lâmina que
parecia muito afiada. Mas o pior nele eram os olhos. Estavam completamente apagados. Era como se não houvesse nada vivo dentro
da cabeça dele; era apenas algo que obedecia a Lizzie dos Ossos, sem
um único pensamento. Sabia que ele faria tudo o que ela mandasse sem questionar, por mais terrível que fosse.
Quanto a Lizzie dos Ossos, não era nada escanzelada e eu sabia, pelo
que lera na biblioteca do Mago, que provavelmente lhe chamavam assim porque usava a magia dos ossos. Cheirara já o hálito dela mas, à
primeira vista, ninguém a tomaria por uma bruxa. Não era como Mãe
Malkin, toda mirrada da idade, assemelhando-se a algo que já estava morto. Não, Lizzie dos Ossos era apenas uma versão mais velha de
Alice. Provavelmente não teria mais de trinta e cinco anos, com belos
olhos castanhos e cabelo tão negro como o da sobrinha. Usava um xale verde e um vestido preto, com um cinto de couro estreito a cingir a sua
cintura esbelta. Havia sem dúvida uma semelhança familiar — à exceção
da boca. Não era tanto a sua forma, mas a maneira como a movia; a maneira como se contorcia e fazia esgares quando ela falava. Uma outra
coisa em que reparei foi que nunca olhava diretamente para mim.
Alice não era assim. Tinha uma boca bonita, ainda moldada para sorrir,
mas percebi então de que acabaria por ficar igual à de Lizzie dos Ossos.
Alice enganara-me. Era por sua causa que eu estava ali, em vez de são e salvo na casa do Mago, a cear.
A um sinal de Lizzie dos Ossos, Tusk agarrou-me e amarrou-me as mãos
atrás das costas. Depois segurou-me pelo braço e arrastou-me por entre as árvores. Primeiro vi o monte de solo escuro, depois o poço fundo ao
lado e captei o fedor de terra úmida e barrenta acabada de revolver.
Cheirava simultaneamente a morte e vida, com coisas trazidas à superfície que realmente deviam estar enterradas bem fundo.
Provavelmente, o poço teria mais de dois metros de profundidade, mas,
ao contrário daquele em que o Mago conservara a Mãe Malkin,
apresentava uma forma irregular, apenas um grande buraco com
paredes íngremes. Recordo-me de pensar que, com toda a minha
prática, teria feito bem melhor. Naquele momento, a lua mostrou-me algo mais —
algo que preferia não ter visto. A cerca de três passos dali, do lado
esquerdo do poço, estava um losango de solo recém-revolvido. Parecia exatamente uma nova sepultura.
Nem tive tempo de começar a me preocupar com aquilo, fui logo
arrastado para a beira do poço e Tusk puxou-me com força a cabeça para trás. Vislumbrei o rosto de Lizzie dos Ossos perto do meu,
enfiaram-me algo duro na boca e deitaram-me um líquido frio de travo
amargo pela goela abaixo. Sabia mal e encheu-me a garganta e a boca até à borda, vindo por fora e irrompendo-me até pelo nariz, de modo
que comecei a sufocar, arfando e esforçando-me por respirar. Tentei
cuspi-lo fora mas Lizzie dos Ossos apertou-me as narinas com força entre o indicador e o polegar, pelo que, para respirar tinha primeiro de
engolir.
Feito aquilo, Tusk largou-me a cabeça e transferiu a pressão para o meu braço esquerdo. Vi então o que fora enfiado à força na minha boca —
Lizzie dos Ossos segurou-o para eu ver. Era um pequeno frasco de vidro
escuro. Um frasco com um gargalo estreito e comprido. Virou-o de modo a ficar com a boca a apontar para o solo e caíram algumas gotas na
terra. O resto estava já no meu estômago.
O que é que eu bebera? Ter-me-ia ela envenenado? — Isto vai te manter os olhos bem abertos, rapaz
— disse com um sorriso escarninho. — Não queríamos que adormecesse,
não é? Não queríamos que perdesse nada. Sem qualquer aviso, Tusk atirou-me violentamente para o poço e o meu
estômago contraiu-se quando caí no espaço. Aterrei pesadamente, mas
o fundo era macio e, apesar de a queda me tirar o fôlego, fiquei ileso. Virei-me então para olhar para as estrelas, pensando que, afinal, talvez
me fossem enterrar vivo. Mas, em vez de uma pazada de terra a cair na
minha direção, vi o contorno da cabeça e dos ombros de Lizzie dos Ossos
a espreitar para baixo, uma silhueta recortada no fundo de estrelas.
Começou a entoar uma estranha espécie de murmúrio gutural, muito embora não conseguisse compreender as palavras proferidas.
A seguir, esticou os braços por cima do poço e vi que segurava algo em
cada mão. Soltando um grito estranho, abriu as mãos e duas coisas brancas desceram na minha direção, aterrando na lama perto dos meus
joelhos.
Com o luar, vi nitidamente o que eram. Quase pareciam brilhar. Deitara dois ossos para o poço. Eram ossos de polegar — conseguia ver as
articulações.
— Goze a sua última noite nesta terra, rapaz —
gritou-me lá de cima. — Mas não se preocupe que não vai ficar sozinho,
deixá-lo-ei em boa companhia. O Finado Bily virá reclamar os seus
ossos. Está mesmo ao lado, por isso não precisa de se deslocar muito. Irá ter contigo não tarda e vocês os dois têm muito em comum. Foi o
último aprendiz do Velho Gregory e não verá com bons olhos que lhe
tenha ocupado o lugar. Depois, mesmo antes da aurora, lhe faremos uma última visita. Viremos recolher os seus ossos. São especiais, os
seus ossos, ainda melhores do que os de Bily e, assim acabados de
apanhar, serão sem dúvida os melhores que consigo desde há muito tempo.
O rosto dela recuou e ouvi passos a afastarem-se.
Portanto, já sabia a sorte que me esperava. Se Lizzie queria os meus ossos, isso significava que ia me matar.
Lembrei-me da enorme faca de lâmina curva que Tusk trazia à cintura e
comecei a tremer. Antes disso, porém, teria de enfrentar o Finado Bil y. Quando ela dissera
«mesmo ao lado», devia estar a referir-se a uma nova sepultura ao lado
do poço. Mas o Mago dissera que Bily estava enterrado mesmo do lado de fora do cemitério de Layton. Lizzie devia ter desenterrado o corpo
dele, cortado os polegares e enterrado o resto do corpo aqui no meio das
árvores. Agora, ele vinha reaver os polegares. Iria Bily Bradley querer fazer-me mal? Eu nunca lhe fizera nada, mas
provavelmente ele gostara de ser o aprendiz do Mago. Talvez estivesse
ansioso por concluir o período de aprendizado e tornar-se um Mago. Agora eu viera ocupar o que em tempos lhe coubera. Não apenas isso —
e então o feitiço de Lizzie dos Ossos? Ele podia julgar que fora eu quem
lhe cortara os polegares e os atirara para o poço. . Consegui ajoelhar-me e passei os minutos seguintes a tentar
desesperadamente desamarrar as mãos. Os meus esforços pareciam
fazer com que a corda me apertasse ainda mais. Também me sentia esquisito: com a cabeça oca e a boca seca. Quando
olhei para as estrelas, pareceram-me muito brilhantes e cada estrela
tinha uma gêmea. Se me concentrasse seriamente, podia fazer com que
as estrelas duplas voltassem a ser uma só, mas, assim que relaxei, elas
separaram-se. Ardia-me a garganta e o meu coração batia três ou quatro vezes mais depressa do que o seu ritmo normal.
Continuava a pensar no que Lizzie dos Ossos dissera. O Finado Bily viria
reclamar os seus ossos. Ossos esses que estavam na lama a menos de dois passos do lugar onde me encontrava ajoelhado. Se tivesse as mãos
livres, atirá-los-ia para fora do poço.
De repente, notei um ligeiro movimento à minha esquerda. Se estivesse de pé, seria mesmo ao nível da minha cabeça. Olhei para cima e vi uma
cabeça comprida e gorda de verme a sair da parede lateral do poço. Era
maior, muito maior do que qualquer outro verme que já tivesse visto. A
sua cabeça cega e inchada movia-se num círculo lento enquanto fazia
sair o resto do corpo. O que seria? Era venenoso? Podia morder? E
depois veio direto para mim. Era um verme de caixão! Devia ser algo que estivera a viver no caixão de Bil y Bradley, engordando e ficando
nítido. Algo branco que nunca vira a luz do dia!
Estremeci quando o verme do caixão saiu da terra escura e caiu na lama aos meus pés. Perdi-o então de vista quando se enfiou rapidamente
debaixo da superfície.
Sendo tão grande, o verme branco desalojara um bocado de solo da parede do poço, deixando atrás de si um buraco semelhante a um túnel
estreito. Observei-o, horrorizado, porque algo mais se movia lá dentro.
Algo revolvia a terra, que caía em cascata do buraco para formar um monte de solo cada vez maior.
O fato de não saber o que era só agravava a situação. Tinha de ver o
que estava lá dentro, de modo que tentei pôr-me em pé. Cambaleei, sentindo novamente vertigens, as estrelas começando a andar à roda.
Quase caí, mas consegui dar um passo, avançando e ficando perto do
túnel estreito, agora mais ou menos ao nível da minha cabeça. Quando olhei lá para dentro, desejei não o ter feito.
Vi ossos. Ossos humanos. Ossos que estavam articulados. Ossos que se
moviam. Duas mãos sem polegares. Uma delas sem dedos. Ossos a deslocar-se na lama, arrastando-se pela
terra macia na minha direção. Uma caveira sorridente de boca aberta.
Era o Finado Bily, mas em vez de olhos, as suas órbitas pretas fitavam-me, cavernosas e vazias. Quando apareceu ao luar uma mão branca sem
carne e avançou diretamente no meu rosto, recuei, quase caindo,
soluçando de medo. Naquele momento, precisamente quando julgava que ia enlouquecer de
terror, o ar tornou-se subitamente muito mais frio e senti algo à minha
direita. Havia mais alguém comigo no poço. Alguém que estava de pé onde tal era impossível. Via-se metade do seu corpo, o resto estava
enfiado na parede de terra.
Era um rapaz pouco mais velho do que eu. Apenas lhe via o lado
esquerdo porque o resto dele estava em algum lugar atrás, ainda no
solo. Com a mesma facilidade com que se entra por uma porta, ele virou o ombro direito na minha direção e o resto dele apareceu no poço.
Sorriu-me. Um sorriso caloroso, amigável.
— A diferença entre estar acordado e a sonhar — disse ele. — É uma das lições mais difíceis de aprender.
Aprende-a agora, Tom. Aprende-a antes que seja tarde demais...
Pela primeira vez, reparei nas botas dele. Pareciam muito caras e tinham sido feitas com couro da melhor qualidade. Eram iguais às do Mago.
Ergueu então as mãos, que ficaram de cada lado da sua cabeça, as
palmas viradas para fora. Faltavam os polegares em cada mão. A
esquerda também não tinha dedos.
Era o fantasma de Bily Bradley.
Cruzou as mãos sobre o peito e sorriu mais uma vez. Enquanto Bily sumia, pareceu-me feliz e em paz.
Compreendi exatamente o que ele me dissera. Não, eu não estava a
dormir mas, de certa forma, estivera a sonhar. Estivera a sonhar os sonhos negros que tinham saído do frasco que Lizzie me enfiara à força
na boca.
Quando me virei para olhar para o buraco, este desaparecera. Nunca houvera um esqueleto a avançar na minha direção. Tão pouco existira
um verme de caixão. A poção devia ter sido alguma espécie de veneno:
algo que tornava difícil distinguir entre estar acordado e a sonhar. Fora isso que Lizzie me dera. Obrigara o meu co-ração a bater apressado e
impossibilitara-me de dormir.
Mantivera os meus olhos bem abertos, mas também me fizera ver coisas que realmente não existiam.
Pouco depois, as estrelas desapareceram e começou a chover
intensamente. Foi uma noite longa, desconfortável e fria, e pensei constantemente no que me aconteceria antes da aurora. Quanto mais se
aproximava, pior eu me sentia.
Cerca de uma hora antes de o Sol nascer, a chuva passou a uns chuviscos antes de cessar por completo.
Consegui voltar a ver as estrelas e agora já não me pareciam duplicadas.
Estava encharcado e com frio mas parará de me arder a garganta. Quando apareceu um rosto lá em cima a espreitar para o poço, o meu
coração disparou porque julguei que era Lizzie que vinha buscar os meus
ossos. Mas, para meu alívio, era Alice. — Lizzie mandou ver como estava — falou baixinho lá para o fundo. —
Bily já esteve aqui?
— Já esteve e já se foi — respondi-lhe, furioso. — Eu não queria que isto acontecesse, Tom. Se não tivesse se
intrometido, estaria tudo bem.
— Tudo bem? — repeti. — A esta hora haveria outra criança morta e o
Mago também, se tivesse levado aquilo a diante. E aqueles bolos tinham
lá dentro o sangue de um bebê. Acha que isso é estar tudo bem? Descende de uma família de assassinos e você própria é uma assassina!
— Não é verdade. Isso não é verdade! — protestou Alice. — Não havia
nenhum bebê. Tudo o que fiz foi dar-te os bolos. — Mesmo que assim fosse — insisti —, sabia qual ia ser o seu efeito. E
não devia ter deixado que isso acontecesse.
— Não sou assim tão forte, Tom. Como podia impedi-lo? Como podia impedir Lizzie?
— Eu escolhi o que quero fazer — disse-lhe. —
Mas o que você irá escolher, Alice? Magia dos ossos ou magia do
sangue? Qual delas? Qual irá ser?
— Não vai ser nenhuma delas. Não quero ser igual a elas. Vou fugir.
Assim que tiver oportunidade, fugirei. — Se fala a sério, então, ajude-me agora. Ajude-me a sair do poço.
Podíamos fugir juntos.
— Agora é perigoso demais — respondeu Alice. — Talvez daqui a umas semanas, quando eles não estiverem à espera.
— Quer dizer, depois de eu estar morto. Quando tiver mais sangue nas
suas mãos... Alice não respondeu. Ouvi-a começar a chorar baixinho, mas quando
julguei que estivesse prestes a mudar de opinião e fosse ajudar-me,
afastou-se. Fiquei ali sentado no poço, temendo o que me ia acontecer, lembrando-
me dos enforcados e sabendo agora exatamente o que deviam ter
sentido antes de morrerem. Sabia que nunca mais iria a casa. Nunca mais voltaria a ver a minha
família. Acabara de perder por completo a esperança, quando se
aproximaram passos do poço. Levantei-me, assustado, mas era de novo Alice.
— Oh, Tom, lamento muito — disse. — Eles estão a afiar as facas...
Aproximava-se o pior momento de todos e sabia que só tinha uma oportunidade. A minha única esperança era Alice. — Se lamenta
realmente, então vai ajudar-me —
disse-lhe baixinho. — Não há nada que eu possa fazer! — exclamou.
— Lizzie irá se virar contra mim. Ela não confia em mim.
Acha que sou branda. — Vai buscar Mr. Gregory — pedi-lhe. — Traga-o aqui.
— É tarde demais para isso, não acha? — Alice soluçou, abanando a
cabeça. — Os ossos apanhados à luz do dia não têm utilidade para Lizzie. Nenhuma utilidade mesmo. A melhor altura para apanhar ossos é
precisamente antes de o Sol nascer. Por isso eles virão buscá-lo daqui a
alguns minutos. É todo o tempo que tem.
— Então arranje-me uma faca — pedi. — Não serve — retorquiu ela. — Eles são fortes demais. Não conseguirá
vencê-los!
— Não — respondi. — Quero-a para cortar a corda. Vou tentar fugir. De repente, Alice desapareceu. Fora buscar uma faca ou estava com
medo demais de Lizzie? Aguardei alguns instantes, mas como ela não
voltasse, fiquei desesperado. Debati-me, tentando separar os pulsos, tentando partir a corda, mas era escusado.
Quando um rosto me olhou lá do alto, o meu co-ração sobressaltou-se
com o medo, mas era Alice segurando algo por cima do poço. Largou-o
e, quando caiu, o metal brilhou ao luar.
Alice não me desiludira. Era uma faca. Se ao menos eu conseguisse
cortar a corda, ficaria solto. . A princípio, mesmo com as mãos atadas atrás das costas, nunca tivera
qualquer dúvida na minha mente de que o conseguiria fazer. O único
perigo era poder cortar-me, mas o que importava isso comparado com o que eles me iam fazer antes de o Sol nascer? Não demorei muito tempo
a agarrar a faca. Foi mais difícil posicioná-la contra a corda e muito
árduo deslocá-la. Quando a deixei cair pela segunda vez, entrei em pânico. Não faltaria nem um minuto para eles me virem buscar.
— Terá de fazê-lo por mim — disse lá de baixo a Alice. — Vamos, salte
para o poço. Não pensei que ela realmente o fizesse, mas para minha surpresa, o fez.
Não saltou, desceu; primeiro os pés, virada para a parede do poço e
ficando suspensa da borda pelos braços. Quando o seu corpo estava todo esticado, desceu num pulo o meio metro que faltaria.
Não demorou muito a cortar a corda. As minhas mãos ficaram livres e só
nos faltava sair do poço. — Deixe-me subir para os seus ombros — pedi-lhe. — Depois iço-te.
Alice não contestou e, à segunda tentativa, consegui equilibrar-me nos
ombros dela e arrastar-me para a erva molhada. Depois veio a parte realmente difícil — tirar Alice do poço.
Estendi a mão esquerda. Ela agarrou-a com força e colocou a sua mão
direita no meu pulso, para conseguir mais apoio. Depois tentei puxá-la. O meu primeiro problema foi a erva molhada e escorregadia e tive
dificuldade em não ser arrastado pela borda. Percebi então que não tinha
força para fazê-lo. Cometera um erro enorme. Uma porque ela era uma garota, e isso não a
tornava necessariamente mais fraca do que eu. Tarde demais me
lembrei da maneira como ela puxara a corda para tocar o sino do Mago. Fizera-o quase sem esforço. Devia tê-la deixado subir para os meus
ombros. Devia tê-la deixado sair primeiro do poço. Alice teria conseguido
me puxar sem problemas. Foi então que ouvi o som de vozes. Lizzie dos
Ossos e Tusk avançavam por entre as árvores na nossa direção.
Vi por baixo de mim os pés de Alice rasparem na parede do poço, tentando agarrar-se. O desespero deu-me força suplementar. Com um
puxão súbito, ela transpôs a extremidade e caiu a meu lado.
Fugimos mesmo a tempo, correndo desalmadamente, o som de outros pés a perseguir-nos. A princípio estavam um pouco distantes, mas muito
gradualmente começaram a aproximar-se cada vez mais.
Não sei durante quanto tempo corremos. Pareceu uma eternidade. Corri até as minhas pernas pesarem como chumbo e a respiração me queimar
a garganta. Seguíamos no sentido de Chipenden — sabia-o pelos
esporádicos vislumbres das colinas rochosas através das árvores.
Corríamos em direção à aurora. O céu estava agora ficando cinzento e
clareava mais a cada minuto. Então, precisamente quando me senti
incapaz de dar mais um passo, as pontas das colinas rochosas brilharam com uma cor-de-laranja pálida. Era a luz do Sol e recordo-me de pensar
que mesmo que fôssemos apanhados então, pelo menos era de dia e,
assim, os meus ossos não teriam utilidade para Lizzie. Quando saímos das árvores para a vertente coberta de erva e
começamos a subi-la, as minhas pernas principiaram finalmente a falhar.
Pareciam de borracha e Alice começava a afastar-se de mim. Virou-se para me olhar, o seu rosto aterrorizado. Ouvia-os ainda a abrir caminho
por entre as árvores atrás de nós.
Então, imobilizei-me completa e subitamente. Parei porque não havia necessidade de correr mais.
É que, lá adiante no alto da vertente, estava uma figura alta vestida de
preto e trazendo um longo bordão. Era o Mago, sem a menor dúvida, mas de certa forma parecia diferente.
O capuz assentava-lhe nos ombros e o cabelo, iluminado pelos raios do
Sol nascente, parecia fluir-lhe da cabeça como línguas de fogo cor-de-laranja.
Tusk soltou uma espécie de rugido e correu vertente acima direito a ele,
brandindo a faca, com Lizzie dos Ossos mesmo atrás de si. Não estavam preocupados conosco, de momento. Sabiam quem era o seu principal
inimigo. Nós ficaríamos para depois.
Entretanto, Alice parará também, de modo que dei dois passos trêmulos para ficar ao lado dela. Ambos vimos Tusk efetuar o seu derradeiro
ataque, levantando a lâmina curva e gritando furiosamente enquanto
corria. O Mago estivera de pé, imóvel como uma estátua, mas depois, em
resposta, deu duas passadas vertente abaixo na direção dele e ergueu
alto o bordão. Apontando-o como uma lança, arremessou-o com força à cabeça de Tusk. Mesmo antes de atingi-lo na testa, ouviu-se uma
espécie de estalido e apareceu uma chama cor-de-laranja na ponta.
Seguiu-se uma pancada forte ao acertar no alvo.
A faca curva voou no ar e o corpo de Tusk caiu como uma saca de batatas. Estava morto antes mesmo de atingir o solo.
A seguir, o Mago atirou o bordão para o lado e levou a mão dentro da
capa. Quando a sua mão esquerda reapareceu, agarrava algo que ele fez estalar no ar como um chicote. O sol incidiu-lhe e soube que era uma
corrente de prata.
Lizzie dos Ossos virou-se e tentou fugir, mas era tarde demais: da segunda vez que ele fez estalar a corrente, seguiu-se quase de imediato
um som metálico muito estridente. A corrente começou a descer numa
espiral de fogo para se enrolar com força à volta de Lizzie dos Ossos. Ela
soltou um grito enorme de angústia, depois caiu por terra.
Dirigi-me com Alice ao alto da vertente. Ali, vimos que a corrente de
prata estava firmemente enrolada em volta da bruxa, da cabeça aos pés. Apertava mesmo com força a sua boca aberta, pressionando-lhe os
dentes. Os olhos dela rolavam e todo o seu corpo se contorcia com
esforço, mas não conseguia gritar. Olhei para Tusk. Encontrava-se deitado de costas com os olhos
arregalados. Estava morto e bem morto e havia uma ferida vermelha no
meio da sua testa. Olhei então para o bordão, admirado com a chama que vira na sua ponta.
O meu mestre parecia doente, fatigado e subitamente muito
envelhecido. Abanava constantemente a cabeça como se estivesse farto da própria vida. Na sombra da vertente, o seu cabelo retomara o tom
grisalho habitual e percebi a razão por que parecera fluir-lhe da cabeça:
estava encharcado em suor e ele alisara-o com a mão de modo que espetava e lhe saía por detrás das orelhas. Repetiu o gesto enquanto eu
observava. Escorriam-lhe gotas de suor da testa e a sua respiração
estava muito acelerada. Percebi que estivera correndo.
— Como foi que nos encontrou? — perguntei.
Demorou um bocado a responder, mas, por fim, a sua respiração começou a abrandar e conseguiu falar. —
Há sinais, rapaz. Rastos que se podem seguir, se souber como. Mas isso
é outra coisa que vai ter de aprender. Virou-se e olhou para Alice. — Aqueles dois estão arrumados, mas o que
vamos fazer em relação a você? —
inquiriu, olhando-a intensamente. — Ela me ajudou a fugir — intervim.
— Verdade? — perguntou o Mago. — E o que mais fez ela? Fitou-me
então com dureza e procurei agüentar o olhar dele.
Quando o baixei para as minhas botas, ele soltou um estalido com a
língua. Não podia mentir e sabia que ele adivinhara que ela tivera
alguma participação no que me acontecera. Olhou de novo para Alice. — Abra a boca, menina
— ordenou com aspereza, a sua voz cheia de raiva. —
Quero ver os seus dentes. Alice obedeceu e o Mago estendeu a mão, agarrando-a pelo queixo.
Aproximou o rosto da boca dela aberta e cheirou ruidosamente.
Quando se virou para mim, o seu estado de espírito parecia amenizado e soltou um suspiro profundo.
— O hálito dela é bastante agradável — comentou.
— Cheirou o hálito da outra? — perguntou, soltando o queixo de Alice e
apontando para Lizzie dos Ossos.
Anuí.
— É provocado pela sua dieta — disse. — E lhe diz logo o que andou a fazer. Aqueles que praticam a magia dos ossos ou do sangue têm um
bafo de sangue e carne crua. Mas a menina parece bem.
Depois voltou a aproximar o rosto de Alice. — Olhe-me nos olhos, menina — ordenou-lhe. — Aguente o meu olhar o
máximo que puder.
Alice obedeceu mas não conseguiu olhá-lo por muito tempo, apesar de a sua boca se contorcer com o esforço. Baixou o olhar e começou a chorar
baixinho.
O Mago olhou para os sapatos bicudos dela e abanou a cabeça pesarosamente. — Não sei — disse, tornando a virar-se para mim. —
Olha que não sei qual a melhor atitude a tomar. Não é apenas ela.
Temos de pensar nos outros. Inocentes que podem vir a sofrer no futuro. Ela viu demais e sabe demais para o seu próprio bem. Tanto
pode dar para um lado como para o outro, e não sei se será seguro
deixá-la partir. Se ela for para leste e se juntar ao grupo em Pendle, então estará perdida para sempre e irá apenas aumentar as forças
tenebrosas.
— Não tem outro lugar para onde possa ir? — perguntei delicadamente a Alice. — Nenhuns outros parentes?
— Existe uma aldeia perto da costa. Chama-se Staumin. Tenho outra tia
que vive lá. Talvez ela me aceite.. — E se for como os outros? — inquiriu o Mago, olhando de novo
fixamente para Alice.
— À vista não parece — respondeu ela. — Mesmo assim, fica muito longe e nunca lá estive. Podia levar três dias ou mais a chegar lá.
— Eu podia mandar o rapaz acompanhar-te —
sugeriu o Mago, a sua voz subitamente muito mais simpática. — Ele estudou bem os meus mapas, por isso calculo que consiga achar com o
caminho. Quando ele voltar já saberá dobrá-los como deve ser. Seja
como for, está decidido. Vou dar-te uma oportunidade, menina. Está na
sua mão aproveitá-la. Se não o fizer, então, um dia voltaremos a nos
encontrar, e pode crer que da próxima vez não terá tanta sorte. Depois o Mago tirou o pano habitual do bolso. Lá dentro estava um naco
de queijo para a viagem.
— É para não passarem fome — disse —, mas não o comam todo de uma vez.
Tinha esperança de que fôssemos encontrar algo melhor para comer
pelo caminho, mas não deixei de murmurar os meus agradecimentos. — Não vá diretamente para Staumin — disse o Mago olhando-me
duramente sem pestanejar. — Quero que volte primeiro a sua casa. Leve
esta menina com você e deixe que a sua minha mãe converse com ela.
Pressinto que talvez ela a possa ajudar. Conto que regresse daqui a duas
semanas.
Aquelas palavras fizeram-me sorrir. Depois de tudo o que acontecera, uma oportunidade de ir a casa por uns tempos era a concretização de
um sonho. Mas houve algo que me deixou intrigado, porque me lembrei
da carta que a minha mãe mandara ao Mago. Ele não parecera ter ficado muito satisfeito com algumas das coisas que ela dissera. Nesse caso,
porque pensaria que a minha mãe podia ajudar Alice? Não disse nada,
pois não queria correr o risco de fazer o Mago mudar de idéia. Estava satisfeito por me ir afastar dali.
Antes de partirmos, falei-lhe de Billy. Anuiu, pesarosamente, mas disse
que não me preocupasse porque faria o que era necessário. Quando partimos, olhei para trás e vi o Mago pôr Lizzie dos Ossos ao
ombro esquerdo e afastar-se em grandes passadas na direção de
Chipenden. Quem o visse de trás, tê-lo-ia tomado por um homem com menos trinta anos.
CAPÍTULO 12
OS DESESPERADOS E OS DESEQUILIBRADOS
Ao descermos a colina em direção à fazenda, os chuviscos quentes
batiam-nos no rosto. Em algum lugar ao longe um cão ladrou duas
vezes, mas abaixo de nós estava tudo silencioso e imóvel. A tarde ia avançada e sabia que o meu pai e Jack estariam nos campos,
o que me permitiria conversar a sós com a minha mãe. Fora fácil para o
Mago dizer-me que levasse Alice, mas a viagem dera-me tempo para
pensar e não sabia como a minha mãe iria encarar a situação. Não me
parecia que lhe agradasse ter alguém como Alice em casa,
especialmente depois de eu lhe contar o que ela fizera. E quanto a Jack, conseguia imaginar qual seria a sua reação. Pelo que Ellie me relatara da
última vez a respeito da atitude dele em relação à minha nova ocupação,
ter em casa a sobrinha de uma bruxa era a última coisa que ele haveria de querer.
Quando atravessamos o pátio apontei para o celeiro. — É melhor se
abrigar ali debaixo — disse. — Vou entrar e explicar. Mal proferi estas palavras, veio da direção da casa da fazenda o choro
sonoro de um bebê com fome. Os olhos de Alice cruzaram-se
fugazmente com os meus, depois baixou-os e recordei a última vez que tínhamos estado juntos e uma criança chorara.
Sem uma palavra, Alice virou-se e encaminhou-se para o celeiro em
silêncio, tal como eu esperara. Seria de pensar que, depois de tudo o que acontecera, houvéssemos conversado muito durante a viagem, mas,
na realidade, mal havíamos trocado uma palavra. Calculo que tivesse
ficado afetada pela forma como o Mago lhe agarrara o queixo e cheirara o hálito. Talvez a tivesse feito pensar em todos os seus atos no passado.
O que quer que fosse, a maior parte da viagem ela parecera absorta em
pensamentos e muito triste. Acho que deveria ter me esforçado mais, mas estava esgotado demais e
cansado, por isso caminhamos em silêncio até que se tornou um hábito.
Foi um erro. Devia ter-me esforçado então por ficar conhecendo melhor Alice — quantos problemas não teria evitado mais tarde!
Quando abri com força a porta de trás, o choro cessou e ouvi outro som:
o estalido reconfortante da cadeira de balanço da minha mãe. A cadeira estava junto à janela, mas as cortinas não se encontravam
corridas na totalidade e percebi pela cara dela que estivera a espreitar
pela fresta entre elas. Vira-nos chegar ao pátio e, quando entrei na divisão, começou a balançar a cadeira cada vez mais depressa, fitando-
me o tempo todo sem pestanejar, uma metade do seu rosto no escuro, a
outra iluminada pela vela enorme que tremulava no castiçal grande, de
latão, no centro da mesa.
— Quando traz contigo uma pessoa, é sinal de boa educação convidá-la a entrar em casa — disse ela, a sua voz um misto de contrariedade e
surpresa. — Julguei que lhe tivesse ensinado melhores modos.
— Mr. Gregory mandou-me trazê-la aqui — respondi. — O nome dela é Alice, mas tem andado em más companhias. Ele quer que a mãe tenha
uma conversa com ela, mas achei por bem contar-lhe primeiro o que
aconteceu, para o caso de não a querer convidar a entrar. Puxei então de uma cadeira e contei à minha mãe exatamente o que
sucedera. Quando terminei, ela soltou um longo suspiro, depois um
tênue sorriso suavizou as suas feições. — Fez bem, filho — disse-me. —
É jovem e novo no ofício, por isso os seus erros podem ser perdoados.
Vá lá buscar a pobre menina, depois deixe-nos a sós para conversarmos.
Se quiser pode ir lá em cima cumprimentar a sua nova sobrinha. Ellie irá certamente gostar de te ver.
Fui então buscar Alice, deixei-a com a minha mãe e subi as escadas.
Ellie estava no quarto maior. Pertencera aos meus pais, mas tinham-no cedido a ela e a Jack porque havia espaço para mais duas camas e um
berço, o que seria útil à medida que a família deles fosse crescendo.
Bati de mansinho à porta, que estava meio aberta, mas só entrei no quarto depois de El ie o permitir. Estava sentada na beira da cama
grande de casal a amamentar a bebê, a sua cabeça meio escondida pelo
xale cor-de-rosa. Mal me viu, a boca alargou-se num sorriso que me fez sentir bem-vindo,
mas parecia cansada e tinha o cabelo escorrido e oleoso. Apesar de eu
ter desviado rapidamente o olhar, Ellie era perspicaz e percebi que me vira fitá-la e entendera a expressão no meu rosto, porque afastou
rapidamente o cabelo dos olhos.
— Oh, desculpa, Tom — disse. — Devo estar medonha. . estive de pé a noite toda. Devo ter dormido apenas uma hora. Temos de aproveitar as
oportunidades com uma bebê tão esfomeada como esta. Ela chora
muito, especialmente de noite. — Quanto tempo tem? — perguntei.
— Fará seis dias esta noite. Nasceu no sábado passado, pouco depois da
meia-noite. Fora na altura em que eu matara a Mãe Malkin.
Durante um momento, a lembrança voltou rapidamente e um arrepio
percorreu-me a espinha. — Olha, ela já acabou de mamar — disse Ellie com um sorriso. —
Gostaria de lhe pegar?
Era a última coisa que eu queria fazer. A bebê era tão pequena e delicada que tive medo de apertá-la com força demais e não gostava da
maneira como a cabeça dela pendia tanto. Não tive coragem de recusar,
porque Ellie ficaria com certeza ofendida. Mas não segurei na bebê muito
tempo dado que, mal chegou aos meus braços, o seu rostinho ficou
vermelho e ela começou a chorar. — Acho que esta coisa não gosta de mim — disse a Ellie.
— É ela e não esta coisa — admoestou-me Ellie, pondo uma expressão
austera e ultrajada. — Não se preocupe, o problema não é você, Tom — explicou, a sua boca suavizando-se num sorriso. — Acho que ela ainda
está com fome, é tudo.
A bebê parou de chorar mal Ellie lhe pegou e depois daquilo não fiquei muito mais tempo. Então, quando ia a descer, chegou-me da cozinha um
som inesperado.
Eram gargalhadas, o riso sonoro e caloroso de duas pessoas que se dão
muito bem. No momento em que abri a porta e entrei, o rosto de Alice
ficou muito sério, mas a minha mãe continuou a rir alto durante mais
alguns instantes e, mesmo quando parou, o seu rosto continuou iluminado por um amplo sorriso. Tinham partilhado uma piada, uma
piada muito engraçada, mas não quis perguntar o que era e elas não me
disseram. A expressão nos olhos de ambas deu-me a sensação de se tratar de algo privado.
Uma vez, o meu pai disse-me que as mulheres sabem coisas que os
homens ignoram. Que às vezes têm uma certa expressão no olhar, mas, quando a vemos, nunca devemos perguntar-lhes no que estavam a
pensar.
Se o fizermos, podemos acabar por ouvir algo que não queremos. Bem, o fato de estarem a rir aproximara-as, sem dúvida, mais; a partir
daquele momento parecia que já se conheciam há anos. O Mago tivera
razão. Se alguém era capaz de lidar com Alice, só podia ser a minha mãe. No entanto, reparei em algo. A minha mãe dera a Alice o quarto
em frente do dela e do meu pai. Eram os dois quartos no alto do
primeiro lance de escadas. A minha mãe tinha o ouvido muito apurado e isso queria dizer que se Alice se virasse durante o sono, ela ouviria.
Por conseguinte, apesar daquelas gargalhadas, a minha mãe não
deixaria de ficar atenta a Alice. Quando voltou dos campos, Jack deitou-me um olhar muito carrancudo e
murmurou algo entre dentes.
Parecia furioso com alguma coisa. Mas o meu pai ficou satisfeito por me ver e, para minha surpresa, apertou-me a mão. Fazia-o sempre que
cumprimentava os meus outros irmãos que tinham saído de casa, mas
esta era a primeira vez, para mim. Senti-me triste e orgulhoso ao mesmo tempo. Estava a tratar-me como se eu fosse um homem que
seguia o seu próprio caminho na vida.
Jack não estava em casa nem há cinco minutos quando veio à minha procura.
— Lá para fora — disse, mantendo a voz baixa pa-ra que mais ninguém
pudesse ouvir. — Quero falar com você.
Saímos para o pátio e ele seguiu à frente, contornando o celeiro até perto do chiqueiro, de onde não seríamos vistos da casa.
— Quem é a menina que trouxe com você?
— O nome dela é Alice. É apenas alguém que precisa de ajuda — respondi. — O Mago pediu-me que a trouxesse até aqui para a minha
mãe poder conversar com ela. — O que vem a ser isso de ela precisar de
ajuda? — Tem andado com más companhias, é tudo.
— Que tipo de más companhias?
Sabia que não lhe iria agradar, mas não tinha outra alternativa. Fui
obrigado a contar-lhe. Caso contrário, ele iria perguntar à mãe.
— A tia dela era uma bruxa, mas não se preocupe, o Mago tratou de
tudo e só vamos ficar alguns dias. Jack explodiu. Nunca o vira tão furioso.
— Onde está o bom senso com que nasceu? —
gritou. — Não pensa? Não pensou na bebê? Há uma criança inocente a viver nesta casa e traz para cá alguém de uma família dessas! É
inacreditável!
Levantou o punho e pensei que me fosse bater. Mas, ao invés, deu um murro na parede do celeiro, a pancada súbita
semeando a agitação entre os porcos.
— A mãe acha que não há problema — protestei. — Sim, seria de esperá-lo da mãe — redarguiu Jack, a sua voz
subitamente mais baixa, mas ainda cheia de raiva. — Como poderia ela
recusar algo ao seu filho preferido? E ela tem um coração generoso demais, como você muito bem sabe. Por isso, não devia se aproveitar.
Olhe, terá de se ver comigo se acontecer alguma coisa. Não gosto do ar
daquela menina. Parece-me manhosa. Vou estar muito atento a ela e se pisar nem que seja uma só vez o risco, vão ambos daqui para fora em
menos de um segundo. E terão de valer o que comem. Ela pode ajudar
nas tarefas domésticas para facilitar a vida da mãe e você colaborar no trabalho da fazenda.
Jack virou-se e começou a afastar-se, mas ainda tinha algo mais a dizer.
— Estando tão ocupado com coisas mais importantes — acrescentou, cheio de sarcasmo —, é capaz de não ter reparado que o pai anda com
um ar muito cansado. Ele tem cada vez mais dificuldade em trabalhar. —
Claro que ajudarei — gritei-lhe —, e Alice também. À ceia, para além da minha mãe, estiveram todos muito calados. Acho que era a presença de
uma estranha à nossa mesa. Apesar de a educação de Jack obstar a que
falasse sem rodeios, olhou para Alice de uma forma quase tão carrancuda como para mim. Por isso, felizmente a minha mãe esteve
bem-disposta e esforçou-se por animar todos à mesa.
Ellie teve de interromper duas vezes a ceia para atender à bebê, que não
parou de chorar a ponto de deitar a casa abaixo. Da segunda vez trouxe-
a para baixo. — Nunca conheci um bebê que chorasse tanto —
comentou a minha mãe com um sorriso. — Pelo menos tem pulmões
fortes e saudáveis. O seu rosto minúsculo estava outra vez todo vermelho e franzido. Nunca
o teria dito a Ellie, mas não era um bebê muito bonito. O seu rosto fazia-
me lembrar o de uma velha rezingona. Tão depressa chorava a ponto de rebentar, como depois, de um momento para o outro, se calava e ficava
sossegada. Tinha os olhos muito arregalados e olhava fixamente na
direção do centro da mesa, onde Alice estava sentada perto do enorme
castiçal de latão.
A princípio, não soube o que pensar daquilo. Julguei que a bebê de Ellie
estivesse apenas fascinada pela chama da vela. Mas depois, Alice ajudou a minha mãe a levantar a mesa e, de cada vez que Alice passava
próximo, a bebê seguia-a com os seus olhos azuis e, de repente, apesar
de a cozinha estar aquecida, senti um arrepio. Mais tarde, fui até o meu antigo quarto e, quando me sentei na cadeira
de vime junto à janela e contemplei a paisagem, foi como se nunca
tivesse saído de casa. Quando olhei para norte, na direção da Colina do Carrasco, pensei no
interesse que a bebê parecera demonstrar por Alice. Quando me lembrei
do que Ellie dissera antes, voltei a sentir um arrepio. A bebê dela nascera depois da meia-noite, mesmo na altura da Lua cheia. Era
demasiado próximo para ser coincidência. Mãe Malkin teria sido levada
pelo rio mais ou menos no momento em que a bebê de Ellie nascera. O Mago avisara-me de que ela haveria de voltar. E se ela tivesse voltado
ainda mais cedo do que ele previra? Contara que ela ficasse latente. E se
estivesse enganado? E se ela se libertara dos ossos e o seu espírito possuíra a bebê de Ellie no preciso momento do seu nascimento?
Não preguei os olhos naquela noite. Só havia uma pessoa a quem podia
expor os meus receios e essa pessoa era a minha mãe. A dificuldade estava em apanhá-la sozinha sem despertar a atenção para o fato de o
estar fazendo. A minha mãe cozinhava e efetuava outras tarefas que a
mantinham ocupada a maior parte do dia e normalmente não teria sido problemático falar com ela na cozinha porque eu estava a trabalhar ali
perto. Jack encarregara-me de reparar a fachada do celeiro e devo ter
cravado centenas de novos pregos reluzentes antes do pôr do Sol. Porém, a dificuldade era Alice. A minha mãe conservava-a na sua
companhia o dia inteiro, obrigando realmente a menina a trabalhar
arduamente. Podia ver-se o suor na testa dela e as rugas que a sulcavam constantemente, mas, apesar disso, nem uma só vez Alice se
queixou.
Só depois da ceia, quando acabou o barulho do lavar e limpar da louça, é
que tive finalmente a minha oportunidade. Naquela manhã, o meu pai
fora ao mercado da Primavera, em Topley. Para além de efetuar os seus negócios, dava-lhe a rara oportunidade de encontrar alguns dos seus
velhos amigos, pelo que estaria ausente dois ou três dias. Jack tinha
razão. Ele parecia cansado e sempre lhe proporcionava um descanso da fazenda.
A minha mãe mandara Alice ir repousar no quarto, Jack estava na sala
da frente e Ellie encontrava-se lá em cima a tentar fechar os olhos durante meia hora antes da bebê acordar de novo para mamar. Por isso,
não perdendo qualquer tempo, comecei a contar à mãe o que me
preocupava. Ela estivera balançando a cadeira, mas mal conseguira
proferir a primeira frase quando a cadeira parou. Escutou com muita
atenção enquanto lhe expunha os meus receios e razões para desconfiar
da bebê. Mas o rosto dela permaneceu tão impassível e calmo que não fazia idéia o que lhe ia na mente. Assim que despejei a última palavra,
ela pôs-se em pé.
— Espere aí — disse-me. — Precisamos resolver isto de uma vez por todas.
Saiu da cozinha e foi lá acima. Quando voltou, trazia a bebê, embrulhada
no xale de Ellie. — Vai buscar a vela — disse, avançando para a porta. Fomos até ao pátio, a minha mãe caminhando depressa, como se
soubesse exatamente onde ia e o que tencionava fazer. Acabamos por
nos deter do outro lado da pilha de estrume, ficando em cima da lama à beira do nosso lago, que era suficientemente fundo e grande para
abastecer de água as nossas vacas, mesmo durante os meses mais
secos de Verão. — Mantenha a vela bem alto para podermos ver tudo — disse a minha
mãe. — Não quero que haja dúvidas. Então, para meu horror, ela
estendeu os braços e segurou a bebê sobre a água escura e parada. — Se ela flutuar, a bruxa está dentro dela — afirmou a minha mãe.
— Se se afundar, está inocente. Bem, vamos ver. .
— Não! — gritei, a minha boca abrindo-se sozinha e as palavras brotando mais depressa do que o meu pensamento. — Não faça isso, por
favor. É a bebê de Ellie.
Por um momento, pensei que ela fosse deixar cair a bebê mesmo assim, depois sorriu, estreitou-a novamente e beijou-lhe muito delicadamente a
testa. — Claro que é a bebê de Ellie, filho. Não vê isso só de olhar para
ela? De qualquer forma, a «flutuação» é um teste feito pelos tolos e nem sequer resulta. Normalmente, amarram as mãos aos pés da pobre
mulher e atiram-na para águas profundas e tranqüilas. Mas se ela se
afunda ou flutua, é uma questão de sorte e depende do seu tipo de corpo. Não tem nada a ver com bruxaria.
— E então a maneira como a bebe olhava constantemente para Alice? —
perguntei.
A minha mãe sorriu e abanou a cabeça. — Os olhos de um recém-nascido não conseguem focar convenientemente — explicou. —
Provavelmente era apenas a luz da vela que lhe despertava a atenção.
Não se esqueça — Alice estava sentada perto dela. Depois, de cada vez que Alice se
deslocava, os olhos da bebê eram atraídos pela mudança na luz. Não se
preocupe. — E se a bebê de Ellie estiver possuída de alguma maneira? — indaguei.
— E se houver algo dentro dela que nós não conseguimos ver?
— Olha, filho, tenho trazido tanto bem como mal a este mundo e
conheço o mal só de olhar para ele. Esta criança é boa e não existe nada
de preocupante dentro dela. Nada de nada.
— No entanto, não é estranho que a bebê de Ellie tenha nascido mais ou menos na mesma altura em que Mãe Malkin morreu?
— Nem por isso — respondeu a minha mãe. — E
mesmo assim. Por vezes, quando algo mau deixa o mundo, algo bom entra no seu lugar. Já vi acontecer isso antes.
Claro, percebi então de que a minha mãe nunca pensara sequer em
largar a bebê e que estivera apenas a tentar incutir algum juízo em mim, mas quando regressamos atravessando o pátio, os meus joelhos ainda
tremiam só de pensar naquilo. Foi então, quando chegamos à porta da
cozinha, que me lembrei de algo. — Mr. Gregory deu-me um pequeno livro com tudo sobre a possessão — disse eu. — Mandou-me lê-lo com
muita atenção, mas o problema é que está escrito em latim e até agora
só tive três lições. — Não é a minha língua preferida — comentou a minha mãe, parando
junto à porta. — Verei o que posso fazer, mas terá de ficar para quando
eu voltar, conto ser chamada esta noite. Entretanto, porque não pede a Alice?
Talvez ela possa ajudar.
A minha mãe acertara quando dissera que a iam chamar. Veio uma carroça buscá-la pouco depois da meia-noite, os cavalos todos suados.
Parecia que a mulher do agricultor estava passando um bocado
realmente mau e já se encontrava em trabalho de parto há mais de um dia e uma noite. Era também muito longe, quase trinta e dois
quilômetros para sul. Isso queria dizer que a minha mãe estaria ausente
dois ou mais dias. Na verdade, eu não queria pedir a Alice que me ajudasse no latim.
Sabem, tinha a certeza de que o Mago não iria concordar. Afinal, era um
livro da biblioteca dele e não lhe agradaria sequer a idéia de Alice lhe tocar. Mas, que outra alternativa tinha? Desde que viera para casa,
pensava cada vez mais em Mãe Malkin e não conseguia tirá-la da mente.
Era apenas um instinto, uma impressão, mas achava que ela estava em
algum lugar no escuro e se aproximava mais a cada noite que passava.
Então, na noite seguinte, depois de Jack e Ellie terem ido para a cama, bati suavemente à porta do quarto de Alice. Não era algo que lhe fosse
pedir durante o dia, porque ela estava sempre atarefada, e se Ellie ou
Jack escutassem, não iriam gostar. Especialmente com a aversão de Jack ao ofício de Mago.
Tive de bater duas vezes antes de Alice abrir a porta. Estava com receio
de que ela pudesse encontrar-se já a dormir, mas ainda não se despira e não consegui evitar que os meus olhos descessem até aos seus sapatos
bicudos. Havia uma vela colocada no toucador, perto do espelho.
Acabara de ser apagada — ainda fumegava.
— Posso entrar? — perguntei, levantando a minha própria vela para que
lhe iluminasse o rosto de cima. —
Queria pedir-te uma coisa. Alice fez-me sinal para que entrasse e fechou a porta — Preciso ler um
livro, mas está escrito em latim.
A minha mãe disse que me podia ajudar. — Onde está? — perguntou Alice.
— No meu bolso. É um livro pequeno. Para uma pessoa que sabe latim,
não deverá levar muito tempo a lê-lo. Alice soltou um suspiro profundo e cansado. — Já tenho muito que fazer — queixou-se. — Do que trata?
— Possessão. Mr. Gregory acha que Mãe Malkin pode voltar para me
apanhar e que se servirá da possessão. — Mostre-me — pediu, estendendo a mão. Coloquei a minha vela ao lado da dela, depois enfiei
a mão nas calças e retirei o pequeno livro. Ela folheou-o sem dizer uma
palavra. — Consegue lê-lo? — inquiri.
— Não vejo porque não. Lizzie ensinou-me e ela sabe latim de trás para
a frente. — Sempre vai me ajudar? Ela não respondeu. Aproximou antes o livro
bastante do rosto e cheirou-o ruidosamente. — Tem certeza de que é
bom? — indagou. — Foi escrito por um padre e normalmente eles não sabem lá muito.
— Mr. Gregory chamou-lhe «obra decisiva» —
disse eu —, o que significa que é o melhor livro alguma vez escrito sobre o assunto.
Ela levantou então os olhos do livro e, para surpresa minha, vi que
transbordavam de raiva. — Sei o que significa decisiva — respondeu. — Acaso acha que sou estúpida? Olha que estudei durante anos, ao passo
que você só agora começou. Lizzie tinha muitos livros, mas agora estão
todos queimados. Pegaram fogo. Balbuciei que lamentava e ela sorriu-me.
— O problema é que — disse ela, a sua voz suavizando-se de repente —
vai levar tempo a lê-lo e, neste momento, estou cansada demais.
Amanhã a sua minha mãe ainda estará fora e eu não terei mãos a medir com o trabalho. A sua cunhada prometeu ajudar, mas ela está muito
ocupada com a bebê e levarei quase todo o dia a cozinhar e limpar. Mas
se você me desse uma ajuda. . Não soube o que dizer. Ia ajudar Jack, pelo que não me sobraria muito
tempo. O problema era que os homens nunca cozinhavam nem
limpavam e não era assim apenas na nossa fazenda. Era o mesmo em todo o Condado. Os homens trabalhavam no exterior fizesse chuva ou
sol e, quando regressavam, as mulheres tinham uma refeição quente em
cima da mesa. A única ocasião em que ajudávamos na cozinha era no
Dia de Natal, altura em que lavávamos a louça como presente especial
para a minha mãe. Foi como se Alice me lesse o pensamento, porque o
seu sorriso alargou-se. — Não seria muito difícil, não é? — perguntou. — As mulheres dão comida às galinhas e ajudam na
colheita. Assim sendo, porque não haveriam os homens de ajudar na
cozinha? Basta que me ajude a lavar a louça, é tudo. E alguns tachos precisam de ser areados antes de eu começar a cozinhar.
Concordei então em fazer o que ela queria. Tinha outra escolha? Só
esperava que Jack não me apanhasse em flagrante. Nunca iria entender. Levantei-me mais cedo do que o costume e consegui arear os tachos
antes de Jack descer. A seguir, tomei o desjejum demoradamente,
comendo muito devagar, o que era invulgar em mim e foi o suficiente para suscitar um olhar desconfiado de Jack. Depois de ele ir para os
campos, lavei rapidamente os tachos e comecei a limpá-los.
Devia ter calculado o que iria acontecer, pois Jack nunca tivera muita paciência.
Entrou no pátio bradando e praguejando e me viu através da janela, o
seu rosto todo franzido de incredulidade. Depois cuspiu para o pátio e deu a volta e escancarou a porta da cozinha com um empurrão.
— Quando estiver despachado — disse sarcasticamente —, há trabalho
de homens para fazer. E pode começar por inspecionar e reparar os chiqueiros. Snout8
vem amanhã. Há que matar cinco animais e não queremos passar o
tempo todo correndo atrás dos desgarrados. Snout era a nossa alcunha para o matador dos porcos, e Jack tinha
razão. Às vezes, os porcos entravam em pânico quando Snout metia
mãos à obra e se houvesse qualquer ponto fraco na vedação, eles encontravam-no com certeza.
Jack virou-se para se ir embora e depois, subitamente, praguejou alto e
bom som. Fui até à porta ver o que era. Ele pisara sem querer um grande sapo gordo, transformando-o em polpa. Diziam que dava azar
matar uma rã ou um sapo e Jack voltou a praguejar, carregando
8 Focinho de porco. (NT)
tanto o cenho que os seus espessos sobrancelhas pretos se uniram ao
meio. Atirou o sapo morto com um pontapé para a pia de despejos e afastou-se, abanando a cabeça.
Não soube que bicho lhe mordera. Jack não costumava ser tão mal-
humorado. Fiquei onde estava e limpei rapidamente o último tacho — já que ele me
apanhara em flagrante, podia perfeitamente concluir a tarefa. Além
disso, os porcos cheiravam mal e não estava muito ansioso por efetuar a tarefa que Jack me destinara.
— Não se esqueça do livro — recordei a Alice quando abri a porta para
sair, mas ela limitou-se a sorrir-me de forma estranha.
Só consegui voltar a falar com Alice ao final daquele dia, depois de Jack
e Ellie se terem recolhido. Tinha pensado ir fazer-lhe nova visita ao
quarto, mas ela desceu antes à cozinha, trazendo o livro e sentando-se na cadeira de balanço da minha mãe, perto das brasas da lareira.
— Tratou muito bem aqueles tachos. Deve estar desesperado por saber
o que está aqui — comentou Alice, batendo na lombada do livro. — Se ela voltar, quero estar preparado. Preciso saber o que posso fazer.
O Mago disse que provavelmente ela estará latente. Sabe o que é?
Os olhos de Alice arregalaram-se e anuiu. — Portanto, tenho de estar preparado. Se houver algo nesse livro que
possa ajudar, preciso saber.
— Este padre não é como os outros — comentou Alice, estendendo-me o livro. — Percebe do assunto, sim.
Lizzie gostaria mais disto do que de bolos à meia-noite.
Enfiei o livro nas calças e puxei um escabelo para o outro lado da lareira, de frente para o que restava da fogueira. Depois, comecei a interrogar
Alice. De início, foi uma tarefa muito difícil. Ela não adiantou muito e o
que consegui arrancar-lhe fez-me sentir muito pior. Comecei pelo estranho título do livro: Os Malditos, os Desequilibrados e
os Desesperados. O que significava? Porquê dar semelhante nome ao
livro? — A primeira palavra não passa de conversa de padre — disse Alice,
descaindo os cantos da boca em re-provação. — Eles aplicam essa
palavra às pessoas que fazem as coisas de maneira diferente. As pessoas como a sua mãe, que não vão à igreja nem dizem as preces
certas.
As pessoas que não são como eles, às pessoas que são canhotas — rematou, sorrindo-me com ar entendido.
— A segunda palavra é mais útil — continuou Alice. — Um corpo
possuído recentemente tem pouco equilíbrio. Está sempre a cair. Leva algum tempo, sabe, até o possessor que lá se instalou ficar
confortavelmente adaptado ao seu novo corpo. É o mesmo que tentar
calçar um par de sapatos novos. Deixa-o também mal-humorado.
Uma pessoa calma e plácida pode atacar sem aviso. Logo, é outra maneira de o distinguir.
— Depois, quanto à terceira palavra, essa é fácil.
Uma bruxa que já teve um corpo humano saudável está desesperada por arranjar outro. Então, mal o consegue, fica desesperada por o conservar.
Não vai desistir dele sem lutar. Fará tudo. Seja o que for. Por isso os
possessos são tão perigosos. — Se ela voltasse, o que seria? — perguntei. — Se ela estivesse latente,
quem tentaria possuir? Seria eu? Tentaria fazer-me mal dessa maneira?
— O faria, se pudesse — disse Alice. — No entanto, não é fácil, sendo
você o que é. Também poderia me usar, mas não vou lhe dar a
oportunidade. Não, ela escolherá os mais fracos. Os mais fáceis.
— A bebê de Ellie? — Não, essa não lhe serviria de nada. Teria de esperar que crescesse.
Mãe Malkin nunca teve muita paciência e estar presa naquele poço na
propriedade do Velho Gregory só a terá tornado pior. Se for a você que ela queira fazer mal, primeiro arranjará um corpo forte e saudável.
— Nesse caso, Ellie? Ela escolherá Ellie!
— Mas, afinal, o que você sabe? — insurgiu-se Alice, abanando a cabeça, incrédula. — Ellie é forte. Seria difícil. Não, os homens são muito mais
fáceis. Especialmente um homem que pensa sempre com o coração.
Alguém capaz de se encolerizar sem sequer pensar. — Jack?
— Será com certeza Jack. Pense o que seria ter o grande e forte Jack
atrás de você. Mas o livro está certo numa coisa. Um corpo recentemente possuído é mais fácil de dominar. Está desesperado, mas
igualmente desequilibrado. Saquei do meu livro de notas e apontei tudo
o que me pareceu importante. Alice não falava tão rapidamente quanto o Mago, mas ao fim de algum tempo entrou no seu ritmo normal e não
tardou que me doesse o pulso.
Quando chegou aos assuntos realmente importantes — como lidar com os possessos — eram muitos os sinais de que a alma
original ainda estava aprisionada dentro do corpo. Por isso, se se ferisse
o corpo, iria ferir também aquela alma inocente. Portanto, destruir o corpo para se livrar do possessor era tão mau quanto assassinar.
Na verdade, aquela seção do livro foi decepcionan-te: não parecia
possível fazer muito. Sendo padre, o autor achava que um exorcismo, usando velas e água benta, era a melhor maneira de arrancar o
possessor e libertar a vítima, mas admitia que nem todos os padres o
conseguiam fazer e realmente bem só muito poucos. Parecia-me que alguns dos padres que o conseguiam fazer seriam, muito provavelmente,
sétimos filhos de sétimos filhos e essa era realmente a questão
importante.
Depois de tudo aquilo, Alice disse que se sentia cansada e foi-se deitar. Eu também estava sonolento. Esquecera-me de quão árduo podia ser o
trabalho na fazenda e estava dolorido da cabeça aos pés. Uma vez no
meu quarto, fiquei grato por cair na cama, ansioso por adormecer. Mas, lá em baixo no pátio, os cães começaram a ladrar. Pensando que algo os
deveria ter alarmado, abri a janela e olhei para a Colina do Carrasco,
enchendo os pulmões do ar noturno para me acalmar e aclarar as idéias. Aos poucos, os cães foram-se calando e acabaram por parar de ladrar
definitivamente.
Quando ia a fechar a janela, a Lua saiu de trás de uma nuvem. O luar
consegue mostrar a verdade das coisas
— segundo apurara por Alice — tal como a minha sombra grande dissera
a Lizzie dos Ossos que havia algo de diferente em mim. A Lua nem sequer estava cheia, era apenas um quarto minguante diminuindo para
um crescente, mas mostrou-me algo novo, algo que não podia ser visto
na sua ausência. À sua luz, vi um tênue rasto prateado que descia a Colina do Carrasco. Passava por debaixo da vedação e estendia-se pela
pastagem norte, depois atravessava o campo de feno a leste até
desaparecer de vista algures por detrás do celeiro. Pensei então em Mãe Malkin. Vira o rasto prateado na noite em que a atirara ao rio. Eis agora
aqui outro rastro que parecia quase igual, e encontrara-me.
Com o coração a bater com força no meu peito, desci as escadas na ponta dos pés e esgueirei-me pela porta de trás, fechando-a
cuidadosamente atrás de mim. A Lua escondera-se atrás de uma nuvem,
por isso, quando dei a volta pela parte de trás do celeiro, o rasto prateado desaparecera, mas continuava a haver nítidos indícios de que
algo descera a colina em direção aos anexos da nossa fazenda. A erva
estava espalmada, como se um caracol gigante tivesse deslizado sobre ela.
Esperei que a Lua reaparecesse para poder verificar a zona lajeada por
detrás do celeiro. Alguns momentos depois, a nuvem afastou-se e vi algo que me deixou realmente assustado. O rastro prateado brilhava ao luar
e a direção que tomara era inequívoca. Evitava o chiqueiro e
serpenteava pelo outro lado do celeiro num arco amplo até alcançar o extremo mais distante do pátio. Depois, avançava na direção da casa,
terminando mesmo por debaixo da janela de Alice, onde o velho alçapão
de madeira cobria as escadas para a cave. Algumas gerações antes, o agricultor que vivera aqui costumava destilar
cerveja que fornecia às fazendas locais e até a algumas estalagens. Em
virtude disso, as gentes locais chamavam à nossa propriedade a «Fazenda do Cervejeiro», muito embora nós lhe chamássemos apenas
«lar». As escadas permitiam a entrada e saída dos barris de cerveja sem
ser necessário atravessar a casa.
O alçapão tapava ainda as escadas, um grande cadeado ferrugento a manter as duas metades no lugar, mas havia um estreito intervalo entre
elas, no lugar onde as extremidades da madeira não uniam bem. O
intervalo não seria maior do que o meu polegar, mas o rasto prateado terminava exatamente ali e sabia que o que quer que deslizara até este
ponto se conseguira introduzir por aquele minúsculo intervalo. Mãe
Malkin voltara e estava latente, o seu corpo suficientemente mole e flexível para se esgueirar pelos intervalos mais estreitos.
Alcançara já a cave.
Presentemente não nos servíamos da cave, mas lembrava-me bastante
bem dela. O chão era de terra batida e estava cheio de barris velhos. As
paredes da casa eram espessas e ocas, o que significava que em breve
ela poderia estar em qualquer lugar dentro das paredes, em qualquer lugar na casa.
Olhei para cima e vi uma chama de vela tremular na janela do quarto de
Alice. Ainda estava de pé. Entrei em casa e, um momento depois, encontrava-me à porta do seu quarto. O truque era bater apenas com
força suficiente para Alice saber que era eu, sem acordar todos os
demais. Mas quando aproximei os nós dos dedos da porta, preparado para bater,
ouvi um som vindo de dentro do quarto.
Ouvi a voz de Alice. Parecia estar a conversar com alguém. Não gostei nada daquilo, mas bati mesmo assim.
Esperei um momento e, como Alice não abrisse a porta, encostei-lhe o
ouvido. Quem poderia estar conversando com ela no quarto? Sabia que Eli e Jack estavam já na cama e, fosse como fosse, só conseguia ouvir
uma voz e esta era a de Alice. No entanto, parecia diferente. Fez-me
lembrar algo que ouvira antes. Quando repentinamente me lembrei do que era, afastei a orelha da madeira como se me tivesse queimado e
recuei uma passada da porta.
A voz dela subia e descia, tal como a de Lizzie dos Ossos quando estivera debruçada sobre o poço, segurando um pequeno osso branco de
polegar em cada mão.
Antes mesmo de perceber o que fazia, agarrei no puxador, rodei-o e escancarei a porta. Alice, abrindo e fechando a boca, entoava diante do
espelho. Estava sentada numa cadeira de espaldar, a olhar fixamente
pela parte de cima de uma chama de vela para o espelho do toucador. Respirei fundo, depois aproximei-me sorrateiramente para ver melhor.
Como estávamos na Primavera ali no Condado, depois de escurecer o
quarto ficava um pouco frio; não obstante, havia grandes gotas de suor na testa de Alice.
Enquanto observava, duas delas juntaram-se e desceram-lhe para o olho
esquerdo e depois continuaram para a face, como uma lágrima. Ela
estava a olhar para o espelho, de olhos muito arregalados, mas quando chamei o nome dela, nem sequer pestanejou.
Coloquei-me por detrás da cadeira e captei o reflexo do castiçal de latão
no espelho mas, para meu horror, o rosto no espelho por cima da chama não pertencia a Alice.
Era um rosto velho e enrugado, com cabelo crespo grisalho e branco a
cair como cortinas sobre cada face descarnada. Era o rosto de algo que passara muito tempo em solo úmido.
Os olhos moveram-se então, deslizando para a esquerda ao encontro
dos meus. Eram pontos vermelhos de fogo. Apesar de se ter estampado
um sorriso no rosto, os olhos ardiam de raiva e ódio.
Não havia dúvida. Era o rosto de Mãe Malkin.
O que se passava? Alice fora já possuída? Ou estaria de alguma forma a usar o espelho para conversar com Mãe Malkin?
Sem pensar, peguei no castiçal e atirei a sua base pesada ao espelho,
que explodiu com grande estrondo, seguido de uma chuva cintilante e tilintante de vidro a precipitar-se. Quando o espelho se estilhaçou, Alice
soltou um grito sonoro e estridente.
Foi o pior grito que se possa imaginar. Estava cheio de tormento e lembrou-me o guincho que um porco dá às vezes, quando o estão a
matar. Mas não senti pena de Alice, muito embora agora ela chorasse e
puxasse os cabelos, os olhos arregalados e cheios de terror. Percebi que a casa se enchera de repente de outros sons. O primeiro foi
o choro da bebê de Ellie; o segundo foi a voz cava de um homem a
praguejar e blasfemar; o terceiro, botas grandes descendo as escadas ruidosamente.
Jack irrompeu pelo quarto, furioso. Olhou para o espelho partido, depois
avançou para mim e levantou o punho. Acho que deve ter julgado que fora tudo culpa minha, porque Alice continuava a gritar, eu segurava o
castiçal e havia pequenos golpes nos meus dedos provocados pelos
estilhaços de vidro. Ellie entrou no quarto mesmo a tempo. Trazia a bebe aninhada no braço
direito e esta chorava ainda a plenos pulmões, mas com a mão livre
agarrou Jack e puxou-o até ele abrir o punho e baixar o braço. — Não, Jack — suplicou. — De que servirá isso?
— Não acredito que ele o tenha feito — bradou Jack, fuzilando-me com o
olhar. — Sabe quantos anos tinha aquele espelho? O que pensa que o pai vai dizer agora? Como se irá sentir quando vir isto?
Não admira que Jack estivesse furioso. Já fora mau acordar toda a
gente, mas aquela mesinha de toucador pertencera à mãe do meu pai. Agora que ele me dera a caixa de mechas, era a última peça que
pertencera em tempos à sua família.
Jack deu dois passos na minha direção. A vela não se apagara quando
eu partira o espelho, mas começou a tremular quando ele gritou
novamente. — Porque fez isso? O que diabo te deu? — bradou.
O que podia eu dizer? Limitei-me a encolher os ombros, depois olhei
para as botas. — E, afinal, o que está fazendo neste quarto? — insistiu Jack. Não respondi. Tudo o que eu dissesse só iria agravar a
situação.
— A partir de agora, vê se não sai do seu quarto! — berrou Jack. — A minha vontade era pô-los aos dois já daqui para
fora.
Olhei para Alice, ainda sentada na cadeira, a cabeça nas mãos. Parará de
chorar, mas todo o seu corpo tremia.
Quando olhei para trás, a raiva de Jack dera lugar ao alarme. Olhava
fixamente para Ellie, que parecera subitamente vacilar. Antes que tivesse tempo de se mover, ela desequilibrou-se e bateu na parede. Por
uns momentos, Jack esqueceu-se do espelho enquanto acudia a Ellie.
— Não sei o que me deu — disse ela, toda agitada. — De repente senti a cabeça vazia. Oh! Jack! Jack! Quase deixei cair a
bebê!
— Não deixou e ela está bem. Não se preocupe. Pronto, eu agora pego-lhe. .
Assim que teve a bebê nos braços, Jack acalmou.
— Para começar, vai limpar toda esta porcaria — ordenou-me. — Falaremos de manhã.
Ellie atravessou o quarto até à cama e apoiou a mão no ombro de Alice.
— Alice, vem comigo até lá abaixo enquanto Tom limpa o quarto — sugeriu. — Vou preparar uma bebida para nós.
Momentos depois, tinham descido todos à cozinha, deixando-me a
apanhar os cacos de vidro. Passados cerca de dez minutos, fui também até lá buscar uma vassoura e uma vasilha de metal. Estavam sentados à
volta da mesa da cozinha a beber chá de ervas, a bebê adormecida nos
braços de Ellie. Não falavam e ninguém me ofereceu uma bebida. Ninguém olhou sequer na minha direção.
Voltei para cima e limpei tudo o melhor que pude, depois regressei ao
meu quarto. Sentei-me na cama e olhei pela janela, sentindo-me assustado e sozinho. Estaria Alice já possuída? Afinal, fora o rosto de
Mãe Malkin que me olhara do espelho. Se sim, então a bebê e todos os
demais corriam verdadeiro perigo. Ela não tentara fazer nada até ali, mas Alice era relativamente pequena
comparada com Jack, por isso Mãe Malkin teria de ser astuta. Esperaria
que fossem todos dormir. Eu seria o alvo principal. Ou talvez a bebê. O sangue de uma criança faria aumentar a sua força.
Ou eu partira o espelho mesmo a tempo? Teria eu quebrado o feitiço no
preciso instante em que Mãe Malkin se preparava para possuir Alice?
Outra possibilidade era que Alice estivesse apenas a falar com a bruxa, servindo-se do espelho. Mesmo assim, já era suficientemente mau.
Significava que eu tinha dois inimigos com que me preocupar.
Precisava fazer algo. Mas o quê? Enquanto estava ali sentado, com a cabeça a rodar, tentando refletir sobre o assunto, ouvi uma pancada na
porta do meu quarto. Pensei que fosse Alice, de maneira que não fui lá.
Depois uma voz chamou baixinho por mim. Era Ellie, por isso abri a porta.
— Podemos falar aí dentro? — perguntou. — Não quero correr o risco de
acordar a bebê. Acabei de conseguir adormecê-la.
Anuí, Ellie entrou e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.
— Está bem? — indagou, parecendo preocupada.
Acenei com a cabeça, infeliz, mas não a consegui encarar. — Gostaria de me falar do sucedido? — perguntou. — É um rapaz sensato, Tom, e deve
ter tido um motivo muito forte para fazer o que fez. Talvez se sentisse
melhor conversando. Como podia contar-lhe a verdade? Quer dizer, Ellie adorava a bebê, por
conseguinte, como podia dizer-lhe que havia uma bruxa em algum lugar
à solta na casa que gostava do sangue de crianças? Percebi então que, por causa da bebê, ia ter de lhe contar alguma coisa. Ela precisava saber
até que ponto a situação era grave. Ela tinha de sair dali.
— Há uma coisa, Ellie. Mas não sei como lhe contar. Ellie sorriu.
— O princípio seria um ponto tão bom como qualquer outro. .
— Algo me seguiu até aqui — disse eu, olhando Ellie diretamente nos olhos. — Algo pérfido que me quer fazer mal. Foi por isso que parti o
espelho. Alice estava a falar com aquilo e. .
Os olhos de Ellie chisparam subitamente de raiva. — Conte isso a Jack e pode ter a certeza de que vai sentir o seu punho!
Quer dizer que trouxe algo para cá, quando eu tenho uma bebê recém-
nascida? Como pode? Como pode fazer isso?
— Eu não sabia que isto ia acontecer — protestei.
— Só o descobri esta noite. Por isso estou te contando agora. Precisa deixar a casa e pôr a bebê a salvo. Vá agora, antes que seja tarde
demais.
— O quê? Neste momento? No meio da noite? Anuí.
Ellie abanou a cabeça firmemente.
— Jack se recusaria a partir. Não aceitaria ser expulso da sua própria casa a meio da noite. Por nada deste mundo. Não, vou esperar. Vou ficar
aqui e rezar as minhas preces. Aprendi isso com a minha mãe. Ela disse
que se rezarmos realmente com intensidade, nada do escuro nos poderá
fazer mal. E eu acredito realmente nisso. E, depois, podia estar
enganado, Tom — acrescentou. — É jovem e ainda está a começar a aprender o ofício, portanto, pode não
ser tão mau quanto julgas. E a sua mãe deve voltar a qualquer
momento. Se não esta noite, com certeza amanhã à noite. Ela saberá o que fazer. Entretanto, mantenha-se afastado do quarto daquela menina.
Há algo que não está certo nela.
Quando abri a boca para falar, tencionando fazer mais uma tentativa para a persuadir a ir-se embora, surgiu repentinamente uma expressão
de alarme no rosto de Ellie e ela vacilou e apoiou a mão na parede para
evitar cair.
— Vê só o que arranjou. Sinto-me fraca só de pensar no que se passa
aqui.
Sentou-se na minha cama e apoiou a cabeça nas mãos por alguns momentos, enquanto eu me limitava a olhá-la, infelicíssimo, sem saber o
que fazer ou dizer.
Ao cabo de alguns instantes, ela voltou a pôr-se em pé. — Precisamos falar com a sua mãe assim que ela voltar, mas não se
esqueça: até lá, mantenha-se afastado de Alice. Promete?
Prometi e, com um sorriso triste, Ellie voltou para o seu quarto. Só depois de ela sair é que se fez luz no meu espírito. .
Era a segunda vez que Ellie cambaleava e dissera que sentia a cabeça
vazia. Uma vez ainda podia ser acaso. Apenas cansaço. Mas duas! Ela estava com tonturas. Ellie não tinha
equilíbrio e isso era o primeiro sinal de possessão! Comecei a andar de
um lado para o outro. Só podia estar enganado. Logo Ellie! Não podia ser Ellie. Talvez ela estivesse apenas cansada. Afinal, a bebê quase não a
deixava dormir. Mas Ellie era forte e saudável. Fora criada numa fazenda
e não era pessoa para se deixar abater pelas circunstâncias. E toda aquela conversa de rezar. . Devia tê-lo feito só para não provocar
desconfianças.
Mas Alice não me dissera que seria difícil Elie ser possuída? Referira também que provavelmente seria Jack, mas ele não evidenciara
qualquer sinal de desequilíbrio.
Mesmo assim, era inegável que ele estava a ficar mesmo muito mal-humorado e agressivo também! Se Ellie não o houvesse impedido, teria
me arrancado a cabeça dos ombros.
Mas, é claro, se Alice estava de conluio com Mãe Malkin, tudo o que ela dissera poderia destinar-se a despistar-me. Nem sequer podia confiar
nas informações a respeito do livro do Mago! Ela podia ter-me contado
mentiras o tempo todo! Eu não sabia latim, por isso era impossível verificar o que ela dissera.
Percebi que qualquer das hipóteses era possível.
Dar-se-ia um ataque a qualquer momento e eu não tinha como saber de
quem partiria!
Com sorte, a minha mãe regressaria antes da aurora. Ela saberia o que fazer. Mas a aurora ainda vinha muito longe, pelo que não podia
permitir-me dormir. Tinha de ficar de vigia a noite inteira. Se Jack ou
Ellie estivessem possessos, não haveria nada que eu pudesse fazer a esse respeito. Não podia entrar no quarto deles, por isso só me restava
ficar de olho em Alice.
Fui lá para fora e sentei-me nas escadas entre a porta do quarto de Jack e Ellie e a do meu. Dali conseguia ver a porta do quarto de Alice, mais
abaixo. Se ela saísse do quarto, pelo menos poderia dar o alerta.
Decidi que se a minha mãe não voltasse, me iria embora ao raiar do dia;
para além dela, só havia mais uma hipótese de ajuda. .
Foi uma longa noite e, a princípio, sobressaltava-me ao menor som —
um rangido nas escadas ou um tênue movimento das tábuas num dos quartos. Mas, aos poucos, acalmei-me. A casa era antiga e eu estava
acostumado a ruídos daqueles — os ruídos que se espera ouvir quando
ela sossega e arrefece durante a noite. Todavia, com o aproximar da aurora, principiei a ficar novamente inquieto.
Comecei a ouvir ruídos de raspadelas tênues vindos do interior das
paredes. Pareciam unhas a arranhar a pedra e não era sempre no mesmo lugar. Por vezes, era mais ao alto das escadas, do lado
esquerdo; outras em baixo, mais perto do quarto de Alice. Eram tão
leves que tinha dificuldade em dizer se estaria ou não a imaginá-los. Mas comecei a sentir frio, muito frio, e isso avisou-me de que o perigo
rondava.
Depois os cães começaram a ladrar e, passados alguns minutos, os outros animais ficaram também enlouquecidos, os porcos peludos a
guincharem tão alto que se pensaria que o matador já chegara. Como se
não bastasse, a barulheira fez com que a bebê recomeçasse a chorar. Sentia agora tanto frio que todo o meu corpo era sacudido e tremia.
Tinha de fazer alguma coisa.
Na margem do rio, quando enfrentara a bruxa, as minhas mãos haviam sabido o que fazer. Desta vez, sucedeu que as minhas pernas foram
mais rápidas do que o pensamento. Levantei-me e corri. Assustado e
com o co-ração a bater descompassado, desci apressadamente as escadas, fazendo ainda mais barulho. Só pensava em ir lá para fora e
afastar-me da bruxa. Nada mais importava.
Toda a minha coragem se fora.
CAPÍTULO 13
OS PORCOS PELUDOS
Saí de casa a correr e dirigi-me para norte, direito à Colina do Carrasco,
ainda em pânico, só abrandando quando cheguei à pastagem norte.
Precisava de ajuda, e rapidamente. Ia voltar a Chipenden. Só o Mago me poderia ajudar naquele momento.
Mal cheguei à vedação limítrofe, os animais calaram-se e virei-me e olhei
para trás, na direção da fazenda.
Vi, para lá dela, a estrada de terra batida serpenteando ao longe, como
uma mancha escura na manta de retalhos dos campos cinzentos.
Foi então que avistei uma luz na estrada. Uma carroça avançava na direção da fazenda. Seria a minha mãe?
Por um momento, a minha esperança renasceu. Mas quando a carroça
se aproximou do portão da fazenda, ouvi uma tosse ruidosa, o som de mucosidades a serem reunidas na garganta, e depois alguém escarrou.
Era apenas Snout, o matador de porcos. Tinha de fazer o serviço a cinco
dos nossos maiores porcos peludos; uma vez mortos, era preciso raspar muito cada um, por isso queria começar cedo.
Ele nunca me fizera mal, mas eu ficava satisfeito quando terminava o
serviço e se ia embora. A minha mãe também nunca gostara dele. Detestava o hábito de estar sempre a reunir as mucosidades espessas e
depois lançá-las para o pátio.
Era um homem grande, mais alto ainda do que Jack, com músculos salientes nos antebraços. Os músculos eram necessários para o trabalho
que efetuava. Alguns porcos pesavam mais do que um homem e
debatiam-se com uns doidos para se esquivarem à faca. No entanto, havia uma parte de Snout que fora descurada. As suas camisas eram
sempre curtas, com os dois botões de baixo abertos, e a barriga gorda,
branca e peluda pendia sobre o avental de couro castanho que usava para evitar que as calças ficassem ensopadas de sangue. Não deveria ter
muito mais de trinta anos, mas o seu cabelo era ralo e escorrido.
Desapontado por não ser a minha mãe, vi-o retirar a lanterna da carroça e começar a descarregar as ferramentas. Efetuava os preparativos para
a tarefa na parte da frente do celeiro, mesmo ao lado da pocilga.
Eu já perdera tempo suficiente e começara a escalar a vedação para a mata quando, pelo canto do olho, avistei um movimento mais abaixo na
vertente. Uma sombra avançava, célere, ao meu encontro, na direção
dos degraus no outro extremo da pastagem norte. Era Alice. Não queria que ela me seguisse mas preferia enfrentá-la agora
do que mais tarde, por isso sentei-me na vedação limítrofe e esperei que
ela me alcanças-se. Não tive de esperar muito porque ela subia a colina
correndo.
Não se aproximou demais, ficando a cerca de nove ou dez passos, de mãos no quadril, tentando recuperar o fôlego. Mirei-a de alto a baixo,
vendo de novo o vestido preto e os sapatos bicudos. Devia tê-la
acordado quando descera as escadas correndo; para me alcançar tão depressa, certamente se vestira rapidamente, seguindo-me de imediato.
— Não quero falar com você — gritei-lhe, o nervosismo fazendo com que
a voz me tremesse e saísse mais esganiçada do que o costume. — Também não perca tempo seguindo-me. Teve a sua oportunidade, por
isso, de agora em diante é melhor que se mantenha bem longe de
Chipenden.
— Era bom que falasse comigo se quer evitar problemas — sugeriu Alice.
— Em breve será tarde demais, por isso há uma coisa que convém
saber. Mãe Malkin já está aqui. — Eu sei — respondi. — Eu a vi.
— Não apenas no espelho, porém. Não é só isso.
Ela voltou, está em algum lugar dentro da casa — disse Alice, apontando para o fundo da colina.
— Já te disse que o sei — respondi-lhe, furioso. —
O luar mostrou-me o rastro que ela deixou, e quando fui lá acima para te avisar, o que foi que descobri? Você estava já a falar com ela e é
natural até não ser a primeira vez.
Lembrei-me da primeira noite em que fora ao quarto de Alice e lhe dera o livro. Quando entrara, a vela ainda fumegava diante do espelho.
— Provavelmente trouxe-a até aqui — acusei. —
Disse-lhe onde eu estava. — Isso não é verdade — retrucou Alice, uma raiva na sua voz
equiparável à minha. Deu cerca de três passos na minha direção. — Eu
cheirei-a, sim, e servi-me do espelho para ver onde estava. Não sabia que ela estava tão próximo, está bem? Ela era forte demais para mim,
por isso não consegui me afastar. Ainda bem que entrou naquele
momento. A minha sorte foi ter partido o espelho. Queria acreditar em Alice, mas como podia confiar nela? Quando
avançou mais uns passos, virei-me parcial-mente, pronto para saltar
para a erva do outro lado da vedação. — Vou a Chipenden buscar Mr. Gregory — disse-lhe. — Ele saberá o que fazer.
— Não há tempo para isso — respondeu Alice. —
Quando voltar será tarde demais. Há que pensar na bebê. Mãe Malkin quer fazer-te mal, mas estará sedenta de sangue humano.
Ela prefere o sangue jovem. É esse que a torna mais forte.
O medo fizera-me esquecer a bebê de Ellie. Alice tinha razão. A bruxa não iria querer possuí-la, mas pretenderia, sem dúvida, o seu sangue.
Quando eu chegasse com o Mago seria tarde demais.
— Mas o que posso fazer? — perguntei. — Que hipóteses tenho contra a
Mãe Malkin?
Alice encolheu os ombros e os cantos da sua boca descaíram. — Isso é assunto seu. Certamente o Velho Gregory ensinou-lhe algo que possa
ser útil, não? Se não o escreveu no seu livro de notas, então, talvez
esteja dentro da sua cabeça. Só precisa de se lembrar, é tudo. — Ele não me falou tanto assim sobre as bruxas —
referi, sentindo-me subitamente aborrecido com o Mago.
A maior parte da minha preparação fora sobre demônios, com alguns bocadinhos sobre imagens fantasmagóricas e fantasmas... quando todos
os meus problemas tinham sido causados por bruxas.
Continuava a não confiar em Alice, mas agora, depois do que ela
acabara de dizer, não podia ir a Chipenden. Nunca conseguiria trazer o
Mago até aqui a tempo. O aviso dela sobre a bebê de Ellie parecera bem-
intencionado, mas, caso Alice estivesse possessa ou do lado de Mãe Malkin, aquelas eram as palavras precisas que não me deixariam outra
alternativa senão descer a colina em direção à fazenda. Aquelas palavras
impediam-me precisamente de ir avisar o Mago, ao mesmo tempo que me colocavam à mercê da bruxa para ela por as mãos em mim quando
lhe conviesse.
No percurso colina abaixo, mantive a distância de Alice, mas ela ia a meu lado quando entramos no pátio e o atravessamos até perto da parte
da frente do celeiro.
Snout estava ali afiando as facas; ergueu o olhar quando me viu e baixou-me a cabeça. Correspondi à sua saudação. Depois de ele me
cumprimentar, limitou-se a fitar Alice sem falar, mas olhou-a de alto a
baixo por duas vezes. Depois, antes mesmo de chegarmos à porta da cozinha, assobiou longa e sonoramente, em aprovação.
Alice fingiu que não o ouvira. Antes de tratar do desjejum tinha outra
tarefa a cumprir: foi direta para a cozinha e começou a preparar o frango que iríamos comer à refeição do meio do dia. Pendia de um
gancho junto à porta, o pescoço e as entranhas já retirados na noite da
véspera. Começou por limpá-lo com água e sal, os olhos muito concentrados no que estava a fazer, para que os dedos atarefados não
falhassem o mais ínfimo pedacinho.
Foi então, enquanto a observava, que me lembrei finalmente de algo que talvez pudesse funcionar num corpo possuído.
Sal e ferro!
Não tinha bem certeza, mas valia a pena tentar. Era o que o Mago usava para prender um demônio num poço e podia ser que desse resultado no
caso de uma bruxa. Se o atirasse a alguém possesso, talvez conseguisse
expulsar Mãe Malkin. Não confiava em Alice e não queria que ela me visse servir-me do sal,
por conseguinte, tive de esperar até ela terminar de limpar o frango e
sair da cozinha. Feito isso, e antes de iniciar as minhas próprias tarefas,
efetuei uma visita à oficina do meu pai.
Não levei muito tempo a encontrar aquilo de que precisava. Escolhi, de entre a enorme coleção de limas na prateleira por cima do banco de
carpinteiro, a maior e mais dentada delas todas. Era aquela a que
chamavam «bastarda» e que, quando era mais novo, me proporcionava a única
oportunidade de alguma vez usar tal palavra sem levar um sopapo na
orelha. Comecei então a limar a extremidade de um balde velho de ferro, o ruído bulindo-me com os nervos. Mas não tardou que um ruído
ainda maior cortasse o ar.
Foi o grito de um porco moribundo, o primeiro de cinco.
Sabia que Mãe Malkin podia aparecer em qualquer lado, e se ela não
tivesse já possuído alguém, a qualquer instante escolheria uma vítima.
Fiz um esforço para me concentrar e ficar permanentemente atento. Pelo menos agora tinha algo com que me defender.
Jack queria que eu ajudasse Snout, mas eu tinha sempre uma desculpa
pronta, dizendo que estava a acabar isto ou que ia começar a fazer aquilo. Se me pusesse a ajudar Snout não poderia vigiar os demais.
Como eu era apenas o irmão de visita por alguns dias, e não alguém
contratado, Jack não pôde insistir, mas andou lá perto. No fim, depois do almoço, de semblante muito carregado, lá se viu na
obrigação de ajudar Snout, que era exatamente o que eu pretendia. Se
ele estivesse a trabalhar defronte do celeiro, eu sempre o podia vigiar à distância. Usei constantemente de pretextos para ir ver Alice e Ellie
também. Qualquer delas poderia estar possessa, mas, se fosse Ellie, não
haveria grandes hipóteses de salvar a bebê: passava a maior parte do tempo ou nos braços da mãe ou a dormir no berço à sua beira.
Tinha o sal e o ferro, mas não sabia se seriam suficientes. Uma corrente
de prata teria sido muito mais eficaz. Mesmo que curta, sempre seria melhor do que nenhuma. Quando eu era pequeno, escutara uma vez o
meu pai e a minha mãe a falarem de um fio de prata que lhe pertencera.
Eu nunca a vira usar tal coisa, mas podia encontrar-se ainda algures na casa — talvez na arrecadação mesmo por debaixo do sótão, que a minha
mãe mantinha sempre fechada.
Mas o quarto deles não estava trancado. Em circunstâncias normais, nunca entraria ali sem autorização, mas estava desesperado. Procurei no
guarda-jóias da minha mãe. Havia lá pregadores e anéis, mas nenhum
fio de prata. Procurei em todo o quarto. Senti-me realmente culpado de andar a remexer nas gavetas, mas não deixei de o fazer. Pensei que
pudesse haver uma chave da arrecadação, mas não a encontrei.
Enquanto andava à procura, ouvi as botas de Jack a subir as escadas. Fiquei muito quieto, mal ousando respirar, mas ele foi apenas ao seu
quarto por alguns momentos e desceu logo em seguida. Concluí então a
minha busca e, não tendo encontrado nada, desci para vir ver mais uma
vez como estavam todos.
Naquele dia, o ar estivera silencioso e calmo, mas, quando passei pelo celeiro, começou a levantar-se uma brisa. O Sol principiava a baixar no
horizonte, iluminando tudo com um brilho quente e vermelho e
prometendo bom tempo para o dia seguinte. Havia agora na frente do celeiro três porcos mortos pendendo, de cabeça para baixo, de ganchos
grandes. Eram cor-de-rosa e tinham sido acabados de raspar, o último
ainda a escorrer sangue para um balde, e Snout encontrava-se ajoelhado, abraçado com o quarto, que estava lhe dando uma
trabalheira — era difícil dizer qual deles grunhia mais alto.
Jack, a parte da frente da sua camisa encharcada de sangue, deitou-me
um olhar fuzilante quando passei, mas limitei-me a sorrir e baixar a
cabeça. Prosseguiam apenas a tarefa em mãos e faltava ainda um bom
bocado, pelo que estariam ocupados muito depois de o Sol se pôr. Até ao momento, não houvera o menor sinal de desequilíbrio, nem sequer
um indício de possessão.
Uma hora depois era já escuro. Jack e Snout trabalhavam ainda à luz da fogueira que projetava as suas sombras no pátio.
O horror começou quando fui ao barracão na parte de trás do celeiro a
fim de trazer uma saca de batata de semente do armazém. . Ouvi um grito. Foi um grito cheio de terror. O grito de uma mulher que
enfrenta a pior coisa que lhe poderia acontecer.
Larguei a saca de batatas e corri para a parte da frente do celeiro. Ali, estaquei de repente, mal podendo acreditar no que via.
Ellie encontrava-se a cerca de vinte passos, os dois braços estendidos,
gritando a bom som, como se a estivessem a torturar. A seus pés estava Jack, com o rosto cheio de sangue. Pensei que El ie gritasse por causa
de Jack — mas não, era por causa de Snout.
Estava virado para mim, como se aguardasse a minha chegada. Agarrava na mão esquerda a faca afiada preferida, aquela comprida que
usava sempre para degolar os porcos. Fiquei estático, horrorizado,
porque sabia o que ouvira no grito de Ellie. Ele segurava a bebê aninhada no braço direito. Havia sangue espesso de
porco nas suas botas e escorria ainda mais do avental para elas.
Aproximou mais a faca da bebê. — Venha cá, rapaz — gritou na minha direção. —
Venha cá. — Depois soltou uma gargalhada.
A boca dele abria e fechava ao falar, mas não era a voz dele que saía. Era a de Mãe Malkin. Tão pouco era a gargalhada cava e sonora dele.
Era a risada da bruxa.
Avancei lentamente um passo na direção de Snout. Depois outro. Queria aproximar-me dele. Queria salvar a bebê de Ellie.
Tentei ser mais rápido, mas não consegui.
Parecia que os meus pés pesavam como chumbo. Era o mesmo que
tentar correr desesperadamente num pesadelo. As minhas pernas
moviam-se como se não me pertencessem. Percebi, de repente, de algo que me provocou cala-frios. Eu não estava a
avançar para Snout porque queria.
Mas porque Mãe Malkin me chamava. Ela estava a arrastar-me para ele ao ritmo que pretendia, aproximando-me da faca dele a postos. Eu não
ia salvar, mas tão-somente morrer. Encontrava-me sob uma espécie de
feitiço. Uma fórmula de compulsão. Sentira algo semelhante à beira do rio, só que nessa altura a minha mão
e o meu braço esquerdos tinham agido por si próprios para atirar Mãe
Malkin à água. Agora os meus membros estavam tão incapazes como a
minha mente.
Aproximava-me mais de Snout. Cada vez mais perto da sua faca a
postos. Os olhos dele eram os de Mãe Malkin e o seu rosto alterara-se de forma horrível. Era como se a bruxa dentro de si lhe estivesse a
distorcer a forma, inchando as faces ao ponto de arrebentarem,
arregalando os olhos ao ponto de saltarem, carregando o cenho como penhascos escarpados suspensos; por baixo deles, os olhos bulbosos e
salientes com fogo no centro, lançando um brilho vermelho e sinistro à
sua frente. Dei outro passo e senti o meu coração bater forte.
Novo passo e ele bateu novamente com força. Estava agora muito mais
próximo de Snout. Pum, pum, fazia o meu coração, um batimento por cada passo.
Quando estava a menos de cinco passos da faca em riste, ouvi Alice
correr na nossa direção, gritando o meu nome. Vi-a pelo canto do olho, saindo da escuridão para o clarão da fogueira. Vinha diretamente para
Snout, o cabelo preto fluindo para trás como se corresse ao encontro de
um vendaval. Sem interromper sequer o passo, deu um pontapé com toda a força por
cima do avental de couro dele, e vi a ponta do seu sapato bicudo
enterrar-se fundo na barriga gorda dele, pelo que só aparecia o calcanhar.
Snout arfou, dobrou-se e largou a bebê de Ellie mas, com a agilidade de
um gato jovem, Alice caiu de joelhos e apanhou-a antes mesmo de bater no solo. Depois virou-se bruscamente, correndo na direção de Ellie.
No preciso instante em que o sapato bicudo de Alice tocou na barriga de
Snout, o feitiço quebrou-se. Eu estava novamente livre. Livre para mover os meus pró-
prios membros. Livre para me deslocar. Ou livre para atacar.
Snout encontrava-se quase dobrado ao meio mas endireitou-se e, apesar de ter largado a bebê, segurava ainda a faca. Vi-o movê-la na
minha direção. Vacilou também um pouco — talvez estivesse sem
equilíbrio, ou talvez fosse apenas uma reação ao sapato bicudo de Alice.
Liberto do feitiço, brotou em mim toda uma série de sentimentos. Havia
pena pelo que fora feito a Jack, horror ante o perigo que a bebê de Ellie correra e raiva por isto estar a acontecer à minha família.
E, naquele momento, soube que nascera para ser um Mago. O melhor
Mago que alguma vez existira. Eu podia e iria fazer com que a minha mãe se orgulhasse de mim. Sabem, é que em vez de estar cheio de
medo, eu era todo gelo e fogo. Cá no âmago, eu estava enfurecido,
cheio de uma raiva ardente que ameaçava explodir. Ao passo que, por fora, estava tão frio quanto o gelo, a minha mente encontrava-se alerta
e lúcida, a respiração lenta.
Enfiei as mãos nos bolsos das calças. Depois retirei-as rapidamente,
cada punho cheio do que encontrara ali e arremessei cada mão-cheia
diretamente na cabeça de Snout, algo branco da minha mão direita e
algo escuro na esquerda. Juntaram-se, uma nuvem branca e uma nuvem preta, no preciso instante em que lhe atingiram o rosto e os ombros.
Sal e ferro — a mesma mistura tão eficaz contra um demônio. Ferro para
lhe retirar a força; sal para queimá-lo. Limalhas de ferro do balde velho e sal da despensa da minha mãe. Só esperava que surtisse o mesmo
efeito sobre uma bruxa.
Acho que levar com uma mistura daquelas na cara não seria bom para ninguém — no mínimo, provocaria tosse e cuspidelas —, mas o efeito
sobre Snout foi muito pior do que isso. Primeiro abriu a mão e largou a
faca. Depois os seus olhos reviraram-se e caiu pesada e lentamente para a
frente, ajoelhando-se. A seguir bateu com toda a força com a testa no
solo e o seu rosto virou-se para um dos lados. Começou a sair-lhe algo espesso e viscoso da narina esquerda. Fiquei ali
a ver, incapaz de me mexer, enquanto Mãe Malkin saía lentamente a
borbulhar e a contorcer-se da narina dele, adquirindo a forma que eu recordava. Era ela, sem dúvida, mas uma parte sua estava igual,
enquanto outras se apresentavam diferentes.
Para começar, tinha menos de um terço do tamanho que apresentara da última vez que a vira. Agora, os ombros dela mal passavam dos meus
joelhos, mas trazia ainda a comprida capa que arrastava pelo chão, e o
cabelo grisalho e branco caía-lhe sobre os ombros curvados como cortinas bolorentas. O que estava realmente diferente era a sua pele.
Toda lustrosa, estranha e como que torcida e esticada. No entanto, os
olhos vermelhos não haviam mudado e fitaram-me uma vez, antes de ela se virar e começar a afastar em direção à esquina do celeiro. Parecia
estar a encolher ainda mais e perguntei-me se seriam o sal e o ferro que
continuavam a surtir efeito. Não sabia o que mais podia fazer, por isso fiquei ali a vê-la afastar-se, exausto demais para me mexer.
Alice não se deteve por ali. Entregara entretanto a bebê a Ellie e veio
correndo, dirigindo-se para a fogueira.
Pegou num pedaço de madeira que ardia numa extremidade, depois avançou rapidamente para a Mãe Malkin, segurando-o diante dela.
Sabia o que ia fazer. Um toque e ela irromperia em chamas. Algo dentro
de mim não podia deixar que isso sucedesse porque era horrível demais, de modo que agarrei Alice pelo braço quando ela passou correndo e
rodei-a, posto o que largou a tora em chamas.
Ela virou-se para mim, o seu rosto todo em fúria, e julguei que fosse sentir um sapato bicudo. Mas agarrou-me o antebraço com tanta força
que as unhas se chegaram mesmo a cravar fundo na carne.
— Endureça, ou não sobreviverá! — atirou-me na cara. — Só fazer o que
diz o Velho Gregory não chega. Morrerá tal como os outros!
Soltou-me o braço e, quando olhei para ele, vi gotas de sangue no lugar
onde as unhas tinham se cravado em mim. — Tem de queimar uma bruxa — disse Alice, a raiva na sua voz a
diminuir —, para se certificar de que não voltará. Metê-la na terra não
serve de nada. Só retarda as coisas. O Velho Gregory sabe-o, mas é brando demais para usar o fogo. Agora é tarde demais...
Mãe Malkin desaparecia nas sombras, tendo contornado o celeiro,
continuando a encolher a cada passo, arrastando a capa preta pelo solo atrás de si.
Foi então que percebi que a bruxa cometera um grande erro. Seguira o
caminho errado, diretamente para o chiqueiro maior. Nesta altura estava suficientemente pequena para passar por debaixo da primeira tábua.
Fora um dia péssimo para os porcos. Cinco deles haviam sido mortos e
houvera momentos de muito barulho e sujidade, que provavelmente os deixaram bastante assustados. Por conseguinte, o que se pode dizer é
que não estavam nada satisfeitos e, provavelmente, não seria a ocasião
mais indicada para entrar no chiqueiro deles. E, além disso, os porcos grandes e peludos comem tudo, seja lá o que for. Não tardou que
chegasse a vez de Mãe Malkin gritar e fê-lo durante muito tempo.
— Aquilo deve equivaler a queimá-la — comentou Alice, quando o som finalmente desapareceu. Pude constatar o alívio no rosto dela. Eu sentia
o mesmo. Estávamos ambos satisfeitos por ter acabado tudo. Estava
cansado, de maneira que me limitei a encolher os ombros, não sabendo muito bem o que pensar, mas olhava para Ellie e não gostei do que vi.
Ellie estava assustada e horrorizada também. Olhava-nos como se não
pudesse acreditar no que acontecera e no que tínhamos feito. Era como se me tivesse visto devidamente pela primeira vez. Como se se
percebesse de repente do que eu era.
Compreendi também algo. Pela primeira vez, sentia realmente o que era ser o aprendiz do Mago. Vira as pessoas atravessarem para o outro lado
da rua a fim de evita-rem passar perto de nós. Vira-as estremecer ou
benzer-se só porque havíamos atravessado a sua aldeia, mas não o
levara a mal. Na minha mente era a sua reação ao Mago, não a mim.
Mas não podia ignorar este fato, ou passá-lo para segundo plano na minha mente. Estava a acontecer-me diretamente e estava a acontecer
na minha própria casa.
De repente, senti-me mais sozinho do que nunca.
CAPÍTULO 14
O CONSELHO DO MAGO
Mas nem tudo foi mau. Afinal, Jack não morrera. Eu não quis fazer
perguntas demais, pois só iria deixar todos aflitos, mas parecia que
quando Snout se preparava para começar a raspar a barriga do quinto porco com Jack, ficara louco assim sem mais nem menos, e atacara-o.
Era apenas sangue de porco no rosto de Jack. Perdera os sentidos ao
levar com uma tábua. Snout fora então para casa e agarrara na bebê.
Quisera usá-la como isca pa-ra se aproximar e poder usar a sua faca em
mim.
Claro que não estou a contar a versão mais fiel dos acontecimentos. Na realidade, não era Snout quem estava a fazer aquelas coisas terríveis.
Ele estava possesso e Mãe Malkin limitara-se a usar o corpo dele. Ao
cabo de algumas horas, Snout voltou a si e foi para casa intrigado e agarrado à barriga dolorida. Parecia não se lembrar de nada do que
sucedera, e nenhum de nós o quis esclarecer.
Ninguém dormiu muito naquela noite. Depois de atear um fogo forte, Ellie ficou a noite toda na cozinha e não quis deixar a bebê longe da
vista. Jack foi-se deitar para recuperar da cabeça dolorida, mas acordava
constantemente e vinha correndo para o exterior, a fim de vomitar no pátio.
Mais ou menos uma hora antes da aurora, a minha mãe chegou a casa.
Também não parecia muito satisfeita. Parecia que algo correra mal.
Peguei na mala dela para a levar para casa.
— Está bem, mãe? — perguntei. — Parece-me cansada. — Não se preocupe comigo, filho. O que aconteceu aqui? Vejo pela sua
cara que alguma coisa não está bem. — É uma longa história —
respondi. — É melhor entrarmos primeiro. Quando chegamos à cozinha, Ellie ficou tão aliviada de ver a minha mãe
que desatou a chorar e isso fez com que a bebê chorasse também. Jack
desceu então e toda a gente quis contar tudo à mãe ao mesmo tempo, mas eu desisti ao cabo de alguns segundos, pois Jack começou a falar
ruidosamente, como era seu hábito.
A minha mãe mandou-o calar rapidamente. — Baixe a voz, Jack — disse-lhe. — Esta ainda é a minha casa e não
suporto gritarias.
Ele não gostou que lhe falassem daquela maneira em frente de Ellie mas sabia que era escusado protestar.
Obrigou cada um de nós a contar-lhe exatamente o que acontecera,
começando por Jack. Eu fui o último e, quando chegou a minha vez, ela
mandou Ellie e Jack deitarem-se para que pudéssemos conversar a sós. Não que ela falasse muito. Limitou-se a escutar em silêncio, depois
segurou-me a mão.
Por fim, foi até ao quarto de Alice e passou muito tempo a falar a sós com ela.
O Sol havia nascido há menos de uma hora quando o Mago chegou. De
certa forma, eu estava a contar com ele. Esperou junto ao portão e eu fui lá fora, narrando de novo os acontecimentos, enquanto ele se
apoiava no bordão. Quando terminei, abanou a cabeça.
— Senti que algo estava errado, rapaz, mas cheguei tarde demais.
Mesmo assim, agiu bem. Mostrou iniciativa e conseguiu lembrar-se de
algumas das coisas que te ensinei. Se tudo o mais falhar, pode sempre
recorrer ao sal e ao ferro. — Devia ter deixado Alice queimar Mãe Malkin?
— inquiri. Ele suspirou e coçou a barba. — Como te disse, é uma coisa
cruel queimar uma bruxa e pessoalmente não concordo. — Acho que agora vou ter de enfrentar de novo Mãe Malkin — disse-lhe.
O Mago sorriu. — Não, rapaz, pode ficar descansado porque ela não
voltará a este mundo. Depois do que lhe aconteceu no fim. . Lembra-se do que te disse a respeito de comer o coração de uma bruxa? Bem, os
seus porcos fizeram-no por nós. — Não apenas o coração. Eles comeram
tudo — contrapus. — Portanto estou livre? Realmente livre? Ela não pode voltar?
— Sim, está livre de Mãe Malkin. Existem por aí outras ameaças iguais
ou piores, mas está livre, por agora. Senti um grande alívio, como se me tivesse saído um peso enorme de
cima dos ombros. Vivera num pesadelo e agora, eliminada a ameaça de
Mãe Malkin, o mundo parecia um lugar muito mais bonito e feliz. Acabara tudo, finalmente, e podia voltar a criar expectativas.
— Bem, está livre até cometer outro erro absurdo
— acrescentou o Mago. — E não diga que não vai cometer. Aquele que nunca comete um erro nunca chega a lado nenhum. Faz parte do
processo de aprendizagem. Bem, o que vamos fazer agora? —
perguntou, semicerrando os olhos para o Sol nascente. — A respeito de quê? — indaguei, curioso em saber ao que se referia.
— Da menina, rapaz — disse ele. — Parece que o poço a espera. Não
vejo outra solução. — Mas, no fim, ela salvou a bebê de Ellie — protestei. — Ela também
salvou a minha vida.
— Ela usou o espelho, rapaz. Isso é mau sinal. Lizzie ensinou-lhe muito. Demasiado. Agora ela mostrou-nos que está preparada para o usar. O
que irá fazer a seguir?
— Mas as suas intenções foram boas. Ela usou os seus conhecimentos
para tentar encontrar Mãe Malkin.
— Pode ser, mas ela sabe demais e também é inteligente. Neste momento é apenas uma menina, mas um dia será uma mulher e uma
mulher inteligente é perigosa.
— A minha mãe é inteligente — redargui, aborrecido com o que ele dissera. — Mas também é boa. Tudo o que faz é com boas intenções. Ela
usa a inteligência para ajudar as pessoas. Um ano, era eu mesmo muito
pequeno, as imagens fantasmagóricas na Colina do Carrasco assustavam-me tanto que não conseguia dormir. A minha mãe foi lá
acima depois de escurecer e calou-as. Ficaram sossegadas durante
meses e meses.
Podia ter acrescentado que, na nossa primeira manhã juntos, o Mago me
dissera que não havia muito a fazer em relação às imagens
fantasmagóricas. E que a minha mãe provara que ele estava errado. Mas não o fiz. Já falara mais do que devia e desnecessariamente.
O Mago não disse nada. Olhava na direção da casa.
— Pergunte à minha mãe o que pensa de Alice — sugeri. — Parece dar-se bem com ela.
— Já tencionava fazê-lo — disse o Mago. — Está na hora de termos uma
conversinha. Espere aqui até terminarmos. Fiquei vendo o Mago atravessar o pátio. Antes mesmo de chegar lá, a
porta da cozinha abriu-se e a minha mãe veio recebê-lo à soleira.
Mais tarde, foi possível apurar algumas das coisas que tinham dito um ao outro, mas conversaram durante cerca de meia hora e nunca cheguei
a descobrir se as imagens fantasmagóricas tinham feito parte da
conversa. Quando o Mago saiu finalmente para a luz do Sol, a minha mãe ficou na
porta. Ele fez então algo invulgar —
algo que nunca o vira fazer. A princípio, julguei que tivesse baixado a cabeça à mãe ao despedir-se, mas houve algo mais naquele gesto.
Houve também um movimento dos ombros. Foi ligeiro mas muito nítido,
pelo que não restavam quaisquer dúvidas. Quando se despediu da minha mãe, o Mago fez-lhe uma pequena vênia.
Enquanto atravessava o pátio direto a mim, parecia sorrir de si para si.
— Vou voltar para Chipenden agora — disse —, mas acho que a sua minha mãe gostaria que ficasses mais uma noite. Seja como for, deixo
isso ao seu critério —
afirmou o Mago. — Ou traz a menina de volta e a prendemos no poço, ou levá-la à tia em Staumin. A escolha é sua. Use o seu instinto para
tomar a decisão certa. Saberá o que fazer.
Depois foi-se embora, deixando-me com a cabeça a andar à roda. Sabia o que pretendia fazer em relação a Alice, mas tinha de ser a atitude
certa.
Então, fui comer outra das ceias da minha mãe.
O meu pai regressara entretanto, mas, apesar de a minha mãe ficar
satisfeita de o ver, havia algo que não estava muito bem, uma espécie de atmosfera, como uma nuvem invisível a pairar sobre a mesa.
Portanto, não foi propriamente uma festa de comemoração e ninguém
falou muito. No entanto, a comida estava boa, um dos guisados especiais da minha
mãe, pelo que não me ralei com a falta de conversa — estava demasiado
ocupado a encher a barriga e a servir-me segunda vez antes que Jack tivesse tempo de limpar o prato.
O apetite de Jack voltara, mas ele estava um bocado acabrunhado, tal
como os demais. Passara por muito, tinha um galo enorme na testa a
prová-lo. Quanto a Alice, não lhe contara o que o Mago dissera, mas
achava que ela devia saber, ainda assim. Não abriu a boca uma só vez
durante o jantar. Mas a mais calada de todos era Ellie. Apesar da alegria de ter de volta a bebê, o que vira deixara-a muito
transtornada e calculei que fosse demorar algum tempo a recompor-se.
Quando os outros se foram deitar, a minha mãe pediu-me que ficasse. Sentei-me junto à lareira na cozinha, tal como fizera na noite que
antecedera a minha partida para ir iniciar o aprendizado. Mas algo no
rosto dela me disse que esta conversa ia ser diferente. Antes, ela mostrara-se firme comigo, mas esperançada. Confiante de que tudo iria
correr bem. Agora parecia triste e cheia de dúvidas.
— Há quase vinte e cinco anos que trago bebês a este mundo no Condado — disse, sentando-se na sua cadeira de balanço —, e perdi
alguns. Apesar de ser muito triste para a mãe e o pai, é apenas algo que
acontece. Acontece aos animais da fazenda, Tom. Você próprio o viu. Anuí. Todos os anos nasciam alguns carneiros mortos. Era algo com que
se contava.
— Desta vez foi pior — disse a minha mãe. — Desta vez, tanto a mãe como o bebê morreram, algo que nunca me
acontecera. Conheço as ervas certas e sei como misturá-las. Sei como
tratar uma hemorragia grave. Sei exatamente o que fazer. E esta mulher era jovem e forte.
Ela não devia ter morrido, mas não a consegui salvar. Fiz tudo o que
podia, mas não a consegui salvar. E isso causou-me uma dor aqui. Uma dor no coração.
A minha mãe soltou uma espécie de soluço e agarrou o peito. Por um
momento horrível, pensei que fosse chorar, mas depois ela respirou fundo e a força voltou-lhe ao rosto.
— Mas os carneiros morrem, mãe, e às vezes as vacas, quando parem —
disse-lhe. — Uma mãe acaba por estar sujeita a morrer. É um milagre que tenha passado tanto tempo sem que isso lhe acontecesse.
Esforcei-me ao máximo, mas foi difícil consolá-la.
A minha mãe estava a encarar muito mal a realidade. Fazia-a ver o lado
negro da vida.
— Está ficando mais escuro, filho — disse-me. — E está a suceder mais depressa do que eu contava. Tinha esperança de
que primeiro se tornasse um homem, com anos de experiência em cima.
Por isso, vai ter de escutar com atenção tudo o que o seu mestre disser. A menor coisa contará. Vai ter de se preparar o mais rapidamente
possível e trabalhar com afinco nas suas lições de latim.
Fez então uma pausa e estendeu a mão. — Deixa-me ver o livro. Quando lhe entreguei, ela folheou as páginas, parando de vez em
quando para ler algumas linhas. — Ajudou-lhe? — inquiriu.
— Nem por isso — admiti.
— Foi o seu mestre que o escreveu. Ele lhe contou? Abanei a cabeça. —
Alice disse que fora escrito por um padre.
A minha mãe sorriu. — O seu mestre já foi padre. Foi assim que começou. Certamente um dia ele lhe contará. Mas não lhe
pergunte. Deixe que ele te conte quando achar que é o momento certo.
— Do que foi que a senhora falou com Mr. Gregory? — perguntei. — Disso e de outras coisas, mas principalmente de Alice. Ele perguntou-
me o que eu achava que lhe devia acontecer. Disse-lhe que deixasse isso
com você. Então, já se decidiu? Encolhi os ombros. — Ainda não sei bem o que fazer, mas Mr. Gregory
disse que eu deveria usar os meus instintos.
— É um bom conselho, filho — disse a minha mãe. — Mas o que acha a mãe? — perguntei. — O que foi que disse a Mr.
Gregory sobre Alice? Ela é uma bruxa?
Pelo menos conte-me isso. — Não — a minha mãe respondeu lentamente, medindo as palavras com
cuidado. — Ela não é uma bruxa, mas será um dia. Nasceu com o
coração de uma bruxa e não lhe resta senão seguir esse caminho. — Nesse caso, deveria ir para o poço em Chipenden? — afirmei com
pesar, abanando a cabeça.
— Lembre-se das suas lições. — A minha mãe falou de forma austera. — Lembre-se do que o seu mestre te ensinou. Existe mais do que um tipo
de bruxa.
— As «benévolas» — disse eu. — Está me dizendo que Alice pode vir a ser uma bruxa boa que ajuda os outros?
— Pode ser que sim. E pode ser que não. Sabe o que acho mesmo? É
capaz de não querer ouvir isto. — Quero — afirmei.
— Alice pode acabar por não ser nem boa nem má.
Pode vir a ficar em algum lugar no meio. E isso faria com que fosse muito perigoso conhecê-la. Aquela menina pode ser a desgraça da sua
vida, uma praga, um veneno em tudo o que fizer. Ou pode vir a revelar-
se a melhor e mais forte amiga que alguma vez terá. Alguém que fará
toda a diferença no mundo. Só não sei para que lado penderá. Não
consigo ver, por mais que me esforce. — Mas como poderia vê-lo, mãe? — inquiri. —
Mr. Gregory disse que não acredita em profecias. Ele disse que o futuro
não está determinado. A minha mãe apoiou uma mão no meu ombro e apertou-o ligeiramente
para me encorajar. — Todos nós temos algumas escolhas em aberto —
disse. — Mas talvez uma das decisões mais importantes que alguma vez venhas a tomar seja em relação a Alice. Agora vá se deitar e dorme
bem, se puder. Tome a decisão amanhã, quando o sol brilhar. Uma coisa
que não perguntei à mãe foi como conseguira silenciar as imagens
fantasmagóricas na Colina do Carrasco. Novamente os meus instintos.
Sabia apenas que era algo de que ela não iria querer falar. Numa família,
há coisas que não se perguntam. Sabemos que nos contarão quando chegar o momento certo.
Partimos pouco depois da aurora, o meu coração aos pés.
Ellie seguiu-me até ao portão. Parei ali mas fiz sinal a Alice para que continuasse e ela foi subindo vagarosa-mente a colina, sacudindo o
quadril, sem olhar sequer uma vez para trás.
— Preciso de te dizer algo, Tom — começou Ellie. — Custa-me fazê-lo, mas tem mesmo de ser.
Notei pela voz dela que ia ser mau. Anuí, muito infeliz, e fiz um esforço
para fitá-la nos olhos. Fiquei chocado ao ver que estavam marejados de lágrimas.
— Continua a ser bem-vindo aqui, Tom — disse Ellie, afastando o cabelo
da testa e tentando sorrir. — Isso não mudou. Mas temos de pensar na nossa filha. Portanto, é bem-vindo aqui, mas não depois de escurecer.
Sabe, é por esse motivo que Jack tem andado tão mal-humorado. Não
queria te dizer o quanto isso o incomoda, mas agora tem de saber. Não lhe agrada nada a sua atividade. Nem um pouco. Deixa-o arrepiado. E
ele teme pela bebê.
— Estamos assustados, percebe? Receamos que, se alguma vez estiver aqui depois de escurecer, possa atrair algo mais. É capaz de trazer
consigo algo mau e não podemos correr o risco de acontecer alguma
coisa à nossa família. Venha visitar-nos durante o dia, Tom. Venha ver-nos quando o Sol tiver nascido e as aves estiverem a cantar. Ellie
abraçou-me e isso só piorou tudo. Sabia que surgira algo entre nós e
que tudo mudara para sempre. Queria chorar, mas me contive. Tinha um grande nó na garganta e não
consegui falar.
Vi Ellie voltar para a casa da fazenda e tornei a centrar a minha atenção na decisão que tinha de tomar.
O que iria fazer com Alice?
Acordara convicto de que era meu dever levá-la comigo para Chipenden.
Parecera-me a atitude certa a tomar. E a mais segura também. Sentia-o
como um dever. Quando dera os bolos à Mãe Malkin, deixara-me dominar pela brandura
do meu coração. E vejam onde isso me levara. Portanto, o melhor era
tratar já de Alice, antes que fosse tarde demais. Como dissera o Mago, tinha de pensar nos inocentes que poderiam vir a ser prejudicados no
futuro.
No primeiro dia de viagem não falamos muito um com o outro. Disse-lhe que íamos voltar para Chipenden, para ver o Mago. Se Alice desconfiava
do que lhe ia acontecer, o certo é que não se queixou. Depois, no
segundo dia, ao aproximarmo-nos da aldeia e vermos já as vertentes
mais baixas das colinas rochosas, a não mais de quilômetro e meio da
casa do Mago, contei a Alice o que guardava bem guardado dentro de
mim; o que me andava a preocupar desde que me apercebera do que continham os bolos. Estávamos sentados na orla verdejante junto à
beira da estrada. O Sol pusera-se e a claridade começava a diminuir. —
Alice, costuma mentir? — perguntei. — Todo mundo mente às vezes — respondeu. —
Não serias humano se não o fizesse. Mas a maior parte das vezes digo a
verdade. — E na noite em que estava preso no poço?
Quando te perguntei sobre aqueles bolos. Você disse que não havia
outra criança em casa de Lizzie. Isso era verdade? — Não vi nenhuma. — A primeira que desapareceu ainda era bebê. Não
podia ter-se afastado sozinha. Tem certeza?
Alice anuiu e depois baixou a cabeça, olhando para a erva. — Acho que podia ter sido levada pelos lobos —
referi. — Foi o que os rapazes da aldeia pensaram.
— Lizzie disse que vira lobos por estas bandas. Pode ter sido isso — concordou Alice.
— E então os bolos, Alice? O que continham?
— Sobretudo sebo e bocados de carne de porco. Miolo de pão também.
— E então o sangue? O sangue animal não teria servido a Mãe Malkin.
Ela precisava de força suficiente para dobrar as barras por cima do poço. De onde veio então o sangue, Alice, o sangue que foi usado nos bolos?
Alice começou a chorar. Esperei pacientemente que terminasse, depois
voltei a fazer a pergunta. — Então, de onde veio?
— Lizzie disse que eu ainda era uma criança —
contou Alice. — Elas tinham usado o meu sangue imensas vezes. Por isso, mais uma não teria importância. Não doía tanto assim. Quando já
se acostumou. . E, diga-me, como podia eu impedir Lizzie?
Então, Alice subiu a manga e mostrou-me o braço.
Havia ainda luz suficiente para ver as cicatrizes. E eram bastantes —
algumas antigas, outras relativamente recentes. A mais recente de todas ainda não sarara por completo. Ainda exsudava.
— E há mais do que estas. Muitas mais. Mas não posso mostrá-las todas
— acrescentou Alice. Não soube o que dizer, de modo que fiquei calado.
Mas tomara já a decisão e não tardamos a mergulhar no escuro,
afastando-nos de Chipenden. Resolvera levar Alice diretamente para Staumin, onde morava a tia. Não
suportava a idéia de ela acabar num poço no jardim do Mago. Era
simplesmente horrível demais — e lembrei-me de outro poço. Lembrei-
me de que Alice me ajudara a sair do poço de Tusk precisamente antes
de Lizzie ter vindo buscar os meus ossos. Mas, acima de tudo, o que
Alice acabara de me contar é que me fez finalmente mudar de idéia. Ela fora já um dos inocentes. Alice também fora uma vítima.
Subimos Parlick Pike e depois dirigimo-nos para Blindhurst Fel , mais a
norte, mantendo-nos sempre nas terras altas. Agradava-me a idéia de ir a Staumin. Ficava perto do mar e eu nunca
tinha visto o mar, exceto do alto das colinas. O percurso que escolhi
desviava-se um pouco do caminho, mas gostava de explorar e de estar ali em cima, perto do Sol. Pelo menos Alice não parecia importar-se nem
um pouco.
Foi uma viagem agradável e apreciei a companhia de Alice e, pela primeira vez, começamos realmente a falar. Ela também me ensinou
muito. Conhecia os nomes de mais estrelas do que eu e tinha muito jeito
para apanhar coelhos. Em matéria de plantas, Alice era perita em aspectos que o Mago não
mencionara sequer até ali, como por exemplo as tóxicas beladona e
mandrágora. Não acreditei em tudo o que ela disse, mas anotei-o ainda assim, porque ela fora ensinada por Lizzie e pareceu-me útil saber aquilo
em que uma bruxa acredita. Alice sabia perfeitamente distinguir os
cogumelos comestíveis dos venenosos, alguns dos quais eram tão perigosos que uma dentada podia fazer-nos parar o coração ou levar à
loucura. Tinha comigo o livro de notas e, dando-lhe o título de
«Botânica», acrescentei mais três páginas de informações úteis. Uma noite, quando estávamos a menos de um dia de caminho de
Staumin, instalamo-nos numa clareira da floresta. Tínhamos acabado de
cozinhar dois coelhos nas brasas de uma fogueira até a carne quase se desfazer nas nossas bocas. Após a refeição, Alice fez algo realmente
estranho. Depois de se virar para mim, debruçou-se e segurou-me a
mão. Ficamos sentados assim durante muito tempo, ela a olhar para as brasas
da fogueira e eu para as estrelas. Não queria me soltar, mas sentia-me
completamente encabulado. A minha mão esquerda segurava a
esquerda dela e senti-me culpado. Senti-me como se estivesse a dar a
mão ao escuro e soubesse que o Mago não iria gostar. Era-me impossível ignorar a verdade. Um dia, Alice iria ser uma bruxa.
Foi então que percebi que a minha mãe tinha razão. Não tinha nada a
ver com profecias. Conseguia vê-lo nos olhos de Alice. Ela estaria sempre em algum lugar no meio, nem totalmente boa nem totalmente
má. Mas isso não se aplicava a todos nós? Não havia ninguém perfeito.
Resolvi não retirar a mão. Fiquei ali sentado, uma parte de mim a gostar de lhe segurar a mão, o que até era reconfortante depois de tudo o que
acontecera, enquanto a outra parte estava cheia de remorsos.
Foi Alice quem se soltou. Tirou a sua mão da minha e depois tocou no
meu braço, no lugar onde as unhas dela se haviam cravado na noite em
que tínhamos destruído Mãe Malkin. Podiam ver-se as cicatrizes com o
brilho das brasas. — Deixei-te aqui a minha marca — disse ela com um sorriso. — Nunca
irá desaparecer.
Pareceu-me algo estranho de se dizer e não percebi muito bem onde ela queria chegar. Lá na fazenda, marcávamos o gado. Fazíamo-lo para
mostrar que nos pertencia e para evitar que os animais tresmalhados se
misturassem com os das propriedades vizinhas. Mas como podia eu pertencer a Alice?
No dia seguinte, descemos a uma extensa planície.
Parte dela era terra pantanosa e, nos piores troços, pântano alagado, mas acabamos por dar com o caminho para Staumin. Nunca cheguei a
ver a tia dela, pois não quis sair para me cumprimentar. Mesmo assim,
concordou em receber Alice, pelo que não podia me queixar. Havia um rio grande e largo ali perto e, antes de partir para Chipenden,
descemos pela sua margem até ao mar. Não fiquei muito contente ao
vê-lo. Estava um dia cinzento e ventoso e a água era da mesma cor do céu e as suas ondas, grandes e tumultuosas.
— Vai ficar bem aqui — disse-lhe, tentando mostrar-me animado. —
Deve ser bonito com sol. — Tentarei tirar o melhor partido — respondeu Alice. — Não pode ser
pior do que Pendle.
De repente, tive novamente pena dela. Às vezes, sentia-me sozinho, mas sempre podia conversar com o Mago; Alice nem sequer conhecia
bem a tia e o mar encapelado fazia com que tudo parecesse ermo e frio.
— Olha, Alice, não conto que voltemos a nos ver, mas se alguma vez precisar de ajuda, mande-me um recado — prontifiquei-me.
Acho que o disse porque Alice era o mais próximo de um amigo que eu
tinha. E como promessa, não era tão tola quanto a primeira que lhe fizera. Não estava efetiva-mente a comprometer-me com nada. Da
próxima vez que ela pedisse algo, falaria primeiro com o Mago. Para
surpresa minha, Alice sorriu e ficou com uma expressão estranha no
olhar. Lembrei-me do que o meu pai dissera uma vez, a respeito de as
mulheres saberem coisas que os homens desconhecem — e quando suspeitávamos de tal, nunca deveríamos perguntar no que elas estavam
a pensar.
— Oh, voltaremos a encontrar-nos — respondeu Alice. — Não tenho quaisquer dúvidas a esse respeito.
— Agora tenho de ir andando — disse-lhe, virando-me para partir.
— Vou sentir a sua falta, Tom — declarou Alice. — Não será o mesmo sem você.
— Também sentirei a sua falta, Alice — respondi, sorrindo-lhe.
Quando as palavras me saíram, pensei que as dissera por uma questão
de cortesia. Mas, não estava na estrada há mais de dez minutos quando
percebi que me enganara.
Cada palavra fora intencional e sentia-me já sozinho. Recorri sobretudo à memória para narrar estes acontecimentos, mas uma parte consta do
meu livro de notas e do meu diário. Já me encontro de volta a
Chipenden e o Mago está satisfeito comigo. Acha que estou a fazer bons progressos.
Lizzie dos Ossos está no poço onde o Mago tinha preso a Mãe Malkin. As
barras foram endireitadas e certamente ela não vai receber de mim quaisquer bolos à meia-noite. Quanto a Tusk, encontra-se sepultado no
buraco que cavou para minha sepultura.
O pobre Bil y Bradley voltou para o seu jazigo do lado de fora do cemitério de Layton, mas, pelo menos, conseguiu recuperar os seus
polegares. Nada disto é agradável mas é algo que faz parte do ofício.
Mesmo que não gostemos, temos de fazê-lo, como diz o meu pai. Há algo mais que lhes deveria contar. O Mago concorda com o que a
minha mãe disse. Acha que os Invernos estão a ficar mais longos e o
escuro a ganhar mais força. Tem a certeza de que o ofício será cada vez mais difícil.
Para que nunca me esqueça disso, vou continuar a estudar e a aprender
— como me disse uma vez a minha mãe, se não tentarmos, nunca saberemos do que somos capazes. Por isso vou tentar. Estou a esforçar-
me ao máximo, porque quero que ela se orgulhe realmente de mim.
Neste momento não passo de um aprendiz, mas um dia serei o Mago.
Thomas J. Ward
Fim
AS CRÔNICAS DE WARDSTONE
Livro II A MALDIÇÃO DO MAGO
CAPÍTULO 1
O ESTRIPADOR DE HORSHAW
Quando ouvi o primeiro grito, virei-me e tapei os ouvidos com as mãos,
pressionando com força até me doer a cabeça. Naquele momento, não
podia fazer nada para ajudar. Mas ainda o conseguia ouvir, os sons
produzidos por um padre que estava a ser atormentado, e prolongou-se
por muito tempo antes de finalmente cessar.
Fiquei então a tremer no celeiro escuro, ouvindo a chuva tamborilar no
telhado, tentando encher-me de coragem. Era uma noite má e só podia
piorar.
Passados dez minutos, quando o aparelhador e o ajudante chegaram,
corri para me encontrar com eles à porta. Eram ambos homens grandes
e eu mal lhes chegava aos ombros.
— Bem, rapaz, onde está Mr. Gregory? — perguntou o aparelhador, com
uma pontinha de impaciência na voz. Levantou a lanterna que segurava
e olhou à sua volta com desconfiança. Possuía uns olhos astutos e
inteligentes. Nenhum dos homens tinha ar de quem fosse tolerar
qualquer disparate.
— Ele tem estado bastante indisposto — respondi, tentando controlar os
nervos que faziam com que a voz me saísse fraca e trêmula. — Ele tem
estado de cama com uma febre alta nesta última semana, por isso
mandou-me no lugar dele. Sou Tom Ward. O aprendiz dele.
O aparelhador olhou-me de alto a baixo rapidamente, como um agente
funerário a tirar-me as medidas para futuro negócio. Depois arqueou
tanto um sobrolho que este desapareceu debaixo da aba do seu boné,
que pingava ainda da chuva.
— Bem, Mr. Ward — disse ele, um tom cortante de sarcasmo na sua voz
—, aguardamos as suas instruções. Levei a mão ao bolso das calças e
retirei um esboço que o pedreiro fizera. O aparelhador colocou a lanterna
no chão de terra e depois, com um abanar cansado da cabeça e uma
troca de olhares com o ajudante, aceitou o esboço e começou a
examiná-lo.
As instruções do pedreiro indicavam as dimensões do poço que tinha de
ser aberto, e as medidas da pedra que seria colocada sobre ele.
Após alguns momentos, o aparelhador voltou a abanar a cabeça e
ajoelhou ao lado da lanterna, segurando o papel muito próximo dela.
Quando se pôs em pé, tinha o cenho carregado. — O poço deveria ter
dois metros e setenta de profundidade — referiu ele. — Aqui diz apenas
um metro e oitenta.
O aparelhador percebia sem dúvida do ofício. O
poço normal para um demônio tem um metro e oitenta de profundidade,
mas para um Estripador, o demônio mais perigoso de todos, a norma
são dois metros e setenta. Estávamos sem dúvida em presença de um
estripador — os gritos do padre constituíam prova disso —, mas não
havia tempo para escavar dois metros e setenta.
— Terá de servir — respondi. — Deverá estar pronto pela manhã, senão
será tarde demais e o padre morrerá.
Até àquele momento tinham-se mostrado dois homens grandes calçando
botas grandes, a destilar confiança por todos os poros. Agora, de
repente, pareciam nervosos.
Estavam a par da situação pelo bilhete que eu lhes mandara a convocá-
los para o celeiro. Usara o nome do Mago para me certificar de que
vinham prontamente.
— Sabe o que está fazendo, rapaz? — inquiriu o aparelhador. — Está à
altura do trabalho?
Olhei-o diretamente nos olhos e esforcei-me por não pestanejar.
— Acho que não comecei nada mal — respondi.
— Contratei os melhores aparelhador e ajudante do Condado.
Tinham sido as palavras certas e estampou-se um largo sorriso no rosto
do aparelhador. — Quando é que chega a pedra? — perguntou.
— Bem, antes da alvorada. O pedreiro vai trazê-la pessoalmente. Temos
de estar a postos.
O aparelhador anuiu. — Siga então na frente, Mr.
Ward. Mostre-nos onde quer que cavemos.
Desta vez não houve sarcasmo na voz dele. Tinha um tom profissional.
Queria o trabalho despachado. Todos nós pretendíamos o mesmo, e o
tempo era escasso, por isso puxei o capuz para cima e, segurando o
bordão do Mago na mão esquerda, segui na frente sob a chuva fria e
forte.
A carroça de duas rodas deles estava lá fora, o equipamento coberto
com uma lona impermeabilizada, o cavalo paciente entre os varais
fumegando à chuva.
Atravessamos o campo enlameado, depois seguimos a sebe de
espinheiro negro até ao local onde escasseava, por debaixo dos ramos
de um carvalho antigo nos limites do adro da igreja. O poço teria de ficar
perto do solo sagrado, mas não perto demais. As sepulturas mais
próximas ficavam apenas à distância de vinte passos.
— Abra o poço o mais perto que puder daquilo —
disse-lhe, apontando na direção do tronco da árvore.
Sob o olhar atento do Mago, eu abrira muitos poços experimentais.
Numa emergência, teria sido eu próprio a efetuar o serviço, mas estes
homens eram peritos e trabalhavam com celeridade.
Enquanto foram buscar as ferramentas, afastei a sebe e passei por entre
as lápides em direção à velha igreja.
Encontrava-se bastante degradada: faltavam telhas no telhado e há anos
que não via uma pintura. Abri a porta lateral, que cedeu com um gemido
e uma chiado.
O velho padre mantinha-se na mesma posição, deitado de costas
próximo do altar. A mulher encontrava-se ajoelhada no chão perto da
cabeça dele, a chorar. A única diferença agora era que a igreja estava
toda iluminada. Ela recorrera à reserva de velas da sacristia e acendera-
as todas. Havia pelo menos uma centena, aglomeradas em grupos de
cinco ou seis. Colocara-as nos bancos, no chão e nos parapeitos das
janelas, mas a maioria encontrava-se no altar.
Quando fechei a porta, soprou uma rajada de vento dentro da igreja e as
chamas tremularam todas. Ela levantou a cabeça na minha direção, o
rosto banhado de lágrimas. — Ele está morrendo — disse, a sua voz
ecoando cheia de angústia. — Por que levou tanto tempo a chegar aqui?
Desde que a mensagem nos chegara a Chipenden, eu demorara dois
dias a alcançar a igreja. Eram mais de cinquenta quilômetros até
Horshaw e eu não partira de imediato. A princípio, o Mago, ainda doente
demais para sair da cama, recusara-se a deixar-me ir.
Normalmente, o Mago nunca manda os aprendizes efetuar um trabalho
sozinho enquanto ele não os tiver preparado durante pelo menos um
ano. Eu acabara de completar treze anos e era aprendiz dele há menos
de seis meses. Era uma atividade difícil e assustadora, que envolvia com
frequência lidar com aquilo que chamamos «o escuro». Eu estivera a
aprender a lidar com bruxas, fantasmas, demônios e coisas que
aparecem à noite. Mas estaria preparado para isto?
Era necessário aprisionar um demônio e, se feito como devia ser, seria
bastante simples. Eu vira já o Mago fazê-lo duas vezes. De cada uma
delas, contratara bons homens para ajudarem na tarefa e correra tudo
sem problemas. Mas este trabalho era um pouco diferente. Havia
complicações.
Sabem, é que o padre era irmão do próprio Mago.
Eu vira-o apenas uma vez quando tínhamos estado de visita a Horshaw
na Primavera. Ele deitara-nos um olhar fuzilante e fizera um enorme
sinal da cruz no ar, o seu rosto distorcido pela raiva. O Mago nem sequer
olhara na direção dele porque sempre se haviam detestado e não se
falavam há mais de quarenta anos. Mas o sangue falava mais forte e ele
acabou por me enviar a Horshaw.
— Padres! — bradara o Mago. — Por que não se limitam àquilo que
sabem fazer? Por que têm sempre de interferir? Qual era a idéia dele, ao
tentar enfrentar um estripador? Deixem-me fazer o meu trabalho e os
outros que façam o seu.
Por fim acalmara-se e passara horas a dar-me instruções
pormenorizadas sobre o que havia a fazer e indicando-me os nomes e
moradas do aparelhador e do pedreiro que eu tinha de contratar.
Chamara também um médico, insistindo que só ele serviria. Eis outra
contrariedade, porque o médico vivia a alguma distância. Tive de
mandar recado e só esperava que ele viesse imediatamente.
Olhei para a mulher, que limpava delicadamente a testa do padre com
um pano. O seu cabelo branco, liso e engordurado fora afastado do rosto
e revirava os olhos febrilmente. Não chegara a saber que a mulher
pedira a ajuda do Mago. Se assim fosse, ter-se-ia oposto, por isso ainda
bem que ele não me conseguia ver naquele momento. As lágrimas
escorriam dos olhos da mulher e brilhavam à luz das velas. Era a
governanta, nem sequer da família, e lembro-me de pensar que ele
devia ser realmente muito bom para ela estar tão transtornada.
— O médico não tarda a chegar — disse-lhe —, e ele vai dar-lhe algo
para as dores.
— Toda a vida sofreu — respondeu-me ela. —
Também tenho sido um grande incômodo para ele. Vive apavorado com
a idéia da morte. Ele é um pecador e sabe o que o espera.
O que quer que fosse que tivesse feito, o velho padre não merecia isto.
Ninguém merecia. Era sem dúvida um homem corajoso. Ou corajoso, ou
muito estúpido.
Quando o demônio começara a fazer das suas, ele tentara enfrentá-lo
sozinho usando as ferramentas de um padre: o sino, o livro e a vela.
Mas não é assim que se lida com o escuro. Na maior parte dos casos não
teria feito diferença, porque o demônio limitar-se-ia a ignorar o padre e
o seu exorcismo. Ele acabaria por se ir embora e o padre, como sucede
com frequência, ficaria com os louros.
Mas este era o tipo de demônio mais perigoso que temos de enfrentar.
Normalmente, chamamos-lhes «estripadores de gado» por causa da sua
dieta principal, mas quando o padre começara a interferir, ele é que
passara a ser a vítima. Era agora um «estripador» plenamente
desenvolvido com gosto por sangue humano e o padre teria muita sorte
se conseguisse escapar com vida.
Havia uma fenda no chão lajeado, uma fenda em ziguezague que vinha
da base do altar até cerca de três passos para além do padre. No seu
ponto mais largo era mais um abismo e tinha quase meio palmo de
largura.
Depois de fender o chão, o demônio agarrara o padre pelo pé e arrastara
a sua perna para dentro do solo quase até ao joelho. Agora, lá em baixo
no escuro, sugava-lhe o sangue, retirando-lhe a vida muito lentamente.
Era como uma sanguessuga grande e gorda, mantendo a vítima o
máximo possível para prolongar o seu próprio prazer.
O que quer que eu fizesse, seria muito difícil prever se o padre
sobreviveria. De qualquer das formas, eu tinha de aprisionar o demônio.
Agora que provara sangue humano, já não se contentaria em estripar
gado.
— Salve-o, se puder — pedira o Mago, quando me preparava para partir.
— Mas, independentemente do que possa fazer, certifique-se de que
trate do demônio. É esse o seu primeiro dever.
Comecei a efetuar os meus próprios preparativos.
Deixando que o ajudante do aparelhador continuasse a abrir o poço,
voltei para o celeiro na companhia do próprio aparelhador. Ele sabia o
que tinha a fazer: em primeiro lugar, deitou água no balde grande que
tinham trazido com eles. Eis uma vantagem de trabalhar com pessoas
experientes na matéria: providenciavam o equipamento pesado. Era um
balde forte, feito de madeira, unido com aros de metal e com capacidade
suficiente para fazer face até mesmo a um poço com três metros e
sessenta de profundidade.
Depois de enchê-lo quase até a metade com água, o aparelhador
começou a deitar um pó castanho de um saco grande que trouxera da
carroça. Foi deitando um pouco de cada vez e depois, após cada adição,
começou a mexer com um pau grosso.
Não tardou a tornar-se um trabalho árduo pois, muito gradualmente, a
mistura transformou-se numa substância viscosa que foi sendo cada vez
mais difícil de mexer. Além disso cheirava mal, como algo que estava
morto há semanas, o que não surpreendia realmente, atendendo a que o
conteúdo principal do pó era osso triturado. O resultado final seria uma
cola muito forte, e quanto mais o aparelhador a mexia, mais suava e
arfava. O Mago preparava sempre a sua própria cola, e obrigara-me a
exercitar, mas o tempo urgia e o aparelhador possuía músculos para a
tarefa. Sabendo isso, começara a trabalhar sem que fosse necessário
pedir-lhe.
Quando a cola ficou pronta, comecei a acrescentar limalhas de ferro e sal
dos sacos muito menores que trouxera comigo, mexendo lentamente
para garantir que se espalhavam uniformemente na mistura. O ferro é
perigoso para um demônio porque lhe retira a força, ao passo que o sal
o queima. Assim que um demônio se encontra no poço, permanecerá lá
porque a parte inferior da pedra e os lados do poço são cobertos com a
mistura, obrigando-o a encolher-se e a ficar dentro dos limites do espaço
interior. Claro que o problema principal reside em atrair o demônio ao
poço.
De momento, eu não estava preocupado com isso.
Por fim, o aparelhador e eu demo-nos por satisfeitos. A cola estava
pronta.
Como o poço ainda não ficara concluído, eu não podia fazer nada a não
ser esperar pelo médico na viela estreita e torta que conduzia a
Horshaw.
A chuva parara e o ar parecia muito calmo. Estava-se em finais de
Setembro e o tempo começara a piorar.
Em breve iríamos ter mais do que apenas chuva, e o primeiro ribombar
súbito de um trovão a oeste deixou-me ainda mais nervoso. Passados
cerca de vinte minutos ouvi o som de cascos ao longe. Cavalgando como
se todos os cães do Inferno o perseguissem, o médico apareceu na
curva, o seu cavalo a pleno galope, a capa a esvoaçar atrás dele.
Eu empunhava o bordão do Mago pelo que foram desnecessárias as
apresentações e, em qualquer dos casos, o médico viera tão depressa
que estava sem fôlego. Por isso, limitei-me a baixar-lhe a cabeça e ele
deixou o seu cavalo suado a mastigar a erva alta na frente da igreja e
seguiu-me até à porta lateral. Mantive-a aberta por uma questão de
respeito para que ele pudesse entrar primeiro.
O meu pai ensinara-me a ter respeito por toda a gente, porque só assim
nos poderiam também respeitar.
Eu não conhecia este médico, mas o Mago insistira nele, por isso tive a
certeza de que seria bom no que fazia.
Chamava-se Sherdley e trazia uma maleta de couro preto.
Parecia quase tão pesada quanto o saco do Mago, que trouxera comigo e
deixara no celeiro. Pousou-a a cerca de um metro e oitenta do paciente
e, ignorando a governanta, que continuava a soluçar em seco, iniciou o
seu exame.
Eu fiquei mesmo atrás dele e para um dos lados de modo a que pudesse
ter a melhor visão possível. Delicadamente, levantou a sotaina preta do
padre expondo-lhe as pernas.
A perna direita era magra, branca e quase sem pêlos mas a esquerda,
aquela que o demônio agarrava, estava vermelha e inchada, com veias
roxas salientes que escureciam à medida que se aproximavam da
enorme fenda no chão. O médico abanou a cabeça e expirou muito
devagar. Quando falou com a governanta, a sua voz era tão baixa que
mal se percebiam as palavras.
— Vai ter de ser cortada — disse. — É a única esperança dele. — Ante
aquilo, as lágrimas começaram a descer novamente pelas faces dela e o
médico olhou para mim e apontou para a porta. Uma vez lá fora,
encostou-se à parede e suspirou.
— Quanto tempo até estar preparado? — indagou.
— Menos de uma hora, Doutor — respondi —, mas depende do pedreiro.
Ele ficou de trazer a pedra pessoalmente.
— Se demorar muito mais, vamos acabar por perdê-lo. A verdade é que
também não alimento muitas esperanças em relação a ele. Nem sequer
lhe posso dar nada para as dores no momento, porque o seu organismo
não irá aguentar duas doses e terei de lhe ministrar algo mesmo antes
de amputar. Ainda assim, o choque poderia matá-lo imediatamente. O
fato de termos de transferi-lo logo a seguir só vem agravar a situação.
Encolhi os ombros. Nem sequer me agradava pensar no assunto.
— Sabe exatamente o que se tem de fazer? — perguntou o médico,
observando o meu rosto com atenção.
— Mr. Gregory explicou-me tudo — respondi, tentando mostrar-me
confiante. Na verdade, o Mago não me explicara apenas uma vez, fizera-
o pelo menos uma dúzia de vezes. A seguir, obrigara-me a repetir-lhe
tudo sucessivamente até se dar por satisfeito.
— Há cerca de quinze anos, tivemos de lidar com um caso semelhante —
referiu o médico. — Fizemos o que podíamos, mas o homem morreu
mesmo assim e era um jovem agricultor, forte como um touro e na
primavera da vida. Torçamos por sorte. Às vezes os velhotes são muito
mais rijos do que se pensa.
Seguiu-se um longo silêncio, que interrompi confirmando algo que me
andava a preocupar.
— Nesse caso sabe que vou precisar de um pouco do sangue dele.
— Quando você nasceu eu já andava aqui há muitos anos — resmungou
o médico, depois esboçou-me um sorriso cansado e apontou para a viela
na direção de Horshaw. — Vem aí o pedreiro, por isso é melhor ir fazer o
seu serviço. Deixe que eu encarrego-me do resto.
Pus-me à escuta e ouvi o som distante de uma carroça a aproximar-se,
de modo que voltei a passar pelas lápides para ver como se estavam a
sair os aparelhadores.
O poço estava pronto e tinham já montado a plataforma de madeira
debaixo da árvore. O ajudante do aparelhador subira à árvore e estava a
fixar o cadernal e a roldana num ramo forte. Era um dispositivo do
tamanho da cabeça de um homem, feito de ferro, de onde pendiam
correntes e um gancho grande. Iríamos necessitar de sustentar o peso
da pedra e posicioná-la com muito rigor.
— Chegou o pedreiro — anunciei.
Imediatamente, ambos os homens deixaram o que estavam a fazer e
seguiram-me na direção da igreja.
Havia agora outro cavalo à espera na viela, a pedra assente na traseira
da carroça. Até aqui, tudo bem, mas o pedreiro não tinha um ar muito
satisfeito e evitou os meus olhos. Mesmo assim, sem perdermos tempo,
trouxemos a carroça pelo caminho mais longo até ao portão que
conduzia ao campo.
Uma vez perto da árvore, o pedreiro enfiou o gancho na argola no meio
da pedra e esta foi içada da carroça.
Teríamos de esperar para ver se iria caber rigorosamente.
Sem dúvida o pedreiro colocara a argola corretamente porque a pedra
ficou suspensa horizontalmente da corrente em perfeito equilíbrio.
Foi descida até uma posição a cerca de dois passos da beira do poço.
Depois, o pedreiro deu-me a má notícia.
Tinha a filha mais nova muito doente com febre, aquela que grassava no
Condado e obrigara o Mago a ficar de cama. A mulher estava à cabeceira
da pequena e ele tinha de regressar imediatamente.
— Lamento — disse, olhando-me como deve ser nos olhos pela primeira
vez. — Mas a pedra é das boas e não terá problemas. Posso lhe garantir
isso.
Acreditei nele. Esforçara-se ao máximo e trabalhara a pedra num curto
período de tempo, quando preferia ter estado junto da filha.
Então paguei-lhe e mandei-o embora agradecendo-lhe em meu nome e
no do Mago, e desejando-lhe as rápidas melhoras da filha.
A seguir meti mãos à obra. Para além de cinzelarem a pedra, os
pedreiros são peritos a posicioná-la, pelo que teria preferido que ele
ficasse não fosse algo correr mal.
Mesmo assim, o aparelhador e o ajudante eram bons no seu ofício. Eu só
precisava de manter a calma e ter cuidado para não cometer erros
estúpidos.
Primeiro tinha de trabalhar rapidamente e revestir as paredes do poço
com a cola; e, por último, a parte inferior da pedra, mesmo antes de ser
baixada para ficar na posição correta.
Desci ao poço e, servindo-me da trincha e trabalhando à luz da lanterna
que o ajudante do aparelhador segurava, meti mãos à obra. Era um
processo moroso.
Não podia permitir-me falhar o pedaço mais ínfimo pois isso seria
suficiente para o demônio escapar. E tendo o poço apenas um metro e
oitenta de fundo em vez dos regulamentares dois metros e setenta,
precisava de ter cuidados redobrados.
A mistura aderiu ao solo enquanto eu trabalhava, o que foi bom, porque
não fenderia nem se soltaria facilmente quando o solo secasse no Verão.
O pior era a dificuldade em determinar a porção exata a aplicar de modo
a que ficasse no solo uma camada exterior suficientemente espessa. O
Mago avisara-me de que era algo que viria com a experiência. Até o
momento, ele estivera presente para verificar o meu trabalho e dar os
últimos retoques. Agora, teria de fazer o trabalho sozinho. A primeira.
Saí finalmente do poço e tratei da sua extremidade superior. Os últimos
trinta e cinco centímetros, a espessura da pedra, eram mais compridos e
mais largos do que o próprio poço, pelo que havia uma saliência para a
pedra assentar sem deixar o mais pequeno intervalo por onde o demônio
se pudesse esgueirar. Era necessário ter extrema atenção porque era o
lugar onde a pedra isolava o solo.
Quando terminei, houve um relâmpago e, segundos depois, o forte
ribombar de um trovão. A tempestade estava praticamente por cima de
nós.
Regressei ao celeiro para buscar algo importante no meu saco. Era o que
o Mago chamava um «prato-isca».
Feito de metal, fora especialmente fabricado para o trabalho e
apresentava três pequenos furos a igual distância uns dos outros, perto
da borda. Retirei-o, limpei-o com a manga, depois corri para a igreja a
fim de avisar o médico de que estávamos prontos.
Quando abri a porta, senti um forte cheiro a alcatrão e, mesmo à
esquerda do altar, ardia uma pequena fogueira. Por cima dela, num
tripé, uma panela borbulhava e salpicava. O Dr. Sherdley ia usar o
alcatrão para estancar a hemorragia. Pincelando o coto com ele evitaria
também que o resto da perna gangrenasse depois.
Sorri para mim quando vi onde o médico fora arranjar a lenha. Estava
úmido lá fora, por isso recorrera à única madeira disponível. Partira um
dos bancos da igreja.
O padre não iria ficar mesmo nada satisfeito, mas talvez lhe conseguisse
salvar a vida. Fosse como fosse, naquele momento ele estava
inconsciente, com a respiração muito profunda, e permaneceria assim
durante várias horas até os efeitos da poção passarem.
Vinha da fenda no chão o ruído do demônio a alimentar-se. Era um som
desagradável de engolir com força e sorver enquanto ia bebendo sangue
da perna. Estava preocupado demais para perceber que nos
encontrávamos por perto e nos preparávamos para pôr cobro à sua
refeição.
Não falamos. Limitei-me a fazer sinal com a cabeça ao médico e ele
retribuiu. Entreguei-lhe o prato fundo de metal para recolher o sangue
de que necessitava, e ele retirou da mala uma pequena serra de metal e
depois encostou os seus dentes frios e brilhantes ao osso mesmo por
cima do joelho do padre.
A governanta mantinha-se na mesma posição mas fechara os olhos com
força e murmurava para si mesma.
Estaria provavelmente rezando e era óbvio que não seria de grande
ajuda. Então, com um arrepio, ajoelhei-me ao lado do médico.
Ele abanou a cabeça. — Não é necessário assistir a isto — disse. — Sem
dúvida irá testemunhar pior um dia, mas não precisa de ser agora. Vá,
rapaz. Vai à sua vida. Eu trato disto. Depois mande-me aqui os outros
dois para me ajudarem a levá-lo para a carroça quando terminar.
Eu estivera a cerrar os dentes, pronto para enfrentar a situação, mas
não foi preciso que me dissessem duas vezes. Absolutamente aliviado,
voltei para o poço. Antes mesmo de lá chegar, ouvi um sonoro grito
cortar o ar seguido do som de um choro angustiado. Mas não era o
padre. Ele estava inconsciente. Era a governanta.
O aparelhador e o ajudante tinham já voltado a içar a pedra e estavam
entretidos a retirar a lama das botas.
Depois, quando voltaram para a igreja a fim de ajudarem o médico,
mergulhei a trincha no resto da mistura e apliquei uma camada
abundante na parte debaixo da pedra.
Mal tive tempo de admirar o meu trabalho, pois o ajudante voltou
correndo. Atrás dele, movendo-se muito mais lentamente, vinha o
aparelhador. Trazia o prato contendo o sangue, tendo o cuidado de não
entornar uma única gota. O prato-isca era uma peça muito importante
do equipamento. O Mago possuía uma reserva deles lá em Chipenden, e
tinham sido feitos de acordo com as suas próprias especificações.
Retirei uma corrente comprida da mala do Mago.
Presas a uma argola grande numa extremidade estavam três correntes
mais pequenas, cada uma terminando num pequeno gancho de metal.
Coloquei os três ganchos nos três buracos na borda do prato.
Quando levantei a corrente, o prato-isca ficou suspenso dela em perfeito
equilíbrio, pelo que não foi necessária demasiada perícia para fazê-lo
descer ao poço e pousá-lo cuidadosamente no centro.
Não, a perícia estava em soltar os três ganchos. Era preciso ter muito
cuidado ao afrouxar as correntes para que os ganchos se soltassem do
prato sem o emborcar e derramar o sangue.
Passara horas à exercitar-me e, apesar de estar muito nervoso, consegui
soltar os ganchos logo na primeira tentativa.
Agora era apenas uma questão de esperar.
Conforme referi já, os estripadores são os demônios mais perigosos
porque se alimentam de sangue. As suas mentes são normalmente
rápidas e muito engenhosas, mas quando estão se alimentando, pensam
muito lentamente e levam bastante tempo a perceber as coisas.
A perna amputada continuava presa na fenda no chão da igreja e o
demônio estava atarefado a sorver o sangue dela, mas chupava-o muito
devagar, de modo a fazê-lo durar. É assim que funciona um estripador.
Limita-se a sorver e chupar, não pensando em mais nada até perceber
lentamente de que cada vez vai lhe chegando menos sangue à boca.
Quer mais sangue, mas o sangue possui uma série de sabores diferentes
e agrada-lhe o gosto do que esteve a chupar. Agrada-lhe mesmo muito.
Por conseguinte, quer mais do mesmo, e assim que percebe que o resto
do corpo foi separado da perna, vai atrás dele. Foi por isso que os
aparelhadores tiveram de levar o padre para a carroça. Entretanto, a
carroça teria chegado já à orla de Horshaw, cada clip-clop dos cascos do
cavalo afastando-o sucessivamente do demônio furioso, desesperado por
mais daquele mesmo sangue.
Um estripador é como um sabujo. Conseguiria ter uma idéia muito
razoável da direção em que o padre era levado. E perceber também de
que ele estava a se afastar cada vez mais. Depois, notaria outra coisa.
Que o que ele queria estava muito próximo.
Fora por isso que eu colocara o prato no poço. Por esse motivo se
chamava «prato-isca». Era o embuste para levar o estripador à
armadilha. Assim que ele lá estivesse, a alimentar-se, tínhamos de agir
rapidamente e não nos poderíamos permitir cometer um único erro.
Olhei para cima. O ajudante encontrava-se na plataforma, uma mão na
corrente curta, pronto para começar a descer a pedra. O aparelhador
estava à minha frente, a sua mão na pedra, preparado para a posicionar
quando descesse. Nenhum deles parecia minimamente assustado, nem
sequer nervoso, e de repente foi agradável estar a trabalhar com
pessoas assim. Pessoas que sabiam o que estavam a fazer. Tínhamos
todos desempenhado o nosso papel, todos feito o que era preciso fazer o
mais rápida e eficientemente possível. Aquilo fez-me sentir bem.
Fez-me sentir parte de algo.
Esperamos em silêncio pelo demônio.
Passados alguns minutos, ouvimo-lo aproximar-se.
A princípio, parecia mais o vento a assobiar através das árvores.
Mas não havia vento. O ar estava perfeitamente parado e, numa estreita
faixa de luz das estrelas entre a orla de uma nuvem de trovoada e o
horizonte, era visível uma lua em crescente, juntando a sua luz pálida à
projetada pelas lanternas.
O aparelhador e o ajudante não conseguiam ouvir nada, claro, porque
não eram sétimos filhos de sétimos filhos como eu. Por isso tive de
alertá-los.
— Ele vem aí — disse. — Eu aviso-os quando chegar aqui.
Entretanto, o som da sua aproximação tornara-se mais estridente, quase
como um grito, e pude ouvir algo mais também: uma rosnadela cava,
ressoante. Atravessava rapidamente o cemitério, vindo direito ao prato
de sangue dentro do poço.
Ao contrário de um demônio normal, um estripador é ligeiramente mais
do que um espírito, especialmente quando acabou de se alimentar.
Mesmo assim, a maior parte das pessoas não consegue vê-lo mas sente-
o, como alguma coisa se lhes agarra à carne.
Nem sequer eu conseguia ver muito — apenas algo informe e de uma
cor parecida com um vermelho-rosado.
Depois, senti um movimento no ar próximo do meu rosto, e o estripador
desceu ao poço.
Dei o sinal ao aparelhador, que, por sua vez, o transmitiu ao ajudante,
que agarrou com mais força a corrente curta. Antes mesmo de puxá-la
veio um som do poço. Desta vez foi sonoro e nós os três ouvimos. Olhei
rapidamente para os meus companheiros e vi os olhos deles arregalados
e as bocas comprimidas com medo do que se encontrava por baixo de
nós.
O som que ouvíamos era o demônio a alimentar-se do prato. Parecia o
lamber ávido de uma língua monstruosa, combinado com o fungar e
resfolegar voraz de um grande carnívoro. Tínhamos menos de um
minuto antes de ele limpar tudo. Depois pressentiria o nosso sangue.
Tornara-se agora perigoso e todos nós constávamos no menu.
O ajudante começou a soltar a corrente e a pedra desceu firmemente.
Eu ajustava uma extremidade, o aparelhador a outra. Se eles tivessem
aberto o poço com rigor e a pedra tivesse exatamente o tamanho
especificado no esboço, não haveria problema. Era o que eu dizia para
mim — mas não conseguia deixar de pensar no último aprendiz do
Mago, o pobre Bily Bradley, que morrera ao tentar aprisionar um
demônio como este. A pedra ficara encravada, prendendo-lhe os dedos
debaixo da borda.
Antes de a conseguirem soltar, o demônio mordera-lhe os dedos e
sugara-lhe o sangue. Mais tarde, morrera do choque. Não conseguia
afastar aquilo do meu pensamento por mais que me esforçasse.
O importante era colocar a pedra no poço de primeira — e, logicamente,
manter os meus dedos bem longe dela.
O aparelhador assumira o controle, ocupando o lugar do pedreiro. A um
sinal seu, a corrente parou quando a pedra se encontrava levantada
apenas uma fração de centímetro. Olhou então para mim, de rosto muito
sério, e arqueou o sobrolho direito. Eu olhei para baixo e desloquei a
minha extremidade da pedra muito ligeiramente pelo que dava a
impressão de estar na posição perfeita.
Voltei a verificar apenas para ter a certeza, depois acenei ao
aparelhador, que fez sinal ao seu ajudante.
Algumas voltas da corrente curta e a pedra assentou na posição de
primeira, prendendo o demônio no poço.
Brotou um grito de raiva do estripador e todos nós o ouvimos. Mas não
tinha importância porque agora estava aprisionado e não havia mais
nada a temer.
— Um trabalho bem feito! — exclamou o ajudante, saltando da
plataforma, um sorriso a rasgar-lhe a boca de orelha a orelha. — O
encaixe perfeito!
— Sim — concordou o aparelhador, gracejando com secura. — Parece
mesmo feito sob medida!
Senti uma imensa sensação de alívio, feliz por tudo ter terminado.
Depois, quando o trovão ribombou e o relâmpago incidiu diretamente
iluminando a pedra, reparei, pela primeira vez, no que o pedreiro
gravara ali e, de repente, senti-me muito orgulhoso.
A letra maiúscula grega beta, atravessada por uma diagonal, era o sinal
de que fora aprisionado ali um demônio. Por debaixo dela, do lado
direito, o numeral romano um significava que era um demônio perigoso
da primeira categoria. Havia dez categorias ao todo e os da primeira à
quarta podiam matar. Depois, por baixo, estava o meu próprio
nome, Ward, que me atribuía o mérito do que fora feito. Acabara de
aprisionar o meu primeiro demônio. E
fora logo um estripador!
CAPÍTULO 2
O PASSADO DO MAGO
Dois dias depois, de regresso a Chipenden, o Mago quis que eu lhe
contasse tudo o que sucedera. Quando terminei, obrigou-me a repetir.
Feito isso, coçou a barba e soltou um imenso suspiro.
— O que disse o médico a respeito daquele pateta do meu irmão? —
indagou o Mago. — Espera que ele recupere?
— Ele referiu que parecia que o pior já passara, mas que era cedo
demais para dizer.
O Mago anuiu pensativamente. — Bem, rapaz, agiu corretamente —
disse ele. — Não me ocorre nada que pudesse ter feito melhor. Por isso,
pode descansar o resto do dia. Mas não deixe que te suba à cabeça.
Amanhã voltamos no mesmo. Depois de toda aquela agitação precisa de
retomar uma rotina fixa.
No dia seguinte, treinou-me com o dobro da intensidade habitual. As
lições começaram pouco depois da alvorada e incluíram o que ele
chamava de «práticas». Apesar de nesta altura eu ter já aprisionado um
demônio de verdade, isso implicava treinar a abertura de poços.
— Tenho mesmo de abrir outro poço de demônio?
— perguntei em tom enfastiado.
O Mago fitou-me com uma expressão fulminante até eu baixar o olhar,
sentindo-me muito desconfortável.
— Acha-se superior a tudo isso agora, rapaz? —
inquiriu ele. — Pois não é, por isso não fique todo presunçoso! Ainda tem
muito que aprender. Pode ter aprisionado o seu primeiro demônio, mas
contou com a ajuda de bons homens. Um dia pode ter de ser você
mesmo a abrir o poço e a fazê-lo rapidamente a fim de salvar uma vida.
Depois de abrir o poço e revesti-lo de sal e ferro, tive de treinar a
colocação do prato-isca no fundo do poço sem entornar uma única gota
de sangue. Claro que, como fazia apenas parte da minha preparação,
usamos água em vez de sangue, mas o Mago levou tudo muito a sério e
por norma aborrecia-se se eu não conseguia fazê-lo de primeira. Mas
nesta ocasião ele não teve hipótese. Eu conseguira-o em Horshaw e fui
igualmente bom na prática, conseguindo-o dez vezes seguidas. Não
obstante, o Mago não me disse uma só palavra de louvor e começava já
a sentir-me um pouco aborrecido.
A seguir veio uma prática realmente do meu agrado
— usar a corrente de prata do Mago. Havia um poste de um metro e
oitenta colocado no jardim ocidental e a idéia era lançar a corrente sobre
ele. O Mago obrigou-me a ficar a várias distâncias dele e treinar durante
mais de uma hora seguida, sem nunca esquecer que a dada altura
poderia estar realmente a enfrentar uma bruxa seriamente e que se
falhasse, não teria outra oportunidade. Havia uma maneira especial de
usar a corrente. Tinha de ser enrolada na mão esquerda e arremessada
com um movimento do pulso de modo a fazê-la rodar às avessas, caindo
numa espiral canhota para envolver o poste e manter-se firme nele. À
distância de dois metros e quarenta, eu era capaz de fazer enrolar a
corrente no poste nove em dez vezes mas, como sempre, o Mago foi
parco nos seus elogios.
— Acho que não está mal — comentou ele. —
Mas não se envaideça, rapaz. Uma bruxa verdadeira não te fará o
obséquio de ficar quieta enquanto atira a corrente.
Até o final do ano, conto que acerte dez de dez tentativas e nada menos!
Senti-me mais do que um pouco aborrecido. Estivera a trabalhar
arduamente e melhorara bastante. E não só, acabara de aprisionar o
meu primeiro demônio e conseguira-o sem qualquer ajuda do Mago.
Pus-me a pensar se ele teria conseguido fazer melhor durante o seu
aprendizado!
De tarde, o Mago deixou-me entrar na sua biblioteca para trabalhar
sozinho, lendo e tomando notas, mas apenas me autorizou a ler
determinados livros. Era muito rigoroso nesse aspecto. Eu estava ainda
no meu primeiro ano, pelo que os demônios constituíam a minha
principal área de estudo. Mas às vezes, quando ele estava fora a tratar
de algo, eu não conseguia deixar de dar também uma espreitadela em
alguns dos seus outros livros.
Assim, depois de ler até à saciedade sobre demônios, dirigi-me às três
prateleiras compridas perto da janela e escolhi um dos livros de
apontamentos encadernados em couro mesmo na prateleira de cima.
Eram diários, alguns deles escritos por magos há centenas de anos.
Cada um abrangia um período de cerca de cinco anos.
Desta vez, eu sabia exatamente o que procurava.
Escolhi um dos primeiros diários do Mago, curioso em saber como ele se
saíra nas funções quando era jovem e se conseguira melhores resultados
do que eu. Claro que ele fora padre antes de receber a preparação para
ser mago, por isso era já um pouco velho para aprendiz.
Fosse como fosse, escolhi algumas páginas ao acaso e comecei a ler.
Reconheci a caligrafia dele, claro, mas um desconhecido a ler pela
primeira vez um excerto não teria imaginado que fora escrito pelo Mago.
Quando ele fala, a sua voz é típica do Condado, realista e sem qualquer
vestígio daquilo que o meu pai chama «boas maneiras adquiridas».
Quando ele escreve é diferente. É como se todos aqueles livros que leu
lhe tivessem alterado a voz, ao passo que eu escrevo principalmente da
maneira como falo: se o meu pai alguma vez lesse as minhas anotações
ficaria orgulhoso de mim e saberia que eu não deixara de ser filho dele.
A princípio, o que li não me pareceu muito diferente das anotações mais
recentes do Mago, para além do fato de ele ter cometido mais erros.
Como sempre, era muito honesto, e explicava como fora que errara.
Como me estava sempre a dizer, era importante anotar tudo e aprender
assim com o passado.
Descrevia como, uma semana, passara horas e horas a treinar com o
prato-isca e o seu mestre se zangara porque ele não conseguia uma
média melhor do que oito em dez! Senti-me logo mais animado. E
depois apareceu algo que me deixou ainda mais satisfeito. O Mago só
aprisionara o seu primeiro demônio depois de ser aprendiz há quase
dezoito meses. E mais, fora apenas um demônio peludo, não um
perigoso estripador!
Aquilo foi o melhor que consegui encontrar para me animar: o Mago
fora, manifestamente, um aprendiz bom e esforçado. Bastante do que
encontrei era rotina, por isso saltei rapidamente as páginas até chegar
ao ponto em que o meu mestre se tornara mago, trabalhando por sua
conta. Já vira tudo o que precisava de ver e preparava-me para fechar o
livro quando algo me despertou a atenção. Voltei atrás, ao começo da
anotação apenas para me certificar, e eis o que li. Não está exatamente
palavra por palavra, mas tenho boa memória e anda bastante perto. E,
depois de ler o que ele escrevera, com certeza que não o ia esquecer.
Nos finais do Outono, desloquei-me à remota parte norte do Condado,
chamado ali para tratar de um inumano, uma criatura que andava há
tempo demais espalhando o terror no distrito. Muitas famílias na
localidade tinham sofrido nas suas mãos cruéis e houvera muitas mortes
e mutilações.
Desci à floresta ao lusco-fusco. Todas as folhas tinham caído e jaziam
podres e castanhas no solo, e a torre era como um dedo demoníaco
negro a apontar para o céu. Fora vista uma menina a acenar da sua
única janela, pedindo freneticamente ajuda. A criatura apossara-se dela
c conservava-a agora como seu joguete, aprisionando-a dentro destas
paredes de pedra úmidas e frias.
Primeiro acendi uma fogueira e fiquei sentado a olhar para as chamas
enquanto me enchia de coragem. Tirando a pedra de amolar do meu
saco, afiei a lâmina até os meus dedos não poderem lhe tocar na
extremidade sem que brotasse sangue. Por fim, à meia-noite, fui à torre
e bati sucessivamente à porta com o meu bordão, lançando um desafio.
A criatura apareceu brandindo uma boca enorme e bramiu de raiva. Era
uma coisa medonha vestida com peles de animais, tresandando a
sangue e gordura animal, e atacou-me com terrível fúria.
A princípio recuei, aguardando a minha oportunidade, mas na vez
seguinte que ela se atirou em mim, soltei a lâmina do seu recesso no
meu bordão e, usando de toda a minha força, enterrei-a fundo na
cabeça. Caiu morta aos meus pés mas não senti pena de lhe tirar a vida,
pois teria voltado a matar sucessivamente sem nunca se dar por
saciada.
Foi então que a menina chamou por mim, a sua voz de sereia atraindo-
me para as escadas de pedra. Ali, no quarto mais alto da torre,
encontrei-a numa cama de palha; bem amarrada com uma comprida
corrente de prata. De pele leitosa e cabelo louro comprido, ela era de
longe a mulher mais bela que alguma vez os meus olhos tinham visto.
Chamava-se Meg e suplicou-me que a libertasse da corrente e a sua voz
foi tão persuasiva que o meu raciocínio desapareceu e o mundo girou à
minha volta.
Assim que a soltei das voltas da corrente ela comprimiu os seus lábios
com força contra os meus. E foram tão doces os seus beijos que quase
desfaleci nos braços dela.
Acordei com o sol a entrar pela janela e vi-a bem pela primeira vez. Era
uma das bruxas lâmia, e exibia a marca da cobra.
Apesar do seu belo rosto, a sua coluna estava coberta de
escamas verdes e amarelas.
Cheio de raiva pelo logro dela, voltei a prendê-la com a corrente e levei-
a para o poço em Chipenden. Quando a soltei, ela debateu-se tanto que
mal a consegui vencer e vi-me obrigado a puxá-la pelos longos cabelos
através das árvores, enquanto ela protestava e gritava a ponto de
acordar os mortos. Chovia intensamente e ela escorregava na erva
molhada mas continuei a arrastá-la pelo solo, apesar de os seus braços e
pernas despidos ficarem arranhados. Era cruel, mas tinha de ser feito.
Porém quando ia enfiá-la pela borda do poço, ela agarrou-se aos meus
joelhos e começou a soluçar que dava pena. Fiquei ali bastante tempo,
cheio de angústia, prestes a atirar-me pela borda, até que por fim tomei
uma decisão de que me posso vir a arrepender.
Ajudei-a a levantar-se, envolvi-a com os braços e choramos ambos.
Como podia colocá-la no poço, quando percebi de que a amava mais do
que a minha própria alma?
Supliquei-lhe que me perdoasse e depois, viramo-nos os dois e, de mão
dadas, afastamo-nos do poço.
Com este encontro ganhei uma corrente de prata, um instrumento
dispendioso que, de outro modo, só ao cabo de muitos meses
de trabalho árduo teria conseguido adquirir. Nem quero pensar no
que perdera ou podia vir ainda a perder. A beleza é uma coisa
terrível: prende um homem com mais força do que uma corrente de
prata numa bruxa.
Nem queria acreditar no que acabara de ler! O Ma-go avisara-me por
mais de uma vez em relação às mulheres bonitas, mas aqui ele quebrara
a sua própria regra! Meg era uma bruxa e, no entanto, ele não a
colocara no poço!
Folheei rapidamente o resto do livro de apontamentos, na esperança de
encontrar mais alguma referência a ela, mas não havia nada — nada de
nada! Era como se ela tivesse deixado de existir.
Eu sabia um pouco sobre bruxas, mas nunca antes ouvira falar de uma
bruxa lâmia, por isso guardei o livro de apontamentos e fui procurar na
prateleira de baixo, onde os livros estavam ordenados alfabeticamente.
Abri um livro intitulado Bruxas mas não encontrei qualquer referência a
Meg. Por que não escrevera o Mago a respeito dela? O que lhe
acontecera? Ainda estava viva? Ainda andava em algum lugar por aí pelo
Condado?
Estava realmente curioso e tive outra idéia; retirei um livro da prateleira
mais baixa. Este intitulava-se O Bestiário, e consistia numa listagem
alfabética de todo o tipo de criaturas, inclusive bruxas. Encontrei
finalmente a anotação que pretendia: Bruxas lâmia.
Parecia que as bruxas lâmia eram naturais do Condado, mas provinham
de terras do outro lado do mar. Evitavam a luz do Sol, mas à noite
atacavam os homens e bebiam-lhes o sangue. Mudavam de forma e
pertenciam a duas categorias diferentes: as selvagens e as domésticas.
As selvagens eram as bruxas lâmia no seu estado natural, perigosas e
imprevisíveis e com muito poucas semelhanças com os humanos.
Possuíam todas escamas e garras em vez de unhas. Algumas corriam
pelo solo sobre os quatro membros, ao passo que outras tinham asas e
penas na parte superior do corpo mas apenas conseguiam voar curtas
distâncias.
No entanto, uma lâmia selvagem podia tornar-se uma lâmia doméstica
através do contacto estreito com os humanos. Muito gradualmente,
assumia a forma de uma mulher e parecia humana à exceção de uma
linha estreita de escamas verdes e amarelas que ainda se podia
encontrar nas suas costas, estendendo-se ao longo da espinha.
Sabia-se, inclusivamente, que as lâmias domésticas podiam vir a
partilhar as crenças humanas. Com frequência, deixavam de ser
malévolas e tornavam-se benignas, trabalhando para o bem dos outros.
Será que era verdade que Meg se tornara benigna?
Teria o Mago razões para não a aprisionar no poço?
De repente, percebi de que era tarde e saí correndo da biblioteca, com a
cabeça a girar. Alguns minutos mais tarde, o meu mestre e eu
estávamos na orla do jardim ocidental, debaixo das árvores com uma
visão nítida das extensões rochosas, o sol de Outono a descer para o
horizonte. Sentei-me no banco como de costume, atarefado a tomar
notas enquanto o Mago andava para cá e para lá a ditar. Mas não
conseguia me concentrar.
Tínhamos começado por uma aula de latim. Eu tinha um caderno
especial onde apontava a gramática e o vocabulário novo que o Mago me
ensinava. Havia uma série de listas e o caderno estava quase cheio.
Quis confrontar o Mago com o que acabara de ler, mas como podia fazê-
lo? Eu próprio quebrara a regra não me cingindo aos livros que ele
especificara. Não era suposto ter estado a ler os seus diários e agora
arrependia-me de o ter feito. Se lhe mencionasse algo, sabia que ele
ficaria zangado.
Em virtude do que lera na biblioteca, sentia cada vez maior dificuldade
em me concentrar no que ele dizia.
Tinha também fome e não podia esperar até chegar a hora da ceia.
Normalmente, os serões eram meus e podia fazer o que quisesse, mas
hoje ele obrigara-me a trabalhar arduamente. Mesmo assim, dispunha
ainda de cerca de uma hora antes de o Sol se pôr e o pior das lições já
passara.
Então ouvi um som que me fez gemer por dentro.
Era um sino a tocar. Não um sino de igreja. Não, este tinha o timbre
mais estridente e fraco de um sino de menores dimensões — aquele que
era usado pelas nossas visitas. Ninguém estava autorizado a ir a casa do
Mago, por isso as pessoas vinham até à encruzilhada e tocavam o sino
ali existente para que o meu mestre soubesse que precisavam de ajuda.
— Vá ver o que é, rapaz — disse o Mago, fazendo sinal com a cabeça na
direção do sino. Por via de regra, teríamos ido ambos, mas ele ainda
estava muito combalido da doença.
Não me apressei. Mal deixei de poder ser visto da casa, adotei um passo
perambulante. Era quase crepúsculo, pelo que não se poderia fazer nada
esta noite, especialmente com o Mago ainda não completamente
recuperado, por isso teria de ficar tudo para a manhã seguinte.
Eu regressaria com um relato do problema e transmitiria ao Mago os
pormenores durante a ceia. Quanto mais tarde regressasse, menos
haveria que escrever. Já fizera o suficiente por um dia e doía-me o
pulso.
Encoberto por salgueiros, que nós no Condado chamávamos de «vimes»,
a encruzilhada era um lugar soturno mesmo ao meio-dia e sempre me
deixava nervoso.
Em primeiro lugar, nunca se sabia o que podia estar ali à espera; em
segundo, eram quase sempre más notícias porque é isso que os traz ali.
Precisavam da ajuda do Ma-go.
Desta vez estava ali à espera um rapaz. Calçava botas grandes de
mineiro e tinha as unhas sujas. Parecendo ainda mais nervoso do que eu
me sentia, desenrolou a sua história tão depressa que os meus ouvidos
não conseguiram acompanhar e tive de lhe pedir que repetisse. Quando
se foi embora, regressei a casa.
Desta vez não deambulei, corri.
O Mago estava de pé junto ao banco, de cabeça baixa. Quando me
aproximei, olhou para cima e o seu rosto parecia triste. Acho que de
certa forma ele sabia o que eu ia lhe dizer, mas contei-lhe na mesma.
— Trago más notícias de Horshaw — anunciei, tentando recuperar o
fôlego. — Lamento, mas trata-se do seu irmão. O médico não conseguiu
salvá-lo. Morreu ontem de manhã, mesmo antes da alvorada. O funeral
é na sexta-feira de manhã.
O Mago soltou um suspiro longo e profundo e durante vários minutos
não falou. Não sabia o que dizer, de modo que permaneci em silêncio.
Era difícil adivinhar o que ele sentia. Como não se falavam há mais de
quarenta anos, não podiam ser muito chegados, mas o padre não
deixava de ser seu irmão e devia ter algumas lembranças felizes dele,
talvez de antes de terem discutido ou de quando eram crianças.
Por fim, o Mago voltou a suspirar e falou então.
— Vamos, rapaz — disse. — Temos de cear mais cedo.
Comemos em silêncio. O Mago debicava a comida e perguntei-me se
seria por causa das más notícias em relação ao irmão ou porque ainda
não recuperara o apetite em virtude de estar doente. Costumava proferir
algumas palavras, nem que fosse só para me perguntar como estava a
refeição. Era quase um ritual, porque tínhamos de elogiar
constantemente o demônio de estimação do Mago, que preparava todas
as refeições, senão ele ficava amuado.
Era muito importante elogiar a ceia, senão na manhã seguinte o
toucinho defumado vinha esturricado.
— O guisado está realmente muito bom — referi por fim. — Não me
lembro da última vez em que comi um tão bom.
O demônio era praticamente invisível, mas às vezes assumia a forma de
um gato grande cor de camarão; se estava realmente satisfeito,
esfregava-se nas minhas pernas debaixo da mesa da cozinha. Desta vez
não houve sequer um ligeiro ronronar. Ou eu não parecera muito
convincente ou mantinha-se em silêncio por causa da má notícia.
De repente, o Mago afastou o seu prato e coçou a barba com a mão
esquerda.
— Vamos a Priestown — anunciou solenemente.
— Partiremos amanhã logo pela manhã.
Priestown? Nem queria acreditar no que estava a ouvir. O Mago evitava
aquele lugar como a peste e dissera-me uma vez que nunca mais
voltaria a pôr os pés dentro dos seus limites. Não explicara a razão e eu
nunca lhe perguntara, porque se via bem quando ele não queria explicar
algo. Mas quando tínhamos estado muito perto da costa e fora
necessário atravessar o rio Ribble, o ódio do Mago à cidade constituíra
verdadeiramente uma contrariedade. Em vez de usarmos a ponte de
Priestown, tínhamos sido obrigados a percorrer quilômetros para o
interior até à seguinte para podermos nos manter longe dela.
— Porquê? — inquiri, a minha voz pouco acima de um murmúrio,
perguntando-me se estaria a dizer algo que o fosse aborrecer. — Julguei
que pudéssemos ir a Horshaw para o funeral.
— Nós vamos ao funeral, rapaz — respondeu o Mago, em voz muito
calma e paciente. — O pateta do meu irmão trabalhava apenas em
Horshaw, mas era padre: quando morre um padre no Condado, levam o
seu corpo para Priestown e realizam uma cerimônia fúnebre na grande
catedral de lá antes de sepultarem os seus ossos no adro da igreja.
— Nesse caso, vamos lá prestar a nossa última homenagem. Mas essa
não é a única razão. Tenho um assunto pendente naquela maldita
cidade. Vá buscar o seu livro de apontamentos, rapaz. Abra-o numa
nova página e anote o seguinte título. .
Ainda não terminara o guisado mas obedeci de imediato ao pedido dele.
Quando falara em «assunto pendente», soubera que se referia a assunto
de mago, por isso tirei do bolso o frasco de tinta e coloquei-o em cima
da mesa ao lado do meu prato.
Fez-se luz no meu cérebro. — Refere-se ao estripador aprisionado? Acha
que fugiu? Não houve tempo para abrir um poço de dois metros e
setenta. Acha que ele fugiu para Priestown?
— Não, rapaz, agiu corretamente. Existe algo bem pior do que isso, lá. A
cidade está amaldiçoada! Amaldiçoada por algo que enfrentei pela última
vez há mais de vinte anos. Levou a melhor sobre mim e deixou-me de
cama seis meses. Na verdade, quase morri. Desde então, nunca mais lá
voltei, mas como temos necessidade de lá ir, agora, aproveito para
resolver este tal assunto pendente.
Não, não é um simples estripador que atormenta aquela cidade maldita.
É um espírito maléfico antigo chamado «o Destruidor» e é único no seu
gênero. Está ficando cada vez mais forte, por isso tem de se fazer algo e
não o posso adiar por mais tempo.
Escrevi «Destruidor» no cabeçalho de uma nova folha, mas depois, para
minha desilusão, o Mago abanou de repente a cabeça, seguindo-se um
enorme bocejo.
— Pensando bem, terá de ficar para amanhã, rapaz.
É melhor terminar a sua ceia. Vamos sair bem de manhãzinha, por isso
convém deitarmo-nos cedo.
CAPÍTULO 3
O DESTRUIDOR
Partimos pouco depois da alva, levando eu o pesado saco do Mago, como
de costume. Decorrida uma hora porém, percebi que a viagem nos
levaria pelo menos dois dias.
Por norma, o Mago caminhava a um ritmo extraordinário, obrigando-me
a um esforço para o acompanhar, mas ele ainda estava fraco, ficava
constantemente sem fôlego e tinha de parar para descansar.
Estava um belo dia ensolarado, apenas com um restinho de frio outonal
no ar. O céu estava azul e as aves cantavam, mas nada disso importava.
Não conseguia deixar de pensar no Destruidor.
O que me preocupava era o fato de o Mago já ter sido quase morto uma
vez ao tentar aprisioná-lo. Agora estava mais velho e, se não
recuperasse as forças em breve, como podia ter esperanças de vencê-lo
desta vez?
Então, ao meio-dia, quando paramos para um longo descanso, decidi
inquiri-lo sobre este espírito terrível.
Não o fiz logo porque, para minha surpresa, quando nos sentamos os
dois no tronco de uma árvore tombada, ele retirou do seu saco um
grande naco de presunto e cortou uma generosa porção para cada um
de nós. Normalmente, quando íamos a caminho de um trabalho,
tínhamos de nos contentar com umas míseras dentadinhas de queijo
porque era preciso jejuarmos antes de enfrentarmos o escuro.
Mesmo assim, tinha fome, por isso não me queixei.
Calculei que teríamos tempo de jejuar logo que o funeral terminasse e
que o Mago precisava de se alimentar agora para recuperar novamente
as forças.
Por fim, quando terminei de comer, respirei fundo, puxei do meu livro de
apontamentos e inquiri-o então a respeito do Destruidor. Para minha
surpresa, ele mandou-me guardar o livro.
— Pode escrever isto mais tarde quando regressarmos — disse-me. —
Além disso, eu próprio tenho bastante o que aprender sobre o
Destruidor, por isso é escusado escrever algo que possas vir a ter
necessidade de alterar mais tarde.
Acho que a minha boca se abriu ante aquelas palavras. Quer dizer, eu
sempre julgara que o Mago sabia quase tudo o que havia que saber
sobre o escuro.
— Não fique tão espantado, rapaz — disse ele. —
Como sabe, eu próprio tenho ainda um livro de apontamentos e você
também terá, se chegar à minha idade.
Nunca deixamos de aprender neste trabalho, e o primeiro passo para o
conhecimento é aceitar a sua própria ignorância.
«Como referi antes, o Destruidor é um espírito antigo e malévolo que há
muito tempo levou a melhor sobre mim, envergonho-me de admiti-lo.
Mas espero que isso não suceda desta vez. O nosso primeiro problema
será encontrá-lo — prosseguiu o Mago. — Ele vive nas catacumbas por
debaixo da catedral de Priestown — existem quilômetros e quilômetros
de túneis.
— Para que são as catacumbas? — perguntei, curioso por alguém ter
construído tantos túneis.
— Estão cheios de criptas, rapaz, câmaras funerárias subterrâneas que
contêm ossos antigos. Esses túneis existiam muito antes de a catedral
ser construída. A colina era já um local sagrado quando os primeiros
padres aqui chegaram em navios do Ocidente.
— Nesse caso, quem construiu as catacumbas?
— Há quem chame os construtores de «Gente Pequena» em virtude do
seu tamanho, mas o verdadeiro nome deles era os Segoncíacos1; não
que se saiba muito a respeito deles, para além do fato de o Destruidor
ter sido em tempos deus deles.
— Foi um deus?
— Sim, foi sempre uma força poderosa, e a primeira Gente Pequena
reconheceu a sua força e venerou-o.
Calculo que o Destruidor gostaria de voltar a ser um deus.
Sabe, ele costumava andar em liberdade pelo Condado.
Ao longo dos séculos tornou-se corrupto e mau e aterrorizou a Gente
Pequena noite e dia, virando irmão contra irmão, destruindo colheitas,
incendiando casas, chacinando inocentes. Gostava de ver as pessoas
viver no medo e na pobreza, derrotadas até a vida quase não valer a
pena viver. Aqueles foram tempos negros e terríveis para os
Segoncíacos.
«Mas ele não atormentava apenas os pobres. O rei dos Segoncíacos era
um homem bom chamado Heys.
Derrotara todos os seus inimigos em batalhas e tentara tornar a sua
gente forte e próspera. Mas havia um inimigo que não conseguiam
vencer: o Destruidor. De repente, este exigiu um tributo anual ao rei
Heys. O pobre homem teve de sacrificar os seus sete filhos, começando
pelo mais velho. Um filho por ano até não restar nenhum vivo. Foi
demais para um pai poder suportar. Mas, não se sabe como, Naze, o
último filho, conseguiu aprisionar o Destruidor nas catacumbas. Não sei
como o fez — talvez se o soubesse fosse mais fácil vencer esta criatura.
Tudo o que sei é que o seu caminho estava barrado por um portão de
prata trancado: tal como muitas criaturas do escuro, tem uma
vulnerabilidade à prata.
— E, nesse caso, ele continua preso lá em baixo passado todo este
tempo?
— Sim, rapaz. Está aprisionado lá em baixo até alguém abrir o portão e
o libertar. É a realidade e é algo que todos os sacerdotes sabem. É um
conhecimento transmitido de geração em geração.
— Mas não existe outra saída? Como é que o Portão de Prata o mantém
lá dentro?
— Não sei, rapaz. Tudo o que sei é que o Destruidor está preso nas
catacumbas e só pode sair de lá através daquele portão.
Quis perguntar que mal havia em deixá-lo simplesmente ali se estava
aprisionado e não podia fugir, mas ele respondeu antes que eu tivesse
tempo de colocar a pergunta. Nesta altura, o Mago conhecia-me já bem
e sabia adivinhar o que eu estava a pensar.
— Na verdade receio que não possamos deixar tudo como está, rapaz.
Sabe, ele está ficando mais forte agora. Nem sempre foi um espírito.
Isso só aconteceu depois de ser aprisionado. Antes disso, quando era
muito poderoso, tinha uma forma física.
— Qual era o aspecto dele? — quis saber.
— Irá descobri-lo amanhã. Antes de entrar na catedral para a cerimônia
fúnebre, olhe para a escultura de pedra que existe por cima da porta
principal. É a melhor representação da criatura que provavelmente verá.
— Nesse caso já o viu ao vivo?
— Não, rapaz. Há vinte anos, quando tentei matar o Destruidor pela
primeira vez, ele ainda era um espírito.
Mas consta que a sua força aumentou tanto que agora está a assumir a
forma de outras criaturas.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que começou a mudar de forma e não tardará a ficar
suficientemente forte para assumir a sua verdadeira forma original.
Depois poderá obrigar quase todo mundo a fazer o que ele quer. E o
verdadeiro perigo é ele poder obrigar alguém a abrir o Portão de Prata. É
esse o aspecto mais preocupante de todos!
— Mas onde ele vai buscar a força? — quis saber.
— Principalmente no sangue.
— No sangue?
— Sim. No sangue de animais — e humanos. Tem uma sede terrível.
Mas, felizmente, ao contrário de um estripador, não consegue tirar
sangue de um humano, a menos que lhe seja dado de livre vontade . .
— Por que haveria alguém de querer dar-lhe o seu sangue? — perguntei,
espantado com a própria idéia.
— Porque consegue penetrar na mente das pessoas.
Tenta-as com dinheiro, posição e poder, é só dizer. Se não conseguir o
que pretende por persuasão, aterroriza as suas vítimas. Por vezes atrai-
as às catacumbas e ameaça-as com o que chamamos «a prensa».
— A prensa? — inquiri.
— Sim, rapaz. Pode tornar-se tão pesado que algumas das suas vítimas
são encontradas espalmadas, os ossos partidos e os corpos colados ao
chão — é preciso raspá-los para fazer o funeral. Foram «prensados» e
não é uma visão agradável. O Destruidor não pode tirar-nos sangue
contra a nossa vontade, mas lembre-se de que não deixaremos de ser
vulneráveis à prensa.
— Não entendo como pode ele obrigar as pessoas a fazer estas coisas
quando está aprisionado nas catacumbas — comentei.
— Consegue ler os pensamentos, influenciar os sonhos, enfraquecer e
corromper as mentes daqueles que estão acima do solo. Por vezes, vê
mesmo através dos olhos deles. A sua influência estende-se até à
catedral e ao presbitério, e aterroriza os padres. Há anos que causa o
mal em Priestown daquela maneira.
— Com os padres?
— Sim — especialmente aqueles que são fracos de espírito. Sempre que
pode, obriga-os a espalhar o seu mal.
O meu irmão Andrew é serralheiro em Priestown, e por mais de uma vez
me enviou avisos sobre o que está a suceder. O Destruidor esvazia o
espírito e a vontade. Obriga as pessoas a fazerem o que ele quer,
silenciando as vozes do bem e da razão: elas tornam-se gananciosas e
cruéis, abusam do seu poder, roubando os pobres e os doentes.
Os dízimos em Priestown são agora cobrados duas vezes por ano.
Eu sabia o que era um dízimo. Um décimo dos rendimentos anuais da
nossa fazenda e tínhamos de pagá-lo como imposto à igreja local. Era a
lei.
— Já é suficientemente mau pagar uma vez — continuou o Mago —, mas
com duas torna-se ainda mais difícil evitar a miséria. Mais uma vez, está
a levar as pessoas ao medo e à pobreza, tal como sucedeu aos
Segoncíacos.
É uma das manifestações mais puras e malévolas do escuro que alguma
vez vi. Mas a situação não pode continuar por muito mais tempo. Tenho
de lhe pôr fim definitivamente antes que seja tarde demais.
— Como iremos fazê-lo? — indaguei.
— Pois, ainda não sei muito bem como. O Destruidor é um inimigo
perigoso e inteligente; pode conseguir ler-nos o pensamento e saber
exatamente o que estamos a pensar antes de nós mesmos nos darmos
conta.
«Para além da prata, ele tem realmente outros pontos fracos sérios. As
mulheres deixam-no muito nervoso e procura evitar a companhia delas.
Não suporta estar perto delas. Bem, até eu tenho dificuldade em
compreender, mas vou precisar de pensar na melhor maneira de usar
isso em nosso proveito.
O Mago avisara-me com frequência para ter cuidado com as garotas, e lá
tinha as suas razões, em particular aquelas que calçavam sapatos
bicudos. Por isso estava acostumado a que ele dissesse aquelas coisas.
Mas agora que sabia dele e de Meg, perguntava-me se ela contribuíra de
alguma maneira para a opinião por ele formada.
Bem, o meu mestre deixara-me certamente muito curioso. E não
conseguia deixar de pensar em todas as igrejas em Priestown, e nos
padres e nas congregações, todos crentes em Deus. Poderiam estar
todos errados? Se o Deus deles era tão poderoso, por que motivo não
fizera Ele algo em relação ao Destruidor? Por que permitira que
corrompesse os padres e espalhasse o mal pela cidade? O
meu pai era crente, muito embora nunca fosse à igreja.
Ninguém da nossa família o fazia porque a agricultura não parava ao
domingo e estávamos sempre atarefados com a ordenha ou a executar
outras tarefas. Mas, de repente, pus-me a pensar naquilo em que o
Mago acreditava, especialmente sabendo o que a Mãe me dissera — que
o próprio Mago fora em tempos padre.
— O senhor acredita em Deus? — inquiri.
— Já acreditei em Deus — respondeu o Mago, a sua expressão muito
pensativa. — Quando era criança nunca duvidei da existência de Deus
nem por um só momento, mas acabei por mudar. Sabe, rapaz, quando
vivemos tanto tempo quanto eu, há coisas que nos fazem pensar. Por
isso agora não tenho certeza se ainda mantenho a mesma abertura de
espírito.
«Mas uma coisa te digo — continuou ele. — Por duas ou três vezes na
minha vida me vi em situações tão más que nunca esperei conseguir sair
delas. Enfrentei o escuro e quase, mas não completamente, me resignei
à morte. Depois, precisamente quando tudo parecia perdido, enchi-me
de uma nova força. Mas apenas posso presumir de onde terá vindo. Só
que com essa força veio uma nova sensação. De que alguém ou alguma
coisa estava ao meu lado. Já não me encontrava sozinho.
O Mago fez uma pausa e suspirou profundamente.
— Não acredito no Deus sobre o qual pregam na igreja — disse ele. —
Não acredito num velho de barba branca. Mas há algo que observa o que
fazemos, e se levar uma vida direita, numa hora de necessidade ele
estará ao seu lado e lhe emprestará a sua força. É nisso que acredito.
Bem, vamos andando, rapaz. Já nos demoramos aqui tempo suficiente e
é melhor pormo-nos a caminho.
Peguei no saco dele e segui-o. Não tardamos a abandonar a estrada e
seguir por um atalho através de uma mata e de um prado imenso.
Estava a ser bastante agradável, mas paramos antes de o Sol se pôr. O
Mago estava exausto demais para prosseguir e, na realidade, devia ter
ficado em Chipenden, a recuperar da doença.
Eu estava com um mau pressentimento em relação ao que nos esperava,
uma forte sensação de perigo.
CAPÍTULO 4
PRIESTOWN
Priestown, construída nas margens do rio Ribble, era a maior cidade que
eu jamais visitara. Quando vínhamos descendo a colina, o rio parecia
uma enorme cobra cor de laranja brilhando à luz do Sol poente.
Era uma cidade de igrejas, com flechas e torres erguendo-se acima das
filas de pequenas casas com terraço.
Mesmo no topo de uma colina, próximo do centro da cidade, ficava a
catedral. Três das maiores igrejas que eu vira em toda a minha vida
teriam cabido facilmente dentro dela. E o seu pináculo era digno de se
ver. Construído em calcário, era quase branco e tão alto que calculei que
num dia de chuva a cruz no seu topo ficasse escondida pelas nuvens.
— É o maior pináculo do mundo? — perguntei, apontando todo
entusiasmado.
— Não, rapaz — respondeu o Mago, com um raro sorriso. — Mas é o
maior do Condado, como seria de esperar de uma cidade que ostenta
tantos padres. Só gostaria que os houvesse em menor número, mas
vamos ter de arriscar.
De repente, o sorriso desapareceu do seu rosto. —
Falando no mau! — comentou ele, cerrando os dentes antes de me
puxar para um intervalo na sebe para um campo adjacente. A seguir,
encostou o indicador aos lábios a impor silêncio e obrigou-me a acocorar
com ele, enquanto eu escutava o som de passos que se aproximavam.
Era uma sebe de espinheiro-alvar boa e grossa e ainda tinha a maior
parte das folhas, mas consegui ver através dela uma batina preta por
cima das botas. Era um padre!
Permanecemos ali durante um bom tempo mesmo depois de os passos
terem desaparecido ao longe. Só então o Mago nos conduziu de novo ao
caminho. Eu não percebia para que fora tudo aquilo. Nas nossas viagens,
tínhamos passado por muitos padres. Não se haviam mostrado muito
simpáticos, mas nunca nos tínhamos tentado esconder antes.
— Temos de ficar atentos, rapaz — explicou o Mago. — Os padres
significam sempre problemas, mas representam um verdadeiro perigo
nesta cidade. Sabe, o bispo de Priestown é tio do Inquisidor-Mor. Terá
sem dúvida ouvido falar dele.
Anuí. — Ele caça bruxas, não caça?
— Sim, rapaz, ele faz isso. Quando apanha alguém que considera ser
uma bruxa ou um feiticeiro, coloca o seu barrete preto e torna-se o juiz
no julgamento deles —
um julgamento que termina muito rapidamente. No dia seguinte, coloca
um chapéu diferente. Torna-se o carrasco, e organiza a fogueira. Tem
fama de ser bom no que faz e costuma reunir-se uma grande multidão
para assistir.
Dizem que ele escolhe cuidadosamente a posição do poste para que o
pobre desgraçado leve muito tempo a morrer.
É suposto a dor levar uma bruxa a arrepender-se do que fez, por isso ela
suplicará o perdão de Deus e, ao morrer, a sua alma será salva. Mas isso
não passa de um pretexto. O
Inquisidor não possui os conhecimentos de um mago e não saberia
distinguir uma bruxa de verdade nem que ela saísse da sepultura e lhe
agarrasse o tornozelo! Não, ele não passa de um homem cruel que gosta
de infligir dor.
Adora o seu trabalho e enriqueceu com o dinheiro que ganha a vender as
casas e as propriedades daqueles que condena.
«Pois, e isso traz-me ao nosso problema. Sabe, o Inquisidor considera
que um mago é um feiticeiro. A Igreja não gosta de ninguém que lida
com o escuro, mesmo que o esteja a combater. Acham que só os padres
deveriam estar autorizados a fazê-lo. O Inquisidor tem o poder de
prender, com cobradores eclesiásticos armados a cumprir as suas ordens
— mas anime-se, rapaz, porque isto é apenas a má notícia.
«A boa notícia é que o Inquisidor vive numa grande cidade lá para sul,
muito para além dos limites do Condado, e raramente vem para norte.
Por isso, se nos avistarem, e o mandarem chamar, ele levaria mais de
uma semana a chegar, mesmo a cavalo. A minha vinda aqui seria
também uma surpresa. A última coisa que alguém espera-ria é que eu
viesse assistir ao funeral de um irmão com quem não falo há quarenta
anos.
Mas as suas palavras foram um parco consolo. Enquanto descíamos a
colina, sentia-me arrepiado das palavras dele. Entrar na cidade parecia
envolver muitos riscos.
Com a capa e o bordão, ele era inconfundivelmente um mago.
Preparava-me para referi-lo quando ele me fez sinal com o polegar e nos
afastamos da estrada para uma pequena mata. Dados cerca de trinta
passos, o meu mestre parou.
— Ora bem, rapaz — referiu ele. — Tire a sua capa e entregue-me.
Não discuti; pelo tom da sua voz, percebi que falava sério, mas fiquei
curioso quanto à sua idéia. Despiu também a sua capa com o capuz
acoplado e colocou o bordão no solo.
— Bom — disse. — Agora arranje-me uns troncos e ramos finos. Nada
muito pesado, por favor.
Alguns minutos depois, tinha feito o que ele pedira e vi-o colocar o
bordão no meio dos ramos e embrulhar tudo nas nossas capas. Claro
que nesta altura adivinhara já o que ele pretendia. Os paus saíam de
cada lado da trouxa e parecia mesmo que tínhamos andado a apanhar
lenha.
Era um disfarce.
— Existem muitas pequenas estalagens perto da catedral — disse-me,
atirando-me uma moeda de prata. —
Será mais seguro para você se não ficarmos na mesma, porque se
vierem à minha procura, igualmente te prenderão. Seria também melhor
não saber onde estou, rapaz. O
Inquisidor recorre à tortura. Se capturar um de nós, não tardará a
apanhar o outro. Eu vou primeiro. Dê-me dez minutos, a seguir vá você.
«Escolha qualquer estalagem cujo nome não tenha nada que ver com
igrejas, para não acabarmos na mesma sem querer. Não ceie também
porque iremos trabalhar amanhã. O funeral é às nove da manhã mas
tente chegar cedo e sente-se perto da retaguarda da catedral; se eu já
estiver lá, mantém a distância.
«Trabalhar» significava assuntos de mago e perguntei-me se iríamos
descer às catacumbas para enfrentar o Destruidor. A idéia não me
agradava nem um pouco.
— Oh, e mais uma coisa — acrescentou o Mago ao virar-se para se ir
embora. — Vai tomar conta do meu saco, por isso o que deve ter
presente quando o transportar por um lugar como Priestown?
— Levá-lo sempre na mão direita — referi.
Ele anuiu, satisfeito, depois pôs a trouxa no ombro, o direito,
evidentemente e deixou-me à espera na mata.
Éramos ambos canhotos, algo que os padres re-provavam. Os canhotos
eram o que eles chamavam de
«aziagos», aqueles mais facilmente tentados pelo Diabo ou mesmo de
conluio com ele.
Dei-lhe mais de dez minutos, só para ter certeza de que havia distância
suficiente entre nós, depois, levando o seu saco pesado, desci a colina,
dirigindo-me para o campanário. Uma vez na cidade, comecei a subir
novamente rumo à catedral, e quando me aproximei, comecei à procura
de uma estalagem.
Havia-as com abundância, sim; a maior parte das ruas empedradas
parecia ter uma, mas o problema era que pareciam também estar todas
ligadas a igrejas de uma maneira ou de outra. Havia o Báculo do Bispo,
a Estalagem do Campanário, o Frade Alegre, a Mitra, o Livro e a Vela,
para referir apenas algumas. Esta última fez-me lembrar a razão por que
tínhamos, antes de mais, vindo a Priestown.
Como descobrira o irmão do Mago à sua própria custa, os livros e as
velas não costumavam resultar contra o escuro.
Nem mesmo quando se usava também um sino.
Não tardei a perceber que o Mago ficara com a vida facilitada ao passo
que eu tinha a minha muito dificultada, e levei muito tempo a procurar
no labirinto de ruas estreitas e outras mais largas que as ligavam.
Caminhei ao longo de Fylde Road e depois subi uma rua mais larga
chamada Friargate , onde não havia qualquer indício de uma porta.
As ruas empedradas estavam cheias de pessoas e a maior parte delas
parecia apressada. O grande mercado perto do cimo de Friargate ia
terminar por aquele dia, mas alguns fregueses ainda se acotovelavam e
regateavam com os comerciantes tentando obter bons preços. O cheiro a
peixe era intenso e um grande bando de gaivotas esfomeadas grasnia lá
em cima.
De quando em quando, via uma figura vestindo uma batina preta e
mudava de direção ou atravessava a rua. Custava-me a crer que uma
cidade pudesse ter tantos padres.
A seguir, desci Fishergate Hil até conseguir ver o rio ao longe, e depois
voltei para trás. Acabei por andar às voltas, mas sem o menor êxito. Não
podia pedir a ninguém que me indicasse uma estalagem cujo nome não
tivesse nada a ver com igrejas porque iriam me achar doido.
Fazer recair a atenção sobre a minha pessoa era a última coisa que eu
pretendia. Apesar de carregar o pesado saco de couro do Mago na mão
direita, nem mesmo assim deixei de suscitar alguns olhares curiosos na
minha direção.
Por fim, quando estava já a escurecer, encontrei um lugar onde ficar,
não longe demais da catedral, onde iniciara a minha busca. Era uma
estalagem pequena chamada O Touro Preto.
Antes de me tornar aprendiz do Mago, nunca ficara numa estalagem,
pois nunca precisara de me afastar muito da fazenda do meu pai. Desde
então, passara a noite talvez numa meia dúzia delas. Deveriam ter sido
muito mais, pois andávamos com frequência na estrada, às vezes vá-
rios dias seguidos, mas o Mago gostava de poupar dinheiro e, a menos
que o tempo estivesse realmente mau, achava que uma árvore ou um
velho celeiro proporcionavam abrigo suficiente para a noite. Mesmo
assim, esta era a primeira estalagem onde ficava sozinho, e quando
transpus a porta, senti-me um pouco nervoso.
A entrada estreita dava acesso a uma sala grande e sombria, iluminada
por uma única lanterna. Estava cheia de mesas e cadeiras vazias, com
um balcão de madeira ao fundo. O balcão cheirava fortemente a vinagre
mas não tardei a perceber que era apenas da cerveja azeda que se
infiltrara na madeira. Havia um pequeno sino suspenso de uma corda à
direita do balcão, por isso toquei-o.
Abriu-se logo uma porta por detrás do balcão e apareceu um homem
careca, a limpar as mãos grandes a um avental enorme imundo.
— Gostaria de um quarto para esta noite, por favor
— disse, acrescentando rapidamente —, posso vir a ficar mais tempo.
Olhou-me como se eu fosse algo que ele encontrara na sola do sapato,
mas quando exibi a moeda de prata e a coloquei em cima do balcão, a
sua expressão tornou-se muito mais simpática.
— O cavalheiro vai querer cear? — perguntou.
Abanei a cabeça. Fosse como fosse, estava de jejum, mas bastou olhar
para o avental dele todo cheio de nódoas para perder logo o apetite.
Passados cinco minutos encontrava-me no meu quarto com a porta
trancada. A cama estava por fazer e os lençóis imundos. Sabia que o
Mago teria se queixado, mas eu só queria dormir e sempre era melhor
do que um celeiro cheio de correntes de ar. No entanto, quando olhei
pela janela, senti saudades de Chipenden.
Em vez do caminho branco que atravessava o relvado verde até ao
jardim ocidental e da minha habitual vista de Parlick Pike e das outras
extensões rochosas, tudo o que conseguia ver era uma fila de casas
sujas em frente, cada uma com uma chaminé a despejar nuvens de
fumaça negra na rua.
Resolvi deitar-me em cima da cama e, agarrando ainda as abas do saco
do Mago, adormeci rapidamente.
Pouco depois das oito da manhã seguinte dirigi-me à catedral. Deixara o
saco trancado dentro do quarto porque teria parecido estranho levá-lo
para uma cerimônia fúnebre. Estava um pouco ansioso por deixá-lo na
estalagem mas o saco tinha uma fechadura e a porta também e ambas
as chaves estavam na segurança do meu bolso.
Trazia também uma terceira chave.
O Mago dera-me quando eu fora a Horshaw resolver o assunto do
estripador. Fora feita pelo seu outro ir-mão, Andrew, o serralheiro, e
abria a maior parte das fechaduras desde que não fossem complexas
demais. Devia tê-la devolvido mas sabia que o Mago tinha mais de uma
e, como não a pedira, eu guardara-a. Dava bastante jeito, assim como a
pequena caixa de mechas que o meu pai me oferecera quando eu
iniciara o meu aprendizado. Andava também sempre comigo no bolso.
Pertencera ao pai dele e era uma herança de família mas algo bastante
útil para alguém que seguia o ofício de Mago.
Não tardei a começar a subir a colina, com o campanário à minha
esquerda. A manhã estava úmida, um chuvisco constante a cair-me no
rosto, e afinal não me enganara a respeito do campanário. Pelo menos o
seu terço superior ficava escondido pelas nuvens cinzentas que
avançavam rapidamente de sudoeste. O ar cheirava mal por causa dos
esgotos, e cada casa tinha uma chaminé fumegante, a maior parte da
fumaça descendo até ao nível da rua.
Muita gente subia apressada a colina. Uma mulher passou por mim
quase a correr, arrastando duas crianças mais depressa do que as
perninhas delas conseguiam acompanhar.
— Vamos! Apressem-se! — ralhou ela. — Vamos chegar atrasados.
Por um momento, perguntei-me se também iam ao funeral mas parecia
improvável porque os seus rostos estavam muito animados. Mesmo no
topo a colina aplanava e virei à esquerda na direção da catedral. Aqui,
uma multidão excitada enchia ansiosamente ambos os lados da rua,
como se aguardasse algo. Bloqueava o passeio, e tentei abrir caminho o
mais cuidadosamente possível. Pedia constantemente desculpa,
desesperado por não pisar os pés de ninguém, mas as pessoas
acabaram por estar tão densamente apinhadas que tive de parar e
esperar com elas.
Não tardou muito. Irromperam subitamente à minha direita sons de
aplausos e vivas. Ouvi acima deles o clip-clop de cascos a aproximar-se.
Um enorme cortejo avançava na direção da catedral, os dois cavaleiros
da frente envergando chapéus e capas pretas e usando espadas no
cinto. Atrás deles vinham mais cavaleiros, estes armados com punhais e
enormes bastões, dez, vinte, cinquenta, até que por fim apareceu um
homem montando um gigantesco garanhão branco.
Trazia uma capa preta, mas por debaixo dela via-se uma dispendiosa
cota de malha no pescoço e nos pulsos e a espada no seu cinto tinha um
punho com rubis incrustados. As suas botas eram de couro muito fino e
provavelmente valiam mais do que um agricultor ganhava num ano.
As roupas e o porte do cavaleiro assinalavam-no como líder, mesmo que
vestisse andrajos, não haveria a menor dúvida. Tinha cabelo muito
louro, que aparecia por debaixo de um chapéu de aba larga vermelho, e
olhos tão azuis que envergonhavam um céu azul de Verão. Fiquei
fascinado com o rosto dele. Era quase belo demais para ser de um
homem, mas ao mesmo tempo era forte, com um queixo saliente e uma
testa determinada. Depois olhei melhor para os olhos azuis e vi a
crueldade que irradiava deles.
Fez-me lembrar um cavaleiro que vira uma vez passar pela nossa
fazenda, quando era pequeno. Nem sequer olhara na nossa direção. Para
ele nós não existíamos.
Bem, pelo menos foi o que o meu pai disse. Ele referiu também que o
homem era nobre, que via só de olhar para ele que provinha de uma
família que sabia quem eram os seus antepassados ao longo de várias
gerações, todos eles ricos e poderosos.
Ao dizer a palavra «nobre» o meu pai cuspira para a lama e dissera-me
que eu tinha sorte por ser filho de um agricultor com um dia honesto de
trabalho pela frente.
Este homem que cavalgava por Priestown era também manifestamente
nobre e tinha a arrogância e a autoridade estampadas por todo o rosto.
Para meu choque e desalento, percebi que devia estar a olhar para o
Inquisidor, pois atrás dele vinha uma enorme carroça aberta puxada por
dois cavalos de carga e havia pessoas de pé ao fundo presas com
correntes.
Na sua maior parte eram mulheres, mas havia também dois homens. A
maioria parecia que não comia devidamente há muito tempo. Vestiam
roupas imundas e muitos haviam sem dúvida sido espancados. Estavam
todos cobertos de equimoses e o olho esquerdo de uma mulher parecia
um tomate podre. Algumas das mulheres lamuriavam-se
desesperadamente, as lágrimas a escorrer-lhes pelas faces. Uma gritava
sem parar a plenos pulmões que era inocente. Mas em vão. Eram todos
prisioneiros, e não tardariam a ser julgados e queimados.
Uma mulher jovem correu subitamente para a carroça estendendo a mão
para um dos prisioneiros e tentando desesperadamente entregar-lhe
uma maçã. Talvez fosse parente do prisioneiro — possivelmente uma
filha.
Para meu horror, o Inquisidor limitou-se a virar a sua montada e passar-
lhe por cima. Num momento estava a segurar a maçã; no seguinte
encontrava-se estendida nas pedras a gritar de dor. Vi a expressão cruel
no rosto dele.
Gostara de machucá-la. Quando a carroça passou, seguida de uma
escolta de ainda mais cavaleiros armados, os vivas da multidão
transformaram-se em uivos de injúria e gritos de: «Queimem todos!»
Foi então que reparei na garota acorrentada entre os outros prisioneiros.
Não seria mais velha do que eu e os seus olhos estavam arregalados e
assustados. O cabelo preto colava-se à testa com a chuva, que lhe
escorria do nariz e da extremidade do queixo como lágrimas. Olhei para
o vestido preto que usava, depois mirei os sapatos bicudos, nem
querendo acreditar no que via.
Era Alice. E fora feita prisioneira do Inquisidor.
CAPÍTULO 5
O FUNERAL
A minha cabeça turbilhonava devido àquilo que presenciara. Tinham
passado vários meses desde a última vez que vira Alice. A tia dela, Lizzie
dos Ossos, era uma bruxa de que eu e o Mago tínhamos tratado, mas
Alice, ao contrário do resto da família, não era realmente má. Na
verdade, ela era o mais parecido com uma amiga que alguma vez eu
tivera, e fora graças a ela que alguns meses atrás eu conseguira destruir
Mãe Malkin — a pior bruxa do Condado.
Não, Alice fora apenas criada em más companhias.
Não podia deixá-la arder na fogueira como bruxa. Tinha de conseguir
descobrir uma maneira de salvá-la, mas naquele momento não fazia a
menor idéia de como poderia ser. Decidi que mal o funeral terminasse,
teria de ir tentar convencer o Mago a ajudar.
E depois havia o Inquisidor. Que incrível azar a nossa visita a Priestown
ter logo de coincidir com a chegada dele. O Mago e eu corríamos sério
perigo. Certamente agora o meu mestre não podia ficar aqui depois do
funeral. Uma enorme parte de mim esperava que ele quisesse partir logo
e não enfrentar o Destruidor. Mas eu não podia deixar Alice sofrer
semelhante destino.
Depois de a carroça passar, a multidão precipitara-se e começara a
seguir o cortejo do Inquisidor. Entalado num ombro a ombro, não tive
outro remédio senão avançar também. A carroça passou pela catedral e
parou à porta de uma casa grande de três andares e janelas com
pinázios. Presumi que fosse o presbitério — a casa dos padres — e que
os prisioneiros fossem ser julgados ali.
Retiraram-nos da carroça e arrastaram-nos lá para dentro, mas
encontrava-me longe demais para ver bem Alice. Não havia nada que
pudesse fazer mas teria de pensar rapidamente numa solução antes de a
queimarem, o que não tardaria a acontecer.
Triste, virei as costas e abri caminho por entre a multidão até chegar à
catedral e ao funeral do padre Gregory. O edifício tinha grandes
contrafortes e janelas altas e pontiagudas com vitrais. Depois,
lembrando-me do que o mago me dissera, olhei para a enorme gárgula
de pedra por cima da porta principal.
Era uma representação da forma original do Destruidor, a forma que ele
tentava lentamente retomar à medida que ia ficando mais forte lá em
baixo nas catacumbas.
O corpo, coberto de escamas, estava acocorado, com músculos tensos e
nodosos, compridas garras afiadas a segurar o lintel de pedra. Estava a
postos para saltar.
Já vira coisas aterradoras na minha vida, mas nunca nada tão feio
quanto aquela cabeçorra. Tinha um queixo alongado que curvava para
cima quase até ao nível do focinho comprido, e olhos maldosos que
pareceram seguir-me quando me encaminhei para lá. As orelhas
também eram estranhas, e não destoariam num cão grande ou mesmo
num lobo. Nada que agradasse enfrentar na escuridão das catacumbas!
Antes de entrar, olhei mais uma vez para trás, na direção do presbitério,
perguntando-me se haveria realmente alguma esperança de salvar Alice.
A catedral estava quase vazia, de modo que procurei um lugar na
retaguarda. Ali próximo, duas velhotas estavam ajoelhadas em prece,
cabisbaixas, e um menino de coro andava ocupado a acender as velas.
Tive muito tempo para olhar à minha volta. A catedral parecia ainda
maior por dentro, com o teto alto e enormes vigas de madeira; até a
mais ligeira tossidela ficava a ecoar para sempre. Havia três naves — a
do meio, que conduzia diretamente aos degraus do altar, era
suficientemente ampla para lá caber um cavalo e a carroça.
Este lugar era grandioso, sim: cada estátua à vista era dourada e até as
paredes estavam cobertas de mármore.
Não tinha nada a ver com a igrejinha em Horshaw onde o irmão do Mago
exercera o seu ofício.
Na parte da frente da nave central estava o caixão do padre Gregory,
aberto, com uma vela em cada canto.
Nunca vira semelhantes velas na minha vida. Cada uma, colocada num
enorme castiçal de latão, era maior do que um homem.
As pessoas tinham começado a afluir à igreja. Entravam sozinhas e de
duas em duas e, tal como eu, escolhiam os bancos de trás. Não deixei de
procurar o Mago mas por enquanto não havia sinal dele.
Não pude deixar de olhar à minha volta, procurando vestígios do
Destruidor. Não sentia efetivamente a sua presença, mas talvez uma
criatura tão poderosa conseguisse sentir a minha. E se os rumores
fossem verdade? E
se ele tivesse mesmo forças para assumir uma forma física e estivesse
aqui sentado na congregação! Olhei à minha volta com nervosismo mas
depois descontraí quando me lembrei do que o Mago me dissera. O
Destruidor estava aprisionado nas catacumbas lá bem em baixo; por
isso, no momento, eu estava sem dúvida seguro.
Mas estaria mesmo? A sua mente era muito forte, dissera o meu mestre,
e conseguia chegar ao presbitério ou à catedral para influenciar e
corromper os padres. Talvez neste preciso momento estivesse a tentar
entrar na minha cabeça! Olhei para cima, horrorizado, e reparei numa
mulher que voltava ao seu lugar depois de prestar a última homenagem
ao padre Gregory. Reconheci-a imediatamente como a governanta que
estava a chorar e ela também me identificou naquele momento. Estacou
ao fundo do meu banco.
— Por que chegou tão tarde? — demandou num murmúrio alto. — Se
tivesse vindo assim que lhe mandei chamar, ele ainda estaria vivo hoje.
— Fiz o melhor que podia — respondi, tentando não despertar demais as
atenções sobre nós.
— Às vezes, o nosso melhor não é o suficiente, não é? — retrucou. — O
Inquisidor tem razão a seu respeito, vocês não trazem senão problemas
e merecem tudo o que lhes acontecer.
Ao ouvir o nome do Inquisidor, sobressaltei-me, mas tinham começado a
entrar muitas pessoas, todas elas vestindo batinas e casacos pretos.
Padres — dúzias deles!
Nunca julgara ver tantos num só lugar ao mesmo tempo.
Era como se todos os clérigos no mundo inteiro se tivessem reunido ali
para o funeral do velho padre Gregory.
Mas eu sabia que isso não era verdade e que eles eram os únicos que
viviam em Priestown e talvez alguns das aldeias e cidades vizinhas. A
governanta não disse mais nada e voltou apressada para o seu banco.
Agora é que eu ficara realmente assustado. Eis-me aqui, sentado na
catedral, mesmo por cima das catacumbas que abrigavam a criatura
mais temível do Condado, numa altura em que o Inquisidor estava de
visita — e tinham-me reconhecido. Queria desesperadamente afastar-me
o mais possível daquele lugar e olhava ansiosamente à minha volta à
procura de qualquer indício do meu mestre, mas não o conseguia ver.
Estava precisamente a decidir que provavelmente me deveria vir
embora, quando de repente as portas grandes da igreja foram
escancaradas e entrou um longo cortejo. Não havia fuga possível.
A princípio, julguei que o homem à cabeça fosse o Inquisidor, pois
possuía feições familiares. Mas era mais velho e lembrei-me de o Mago
haver referido que o Inquisidor tinha um tio que era bispo de Priestown;
calculei que fosse ele.
A cerimônia começou. Houve muitos cânticos e levantamo-nos,
sentamo-nos e ajoelhamo-nos infinita-mente. Mal nos tínhamos
instalado numa posição logo tínhamos de nos voltar a mexer. Agora, se
a cerimônia fúnebre tivesse sido em grego, talvez eu pudesse entender
muito melhor o que se passava porque a minha mãe me ensinara aquela
língua quando eu era pequeno. Mas a maior parte do funeral do padre
Gregory foi em latim.
Consegui acompanhar uma parte da cerimônia, mas fez-me perceber
que tinha de me esforçar muito mais nas minhas aulas.
O bispo referiu que o padre Gregory estava no Céu, dizendo que merecia
estar lá depois de todo o bem que praticara. Fiquei um pouco
surpreendido por ele não fazer qualquer alusão à forma como o padre
Gregory morrera, mas acho que os padres queriam guardar aquele
segredo. Provavelmente estariam relutantes em admitir que o exorcismo
dele falhara.
Por fim, passada quase uma hora, a cerimônia fúnebre terminou e o
cortejo abandonou a igreja, desta vez com seis padres carregando o
caixão. Os quatro padres grandes que seguravam as velas tinham a
tarefa mais difícil porque vacilavam sob o seu peso. Só quando o último
passou, seguindo atrás do caixão, é que reparei na base triangular do
enorme castiçal de latão.
Em cada uma das três faces estava uma representação viva da feia
gárgula que vira antes por cima da porta da catedral. E, apesar de
provavelmente se dever ao tremular da chama, mais uma vez os seus
olhos pareceram seguir-me enquanto o padre passava lentamente
carregando a vela.
Todos os padres saíram em fila para se juntar ao cortejo e a maior parte
das pessoas lá atrás seguiu-os, mas deixei-me ficar por um bom tempo
dentro da igreja, pois queria manter-me afastado da governanta.
Não sabia o que fazer. Não vira o Mago e não tinha idéia de onde ele
estaria instalado ou como poderia voltar a encontrar-me com ele.
Precisava avisá-lo sobre o Inquisidor — e já agora sobre a governanta.
Lá fora, a chuva parara e o pátio na frente da catedral estava vazio.
Olhando para a minha direita, consegui ver a cauda do cortejo a
desaparecer nas parte de trás da catedral onde era parecia ficar o
cemitério.
Decidi ir pelo outro lado, pelo portão da frente e sair para a rua, mas
tive um grande choque. Do outro lado da rua, duas pessoas travavam
uma acesa conversa. Mais precisamente, o excitamento partia de um
padre irado, de rosto congestionado e com a mão ligada. O outro homem
era o Mago.
Pareceram ambos dar pela minha presença ao mesmo tempo. O Mago
fez um gesto com o polegar, indicando-me que me afastasse
imediatamente. Acatei a ordem dele e o meu mestre seguiu-me,
mantendo-se do outro lado da rua.
O padre gritou atrás dele: — Pense bem, John, antes que seja tarde
demais.
Arrisquei olhar para trás e vi que o padre não nos seguira mas parecia
olhar-me fixamente. Era difícil ter certeza, porém ocorreu-me
subitamente que ele parecia bem mais interessado em mim do que no
Mago.
Continuamos a descer durante vários minutos antes de o piso ficar
plano. A princípio não havia por ali muitas pessoas mas em breve as
ruas se tornaram mais estreitas e bem mais azafamadas, e depois de
mudarmos duas vezes de direção, chegamos ao mercado lajeado. Era
uma praça enorme e movimentada, cheia de bancas, que estavam
protegidas por estruturas de madeira cobertas de toldos cinzentos à
prova de água. Segui o Mago por entre a multidão, às vezes quase
mesmo atrás dele. O que mais podia eu fazer? Teria sido fácil perdê-lo
num lugar como aquele.
Havia uma taberna grande no extremo norte do mercado, com bancos
vazios no exterior e o Mago encaminhou-se logo para lá. A princípio
julguei que fosse entrar e perguntei-me se íamos comprar o almoço. Se
ele tencionasse partir por causa do Inquisidor, não haveria necessidade
de jejuar. Mas ele virou antes num beco estreito empedrado, conduziu-
me a um muro baixo de pedra e limpou a seção mais próxima com a
manga. Quando tinha retirado já a maior parte das gotas de água,
sentou-se e fez-me sinal para que o imitasse.
Sentei-me e olhei à minha volta. O beco estava deserto e as paredes dos
armazéns cercavam-nos em três lados. Havia poucas janelas e
apresentavam-se partidas e manchadas de fuligem pelo que pelo menos
estávamos longe de olhos curiosos.
O Mago ficara sem fôlego da caminhada e assim tive oportunidade de
falar primeiro.
— O Inquisidor está aqui — disse-lhe.
O Mago anuiu. — Sim, rapaz, ele está aqui. Eu me encontrava do outro
lado da rua mas você estava ocupado demais olhando para a carroça
para reparar em mim.
— Mas não a viu? Alice vinha na carroça. .
— Alice? Qual Alice?
— A sobrinha de Lizzie dos Ossos. Temos de ajudá-la...
Conforme mencionei antes, Lizzie dos Ossos era uma bruxa de que
tínhamos tratado na Primavera. Agora o Mago aprisionara-a num poço,
lá no seu jardim em Chipenden.
— Oh, essa Alice. Bem, é melhor que a esqueça, rapaz, porque não há
nada a fazer. O Inquisidor é acompanhado de pelo menos cinqüenta
homens armados.
— Mas não é justo — insurgi-me, mal podendo acreditar que ele
conseguisse se manter tão calmo. — Alice não é uma bruxa.
— Muito pouca coisa nesta vida é justa — replicou o Mago. — A verdade
é que nenhumas delas são bruxas.
Como muito bem sabe, uma verdadeira bruxa teria pressentido a
presença do Inquisidor a uma distância de quilômetros.
— Mas Alice é minha amiga. Não posso deixá-la morrer! — protestei,
sentindo a raiva brotar dentro de mim. — Não há tempo para
sentimentalismos. A nossa tarefa é proteger as pessoas do escuro, não
distrairmo-nos com garotas bonitas.
Fiquei furioso — especialmente porque sabia que o próprio Mago em
tempos já se distraíra com uma garota bonita — e que essa
era realmente uma bruxa. — Alice ajudou a salvar a minha família de
Mãe Malkin, lembra-se?!
— E por que estava Mãe Malkin, antes de mais, em liberdade, rapaz,
responde-me lá!
Baixei a cabeça, envergonhado.
— Porque você mesmo se envolveu com aquela garota — continuou ele
—, e não quero que isso volte a acontecer. Especialmente não aqui em
Priestown, com o Inquisidor tão em cima de nós. Irás pôr a sua própria
vida em perigo — e a minha. E baixe essa voz. Não queremos despertar
atenções indesejadas.
Olhei à minha volta. Para além de nós, o beco estava deserto. Podiam
ver-se algumas pessoas passar à entrada, mas estavam a alguma
distância e nem sequer olhavam na nossa direção. Conseguia ver para lá
delas os telhados no outro extremo da praça do mercado e, erguendo-se
acima das chaminés, o campanário da catedral. Mas quando voltei a
falar, baixei a voz.
— Afinal o que faz aqui o Inquisidor? — perguntei.
— Não tinha me dito que o trabalho dele era lá no Sul e só vinha para
norte quando o mandavam chamar?
— Isso é quase tudo verdade, mas por vezes ele prepara uma expedição
até ao Norte do Condado e mesmo para lá dele. Parece que nas últimas
semanas tem andado a bater à costa, capturando a pobre escória da
humanidade que trouxe acorrentada naquela carroça.
Fiquei aborrecido quando ele disse que Alice fazia parte daquela escória
porque sabia que isso não era verdade. No entanto, o momento não era
propício a que se continuasse a discussão, de modo que parei por ali.
— Mas estaremos bastante seguros em Chipenden
— prosseguiu o Mago. — Ele nunca se aventurou a vir na direção das
extensões rochosas.
— Nesse caso vamos regressar já? — inquiri.
— Não, rapaz, ainda não. Já te disse antes, tenho um assunto pendente
nesta cidade.
O coração caiu-me aos pés e olhei na direção da entrada do beco, pouco
tranqüilo. As pessoas continuavam a passar apressadas, tratando da sua
vida, e ouvia alguns tendeiros a gritar o preço dos seus produtos. Mas,
apesar de haver muito barulho e azáfama, felizmente estávamos longe
da vista. Não obstante, ainda não me sentia tranquilo. Era provável
mantermo-nos afastados um do outro. O padre no exterior da catedral
reconhecera o Ma-go. A governanta reconhecera-me também. E se
aparecesse mais alguém no beco que nos reconhecesse aos dois e
fôssemos ambos presos? Estariam na cidade muitos padres do Condado
e eles podiam conhecer de vista o Mago.
A única boa notícia era que de momento eles estavam provavelmente
todos ainda no cemitério.
— Aquele padre com quem estava a falar antes, quem era? Pareceu-me
que o conhecia. Acha que ele não irá contar ao Inquisidor que o senhor
se encontra aqui? —
perguntei, curioso em saber se algum lugar era realmente seguro. Cá
para mim, aquele padre de rosto vermelho no exterior da catedral
poderia mesmo encaminhar o Inquisidor para Chipenden. — Oh, e há
mais uma coisa. A governanta do seu irmão me reconheceu no funeral.
Estava muito aborrecida. É capaz de ir dizer a alguém que estamos aqui.
Pareceu-me que estávamos a correr um sério risco ao ficarmos em
Priestown enquanto o Inquisidor estivesse na zona.
— Acalme-se, rapaz. A governanta não irá contar a ninguém. Ela e o
meu irmão não estavam propriamente livres de pecado. E quanto àquele
padre — disse o Mago com um tênue sorriso —, é o padre Cairns. É da
família, meu primo. Um primo abelhudo que às vezes se excede um
pouco, mas não deixa de ser bem-intencionado. Está sempre tentando
salvar-me de mim mesmo e a querer levar-me para o caminho da
«probidade». Mas está a gastar o seu latim. Já escolhi o meu caminho —
e, certo ou errado, é aquele que trilho.
Naquele momento, ouvi passos e o coração saltou-me para a boca.
Entrara alguém no beco e vinha mesmo direto a nós!
— Já agora, por falar em família — afirmou o Ma-go, nada preocupado —
, aí vem outro membro. Este é o meu irmão Andrew.
Aproximava-se de nós pelo empedrado um homem alto de corpo magro
e rosto triste e ossudo. Parecia ainda mais velho do que o Mago e fez-me
lembrar um espanta-lho bem vestido, pois, apesar de calçar botas de
boa qualidade e roupas limpas, as suas vestes agitavam-se ao vento.
Parecia ainda mais necessitado de um bom desjejum do que eu.
Sem se preocupar em limpar as gotas de água, sentou-se no muro do
outro lado do Mago.
— Calculei que fosse te encontrar aqui. Um assunto lamentável, irmão —
afirmou, com ar melancólico.
— Sim — disse o Mago. — Já só restamos dois agora. Cinco irmãos
mortos e enterrados.
— John, tenho de te avisar, o Inqui. .
— Sim, eu sei — referiu o Mago, com uma certa impaciência na voz.
— Nesse caso têm de partir. Isto aqui não é seguro para nenhum de
vocês — avisou o irmão, baixando-me a cabeça.
— Não, Andrew, nós não vamos a lado nenhum até eu fazer o que tem
de ser feito. Por isso, gostaria que me voltasse a fabricar uma chave
especial — pediu-lhe o Mago. — Para o portão.
Andrew sobressaltou-se. — Não, John, não seja tolo — disse ele,
abanando a cabeça. — Eu não teria vindo aqui se soubesse o que
pretendia. Já se esqueceu da maldição?
— Shhh — disse o Mago. — Em frente do rapaz não. Guarde as suas
superstições absurdas para si.
— Maldição? — inquiri, subitamente curioso.
— Vê o que fez? — ralhou o meu mestre com o irmão.
— Não é nada — disse, virando-se para mim. —
Não acredito em semelhantes disparates e você também não devia.
— Enterramos um irmão hoje — comentou Andrew. — Agora vá embora,
antes que eu me veja a enterrar outro. O Inquisidor adoraria por as
mãos no Mago do Condado. Volte para Chipenden enquanto ainda pode.
— Eu não vou embora, Andrew, e está decidido.
Tenho um trabalho a fazer aqui, com Inquisidor ou sem Inquisidor —
frisou o Mago com veemência. — Então, vai ajudar-me ou não?
— A questão não é essa, e você sabe bem! — insistiu Andrew.
— Sempre te ajudei noutras ocasiões, não ajudei?
Alguma vez te decepcionei? Mas isto é loucura. Arrisca-se a ir para a
fogueira estando aqui. Esta não é a ocasião para voltar a interferir com
aquela coisa — disse, gesticulando na direção da entrada do beco e
erguendo os olhos para o campanário. — E pense no rapaz — não pode
ser arrastado para isto. Não agora. Volte na Primavera quando o
Inquisidor tiver partido e tornaremos a falar. Não seja tolo ao tentar algo
neste momento. Não consegue lidar com o Destruidor e o Inquisidor —
já não é mais jovem e, pelo seu aspecto, não me parece nada bem de
saúde.
Enquanto eles falavam, olhei para o campanário.
Desconfiara que pudesse ser visto de quase qualquer lugar na cidade e
que toda a cidade fosse também visível do campanário. Havia quatro
janelas pequenas perto do topo, mesmo abaixo da cruz. Dali, era
possível ver todos os telhados de Priestown, a maior parte das ruas e
muitas das pessoas, inclusive nós.
O Mago dissera-me que o Destruidor era capaz de usar as pessoas,
introduzir-se-lhes nas mentes e ver através dos olhos delas. Senti um
arrepio ao pensar se um dos padres estaria lá em cima neste momento,
o Destruidor a usá-lo para nos observar da escuridão dentro do
campanário.
Mas o Mago estava mesmo decidido. — Vamos, Andrew, pense bem!
Quantas vezes me disse que o escuro estava a ficar mais forte nesta
cidade? Que os padres estavam se tornando mais corruptos, que as
pessoas têm medo? E pensa nos duplos dízimos e no Inquisidor a roubar
terras e a queimar mulheres e meninas inocentes. O que fez mudar os
padres e corrompê-los tanto? Que força terrível obriga homens bons a
infligir semelhantes atrocidades ou a deixá-las simplesmente acontecer?
«Ora, hoje mesmo aqui o rapaz viu a sua amiga ser levada numa carroça
para a morte certa. Sim, a culpa é do Destruidor, e ele tem de ser
imediatamente sustido. Acha realmente que posso permitir que isto se
prolongue por mais meio ano? Quantas pessoas inocentes mais terão
sido queimadas até lá, ou morrerão neste Inverno devido à pobreza, à
fome e ao frio se eu não fizer algo? A cidade pulula de rumores de visões
lá em baixo nas catacumbas. Se forem verdade, então o Destruidor está
a ganhar força e poder, transformando-se de um espírito numa criatura
com forma física. Em breve pode retomar o seu aspecto original, uma
manifestação do espírito mau que tiranizou a Gente Pequena. E depois o
que vai ser de todos nós? Não será então fácil para ele aterrorizar e
iludir alguém levando-o a abrir aquele portão? Não, é claro como água.
Tenho de agir agora para livrar Priestown do escuro antes que o poder
do Destruidor fique ainda mais forte. Por isso vou perguntar-te de novo,
mais uma vez. Me fará uma chave? Por um momento, o irmão do Mago
cobriu o rosto com as mãos tal como uma das velhotas a dizer as suas
preces na igreja. Por fim, levantou a cabeça e anuiu.
— Ainda tenho o molde da última vez. Terei a chave pronta amanhã logo
pela manhã. Devo ser mais tolo do que você — referiu.
— Discordo — replicou o Mago. — Eu sabia que não ia me decepcionar.
Virei buscá-la ao raiar do dia.
— Desta vez espero que saiba o que está fazendo quando for lá a baixo!
O rosto do Mago ficou vermelho de raiva.
— Faça o seu trabalho, irmão, que eu farei o meu!
— ripostou. Dito aquilo, Andrew levantou-se, soltou um suspiro cansado
e afastou-se sem olhar sequer uma vez para trás.
— Bem, rapaz — disse o Mago —, vá você primeiro. Volte para o seu
quarto e não saia de lá até amanhã. A oficina de Andrew fica em
Friargate. Já terei ido buscar a chave e estarei pronto para me encontrar
com você cerca de vinte minutos depois da alvorada. Não deverá haver
muitas pessoas àquela hora madrugadora.
Lembra-se onde estava hoje quando o Inquisidor passou a cavalo?
Confirmei com um aceno de cabeça.
— Apareça na esquina mais próxima. Não se atrase.
E lembre-se, temos de continuar a jejuar. Oh, e mais uma coisa: não se
esqueça do meu saco. Acho que podemos vir a precisar dele.
A minha mente rodopiava no regresso à estalagem.
O que eu temia mais: um homem poderoso que me perseguiria e
queimaria no poste? Ou uma criatura que vencera o meu mestre na sua
juventude e, através dos olhos de um padre, podia estar a vigiar-me
neste preciso momento das janelas no alto do campanário?
Quando olhei para a catedral os meus olhos captaram a negrura da
batina de um padre ali perto. Desviei o olhar mas não sem antes reparar
nele: o padre Cairns. Felizmente, o passeio encontrava-se ocupado e ele
fitava em frente e nem sequer olhara na minha direção. Fiquei aliviado,
pois se ele tivesse me visto aqui, tão perto da minha estalagem, não
teria de se esforçar muito para calcular onde eu poderia estar alojado. O
Mago dissera que ele era inofensivo, mas eu não conseguia deixar de
pensar que quanto menos gente soubesse quem éramos e onde está-
vamos, melhor. Mesmo assim o meu alívio foi de pouca duração pois,
quando cheguei ao meu quarto havia um bilhete pregado na porta.
Thomas,
Se quer salvar a vida do seu mestre, venha ao meu confessionário esta
tarde às sete, depois disso será tarde demais.
Padre Cairns
Senti um grande mal-estar. Como podia o padre Cairns ter descoberto
onde eu me instalara? Teria alguém me seguido? A governanta do padre
Gregory? Ou o estalajadeiro? Não me agradara nada o aspecto dele.
Teria enviado uma mensagem para a catedral? Ou ao Destruidor?
Conheceria aquela criatura cada movimento meu? Teria dito ao padre
Cairns onde me encontrar? O que quer que tivesse acontecido, os padres
sabiam onde me alojara e, se dissessem ao Inquisidor, este poderia vir
buscar-me a qualquer momento.
Abri apressadamente a porta do meu quarto e tranquei-a atrás de mim.
A seguir corri as persianas, esperando desesperadamente que
mantivessem afastados os olhos curiosos de Priestown. Fui ver se o saco
do Mago continuava no lugar onde o deixara debaixo da minha cama,
sem saber o que fazer. O Mago dissera-me para me manter no meu
quarto até de manhã. Eu sabia que ele não haveria de querer que eu
fosse falar com o primo dele.
Dissera que era um padre intrometido. Estaria ele apenas a voltar a
intrometer-se? Por outro lado, ele dissera-me que o padre Cairns era
bem-intencionado. Mas, e se o padre tivesse realmente conhecimento de
algo que ameaçava o Mago? E se eu ficasse, o meu mestre podia acabar
nas mãos do Inquisidor. No entanto, se fosse à catedral, estaria a meter-
me diretamente na boca do Inquisidor e do Destruidor! O funeral já fora
bastante perigoso. Poderia eu realmente voltar a abusar da minha sorte?
O que eu deveria realmente ter feito era contar ao Mago da mensagem.
Mas não podia. Para já, ele não me dissera onde estava instalado.
«Confie nos seus instintos», sempre me ensinara o Mago, e então decidi-
me finalmente. Resolvi ir falar com o padre Cairns.
CAPÍTULO 6
UM PACTO COM O INFERNO
Concedendo-me bastante tempo, caminhei lentamente pelas ruas
úmidas empedradas. As palmas das minhas mãos estavam suadas dos
nervos e os meus pés pareciam relutantes em avançar na direção da
catedral. Era como se eles tivessem mais juízo do que eu e precisei de
fazer um esforço para colocar um pé diante do outro. Mas a tarde estava
fria, e felizmente não havia muita gente por ali. Não passei sequer por
um padre.
Cheguei à catedral cerca das dez para as sete e, ao transpor o portão
para o grande pátio lajeado da entrada, não pude deixar de olhar para a
gárgula por cima da porta principal. A cabeça feia parecia maior do que
nunca e os olhos pareciam conter ainda vida; seguiram-me enquanto me
encaminhava para a porta. O comprido queixo curvava tanto para cima
que quase se unia ao focinho, tornando-a diferente de qualquer criatura
que eu alguma vez vira.
Para além das orelhas caninas e uma comprida língua a sair-lhe da boca,
dois cornos curtos curvavam para cima desde o crânio e, de repente,
fez-me lembrar uma cabra.
Desviei o olhar e entrei na catedral, arrepiando-me da mera estranheza
da criatura. Dentro do edifício, os meus olhos levaram alguns momentos
a adaptar-se ao escuro, e para meu alívio vi que o lugar estava quase
vazio.
Senti medo por duas razões. Em primeiro lugar, não me agradava estar
dentro da catedral, onde podiam aparecer padres a qualquer instante. Se
o padre Cairns estava me enganando, então eu fora direitinho à
armadilha dele. Em segundo, encontrava-me agora em território do
Destruidor. O dia não tardaria a recolher-se, e assim que o Sol se
pusesse, o Destruidor, tal como todas as criaturas do escuro, seria bem
mais perigoso. Talvez então a sua mente pudesse sair das catacumbas e
vir à minha procura.
Tinha de resolver o assunto o mais rapidamente possível.
Onde ficava o confessionário? Havia apenas duas velhotas ao fundo da
catedral, mas estava um homem ajoelhado perto da frente, junto da
pequena porta de um compartimento de madeira encostado à parede de
pedra.
Fiquei plenamente esclarecido. Havia um compartimento idêntico um
pouco mais adiante. Cada um tinha uma vela encaixada por cima e
dentro de um suporte de vidro azul. Mas apenas a mais próxima do
homem ajoelhado fora acesa.
Avancei pela nave do lado direito e ajoelhei no banco atrás dele.
Passados alguns instantes, a porta do confessionário abriu-se e saiu uma
mulher usando um véu preto. Atravessou a nave e ajoelhou num banco
mais atrás enquanto o homem entrava.
Dali a pouco ouvi-o murmurar. Nunca na vida estivera num
confessionário, mas fazia uma idéia jeitosa do que acontecia. Um dos
irmãos do pai tornara-se muito religioso antes de morrer. O pai
chamava-lhe sempre o Santo Joe, mas o seu nome verdadeiro era
Matthew. Ia confessar-se duas vezes por semana e depois de ouvir os
pecados dele o padre dava-lhe uma grande penitência. Isso significava
que depois tinha de dizer muitas preces sucessivamente. Calculei que o
velho estivesse a falar dos seus pecados ao padre.
A porta manteve-se fechada durante o que pareceu uma eternidade e
comecei a ficar impaciente. Ocorreu-me outra idéia: e se não fosse o
padre Cairns quem estava lá dentro mas algum outro padre? Teria
realmente de me confessar, senão iria levantar muitas suspeitas.
Procurei pensar em alguns pecados que pudessem parecer convincentes.
Seria a ganância um pecado? Ou chamavam-lhe gula? Bem, eu gostava
sem dúvida de comer, mas não in-gerira nada o dia inteiro e o meu
estômago começava a roncar. De repente pareceu-me uma loucura estar
a fazer isto. Dentro de momentos poderia acabar feito prisioneiro.
Entrei em pânico e levantei-me para ir embora. Só então reparei com
alívio num pequeno cartão colocado num suporte na porta. Estava lá
escrito um nome: PADRE CAIRNS.
Naquele momento a porta abriu-se e o velhote saiu, de modo que ocupei
o lugar dele no confessionário e fechei a porta atrás de mim. Era
pequeno e estava escuro lá dentro e, quando ajoelhei, o meu rosto ficou
muito próximo de uma grelha de metal. Por detrás da grelha havia uma
cortina castanha e, em algum lugar para lá dela, uma vela a tremular.
Não consegui ver nenhum rosto através da grelha, apenas o contorno
sombrio de uma cabeça.
— Gostaria que o ouvisse em confissão? — A voz do padre tinha uma
pronúncia carregada do Condado e respirava ruidosamente.
Limitei-me a encolher os ombros. Percebi depois de que ele não
conseguia me ver bem através da grelha.
— Não, Padre — respondi —, mas agradeço mesmo assim. Sou Tom, o
aprendiz de Mr. Gregory. O
senhor queria falar comigo.
Seguiu-se uma ligeira pausa antes de o padre Cairns falar.
— Ah, Thomas, ainda bem que veio. Chamei-o aqui porque preciso
realmente de falar com você. Preciso de te contar algo muito importante,
por isso quero que fique aqui até eu terminar. Prometa-me que não vai
embora antes de eu te dizer o que tenho a dizer?
— Ouvirei — respondi, na dúvida. Agora tinha receio de fazer promessas.
Na Primavera, fizera uma promessa a Alice e acabara por me ver
envolvido numa série de problemas.
— É um bom rapaz — disse ele. — Começamos uma tarefa importante
com o pé direito. E sabe de que tarefa se trata?
Perguntei-me se estaria a falar do Destruidor, mas achei melhor não
mencionar aquela criatura tão perto das catacumbas, de modo que
referi: — Não, Padre.
— Bem, Thomas, temos de combinar os dois um plano para podermos
salvar a sua alma imortal. Mas sabe o que tem de fazer para iniciar o
processo, não sabe? Tem de se afastar de John Gregory. Tem de deixar
de praticar aquela vil arte. Fará isso por mim?
— Julguei que quisesse falar comigo por causa de ajudar Mr. Gregory —
referi, começando a irritar-me. —
Pensei que ele corresse perigo.
— E corre, Thomas. Estamos aqui para ajudar John Gregory, mas
primeiro temos de te ajudar. Sendo assim, fará o que eu disser?
— Não posso — retorqui. — O meu pai pagou bom dinheiro pelo meu
aprendizado e a minha mãe ficaria ainda mais desapontada, Ela diz que
eu tenho um dom e que o devo usar para ajudar as pessoas. E o que os
magos fazem. Andamos de terra em terra a ajudar as pessoas quando
correm perigo devido a coisas que saem do escuro.
Seguiu-se um longo silêncio. Tudo o que ouvia era a respiração do
padre. Depois lembrei-me de outra coisa.
— Eu ajudei o padre Gregory, sabe — referi atabalhoadamente. — Ele
acabou por morrer, é certo, mas salvei-o de uma morte pior. Pelo menos
morreu na cama, quentinho. Ele tentou livrar-se de um demônio —
expliquei, levantando um pouco a voz. — Foi isso que o meteu em
problemas, antes de mais nada. Mr. Gregory podia ter resolvido tudo por
ele. Consegue fazer coisas que não estão ao alcance de um padre. Os
padres não conseguem se livrar dos demônios porque não sabem como
se faz. É
preciso mais do que algumas preces.
Sabia que não devia ter dito aquilo em relação às preces e calculei que
ele fosse ficar muito irado. Mas não.
Manteve a calma e isso só serviu para piorar a situação.
— Oh, sim, é preciso muito mais — respondeu o padre Cairns
tranquilamente, a sua voz pouco mais do que um murmúrio. — Muito,
muito mais. Sabe qual é o segredo de John Gregory, Thomas? Sabe de
onde provém o poder dele?
— Sim — referi, a minha própria voz subitamente muito mais calma. —
Ele estudou durante anos, durante toda a sua vida de trabalho. Tem uma
biblioteca cheia de livros, fez um aprendizado tal como eu, escutou com
atenção o que o mestre dele disse e anotou tudo em livros de
apontamentos, tal como eu faço agora.
— Acha que nós não fazemos o mesmo? São precisos longos anos de
preparação para o sacerdócio. E os padres são homens inteligentes
preparados por homens ainda mais inteligentes. Nesse caso, como foi
que conseguiu o que o padre Gregory não conseguiu, não obstante o
fato de ele ter lido do livro sagrado de Deus? Como explica o fato de o
seu mestre fazer rotineiramente o que o irmão dele não conseguiu?
— É porque os padres têm a preparação errada —
disse-lhe. — E por o meu mestre e eu sermos sétimos filhos de sétimos
filhos.
O padre emitiu um ruído estranho por detrás da grelha. A princípio,
julguei que se tivesse engasgado; depois percebi que ouvia gargalhadas.
Estava rindo de mim.
Achei uma tremenda falta de educação. O meu pai dizia sempre que
devíamos respeitar as opiniões das outras pessoas mesmo que por vezes
parecessem tolas.
— Isso não passa de superstição, Thomas — respondeu por fim o Padre
Cairns. — Ser o sétimo filho de um sétimo filho não significa nada. É
apenas uma história disparatada. A verdadeira explicação para o poder
de John Gregory é algo tão terrível que até estremeço só de pensar no
assunto. Sabe, John Gregory fez um pacto com o Inferno. Vendeu a
alma ao Diabo.
Não podia acreditar no que ele estava afirmando.
Quando abri a boca, não saíram quaisquer palavras, de modo que me
limitei a abanar a cabeça.
— É verdade, Thomas. Todo o seu poder provém do Diabo. O que você e
outras pessoas do Condado chamam demônios são apenas diabos
menores que apenas se submeteram porque o amo deles os manda fazer
isso.
Convém ao Diabo porque, em troca, um dia ele apoderar-se-á da alma
de John Gregory. E uma alma é preciosa para Deus, uma coisa que
brilha e resplandece, e o Diabo fará qualquer coisa para sujá-la de
pecado e arrastar para as chamas eternas do Inferno.
— E então eu? — indaguei, voltando a enfurecer-me. — Eu não vendi a
minha alma. Mas salvei o padre Gregory.
— Isso é fácil, Thomas. Você é um servo do Mago, como lhe chama, que,
por sua vez, é um servo do Diabo.
Por isso o poder do mal lhe é emprestado enquanto serve.
Mas, claro, se concluísse a sua aprendizagem no mal e tencionasse
exercer a sua arte vil como mestre e não como aprendiz, então seria a
sua vez. Também você teria de ceder a sua alma. John Gregory ainda
não te contou nada porque é jovem demais, mas certamente o fará um
dia. E
quando esse dia chegar, não ficará surpreendido porque recordará as
minhas palavras neste momento. John Gregory cometeu muitos erros
graves na sua vida e afastou-se muitíssimo da graça. Sabia que ele já foi
padre?
Confirmei:
— Já sabia.
— E sabia que, tendo acabado de ser ordenado padre, resolveu
abandonar a sua vocação? Sabia da ignomínia dele?
Não respondi. Sabia que o padre Cairns me ia contar mesmo assim.
— Alguns teólogos têm defendido que uma mulher não tem alma. O
debate prossegue, mas de uma coisa podemos estar certos, um padre
não pode tomar uma esposa, porque o distrairia da sua devoção a Deus.
O erro de John Gregory foi duplamente mau: não só se deixou distrair
por uma mulher, como essa mulher já estava comprometida com um dos
seus próprios irmãos. A família ficou destroçada. Irmão virado contra
irmão por causa de uma mulher chamada Emily Burns.
Nesta altura, não gostava nem um pouco do padre Cairns e sabia que se
ele tem falado com a minha mãe a respeito de as mulheres não terem
alma, ela lhe teria dito poucas e boas. Mas estava curioso em relação ao
Mago.
Primeiro ouvira falar de Meg e agora estavam me contando que, ainda
antes disso, ele se envolvera com esta tal Emily Burns. Fiquei espantado
e quis saber mais.
— Mr. Gregory casou-se com Emily Burns? — inquiri, sem quaisquer
rodeios.
— Não aos olhos de Deus — respondeu o padre.
Ela era de Black-rod, onde a nossa família tem raízes, e vive lá sozinha
até hoje. Há quem diga que eles discutiram, mas fosse como fosse, John
Gregory acabou por arranjar outra mulher, que conheceu lá para o Norte
do Condado e trouxe para sul. Chamava-se Margery Skelton, uma fa-
mosa bruxa. Os habitantes locais conheciam-na como Meg, e com o
tempo ela tornou-se temida e detestada em toda a extensão de
Anglezarke Moor e nas cidades e aldeias a sul do Condado.
Fiquei calado. Sabia que ele esperava me ver chocado. E estava, com
tudo o que ele contara, mas a leitura do diário do Mago em Chipenden
preparara-me para o pior.
O padre Cairns soltou outro resfôlego profundo, depois tossiu
cavernosamente.
— Sabe qual dos seis irmãos John Gregory prejudicou?
Já adivinhara.
— O padre Gregory — respondi.
— Em famílias devotas como os Gregory, é de tradição que um filho
receba as Ordens Sagradas. Quando John se desligou da sua vocação,
outro irmão tomou o seu lugar e começou a preparar-se para o
sacerdócio. Sim, Thomas, foi o padre Gregory, o irmão que enterramos
hoje. Ele perdeu a sua amada e perdeu também o irmão.
O que mais podia fazer senão virar-se para Deus?
Quando eu chegara, a igreja estivera quase vazia, mas enquanto
tínhamos estado a conversar, percebera sons no exterior do
confessionário. Houvera passos e o murmúrio crescente das vozes.
Então, de repente, o coro começou a cantar. Já deveria passar bastante
das sete agora e o Sol ter-se-ia posto entretanto. Decidi inventar um
pretexto e sair mas, quando abri a boca, ouvi o padre Cairns levantar-se.
— Venha comigo, Thomas — disse. — Quero mostrar-te uma coisa.
Ouvi-o abrir a porta e sair para a igreja, de modo que o segui. Apontou-
me na direção do altar onde, conduzido por outro padre, bem alinhado
em três filas de dez, um conjunto de meninos de coro estava de pé nos
degraus. Cada um vestia uma batina preta sobre uma peliz branca.
O padre Cairns estacou e apoiou a mão ligada no meu ombro.
— Escute-os, Thomas. Não parecem anjos sagrados?
Como eu nunca ouvira um anjo cantar, não podia responder, mas eles
faziam certamente um ruído mais agradável do que o meu pai, que
costumava cantar quando nos aproximávamos do fim da ordenha. A sua
voz era suficientemente má para azedar o leite.
— Podia ter sido membro daquele coro, Thomas.
Mas deixou passar a idade. A sua voz já está começando a ficar mais
grossa e a oportunidade de servir perdeu-se.
Lá nisso ele tinha razão. Na sua maioria, os rapazes eram mais novos do
que eu e as suas vozes mais como as das meninas do que as dos
rapazes. De qualquer forma, o meu canto não era muito melhor do que o
do meu pai.
— Mesmo assim, há outras coisas que pode fazer.
Deixe-me mostrar-te..
Seguiu na frente para lá do altar, transpondo uma porta e percorrendo
um corredor. Depois fomos ter no jardim na parte de trás da catedral.
Bem, era mais do tamanho de um campo do que de um jardim, e em
vez de flores e rosas tinham plantado ali legumes.
Começava já a ficar escuro mas havia ainda luz suficiente para divisar
uma sebe de espinheiro-alvar ao longe com as lápides do adro da igreja
mesmo visíveis para lá dela. No primeiro plano estava um padre de
joelhos, a mondar com um sacho. Era um jardim grande e um sacho
muito pequeno.
— Vem de uma família de agricultores, Thomas. É
um trabalho bom e honesto. Sentir-se-ia bem trabalhando aqui —
referiu, apontando para o padre de joelhos.
Abanei firmemente a cabeça.
— Eu não quero ser padre — redargui com firmeza.
— Oh, você nunca poderia ser padre! — advertiu o padre Cairns, a sua
voz exprimindo choque e indignação.
— Estive perto demais do Diabo para isso e agora vai ter de ser bem
vigiado durante o resto da sua vida que é para não ter uma recaída.
Não, aquele homem é um irmão.
— Um irmão? — inquiri, intrigado, pensando que era da família, ou
assim.
O padre sorriu.
— Numa grande catedral como esta, os padres têm assistentes que se
oferecem para ajudar. Chamamos-lhes irmãos porque, apesar de não
poderem ministrar os sacramentos, realizam outras tarefas vitais e
fazem parte da família da Igreja. O irmão Peter é o nosso jardineiro e
muito bom, por sinal. O que diz, Thomas? Gostaria de ser um irmão?
Eu sabia o que era ser um irmão. Sendo o mais novo de sete,
impingiam-me todas as tarefas que mais ninguém queria fazer. Parecia
que se passava o mesmo aqui. De qualquer forma, eu já tinha trabalho e
não acreditava no que o padre Cairns me dissera sobre o Diabo e o
Mago. Fizera-me pensar um bocado, mas lá no fundo eu sabia que não
podia ser verdade. Mr. Gregory era um bom homem.
Estava a ficar mais escuro e frio a cada instante de maneira que decidi
que chegara a hora de partir.
— Obrigado por falar comigo, Padre — referi —, mas podia dizer-me
agora qual o perigo que Mr. Gregory corre, por favor?
— Tudo a seu tempo, Thomas — alegou, esboçando-me um pequeno
sorriso.
Algo naquele sorriso me disse que fora enganado.
Que ele não fazia tenção nenhuma de ajudar o Mago.
— Vou pensar no que me disse, mas tenho de voltar já senão fico sem a
minha ceia — argumentei. Na altura pareceu-me uma boa desculpa. Ele
não tinha como saber que eu jejuava porque precisava de estar a postos
para enfrentar o Destruidor.
— Nós temos aqui a ceia para você, Thomas —
frisou o padre Cairns. — Na verdade, gostaríamos que passasses a noite
aqui.
Tinham saído outros dois padres de uma porta lateral e encaminhavam-
se para nós. Eram homens grandes e não gostei das expressões nos
rostos deles.
Houve um momento em que provavelmente teria podido fugir, mas
parecia-me absurdo fazê-lo quando não sabia bem o que ia acontecer.
Depois já era tarde demais porque os padres estavam um de cada lado
de mim, agarrando-me firmemente pelos braços e os ombros. Não me
debati porque era inú-
til. As mãos deles eram grandes e pesadas e pensei que, se me
mantivesse no mesmo lugar tempo demais, começaria a afundar-me
pela terra. Conduziram-me então à sacristia.
— Isto é para o seu próprio bem, Thomas — advertiu o padre Cairns,
enquanto nos seguia até lá dentro.
— O Inquisidor irá capturar John Gregory esta noite. Será julgado, claro,
mas já se sabe o resultado. Sendo considerado culpado de lidar com o
Diabo, será queimado no poste. É por isso que não posso te deixar voltar
para ele.
Você ainda tem chance. É apenas um rapaz e a sua alma ainda pode ser
salva da fogueira. Mas se estiver com ele quando for preso, então
sofrerá idêntico destino. Portanto isto é para o seu próprio bem.
— Mas ele é seu primo! — protestei. — É da família. Como pode fazer
isto? Deixe-me ir avisá-lo.
— Avisá-lo? — perguntou o padre Cairns. — Acha que não o tentei
avisar? Tenho-o avisado a maior parte da sua vida adulta. Agora preciso
de pensar mais na sua alma do que no seu corpo. As chamas purgá-lo-
ão. Através da dor, a sua alma pode ser salva. Não percebe? Estou
fazendo para ajudá-lo, Thomas. Há coisas muito mais importantes do
que a nossa breve existência neste mundo.
— O senhor traiu-o! Sangue do seu sangue. Avisou o Inquisidor de que
estávamos aqui!
— Não dos dois, apenas de John. Por isso junte-se a nós, Thomas. A sua
alma será purgada através da prece e a sua vida deixará de correr
perigo. O que me diz?
Era inútil discutir com alguém que tinha tanta certeza de que a razão o
assistia, por conseguinte não gastei a minha saliva. O único som que se
ouvia era o eco dos nossos próprios passos e o tilintar de chaves à
medida que me conduziam cada vez mais pela negrura da catedral
adentro.
CAPÍTULO 7
FUGA E CAPTURA
Trancaram-me numa pequena divisão úmida sem janela e não me
trouxeram a ceia que tinham mencionado. Havia apenas um pequeno
monte de palha a fazer de cama.
Quando a porta se fechou, fiquei ali no escuro, a ouvir a chave rodar na
fechadura e os passos afastarem-se ecoando pelo corredor.
Estava escuro demais para ver um palmo à frente do nariz mas isso não
me preocupou muito. Após quase seis meses como aprendiz do Mago
tornara-me muito mais corajoso. Sendo o sétimo filho de um sétimo
filho, sempre vira coisas que os outros não conseguiam ver, mas o Mago
ensinara-me que, na sua maioria, não podiam nos fazer muito mal. Era
uma catedral velha e havia um cemitério enorme do outro lado do
jardim, o que significava que andariam por ali coisas — coisas
turbulentas como imagens fantasmagóricas e fantasmas — mas eu não
tinha medo delas.
Não, o que me incomodava era o Destruidor lá em baixo nas
catacumbas! A idéia de poder alcançar a minha mente era aterradora. Eu
não estava nada interessado em enfrentá-lo, e se se encontrasse agora
tão forte como o Mago desconfiava, saberia exatamente o que se
passava.
Na verdade, provavelmente corrompera o padre Cairns, virando-o contra
o próprio primo. Podia ter semeado o seu mal entre os padres e ter
escutado as conversas deles.
Devia saber quem eu era e onde estava, e o mínimo que posso dizer é
que não seria muito simpático.
Claro que não pretendia ficar ali toda a noite. Sabem, ainda tinha as três
chaves no meu bolso e tencionava usar a especial que Andrew fizera. O
padre Cairns não era o único com truques na manga.
A chave não me levaria além do Portão de Prata, porque era preciso algo
bem mais subtil e engenhoso para abrir aquela fechadura, mas sabia que
me faria chegar ao corredor e transpor qualquer porta da catedral. Só
precisava esperar que estivessem todos dormindo e depois poderia
esgueirar-me. Se fosse cedo de mais, provavelmente seria apanhado.
Por outro lado, se me atrasasse, seria tarde demais para avisar o Mago e
poderia receber uma visita do Destruidor, por isso era um juízo em que
não me podia permitir errar.
Quando a escuridão se instalou e os ruídos lá fora desapareceram, decidi
tentar a minha sorte. A chave rodou na fechadura sem a menor
resistência, mas antes mesmo de abrir a porta ouvi passos. Fiquei
estático e sustive a respiração enquanto, gradualmente, eles
retrocediam ao longe e tudo voltava ao silêncio.
Esperei bastante tempo, escutando com muita atenção. Por fim, inspirei
lentamente e abri a porta. Felizmente não fez qualquer barulho e saí
para o corredor, estacando e voltando a escutar.
Não tinha certeza se haveria ainda alguém na catedral e edifícios
anexos. Talvez tivessem voltado todos para a casa grande dos padres?
Mas não podia acreditar que não tivessem deixado alguém de guarda,
por isso segui em bicos de pés pelo corredor escuro, receando fazer
sequer o mais leve ruído.
Quando cheguei à porta lateral da sacristia, tive um choque. Não
precisava da minha chave. Já estava aberta.
O céu estava agora limpo e a Lua aparecera, banhando o pátio com uma
luz prateada. Saí lá para fora e movi-me com cautela. Só então pressenti
alguém atrás de mim; alguém de pé ao lado da porta, escondido na
sombra de um dos grandes contrafortes de pedra que escorava as
paredes laterais da catedral.
Fiquei estático por um momento. Depois, com o coração a bater com
tanta força que o conseguia ouvir, virei-me lentamente. A figura na
sombra deslocou-se para o luar. Reconheci-o imediatamente. Não era
um padre, mas o irmão que vira antes ajoelhado a cuidar do jardim.
De rosto descarnado, o irmão Peter estava praticamente calvo, apenas
com um fino tufo de cabelo branco por debaixo das orelhas.
De repente falou. — Avise o seu mestre, Thomas
— disse. — Vá depressa! Saiam da cidade enquanto ambos ainda
podem!
Não respondi. Virei-me apenas e corri o mais depressa que podia. Só
parei quando cheguei às ruas. Procurei caminhar de forma a não
despertar muito a atenção sobre a minha pessoa e perguntei-me por que
motivo o irmão Peter não tentara impedir-me. Não era essa a sua
função? Não o tinham deixado de guarda?
Mas não havia tempo para pensar bem no assunto.
Precisava avisar o Mago da traição do primo dele antes que fosse tarde
demais. Não sabia em que estalagem o Mago se hospedara, mas talvez o
irmão dele soubesse.
Sempre era um começo porque sabia onde ficava Friargate: era uma das
ruas que descera enquanto andara à procura de uma estalagem, por isso
não devia ser muito difícil encontrar a oficina de Andrew. Percorri
apressado as ruas empedradas, sabendo que não tinha muito tempo;
que o Inquisidor e os seus homens viriam já a caminho.
Friargate era uma rua larga e íngreme com lojas de um lado e do outro e
dei facilmente com a serralharia. O
nome por cima da porta dizia ANDREW GREGORY,
mas as instalações estavam às escuras. Tive de bater três vezes antes
de uma luz tremular no quarto por cima.
Andrew abriu a porta e aproximou uma vela do meu rosto. Vestia uma
comprida camisa de dormir e o seu rosto era um misto de expressões.
Parecia intrigado, furioso e cansado.
— O seu irmão corre perigo — disse-lhe, tentando manter a voz o mais
baixa possível. — Eu mesmo o teria avisado mas não sei onde ele está
hospedado. .
Fez-me sinal para entrar sem dizer uma palavra e conduziu-me pela
oficina. As paredes estavam ornamentadas com chaves e fechaduras de
todos os tamanhos e formas possíveis. Uma chave grande era do
comprimento do meu antebraço e fiquei curioso quanto ao tamanho da
fechadura a que pertencia. Expliquei rapidamente o que acontecera.
— Eu avisei-o de que era uma tolice ficar aqui! —
exclamou, dando um soco com força no tampo de uma bancada. — E
raios partam aquele traiçoeiro e hipócrita do nosso primo! Sempre soube
que ele não era de confiança. O Destruidor deve tê-lo apanhado
finalmente, torcendo-lhe a mente para tirar John do caminho — a única
pessoa em todo o Condado que ainda constitui uma verdadeira ameaça
para ele!
Foi lá acima mas não demorou muito tempo a vestir-se. Em breve
voltávamos a percorrer as ruas vazias, seguindo um percurso que nos
levava de novo na direção da catedral.
— Ele está hospedado no O Livro e a Vela —
murmurou Andrew Gregory, abanando a cabeça. — Por que carga d’água
ele não te disse isso? Podia ter poupado tempo e ido diretamente para
lá. Esperemos que não seja tarde demais!
Mas chegamos realmente tarde demais. Ouvia-se à distância de várias
ruas: vozes de homens alteradas pela raiva e alguém a bater a uma
porta com força suficiente para acordar os mortos.
Assistimos de uma esquina, tendo o cuidado de não sermos vistos. No
momento não podíamos fazer nada. O
Inquisidor estava ali no seu cavalo enorme e tinha cerca de vinte
homens armados às suas ordens. Estes levavam bastões e alguns deles
tinham desembainhado as espadas como se esperassem resistência. Um
dos homens voltou a bater sonoramente com o punho da espada na
porta da estalagem.
— Abram! Abram! E rapidamente! — gritou. —
Senão arrombamos a porta!
Ouviu-se o som de fechaduras a serem corridas e o estalajadeiro
apareceu à porta em camisa de dormir, segurando uma lanterna. Parecia
perplexo, como se tivesse acabado de acordar de um sono muito
profundo. Viu apenas os dois homens armados diante dele, não o
Inquisidor. Talvez por isso tivesse cometido um grande erro: começou a
protestar com grande alarido.
— O que vem a ser isto? — gritou. — Um homem já não pode dormir
depois de um dia duro de trabalho? A perturbar a paz a estas horas da
noite! Conheço os meus direitos. Existem leis contra essas coisas.
— Tolo! — exclamou o Inquisidor, enfurecido, aproximando o cavalo da
porta. — Eu sou a lei! Há um feiticeiro a dormir dentro das suas paredes.
Um servo do Diabo! Dar guarida a um inimigo conhecido da Igreja
acarreta duras penalidades. Afaste-se, senão pagará com a vida!
— Peço desculpa, Lorde. Peço desculpa! — gemeu o estalajadeiro,
erguendo as mãos em súplica, uma expressão de terror no seu rosto.
Em resposta, o Inquisidor limitou-se a fazer sinal aos seus homens, que
agarraram rudemente o estalajadeiro. Foi arrastado para a rua sem
qualquer cerimônia e ar-remessado ao chão.
Depois, com perfeita deliberação, a crueldade estampada no seu rosto, o
Inquisidor fez passar o seu garanhão branco por cima do estalajadeiro.
Um casco desceu com força sobre a perna dele e ouvi nitidamente o osso
partir-se. O sangue gelou-me nas veias. O homem ficou no chão a gritar
enquanto quatro dos guardas entravam na casa; as suas botas fizeram
ruído nas escadas de madeira.
Quando arrastaram o Mago para fora, ele parecia velho e frágil. Talvez
um pouco receoso também, mas eu estava longe demais para ter
certeza.
— Bem, John Gregory, apanhei-te finalmente! —
exclamou o Inquisidor, numa voz sonora e arrogante. —
Esses seus ossos secos vão arder bem!
O Mago não respondeu. Vi-os amarrar-lhe as mãos atrás das costas e
conduzi-lo pela rua.
— Todos estes anos, para depois acabar assim —
murmurou Andrew. — Ele sempre foi bem-intencionado.
Não merece ser queimado.
Não queria acreditar no que estava acontecendo.
Sentia um nó tão grande na garganta que, até o Mago ter virado a
esquina e desaparecer de vista, não fui sequer capaz de falar.
— Temos de fazer alguma coisa — disse por fim.
Andrew abanou a cabeça, cansado.
— Bem, rapaz, pense no assunto e depois diga-me como vamos agir.
Porque eu não faço a menor idéia. É
melhor voltar para minha casa e ao raiar do dia afastar-se o mais
possível daqui.
CAPÍTULO 8
A HISTÓRIA DO IRMÃO PETER
A cozinha ficava na parte de trás da casa, dando para um pequeno pátio
lajeado. Quando o céu clareou, Andrew ofereceu-me algo para fazer de
desjejum. Não era muito, apenas um ovo e uma fatia de pão torrado.
Agradeci-lhe, mas tive de recusar pois ainda estava a jejuar. Comer
significaria a aceitação de que o Mago desaparecera e que não iríamos
enfrentar o Destruidor. De qualquer forma, não sentia a mínima fome.
Fizera o que Andrew sugerira. Desde que tinham levado o Mago, eu
passara cada momento a pensar na maneira de salvá-lo. Pensei também
em Alice. Se eu não fizesse algo, seriam ambos queimados.
— O saco de Mr. Gregory continua no meu quarto no O Touro Preto —
lembrei-me de repente, virando-me para o serralheiro.
— E ele deve ter deixado o bordão e as nossas capas no quarto dele na
estalagem. Como é que os vamos recuperar?
— Bem, eis um aspecto em que posso te ajudar —
referiu Andrew. — É arriscado demais para qualquer de nós, mas
conheço alguém que podia lá ir no seu lugar.
Tratarei disso mais tarde.
Enquanto via Andrew comer, começou a ouvir-se um sino em algum
lugar ao longe. Era apenas um toque monótono e seguia-se uma longa
pausa entre cada badalada. Era um som pesaroso, como um toque a
finados.
— É o da catedral? — inquiri.
Andrew anuiu e continuou a mastigar a comida muito lentamente.
Parecia que tinha tão pouco apetite quanto eu.
Perguntei-me se estaria a chamar as pessoas para o primeiro serviço
matinal, mas antes que eu pudesse exprimi-lo Andrew engoliu o pedaço
de torrada e disse-me:
— Significa outra morte na catedral ou em alguma outra igreja na
cidade. Ou isso, ou morreu um padre noutro local do Condado e a notícia
só agora aqui chegou. É
um som muito comum nestes dias. Temo que quaisquer padres que
ponham em causa as trevas e a corrupção na nossa cidade sejam
despachados rapidamente.
Senti um calafrio.
— Há alguém em Priestown que saiba que o Destruidor está na origem
dos tempos negros? — perguntei.
— Ou apenas os padres?
— De certa forma, o conhecimento do Destruidor encontra-se bastante
generalizado. Na zona mais próxima da catedral a maior parte das
pessoas mandou emparedar as portas das caves, e alastra-se o medo e
a superstição.
Quem pode culpar os habitantes da cidade se eles não conseguem
sequer confiar nos próprios padres para os protegerem? Não admira que
as congregações estejam a diminuir — comentou Andrew, abanando
pesarosamente a cabeça.
— Chegou a terminar a chave? — perguntei-lhe.
— Sim — disse —, mas o pobre John não vai precisar dela agora.
— Nós podíamos usá-la — sugeri, falando rapidamente de modo a poder
concluir o meu pensamento antes que ele me interrompesse. — As
catacumbas passam mesmo por debaixo da catedral e do presbitério, por
isso deveria existir uma entrada para elas. Esperávamos que
escurecesse, que estivessem todos a dormir, e entrávamos na casa.
— Isso não passa de um absurdo — referiu Andrew, abanando a cabeça.
— O presbitério é enorme, com imensas divisões tanto acima como
abaixo do solo. E nós nem sequer sabemos onde eles mantêm os
prisioneiros. E
não só, há homens armados a guardá-los. Também quer ser queimado?
Eu não!
— Vale a pena tentar — insisti. — Eles não vão estar à espera que lhes
apareça ninguém dentro de casa vindo das catacumbas com o Destruidor
lá em baixo. Teremos a surpresa do nosso lado e talvez os guardas
estejam a dormir.
— Não — disse Andrew, abanando a cabeça com firmeza. — É uma
loucura. Não justifica mais duas vidas.
— Nesse caso, dê-me a chave que eu faço-o.
— Nunca saberia o caminho sem mim. É um labirinto de túneis lá em
baixo.
— Quer dizer que conhece o caminho? — perguntei. — Já esteve lá
antes?
— Sim, conheço o caminho até ao Portão de Prata.
Mas não quero passar daí. E já vão vinte anos desde que lá desci com
John. Aquela coisa lá em baixo quase o matou.
Também poderia nos matar. Você ouviu o que John disse: está mudando
de um espírito, a transformar-se sabe Deus no quê. Podia nos deparar
com qualquer coisa lá em baixo. As pessoas têm falado de cães pretos
ferozes com dentes enormes à mostra; de serpentes venenosas. O
Destruidor pode ler-te o pensamento, não se esqueça, assumir a forma
dos seus piores receios. Não, é perigoso demais.
Não sei que destino será pior — ser queimado vivo na fogueira pelo
Inquisidor ou espalmado até à morte pelo Destruidor. Não são escolhas
que um jovem deva ter de fazer. — Não se preocupe com isso —
tranquilizei-o. —
Trate das fechaduras que eu farei o meu trabalho.
— Se o meu irmão não foi capaz, então, que esperança pode ter você?
Ele ainda estava na flor da idade e você não passa de um garoto.
— Não sou suficientemente tolo para tentar dar cabo do Destruidor —
argumentei. — Farei apenas o que for necessário para pôr o Mago a
salvo.
Andrew abanou a cabeça. — Há quanto tempo está com ele?
— Quase seis meses — respondi.
— Bem — comentou Andrew —, isso nos diz tudo, não diz? As suas
intenções são boas, eu sei, mas só iríamos complicar a situação.
— O Mago me disse que a morte na fogueira é terrível. A pior morte de
todas. É por isso que ele não concorda que se queime uma bruxa. Seria
capaz de deixá-lo passar por isso? Por favor, tem de ajudar. É a última
oportunidade dele.
Desta vez Andrew não disse nada. Permaneceu sentado por muito
tempo, perdido em pensamentos.
Quando se levantou da cadeira, tudo o que disse foi para me manter
bem escondido.
Pareceu-me um bom sinal. Pelo menos não me despachara dali.
Fiquei sentado na parte de trás, esperando em vão, enquanto a manhã
ia passando. Não conseguira sequer pregar olho e estava cansado, mas
dormir era a última coisa em que eu pensava depois dos acontecimentos
da noite.
Andrew estava trabalhando. Ouvia-o a maior parte do tempo na oficina,
mas às vezes chegava um toque da campainha da porta quando um
cliente entrava ou saía da loja.
Era quase meio-dia quando Andrew regressou à cozinha. Tinha uma
expressão diferente no rosto. Parecia pensativo. E vinha mais alguém
atrás dele!
Pus-me em pé, pronto para fugir, mas a porta de trás estava trancada e
os dois homens encontravam-se entre mim e a outra porta. Depois
reconheci o estranho e relaxei. Era o irmão Peter e trazia o saco do
Mago, o bordão e as nossas capas!
— Está tudo bem, rapaz — sossegou-me Andrew, aproximando-se e
colocando a mão no meu ombro para me tranquilizar. — Tire esse ar
ansioso do seu rosto e sente-se. O irmão Peter é um amigo. Olhe, ele lhe
trouxe as coisas de John.
Ele sorriu e entregou-me o saco, o bordão e as capas. Aceitei-os com um
aceno de agradecimento e coloquei-os no canto antes de me sentar.
Ambos os homens tiraram cadeiras da mesa e se sentaram de frente
para mim. O irmão Peter era um homem que passara a maior parte da
vida a trabalhar ao ar livre e a pele da sua cabeça acusava a ação do
vento e do sol com um tom castanho uniforme. Era da altura de Andrew
mas não tinha um porte tão ereto. As costas e os ombros dele estavam
curvados, talvez de demasiados anos a trabalhar na terra com o sacho
ou a enxada. O nariz era o aspecto que mais o distinguia; era adunco
como o bico de um corvo, mas tinha os olhos afastados e um ar
bondoso. Os meus instintos diziam-me que se tratava de um bom
homem.
— Bem — disse ele —, a sua sorte foi ser eu a fazer as rondas a noite
passada e não um dos outros, senão teria voltado para aquela cela!
Sucedeu que o padre Cairns mandou me chamar pouco depois da
alvorada e tive de responder a umas perguntas estranhas. Não ficou
nada satisfeito e não sei se irá me deixar em paz!
— Lamento — disse-lhe.
O Irmão Peter sorriu.
— Não se aflija, rapaz. Não passo de um jardineiro com fama de ser
duro de ouvido. Ele não irá se preocupar muito tempo comigo. Não
quando o Inquisidor tem tantos outros prontos para a fogueira!
— Por que me deixou escapar? — quis saber.
O irmão Peter arqueou os sobrolhos. — Nem todos os padres estão sob o
controle do Destruidor. Sei que ele é seu primo — referiu, virando-se
para Andrew —, mas não confio no padre Cairns. Acho que o Destruidor
o pode ter dominado.
— Eu também já andava desconfiado — retorquiu Andrew. — John foi
traído e tenho a certeza de que o Destruidor esteve por detrás de tudo.
Ele sabe que John constitui uma ameaça para ele, por isso serviu-se da
fraqueza daquele nosso primo para se livrar dele.
— Sim, acho que tem razão. Reparou na mão dele?
Diz que está enfaixada porque se queimou numa vela, mas o padre
Hendle ficou com um ferimento no mesmo lugar depois de o Destruidor o
apanhar. Acho que Cairns deu o seu sangue àquela criatura.
Devo ter feito uma expressão horrorizada porque o irmão Peter se
aproximou e passou o braço pelos meus ombros.
— Não se preocupe, filho. Ainda restam alguns homens bons naquela
catedral, e posso não passar de um irmão inferior mas considero-me um
deles e contribuo para a obra do Senhor sempre que posso. Farei tudo o
que estiver ao meu alcance para te ajudar e ao seu mestre. O
escuro ainda não venceu! Por isso, vamos direto ao assunto. Andrew me
disse que é suficientemente corajoso para descer às catacumbas. É
verdade? — indagou, esfregando a ponta do nariz pensativamente.
— Alguém tem de fazê-lo, por isso estou disposto a tentar — retorqui-
lhe.
— E se ficar frente a frente com. .
Não terminou a frase. Era quase como se não conseguisse dizer «o
Destruidor».
— Alguém já te disse o que poderia enfrentar? Em relação à mudança de
forma e à leitura do pensamento e à. . — Hesitou e olhou por cima do
ombro antes de murmurar: — A prensa?
— Disseram, sim — respondi, parecendo muito mais confiante do que
me sentia. — Mas há coisas que poderia fazer. Ele não gosta de prata. .
Abri o saco do Mago, remexi nele e mostrei-lhes a corrente de prata.
— Podia aprisioná-lo com isto — aludi, olhando diretamente para os
olhos do irmão Peter e tentando não pestanejar.
Os dois homens entreolharam-se e Andrew sorriu.
— Treinou bastante, não treinou? — sondou-me.
— Horas e horas — disse-lhe. — Há um poste no jardim de Mr. Gregory
em Chipenden. Sou capaz de lançar esta corrente à distância de dois
metros e quarenta e consigo acertar nove em dez vezes.
— Bem, se de alguma maneira conseguisse passar por aquela criatura e
chegar esta noite ao presbitério, teria uma vantagem a seu favor. Ela
estaria certamente mais sossegada do que o normal — disse o irmão
Peter. — A morte da noite passada ocorreu na catedral por isso o corpo
já se encontra lá, e não fora da cidade. Esta noite quase todos os padres
estarão ali a fazer uma vigília.
Sabia, das minhas lições de latim, o que significava
«vigília». Mas ainda não me indicava o que estariam a fazer.
— Eles dizem preces e velam o corpo — explicou Andrew, sorrindo ante
a perplexidade no meu rosto. —
Quem foi que morreu, Peter?
— O pobre padre Roberts. Tirou a própria vida.
Atirou-se do telhado. Já são cinco suicídios este ano —
referiu, olhando para Andrew e depois logo para mim. —
Ele invade-lhes as mentes, sabe. Obriga-os a fazer coisas que são contra
Deus e contra a consciência deles. E isso é algo muito difícil para um
padre que recebeu as ordens sagradas a fim de servir a Deus. Por isso,
quando chega uma altura em que já não suporta, às vezes tira mesmo a
própria vida. E é um ato terrível de cometer. Tirar a própria vida é um
pecado mortal, e os padres sabem que nunca podem ir para o Céu,
nunca estar com Deus. Pense como deve ser mau para os levar àquilo!
Se ao menos pudéssemos nos livrar deste mal terrível antes que não
reste nada de bom na cidade para ele corromper.
Seguiu-se um breve silêncio, como se estivéssemos todos a pensar, mas
vi depois a boca do irmão Peter mover-se e calculei que talvez estivesse
a rezar pelo pobre padre morto. Quando fez o sinal da cruz tive então a
certeza disso. Depois, os dois homens entreolharam-se e anuíram
ambos. Sem falarem, tinham chegado a um acordo.
— Irei com você até ao Portão de Prata — afirmou Andrew. — Depois
disso, talvez aqui o irmão Peter possa te ajudar. .
O irmão Peter ia conosco? Ele deve ter lido a expressão no meu rosto
porque levantou ambas as mãos, sorriu e abanou a cabeça.
— Oh, não, Tom. Não tenho coragem de me aproximar das catacumbas.
Não, o que Andrew quer dizer é que posso ajudar de outra maneira:
dando-te indicações.
Sabe, existe um mapa dos túneis. Está montado numa moldura na
entrada do presbitério — aquela que conduz diretamente ao jardim.
Perdi a conta às horas que passei ali à espera que um dos padres
descesse e me desse as ordens para o dia. Ao longo dos anos, fiquei a
conhecer cada centímetro daquele mapa. Quer tomar nota, ou consegue
lembrar-se?
— Tenho boa memória — respondi-lhe.
— Bem, avise-me se quiser que repita algo. Como disse Andrew, ele irá
te guiar até ao Portão de Prata. Uma vez lá chegado, só tem de
continuar até o túnel bifurcar.
Segue pelo corredor da esquerda até chegar a umas escadas. Elas
conduzem a uma porta, para lá da qual fica a enorme adega do
presbitério. Estará trancada, mas isso não constituirá nenhum problema
para você quando tem um amigo como Andrew. Existe apenas mais uma
porta que permite sair da adega e fica na parede do fundo no canto
direito.
— Mas o Destruidor não pode seguir-me até à adega e fugir? — inquiri.
— Não, ele só pode abandonar as catacumbas pelo Portão de Prata, por
isso estará perfeitamente a salvo dele depois de transpor a porta para a
adega. Agora, antes de deixar a adega há algo que deveria fazer. Existe
um alça-pão no teto do lado esquerdo da porta. Conduz ao caminho que
segue ao longo da parede norte da catedral — os distribuidores usam-na
para levar o vinho e a cerveja lá para baixo. Abra-o antes de avançar
mais. Seria uma via de fuga mais rápida do que voltar pelo portão. Tudo
claro até aqui?
— Não seria mais fácil usar aquele alçapão para descer? — perguntei. —
Sempre podia evitar o Portão de Prata e o Destruidor!
— Quem me dera que fosse tão fácil — referiu o irmão Peter.
— Mas é arriscado demais. A porta é visível da rua e do presbitério.
Alguém podia te ver entrar.
Anuí pensativamente.
— Apesar de não o poder usar para entrar, existe outro bom motivo para
tentar sair por ali — explicou Andrew. — Não quero que John corra o
risco de voltar a enfrentar o Destruidor. Sabe, lá no fundo, acho que ele
tem medo — tanto medo que não conseguiria vencer. .
— Medo? — perguntei, indignado. — Mr. Gregory não tem medo de nada
que pertença ao escuro.
— Não que ele o fosse admitir — continuou Andrew. — Pode ter certeza
disso. Provavelmente ele nem sequer o admitiria a si próprio. Mas foi
amaldiçoado há muito tempo e. .
— Mr. Gregory não acredita em maldições — voltei a interromper. — Ele
me disse.
— Se me deixar falar, poderei explicar-te — insistiu Andrew. — Trata-se
de uma maldição perigosa e poderosa. Grande como sempre são.
Reuniram-se três grupos de bruxas para a lançarem. John andara a
interferir demais na sua atividade, de maneira que elas puseram de lado
as suas disputas e divergências e amaldiçoaram-no. Foi um sacrifício de
sangue e chacinaram-se inocentes. Aconteceu na noite de Santa
Valpurga, a véspera do primeiro de Maio, há vinte anos, e depois
mandaram-lhe um pergaminho salpicado de sangue. Ele me disse o que
vinha lá escrito: Morrerá num lugar escuro, bem abaixo do solo, sem
qualquer amigo a seu lado!
— As catacumbas... — exteriorizei, a minha voz pouco mais do que um
murmúrio. Se ele enfrentasse o Destruidor sozinho lá em baixo nas
catacumbas, nesse caso, cumprir-se-iam as condições da maldição.
— Sim, as catacumbas — confirmou Andrew. —
Como disse, fado sair por aquele alçapão.
— Bem, irmão Peter, desculpe tê-lo interrompido. .
Peter esboçou um fraco sorriso e continuou. —
Assim que abrir o fecho do alçapão, transpõe a porta para um corredor.
Esta é a parte arriscada. Existe uma cela ao fundo onde costumam
guardar os prisioneiros. É aí que deve procurar o seu mestre. Mas, para
chegar lá, terá de passar pela sala dos guardas. É perigoso, mas há
umidade e frio lá em baixo. Eles devem ter uma grande fogueira acesa
na grelha e, se Deus quiser, a porta estará fechada por causa do frio. E é
tudo! Liberte Mr. Gregory e faça-o sair pelo alçapão e desta cidade. Ele
terá de voltar noutra altura para enfrentar aquela criatura medonha,
quando o Inquisidor tiver partido.
— Não! — interveio Andrew. — Depois de tudo isto, não quero que ele
volte aqui.
— Mas se ele não enfrentar o Destruidor, então quem o fará? — inquiriu
o irmão Peter. — Também não acredito em maldições. Com a ajuda de
Deus, John pode derrotar aquele espírito maléfico. Sabe que está ficando
cada vez pior. Não duvido que eu seja o próximo.
— Não o senhor, irmão Peter — disse Andrew. —
Conheci poucos homens com a sua determinação.
— Faço o que posso — respondeu ele, arrepiando-se. — Quando o ouço
murmurar ao meu ouvido, rezo mais intensamente. Deus dá-nos a força
de que necessitamos — isso se formos capazes de pedi-la. Mas tem de
ser feito algo. Não sei como tudo isto vai acabar.
— Acabará quando a população da cidade se fartar
— retorquiu Andrew. — As pessoas têm um limite. Surpreende-me que
conseguissem aguentar a maldade do Inquisidor durante tanto tempo.
Alguns dos que vão ser queimados têm parentes e amigos aqui.
— Talvez sim, talvez não — disse o irmão Peter.
— Há muita gente que adora uma fogueira. Apenas podemos rezar.
CAPÍTULO 9
AS CATACUMBAS
O irmão Peter voltou às suas obrigações na catedral enquanto
esperávamos que o Sol descesse no horizonte.
Andrew disse-me que o melhor caminho para as catacumbas era através
da cave2 de uma casa abandonada próximo da catedral; era menos
provável que reparassem em nós depois de escurecer.
Com o passar das horas, comecei a ficar cada vez mais nervoso. Quando
conversara com Andrew e o irmão Peter, tentara mostrar-me confiante,
mas o Destruidor deixava-me realmente assustado. Remexia
constantemente no saco do Mago, procurando algo que pudesse ter
alguma utilidade.
Claro que peguei na corrente de prata que ele usava para aprisionar
bruxas e enrolei-a à cintura, escondida debaixo da camisa. Mas sabia
que uma coisa era conseguir lançá-la sobre um poste de madeira e outra
completamente diferente era fazê-lo com o Destruidor. A seguir vinham
o sal e o ferro. Depois de transferir a caixa de mechas para o bolso do
casaco, enchi os bolsos das calças —
o direito com sal, o esquerdo com ferro. A combinação resultava contra a
maior parte das coisas que habitavam o escuro. Fora assim que eu
arrumara definitivamente a bruxa velha, Mãe Malkin.
Não me parecia que fosse suficiente para acabar com algo tão poderoso
quanto o Destruidor; se assim 2 Porão, adega ou divisão subterrânea
fosse, o Mago teria tratado dele da última vez, e em definitivo. No
entanto, eu estava suficientemente desesperado para tentar qualquer
coisa, e só o fato de ter aquilo e a corrente de prata já me fazia sentir
melhor. Afinal, eu não tencionava aniquilar o Destruidor, apenas afastá-
lo o suficiente para conseguir salvar o meu mestre.
Por fim, com o bordão do Mago na mão esquerda e o saco dele com as
nossas capas na direita, fui seguindo Andrew pelas ruas cada vez mais
escuras em direção à catedral. Lá em cima, o céu estava carregado de
nuvens e cheirava como se a chuva não estivesse muito longe.
Começava a detestar Priestown, com as suas ruas estreitas empedradas
e pátios traseiros murados. Sentia a falta das extensões rochosas e dos
amplos espaços abertos. Se ao menos eu estivesse em Chipenden, de
volta à rotina das minhas lições com o Mago! Era difícil aceitar que a
minha vida ali pudesse ter terminado.
Quando nos aproximamos da catedral, Andrew conduziu-nos por um dos
caminhos estreitos que passavam por entre a parte de trás das casas
com terraço. Parou junto a uma porta, levantou devagar a trava e fez-
me sinal com a cabeça para que entrasse no pequeno pátio traseiro.
Depois de fechar cuidadosamente a porta do pátio, dirigiu-se à porta de
trás da casa, que estava completamente às escuras.
Um instante depois fez girar uma chave na fechadura e entramos.
Fechando a porta atrás de nós, acendeu duas velas e entregou-me uma.
— Esta casa está abandonada há mais de vinte anos
— disse-me —, e assim permanecerá também, pois, como terá
percebido, aqueles como o meu irmão não são bem-vindos nesta cidade.
Está assombrada por algo bastante desagradável, por isso, a maior parte
das pessoas mantém-se bem distante e até os cães a evitam.
Ele tinha razão ao dizer que havia algo bastante desagradável na casa. O
Mago desenhara um símbolo no lado de dentro da porta de trás.
Era a letra grega gama, que se usava ou para uma imagem
fantasmagórica ou um fantasma. O número à direita era o um, querendo
dizer que se tratava de um fantasma da primeira categoria,
suficientemente perigoso para levar algumas pessoas à beira da loucura.
— O seu nome era Matty Barnes — referiu Andrew —, e assassinou sete
pessoas nesta cidade, possivelmente mais. Tinha mãos grandes e usava-
as para tirar a vida das suas vítimas. Eram principalmente mulheres
jovens. Dizem que as trazia para aqui e lhes tirava a vida nesta mesma
divisão. Sucede que uma das mulheres contra-atacou e lhe espetou um
alfinete de chapéu no olho.
Ele morreu lentamente de septicemia. John ia convencer o seu fantasma
a ir-se embora mas desistiu. Sempre fizera tenção de aqui voltar um dia
e enfrentar o Destruidor e queria ter certeza de que esta descida para as
catacumbas ainda estaria disponível. Ninguém quer comprar uma casa
assombrada.
Senti de repente o ar ficar mais frio e as chamas das nossas velas
começaram a tremular. Algo estava muito perto e aproximava-se mais a
cada segundo. Chegou de repente. Não o consegui ver realmente mas
senti algo à espreita nas sombras no canto mais distante da cozinha;
algo que me olhava severamente.
O fato de eu não conseguir realmente vê-lo só piorava. Os fantasmas
mais poderosos conseguem escolher se se tornam ou não visíveis. O
fantasma de Matty Barnes estava a mostrar-me quão forte era
mantendo-se oculto, no entanto dava-me a entender que me vigiava. E
mais, conseguia sentir a sua maldade. Queria-nos mal e quanto mais
depressa saíssemos dali melhor.
— É imaginação minha ou de repente ficou muito frio aqui? — indagou
Andrew.
— Está mesmo frio — disse-lhe, sem mencionar a presença do fantasma.
Não havia necessidade de deixá-lo ainda mais nervoso do que ele já
estava.
— Nesse caso, vamos andando — alvitrou Andrew, seguindo na frente
até aos degraus da cave.
Era uma casa típica como as muitas com terraço que existiam nas
cidades do Condado: apenas duas divisões no piso de cima e outras duas
no piso de baixo com um sótão sob os beirais. E a porta da cave para a
cozinha encontrava-se exatamente na mesma posição que a de
Horshaw, onde o Mago me levara na minha primeira noite depois de me
ter tornado seu aprendiz. Aquela casa estivera assombrada por uma
imagem fantasmagórica, e para ver se eu estava à altura do cargo de
Mago, ordenara-me que descesse à cave à meia-noite. Nunca haveria de
esquecer aquela noite; só de pensar nela agora ainda me causava
arrepios.
Andrew e eu descemos as escadas até à cave. O
chão lajeado estava vazio à exceção de um monte de tapetes e alcatifas
velhos. Parecia suficientemente seco, mas havia um cheiro de mofo.
Andrew entregou-me a sua vela e depois arrastou rapidamente os
tapetes deixando à mostra um alçapão de madeira.
— Existe mais do que uma entrada para as catacumbas — referiu —,
mas esta é a mais fácil e a menos arriscada. Não é provável que
encontre muita gente a meter o nariz aqui em baixo.
Levantou a porta do alçapão e pude ver umas escadas de pedra que
desciam até à escuridão. Havia um cheiro a terra úmida e putrefação.
Andrew tirou-me a vela e desceu primeiro, mandando-me esperar um
momento.
Depois chamou: — Pode descer, mas deixe o alçapão aberto. Podemos
ter de sair daqui às pressas!
Deixei o saco do Mago, com as capas, na cave e segui-o, agarrando
ainda o bordão do meu mestre. Quando cheguei lá abaixo, para surpresa
minha, encontrei-me de pé em um terreno empedrado e não na lama,
com que estivera a contar. As catacumbas estavam também
pavimentadas como as ruas lá em cima. Teriam sido feitas pelas pessoas
que haviam vivido aqui antes da construção da cidade; aquelas que
veneravam o Destruidor? Se sim, as ruas empedradas de Priestown
tinham sido copiadas das catacumbas.
Andrew afastou-se sem dizer outra palavra e tive a sensação de que ele
queria sair rapidamente dali. Eu sabia que era o meu caso.
A princípio, o túnel era suficientemente largo para andarem duas
pessoas lado a lado mas o teto empedrado era baixo e Andrew viu-se
obrigado a caminhar com a cabeça inclinada para a frente. Não admirava
que o Mago lhes chamasse «Gente Pequena». Os construtores tinham
sem dúvida sido bem mais pequenos do que as pessoas de agora.
Não tínhamos avançado muito quando o túnel começou a estreitar; em
alguns lugares estava distorcido, como se o peso da catedral e dos
edifícios lá por cima estivesse a deformá-lo. Por vezes, as pedras que
revestiam também o teto e as paredes tinham caído, deixando que a
lama e o visco se infiltrassem e escorressem pelas paredes.
Ouvia-se o som de água a gotejar ao longe e o eco das nossas botas nas
pedras.
Não tardou que o corredor estreitasse ainda mais.
Fui obrigado a caminhar atrás de Andrew, e o nosso caminho dividiu-se
em dois túneis ainda menores. Depois de termos seguido pelo da
esquerda, fomos ter a um recanto na parede à nossa esquerda. Andrew
estacou e levantou a vela para que pudesse iluminar parte do interior.
Olhei horrorizado para o que vi. Havia filas de prateleiras e estavam
cheias de ossos: crânios com órbitas sem olhos, ossos de pernas, ossos
de braços, ossos de dedos e ossos que não identifiquei, todos de
tamanhos diferentes, todos misturados. E todos humanos!
— As catacumbas estão cheias de criptas como esta
— explicou Andrew. — Não convinha nada perdermo-nos aqui no escuro.
Os ossos também eram pequenos, como os de crianças. Estavam ali sem
dúvida os restos mortais da Gente Pequena.
Continuamos a avançar e ouvi água a correr rapidamente lá adiante.
Viramos uma esquina e lá estava, mais um pequeno rio do que um
ribeiro.
— Este passa por debaixo da rua principal em frente à catedral — disse
Andrew, apontando na direção da água escura —, e vamos atravessar
ali. .
Pedras, nove ao todo, largas, lisas e planas, mas cada uma delas mesmo
à superfície da água.
Mais uma vez, Andrew foi na frente, dando passadas largas sem esforço,
de pedra em pedra. Chegado ao outro lado, parou e virou-se para trás, a
fim de me ver concluir a minha travessia.
— Esta noite é fácil — disse —, mas depois de fortes chuvas o nível da
água pode muito bem ficar acima das pedras. Então existe realmente o
perigo de se ser levado. Continuamos a caminhar e o som da água a
correr começou a ouvir-se ao longe.
Andrew estacou subitamente e pude ver por cima do ombro dele que
tínhamos chegado a um portão. E que portão! Nunca vira nenhum assim.
Do chão ao teto, de parede a parede, uma grade de metal bloqueava por
completo o túnel, metal que brilhava à luz da vela de Andrew.
Parecia ser uma liga que continha muita prata e fora feito por um
ferreiro extremamente habilidoso. Cada barra era constituída não por um
cilindro de metal, mas por várias barras muito mais finas, torcidas de
modo a formar uma espiral. O desenho era extremamente complexo:
eram sugeridos padrões e formas, mas quanto mais olhava mais eles
pareciam mudar.
Andrew virou-se e apoiou a mão no meu ombro.
— Aqui está ele, o Portão de Prata. Agora ouça — disse-me —, isto é
importante. Há algo por perto? Algo do escuro?
— Não me parece — respondi.
— Isso não é suficiente — respondeu Andrew, na sua voz áspera. — Tem
de ter certeza! Se deixarmos escapar esta criatura ela aterrorizará todo
o Condado, não apenas os padres.
Bem, eu não sentia o frio, o aviso habitual de que algo do escuro estava
próximo. Por isso, era um sinal de que estava tudo seguro. Mas o Mago
sempre me dissera para confiar nos meus instintos, pelo que, para ter a
dupla certeza respirei fundo e concentrei-me bastante.
Nada. Não sentia absolutamente nada.
— Está tudo desimpedido — informei Andrew.
— Tem certeza? Tem realmente certeza?
— Tenho certeza.
Andrew ajoelhou-se subitamente e levou a mão ao bolso das calças.
Havia uma pequena porta curva na grade mas a minúscula fechadura
ficava muito perto do chão e era por isso que Andrew estava tão
curvado. Muito cuidadosamente, introduziu uma chave minúscula na
fechadura. Lembrei-me da chave enorme exposta na parede da oficina
dele. Seria de pensar que quanto maior a chave, mais importante era. O
que poderia ser mais importante do que a chave minúscula que Andrew
segurava agora na mão? Uma chave que mantinha todo o Condado a
salvo do Destruidor.
Parecia estar fazendo um grande esforço e posicionava e reposicionava
constantemente a chave. Por fim ela rodou e Andrew abriu o portão e
levantou-se.
— Ainda quer fazer isto? — perguntou-me.
Anuí, depois ajoelhei-me, enfiei o bordão pelo portão aberto e segui-o,
gatinhando. Andrew trancou imediatamente o portão atrás de mim e
passou a chave pela grade. Guardei-a no bolso esquerdo das calças,
empurrando-a para o meio das limalhas de ferro.
— Boa sorte — desejou-me Andrew. — Vou voltar para a cave e esperar
uma hora caso tenha alguma razão para voltar por aqui. Se não
aparecer, seguirei para casa. Quem me dera poder ajudar mais. É um
rapaz corajoso, Tom. Como desejava ter a mesma coragem para te
acompanhar.
Agradeci-lhe e, levando o bordão na mão esquerda e a vela na direita,
avancei sozinho pela escuridão. Passados momentos, instalou-se em
mim o pleno terror do que ia empreender. Estava louco? Encontrava-me
agora no antro do Destruidor e ele podia aparecer a qualquer momento.
Onde é que eu tinha a cabeça? Ele podia saber já que eu estava aqui!
Mas respirei fundo e tranquilizei-me com a idéia de que se não se
precipitara para o Portão de Prata quando Andrew o abrira, não era
onisciente. E, se as catacumbas eram tão extensas quanto as pessoas
afirmavam, então naquele preciso momento o Destruidor poderia estar a
quilômetros de distância. Fosse como fosse, o que mais podia eu fazer
senão continuar a avançar? As vidas do Mago e de Alice dependiam
ambas do que eu fizesse.
Caminhei cerca de um minuto antes de chegar a dois túneis que
ramificavam. Recordando-me do que o irmão Peter me dissera, escolhi o
da esquerda. O ar à minha volta tornou-se mais frio e senti que já não
estaria sozinho. Ao longe, para lá da luz da vela, havia pequenas formas
luminosas tênues agitando-se como morcegos, entrando e saindo das
criptas ao longo das paredes dos túneis. Quando me aproximei elas
desapareceram. Não se aproximaram demais, mas tive certeza de que
eram os fantasmas de parte da Gente Pequena. Os fantasmas não me
preocupavam muito; o que não me saía da idéia era o Destruidor.
Cheguei à esquina e, quando virei, seguindo para a esquerda, senti algo
debaixo dos pé e quase tropecei. Pisara algo mole e pegajoso.
Recuei e ergui a vela para poder ver melhor. E o que vi deixou-me os
joelhos a tremer e a vela a dançar na minha mão trêmula. Era um gato
morto. Mas não era o fato de estar morto que me incomodava; era a
forma como morrera.
Descera sem dúvida às catacumbas à procura de ratazanas ou ratos e
encontrara um fim terrível. Estava deitado de bruços, os olhos salientes.
O pobre animal fora tão espalmado que em ponto algum o seu corpo
tinha mais de dois centímetros e meio de espessura. Ficara colado às
pedras mas a sua língua saliente brilhava ainda, por isso não podia estar
morto há muito tempo. Estremeci de horror. Fora «prensando», sim. Se
o Destruidor me encontrasse, seria sem dúvida também esse o meu
destino.
Avancei rapidamente, satisfeito por deixar para trás aquela visão
horrível, e cheguei finalmente à base de umas escadas de pedra que
conduziam a uma porta de madeira.
Se o irmão Peter estivesse certo, aquela era a adega da casa dos padres.
Subi as escadas e usei a chave do Mago. Um instante depois, conseguira
abrir a porta. Uma vez dentro da adega, fechei-a atrás de mim mas não
a tranquei.
A adega era muito grande, com enormes barris de cerveja e filas e filas
de prateleiras cheias de garrafas de vinho, algumas das quais estavam
manifestamente ali há muito tempo — encontravam-se cobertas de teias
de aranha. Reinava um silêncio de morte aqui em baixo, e a menos que
alguém estivesse escondido a observar-me, parecia completamente
deserta. Claro que a vela iluminava apenas a pequena área à minha
volta e para lá dos barris mais próximos a escuridão podia esconder
tudo.
Antes de deixar a casa de Andrew, o irmão Peter dissera-me que os
padres só vinham à adega uma vez por semana buscar o vinho de que
necessitavam, e que a maior parte deles nem sonharia descer às
catacumbas por causa do Destruidor. Mas já não podia assegurar o
mesmo a respeito dos homens do Inquisidor: não eram da região e não
sabiam o suficiente para recearem. E não só; podiam servir-se de
cerveja e provavelmente não se contenta-riam apenas com um barril.
Percorri todo o corredor com cautela, parando mais ou menos a cada dez
passos para escutar. Consegui finalmente avistar a porta que dava para
o corredor e ali, no teto à esquerda, mesmo encostado à parede, estava
um enorme alçapão de madeira. Tínhamos um alçapão idêntico lá em
casa. A nossa fazenda fora em tempos chamada a «Fazenda do
Cervejeiro» porque fornecia cerveja às tabernas e fazendas das
redondezas. Como explicara o ir-mão Peter, este alçapão era usado para
fazer entrar e sair os barris e caixotes da adega sem o incômodo de ter
de atravessar o presbitério. E ele tinha razão ao afirmar que seria a via
mais fácil de fuga. Se a usasse, correria sem dúvida o risco de ser
detectado, mas voltar pelo Portão de Prata significava possivelmente
enfrentar o Destruidor e, depois de ter estado trancado, o Mago não
teria forças suficientes para o enfrentar. E não só, havia que pensar na
maldição do Mago. Quer acreditasse nela quer não, não valia a pena pôr
à prova o destino.
Havia barris grandes de cerveja empilhados mesmo por debaixo do
alçapão. Colocando a vela num e pousando o bordão ao lado, subi para
outro e consegui chegar à fechadura, que fora colocada no alçapão de
modo a poder ser corrida ou aberta de ambos os lados. Era bastante
simples e a chave do Mago voltou a funcionar, mas naquele momento
deixei o alçapão fechado caso alguém pudesse ver lá de cima.
Abri a porta para o corredor com igual facilidade, rodando a chave muito
devagar de modo a não fazer qualquer ruído. Fez-me compreender que
era uma sorte o Mago ter um irmão serralheiro.
A seguir, abri a porta e avancei por um comprido corredor lajeado.
Estava deserto, mas cerca de vinte passos à frente, do lado direito, pude
ver um archote a tremular num suporte de parede por cima de uma
porta fechada. Só podia ser a casa dos guardas de que o irmão Peter me
avisara. Mais adiante no corredor havia uma segunda porta, e para lá
dela umas escadas de pedra que deviam conduzir às divisões por cima.
Avancei devagar pelo corredor em direção à primeira porta, quase nas
pontas dos pés e mantendo-me nas sombras. Uma vez perto da sala dos
guardas, ouvi sons vindos lá de dentro. Alguém tossiu, alguém soltou
uma gargalhada e houve o murmúrio de vozes.
De repente, o meu coração disparou. Ouvira uma voz cava muito
próximo da porta e antes que me conseguisse esconder, a porta foi
escancarada com alguma força. Quase me atingiu, mas recuei para trás
dela e comprimi-me contra as pedras rugosas da parede. Saíram botas
pesadas para o corredor.
— Tenho de voltar ao meu trabalho — disse uma voz que reconheci. Era
o Inquisidor e falava com alguém que estava junto de pé à entrada!
— Mandem alguém buscar o irmão Peter — continuou —, e tragam-no
quando eu tiver terminado com o outro. O padre Cairns pode ter-nos
deixado escapar um prisioneiro, mas ele sabia de quem era a culpa, isso
posso afirmar. E pelo menos sempre teve o bom senso de me relatar o
sucedido. Prendam bem as mãos do nosso bom irmão atrás das costas, e
não sejam meigos. Façam com que a corda se lhe crave na carne para
que ele saiba exatamente o que o espera! Serão mais do que umas
palavras duras, podem ter certeza disso. Os ferros em brasa soltar-lhe-
ão a língua!
Como resposta ouviram-se as gargalhadas cruéis e ruidosas dos
guardas. Depois a comprida capa negra do Inquisidor ondulou atrás dele
na corrente de ar quando fechou a porta e se encaminhou rapidamente
para as escadas ao fundo do corredor.
Se tivesse se virado teria me visto logo! Por um momento pensei que
fosse parar à porta da cela dos prisioneiros, mas para meu alívio
continuou a subir as escadas e desapareceu de vista.
Pobre irmão Peter. Ia ser interrogado e não havia forma de o poder
avisar. E eu fora o prisioneiro a quem o Inquisidor se referira. Iam
torturá-lo porque me deixara sair em liberdade! E não apenas isso, o
padre Cairns falara de mim ao Inquisidor. Agora que tinha o Mago, o
Inquisidor viria também à minha procura. Tinha de salvar o meu mestre
antes que fosse tarde de mais para nós os dois.
Estive quase para cometer um grande erro e voltar pelo corredor na
direção da cela; no entanto, percebi mesmo a tempo de que a ordem do
Inquisidor seria executada imediatamente. De fato, a porta da sala dos
guardas voltou a abrir-se e saíram dois homens brandindo cacetes que
avançaram em passos largos para as escadas.
Quando a porta se voltou a fechar do lado de dentro, fiquei
completamente exposto, mas a sorte continuava a meu favor e os
guardas não se viraram. Depois de terem subido as escadas e
desaparecido de vista, esperei alguns instantes até o eco das suas botas
desaparecer ao longe e o meu coração deixar de bater tão fortemente.
Foi então que ouvi outras vozes vindas da cela lá adiante. Uma chorava,
outra entoava uma prece. Precipitei-me para o som e cheguei a uma
porta de metal pesada, o seu terço superior formado por barras de metal
verticais.
Levantei a vela aproximando-a das grades e espreitei lá para dentro. À
luz trêmula, a cela parecia muito ruim e cheirava ainda pior. Estavam
cerca de vinte pessoas apinhadas naquele espaço pequeno. Algumas
encontravam-se deitadas no chão e pareciam dormir. Outras estavam
sentadas com as costas apoiadas na parede. Havia uma mulher de pé
junto à porta e fora a sua voz que eu ouvira. Presumira que estivesse a
rezar mas entoava uma algaraviada incompreensível e revirava os olhos
como se aquilo por que passara a tivesse levado à loucura.
Não conseguia ver o Mago e também não conseguia ver Alice, porém
isso não queria dizer que não estivessem lá dentro. Estes eram
prisioneiros, sim. Os prisioneiros do Inquisidor, prontos para a fogueira.
Sem perder tempo, pousei o bordão, corri a fechadura da porta e abri-a
lentamente. Queria entrar para procurar o Mago e Alice, mas antes
mesmo de a porta estar completamente aberta, a mulher que estivera a
entoar avançou e barrou-me o caminho.
Gritou algo, atirando-me as palavras na cara. Não consegui entender o
que ela dizia, mas foi tão ruidoso que olhei para trás na direção da sala
dos guardas. Numa questão de segundos, havia outros por detrás dela,
empurrando-a para a frente e para o corredor. Estava uma menina à sua
esquerda, pouco mais velha do que Alice.
Tinha grandes olhos castanhos e um rosto bondoso, de modo que recorri
a ela.
— Estou à procura de alguém — disse-lhe, a minha voz pouco mais do
que um murmúrio.
Antes que pudesse dizer algo mais, ela abriu bastante os lábios como se
fosse falar, revelando duas filas de dentes, alguns partidos, outros
pretos com cáries. Em vez de palavras, saíram gargalhadas ruidosas da
garganta dela e provocou de imediato um tumulto nos outros que a
rodeavam. Estas pessoas tinham sido torturadas e passado dias ou até
semanas sob a ameaça de morte. Era escusado apelar à razão ou pedir
calma. Estenderam-se dedos para mim, e um homem grande e magro
com membros compridos e olhos esgazeados agarrou-me a mão
esquerda com força e começou a sacudi-la para cima e para baixo de
gratidão.
— Obrigado! Obrigado! — exclamou, e apertou ainda com mais força,
chegando eu a pensar que me esmagaria os ossos.
Consegui libertar a mão, peguei no bordão e recuei alguns passos. Não
tardaria, os guardas ouviriam a agitação e sairiam para o corredor a fim
de investigarem. E se o Mago e Alice não estivessem naquela cela? E se
se encontrassem presos noutro lugar?
Agora era tarde de mais porque, empurrado rudemente por trás, eu
passara já pela sala dos guardas, e mais alguns segundos levaram-me
até à porta da adega. Olhei para trás e vi uma fila de pessoas a seguir-
me. Pelo menos ninguém gritava agora, mas não deixava de haver
barulho a mais para o meu gosto. Só esperava que os guardas tivessem
bebido bastante. Provavelmente estavam acostumados ao barulho dos
prisioneiros; não contariam com uma fuga.
Uma vez dentro da adega, subi para um barril e equilibrei-me ali,
enquanto empurrava rapidamente o alça-pão para cima. Vislumbrei
através da porta aberta um contraforte de pedra da parede exterior da
catedral e recebi no rosto um afluxo de ar frio e umidade. Chovia
intensamente.
Outras pessoas tinham subido para os barris. O
homem que me agradecera acotovelou-me rudemente de lado e
começou a içar-se pelo alçapão. Instantes depois estava lá fora,
estendendo uma mão para mim, oferecendo-se para me içar.
— Vamos! — disse com voz sibilante.
Hesitei. Queria ver se o Mago e Alice tinham saído da cela. Depois era
tarde de mais, porque uma mulher subira para o barril a meu lado e
estendia os braços para o homem que, sem um momento de hesitação,
lhe agarrou os pulsos e a puxou pelo alçapão aberto.
Depois disso perdera a minha oportunidade. Havia outros, alguns quase
lutando entre si no desespero de saírem. Nem todos eram assim, porém.
Outro homem virou um barril de lado e rolou-o até o encostar ao
primeiro que estava ao alto para formar um degrau que facilitasse a
subida. Ajudou uma velhota a subir e segurou-lhe as pernas enquanto o
homem lá em cima a agarrava pelos pulsos e puxava lentamente para
cima.
Os prisioneiros estavam a sair pelo alçapão, mas outros passavam ainda
pela porta para a adega e não parei de olhar na direção deles, na
esperança de que um pudesse ser o Mago ou Alice.
De repente ocorreu-me algo. E se um deles estivesse demasiado doente
ou fraco para se mover e não conseguisse abandonar a cela?
Não tinha alternativa. Tinha de voltar atrás e ver.
Saltei do barril, mas era tarde de mais: um grito, depois vozes iradas.
Atroaram botas pelo corredor. Um guarda grande e entroncado entrou
na adega brandindo um bastão. Olhou à sua volta e, com um berro de
raiva, veio direto a mim.
CAPÍTULO 10
CUSPE DE UMA GAROTA
Sem um segundo de hesitação, agarrei no bordão e apaguei a vela,
mergulhando a adega na escuridão, e desloquei-me rapidamente na
direção da porta que conduzia às catacumbas.
Havia uma tremenda agitação lá atrás: gritos, berros e os sons de uma
luta. Olhando para trás, vi outro dos guardas levar um archote para a
adega, de modo que me enfiei atrás das prateleiras do vinho, mantendo-
as entre mim e a luz enquanto me dirigia para a porta na parede do
fundo. Senti-me péssimo por deixar para trás o Mago e Alice. Ter
chegado até aqui e não conseguir salvá-los fez-me sentir um miserável.
Só esperava que, de certa forma, na confusão, eles tivessem logrado
fugir. Ambos conseguiam ver bem no escuro e se eu conseguira
encontrar a porta para as catacumbas, eles também haveriam de
conseguir. Senti alguns dos prisioneiros passar por mim, afastando-se
dos guardas e enfiando-se nos recantos escuros da adega. Alguns
pareciam estar à minha frente.
Talvez o meu mestre e Alice se encontrassem entre eles, mas não podia
arriscar chamá-los e alertar os guardas. Ao avançar cuidadosamente por
entre as prateleiras de vinho, pareceu-me ver lá à frente a porta para as
catacumbas abrir-se e fechar-se rapidamente, mas estava escuro demais
para ter certeza.
Alguns momentos depois transpusera a porta. No instante em que a
fechei atrás de mim, fiquei mergulhado numa escuridão tão intensa que,
por uns segundos, não consegui ver um palmo à frente do nariz. Fiquei
ali no topo dos degraus, esperando desesperadamente que os meus
olhos se adaptassem.
Assim que consegui distinguir os degraus, desci cuidadosamente e
avancei pelo túnel o mais rapidamente que pude, consciente de que
alguém acabaria por ir verificar a porta: não a trancara para o caso de
Alice ou o Mago estarem lá atrás.
Normalmente, consigo ver no escuro mas naquelas catacumbas parecia
estar cada vez mais escuro por isso parei e retirei a caixa de mechas do
bolso do meu casaco.
Ajoelhei e tirei uma pequena quantidade de mechas para as pedras.
Rapidamente, servi-me da pedra e do metal para criar uma faísca e
alguns segundos depois consegui acender a minha vela.
Com a luz da vela a guiar-me, pude continuar a avançar mais mas o ar à
minha volta tornava-se mais frio a cada passo e não muito longe lá
adiante consegui ver as sinistras tremulações na parede. Mais uma vez,
moviam-se formas luminosas brancas dentro e fora das sombras, no
entanto, havia agora muito mais do que da última vez. Os mortos
estavam a reunir-se. A minha anterior passagem pelos túneis
incomodara-os.
Parei. O que era aquilo? Em algum lugar ao longe ouvira o uivo de um
cão. Fiquei estarrecido, o meu coração em sobressalto. Era um cão de
verdade ou poderia tratar-se do Destruidor? Andrew mencionara um cão
preto enorme com dentes ferozes. Um cão enorme que, na realidade,
era o Destruidor. Procurei convencer-me de que aquilo que eu estava a
ouvir era um cão de verdade, um cão que não se sabe como dera com o
caminho para as catacumbas. Afinal, se um gato o fizera, por que não
um cão?
Ouviu-se novamente o uivo, e ficou a pairar no ar durante bastante
tempo, ecoando e repercutindo-se pelos compridos túneis. Estava à
minha frente ou atrás? Neste túnel ou noutro? Era impossível dizer. Mas,
com o Inquisidor e os seus homens atrás de mim, não tinha outra
alternativa senão avançar para o portão.
Caminhei então rapidamente, tremendo de frio, desviando-me do gato
prensado, até chegar ao ponto onde os túneis bifurcados se uniam.
Contornei finalmente uma esquina e vi o Portão de Prata. Ali estaquei, os
meus joelhos começando a tremer, a minha mente receando prosseguir.
Porque lá à frente, na escuridão para lá da chama da vela, estava
alguém à minha espera. Havia uma figura umbrosa sentada no chão
próximo do portão. Poderia tratar-se de um prisioneiro que fugira?
Alguém que passara pela porta antes de mim?
Não podia voltar para trás, de maneira que dei alguns passos na direção
do portão e levantei mais a vela.
Virou-se para mim um rosto barbudo.
— Por que demorou? — perguntou uma voz que reconheci. — Já estou à
espera há cinco minutos!
Era o Mago, vivo e de saúde! Precipitei-me, muito aliviado por ele ter
conseguido fugir. Tinha uma equimose feia por cima do olho esquerdo e
a boca estava inchada.
Tinham-no espancado, pelo visto.
— O senhor está bem? — perguntei, ansioso.
— Sim, rapaz. Dê-me mais alguns instantes para recuperar o fôlego e
ficarei ótimo. Abra aquele portão e em breve iremos a caminho.
— Alice estava com você? — inquiri. — Estavam na mesma cela?
— Não, rapaz. O melhor que tem a fazer é esquecê-la. Ela não presta.
Só traz problemas e não há nada que possamos fazer para ajudá-la
neste momento. — A voz dele pareceu cruel e dura. — Ela merece o que
a espera.
— Morrer queimada? — perguntei. — O senhor nunca foi a favor de
queimar uma bruxa, quanto mais uma moça jovem, e chegou a dizer a
Andrew que ela era inocente.
Fiquei chocado. Ele nunca confiara em Alice mas custava-me ouvido falar
daquela maneira, especialmente quando ele próprio enfrentara
semelhante destino terrível.
E então Meg? Nem sempre fora tão frio e insensível. .
— O que te deu, rapaz, está a sonhar ou acordado?
— quis saber o Mago, a sua voz cheia de contrariedade e impaciência. —
Vamos, acorde! Pegue a chave e abra aquele portão.
Como eu hesitasse, ele estendeu as mãos para mim.
— Dê-me o meu bordão, rapaz. Estive tempo demais na cela úmida e
esta noite tenho os ossos doloridos...
Estendi o braço para lhe entregar, mas quando os dedos dele
começaram a envolvê-lo, recuei subitamente, aterrorizado.
Não fora apenas o choque do seu hálito quente e malcheiroso a queimar-
me o rosto. É que ele estendera-me a mão direita! A mão direita, não a
esquerda!
Não era o Mago! Este não era o meu mestre!
Enquanto observava, pregado ao chão, a mão dele desceu para o lado
do corpo, como uma cobra, começando a contorcer-se na minha direção
sobre as pedras. Antes que conseguisse me mexer, o braço dele descaíra
e esticara para o dobro do seu comprimento normal e a mão fechara-se
em volta do meu tornozelo, agarrando-o num aperto firme e doloroso. A
minha reação imediata foi tentar retirá-lo daquele aperto medonho, mas
sabia que não era possível. Mantive-me absolutamente imóvel.
Procurei concentrar-me. Agarrei o bordão e tentei vencer o medo,
lembrando-me de respirar. Estava apavorado, mas, apesar de o meu
corpo não se mexer, a minha mente fazia-o. Só havia uma explicação e
levava-me a estremecer de terror: encontrava-me perante o Destruidor!
Fazendo um esforço para me concentrar, analisei cuidadosamente aquela
coisa, procurando avidamente algo que me pudesse ajudar nem que
fosse só um bocadinho.
Parecia tal e qual o Mago, e a voz era também a dele. Era impossível
dizer a diferença, à exceção da mão a serpente-ar.
Depois de observar durante alguns segundos, senti-me um pouco
melhor. Era um truque que o Mago me ensinara: quando frente a frente
com os nossos maiores receios deveríamos concentrar-nos intensamente
e pôr de lado os nossos sentimentos.
«Funciona sempre, rapaz!», dissera-me ele uma vez.
«O escuro alimenta-se do medo, e com uma mente calma e a barriga
vazia tem meia batalha ganha antes mesmo de começar.»
E estava a funcionar. O meu corpo parara de tremer e sentia-me mais
calmo, mais relaxado.
O Destruidor libertou o meu tornozelo e a mão voltou a deslizar para
junto do corpo. A criatura levantou-se e deu um passo na minha direção.
Quando o fez, ouvi um ruído curioso: não o som de botas de que estava
à espera, mais como o raspar de garras enormes nas pedras. O
movimento do Destruidor agitou o ar, pelo que a chama da vela
tremulou, distorcendo a sombra que o Mago projetava no Portão de
Prata.
Rapidamente, ajoelhei e coloquei a vela e o bordão no chão entre nós.
Um instante depois, levantara-me, as minhas mãos em cada um dos
bolsos das calças, agarrando um punhado de sal e outro de ferro.
— Está perdendo o seu tempo — disse o Destruidor, a sua voz
subitamente nada parecida com a do Mago. Áspera e cava, ecoava pelas
próprias rochas das catacumbas, vibrando pelas minhas botas e
deixando-me os dentes sensíveis. — Truques velhos como esse não me
apanharão. Já aqui ando há tempo demais para ser afetado por isso!
O s eu mestre, Ossos Velhos, tentou-o uma vez mas não lhe serviu de
nada. De nada mesmo.
Hesitei, mas apenas por um momento. Podia estar simplesmente a
mentir — valia a pena tentar. Mas depois, no meio das limalhas de ferro,
a minha mão esquerda fechou-se sobre algo duro. Era a pequena chave
do Portão de Prata. Não podia arriscar-me a perdê-la.
— Ahhh. . tem aquilo de que preciso, ora se tem — disse o Destruidor
com um sorriso manhoso.
Lera-me o pensamento? Ou talvez tivesse lido apenas a expressão no
meu rosto, ou possivelmente adivinhado? Fosse como fosse, sabia
demais.
— Olhe — referiu, com uma expressão astuta na cara —, se Ossos
Velhos não foi capaz de me apanhar, então, que hipóteses tem você?
Nenhuma mesmo! Hão de vir aqui embaixo, e andar à sua procura, não
tarda. Não ouve os guardas agora? Arderá, sim! Arderá com os
restantes! Não há saída daqui a não ser por este portão. Nenhuma saída
mesmo, sabe? Portanto, use a chave antes que seja tarde demais!
O Destruidor afastou-se para o lado, pelo que ficou de costas para a
parede do túnel. Eu sabia exatamente o que ele pretendia: seguir-me
pelo portão, ficar livre, poder fazer das suas em qualquer parte do
Condado. Sabia o que diria o Mago; o que esperava de mim. Eu tinha o
dever de me certificar de que o Destruidor permanecia aprisionado nas
catacumbas. Isso era mais importante do que a minha própria vida.
— Não seja tolo! — silvou o Destruidor, a sua voz outra vez muito mais
alta e áspera do que alguma vez ouvira a do Mago. — Ouça-me e será
livre. E recompensado também. Uma grande recompensa. A mesma que
ofereci a Ossos Velhos há muitos anos, mas ele não me quis dar ouvidos.
E onde é que isso o levou, hein? Diga-me! Amanhã será julgado e
considerado culpado. Depois de amanhã morrerá na fogueira.
— Não — argumentei. — Não posso fazê-lo.
Ante aquelas palavras, o rosto do Destruidor encheu-se de raiva. Fazia
ainda lembrar o Mago, mas as feições que eu conhecia tão bem estavam
distorcidas e carregadas de maldade. Deu outro passo na minha direção,
erguendo um punho. Podia tratar-se apenas de uma ilusão criada pela
luz da vela, mas a criatura parecia estar a crescer. E senti um peso
invisível começar a pressionar-me a cabeça e os ombros. Quando fui
obrigado a ajoelhar-me, pensei no gato esborrachado nas pedras e
percebi que me esperava idêntico destino. Procurei inspirar mas não
consegui e entrei em pânico. Não era capaz de respirar! Era isso!
A luz da vela perdeu-se na súbita escuridão que me cobriu os olhos.
Tentei desesperadamente falar, pedir misericórdia, mas sabia que não
havia misericórdia a menos que eu abrisse o Portão de Prata. Onde é
que eu tinha a cabeça? Como fora tolo ao acreditar que, com alguns
meses de preparação conseguiria repelir uma criatura tão malévola e
poderosa quanto o Destruidor! Estava a morrer
— tinha certeza disso. Sozinho nas catacumbas. E, o pior de tudo, era
que falhara redondamente. Não conseguira salvar o meu mestre nem
Alice.
Depois ouvi algo ao longe: o som de um sapato a raspar nas pedras.
Dizem que, quando morremos, o último sentido que perdemos é o
ouvido. E por um momento pareceu-me que o raspar de um sapato era a
última experiência que levaria desta vida. Mas, nessa altura, o peso
invisível a esmagar o meu corpo foi retrocedendo lentamente. A minha
visão ficou mais clara e, de repente, pude voltar a respirar. Vi o
Destruidor virar a cabeça e olhar para trás na direção da curva do túnel.
O Destruidor também ouvira!
Outra vez o som. Desta vez não havia dúvida. Passos! Vinha aí alguém!
Olhei para trás na direção do Destruidor e vi que estava a mudar. Não o
imaginara possível. Estava mesmo a crescer. Mas agora, a sua cabeça
chegava quase ao teto do túnel, o corpo curvando-se para a frente, o
rosto a mudar até deixar de ser o do Mago. O queixo alongava-se,
saindo para fora e para cima e formando o princípio de um gancho, e o
focinho curvava para baixo ao encontro dele. Estaria a mudar para a sua
verdadeira forma — a da gárgula de pedra por cima da porta principal da
catedral? Recuperara a força plena?
Escutei os passos que se aproximavam. Devia ter apagado a vela, mas
isso apenas me deixaria no escuro com o Destruidor. Pelo menos parecia
vir aí apenas uma pessoa e não um bando de homens do Inquisidor. Não
me importava quem era. De momento salvara-me.
Vi primeiro os pés, quando alguém contornou a esquina e surgiu
iluminado pela luz da vela. Sapatos bicudos, depois uma menina magra
com um vestido preto e o menear de quadril quando ela virou a esquina.
Era Alice!
Parou, olhou para mim rapidamente, e arregalou os olhos. Quando viu o
Destruidor, o seu rosto ficou furioso em vez de receoso.
Olhei para trás e, por um momento, os olhos do Destruidor cruzaram-se
com os meus. Para além da raiva a chispar neles, pude ver algo mais,
mas antes que conseguisse perceber, Alice correu na direção do
Destruidor, bufando como um gato. Depois, para meu espanto, cuspiu-
lhe no focinho.
O que sucedeu seguidamente foi rápido demais pa-ra se ver. Levantou-
se um vento súbito e o Destruidor desapareceu.
Ficamos imóveis durante o que pareceu muito tempo. Depois Alice virou-
se para mim.
— Ele não gostou muito do cuspe de uma garota, não é? — comentou
com um tênue sorriso. — Ainda bem que cheguei nesta altura.
Não respondi. Não podia acreditar que o Destruidor tivesse fugido tão
facilmente, mas eu estava já de joelhos, a tentar enfiar a chave na
fechadura do Portão de Prata. As minhas mãos tremiam, e estava a ser
tão difícil quanto parecera quando Andrew o fizera.
Lá consegui introduzir a chave na posição certa e ela rodou. Abri o
portão, peguei na chave e no bordão e atravessei a gatinhar.
— Traga a vela! — gritei a Alice, e mal ela ficou em segurança, introduzi
a chave do outro lado da fechadura e esforcei-me por rodá-la. Desta vez
pareceu levar uma eternidade; esperava que o Destruidor voltasse a
qualquer momento.
— Não consegue ser um pouco mais rápido? —
perguntou Alice.
— Não é tão fácil quanto parece — respondi-lhe.
Por fim, consegui fechá-lo e soltei um suspiro de alívio. Depois lembrei-
me do Mago. .
— Mr. Gregory estava com você na cela? — inquiri.
Alice abanou a cabeça. — Não quando nos libertou. Eles tinham-no
levado para interrogá-lo cerca de uma hora antes de aparecer.
Tivera sorte ao conseguir evitar a captura. Sorte ao conseguir tirar os
prisioneiros da cela. Mas a sorte tem uma forma de se equilibrar a si
mesma. Chegara somente uma hora depois. Alice estava livre, mas o
Mago continuava preso e, a menos que conseguisse fazer algo a esse
respeito, ele ia ser queimado.
Sem perder mais tempo, conduzi Alice pelo túnel até chegarmos ao rio
de curso rápido. Atravessei depressa, contudo quando me virei para trás,
Alice continuava na outra margem, a olhar para a água.
— É fundo, Tom — exclamou. — É fundo demais e as pedras são
escorregadias!
Atravessei até onde ela ficara. Depois, agarrando-lhe a mão, conduzi-a
pelas nove pedras lisas. Não tardamos a chegar ao alçapão aberto que
dava acesso à casa vazia e, uma vez dentro da cave, fechei o alçapão
atrás de nós. Para meu desalento, Andrew fora-se embora. Precisava
falar com ele: dizer-lhe que o Mago não estava na cela; avisá-lo de que
o irmão Peter corria perigo e que os rumores eram realmente verdade —
a força do Destruidor voltara!
— Era melhor ficarmos aqui um pouco. O Inquisidor irá começar a
procurar na cidade mal se perceber de que fugiu. Esta casa está
assombrada — o último lugar onde alguém irá querer procurar é aqui em
baixo na cave.
Alice anuiu e, pela primeira vez desde a Primavera, consegui olhá-la
como deve ser. Estava da minha altura, o que significava que crescera
pelo menos também dois centímetros e meio, mas estava ainda vestida
tal e qual da última vez que a vira quando a fora levar a casa da tia dela
em Staumin. Se não era o mesmo vestido preto, era um gêmeo dele.
O seu rosto estava bonito como sempre, só que mais magro, e mais
velho, como se tivesse assistido a coisas que o tinham obrigado a
crescer rapidamente; coisas a que ninguém deveria ter de assistir. O seu
cabelo preto estava opaco e imundo e havia manchas de sujeira no rosto
dela. Alice parecia não se lavar há pelo menos um mês.
— É bom voltar a te ver — disse-lhe. — Quando te vi na carroça do
Inquisidor, julguei que fosse o fim.
Ela não respondeu. Agarrou apenas a minha mão e apertou-a.
— Estou meio esfomeada, Tom. Não tem nada que se coma, não é?
Abanei a cabeça.
— Nem sequer um pedaço daquele queijo velho e bolorento?
— Lamento — disse-lhe. — Não me resta nenhum.
Alice virou-se e agarrou uma ponta do velho carpete que estava em cima
de um monte.
— Ajude-me, Tom — pediu. — Preciso me sentar e não gosto muito das
pedras frias.
Pousei a vela e o bordão e juntos estendemos o carpete nas lajes. O
cheiro de mofo era mais forte do que nunca e vi as baratas e os bichos-
de-conta que tínhamos destapado fugirem correndo pelo chão da cave.
Nada preocupada, Alice sentou-se no carpete e encolheu os joelhos para
que pudesse apoiar o queixo.
— Um dia vou me vingar — disse. — Ninguém merece ser tratado
daquela maneira.
Sentei-me ao lado dela e coloquei a minha mão na sua. — O que
aconteceu? — inquiri.
Ela permaneceu em silêncio durante um tempo e, precisamente quando
decidira que ela não me ia responder, de repente falou.
— Assim que me conheceu, a minha velha tia foi boa para mim.
Obrigava-me a trabalhar, se obrigava, mas sempre me alimentou bem.
Estava a acostumar-me a viver ali em Staumin quando veio o Inquisidor.
Apanhou-nos de surpresa e arrombou a porta. Mas a minha tia não era
Lizzie dos Ossos. Ela não era nenhuma bruxa.
— Atiraram-na no lago à meia-noite enquanto uma enorme multidão
assistia, todos rindo às gargalhadas e a escarnecer. Estava
verdadeiramente assustada, sim, à espera de que a seguir fosse a minha
vez. Amarraram-lhe os pés às mãos e atiraram-na lá para dentro. Foi ao
fundo como uma pedra, coitadinha. Mas estava escuro, fazia muito vento
e veio uma grande rajada no momento em que ela bateu na água;
apagou uma quantidade de archotes. Demoraram muito tempo a
encontrá-la e tirá-la para fora.
Alice enterrou o rosto nas mãos e soltou um soluço. Aguardei em silêncio
até que ela pudesse continuar.
Quando descobriu o rosto, tinha os olhos secos mas os lábios tremiam-
lhe.
— Quando a conseguiram tirar, estava morta. Não é justo, Tom. Ela não
boiou, afundou-se, por isso devia estar inocente, mas eles mataram-na
mesmo assim! Depois disso meteram-me na carroça com os restantes.
— A minha mãe contou-me que atirar uma bruxa na água não é
conclusivo — referi. — Só os tolos recorrem a esse método.
— Não, Tom, o Inquisidor não é nenhum tolo.
Existe um motivo para tudo o que ele faz, disso pode ter certeza. É
ganancioso. Ganancioso por dinheiro. Ele vendeu a cabana da minha tia
e guardou o dinheiro. Nós vimo-lo a contá-lo. É o que ele faz. Chama de
bruxas as pessoas, afasta-as do caminho e fica-lhes com as casas, a
terra e o dinheiro. E mais, gosta do seu trabalho. Há escuridão nele. Ele
diz que o faz para livrar o Condado das bruxas, mas é mais cruel do que
qualquer bruxa que eu tenha conhecido — e não fica por aí.
— Havia uma garota chamada Maggie. Não era muito mais velha do que
eu. Não a atirou à água. Fez um teste diferente e tivemos todos de
assistir. O Inquisidor usou um comprido alfinete afiado. Foi-lhe
espetando sucessivamente o corpo. Devia tê-la ouvido gritar. A pobre
garota quase enlouqueceu de dor. Desmaiava constantemente e eles
tinham um balde de água ao lado da mesa para fazê-la recobrar os
sentidos. Mas no fim encontraram aquilo que procuravam. A marca do
Diabo! Sabe o que é, Tom? Anuí. O Mago contara-me que era uma das
coisas que os caçadores de bruxas usavam. Mas, segundo ele, não
passava de outra mentira. As marcas do Diabo não existiam. Quem
possuísse verdadeiros conhecimentos do escuro sabia-o.
— É cruel e muito injusto — continuou Alice. —
Ao fim de um tempo, a dor torna-se excessiva e o corpo fica
entorpecido, e quando a agulha entra deixamos de senti-la. Dizem então
que é o lugar onde o Diabo nos tocou, por isso somos culpadas e temos
de ser queimadas.
O pior de tudo foi a expressão no rosto do Inquisidor.
Estava todo triunfante. Irei de me vingar. Irei fazê-lo pagar por isso.
Maggie não merecia ser queimada na fogueira.
— O Mago também não merece ser queimado! —
respondi com azedume. — Toda a vida trabalhou arduamente para
combater o escuro.
— Ele é homem e a sua morte será mais fácil do que a de alguns —
referiu Alice. — O Inquisidor é muito pior com as mulheres. Diz que é
mais difícil salvar a alma de uma mulher do que a de um homem. Que
elas precisam de muita dor para se arrependerem dos seus pecados.
Recordei então o que o Mago dissera a respeito de o Destruidor não
tolerar as mulheres. O fato de o deixarem nervoso.
— A criatura em que cuspiu era o Destruidor —
contei-lhe. — Já ouviu falar dele? Como conseguiu assustá-lo tão
facilmente?
Alice encolheu os ombros. — Não é muito difícil perceber quando algo
não se sente confortável na nossa presença. Alguns homens são assim
— eu sei sempre quando não sou bem-vinda. Tenho essa sensação perto
do Velho Gregory, e aconteceu o mesmo lá em baixo. E o cuspe repele a
maior parte das coisas. Se cuspir três vezes num sapo, nada de pele fria
e viscosa te incomodará durante um mês ou mais. Lizzie costumava
jurar por ele.
Não creio, porém, que funcione dessa maneira com o Destruidor. Sim, já
ouvi falar dessa criatura. E se é capaz de mudar de forma agora, então é
que estamos todos metidos num grande problemas. Apanhei-o de
surpresa, é tudo. Mas da próxima vez ele estará precavido, por isso não
volto a ir lá abaixo.
Durante um tempo, nenhum de nós falou. Limitei-me a olhar para o
velho carpete bolorento, até ouvir de repente a respiração de Alice
tornar-se mais profunda.
Quando olhei para trás, os seus olhos estavam fechados e adormecera
na mesma posição, com o queixo apoiado nos joelhos.
Eu não queria realmente apagar a vela, mas não sabia quanto tempo
teríamos de ficar ali em baixo na cave e era melhor poupar alguma luz
para mais tarde.
Assim que a apaguei, tentei adormecer mas tive dificuldade. Para
começar, sentia frio e tremia constantemente. Depois, não conseguia
tirar o Mago do pensamento. Não tínhamos podido salvá-lo, e o
Inquisidor iria ficar realmente furioso com o que sucedera. Não tardaria
muito à começar a queimar as pessoas.
Por fim, devo ter cochilado porque fui acordado de repente pelo som da
voz de Alice muito perto do meu ouvido esquerdo.
— Tom — disse ela, a sua voz pouco mais do que um murmúrio —, está
existe algo além no canto da cave conosco. Está a olhar fixamente para
mim e isso não me agrada.
Alice tinha razão. Sentia algo no canto e notei frio.
Os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se. Provavelmente seria
apenas e de novo Matty Barnes, o estrangulador.
— Não se preocupe, Alice. — É apenas um fantasma. Procure esquecê-
lo. Desde que não tenha medo, ele não te pode fazer mal.
— Eu não tenho medo. Pelo menos não agora. —
Fez uma pausa, depois disse: — Mas senti medo naquela cela. Não
preguei o olho com todos aqueles gritos e berros. Não tardarei a voltar a
adormecer. Só quero que se vá embora. Não está certo, a olhar-me
daquela maneira.
— Não sei o que irei fazer agora — afirmei, pensando de novo no Mago.
Alice não respondeu e a sua respiração tornou-se outra vez mais
profunda. Adormecera. E eu devo ter também voltado a adormecer
porque um ruído me acordou de repente.
Era o som de botas pesadas. Alguém estava por cima de nós, na
cozinha.
CAPÍTULO 11
O JULGAMENTO DO MAGO
A porta abriu-se chiando e a luz de uma vela encheu a divisão. Para meu
alívio era Andrew.
— Calculei que viesse a te encontrar aqui em baixo
— disse ele. Trazia um pequeno embrulho. Quando o pousou e colocou a
vela ao lado da minha, apontou com a cabeça na direção de Alice, que
continuava a dormir profundamente mas estava agora deitada de lado,
de costas para nós, o rosto apoiado nas mãos.
— Afinal quem é esta? — indagou.
— Costumava viver perto de Chipenden — contei-lhe. — Chama-se Alice.
Mr. Gregory não estava lá.
Tinham-no levado para cima para interrogá-lo.
Andrew abanou a cabeça, pesaroso. — O irmão Peter disse o mesmo.
Não podia ter tido mais azar. Mais meia hora e John estaria de volta à
cela com os outros.
Acontece que fugiram onze, mas cinco foram apanhados pouco depois.
Infelizmente as más notícias não ficam por aqui. Os homens do
Inquisidor prenderam o irmão Peter na rua pouco depois de ele ter saído
da minha oficina. Vi da janela de cima. Estou arrumado nesta cidade.
Provavelmente a seguir virão buscar-me a mim, mas eu não vou ficar
por aqui para responder seja a que perguntas for. Já fechei a oficina. As
minhas ferramentas estão na carroça e vou seguir rumo ao sul, para
regressar a Adlington, onde costumava trabalhar.
— Lamento, Andrew.
— Não lamente. Quem não tentaria ajudar o próprio irmão? Além disso,
não é tão mau assim para mim.
As instalações da oficina eram apenas alugadas e tenho o ofício nas
pontas dos dedos. Tome — disse, abrindo o embrulho. — Trouxe-te
alguma comida.
— Que horas são? — perguntei.
— Faltam cerca de duas horas para a alvorada. Arrisquei-me vindo aqui.
Depois deste tumulto todo, metade da cidade está acordada. Foi muita
gente para o salão grande em Fishergate. Depois do que aconteceu a
noite passada, o Inquisidor vai realizar um julgamento sumário para
todos os presos que ainda lhe restam.
— Por que não espera até ser de dia? — inquiri.
— Nessa altura estariam ainda mais pessoas presentes — respondeu
Andrew. — Ele quer despachar tudo antes que haja qualquer oposição
significativa. Alguns dos habitantes da cidade opõem-se ao que ele está
a fazer.
Quanto às fogueiras, terão lugar esta noite depois de escurecer, na
colina do farol em Wortham, a sul do rio. O Inquisidor terá muitos
homens armados para o caso de haver problemas, por isso, se tiver
algum juízo, ficará aqui até anoitecer e depois seguir a estrada.
Antes mesmo que ele tivesse tempo de abrir o embrulho, Alice virou-se
para nós e sentou-se. Talvez lhe tivesse cheirado a comida ou estivera a
escutar durante aquele tempo todo, fingindo dormir. Havia fatias de
presunto, pão fresco e dois tomates grandes. Sem uma palavra de
agradecimento a Andrew, Alice atacou logo, e após um momento de
hesitação, fiz-lhe companhia. Estava realmente cheio de fome e não
parecia fazer muito sentido jejuar neste momento.
— Sendo assim, vou andando — anunciou Andrew. — Pobre John, mas
não há nada que possamos fazer agora.
— Não valeria a pena uma última tentativa para salvá-lo? — perguntei.
— Não, fez o suficiente. É perigoso demais aproximar-se do local do
julgamento. E em breve o pobre John estará com os restantes, escoltado
por guardas armados e a caminho de Wortham para ser queimado vivo
com todos aqueles outros pobres desgraçados.
— E então a maldição? — perguntei. — O senhor mesmo disse que ele
fora condenado por uma maldição a morrer sozinho debaixo de terra,
não aqui em cima num farol.
— Oh, a maldição. Não acredito nisso, tal como John também não. Eu só
estava desesperadamente a tentar impedi-lo de ir atrás do Destruidor
com o Inquisidor na cidade. Não, receio que o destino do meu irmão
esteja traçado, por isso vá embora. Uma vez John me disse que há um
mago a operar em algum lugar próximo de Caster.
Percorre as fronteiras do Condado até ao Norte. Mencione o nome de
John e talvez ele te aceite. Foi em tempos um dos aprendizes de John.
Baixando-me a cabeça, Andrew virou-se para partir.
— Vou lhe deixar a vela — referiu. — Boa sorte na estrada. E, se alguma
vez precisar de um bom serralheiro, saberá onde vir procurá-lo.
E depois foi embora. Ouvi-o subir as escadas da cave e fechar a porta de
trás. Alguns instantes depois Alice lambia suco de tomate dos dedos.
Tínhamos comido tudo
— não restava nem uma migalha.
— Alice — disse-lhe —, quero ir ao julgamento.
Talvez haja uma possibilidade de eu poder fazer algo para ajudar o
Mago. Vem comigo?
Os olhos de Alice arregalaram-se. — Fazer algo?
Não ouviu o que ele disse? Não há nada a fazer, Tom! O
que pode fazer contra homens armados? Não, tenha juízo.
Não vale a pena o risco, não é? Além disso, por que haveria eu de tentar
ajudar? O Velho Gregory não faria o mesmo por mim. Me deixaria arder,
pode ter certeza!
Fiquei sem saber o que responder. Até certo ponto era verdade. Eu
pedira ao Mago que ajudasse Alice e ele recusara. Então, soltando um
suspiro, pus-me em pé.
— Eu vou mesmo assim — disse-lhe.
— Não, Tom, não me deixe aqui. Não com o fantasma. .
— Julguei que não tivesse medo.
— Não tenho. Mas da última vez que adormeci senti-o começar a
apertar-me a garganta, verdade. Pode fazer pior se não estiver aqui.
— Nesse caso, venha comigo. Não será tão perigoso assim, porque ainda
estará escuro. E o melhor lugar para nos escondermos é numa grande
multidão. Venha, por favor. O que diz?
— Tem um plano? — perguntou-me. — Algo que ainda não tenha me
contado?
Abanei a cabeça.
— Bem que achei — retorquiu ela.
— Olha, Alice, eu só quero ir ver. Se não puder ajudar viremos embora.
Mas nunca me perdoaria se não fizesse uma última tentativa.
Relutantemente, Alice levantou-se.
— Vou ver o que acontece — referiu. — Mas tem de me prometer que,
se for perigoso demais, nós vamos logo embora. Conheço o Inquisidor
melhor do que você.
Confie em mim, não deveríamos arranjar confusão próximo dele.
— Prometo — garanti-lhe.
Deixei o saco do Mago e o bordão na cave e pusemo-nos a caminho de
Fishergate, onde ia se realizar o julgamento.
Andrew referira que metade da cidade estava acordada. Fora um
exagero, mas para uma hora tão matutina havia muitas velas a tremular
por detrás das cortinas e algumas pessoas pareciam correr apressadas
pelas ruas escuras na mesma direção que nós.
Eu contava, em parte, que não conseguíssemos aproximar-nos sequer
do edifício, pensando que os guardas estariam alinhados na rua lá fora,
mas, para minha surpresa, não se viam nenhuns dos homens do
Inquisidor. As grandes portas de madeira estavam escancaradas e uma
multidão enchia a entrada, saindo cá para fora, como se não houvesse
espaço para todos no interior.
Fui avançando na frente com cautela, satisfeito com a escuridão. Quando
cheguei ao fundo da multidão, percebi que não estava tão densamente
apinhada quanto parecera ao princípio. Dentro do salão o ar tinha um
odor adocicado e enjoativo. Era apenas uma sala grande com o chão
lajeado, sobre o qual tinham espalhado irregularmente serradura. Não
conseguia ver bem por cima da multidão porque a maior parte das
pessoas era mais alta do que eu, mas parecia haver um grande espaço
lá na frente para onde ninguém queria avançar. Agarrei a mão de Alice e
abri caminho pelo aglomerado de pessoas, arrastando-a atrás de mim.
Estava escuro no fundo do salão, contudo a parte da frente era
iluminada por dois enormes archotes a cada canto de um palanque. O
Inquisidor encontrava-se na parte da frente, olhando para baixo. Dizia
algo, mas a sua voz chegava abafada.
Olhei para aqueles que me rodeavam e vi a variedade de expressões nos
seus rostos: raiva, tristeza, azedume e resignação. Alguns mostravam-
se manifestamente hostis. Esta multidão era composta sobretudo por
aqueles que se opunham ao trabalho do Inquisidor. Alguns deles podiam
mesmo ser parentes e amigos dos acusados. Por um momento esse
pensamento deu-me esperança de que pudessem tentar alguma
manobra de salvação.
Porém, depois, as minhas esperanças foram frustradas: vi por que
motivo ninguém avançara. Por baixo do palanque havia cinco bancos
compridos de padres de costas para nós, mas atrás deles e virada para
nós, havia uma dupla fila de homens armados de rostos sinistros. Alguns
tinham cruzado os braços; outros haviam colocado as mãos nos punhos
das espadas como se inquietos por as desembainhar. Ninguém queria
aproximar-se demasiado deles. Olhei para cima na direção do teto e vi
uma galeria alta que se estendia para as laterais do salão; rostos
espreitavam aqui para baixo, ovais brancos e pálidos que pareciam todos
iguais vistos do piso térreo. Aquele deveria ser o local mais seguro e que
proporcionava uma melhor vista. Havia umas escadas à esquerda e
puxei Alice na direção delas. Momentos depois avançávamos pela ampla
galeria.
Não se encontrava cheia e logo estávamos instalados num lugar junto do
corrimão mais ou menos a meio caminho das portas e do palanque.
Pairava ainda o mesmo fedor adocicado no ar, muito mais intenso agora
do que quando tínhamos estado nas lajes lá em baixo. De repente
percebi o que era. O salão era quase com certeza usado como mercado
da carne. Era o cheiro de sangue.
O Inquisidor não era a única pessoa no palanque.
Mesmo ao fundo, nas sombras, um aglomerado de guardas rodeava os
prisioneiros que aguardavam o julgamento, mas imediatamente atrás do
Inquisidor estavam dois guardas agarrando pelos braços um prisioneiro
que chorava. Era uma garota alta com cabelo escuro comprido.
Trazia um vestido esfarrapado e estava descalça.
— Aquela é Maggie! — sussurrou-me Alice ao ouvido. — Aquela que foi
constantemente espetada com alfinetes. Pobre Maggie, não é justo.
Julguei que tivesse escapado.
Aqui em cima o som era muito melhor e pude ouvir cada palavra que o
Inquisidor proferiu. — Esta mulher é condenada pelos seus próprios
lábios! — gritou ele, a sua voz sonora e arrogante. — Ela confessou tudo
e a marca do Diabo foi encontrada na sua carne. Condeno-a a ser
amarrada ao poste e queimada viva. E que Deus tenha misericórdia da
sua alma.
Maggie começou a soluçar ainda mais alto, mas um dos seus captores
agarrou-a pelos cabelos e foi arrastada na direção de uma porta por
detrás do palanque. Mal ela desapareceu, logo outro prisioneiro de
batina preta e com as mãos amarradas atrás das costas foi empurrado
para a luz dos archotes. Por um momento julguei estar a fazer confusão,
mas não havia dúvida.
Era o irmão Peter. Reconheci-o pelo tufo fino de cabelo branco que lhe
orlava a calva e pela curvatura das costas e dos ombros. Mas o seu rosto
estava tão maltratado e manchado de sangue que mal o reconheci.
Tinham-lhe partido o nariz, esborrachando-o contra o rosto, e um olho
estava fechado, reduzido a uma fenda vermelha e inchada.
Ao vê-lo naquele estado senti-me péssimo. Fora tudo por minha causa.
Para começar, ele deixara-me escapar; depois contara-me como chegar
à cela para salvar o Mago e Alice. Sob tortura, devia ter-lhes contado
tudo. A culpa era toda minha e senti-me destroçado pelo remorso.
— Em tempos este foi um irmão, um servo fiel da Igreja! — exclamou o
Inquisidor. — Mas olhem para ele agora! Olhem para este traidor! Ele
ajudou os nossos inimigos e aliou-se às forças das trevas. Temos a sua
confissão, escrita pelo seu próprio punho. Ei-la aqui! — gritou,
levantando um pedaço de papel bem alto para que todos pudessem ver.
Ninguém teve oportunidade de o ler — podia nem referir nada de nada.
Mesmo que fosse uma confissão, bastou-me olhar para o rosto do pobre
irmão Peter para ver que lhe fora arrancada à força. Não era justo. Não
se fazia justiça aqui. Isto não era sequer um julgamento. Em tempos, o
Mago contara-me que quando as pessoas eram julgadas no castelo de
Caster, pelo menos tinham uma audiência — um juiz, um advogado de
acusação e alguém que as defendesse. Mas aqui, o Inquisidor fazia tudo
sozinho! — Ele é culpado. Culpado sem a menor dúvida —
continuou. — Por conseguinte, condeno-o a ser levado para as
catacumbas e abandonado ali. E que Deus tenha misericórdia da sua
alma!
Ouviu-se um súbito arfar de horror da multidão, mas o mais sonoro de
todos partiu dos padres sentados na frente. Eles sabiam exatamente
qual iria ser o destino do irmão Peter. Seria prensado até à morte pelo
Destruidor.
O irmão Peter tentou falar mas os seus lábios estavam demasiado
inchados. Um dos guardas socou-o na cabeça enquanto o Inquisidor
esboçava um sorriso cruel.
Levaram-no na direção da porta, na parte de trás do palanque, e ainda
mal abandonara o edifício já outro prisioneiro era trazido do escuro. O
coração caiu-me aos pés.
Era o Mago.
A primeira vista, para além de algumas equimoses no rosto, o Mago não
parecia ter sido tão maltratado quanto o irmão Peter. Mas reparei depois
num pormenor mais arrepiante. Semicerrava os olhos para o archote e
parecia desorientado, com uma expressão vaga nos seus olhos verdes.
Parecia perdido. Era como se a sua memória tivesse desaparecido e ele
nem sequer soubesse quem era.
Comecei a perguntar-me até que ponto o haviam espancado.
— Diante de vós encontra-se John Gregory! — exclamou o Inquisidor, a
sua voz ecoando de parede a parede. — Um discípulo do Diabo, nem
menos, que durante muitos anos exerceu a sua nefasta atividade neste
condado, recebendo dinheiro de pessoas pobres e crédulas. Mas este
homem renuncia? Admite os seus pecados e pede perdão? Não, é
obstinado e não confessará. Agora, só através do fogo poderá ser
expurgado e receber a esperança de salvação. Porém, não contente com
o mal que é capaz de fazer, ensinou outros e continua ainda a fazê-lo.
Padre Cairns, levante-se e preste depoimento!
Da fila de bancos da frente avançou um padre sob a luz do archote mais
próximo do palanque. Estava de costas para mim por isso não consegui
lhe ver o rosto, mas avistei a sua mão enfaixada e quando falou era a
mesma voz que eu escutara no confessionário.
— Lorde Inquisidor, John Gregory trouxe consigo um aprendiz ao visitar
esta cidade, alguém que já foi corrompido. O seu nome é Thomas Ward.
Ouvi Alice soltar uma arfada baixa e os meus joelhos começaram a
tremer. Tive de repente plena consciência do perigo que era estar aqui
neste salão, tão perto do Inquisidor e dos seus homens armados.
— Pela graça de Deus, o rapaz veio parar às minhas mãos — continuou o
padre Cairns —, e, se não tivesse sido a intervenção do irmão Peter, que
permitiu que ele escapasse à justiça, teria entregado para interrogatório.
Mas eu próprio o inquiri, e achei-o amadurecido para a sua idade e
insensível à persuasão por meras palavras. Não obstante os meus
melhores esforços, ele não conseguiu ver o erro dos seus atos e por tal
temos de culpar John Gregory, um homem que não se contenta em
praticar a sua vil arte, alguém que corrompe ativamente os jovens.
Tanto quanto sei, passou mais de uma vintena de aprendizes pelas suas
mãos e alguns, por sua vez, seguem agora a mesma arte e têm aceitado
aprendizes. Desta forma, o mal espalha-se pelo Condado como uma
praga.
— Obrigado, Padre. Pode sentar-se. O seu depoimento é suficiente para
condenar John Gregory!
Quando o padre Cairns se tornou a sentar, Alice agarrou-me o cotovelo.
— Vamos embora — murmurou-me ao ouvido —, é perigoso demais
ficar!
— Não, por favor — respondi murmurando também. — Só mais um
pouco.
A menção do meu nome assustara-me, mas queria ficar mais alguns
minutos para ver o que acontecia ao meu mestre.
— John Gregory, para você só pode haver um castigo! — bramou o
Inquisidor. — Será amarrado a um poste e queimado vivo. Rezarei por
você. Rezarei para que a dor te ensine o erro dos seus atos. Rezarei para
que peça perdão a Deus e, enquanto o seu corpo arde, a sua alma possa
se salvar.
O Inquisidor não olhou para o Mago o tempo todo em que esteve
discursando, mas podia perfeitamente ter estado a gritar para uma
parede de pedra. Não existia expressão nos olhos do Mago. De certa
forma, era uma bênção porque ele parecia não saber o que estava a
suceder. Isto fez-me compreender que, mesmo que de certa forma eu
conseguisse salvá-lo, ele poderia nunca mais voltar a ser o mesmo.
Senti um nó na garganta. A casa do Mago tornara-se o meu novo lar e
recordei as lições, as conversas com o Mago e até os momentos
medonhos em que tínhamos tido de enfrentar o escuro. Ia sentir a falta
de tudo aquilo e a idéia de o meu mestre ser queimado vivo fez-me vir
as lágrimas aos olhos.
A minha mãe tivera razão. A princípio, eu pusera em causa vir a ser
aprendiz do Mago. Temera a solidão.
Mas ela dissera-me que teria o Mago para conversar; que, apesar de ele
ser meu professor, acabaria por se tornar meu amigo. Bem, não sabia se
isso já acontecera, porque ele continuava a ser muito austero e cruel,
contudo ia certamente sentir saudades suas.
Quando os guardas o arrastaram na direção da porta, acenei a Alice e,
mantendo a cabeça baixa e evitando olhar diretamente para quem quer
que fosse, avancei pela galeria e desci as escadas. Lá fora, pude ver que
o céu começara a ficar mais claro. Em breve não teríamos a cobertura do
escuro e alguém poderia reconhecer um de nós. As ruas registravam já
maior movimento e a multidão no exterior do salão mais do que
duplicara desde que tínhamos entrado. Abri caminho por entre a
multidão para poder olhar para a lateral do edifício, na direção da porta
por onde haviam levado os prisioneiros.
Um olhar disse-me que a situação era desesperada.
Não consegui ver quaisquer prisioneiros, mas isso não surpreendia
porque devia haver pelo menos vinte guardas próximo das portas. Que
hipóteses tínhamos contra tantos? Com o coração aos pés, virei-me para
Alice.
— Vamos embora — disse-lhe. — Não há nada que possamos fazer aqui.
Estava ansioso por chegar à segurança da cave, por isso caminhamos
rapidamente. Alice seguiu-me sem abrir a boca.
CAPÍTULO 12
O PORTÃO DE PRATA
Uma vez de regresso à cave, Alice voltou-se para mim, os seus olhos
chispando de raiva.
— Não é justo, Tom! Pobre Maggie. Ela não merece ser queimada.
Nenhum deles merece. Tem de se fazer alguma coisa.
Encolhi os ombros e limitei-me a olhar para o ar, a minha mente
entorpecida. Dali a pouco, Alice recostou-se e adormeceu. Procurei fazer
o mesmo mas comecei a pensar de novo no Mago. Apesar de a situação
parecer desesperada, deveria ir ainda assim assistir às fogueiras e ver se
podia fazer algo para ajudar? Depois de estar algum tempo a pensar,
decidi finalmente que, ao anoitecer, abandonaria Priestown e iria a casa
conversar com a minha mãe.
Ela saberia o que eu deveria fazer. Aqui, eu estava desorientado e
precisava de ajuda. Teria de caminhar toda a noite e não conseguiria
pregar olho, de maneira que o melhor era aproveitar o que pudesse
agora. Levei algum tempo a adormecer, mas quando o consegui,
comecei quase de imediato a sonhar e depois soube que estava de novo
nas catacumbas.
Na maior parte dos sonhos não sabemos que estamos a sonhar. Mas
quando isso sucede, normalmente acontece uma de duas coisas. Ou
acordamos logo ou permanecemos no sonho e fazemos o que queremos.
Pelo menos comigo foi sempre assim.
Mas este sonho era diferente. Parecia que algo estava a controlar os
meus movimentos. Eu caminhava por um túnel escuro com o coto de
vela na mão esquerda e aproximava-me da porta escura que abria para
uma das criptas que continha os ossos da Gente Pequena. Eu não queria
de modo algum aproximar-me dali, mas os meus pés continuavam
simplesmente a caminhar.
Estaquei junto da porta aberta, a luz tremulante da vela iluminando os
ossos. A maior parte encontrava-se nas prateleiras ao fundo da cripta,
mas havia alguns ossos partidos dispersos pelo chão empedrado ou
jazendo num monte ao canto. Não queria entrar ali, realmente não, mas
parecia não ter outra escolha. Entrei na cripta, ouvindo pequenos
fragmentos de osso serem esmagados debaixo dos meus pés, quando de
repente senti imenso frio.
Um Inverno, era eu jovem, o meu irmão James perseguira-me e
enchera-me os ouvidos de neve. Tentara repeli-lo, mas ele tinha apenas
mais um ano do que o meu irmão mais velho Jack e era igualmente
grande e forte, a tal ponto que o meu pai acabou por mandá-lo aprender
o ofício de ferreiro. Partilhava o mesmo sentido de humor que Jack.
Neve nos ouvidos fora a idéia tola de James de uma partida mas, na
realidade, machucara-me e o meu rosto ficara completamente dormente
e passada uma hora ainda me doía. Era exatamente assim no sonho.
Queria dizer que algo do escuro se aproximava. O frio começou dentro
da minha cabeça até a sentir gelada e dormente, como se já não me
pertencesse.
Algo falou da escuridão atrás de mim. Algo que estava próximo das
minhas costas e entre mim e a porta. A voz era áspera e cava e não
precisei de perguntar quem era. Apesar de não me encontrar de frente
para ele, sentia o seu hálito fétido.
— Estou encurralado — disse o Destruidor. — Estou aprisionado. Não
tenho mais nada.
Não respondi e seguiu-se um longo silêncio. Era um pesadelo e tentei
acordar. Esforcei-me realmente, mas era inútil.
— Que espaço agradável, este — continuou o Destruidor. — Um dos
meus lugares preferidos, se é. Cheio de ossos velhos.
Mas o que quero é sangue fresco e o sangue dos jovens é o melhor
de todos. Mas se não conseguir arranjar sangue, terei de me
contentar com ossos. Os ossos novos são os melhores. Dêem-me
sempre ossos novos, frescos, saborosos e cheios de tutano. É disso que
eu gosto.
Adoro partir ossos jovens e chupar o tutano. Mas os ossos velhos sempre
são melhores do que nada. Ossos velhos como estes. São preferíveis à
fome a atacar-me as entranhas. A fome que dói tanto.
«Não há tutano dentro dos ossos velhos. Mas os ossos velhos ainda
guardam lembranças, sabe. Acaricio os ossos, sim, faço-o devagar, para
que eles me revelem todos os seus segredos. Vejo a carne que em
tempos os cobriu, as esperanças e ambições que acabaram nesta
fragilidade seca e morta. Isso também me alimenta. E alivia a fome.
O Destruidor estava muito próximo do meu ouvido esquerdo, a sua voz
agora pouco mais do que um murmúrio. Senti uma vontade súbita de
me virar e olhar para ele mas deve ter-me lido o pensamento.
— Não se vire, rapaz — avisou-me. — Olhe que não vai gostar do que
vir. Responda-me apenas a esta pergunta.
Seguiu-se uma longa pausa e senti que o coração me batia com força no
peito. O Destruidor fez então a pergunta. .
— Depois da morte, o que acontece?
Não soube responder. O Mago nunca falava dessas coisas. Eu só sabia
que havia fantasmas que ainda conseguiam pensar e falar. E fragmentos
chamados imagens fantasmagóricas que tinham ficado para trás
enquanto a alma seguia caminho. Mas caminho para onde? Não sabia.
Só Deus sabia. Se existisse um Deus.
Abanei a cabeça. Não falei e estava assustado demais para me virar.
Sentia atrás de mim algo enorme e aterrador.
— Não há nada depois da morte! Nada! Nada de nada!
— berrou o Destruidor perto do meu ouvido. — Só existe negrura e
vazio. Nem pensamento. Nem sentimento. Apenas esquecimento. É tudo
o que te espera do outro lado da morte. Mas faça o que te peço, e te
darei uma longa, longa vida! Três vintenas mais dez anos é melhor do
que a maior parte dos humanos fracos pode esperar. Mas poderia dar-te
isso dez ou vinte vezes! E tudo o que tem de fazer é abrir o portão que
eu tratarei do resto. O s eu mestre ficaria livre também. Sei que é isso
que você quer. Poderia voltar à vida que teve em tempos.
Uma parte de mim ansiava dizer que sim. Imaginei o Mago a ser
queimado e uma viagem solitária para norte até Caster sem nenhuma
certeza de que poderia prosseguir o meu aprendizado. Se ao menos as
coisas pudessem voltar ao que tinham sido! Mas, apesar de me sentir
tentado a dizer que sim, sabia que isso não era simplesmente possível.
Ainda que o Destruidor cumprisse o prometido, não podia deixá-lo andar
à solta pelo Condado, para poder praticar o mal a seu bel-prazer. Sabia
que o Mago preferiria morrer a deixar que isso acontecesse.
Abri a boca para dizer que não, mas antes mesmo de conseguir articular
a palavra o Destruidor voltou a falar.
— A garota seria fácil! — referiu. — Tudo o que ela quer é uma fogueira
quente. Uma casa onde morar. Roupas limpas.
Mas pense no que estou te propondo! E tudo o que quero é o
seu sangue. Um pouquinho, percebe. E não doerá assim muito. Apenas o
suficiente é tudo o que peço. E depois celebraremos um pacto juntos.
Deixe-me só chupar o seu sangue para que possa voltar a ficar forte.
Deixe-me só transpor o portão e devolver-me-ás a liberdade.
Três vezes depois, farei o que me pedir e terá uma longa, longa vida.
O sangue da garota é melhor do que nada, mas é realmente do seu que
preciso. Você é um sete vezes sete. Só uma vez antes saboreei um
sangue doce como o seu. E ainda me lembro bem, se lembro. O sangue
doce de um sete vezes sete. Como eu voltaria a ficar forte! Como seria
grandiosa a sua recompensa! Isso não ê melhor do que o nada da
morte?
«E a morte virá até você um dia. Virá com certeza a despeito de tudo o
que eu faça, avançando sorrateiramente como o nevoeiro na margem de
um rio numa noite fria e úmida. Mas posso re-tardar esse momento.
Retardá-lo por muitos e muitos anos. Passaria muito tempo antes de ter
de enfrentar aquela escuridão. Aquela escuridão. Aquele nada! Então, o
que me diz, rapaz? Estou encurralado. Estou aprisionado. Mas você pode
ajudar!
Estava assustado e tentei voltar a acordar. Mas de repente as palavras
saíram-me da boca, quase como se tivessem sido proferidas por outra
pessoa.
— Não acredito que não haja nada depois da morte
— disse. — Tenho alma e se viver a minha vida como deve ser, vivê-la-
ei de alguma maneira. Haverá algo. Não acredito no nada. Não acredito
nisso.
— Não! Não! — bramou o Destruidor. — Você não sabe o que eu sei!
Não pode ver o que eu vejo! Eu vejo para lá da morte. Eu vejo o vazio.
O vazio. Eu sei! Vejo o estado horrível de ser nada. O nada de nada, isso
existe! O nada de nada!
O meu coração começou a abrandar e de repente senti-me muito calmo.
O Destruidor continuava atrás de mim mas a cripta começava a ficar
quente. Agora percebia. Conhecia a dor do Destruidor. Sabia por que
precisava de se alimentar das pessoas, do seu sangue, das suas
esperanças e dos seus sonhos...
— Tenho uma alma e continuarei vivo — redargui ao Destruidor,
mantendo a minha voz muito calma. — E
é essa a diferença. Eu tenho alma e você não! Para você não existe nada
depois da morte! Nada de nada!
A minha cabeça foi empurrada com força contra a parede da cripta e
ouvi um silvo de fúria atrás de mim.
Um silvo que se transformou num urro de raiva.
— Tolo! — gritou o Destruidor, a sua voz atroando e enchendo a cripta e
ecoando para lá dela pelos túneis compridos das catacumbas. Bateu-me
de lado na cabeça com toda a violência, fazendo com que a minha testa
raspasse nas pedras duras e frias. Vi pelo canto do olho o tamanho da
mão enorme que me agarrava a cabeça. Em vez de unhas, os dedos
terminavam em enormes garras amarelas.
— Teve a sua oportunidade, mas agora acabou-se para sempre! —
berrou o Destruidor. — Porém há mais alguém que pode ajudar-me. Por
isso, se não te posso ter, me contentarei com ela!
Fui empurrado para baixo, para o monte de ossos ao canto. Senti-me
cair no meio deles. Fui descendo sempre, mergulhando num poço sem
fundo cheio de ossos. A vela apagara-se, mas os ossos pareciam brilhar
no escuro: caveiras de sorriso rasgado, caixas torácicas, ossos de pernas
e ossos de braços, fragmentos de mãos, dedos e polegares, e sempre o
pó branco e seco da morte a cobrir-me o rosto, a entrar-me pelo nariz
para a boca e a descer-me pela garganta, até começar a sufocar e mal
conseguir respirar.
— É este o bafo da morte! — exclamou o Destruidor.
— E é este o aspecto da morte!
Os ossos desapareceram de vista e não consegui ver nada. Nada de
nada. Estava simplesmente a cair pela negrura. A cair no escuro. Senti
pavor de que o Destruidor me tivesse matado de alguma forma durante
o sono, mas continuei a fazer um esforço para acordar. Não sei como, o
Destruidor estivera a falar comigo enquanto dormia e sabia quem ele
estaria agora a persuadir para fazer o que eu recusara.
Alice!
* * *
Consegui finalmente acordar, mas já era tarde demais. Ardia uma vela a
meu lado, mas era apenas um coto.
Estivera dormindo por horas! A outra desaparecera, bem como Alice!
Levei a mão ao bolso mas apenas confirmei o que adivinhava já. Alice
tirara-me a chave do Portão de Prata. .
Quando tentei pôr-me em pé senti tonturas e doía-me a cabeça. Levei a
mão à testa e veio úmida com sangue. Não sei como, o Destruidor
fizera-me aquilo num sonho. Conseguia ler também os pensamentos.
Como era possível derrotar uma criatura quando ela sabia o que
pretendíamos fazer antes de termos tido oportunidade de nos mover ou
sequer de falar? O Mago tinha razão — esta criatura era a coisa mais
perigosa que alguma vez tínhamos enfrentado.
Alice deixara o alçapão aberto e, pegando na vela, não perdi tempo a
descer as escadas até às catacumbas.
Alguns minutos depois alcancei o rio, que me pareceu um pouco mais
profundo do que antes. A água, turbilhonando logo abaixo, cobria
efetivamente três das nove alpondras, as que ficavam mesmo no meio, e
senti a corrente puxar-me as botas.
Atravessei rapidamente, muito embora fosse impossível eu não chegar
tarde demais. Mas quando virei a esquina, vi Alice sentada com a cabeça
encostada à parede.
A sua mão esquerda repousava nas pedras, os dedos cobertos de
sangue.
E o Portão de Prata estava escancarado!
CAPÍTULO 13
AS FOGUEIRAS
— Alice! — exclamei, olhando incrédulo para o portão aberto. — O que
você fez?
Ela olhou para mim, com os olhos cheios de lágrimas. A chave
continuava na fechadura. Furioso, retirei-a e voltei a enfiá-la no bolso
das calças, enterrando-a bem no fundo das limalhas de ferro.
— Vamos! — disse-lhe bruscamente, quase furioso de mais para falar. —
Temos de sair daqui.
Estendi-lhe a mão esquerda mas ela recusou-a.
Preferiu manter a sua, a que estava coberta de sangue, junto ao corpo e
olhou para ela, fazendo uma careta de dor.
— O que aconteceu com a sua mão? — inquiri.
— Nada de especial — respondeu. — Não demora a ficar boa. Agora vai
tudo correr bem.
— Não, Alice — redargui —, não vai, não. Agora todo o Condado corre
perigo, graças a você.
Puxei delicadamente pela sua mão sã e conduzi-a pelo túnel até
chegarmos ao rio. A beira da água ela deu um puxão e soltou a mão da
minha; não fiz qualquer julgamento sobre aquele gesto. Limitei-me a
atravessar rapidamente. Só quando cheguei ao outro lado é que olhei
para trás e vi Alice ainda ali de pé a olhar para a água.
— Vamos! — gritei. — Apresse-se!
— Não consigo, Tom! — gritou Alice em resposta.
— Não consigo atravessar!
Pousei a vela e fui buscá-la. Ela quis esquivar-se.
Mas agarrei-a com força. Se houvesse oferecido resistência, eu não teria
qualquer chance, mas assim que as minhas mãos lhe tocaram, o corpo
de Alice ficou inerte e tombou sobre mim. Sem perder tempo, flexionei
os joelhos e encaixei o seu corpo sobre o meu ombro, como vira o Mago
fazer para transportar uma bruxa.
Sabem, eu não tinha dúvidas. Se não conseguia atravessar água
corrente, então é porque Alice se tornara o que o Mago sempre receara
que lhe acontecesse. Os acordos dela com o Destruidor tinham-na
finalmente feito passar-se para o escuro.
Uma parte de mim queria deixá-la ali. Eu sabia que era o que o Mago
teria feito. Mas não fui capaz. Estava a desobedecer-lhe mas tinha de
ser. Ela continuava a ser Alice e havíamos passado juntos por muita
coisa.
Não deixou de ser difícil atravessar o rio com ela ao ombro, apesar de
ela ser leve, e tive de fazer um esforço para manter o equilíbrio nas
pedras. Para complicar, no momento em que iniciei a travessia, Alice
começou a gemer como se estivesse a sofrer.
Ao chegarmos finalmente ao outro lado, depositei-a no chão e peguei na
vela.
— Vamos! — disse, mas ela ficou apenas ali a tremer e tive de lhe
agarrar a mão e puxá-la até chegarmos às escadas que conduziam à
cave.
Uma vez lá, pousei a vela e sentei-me na borda do carpete velho. Desta
vez, Alice não se sentou. Limitou-se a cruzar os braços e encostou-se à
parede. Nenhum de nós falou. Não havia nada a dizer e eu estava
ocupado demais a pensar.
Dormira bastante tempo, tanto antes do sonho como depois dele. Fui
espreitar à porta no topo das escadas da cave e vi que o Sol estava
mesmo no ocaso. Esperaria uma meia hora e depois pôrme-ia a
caminho. Queria desesperadamente ajudar o Mago mas sentia-me
absolutamente impotente. Sentia-me mal só de pensar no que lhe
estava a acontecer, contudo o que podia eu realmente fazer contra
dúzias de homens armados? E estava mesmo decidido a não ir à colina
do farol para o ver arder. A idéia era-me insuportável. Não, ia a casa ver
a Mãe. Ela saberia o que eu deveria fazer a partir dali.
Talvez a minha vida como aprendiz de mago tivesse terminado. Ou
talvez ela me sugerisse que fosse para norte de Caster e arranjasse um
novo mestre. Era difícil saber o que ela me aconselharia a fazer.
Quando achei que estava na hora, retirei a corrente de prata do lugar
onde a prendera debaixo da camisa, e voltei a guardá-la no saco do
Mago juntamente com a sua capa. Como sempre dizia o meu pai:
«Guarda o que não presta e achará o que precisas!» Assim, voltei a
guardar também o sal e o ferro nos seus compartimentos no saco -
o máximo que consegui retirar dos bolsos das minhas calças.
— Vamos — instiguei Alice. — Vou acompanhar-te até lá fora.
Então, colocando a capa e levando o saco e o bordão, subi as escadas,
depois servi-me da minha outra chave para abrir a porta de trás. Uma
vez no pátio, voltei a trancá-la atrás de nós.
— Adeus, Alice — disse-lhe, e virei-me para me afastar.
— O quê? Não vem comigo, Tom? — perguntou Alice.
— Onde?
— Às fogueiras, claro, apanhar o Inquisidor. Ele vai ver o que o espera.
Vai ter o que merece. Vou retribu-ir-lhe pelo que fez à minha pobre tia
velha e a Maggie.
— E como tenciona fazer isso? — inquiri.
— Dei o meu sangue ao Destruidor, sabe — referiu Alice, arregalando
muito os olhos. — Introduzi os dedos através da grade e ele chupou-o
debaixo das minhas unhas. Pode não gostar de moças, mas gosta do seu
sangue. Tirou o que necessitava, por isso o pacto foi firmado e agora ele
tem de fazer o que eu disser. Tem de obedecer à minha vontade.
As unhas da mão esquerda de Alice estavam negras do sangue seco.
Enojado, virei a cara e abri o portão do pátio, saindo para o caminho
estreito.
— Onde vai, Tom? Agora não pode ir embora! —
gritou Alice.
— Vou para casa falar com a Mãe — respondi, sem sequer me virar para
olhá-la.
— Vai para junto da sua mãe, vai! Não passa de um filhinho da mamãe,
de um medroso, e sempre o será!
Eu não dera mais de uma dúzia de passos antes de ela vir a correr atrás
de mim.
— Não vá, Tom! Por favor não vá! — gritou. Continuei a caminhar. Nem
sequer me virei.
Quando Alice voltou a gritar, havia verdadeira raiva na sua voz. Mas
mais do que isso, parecia desesperada.
— Não pode ir embora, Tom! Não vou te deixar ir.
É meu. Você me pertence!
Enquanto corria para mim, virei-me e enfrentei-a.
— Não, Alice — disse. — Eu não te pertenço. Eu pertenço à luz e agora
você pertence às trevas!
Ela estendeu as mãos e agarrou-me o antebraço esquerdo com muita
força. Conseguia sentir as unhas dela a cravarem-se na minha carne.
Estremeci com a dor mas olhei-a diretamente nos olhos.
— Não sabe o que fez! — redargui-lhe.
— Oh sim, sei, Tom. Sei exatamente o que fiz e um dia irá agradecer-
me. Está tão preocupado com o seu rico Destruidor, mas acredite em
mim, ele não é pior do que o Inquisidor — afirmou Alice, soltando-me o
braço. — Aquilo que fiz, fiz por todos nós, por você e por mim, até pelo
Velho Gregory.
— O Destruidor irá matá-lo. Será a primeira coisa que fará agora que se
encontra em liberdade!
— Não, está enganado, Tom! Não é o Destruidor que quer matar o Velho
Gregory, é o Inquisidor. Neste preciso momento o Destruidor é a sua
única esperança de sobrevivência. E tudo graças a mim.
Fiquei confuso.
— Olhe, Tom, venha comigo e lhe mostrarei.
Abanei a cabeça.
— Bem, quer venha comigo quer não — continuou ela —, o farei mesmo
assim.
— Fará o quê?
— Vou salvar os prisioneiros do Inquisidor. Todos eles! E vou mostrar-lhe
o que é arder!
Olhei de novo com dureza para Alice, mas ela não desviou o olhar do
meu. A raiva chispava nos seus olhos e, naquele momento, senti que ela
teria conseguido até fitar o Mago, algo de que normalmente não seria
capaz.
Alice falara muito seriamente e pareceu-me que o Destruidor era capaz
de lhe obedecer e ajudá-la. Afinal, eles tinham feito um pacto qualquer.
Se havia alguma chance de salvar o Mago, então eu tinha de lá estar
para lhe devolver a liberdade. Não me sentia nada confortável em ter de
contar com algo tão mau quanto o Destruidor, no entanto, que outra
alternativa me restava? Alice virou-se na direção da colina do farol e,
lentamente, comecei a segui-la.
As ruas estavam desertas e caminhamos rapidamente, dirigindo-nos
para sul.
— É melhor livrar-me deste bordão — comentei com Alice. — Pode
denunciar-nos.
Ela anuiu e apontou para um alpendre velho em ruínas. — Deixe-o ali
atrás — referiu. — Podemos vir buscá-lo no regresso.
Ainda havia alguma claridade no céu a oeste e refletia-se no rio, que
serpenteava pelos vales dos montes de Wortham. Os meus olhos foram
atraídos para cima, para a assustadora colina do farol. As suas vertentes
inferiores estavam cobertas de árvores, que começavam agora a perder
as folhas, mas acima havia apenas erva e vegetação rasteira.
Deixamos para trás as últimas casas e reunimo-nos a uma quantidade
de pessoas que atravessava a estreita ponte de pedra sobre o rio,
deslocando-se lentamente através do ar úmido e parado. Havia uma
névoa branca na margem do rio, mas não tardamos a subir por entre as
árvores, passando por cima de montes de folhas úmidas a apodrecer e
indo sair perto do topo da colina. Encontrava-se já ali reunida uma
grande multidão, com mais pessoas a chegar a cada minuto. Havia três
montes enormes de troncos e ramos prontos para serem ateados, o
maior colocado entre os outros dois. Erguendo-se dessas piras viam-se
os grossos postes onde as vítimas seriam amarradas. No topo da colina
do farol, com as luzes da cidade a espalhar-se abaixo de nós, o ar era
mais fresco. A zona estava iluminada por archotes colocados em postes
esguios de madeira, que oscilavam ligeiramente com a brisa suave de
oeste. Mas havia zonas escuras, onde os rostos da multidão estavam na
sombra, e segui Alice até uma delas, para que pudéssemos assistir ao
que se passava sem que despertássemos as atenções.
De guarda, com as costas voltadas para as piras, estava uma dúzia de
homens usando capuzes pretos, apenas com fendas nos olhos e na boca.
Tinham bastões nas mãos e pareciam ansiosos por usá-los. Estes eram
os ajudantes dos carrascos, que auxiliariam o Inquisidor a acender as
fogueiras e, se necessário, a repelir a multidão.
Não sabia muito bem como reagir. Valeria a pena esperar que pudessem
fazer algo? Quaisquer parentes e amigos dos condenados haveriam de
querer salvá-los, mas seriam em número suficiente para efetuar uma
tentativa de salvamento? Claro que, como dissera o irmão Peter, havia
muitas pessoas que adoravam uma fogueira. Muitas estavam aqui pelo
espetáculo.
Mal aquele pensamento entrou na minha cabeça, ouviu-se ao longe o
rufar contínuo de tambores.
— Ardam! Ardam! Ardam, bruxas, ardam! — pareciam atroar os
tambores.
Ante aquele som, a multidão começou a murmurar, as suas vozes a
crescer até se tornarem um bramido até que finalmente irrompeu em
sonoros assobios e vaias.
Aproximava-se o Inquisidor, montado no seu enorme cavalo branco, e
atrás dele rolava uma carroça aberta contendo os prisioneiros. Outros
homens cavalgavam ao lado e na retaguarda da carroça, e tinham
espadas na cintura.
Atrás deles, a pé, vinha uma dúzia de tocadores de tambor,
pavoneando-se, os seus braços subindo e descendo teatralmente ao
ritmo que marcavam.
— Ardam! Ardam! Ardam, bruxas, ardam!
De repente, toda a situação parecia irremediável.
Alguns nas filas da frente da multidão começaram a atirar fruta podre
nos prisioneiros, mas os guardas nos flancos, provavelmente
preocupados em não serem atingidos por engano, puxaram das espadas
e avançaram diretos a eles, repelindo-os e fazendo com que a multidão
de pessoas fosse obrigada a recuar.
A carroça aproximou-se mais, depois parou e, pela primeira vez, pude
ver o Mago. Alguns dos prisioneiros estavam de joelhos, rezando. Outros
gemiam e puxavam os cabelos, mas o meu mestre estava de pé, muito
ereto, olhando em frente. O seu rosto parecia alterado e cansado, e
tinha a mesma expressão vaga nos olhos, como se ainda não
compreendesse o que lhe estava acontecendo.
Apresentava uma equimose nova na testa por cima do olho esquerdo, e
o lábio inferior estava aberto e inchado
— levara sem dúvida outra sova.
Um padre avançou, levando um rolo de pergaminho na mão direita, e o
ritmo dos tambores mudou. Tornou-se um rufar rápido e cavo que
atingiu um crescendo.
Depois parou, subitamente, quando o padre começou a ler o
pergaminho.
— Povo de Priestown, ouçam isto! Estamos aqui reunidos para presenciar
a execução legal pelo fogo de doze bruxas e um feiticeiro, os miseráveis
pecadores que vedes agora diante de vós. Rezai pelas suas almas! Rezai
para que, através da dor, eles possam vir a reconhecer o erro dos seus
atos. Rezai para que possam pedir perdão a Deus e assim redimir as
suas almas imortais.
Ouviu-se outro rufar de tambores. O padre ainda não terminara e, no
silêncio que se seguiu, continuou a ler.
— O nosso Lorde Protetor, o Inquisidor-Mor, deseja que isto seja uma
lição para outros que possam vir a escolher o caminho das trevas. Vede
estes pecadores arder! Vede os seus ossos estalar e a sua gordura
derreter como sebo de vela. Escutai os seus gritos e ao mesmo tempo
recordai que isto não é nada! Isto não é mesmo nada comparado com as
chamas do Inferno! Nada comparado com a eternidade de tormento que
espera aqueles que não buscam o perdão!
A multidão ficara silenciosa ante aquelas palavras.
Talvez fosse o medo do Inferno que o padre mencionara, mas, mais
provavelmente, pensei, seria outra coisa. Era o que eu temia agora.
Ficar a assistir ao horror do que estava prestes a acontecer. A tomada de
consciência de que carne e sangue vivos iam ser lançados às chamas
para suportar uma agonia indescritível.
Dois dos homens encapuzados avançaram e tiraram com rudeza o
primeiro prisioneiro da carroça — uma mulher com cabelo grisalho
comprido, que lhe pendia densamente sobre os ombros, quase até à
cintura. Quando a arrastaram na direção da pira mais próxima, começou
a cuspir e a praguejar, tentando desesperadamente libertar-se. Alguns
da multidão riram e escarneceram, insultando-a, mas inesperadamente
ela conseguiu soltar-se e desatou a correr na direção do escuro.
Antes que os guardas conseguissem dar sequer um passo para a seguir,
o Inquisidor passou a galope por eles, os cascos do cavalo fazendo saltar
lama do solo macio.
Agarrou a mulher pelos cabelos, enrolando os dedos nos caracóis dela
antes de fechar o punho. Depois deu-lhe um puxão tão violento que as
costas dela se arquearam e foi quase levantada do chão. Ela soltou um
uivo estridente e penetrante quando o Inquisidor a arrastou de costas na
direção dos guardas, que a voltaram a agarrar e amarraram
rapidamente a um dos postes na orla da pira maior. O
destino dela estava traçado.
Caiu-me o coração aos pés ao ver que o Mago era o próximo prisioneiro
a ser retirado da carroça. Encaminharam-no para a pira maior e
amarraram-no ao poste central, mas nem uma só vez ele se debateu.
Ficou apenas ali com ar desorientado. Recordei mais uma vez a altura
em que me dissera que arder na fogueira era uma das mortes mais
dolorosas que se podia imaginar e não concordava que se fizesse isso a
uma bruxa. Era insuportável vê-lo ali amarrado, aguardando o seu
destino. Alguns dos homens do Inquisidor traziam archotes e imaginei-os
a acender as piras, as chamas avançando na direção do Ma-go. Era
horrível pensar nisso e as lágrimas começaram a descer-me pelo rosto.
Procurei recordar o que o meu amo dissera a respeito de algo ou alguém
a observar o que fazíamos. Se levar uma vida direita, dissera-me então,
numa hora de necessidade ele estará a seu lado e lhe emprestará a sua
força. Bem, ele levara uma vida direita e fizera tudo por aquilo que
julgava ser o melhor. Por isso merecia algo.
Não?
Se eu pertencesse a uma família que frequentava a igreja e rezasse
mais, era o que teria feito então. Não tinha esse hábito e não sabia como
se fazia, porém, sem me dar conta disso, murmurei algo para mim
mesmo. Não pretendi que fosse uma prece, mas acho que, na verdade,
o era.
— Ajudai-o, por favor — murmurei. — Ajudai-o, por favor.
De repente, os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se e senti
imediatamente frio, muito frio. Aproximava-se algo do escuro. Ouvi Alice
arfar subitamente, soltar um gemido cavo, e de imediato a minha visão
se toldou a tal ponto que, quando me virei e estendi a mão para ela, não
conseguia ver nem um palmo à frente do nariz. O murmúrio da multidão
ouviu-se ao longe e ficou tudo parado e silencioso. Senti-me isolado do
resto do mundo, sozinho na escuridão.
Sabia que o Destruidor chegara. Não conseguia ver nada mas sentia-o
próximo, um imenso espírito negro, um peso enorme que ameaçava
expulsar a vida de mim. Fiquei apavorado, por mim e por todas as
pessoas inocentes ali reunidas, mas não podia fazer nada senão esperar
na escuridão que aquilo acabasse.
Quando a minha visão aclarou, vi Alice começar a avançar. Antes que a
pudesse impedir, abandonou as sombras e avançou diretamente para o
Mago e os dois carrascos na pira central. O Inquisidor estava ali
próximo, observando. Quando ela se aproximou, vi-o virar o cavalo na
direção dela e esporeá-lo para um galope brando. Por um momento,
julguei que tencionasse passar-lhe por cima com o cavalo, mas obrigou o
animal a parar tão próximo que Alice podia ter estendido a mão e feito
uma festa no focinho dele.
Estampou-se um sorriso cruel no rosto do homem e percebi que a
reconhecera como um dos prisioneiros evadidos. Nunca esquecerei o que
Alice fez a seguir.
No silêncio repentino que se instalara, ela ergueu as mãos para o
Inquisidor, apontando para ele com ambos os indicadores. Depois soltou
uma longa gargalhada sonora e o som ecoou por toda a colina, fazendo
com que o cabelo na minha nuca voltasse a se arrepiar. Era uma
gargalhada de triunfo e desafio e achei estranho que o Inquisidor
estivesse a preparar-se para queimar aquelas pessoas, todas elas
falsamente acusadas, todas elas inocentes, enquanto estava diante dele,
em liberdade, uma bruxa verdadeira, com verdadeiro poder.
A seguir, Alice girou nos calcanhares e começou a rodopiar, mantendo os
braços estendidos na horizontal.
Enquanto observava, começaram a aparecer pontos negros no focinho e
na cabeça do garanhão branco do Inquisidor. A princípio fiquei intrigado
e não percebi o que estava a suceder. Mas depois o cavalo relinchou de
medo e empinou-se nas patas traseiras e vi que saíam gotículas de
sangue da mão esquerda de Alice. Sangue do lugar onde o Destruidor
acabara de se alimentar.
Levantou-se um vento súbito intenso demais, houve um relâmpago
ofuscante e ribombou um trovão tão forte que me fez doer os ouvidos.
Encontrei-me de joelhos e ouvi pessoas aos gritos e berros. Olhei para
trás na direção de Alice e vi que ela continuava a rodopiar, a girar cada
vez mais depressa. O cavalo branco empinou de novo, desta vez
desalojando o Inquisidor, que caiu de costas sobre a pira.
Outro relâmpago e subitamente a orla da pira estava a arder, as chamas
subindo a crepitar e o Inquisidor de joelhos todo cercado de chamas. Vi
alguns guardas precipitarem-se para ajudá-lo, mas a multidão avançava
também e um dos guardas foi arrancado do cavalo. Passados momentos,
o tumulto generalizara-se. Por todo o lado se atacava e lutava. Outros
corriam para fugir e o ar encheu-se de gritos e brados.
Larguei o saco e corri para o meu mestre, pois as chamas avançavam
rapidamente, ameaçando envolvê-lo.
Sem pensar, saltei imediatamente para a pira, sentindo o calor das
chamas, que começavam já a devorar os pedaços maiores de madeira.
Tentei desamarrá-lo, os meus dedos de volta dos nós. À minha esquerda
um homem tentava libertar a mulher de cabelos grisalhos que tinham
amarrado primeiro.
Entrei em pânico porque não estava a conseguir nada.
Havia demasiados nós! Estavam excessivamente apertados e o calor
aumentava!
De repente, ouviu-se um grito de triunfo à minha esquerda. O homem
libertara a mulher e um olhar disse-me como: pegara numa faca e
cortara facilmente as cordas. Começava a afastar-se do poste quando
olhou na minha direção. O ar enchera-se de gritos e berros e do crepitar
das chamas. Mesmo que eu tivesse gritado ele não me teria ouvido, por
isso limitei-me a estender a mão esquerda para ele. Por um momento
pareceu hesitar, olhando para a minha mão, mas arremessou a faca na
minha direção.
Não a apanhei e caiu nas chamas. Sem pensar, mergulhei a mão na
madeira em chamas e recuperei-a.
Bastaram alguns segundos para cortar as cordas.
O fato de ter libertado o Mago quando ele estivera tão perto de morrer
queimado proporcionou-me uma enorme sensação de alívio. Mas a
minha felicidade foi de pouca duração. Ainda faltava muito para
estarmos a salvo.
Havia homens do Inquisidor a toda a nossa volta e existia uma forte
possibilidade de sermos detectados e apanhados. Desta vez seríamos
ambos queimados!
Tinha de levá-lo da pira em chamas para a zona de escuridão mais
adiante; para algum lugar onde não fôssemos vistos. Pareceu levar uma
eternidade. Apoiava-se bastante em mim e dava pequenos passos
vacilantes.
Lembrei-me do saco dele, de maneira que nos dirigimos para o local
onde o largara. Apenas por um golpe de sorte evitamos os homens do
Inquisidor. Do seu líder nem sinal, mas vi ao longe homens montados a
acutilar com as espadas quem estivesse ao alcance delas. Esperava a
qualquer momento que um deles nos atacasse. O progresso estava a ser
cada vez mais difícil; o peso do Mago parecia aumentar no meu ombro e
ainda tinha de carregar com o saco dele na minha mão direita. Mas
depois, mais alguém lhe segurava o outro braço e avançávamos para o
escuro das árvores e a segurança. Era Alice.
— Consegui, Tom! Consegui! — gritou, toda entusiasmada. Não soube
muito bem o que responder. Claro que estava satisfeito, contudo não
podia aprovar o método dela. — Onde está agora o Destruidor? —
indaguei.
— Não se preocupe com isso, Tom. Sei quando ele está próximo e não
sinto nada em lado nenhum neste momento. Deve ter sido necessário
muito poder para fazer o que fez, por isso calculo que tenha voltado para
o escuro por um tempo a fim de recuperar as forças.
Aquilo não me agradou mesmo nada.
— E o Inquisidor? — perguntei. — Não vi o que lhe aconteceu. Está
morto?
Alice abanou a cabeça.
— Queimou as mãos quando caiu, é tudo. Mas agora já sabe o que é
arder!
Quando ela disse aquilo, percebi a dor na minha própria mão, a
esquerda, que amparava o Mago. Olhei para baixo e vi que as costas
estavam em carne viva e empoladas. A cada passo que dava a dor
parecia aumentar.
Atravessamos a ponte com uma multidão de pessoas assustadas que se
acotovelavam, correndo todas para norte, ansiosas por se afastarem do
tumulto e do que se seguiria. Em breve os homens do Inquisidor
reagrupariam, desejosos de recapturar os prisioneiros e castigar quem
quer que tivesse participado na sua fuga. Quem estivesse no caminho
deles sofreria.
Muito antes da alvorada estávamos longe de Priestown e passamos as
primeiras horas de luz do dia num abrigo de gado em ruínas, com medo
de que os homens do Inquisidor pudessem estar perto à procura dos
prisioneiros fugitivos.
O Mago não dissera uma única palavra quando eu falara com ele, nem
sequer depois de lhe ter recuperado e entregue o bordão. O seu olhar
permanecia vago e fixo, como se a sua mente estivesse num lugar
completamente diferente. Comecei a preocupar-me que a pancada na
ca-beça pudesse ser grave, o que me deixava poucas opções.
— Temos de levá-lo para a nossa fazenda — informei Alice. — A minha
mãe poderá ajudá-lo.
— Mas não irá ficar muito satisfeita por me ver, não é? — comentou
Alice. — Não, quando descobrir o que eu fiz. Tão pouco aquele seu
irmão.
Anuí, fazendo um esgar ante a dor na minha mão.
O que Alice dissera era verdade. Seria preferível se ela não viesse
comigo, porém eu precisava da ajuda dela para levar o Mago, que estava
longe de se aguentar de pé sozinho.
— O que se passa, Tom? — perguntou. Reparou na minha mão e veio
observá-la. — Vou já tratar dela —
disse —, é um instante.
— Não, Alice, é perigoso demais!
Antes que a conseguisse impedir, saiu do abrigo.
Passados dez minutos estava de volta com uns pedaços de casca de
árvore e folhas de uma planta que não reconheci.
Mastigou a casca com os dentes até ficar em pequenos pedaços fibrosos.
— Estenda a mão! — ordenou.
— O que é isso? — perguntei, na dúvida, mas a minha mão doía tanto
que obedeci.
Delicadamente, colocou os pequenos pedaços de casca e envolveu a
minha mão com as folhas. Depois, puxou um fio preto do vestido e usou-
o para manter as folhas na posição.
— Lizzie ensinou-me isto — explicou-me. — Não tardará a deixar de
sentir dores.
Preparava-me para protestar, mas quase de imediato a dor começou a
diminuir. Era um remédio natural ensinado a Alice por uma bruxa. Um
remédio natural que funcionava. O mundo dava muitas voltas. Do mal
advinha o bem. E não era apenas a minha mão. Por causa de Alice e do
seu pacto com o Destruidor, o Mago conseguira ser salvo.
CAPÍTULO 14
A HISTÓRIA DO PAI
Avistamos a fazenda cerca de uma hora antes do pôr do Sol. Sabia que o
Pai e Jack estariam precisamente a começar a ordenha, por isso era uma
boa altura para chegar.
Precisava de uma oportunidade para falar com a Mãe a sós. Não ia a
casa desde a Primavera, altura em que a bruxa velha, Mãe Malkin, fizera
uma visita à minha família. Graças à coragem de Alice naquela ocasião,
tínhamos destruído-a, mas o incidente transtornara Jack e a esposa Ellie,
e eu sabia que não veriam com bons olhos a minha permanência depois
de escurecer. Os assuntos dos magos deixavam-nos assustados e
tinham receio de que pudesse acontecer algo à filha. Por isso, eu só
queria ajudar o Ma-go e então voltar o mais rapidamente possível à
estrada.
Tinha igualmente consciência de que estava a pôr em risco a vida de
toda a gente levando o Mago e Alice para a fazenda. Se os homens do
Inquisidor nos seguissem até aqui não teriam misericórdia com aqueles
que davam guarida a uma bruxa e um mago. Eu não queria pôr a minha
família em maior perigo do que o estritamente necessário, por isso decidi
deixar Alice e o Mago fora dos limites da fazenda. Havia uma velha
cabana de pastor pertencente à fazenda mais próxima da nossa. Eles
tinham passado a criar gado, por isso há anos que não era usada. Ajudei
Alice a levar o Mago lá para dentro e disse-lhe que esperasse ali. Feito
isso, atravessei o campo, encaminhando-me diretamente para a vedação
que delimitava o pátio da nossa fazenda.
Quando abri a porta da cozinha, a Mãe estava no seu lugar habitual no
canto perto da fogueira, sentada na sua cadeira de balanço. A cadeira
estava muito quieta e ela ficou simplesmente a olhar quando entrei. As
cortinas estavam já corridas, e no castiçal de latão ardia a vela de cera
de abelha.
— Sente-se, filho — convidou ela, a sua voz baixa e suave. — Puxe uma
cadeira e conte-me tudo. — Não parecia nem um pouco surpreendida
por me ver.
Já estava acostumado àquilo. A Mãe era solicitada com frequência
quando se deparavam problemas às parteiras num nascimento difícil e,
inexplicavelmente, ela sabia sempre quando alguém queria a sua ajuda
muito antes de a mensagem chegar à quinta. Ela pressentia estas
coisas, tal como pressentira a minha aproximação. Havia algo de
especial em relação à minha mãe. Possuía dons que alguém como o
Inquisidor haveria de querer destruir.
— Passou-se algo de mau, não passou? — referiu a Mãe. — E o que
aconteceu à sua mão?
— Não é nada, Mãe. Apenas uma queimadura. Alice tratou-a. Agora já
não dói mesmo nada.
A Mãe arqueou os sobrolhos à menção de Alice. —
Conte-me tudo, filho.
Anuí, sentindo um nó formar-se na garganta. Tentei três vezes antes de
conseguir formular a minha primeira frase.
— Eles quase queimaram Mr. Gregory, Mãe. O
Inquisidor apanhou-o em Priestown. Conseguimos escapar mas eles
virão atrás de nós, e o Mago não está nada bem. Precisa de ajuda.
Precisamos todos.
As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto ao admitir a mim
mesmo o que agora me estava a preocupar sobremaneira. A principal
razão de eu não ter querido ir à colina do farol fora o medo. Medo de que
eles me apanhassem e me queimassem também.
— Mas o que raio estava a fazer em Priestown? —
inquiriu a Mãe.
— O irmão de Mr. Gregory morreu e o funeral dele foi lá. Tivemos de ir.
— Não está me contando tudo — frisou a Mãe. —
Como foi que escapou do Inquisidor?
Não queria que a Mãe soubesse o que Alice fizera.
Sabem, a Mãe tentara uma vez ajudar Alice e eu não queria que
soubesse como ela havia acabado, virando-se para o escuro tal como o
Mago sempre temera.
Mas não tive outra alternativa. Contei-lhe a história toda. Quando
terminei, a Mãe suspirou profundamente.
— É mau, realmente mau — comentou. — O
Destruidor à solta não pressagia nada de bom para ninguém no Condado
— e uma jovem bruxa presa à vontade dele — bem, temo por todos nós.
Agora temos é de tirar o melhor partido. É tudo o que podemos fazer.
Vou só buscar o meu saco e ver o que posso fazer pelo pobre Mr.
Gregory.
— Obrigado, Mãe — disse-lhe, apercebendo-me de repente de que só
falara dos meus problemas. — Mas como estão as coisas aqui? Como
tem passado a bebê de Ellie? — indaguei.
A Mãe sorriu mas detectei uma pontinha de tristeza nos olhos dela.
— Oh, a bebê está ótima e Ellie e Jack mais felizes do que nunca. Mas
filho — disse-me, tocando-me delicadamente no braço. — Também
tenho más notícias para você. Tem a ver com o seu pai. Ele tem estado
muito doente. Levantei-me, mal podendo acreditar no que acabara de
ouvir. A expressão do rosto dela indicou-me que era grave.
— Sente-se, filho — pediu-me —, e ouça com atenção antes de começar
já a afligir-se. É mau mas podia ter sido bem pior. Começou por uma
forte constipação, depois atacou-lhe o peito, transformou-se em
pneumonia e quase o perdemos. Ele está em vias de melhorar agora,
espero, mas vai precisar de se agasalhar bem este Inverno.
Receio que já não possa voltar a trabalhar muito na fazenda. Jack terá
de se virar sem ele.
— Eu podia ajudar, Mãe.
— Não, filho, você tem o seu próprio trabalho para fazer. Com o
Destruidor em liberdade e o seu mestre enfraquecido, o Condado precisa
mais do que nunca de você. Olhe, deixe-me só ir primeiro lá acima dizer
ao seu pai que está aqui. E eu não lhe contaria nada sobre os problemas
que teve. Não queremos dar-lhe más notícias ou provocar-lhe choques
desagradáveis. Vai ficar só entre nós.
Esperei na cozinha mas passados dois minutos a Mãe desceu, trazendo o
seu saco.
— Bem, vai lá acima falar com o seu pai enquanto eu vou ajudar o seu
mestre. Ele vai ficar contente por estar de volta mas não o obrigue a
falar demais. Ele ainda está muito fraco.
O Pai estava recostado na cama com várias almofadas. Esboçou um
sorriso quando entrei no quarto. O
seu rosto estava magro e cansado e havia uma barba grisalha crescida
no queixo que o fazia parecer muito mais velho.
— Que bela surpresa, Tom. Sente-se — disse-me, indicando com a
cabeça uma cadeira ao lado da cama.
— Lamento — referi. — Se tivesse sabido que não estava bem, teria
vindo para casa mais cedo para o ver.
O Pai levantou a mão como se para dizer que não tinha importância.
Depois começou a tossir violentamente. Era suposto estar a melhorar
pelo que não me teria agradado nada ouvi-lo tossir quando estava
realmente doente. O quarto exalava a doença. O indício de algo que
nunca cheirávamos ao ar livre. Algo que só permanece nos quartos dos
doentes.
— Como vai o seu trabalho? — perguntou-me, quando finalmente parou
de tossir.
— Nada mal. Já estou me acostumando e prefiro-o à lavoura — referi,
empurrando tudo o que acontecera para o meu subconsciente.
— A agricultura é muito aborrecida para você, hein? — perguntou com
um tênue sorriso. — Mas olhe, nem sempre fui agricultor.
Anuí. Na sua juventude, o pai fora marinheiro. Sabia montes de histórias
dos lugares que visitara. Tinham sido histórias belas, cheias de cor e
aventura. Os seus olhos brilhavam sempre com uma expressão distante
quando recordava esses tempos. Queria voltar a ver neles a centelha de
vida.
— Sim, Pai — disse-lhe —, conte-me uma das suas histórias. Aquela da
baleia enorme.
Fez uma pausa momentânea, depois agarrou-me a mão, aproximando-
me dele. — Acho que há uma história que preciso de te contar, filho,
antes que seja tarde demais.
— Não diga tolices — retorqui, chocado com o rumo que a conversa
estava a tomar.
— Não, Tom, espero ainda ver outra Primavera e outro Verão mas não
creio que vá andar muito tempo aqui neste mundo. Tenho pensado
muito ultimamente e acho que chegou a altura de te contar aquilo que
sei. Não estava à espera de te ver aqui agora, e quem sabe quando
voltarei a te ver? — Fez uma pausa e depois disse: —
Tem a ver com a sua mãe — como nos conhecemos é isso.
— Ainda vai ver muitas primaveras, Pai — tentei animá-lo, mas fiquei
surpreendido. Apesar de todas as histórias maravilhosas do meu pai,
havia uma que ele nunca me contara mesmo: como conhecera a Mãe.
Víamos perfeitamente que não queria falar. Ou mudava de assunto ou
mandava-nos ir perguntar-lhe. Nunca o fizemos. Quando somos
crianças, há coisas que não enten-demos mas também não fazemos
perguntas. Sabemos que a nossa mãe e o nosso pai não nos querem
contar. Contudo, naquele dia foi diferente.
Abanou a cabeça penosamente, depois baixou-a, como se um enorme
fardo estivesse a fazer pressão sobre os seus ombros. Quando voltou a
se endireitar, o tênue sorriso voltara ao seu rosto.
— Olhe, não sei bem se ela irá me agradecer por te contar, por isso vai
ficar só entre nós. Também não vou contar aos seus irmãos, e peço-lhe
que fizesse o mesmo, filho. Mas atendendo ao seu tipo de trabalho, e
sendo você o sétimo filho de um sétimo filho e tudo isso, bem. .
Voltou a fazer uma pausa e fechou os olhos. Olhei para ele e senti uma
onda de tristeza ao perceber o quanto estava velho e tinha um ar
doente. Abriu de novo os olhos e começou a falar.
— Entramos num pequeno porto para nos abastecermos de água —
disse, começando a sua história como se necessitasse de avançar
rapidamente antes que se arrependesse. — Era um local ermo rodeado
de altas colinas rochosas, apenas com a casa do capitão do porto e
algumas pequenas cabanas de pescadores construídas em pedra branca.
Estávamos há semanas no mar e o comandante, sendo um homem bom,
disse que merecíamos uma folga. Então, deu-nos licença a todos para
irmos a terra.
Fizemos dois turnos e calhou-me o segundo, que começava muito depois
de escurecer.
«Éramos cerca de uma dúzia e quando chegamos finalmente à taberna
mais próxima, que ficava no extremo de uma aldeia a meio caminho de
uma montanha, estava quase a fechar. Bebemos então rapidamente,
emborcando bebidas alcoólicas fortes pelas gargantas abaixo como se
não houvesse amanhã, e depois trouxemos uma garrafa de vinho tinto
cada, para bebermos no regresso ao navio.
«Devo ter passado da conta porque acordei sozinho à beira de um
caminho íngreme que conduzia ao porto. O Sol começava já a subir mas
não estava excessivamente preocupado porque só partiríamos ao meio-
dia. Pus-me em pé e sacudi-me. Foi então que ouvi à distância alguém a
soluçar.
«Fiquei à escuta cerca de um minuto antes de tomar uma decisão. Quer
dizer, parecia exatamente uma mulher, mas como podia ter a certeza?
Há todo o tipo de histórias estranhas oriundas daquelas paragens sobre
criaturas que atacam os viajantes. Estava sozinho e não me importo de
te dizer que tive medo, no entanto se não tivesse ido ver quem estava a
chorar, nunca teria conhecido a sua mãe e você não estaria aqui neste
momento.
«Subi a colina íngreme pela beira da trilha e passei para o outro lado até
chegar mesmo à beira de um penhasco. Era um penhasco alto, com as
ondas a rebentar nas rochas lá em baixo, e vi o navio ancorado na baía e
era tão pequeno que parecia caber na palma da minha mão.
— Saía do penhasco uma rocha estreita como um dente de rato e estava
ali sentada uma mulher jovem encostada a ele, virada para o mar. Fora
presa àquela rocha com uma corrente. E não apenas isso, estava nua
como no dia em que viera ao mundo.
Ditas estas palavras, o Pai ruborizou-se tanto que o seu rosto ficou
quase vermelho-tomate.
— Ela começou então a tentar dizer-me algo. Algo que temia. Algo bem
pior do que estar apenas presa àquela rocha. Contudo falava na sua
própria língua e não entendi uma palavra — ainda não entendo, mas ela
lhe ensinou bastante bem e, sabe uma coisa, é o único com quem ela
teve essa preocupação. Ela é uma boa mãe mas nenhum dos seus
irmãos sabe sequer uma palavra de grego.
Concordei. Alguns dos meus irmãos não tinham ficado nada satisfeitos
com isso, particularmente Jack, e por vezes isso trouxera-me alguns
problemas.
— Não, ela não conseguia explicar por palavras o que era, porém havia
algo no mar que a aterrorizava. Não me ocorria o que pudesse ser, mas
depois o Sol começou a despontar acima do horizonte e ela gritou.
«Olhei para ela mas não queria acreditar no que estava a ver:
começaram a irromper minúsculas bolhas na sua pele até, em menos de
um minuto, ficou coberta de chagas. O que ela temia era o sol. Até hoje,
como provavelmente reparou, ela tem dificuldade em andar sequer ao
sol do Condado, mas a luz do Sol naquela terra era muito forte e sem
ajuda ela teria morrido.
Fez uma pausa para recuperar o fôlego, e pensei na Mãe. Sempre
soubera que ela evitava a luz do Sol — mas era algo a que já estava
acostumado.
— O que podia eu fazer? — continuou o Pai. —
Tive de pensar rapidamente, de modo que despi a camisa e cobri-a com
ela. Não era suficientemente grande, por isso não me restou outra
alternativa senão despir também as calças. Depois acocorei-me ali de
costas para o Sol, de modo a que a minha sombra incidisse nela,
protegendo-a da sua luz intensa.
«Fiquei naquela posição até muito depois do meio-dia, altura em que o
Sol finalmente desapareceu por detrás da colina. Nessa altura, o navio
partira sem mim e as minhas costas estavam em chaga da queimadura
solar, mas a sua mãe estava viva e as bolhas tinham já desaparecido.
Tentei libertá-la da corrente, mas quem quer que a amarrara conhecia
ainda mais de nós do que eu, que era marinheiro. Só quando finalmente
lhe tirei é que percebi de algo tão cruel que nem queria acreditar. Quer
dizer, ela é uma boa mulher, a sua mãe — mas como podia alguém ter
feito semelhante coisa, e logo a uma mulher?
O Pai calou-se e olhou para as mãos e pude ver que tremiam ante a
lembrança do que vira. Esperei quase um minuto e depois instei-o
delicadamente.
— O que era, Pai? — perguntei. — O que lhe tinham feito?
Quando ergueu o olhar, os seus olhos estavam marejados de lágrimas.
— Tinham pregado a mão esquerda dela à rocha — contou-me. — Era
um prego grosso com uma cabeça larga e não consegui pensar na
maneira de libertá-la sem a machucar ainda mais. Ela sorriu apenas e
soltou a mão, deixando o prego ainda na rocha. O sangue escorria para
o chão aos pés dela, mas levantou-se e encaminhou-se para mim como
se não fosse nada.
«Recuei um passo e quase caí do penhasco mas ela colocou a mão
direita no meu ombro para me segurar e depois beijamo-nos. Sendo um
marinheiro que visitava dúzias de portos por ano, já beijara algumas
mulheres, mas normalmente era depois de ter emborcado um odre de
cerveja e estar entorpecido, às vezes mesmo perto de perder a
consciência. Nunca beijara uma mulher sóbrio e certamente nunca em
pleno dia. Não sei explicar, mas percebi logo que era a mulher certa para
mim. A mulher com quem passaria o resto da minha vida.
Começou então a tossir e assim continuou por um longo tempo. Quando
terminou, ficara sem fôlego e foram necessários mais dois minutos antes
de voltar a falar.
Devia tê-lo deixado descansar, mas sabia que poderia não ter outra
oportunidade. A minha mente era um turbilhão.
Algumas coisas na história do Pai fizeram-me recordar o que o Mago
escrevera sobre Meg. Também ela estivera presa com uma corrente.
Quando libertada, beijara o Ma-go tal como a Mãe beijara o Pai. Fiquei
curioso em saber se a corrente seria de prata, mas não podia perguntar.
Uma parte de mim não queria saber a resposta. Se o Pai quisesse que eu
soubesse, teria me contado.
— O que aconteceu depois, Pai? Como conseguiu voltar para casa?
— A sua mãe tinha dinheiro, filho. Vivia sozinha numa casa grande
construída no meio de um jardim rodeado por um muro alto. Não estaria
a mais de quilômetro e meio do lugar onde a encontrara, por isso
voltamos para lá e fiquei. A mão dela sarou rapidamente, sem restar
sequer a mais pequena cicatriz, e ensinei-lhe a nossa língua. Ou, para
ser sincero, foi ela que me ensinou a ensiná-la. Eu apontava para os
objetos e dizia o seu nome em voz alta. Quando ela repetia o que eu
dissera, só tinha de acenar para dizer que estava certo. Uma vez era
suficiente para cada palavra. A sua mãe é inteligente, filho. Realmente
inteligente. É uma mulher muito perspicaz e nunca esquece nada.
«Seja como for, fiquei naquela casa durante semanas e estava bastante
feliz, à exceção de uma ou outra noite, em que as irmãs dela a vinham
visitar. Eram duas, mulheres altas de olhar cruel, e costumavam acender
uma fogueira na parte de trás da casa e ficar ali até de madrugada a
conversar com a sua mãe. Às vezes as três dançavam à roda da
fogueira, noutras noites jogavam os dados.
Mas sempre que elas vinham havia discussões e foram piorando
gradualmente.
«Sabia que tinha algo a ver comigo porque as irmãs dela me deitavam
olhares fuzilantes através da janela, com a raiva nos olhos e a sua mãe
fazia-me sinal para que voltasse para o quarto. Não, elas não gostavam
muito de mim e foi essa a razão principal, creio, por que abandonamos
aquela casa e voltamos para o Condado.
«Eu partira como assalariado, um marinheiro vulgar, mas regressei
como um cavalheiro. A sua mãe pagou a nossa passagem e tínhamos
uma cabina só para nós.
Depois comprou esta fazenda e nos casamos na igrejinha em Mellor,
onde os meus pais estão sepultados. A sua mãe não acredita naquilo em
que nós acreditamos mas fê-lo por mim, para que os vizinhos não
falassem, e antes do final do ano nasceu o seu irmão Jack. Tive uma boa
vida, filho, e a melhor parte dela começou no dia em que conheci a sua
mãe. Estou a contar-te isto porque quero que compreenda. Tendo
consciência ou não, de que um dia, quando eu partir, ela voltará para a
sua terra, para o lugar onde pertence.
A minha boca abriu-se de espanto quando o Pai disse aquilo.
— E então a família dela? — inquiri. — Certamente não iria querer
abandonar os netos?
O Pai abanou a cabeça, pesaroso.
— Não creio que ela tenha alguma escolha, filho.
Uma vez ela me disse que tem o que chama «um assunto pendente» lá.
Não sei o que é e ela nunca me contou por que estava presa àquela
rocha para morrer. Ela tem o seu próprio mundo e a sua própria vida e,
quando chegar a altura voltará para ela, por isso não lhe dificulte a vida.
Olhe para mim, rapaz. O que vê?
Não soube o que dizer.
— O que vê é um velho que já não vai durar muito.
Eu vejo a verdade de cada vez que me olho ao espelho, por isso não
tente convencer-me de que estou enganado.
Quanto à sua mãe, ela ainda está cheia de vida. Pode não ser a jovem
que foi em tempos, mas ainda lhe restam anos de vida boa. Se não fosse
o que fiz naquele dia, a sua mãe não teria olhado duas vezes para mim.
Ela merece a liberdade, por isso deixe-a ir com um sorriso. Fará isso,
filho?
Assenti com a cabeça e depois fiquei com ele até se acalmar e acabar
por adormecer.
CAPÍTULO 15
A CORRENTE DE PRATA
Quando vim para baixo, a Mãe estava já de volta. Queria muito
perguntar-lhe como estava o Mago e o que lhe fizera mas não tive
oportunidade. Espreitando pela janela da cozinha, vi Jack atravessar o
pátio com Ellie, a bebê deles aninhada nos braços.
— Fiz o que podia pelo seu mestre, filho — murmurou a Mãe mesmo
antes de Jack abrir a porta. — Falaremos depois da ceia.
Por um momento Jack ficou estático à entrada, a olhar para mim, um
misto de expressões a percorrer-lhe o rosto. Depois sorriu e avançou
para assentar o braço nos meus ombros.
— É bom te ver, Tom — disse.
— Passei apenas por aqui no regresso a Chipenden
— respondi-lhe. — Lembrei-me de aparecer para ver como estavam
todos. Teria vindo mais cedo se soubesse que o Pai estava tão doente..
— Ele agora está se recuperando — referiu Jack.
— Isso é o que importa.
— Oh, sim, Tom, ele agora está muito melhor —
concordou Ellie. — Dentro de algumas semanas ficará bom.
Reparei que a expressão de tristeza no rosto da Mãe dizia o contrário. A
verdade era que o pai teria muita sorte se chegasse à Primavera. Ela
sabia-o e eu também.
À ceia mostraram-se todos muito comedidos, até a Mãe. Não consegui
perceber se era a minha presença ali ou a doença do Pai que deixava
todos tão calados, mas durante a refeição Jack pouco mais fez do que
inclinar a cabeça na minha direção, e quando falou foi para dizer algo
sarcástico.
— Está muito pálido, Tom — referiu. — Deve ser de tanto lidar com o
escuro. Não te faz nada bem.
— Não seja cruel, Jack! — admoestou Ellie. —
Diga-me, o que acha da nossa Mary? Batizamo-la o mês passado.
Cresceu bastante desde a última vez que a viu, não cresceu?
Sorri e anuí. Estava espantado com o quanto a bebê crescera. Em vez de
uma coisinha minúscula de rosto vermelho e franzido, estava gorducha e
redonda com membros grossos e uma expressão viva, alerta. Parecia
querer sair do colo de Ellie e começar a gatinhar pelo chão da cozinha.
Eu não estava com muita fome, mas assim que a Mãe colocou um
montão de guisado a fumegar no meu prato, ataquei de imediato.
Assim que terminamos, ela sorriu a Jack e Ellie.
— Tenho um assunto a conversar com Tom —
disse ela. — Por que não vão se deitar mais cedo esta noite? E não se
preocupe com a louça, Ellie. Eu trato disso.
Havia ainda um bocado de guisado na travessa e vi os olhos de Jack
brilharem na sua direção e depois na da Mãe. Mas Ellie levantou-se e
Jack seguiu-a relutante. Deu para perceber que não estava nada
satisfeito.
— Acho que primeiro vou levar os cães até à vedação limítrofe — disse.
— Andou por lá uma raposa a noite passada.
Assim que eles saíram da sala, saiu-me atrapalhadamente a pergunta
que tanto ansiava fazer.
— Como é que ele está, Mãe? Mr. Gregory vai ficar bom?
— Fiz o que podia por ele — respondeu a Mãe. —
Os ferimentos na cabeça acabam por resolver-se de uma maneira ou de
outra. Só o tempo o dirá. Acho que quanto mais depressa o levar para
Chipenden melhor. Ele podia ficar aqui, mas tenho de respeitar a
vontade de Jack e Ellie.
Anuí e baixei os olhos para a mesa, tristonho.
— Consegue comer um segundo prato, Tom? —
inquiriu a Mãe. Não foi preciso perguntarem-me duas vezes e a Mãe
sorriu enquanto eu enfardava. — Acho que vou ver como está o seu pai
— disse.
Pouco depois veio para baixo.
— Está ótimo — anunciou. — Acabou de adormecer novamente.
Sentou-se à minha frente a ver-me comer, com o seu rosto sério.
— As feridas que vi nos dedos de Alice, foi de onde o Destruidor lhe tirou
o sangue?
Acenei com a cabeça.
— Confia nela agora, depois de tudo o que aconteceu? — perguntou-me
de repente.
Encolhi os ombros.
— Não sei o que fazer. Ela atravessou para o escuro, mas sem ela o
Mago e muitos outros inocentes teriam morrido.
A Mãe suspirou.
— É um assunto desagradável e ainda não sei se tenho a resposta
concreta. Quem me dera poder ir com você e ajudar o seu mestre a
voltar para Chipenden, porque a viagem não será fácil, mas não posso
abandonar o seu pai. Sem grandes cuidados ele poderia ter uma recaída
e não quero correr o risco de que isso aconteça.
Limpei o prato com um pedaço de pão, depois afastei a cadeira.
— Acho melhor ir andando, Mãe. Quanto mais tempo aqui permanecer,
maior perigo os estarei a expor.
Agora é impossível o Inquisidor não nos perseguir. E com o Destruidor à
solta e tendo-se alimentado do sangue de Alice, não posso arriscar-me a
atraí-lo aqui.
— Não vá já — pediu a Mãe. — Vou lhe cortar um pouco de presunto e
pão para comer no caminho.
— Obrigado, Mãe.
Pôs-se a cortar o pão enquanto eu observava, desejando poder ficar
mais tempo. Seria bom estar de novo em casa, nem que fosse só por
uma noite.
— Tom, nas suas lições sobre bruxas, Mr. Gregory falou-te daquelas que
usam familiares?
Anuí. Os diferentes tipos de bruxas adquiriam os seus poderes de
maneiras diferentes. Algumas usavam a magia dos ossos, outras a
magia do sangue; recentemente ele falara-me de um terceiro tipo ainda
mais perigoso.
Usavam o que se chamava «magia de familiar». Davam o seu sangue a
uma criatura — podia ser um gato, um sapo ou mesmo um morcego. Em
troca, ele tornava-se os seus olhos e ouvidos e fazia-lhes todas as
vontades. Às vezes isto tornava-se tão poderoso que elas acabavam por
se submeter completamente ao seu poder e tinham pouca ou nenhuma
vontade própria.
— Bem, é o que Alice julga que está fazendo neste momento, Tom — a
usar magia de familiar. Estabeleceu um pacto com aquela criatura e está
a usá-la para obter o que pretende. Mas está a entrar num jogo
perigoso, filho.
Se ela não tiver cuidado, acabará por pertencer-lhe e nunca mais
poderás voltar a confiar nela. Pelo menos enquanto o Destruidor estiver
vivo.
— Mr. Gregory disse que ele estava a ficar mais forte, Mãe. Que em
breve poderia assumir a sua forma física original. Eu o vi lá em baixo nas
catacumbas —
mudou para a forma do Mago e tentou enganar-me. Por isso é óbvio que
está a fortalecer-se lá em baixo.
— Isso é bem verdade, mas o que acabou de acontecer tê-lo-á retardado
um pouco. Sabe, o Destruidor terá gasto muita energia para se libertar
de um lugar onde esteve preso tanto tempo. Assim, por agora estará
confuso e perdido, sem força suficiente para assumir sequer uma forma
física. Provavelmente nem conseguirá recuperar o pleno vigor enquanto
o pacto de sangue com Alice não estiver concluído.
— Ele consegue ver através dos olhos de Alice? —
sondei-a.
A idéia era aterradora. Preparava-me para partir com Alice e atravessar
a escuridão. Recordei a sensação do peso do Destruidor na minha cabeça
e nos meus ombros, a expectativa de estar prestes a ser prensado e que
chegara o meu último momento. Talvez fosse preferível esperar até ser
dia. .
— Não, ainda não, filho. Ela deu-lhe o seu sangue e a liberdade. Em
troca terá prometido obedecer-lhe três vezes, mas em cada uma delas
irá querer mais sangue seu.
Depois de o voltar a alimentar nas fogueiras de Wortham, ela terá ficado
enfraquecida e cada vez lhe será mais difícil resistir. Se ela o tornar a
alimentar, ele conseguirá ver atrás dos seus olhos. Por último, na
derradeira dose, ela pertencer-lhe-á e ele terá forças para regressar à
sua verdadeira forma. E então, não haverá nada que se possa fazer para
salvar Alice — disse a Mãe.
— Por conseguinte, onde quer que esteja, ele andará à procura de Alice?
— Andará, filho, mas por pouco tempo, a menos que ela o chame a si, as
chances de encontrá-la serão muito remotas. Especialmente se ela
estiver em movimento. Se ficar num lugar por qualquer período de
tempo, o Destruidor terá mais chance de encontrá-la. No entanto, todas
as noites irá ficar um pouco mais forte, especialmente se encontrar mais
alguma vítima. Qualquer tipo de sangue o ajudaria, animal ou humano.
Seria fácil aterrorizar alguém sozinho no escuro. Fácil dobrá-lo à sua
vontade. Não tardará a encontrar Alice, e depois disso estará sempre em
algum lugar perto dela, exceto durante as horas de luz do dia, em que
provavelmente se manterá debaixo do solo. As criaturas do escuro
raramente se arriscam a sair quando é dia. Contudo com o Destruidor à
solta, a adquirir força, todos no Condado deveriam ter medo quando a
noite cai.
— Como foi que tudo começou, Mãe? Mr. Gregory contou-me que o rei
Heys da Gente Pequena teve de sacrificar os filhos ao Destruidor e que
de alguma forma o último filho conseguiu aprisioná-lo.
— É uma história triste e terrível — disse a Mãe.
— O que aconteceu aos filhos do rei é impensável. Mas acho melhor
saber para perceber exatamente o que vai enfrentar. O Destruidor vivia
nos túmulos em Heysham, no meio dos ossos dos mortos. Primeiro,
levou o filho mais velho para lá, a fim de usá-lo como seu joguete,
roubando-lhe os pensamentos e os sonhos da mente até restar muito
pouco para além do infortúnio e o mais profundo desespero. E assim
continuou filho após filho.
Pense no que o pai deles não terá sofrido! Era rei e, no entanto, não
podia fazer nada para ajudá-los.
A Mãe suspirou, pesarosa. — Nenhum dos filhos de Heys sobreviveu
muito mais de um mês a semelhante tormento. Três atiraram-se dos
penhascos próximos, despedaçando-se nas rochas lá em baixo. Dois
recusaram-se a comer e definharam. O sexto atirou-se ao mar e nadou
até as forças lhe faltarem e afogar-se — o seu corpo deu à costa, trazido
pelas marés da Primavera. Os seis jazem nas sepulturas de pedra
esculpidas na rocha. Uma outra sepultura contém o corpo do pai, que
morreu pouco depois dos seis filhos, com o coração destroçado.
Portanto, apenas Naze, o último dos filhos dele, o sétimo filho, lhe
sobreviveu.
«O rei também era um sétimo filho, por isso Naze era como você e
possuía o dom. Era pequeno, mesmo pelos padrões do seu próprio povo,
e o sangue antigo corria com força nas suas veias. Conseguiu de alguma
forma aprisionar o Destruidor mas ninguém sabe como, nem sequer o
seu mestre. Depois, a criatura matou Naze ali mesmo, prensando-o nas
pedras. Então, passados anos, porque faziam recordar ao Destruidor a
forma como fora enganado, partiu os ossos em pedacinhos e empurrou-
os pelo Portão de Prata para que finalmente a gente de Naze lhe pudesse
fazer um funeral decente. Os seus restos mortais repousam com os
outros nas sepulturas de pedra em Heysham, que recebeu o nome do
antigo rei.
Durante alguns momentos permanecemos em silêncio. Era uma história
terrível.
— Nesse caso, como podemos acabar com ele, agora que está
novamente em liberdade, Mãe? — inquiri, interrompendo o silêncio. —
Como podemos matá-lo?
— Deixa isso com Mr. Gregory, Tom. Ajude-o apenas a regressar a
Chipenden e a ficar novamente forte.
Ele decidirá o que fazer em seguida. A maneira mais fácil seria tornar a
aprisioná-lo, mas mesmo assim conseguiria praticar o mal como tem
feito cada vez mais nos últimos anos. Se já conseguiu assumir a forma
física, lá em baixo nas catacumbas, então conseguirá fazê-lo de novo, e
muito rapidamente, enquanto a sua força aumenta, retomaria a
configuração natural, corrompendo Priestown e todo o Condado. Por
isso, apesar de ficarmos mais seguros com ele aprisionado, não é uma
solução definitiva. O seu mestre precisa de descobrir como matá-lo, para
o bem de todos nós.
— E se ele não recuperar?
— Vamos esperar que consiga, porque o que é preciso fazer ultrapassa
em muito o que você provavelmente estará em condições de enfrentar
neste momento. Sabe, filho, onde quer que Alice vá, ele irá usá-la para
fazer mal aos outros, por isso o seu mestre não terá outra alternativa
senão colocá-la num poço.
A Mãe pareceu perturbada, depois, repentinamente fez uma pausa e
levou a mão à testa, fechando os olhos com força como se tivesse uma
súbita dor de cabeça horrível. — Tudo bem, Mãe? — perguntei, cheio de
ansiedade. Ela anuiu, mas esboçou um sorriso fraco. — Olhe, filho,
sente-se um pouco. Preciso escrever uma carta para levar contigo.
— Uma carta? Para quem?
— Falaremos mais depois de eu terminar.
Sentei-me numa cadeira junto da lareira, a olhar fixamente para as
brasas, enquanto a Mãe escrevia à mesa.
Não parei de matutar no que ela estaria a escrever. Quando terminou,
sentou-se na cadeira de balanço e entregou-me o envelope. Estava
fechado e tinha escrito:
“Para o meu filho mais novo, Thomas Ward”
Fiquei surpreendido. Imaginara que fosse uma carta para o Mago ler
quando estivesse melhor.
— Por que está me escrevendo, Mãe? Por que não me diz já o que tem a
dizer?
— Porque cada pequeno gesto nosso muda as coisas, filho — respondeu
a Mãe, apoiando delicadamente a mão no meu antebraço esquerdo. —
Ver o futuro é perigoso e comunicar o que se vê o é ainda mais. O seu
mestre tem de seguir o seu próprio caminho. Tem de encontrar o seu
próprio rumo. Cada um de nós possui livre-arbítrio. Mas temos pela
frente uma sombra e preciso de fazer tudo o que estiver ao meu alcance
para evitar que o pior possa acontecer. Só devera abrir a carta numa
altura de grande necessidade, em que o futuro pareça sem esperança.
Confie nos seus instintos. Saberá quando esse momento tiver chegado —
conquanto espere, para o bem de todos nós, que isso nunca venha a
acontecer. Até lá, guarde-a bem.
Obedientemente, meti-a dentro do casaco.
— Agora venha comigo — disse a Mãe. — Tenho mais uma coisa para
você.
Pelo tom de voz e modos estranhos dela, calculei onde íamos. E acertei.
Pegando no castiçal de latão, levou-me lá acima ao seu quarto
particular, a divisão trancada mesmo por debaixo do sótão. Hoje em dia
ninguém ia àquele espaço senão a Mãe. Nem sequer o Pai. Eu estivera lá
com ela umas duas vezes em criança, muito embora mal me conseguisse
lembrar dele agora.
Tirando uma chave do bolso, abriu a porta e eu entrei atrás dela. A
divisão estava cheia de caixas e arcas. Sabia que ela vinha aqui uma vez
por mês. Mas não imaginava o que fazia.
A Mãe entrou na divisão e parou diante da arca grande mais próxima da
janela. Depois olhou duramente para mim até me sentir um pouco
desconfortável. Ela era minha mãe e eu adorava-a, mas não gostaria de
tê-la por inimiga.
— Já é aprendiz de Mr. Gregory há quase seis meses, por isso já teve
tempo suficiente de ver as coisas por si próprio — referiu ela. — E agora
o escuro reparou em você, e irá tentar te perseguir. Por isso corre
perigo, filho, e durante algum tempo esse perigo irá continuar a crescer.
Por isso lembre-se do seguinte. Você também está a crescer. Está a
crescer rapidamente. A cada sopro, a cada batimento do seu coração
torna-se mais forte, mais corajoso, melhor. Há anos que John Gregory
luta contra o escuro, a preparar-te o caminho. Porque, filho, quando for
um homem será a vez de o escuro ter medo, porque nessa altura você
será o caçador, não a caça. Foi para isso que te trouxe a este mundo.
Sorriu-me pela primeira vez desde que entrara naquele compartimento,
mas não deixou de ser um sorriso triste. Depois, levantando a tampa da
arca, ergueu a vela para que eu pudesse ver o que estava lá dentro.
Uma comprida corrente de prata com elos magníficos brilhava
intensamente à luz da vela.
— Tire-a — ordenou a Mãe. — Não posso lhe tocar. Estremeci ante as
suas palavras porque algo me dizia que esta era a mesma corrente que
prendera a Mãe à rocha. O Pai não mencionara que era de prata, uma
omissão vital, porque se usava uma corrente de prata para aprisionar
uma bruxa. Era um instrumento importante no ofício de mago. Queria
com isto dizer que a Mãe era uma bruxa?
Talvez uma bruxa lâmia como Meg? A corrente de prata, a forma como
ela beijara o meu pai — parecia-me tudo muito familiar.
Levantei a corrente e tomei-lhe o peso nas mãos.
Era fina e leve, de qualidade muito superior à corrente do Mago, com
muito mais prata na liga.
Como se adivinhasse o que me ia no pensamento, a Mãe disse:
— Sei que o seu pai te contou como nos conhecemos. Mas lembre-se
sempre disto, filho. Nenhum de nós é completamente bom ou
completamente mau — estamos todos em algum lugar no meio — mas
chega uma altura na nossa vida em que damos um passo importante, ou
na direção da luz ou na direção do escuro. Por vezes é uma decisão que
tomamos dentro da nossa cabeça. Ou talvez seja por causa de uma
pessoa importante que conhecemos. Em virtude do que o seu pai fez por
mim, avancei na direção certa e é por isso que me encontro aqui hoje.
Agora aquela corrente lhe pertence. Por isso guarde-a bem até precisar
dela.
Enrolei a corrente à volta do pulso, depois guardei-a no bolso interior do
casaco, junto da carta. Feito isso, a Mãe fechou a tampa e segui-a até lá
fora, esperando que ela trancasse a porta.
Lá em baixo, peguei no embrulho de sanduíches e preparei-me para
partir.
— Antes de ir embora, mostre-me essa mão! Estendi-lhe e a Mãe
desamarrou cuidadosamente os fios e retirou as folhas. A queimadura
parecia estar a sarar rapidamente.
— Aquela jovem sabe o que faz — disse. — Tenho de lhe dar crédito.
Deixe-a ao ar agora e ficará completamente boa dentro de alguns dias.
A Mãe abraçou-me e, depois de lhe agradecer mais uma vez, abri a
porta de trás e saí para a noite. Ia a meio caminho do campo, dirigindo-
me para a vedação limítrofe, quando ouvi um cão ladrar e vi uma figura
encaminhar-se para mim na escuridão.
Era Jack, e quando se aproximou, vi à luz das estrelas que tinha o rosto
torcido da raiva.
— Acha que sou estúpido? — berrou. — Acha?
Não foram precisos nem cinco minutos para os cães darem com eles!
Olhei para os cães, que estavam ambos encolhidos atrás das pernas de
Jack. Eram cães de trabalho e nada meigos, mas conheciam-me e
esperara alguma espécie de saudação. Algo os deixara muito
assustados.
— Bem pode olhar — disse Jack. — Aquela garota bufou-lhes e cuspiu-
lhes e eles fugiram como se o próprio Diabo lhes estivesse a torcer as
caudas. Quando a mandei embora, ela teve o descaramento de me dizer
que estava nas terras de outra pessoa e que isso não me dizia respeito.
— Mr. Gregory está doente, Jack. Não tive outra alternativa senão
aparecer e pedir ajuda à Mãe. Mantive-o e a Alice fora dos limites da
fazenda. Sei o que sente, por isso arranjei a melhor solução possível.
— Aposto que sim. Sou um homem adulto mas a Mãe mandou-me ir
para a cama como se fosse uma criança. Como acha que me sinto? E em
frente da minha própria mulher também. Às vezes pergunto-me se a
fazenda alguma vez virá a me pertencer.
Eu próprio estava furioso nesta altura e ocorreu-me lhe dizer que
provavelmente sim e muito mais cedo do que ele julgava. Tudo seria
dele quando o Pai morresse e a Mãe voltasse para a sua terra. Apesar
disso mordi os lábios e não disse nada.
— Lamento Jack, mas tenho de ir andando — disse-lhe, partindo na
direção da cabana onde deixara Alice e o Mago. Após ter dado cerca de
uma dúzia de passos voltei-me, porém Jack já me tinha virado as costas
e seguia para casa.
Partimos sem trocar uma palavra. Tinha muito em que pensar e acho
que Alice o sabia. O Mago só olhava para o vazio mas parecia já
conseguir andar melhor e deixara de precisar de se apoiar em nós.
Cerca de uma hora antes de o Sol nascer, fui o primeiro a romper o
silêncio.
— Tem fome? — inquiri. — A Mãe preparou-nos o desjejum.
Alice anuiu, sentamo-nos num talude verdejante e atacamos a comida.
Ofereci um pouco ao Mago, mas ele repeliu-me o braço com rudeza.
Passados alguns instantes afastou-se um pouco e sentou-se nos degraus
de uma vedação, como se não quisesse estar perto de nós. Ou pelo
menos de Alice.
— Ele parece mais forte. O que lhe fez a Mãe? —
quis saber.
— Ela molhou-lhe a testa e não parou de observar os olhos dele. Depois,
deu-lhe de beber uma poção. Mantive-me distante e ela nem sequer
olhou na minha direção.
— Isso é porque ela sabe o que fez. Tive de lhe contar. Não posso mentir
à Mãe.
— Fiz o que fiz porque era o melhor. Retribuí-lhe, sim, e salvei toda
aquela gente. Fiz também por você, Tom. Para poder levar o Velho
Gregory com você e continuar os seus estudos. Era isso que queria, não
era? Não tomei a atitude certa?
Não respondi. Alice impedira o Inquisidor de queimar pessoas inocentes.
Salvara muitas vidas, incluindo a do Mago. Ela fizera todas essas coisas
e eram tudo coisas boas. Não, não se tratava do que ela fizera, era antes
a maneira como o fizera. Eu queria ajudá-la mas não sabia como. Alice
pertencia agora ao escuro, e assim que o Ma-go estivesse
suficientemente forte haveria de querer pô-la num poço. Ela sabia-o e eu
também.
CAPÍTULO 16
UM POÇO PARA ALICE
Finalmente, com o Sol mais uma vez a pôr-se a ocidente, as extensões
rochosas surgiram logo em frente e não tardamos a subir por entre as
árvores em direção à casa do Mago, seguindo o desvio que permitia não
passar pela aldeia de Chipenden.
Parei a pouca distância do portão da frente. O Mago estaria cerca de
vinte passos mais atrás, a olhar para a casa como se a visse pela
primeira vez.
Virei-me para Alice.
— É melhor ir embora — disse-lhe.
Alice anuiu. Havia que contar com o demônio de estimação do Mago.
Guardava a casa e os terrenos. Mal ela desse um passo para lá do portão
correria enorme perigo.
— Onde vai ficar? — inquiri.
— Não se preocupe comigo. E também não comece a pensar que
pertenço ao Destruidor. Não sou estúpida. Tenho de chamá-lo mais duas
vezes antes de isso acontecer, não tenho? O tempo ainda não arrefeceu
assim tanto, por isso ficarei alguns dias por perto. Talvez no que resta
da casa de Lizzie. Depois, o mais provável é seguir para Pendle, a leste.
Que mais posso fazer?
Alice ainda tinha família em Pendle, mas eram bruxas. Apesar do que
afirmara, Alice pertencia agora ao escuro. Era onde se sentiria mais
confortável.
Sem acrescentar mais nada, virou-se e afastou-se na direção das
sombras. Triste, observei-a até desaparecer de vista, depois virei-me
também e abri o portão.
Destranquei a porta da frente e o Mago seguiu-me até lá dentro. Fui na
frente até à cozinha, onde o fogo ardia na grelha e a mesa estava posta
para dois. O demônio estivera à nossa espera. Foi uma ceia leve, apenas
duas tigelas de sopa de ervilha e fatias grossas de pão. Eu estava com
fome depois da nossa longa caminhada, de modo que ataquei logo.
Durante um tempo, o Mago ficou apenas ali sentado a olhar para a tigela
de sopa quente fumegante, depois pegou numa fatia de pão e fez sopas
com ela.
— Tem sido duro, rapaz. E é bom estar em casa —
disse. Fiquei tão surpreendido por ele estar novamente a falar que quase
caí da cadeira.
— Sente-se melhor? — inquiri.
— Sim, rapaz, melhor do que estava. Com uma boa noite de sono ficarei
fino. A sua mãe é uma boa mulher.
Ninguém no Condado conhece melhor as suas poções.
— Julguei que não se lembrasse de nada — referi.
— Parecia distante. Quase como se fosse sonâmbulo.
— E era mesmo o que parecia, rapaz. Eu conseguia ver e ouvir tudo mas
não parecia real. Era tal e qual como se estivesse num pesadelo. E não
conseguia falar. Não conseguia encontrar as palavras. Só quando fiquei
lá fora a olhar para a casa é que me reencontrei. Ainda tem a chave do
Portão de Prata?
Surpreso, levei a mão ao bolso esquerdo das calças e tirei a chave.
Estendi-a ao Mago.
— Ela causou muitos problemas — disse ele, virando-a na mão. — Mas
agiu bem, apesar de tudo.
Sorri, sentindo-me mais feliz do que nos últimos dias, mas quando o
meu mestre tornou a falar, a sua voz era áspera.
— Onde está a garota? — perguntou bruscamente.
— Provavelmente não muito longe — admiti.
— Bem, trataremos dela mais tarde.
Durante toda a ceia pensei em Alice. O que arranja-ria para comer?
Bem, ela tinha jeito para apanhar coelhos, por isso fome não passaria —
sempre era menos um problema. No entanto, na Primavera, depois de
Lizzie dos Ossos ter raptado uma criança, os homens da aldeia haviam
deitado fogo à casa dela e as ruínas não proporcionariam grande abrigo
numa noite de Outono. Mesmo assim, como dissera Alice, o tempo ainda
não esfriara. Não, a sua maior ameaça provinha do Mago.
Acabou por ser a última noite amena do ano: na manhã
seguinte houve um nítido esfriamento do ar. O
Mago e eu sentamo-nos no banco a olhar para as extensões rochosas, o
vento a aumentar de intensidade. Havia o prenuncio da queda das
folhas. O Verão chegara mesmo ao fim. Tinha já comigo o livro de
apontamentos, mas o Mago não parecia ter pressa de começar a lição.
Não recuperara ainda do seu ordálio com o Inquisidor. Durante o
desjejum falara pouco e passara a maior parte do tempo a olhar para o
ar, como se perdido em pensamentos.
Acabei por ser eu a quebrar o silêncio. — O que pretende o Destruidor,
agora que se encontra livre? O que irá fazer ao Condado?
— Isso é fácil de responder — disse o Mago. —
Acima de tudo, quer tornar-se maior e mais poderoso.
Nessa altura não haverá limite para o terror que causará.
Beberá sangue e lerá os pensamentos até os seus poderes serem
absolutos. Verá através dos olhos das pessoas que conseguem andar de
dia enquanto ele é forçado a esconder-se na escuridão em algum lugar
no subsolo. Se antes controlava apenas os padres na catedral e estendia
a sua influência em Priestown, agora nenhum lugar do Condado estará a
salvo.
«Caster pode muito bem vir a ser a próxima a sofrer. Mas primeiro
talvez o Destruidor escolha simplesmente um lugarejo pequeno e prense
todos até à morte como aviso, apenas para mostrar do que é capaz! Foi
assim que controlou Heys e os reis que governaram antes dele. A
desobediência significava que toda a comunidade seria prensada.
— A Mãe disse-me que ele irá andar à procura de Alice — referi, infeliz.
— É verdade, rapaz! A tola da sua amiga Alice.
Precisa dela para recuperar as forças. Por duas vezes ela deu-lhe
sangue, por isso, enquanto ela estiver em liberdade se encontrará a um
passo de ficar totalmente sob o controle dele. Se não houver nada que o
impeça, ela se tornará parte do Destruidor e quase não lhe restará
vontade própria. Conseguiria influenciá-la, usá-la com a mesma
facilidade com que dobro o meu dedo mindinho. O Destruidor saberá
fazer tudo o que puder para se voltar a alimentar dela. Andará à sua
procura neste momento.
— Mas ela é forte — protestei. — E, de qualquer forma, julguei que o
Destruidor tinha medo de mulheres.
Ambos o encontramos nas catacumbas quando eu ia tentar salvar o
senhor. Ele mudara para a sua forma a fim de me enganar.
— Afinal os rumores são verdadeiros — ele aprendeu a assumir uma
forma física lá em baixo.
— Sim, mas quando Alice lhe cuspiu, ele fugiu.
Talvez ela consiga continuar a fazê-lo.
— Sim, o Destruidor tem mais dificuldade em controlar uma mulher do
que um homem. As mulheres deixam-no nervoso porque são criaturas
voluntariosas e com frequência imprevisíveis. Mas assim que bebe o
sangue de uma mulher tudo isso muda. Agora andará atrás de Alice e
não a deixará em paz. Insinuar-se-lhe-á nos sonhos e lhe mostrará as
coisas que ela pode ter — as coisas que podem ser dela, é só pedir —
até que, por fim ela julgará que existe a necessidade de voltar a chamá-
lo. Sem dúvida aquele meu primo estava sob o controle do Destruidor.
Caso contrário, nunca me trairia daquela maneira.
O Mago coçou a barba. — Sim, o Destruidor irá crescer cada vez mais e
haverá muito pouco que o impeça de fazer mal aos outros até dar cabo
de tudo no Condado.
Foi o que aconteceu à Gente Pequena até serem finalmente necessárias
medidas desesperadas. Precisamos saber exatamente como o Destruidor
foi aprisionado; melhor ainda, como pode ser morto. É por isso que
temos mesmo de ir a Heysham. Há lá uma cripta grande, um monte
arredondado que cobre um monumento tumular construído com pedras e
os corpos de Heys e dos filhos estão numas sepulturas de pedra nesse
lugar.
«Assim que eu estiver suficientemente forte, é onde vamos. Como sabe,
aqueles que sofrem mortes violentas às vezes têm dificuldade em deixar
este mundo. Por conseguinte, iremos visitar essas sepulturas. Se
tivermos sorte, pode ser que ainda lá esteja um fantasma ou dois.
Talvez mesmo o fantasma de Naze, que efetuou o aprisiona-mento. Essa
pode muito bem ser a nossa última esperança porque, para ser sincero,
rapaz, de momento não faço idéia de como vamos pôr termo a isto.
Ditas aquelas palavras, o Mago baixou a cabeça e pareceu realmente
muito triste e preocupado. Nunca o vira tão abatido.
— Já foi lá? — indaguei, curioso em saber por que razão os fantasmas
não tinham levado uma reprimenda e recebido ordem de se ir.
— Sim, rapaz, apenas uma vez. Fui lá quando era aprendiz. O meu
mestre teve de ir lá para enfrentar um espectro marinho incômodo que
andava a assolar a costa.
Feito isso, na colina por cima dos penhascos, passamos pelas sepulturas
e percebi que estava ali algo porque aquilo que fora uma noite quente de
Verão tornou-se subitamente muito fria. Como o meu mestre
continuasse a caminhar, perguntei-lhe por que não parava e fazia algo.
— «Deixe-os lá», respondeu-me. «Não incomodam ninguém. Além disso,
alguns fantasmas ficam nesta terra porque têm uma tarefa a realizar.
Por isso o melhor é deixá-los sossegados.» Não soube o que ele queria
dizer, mas, como sempre, tinha razão.
Tentei imaginar o Mago como aprendiz. Era muito mais velho do que eu
porque primeiro andara a ser preparado para o sacerdócio. Perguntei-me
como teria sido o seu próprio mestre, um homem que aceitara um
aprendiz tão velho.
— Seja como for — referiu o Mago —, iremos a Heysham muito em
breve, mas antes que isso aconteça, há uma outra coisa que tem de ser
feita. Sabe o que é?
Estremeci. Sabia o que ele ia dizer.
— Temos de tratar da garota, por isso precisamos saber onde está
escondida. O meu palpite iria para as ruí-
nas da casa de Lizzie. O que te parece? — perguntou o Mago.
Ia dizer-lhe que discordava, mas ele olhou-me com dureza até eu ser
obrigado a baixar o olhar para o chão.
Não podia lhe mentir.
— Provavelmente é onde estará — admiti.
— Bem, rapaz, ela não pode ficar ali muito mais tempo. É um perigo
para todos. Terá de ir para um poço.
E quanto mais depressa, melhor. Por isso é bom que comece a escavar. .
Olhei para ele, mal podendo acreditar no que ouvia.
— Olhe, rapaz, é difícil, mas tem de ser feito. A nossa obrigação é tornar
o Condado seguro para os outros e a garota será sempre uma ameaça.
— Mas isso não é justo! — referi. — Ela salvou-lhe a vida! E, na
Primavera passada salvou também a minha.
Tudo o que ela tem feito acaba por ser benéfico. Ela é bem-intencionada.
O Mago levantou a mão para me impor silêncio. —
Não fale em vão! — ordenou, a sua expressão muito austera. — Sei que
ela impediu as fogueiras. Sei que ela salvou vidas, incluindo a minha. No
entanto libertou o Destruidor e preferia estar morto a ter aquela coisa
medonha à solta e livre para fazer das suas. Por isso venha comigo e
resolvemos já isto!
— Mas, se matássemos o Destruidor, Alice ficaria livre! Teria outra
oportunidade!
O rosto do Mago ficou vermelho de raiva, e quando falou havia um nítido
tom de ameaça na sua voz. —
Uma bruxa que usa a magia de familiar é sempre perigosa.
Com o tempo, ao atingir a maturidade, será bem mais mortal do que
aquelas que usam a do sangue ou a dos ossos. Mas normalmente é
apenas um morcego ou um sapo
— algo pequeno e fraco que vai ganhando poder gradualmente. Pense
bem no que aquela jovem fez! Tinha de ser logo o Destruidor! E está
convencida de que o Destruidor está preso à vontade dela!
«Ela é inteligente e destemida e não há nada que não ousasse fazer. E
sim, arrogante também! Mas mesmo com o Destruidor morto, isso não
acabaria. Se deixarem que ela se torne mulher e, se não for controlada,
será a bruxa mais perigosa que o Condado já conheceu! Temos de tratar
dela agora, antes que seja tarde demais. Eu sou o mestre; você o
aprendiz. Siga-me e faça o que te mando!
E virou-me as costas, pondo-se a caminhar a um ritmo furioso. Com o
coração aos pés, segui-o até a casa para ir buscar a pá e a vara de
medição. Fomos diretamente para o jardim oriental e ali, a menos de
cinquenta passos do poço escuro que continha Lizzie dos Ossos, comecei
a abrir um novo poço, um quadrado com um metro e vinte de lado e dois
metros e quarenta de profundidade.
O Sol já se pusera quando o terminei a contento do Mago. Saí do poço
sentindo-me constrangido, sabendo que Lizzie estava no seu próprio
poço não muito longe dali.
— Por agora chega — disse o Mago. — Amanhã de manhã vai à aldeia e
traz o pedreiro para tirar as medidas. O pedreiro cimentaria uma cerca
de pedras em volta do poço com treze barras de ferro fortes que seriam
colocadas para impedir qualquer hipótese de fuga. O Ma-go teria de
vigiar o trabalho dele para mantê-lo a salvo do demônio de estimação.
Enquanto me arrastava até casa, o meu mestre apoiou de leve a mão no
meu ombro. — Cumpriu o seu dever, rapaz. É tudo o que se pode
esperar e gostaria de te dizer que, até ao momento, tem correspondido
ao que a sua mãe prometeu. .
Olhei para ele, espantado. A minha mãe escrevera-lhe uma vez uma
carta dizendo que eu seria o melhor aprendiz que ele alguma vez tivera,
mas não ficara nada satisfeito por ela lhe ter dito.
— Continue assim — prosseguiu o Mago —, e quando chegar o momento
de me aposentar, com certeza irei deixar o Condado em muitas boas
mãos. Espero que isto te faça sentir um pouco melhor.
O Mago era sempre parco nos elogios e ouvi-lo dizer aquilo foi algo
realmente especial. Acho que ele só estava tentando animar-me mas
não me saíam da idéia o poço e Alice, pelo que os elogios dele não
ajudaram nada.
Naquela noite tive dificuldade em adormecer, por isso estava bem
desperto quando aquilo aconteceu.
A princípio, julguei que fosse uma tempestade súbita. Ouviu-se um
estrondo e um zumbido e toda a casa pareceu ser sacudida e tremeu
como se fustigada por um vendaval. Bateu algo na minha janela com
uma força terrível e ouvi nitidamente o vidro estalar. Alarmado, ajoelhei
na cama e afastei as cortinas.
A janela grande de guilhotina estava dividida em oito vidraças
irregulares espessas, pelo que não era possível ver grande coisa através
delas a maior parte das vezes, mas havia uma meia-lua e apenas
consegui distinguir as copas das árvores, curvando-se e contorcendo-se
como se os seus troncos estivessem a ser sacudidos por um exército de
gigantes enfurecidos. E três das minhas grossas vidraças estavam
estaladas. Por um momento, senti-me tentado a usar o cordão da
guilhotina para levantar a metade de baixo da janela a fim de poder ver
o que sucedia. Mas depois pensei melhor. A Lua brilhava com tanta
intensidade que era improvável tratar-se de uma tempestade natural.
Estávamos a ser atacados. Poderia ser o Destruidor?
Ter-nos-ia encontrado?
A seguir, veio um ruído de pancadas e algo a rasgar de algum lugar logo
acima da minha cabeça. Dava a idéia que alguém estava a levar uma
surra no telhado, sendo agredido com punhos fortes. Ouvi as telhas
começarem a voar e partirem-se nas lajes que delimitavam o relvado
ocidental.
Vesti-me rapidamente e desci correndo as escadas, dois degraus de cada
vez. A porta de trás estava escancarada e saí correndo para o relvado,
indo direto ao centro de um vendaval tão intenso que era quase
impossível respirar, quanto mais dar um passo em frente. Contudo fiz
um esforço tremendo, um passo de cada vez, obrigando-me a manter os
olhos abertos enquanto o vento me fustigava o rosto.
Ao luar, consegui ver o Mago de pé a meio caminho entre as árvores e a
casa, a sua capa preta agitando-se com o vento intenso. Erguera bem
alto o bordão diante de si como se a postos para desferir um golpe.
Pareceu decorrer uma eternidade até o alcançar.
— O que é? O que é! — gritei, quando cheguei finalmente junto dele.
Obtive quase de imediato a resposta, mas não do Mago. Um som terrível
e ameaçador encheu o ar; um misto de grito irado e uivo vibrante que se
terá ouvido num raio de quilômetros. Era o demônio do Mago. Já antes
ouvira aquele som, na Primavera, quando ele impedirá Lizzie dos Ossos
de me perseguir até ao jardim ocidental.
Por isso sabia que, ali na escuridão entre as árvores, ele estava frente a
frente com algo que ameaçava a casa e os jardins. O que mais podia ser
senão o Destruidor?
Fiquei ali a tremer de medo e frio, os meus dentes batendo e o meu
corpo doendo da ventania forte que o fustigava. Mas passados alguns
momentos o vento abrandou e, muito gradualmente, tudo ficou
silencioso e tranquilo.
— Volte para dentro de casa — ordenou o Mago.
— Não há nada a fazer aqui até de manhã.
Quando chegamos à porta de trás fiquei olhando para os fragmentos das
telhas que enchiam as lajes.
— Foi o Destruidor? — inquiri.
O Mago assentiu. — Não demorou muito a nos encontrar, não é? —
referiu ele, abanando a cabeça. — A garota é, sem dúvida, a culpada
disto. Temos de encontrá-la primeiro. Ou então foi ela que o chamou.
— Ela não o voltaria a fazer — atalhei, tentando defender Alice. — O
demônio salvou-nos? — perguntei, mudando de assunto.
— Sim, de momento salvou e a que custo é o que iremos saber pela
manhã. Mas eu não apostaria que ele consiga uma segunda vez. Vou
ficar aqui de vigia — disse o Mago. — Volte para o seu quarto e tente
dormir. Amanhã tudo pode acontecer, por isso precisa manter a cabeça
fria.
CAPÍTULO 17
A CHEGADA DO INQUISIDOR
Fui novamente lá para abaixo antes da alvorada. O céu limpo durante a
noite estava agora nublado, não se movia uma palha e os relvados
apresentavam-se salpicados de branco com a primeira verdadeira geada
de Outono.
O Mago encontrava-se próximo da porta de trás, ainda de pé, quase na
mesma posição em que o vira a última vez. Parecia cansado e o seu
rosto estava sem vida e pardacento como o céu.
— Bem, rapaz — disse ele, em tom cansado —, vamos inspecionar os
estragos.
Julguei que se estivesse a referir à casa, mas ele partiu antes na direção
das árvores no jardim ocidental. Registravam-se efetivamente estragos,
mas não tão maus quanto parecera na noite anterior. Havia alguns
troncos grandes partidos, ramos espalhados pela relva e o banco fora
derrubado. O Mago fez um gesto e ajudei-o a levantar o banco e colocá-
lo de novo na posição.
— Não é mau — comentei, tentando animá-lo, pois ele estava com um
ar realmente deprimido e abatido.
— É bastante mau — respondeu-me com secura.
— O Destruidor haveria sempre de ficar mais forte, mas isto foi muito
mais rápido do que eu esperava. Muito mais rápido. Ele não deveria ter
conseguido fazer isto tão cedo.
Não nos resta muito tempo!
O Mago voltou para casa, seguindo na frente. Vimos que faltavam telhas
no telhado e uma das chaminés soltara-se do suporte.
— Vai ter de esperar até eu ter tempo de a arranjar
— disse.
Nesse preciso momento ouviu-se o som de um sino vindo da cozinha.
Pela primeira vez naquela manhã o Mago esboçou um tênue sorriso.
Parecia aliviado.
— Não sabia ao certo se teríamos desjejum esta manhã — comentou. —
Talvez não seja tão mau quanto eu julgava. .
Quando entramos na cozinha, a primeira coisa em que reparei foi que as
lajes entre a mesa e a lareira apresentavam manchas de sangue. E a
cozinha estava realmente gelada. Depois vi porquê. Era aprendiz do
Mago há quase seis meses, mas esta era a primeira manhã em que não
havia fogo aceso na grelha. E em cima da mesa não havia ovos, nem
toucinho fumado, apenas uma fatia fina torrada para cada um de nós.
O Mago tocou-me no ombro em aviso. — Não digas nada, rapaz. Coma e
dá graças pelo que recebemos.
Fiz o que ele me mandara mas depois de engolir o último bocado de
torrada o meu estômago continuava a roncar. O Mago levantou-se. —
Foi um excelente desjejum. O pão estava muito bem torrado — disse
para o ar.
— E obrigado por tudo o que fez a noite passada. Estamos ambos muito
gratos.
A maior parte das vezes, o demônio não se mostrava, mas agora voltara
a assumir a forma do gato cor de camarão grande. Ouviu-se um
levíssimo ronronar e apareceu fugazmente perto da lareira. No entanto,
nunca como então o vira com aquele aspecto. Tinha a orelha esquerda
cortada e a sangrar e o pêlo do pescoço estava sujo de sangue. Mas o
pior de tudo era o que lhe acontecera ao focinho. No lugar onde
costumava estar o olho esquerdo havia agora uma ferida vertical em
carne viva.
— Nunca mais voltará a ser o mesmo — observou o Mago, triste, depois
de sairmos pela porta de trás. —
Devíamos estar gratos por o Destruidor ainda não ter recuperado a força
plena, senão teríamos morrido a noite passada. Aquele demônio
conseguiu-nos mais algum tempo. Agora temos de aproveitá-lo antes
que seja tarde demais...
Enquanto falava, começou a ouvir-se tocar o sino na encruzilhada.
Trabalho para o Mago. Com tudo o que acontecera e o perigo do
Destruidor, julguei que ele fosse ignorar, mas enganei-me.
— Bem, rapaz — disse. — Vá lá saber o que querem.
O sino parou de tocar antes de eu lá chegar, contudo a corda abanava
ainda. Lá em baixo no meio dos salgueiros estava escuro como sempre
mas demorei apenas um segundo a perceber que não era um chamado
para assuntos de mago. Estava ali à espera uma jovem de vestido preto.
Alice.
— Está correndo um enorme risco! — adverti-a, abanando a cabeça.— A
sua sorte foi Mr. Gregory não ter vindo até aqui comigo.
Alice sorriu.
— O Velho Gregory não conseguiria me apanhar fraco como está agora.
Não é nem metade do homem que era. — Não tenha tanta certeza
assim! — respondi, irado. — Ele obrigou-me a abrir um poço. Um poço
para você. E é onde vai acabar se não tiver cuidado.
— A força do Velho Gregory desapareceu. Não admira que ele o
mandasse abrir! — zombou Alice, a sua voz carregada de escárnio.
— Não — retorqui —, ele obrigou-me a abri-lo para que eu aceitasse o
que tem de ser feito. Tenho por obrigação meter-te lá dentro.
De repente, o tom de Alice ficou triste. — Seria realmente capaz de me
fazer isso, Tom? — inquiriu. —
Depois de tudo aquilo por que passamos juntos? Salvei-te de um poço.
Não se lembra, quando Lizzie dos Ossos queria os seus ossos? Quando
Lizzie estava a afiar a faca?
Lembrava-me bem. Se não tivesse sido a ajuda de Alice, eu haveria
morrido nessa noite.
— Olhe, Alice, vá para Pendle agora, antes que seja tarde demais —
aconselhei-a. — Afaste-se o mais possível daqui! — O Destruidor não
concorda. Acha que devo ficar por perto mais um pouco, é o que ele
acha.
— O Destruidor é uma coisa, não uma pessoa! —
redargui, irritado pelo que Alice estava a dizer.
— Não, Tom, não é — contrapôs Alice. — Eu cheirei-o, sim, e ele é de
certeza uma coisa-homem!
— O Destruidor atacou a casa do Mago a noite passada. Podia ter-nos
matado. Foi você que o enviou?
Alice abanou a cabeça numa veemente negação.
— Isso não tem nada a ver comigo, Tom. Juro.
Nós falamos, foi tudo, e ele disse-me umas coisas.
— Julguei que não ia ter mais contato com ele! —
referi, mal podendo acreditar no que ela me dizia.
— Esforcei-me bastante, Tom, realmente. Mas ele vem murmurar-me
coisas. Vem procurar-me no escuro, pois vem, quando estou tentando
dormir. Até fala comigo nos meus sonhos. Promete-me coisas.
— Que tipo de coisas?
— Não é fácil, Tom. As noites estão a ficar cada vez mais frias. O tempo
está a piorar. O Destruidor disse que eu podia ter uma casa com uma
grande lareira e muito carvão e lenha e que nunca me faltaria nada.
Disse que eu podia ter também roupas bonitas, para que as pessoas não
me olhassem com desprezo como fazem agora, pensando que sou algo
que saiu a rastejar de uma sebe.
— Não lhe dês ouvidos, Alice. Tem de se esforçar mais!
— Ainda bem que às vezes lhe dou ouvidos — retorquiu Alice, com um
estranho semi-sorriso no rosto —, senão iria ficar cheio de remorsos. É
que eu sei uma coisa.
Uma coisa que pode salvar a vida do Velho Gregory assim como a sua.
— Conte-me — instei-a.
— Não sei por que haveria de fazê-lo, já que está a conspirar para que
eu passe o resto dos meus dias num poço! — Isso não é justo, Alice.
— Voltarei a ajudar, prometo. Mas será que você farias o mesmo por
mim. .?
Fez uma pausa e sorriu-me com ar triste. — Sabe, o Inquisidor está a
caminho de Chipenden. Queimou as mãos naquela fogueira, mais nada,
e agora quer vingar-se.
Ele sabe que o Velho Gregory vive em algum lugar aqui próximo e vem
aí com homens armados e cães. São sabujos enormes, com dentes
grandes. Estarão aqui ao meio-dia o mais tardar. Por isso vá contar ao
Velho Gregory o que te disse. Porém, não estou à espera de que ele me
agradeça.
— Contar-lhe-ei — referi, e pus-me logo a caminho, correndo colina
acima em direção à casa. Enquanto corria, percebi que não agradecera a
Alice, mas como podia agradecer-lhe por recorrer ao escuro para nos
ajudar?
O Mago estava à espera mesmo por dentro da porta de trás.
— Bem, rapaz — disse —, recupere primeiro o fôlego. Vejo pela sua cara
que é portador de más notícias.
— O Inquisidor vem para cá — informei-o. —
Descobriu que vivemos próximo de Chipenden!
— E quem te contou isso? — indagou o Mago, coçando a barba.
— Alice. Ela disse que ele estará aqui ao meio-dia.
O Destruidor avisou-a. .
O Mago suspirou fundo.
— Bem, é melhor partirmos o mais depressa possível. Antes disso,
porém, vá à aldeia e informe o talhador de que vamos seguir para norte
pelas extensões rochosas até Caster e estaremos fora algum tempo. A
seguir, procura o merceeiro e avise-o de que não vamos precisar de
provisões para a próxima semana.
Desci correndo à aldeia e fiz exatamente o que ele me mandara. Quando
regressei, o Mago já estava na porta, pronto para partir. Entregou-me o
saco.
— Vamos para sul? — inquiri.
O Mago abanou a cabeça. — Não, rapaz, vamos rumar a norte, tal como
disse. Precisamos chegar a Heysham e, se tivermos sorte, falar com o
fantasma de Naze.
— Mas dissemos a todos para onde íamos. Por que não fingir que íamos
rumar a sul?
— Porque espero que o Inquisidor faça uma visita à aldeia no caminho
até aqui. Depois, em vez de passar busca à casa, seguirá para norte e os
cães encontrarão o nosso rastro. Temos de afastá-los da casa. Alguns
dos livros na minha biblioteca são insubstituíveis. Se ele vier aqui, os
seus homens podem saquear a casa e talvez queimem tudo. Não, não
posso arriscar que aconteça nada aos meus livros.
— E então o demônio? Não guardará a casa e os jardins? Como podem
eles sequer entrar sem correrem o risco de ser dilacerados? Ou agora ele
está demasiado fraco?
O Mago suspirou e olhou para as botas.
— Não, ele ainda tem forças suficientes para enfrentar o Inquisidor e os
seus homens, mas não quero ter mortes desnecessárias na minha
consciência. E mesmo que matasse aqueles que entrassem, alguns
podiam conseguir escapar. De que mais provas necessitariam então para
afirmar que mereço a fogueira? Voltariam com um exército. Isto nunca
mais acabaria. Não teria paz até no fim dos meus dias. Seria obrigado a
abandonar o Condado.
— Mas eles não nos irão apanhar mesmo assim?
— Não, rapaz, Não se seguirmos pelas extensões rochosas. Eles não
poderão utilizar os cavalos e levaremos algumas horas de avanço.
Precisamos ter vantagem. Nós conhecemos bem o Condado, mas os
homens do Inquisidor são forasteiros. Bem, vamos lá embora. Já
perdemos tempo suficiente!
Dirigindo-se para as extensões rochosas, o Mago partiu a um ritmo
muito rápido. Segui-o o melhor que podia, carregando o seu saco como
de costume.
— Alguns dos homens dele não irão seguir caminho e fazer-nos uma
espera em Caster? — perguntei.
— Certamente o farão, rapaz, e se fôssemos até Caster, isso poderia
constituir um problema. Não, nós vamos passar a leste da cidade.
Depois seguiremos para sudoeste, conforme te disse, para Heysham,
para visitar as sepulturas de pedra. Ainda temos de enfrentar o
Destruidor e o tempo está a esgotar-se. Falar com o fantasma de Naze é
a nossa oportunidade de descobrirmos como fazê-lo.
— E depois disso? Para onde iremos? Alguma vez poderemos voltar
aqui?
— Não vejo motivos para que não seja possível, com o tempo.
Acabaremos por conseguir despistar o Inquisidor. Existem maneiras de
fazê-lo. Oh, ele irá procurar durante um tempo e depois se aborrecerá,
sem dúvida.
Não tardará a voltar para o lugar de onde veio. Onde se pode manter
quente durante o Inverno que se avizinha.
Anuí mas não estava lá muito satisfeito. Divisava todo o tipo de falhas
no plano do Mago. Para começar, ele podia ter partido cheio de força,
mas ainda não estava completamente em forma e seria muito duro
atravessar as extensões rochosas. E podiam alcançar-nos antes de
chegarmos a Heysham. E depois, não deixariam de passar pela casa do
Mago e incendiá-la por despeito, especialmente se nos perdessem o
rastro. E havia que pensar no ano seguinte. Na Primavera, o Inquisidor
tornaria a rumar ao norte. Parecia-me um homem que nunca desistia.
Não via nenhuma maneira de a vida poder voltar ao normal. E ocorreu-
me outra idéia. .
E se me apanhassem? O Inquisidor torturava as pessoas para obrigá-las
a responder às perguntas. E se me forçassem a dizer-lhes onde vivia
antes? Eles confiscavam ou incendiavam as casas de bruxas e feiticeiros.
Pensei no Pai, em Jack e em Ellie, sem terem onde morar. E o que
fariam quando vissem a Mãe? Ela não podia ficar exposta ao sol. E
costumava ajudar as parteiras locais nos nascimentos difíceis e tinha
uma grande coleção de ervas e outras plantas. A Mãe correria verdadeiro
perigo!
Não mencionei nada disto ao Mago porque via que ele já estava cansado
das minhas perguntas.
Em menos de uma hora tínhamos chegado ao cume das extensões
rochosas. O tempo estava calmo e parecia que teríamos um belo dia pela
frente.
Se ao menos conseguisse afastar da idéia a razão por que estávamos
aqui em cima, poderia ter apreciado muito mais, pois o tempo estava
bom para caminhar. Tínhamos apenas a companhia dos maçaricos-reais
e dos coelhos, e ao longe, a noroeste, o mar distante cintilava ao sol.
A princípio, o Mago caminhava energicamente, seguindo na frente.
Contudo, muito antes do meio-dia começou a abrandar, e quando
paramos e nos sentamos perto de um monte de pedras, pareceu-me
completamente esgotado. Quando desembrulhou o queijo, reparei que
as mãos lhe tremiam.
— Tome, rapaz — disse, entregando-me um pequeno pedaço. — Não
coma tudo de uma vez.
Fazendo como ele me aconselhara, fui-lhe dando pequenas dentadas.
— Sabe que a garota vem nos seguindo? — inquiriu o Mago. Olhei para
ele, espantado, e abanei a cabeça.
— Está mais ou menos um quilômetro e meio lá atrás — disse-me,
fazendo um gesto para sul. — Como paramos, ela parou também. O que
acha que pode querer?
«Naturalmente não tem mais nenhum lugar para onde ir, a não ser
Pendle, a leste, e não quer realmente ir para lá. E não tem outra
alternativa senão abandonar Chipenden. Constitui uma ameaça porque,
para onde quer que vá, o Destruidor também não estará muito longe. No
momento encontrar-se-á escondido debaixo do solo, mas assim que
escurecer, ela o atrairá a si como a chama de uma vela uma borboleta e
com certeza andará a rondar. Se ela voltar a alimentá-lo, ele se tornará
mais forte e come-
çará a ver pelos olhos dela. Antes disso, pode mesmo preferir outras
vítimas — pessoas ou animais, o efeito será idêntico. Depois de se
empanturrar de sangue, ficará mais forte e em breve poderá voltar a
revestir-se de carne e ossos. A noite passada foi apenas o começo.
— Se não tivesse sido Alice, nunca haveríamos deixado Chipenden — fiz-
lhe ver. — Seríamos prisioneiros do Inquisidor.
Mas o Mago preferiu ignorar-me. — Bem — disse
—, é melhor irmos andando. Aqui sentado é que não vou rejuvenescer.
Porém, passada outra hora, tivemos de parar para descansar. Desta vez,
o Mago ficou sentado mais tempo antes de finalmente se obrigar a
levantar. Foi assim o dia inteiro, com os períodos de repouso a ficarem
cada vez maiores e o tempo que passávamos de pé sempre mais curto.
Perto do pôr do Sol o tempo começou a mudar. O
cheiro da chuva inundava o ar e não tardou a começar a chuviscar.
Quando se instalou a escuridão, começamos a descer em direção a uma
manta de retalhos de muros de vedação de pedra seca. A vertente da
extensão rochosa era íngreme e a erva escorregava, por isso
desequilibrávamo-nos constantemente. E mais, a chuva aumentara de
intensidade e começara a levantar-se vento de oeste.
— Vou descansar enquanto recupero o fôlego — anunciou o Mago.
Encaminhou-se para a seção do muro mais próxima, escalamos e nos
acocoramos na extremidade oriental, para nos abrigarmos um pouco do
aguaceiro.
— A umidade entranha-se nos ossos quando se tem a minha idade —
queixou-se o Mago. — É o que nos traz uma vida de exposição às
condições climáticas do Condado. Acabam por nos atacar. Ou os ossos
ou os pulmões.
Encostamo-nos ao muro, desconsolados. Eu estava cansado e esgotado,
e apesar de estarmos ao relento numa noite como esta, era difícil
mantermo-nos acordados. Não tardei a mergulhar num sono profundo e
começar a sonhar. Foi um daqueles sonhos compridos que parecem
durar a noite inteira. E, lá mais para o fim, tornou-se um pesadelo. .
CAPÍTULO 18
PESADELO NA COLINA
Foi sem a menor dúvida o pior pesadelo que alguma vez tivera. E, num
ofício como o meu, já os tivera de sobra.
Andava perdido e tentava achar o caminho para casa. Devia ter
conseguido encontrar com bastante facilidade porque estava tudo
banhado pela luz da lua cheia, mas sempre que virará numa
determinada direção e julgava reconhecer algum ponto de referência,
não tardava a constatar que me enganara. Cheguei finalmente ao topo
da Colina do Carrasco e vi a nossa fazenda lá ao fundo.
Quando vinha descendo a colina, comecei a sentir uma grande aflição.
Apesar de ser de noite, estava tudo silencioso demais e nada se mexia lá
em baixo. As vedações encontravam-se muito degradadas, algo que o
Pai e Jack nunca teriam permitido que acontecesse, e as portas do
celeiro pendiam meias soltas dos ferrolhos.
A casa parecia deserta: algumas das janelas estavam partidas e
faltavam telhas no telhado. Tive dificuldade em abrir a porta de trás, e
quando cedeu com o habitual empurrão, entrei numa cozinha que
parecia não ser habitada há anos. Havia pó por todo o lado e teias de
aranha a pender do teto. A cadeira de balanço da Mãe encontrava-se
mesmo no meio da divisão e nela via-se um pedaço de papel dobrado,
que apanhei e levei lá para fora para ler à luz da Lua.
As sepulturas do seu pai, de Jack, Ellie e Mary estão lá em cima, na
Colina do Carrasco. Encontrará a sua mãe no celeiro.
Com o coração a doer ao ponto de rebentar, corri para o pátio. Depois,
estaquei à entrada do celeiro, escutando com atenção. Reinava o
silêncio. Não havia sequer um sopro de vento. Entrei no escuro cheio de
nervosismo, sem saber com o que contar. Estaria ali uma sepultura? A
sepultura da Mãe?
Havia um buraco no telhado logo acima, e pude ver a cabeça da Mãe
dentro de um raio de luar. Olhava diretamente para mim. O seu corpo
estava no escuro, mas, pela posição do rosto, parecia estar ajoelhada no
chão.
Por que faria semelhante coisa? E por que parecia tão infeliz? Não estava
satisfeita por me ver?
De repente, a Mãe soltou um grito de angústia.
— Não olhe para mim, Tom! Não olhe para mim!
Vire-se imediatamente! — gritou, como se em tormento.
Assim que desviei o olhar, a Mãe levantou-se do chão e vi pelo canto do
olho algo que transformou os meus ossos em geléia. Do pescoço para
baixo, a Mãe estava diferente. Vi asas e escamas e um brilho de garras
quando se elevou no ar e colidiu com o telhado do celeiro, levando
metade atrás de si. Ergui o olhar, protegendo o rosto dos pedaços de
madeira e detritos que caíam na minha direção, e vi a Mãe, uma silhueta
negra no disco da lua cheia ao elevar-se dos destroços do telhado do
celeiro.
— Não! Não! — gritei. — Isto não é verdade, isto não está acontecendo!
Em resposta, uma voz falou dentro da minha cabeça. Era o silvo cavo do
Destruidor.
— A lua mostra a verdade das coisas, rapaz. Você já o sabe. Tudo o que
viu é verdade ou irá acontecer. É só uma questão de tempo.
* * *
Começaram a abanar-me o ombro e acordei coberto de suores frios. O
Mago estava debruçado sobre mim.
— Acorde, rapaz! Acorde! — chamou. — É só um pesadelo. É o
Destruidor tentando entrar na sua mente, a tentar enfraquecer-nos.
Anuí mas não contei ao Mago o que acontecera no sonho. Seria doloroso
demais. Olhei para o céu. A chuva continuava a cair, porém através dos
farrapos das nuvens viam-se algumas estrelas. Ainda estava escuro mas
a alvorada não tardaria muito.
— Dormimos a noite toda?
— Dormimos, sim — respondeu o Mago —, apesar de não ser essa a
minha intenção.
Levantou-se com dificuldade. — É melhor continuarmos enquanto ainda
podemos — referiu, cheio de ansiedade. — Não os ouve?
Pus-me à escuta e por fim, acima do ruído do vento e da chuva, ouvi ao
longe o latir dos cães.
— Sim, eles não estão muito longe — disse o Ma-go. — A nossa única
esperança é conseguir despistá-los.
Para o fazermos precisamos de água, mas terá de ser pouco funda para
podermos caminhar nela. Claro que a dada altura precisaremos voltar a
terra seca mas os cães terão de ser levados a bater a margem a fim de
voltarem a encontrar o rastro. E se houver outro riacho perto facilitará
muito a tarefa.
Escalamos outro muro e descemos uma vertente íngreme, movendo-nos
o mais rapidamente que ousávamos pela erva úmida e escorregadia.
Havia abaixo de nós uma cabana de pastor, uma silhueta tênue contra o
céu, e ao lado dela um antigo espinheiro negro, dobrado na direção dela
pelos ventos predominantes, os seus ramos despidos como garras
estendidas para os beirais. Continuamos a encaminhar-nos para a
cabana mas depois estacamos subitamente.
Existia um curral de madeira lá à frente à nossa esquerda. E a luz dava
precisamente para vermos que continha um pequeno rebanho de
carneiros, cerca de vinte ou assim. E todos eles estavam mortos.
— Isto não me agrada em nada, rapaz.
E a mim também não. Mas percebi depois que ele não se referia aos
carneiros mortos. Olhava para a cabana mais adiante.
— Provavelmente chegamos tarde demais — disse, a sua voz pouco mais
do que um murmúrio. — Mas o nosso dever é entrar e ir ver. .
Dito aquilo, começou a avançar na direção da cabana, agarrando o
bordão. Segui-o, carregando o seu saco.
Quando passei pelo curral, olhei de soslaio para o carneiro morto mais
próximo. A lã branca que o revestia estava manchada de sangue. Se
aquilo era obra do Destruidor, então alimentara-se bem. Quão mais forte
estaria agora?
A porta da frente estava escancarada, por isso não fizemos cerimônia
em entrar, o Mago seguindo na frente.
Mal dera um passo para lá do limiar quando estacou e aspirou o ar.
Olhava para a esquerda. Havia uma vela em algum lugar lá ao fundo da
divisão e à sua luz tremulante pude ver o que, à primeira vista, me
pareceu ser a sombra do pastor. Mas era sólido demais para ser apenas
uma sombra. Estava de costas para a parede e tinha o cajado erguido
acima da cabeça como se para nos ameaçar. Demorei algum tempo a
perceber para o que estava a olhar, depois algo me pôs os joelhos a
tremer e o coração a bater irregularmente na boca.
Via-se no rosto dele um misto de raiva e terror.
Tinha os dentes à mostra mas alguns deles estavam partidos e a boca
suja de sangue. Estava ereto mas não de pé.
Fora espalmado. Prensado contra a parede. Esborrachado até aos ossos.
E fora obra do Destruidor.
O Mago deu outro passo na divisão. E outro. Fui-o seguindo até
conseguir ver todo o pesadelo lá dentro.
Houvera um berço de bebê no canto mas fora esmagado contra a parede
e no meio dos destroços estavam cobertores e um lençolinho manchados
de sangue. Da criança nem sinal. O meu mestre aproximou-se dos
cobertores e levantou-os com cautela. O que viu deixou-o
manifestamente incomodado e fez-me sinal para não olhar antes de
voltar a colocar os cobertores com um suspiro.
Entretanto, eu avistara a mãe do bebê. Havia um corpo de mulher no
chão, parcialmente encoberto por uma cadeira de balanço. Fiquei grato
por não poder ver-lhe o rosto. Segurava na mão direita uma agulha de
tricotar, e um novelo de lã rolara para a lareira perto das brasas, que
estavam a ficar cinzentas.
A porta da cozinha estava aberta e tive uma súbita sensação de receio.
Tinha certeza de que havia algo ali à espreita. Assim que o percebi a
temperatura na divisão desceu. O Destruidor continuava ali. Sentia-o nos
ossos.
Aterrorizado, quase fugi da cabana mas o Mago não arredou pé e
enquanto ele ficasse, como podia abandoná-lo?
Naquele momento a vela extinguiu-se repentinamente, como se apagada
por dedos invisíveis, mergulhando-nos no escuro, e uma voz cava falou
da completa negrura da porta da cozinha. Uma voz que ressoou pelo ar
e vibrou através do chão lajeado da cabana pelo que a pu-de sentir nos
pés.
— Olá, Ossos Velhos. Finalmente voltamos a encontrar-nos. Andei à sua
procura. Sabia que estava em algum lugar por aqui.
— Sim, e agora encontrou-me — disse o Mago com voz cansada,
assentando o bordão nas lajes e apoiando o seu peso nele.
— Sempre foi um intrometido, não foi, Ossos Velhos? Mas agora
intrometeu-se pela última vez. Primeiro vou matar o rapaz, enquanto
você fica a assistir. Depois será a sua vez.
Uma mão invisível agarrou-me e atirou-me de encontro à parede com
tanta força que todo o ar foi expulso do meu corpo. Depois começou a
pressão, uma força constante tão intensa que parecia que as minhas
costelas se iam partir. O pior de tudo era o peso terrível na minha testa
e lembrei-me do rosto do pastor espalmado e agarrado às pedras. Fiquei
apavorado, incapaz de me mexer ou sequer respirar. Passou-me uma
sombra pela vista e a última coisa de que percebi foi de que o Mago
avançara para a porta da cozinha erguendo o bordão.
Sacudiam-me delicadamente.
Abri os olhos e vi o Mago debruçado sobre mim.
Encontrava-me estendido no chão da cabana.
— Está bem, rapaz? — perguntou-me, cheio de ansiedade.
Acenei com a cabeça. Doíam-me as costelas. Cada vez que respirava
doíam-me. Mas respirava. Ainda estava vivo. — Ande, vamos ver se
consegue se pôr em pé. .
Com o Mago a amparar-me, logo me levantei.
— Consegue andar?
Assenti com a cabeça e dei um passo. Não me sentia muito firme em pé
mas podia caminhar.
— Bom rapaz.
— Obrigado por me salvar — disse-lhe.
O Mago abanou a cabeça. — Eu não fiz nada, rapaz. O Destruidor
desapareceu de repente, como se tivesse sido chamado. Vi-o deslocar-se
colina acima. Parecia apenas uma nuvem negra a apagar as últimas
estrelas. Fizeram aqui uma coisa terrível — referiu, olhando para o
horror dentro da cabana. — Mas temos de nos afastar o mais depressa
que pudermos. Primeiro temos de nos salvar. Talvez consigamos escapar
ao Inquisidor, mas com aquela garota a seguir-nos o Destruidor estará
sempre por perto e a ficar cada vez mais poderoso. Precisamos chegar a
Heysham e descobrir como podemos acabar com aquela coisa medonha
de uma vez por todas!
Com o Mago na frente, deixamos a cabana e continuamos a descer a
colina. Atravessamos mais duas seções de muro até podermos ouvir o
som de água a correr.
O meu mestre movia-se agora muito mais depressa, quase tão
rapidamente como na altura em que tínhamos partido de Chipenden, por
isso presumo que o sono lhe tivesse feito algum bem. Ao passo que eu
estava todo dolorido e a fazer um esforço para o acompanhar, levando
na mão o seu pesado saco.
Chegamos a um caminho íngreme e estreito ao lado de um regato, uma
corrente larga de água que descia rapidamente por cima das rochas.
— Este vai desaguar num lago cerca de um quilômetro e meio mais
abaixo — anunciou o Mago, descendo em grandes passadas. — A terra
aplana e os dois cursos de água vão dar lá. É precisamente o que
procurávamos.
Segui conforme podia. Parecia estar chovendo mais intensamente do que
nunca e o solo era traiçoeiro debaixo dos pés. Um deslize e íamos parar
na água. Perguntei-me se Alice estaria por perto e se conseguia descer
um caminho como este tão próximo de água a fluir rapidamente.
Alice correria também perigo. Os cães poderiam captar o rastro dela.
Então, acima do ruído do regato e da chuva, ouvi os sabujos; pareciam
estar a aproximar-se cada vez mais.
De repente escutei algo que me cortou a respiração.
Fora um grito!
Alice! Virei-me e olhei para o caminho mas o Mago agarrou-me o braço e
puxou-me para a frente. — Não há nada que possamos fazer, rapaz! —
gritou-me. — Nada absolutamente! Por isso continue a andar.
Obedeci, procurando ignorar os sons que vinham da vertente da
extensão rochosa atrás de nós. Havia berros e brados e mais gritos
horripilantes até que gradualmente tudo sossegou e ouvi apenas a água
passar a correr.
O céu estava muito mais claro e abaixo de nós, na primeira luz da
alvorada, pude ver as águas pálidas do lago estenderem-se por entre as
árvores.
Partia-me o coração de pensar no que poderia ter acontecido a Alice. Ela
não merecia isto.
— Continue a andar, rapaz — repetiu o Mago.
E depois ouvi algo no caminho atrás de nós — mas a aproximar-se cada
vez mais. Parecia um animal a correr na nossa direção. Um cão grande.
Não era justo. Estávamos tão perto do lago e dos seus dois riachos. Mais
dez minutos e teríamos conseguido despistar os sabujos. Mas para
minha surpresa, o Mago não estava a acelerar. Parecia até estar a
abrandar. Por fim, parou por completo e puxou-me para a beira do
caminho; perguntei-me se teria chegado ao fim das suas forças. Se sim,
então estava tudo acabado para nós.
Olhei para o Mago, na esperança de que ele retiras-se algo do saco para
nos salvar. Mas não o fez. O cão corria agora diretamente a nós a toda a
velocidade. No entanto, à medida que se aproximava reparei em algo
estranho nele. Para começar, latia em vez de ladrar como um cão em
matilha. E tinha os olhos fixos lá adiante e não em nós. Passou tão rente
que podia ter estendido a mão para lhe tocar.
— Se não me engano, está apavorado — disse o Mago. — Cuidado! Aí
vem outro!
O seguinte passou, latindo como o primeiro, o rabo entre as pernas.
Rapidamente, vieram mais dois. Depois, logo atrás, um quinto cão.
Ignorando-nos todos, mas correndo pelo caminho lamacento em direção
ao lago.
— O que aconteceu? — indaguei.
— Não duvido que em breve saberemos — respondeu o Mago. — Vamos
continuar.
A chuva não tardou a parar e chegamos ao lago.
Era grande e, na maior parte, calmo. Porém, perto de nós, o regato
entrava nele com uma fúria de água branca, precipitando-se por uma
vertente íngreme e vindo agitar a superfície. Ficamos a olhar para a
queda de água, onde ramos, folhas e até um ou outro toro eram
arrastados para o lago.
De repente, algo maior atingiu a água com um chape tremendo.
Mergulhou bastante fundo mas reapareceu cerca de trinta passos mais
adiante e começou a ser arrastado para a margem ocidental do lago.
Parecia um corpo humano.
Precipitei-me para a beira da água. E se fosse Alice?
Antes que tivesse tempo de entrar na água, o Mago assentou a mão no
meu ombro e agarrou-o com força.
— Não é Alice — disse-me, baixinho. — Aquele corpo é grande demais.
Além disso, creio que ela chamou o Destruidor. Por que outro motivo
teria ido embora tão de repente? Com o Destruidor a seu lado, ninguém
se atreveria a fazer-lhe frente. Mas é melhor contornarmos o lago e ir
ver melhor.
Seguimos pela margem curva até que, passados alguns minutos, nos
encontramos na margem ocidental debaixo dos ramos de um sicômoro
enorme, mergulhados num monte de folhas caídas. A coisa na água
encontrava-se a alguma distância mas aproximava-se cada vez mais.
Esperava que o Mago tivesse razão, que o corpo fosse grande demais
para pertencer a Alice, mas estava ainda escuro demais para ter certeza.
E se não era dela, de quem era o corpo?
Comecei a sentir receio mas não havia nada que eu pudesse fazer senão
esperar que o céu clareasse mais e o corpo se aproximasse também
mais de nós.
Lentamente, as nuvens dissiparam-se e não tardou que o céu ficasse
suficientemente claro para podermos identificar o corpo sem a menor
margem de dúvida.
Era o Inquisidor.
Olhei para o corpo a boiar. Estava de barriga para cima e apenas se via
o rosto fora de água. Tinha a boca aberta e os olhos também.
Havia terror no seu rosto pálido e morto. Era como se não lhe restasse
uma gota de sangue no corpo.
— Ele afogou muitos inocentes em vida — disse o Mago. — Os pobres, os
velhos e os solitários. Muitos que trabalharam arduamente toda a vida e
mereciam apenas um pouco de paz e sossego na velhice, e um pouco de
respeito também. E agora foi a vez dele. Teve exatamente o que
merecia.
Eu sabia que atirar uma bruxa à água não passava de um absurdo
supersticioso, mas não me saía da cabeça o fato de ele estar a boiar. Os
inocentes iam ao fundo; os culpados boiavam. Inocentes como a tia de
Alice, que morrera do choque.
— Alice fez isto, não foi? — indaguei.
O Mago anuiu. — Sim, rapaz. Alguns diriam que foi obra dela. Mas, na
realidade, foi do Destruidor. Ela já o chamou duas vezes. O seu poder
sobre ela irá aumentar e o que ela vê ele consegue ver também.
— Não deveríamos pôr-nos a caminho? — perguntei, cheio de
nervosismo, olhando para o outro lado do lago onde o regato se vinha
precipitar. — Os homens dele não virão até aqui?
— Até podem vir, rapaz. Isto é, se ainda lhes restar algum fôlego. Mas
desconfio que por uns tempos não estarão em condições de o fazer e, se
não estou enganado, aqui vem ela. .
Segui o olhar do Mago na direção do regato, onde uma figura pequena
descia o caminho e ficou por um momento a olhar para a água em
queda. Depois, o olhar de Alice virou-se para nós e começou a percorrer
a margem na nossa direção.
— Lembre-se — avisou-me o Mago —, agora o Destruidor vê através dos
olhos dela. Está a ganhar força e poder, a detectar as nossas fraquezas.
Tenha muito cuidado com o que diz ou faz.
Uma parte de mim queria gritar e avisar Alice para fugir enquanto ainda
podia. Era impossível saber o que o Mago lhe poderia fazer agora. Outra
parte de mim, tinha súbita e desesperadamente, receio dela. Mas o que
podia eu fazer? Lá no fundo, sabia que o Mago era a sua única
esperança. Quem mais a podia agora libertar do Destruidor? Alice
avançou até à beira da água, colocando-me entre ela e o Mago. Olhava
fixamente na direção do corpo do Inquisidor. Havia um misto de terror e
triunfo no rosto dela.
— Não tenha medo de vir ver, minha jovem — falou o Mago. — Observe
de perto o seu trabalho. Valeu a pena?
Alice assentiu.
— Ele teve o que merecia — disse com firmeza.
— Sim, mas a que preço? — perguntou o Mago. —
Você pertence cada vez mais ao escuro. Chame o Destruidor mais uma
vez e se perderá para sempre.
Alice não respondeu e ficamos ali muito tempo em silêncio, apenas a
olhar para a água.
— Bem, rapaz — disse o Mago —, é melhor irmos andando. Quem quiser
que trate do corpo porque nós temos mais que fazer. Quanto a você,
minha jovem, virá conosco se sabe o que te convém. E agora é bom que
ou-
ça e ouça com atenção porque o que estou propondo é a sua única
esperança. A única oportunidade que alguma vez terá de se libertar
daquela criatura.
Alice levantou a cabeça, os seus olhos muito arregalados.
— Sabe o perigo que corre, não sabe? Quer libertar-se? — perguntou-
lhe.
Alice anuiu.
— Então venha aqui! — ordenou-lhe com austeridade. Alice veio
obedientemente para o lado dele.
— Onde quer que vá, o Destruidor não estará muito longe, por isso o
melhor é vir comigo e o rapaz.
Prefiro saber mais ou menos onde se encontra aquela criatura do que tê-
la a vaguear por onde lhe agrade no Condado, a aterrorizar gente
decente. Por isso ouça-me, e muito bem. Neste momento é importante
que não veja nem ouça nada — desse modo o Destruidor não saberá
nada por você. Mas atenção, terá de fazê-lo de livre vontade. Se quebrar
este compromisso um pouquinho que seja, ele nos atacará a todos com
força.
Abriu o saco e começou a remexer lá dentro.
— Isto é uma venda — disse, mostrando uma faixa de pano preto para
Alice ver. — Vai usá-la? — perguntou-lhe.
Alice anuiu e o Mago estendeu a palma da mão esquerda para ela.
— Vê isto? — inquiriu. — São tampões de cera para os seus ouvidos.
Cada tampão continha um pequeno prego de prata alojado para facilitar
depois a remoção da cera. Alice olhou para eles na dúvida, mas depois
inclinou obedientemente a cabeça enquanto o Mago inseria com cuidado
o primeiro tampão. Depois de colocar o segundo tampão atou com
firmeza a venda sobre os olhos dela.
Partimos, dirigindo-nos para nordeste, o Mago guiando Alice pelo
cotovelo. Esperava que não passássemos por ninguém na estrada. O que
pensariam? Iríamos sem dúvida despertar muitas atenções indesejadas.
CAPÍTULO 19
AS SEPULTURAS DE PEDRA
Era de dia, por isso não existia uma ameaça imediata do Destruidor. Tal
como a maior parte das criaturas do escuro, estaria escondido no
subsolo. E com Alice vendada e de ouvidos tapados, já não podia ver
através dos olhos dela nem escutar o que dizíamos. Assim não saberia
onde estávamos.
Estava a prever outro dia de caminhada árdua e perguntei-me se
chegaríamos a Heysham antes de anoitecer. Mas, para minha surpresa,
o Mago levou-nos por uma trilha até uma grande fazenda e aguardamos
no portão, o ladrar dos cães era capaz de acordar os mortos, enquanto
um velho agricultor avançava para nós a coxear apoiado numa bengala.
Tinha uma expressão preocupada no rosto.
— Lamento — resmungou. — Lamento muito, mas está tudo na mesma.
Se eu tivesse o que dar, seria seu.
Parecia que cinco anos antes, o Mago livrara este homem de um
demônio turbulento e ele ainda não lhe pagara. O meu mestre queria ser
pago agora, mas não em dinheiro.
Passada meia hora seguíamos numa carroça puxada por um dos maiores
cavalos de tiro que eu já vira; a conduzir a carroça vinha o filho do
agricultor. A princípio, antes de partir, ele olhara fixamente para a venda
nos olhos de Alice, uma expressão de perplexidade no seu rosto.
— Pare de olhar embasbacado para a garota e concentre-se no que faz!
— ripostara o Mago e o rapaz desviara rapidamente o olhar. Parecia
bastante satisfeito por nos levar, contente por se afastar das suas
tarefas por algumas horas, e em breve seguíamos pelos caminhos
secundários que passavam a leste de Caster. O Mago obrigou Alice a
deitar-se na carroça e cobriu-a com palha para que não pudesse ser
vista por outros viajantes.
Sem dúvida o cavalo estava acostumado a puxar cargas pesadas, e
apenas com nós três na traseira seguia a um trote razoavelmente
rápido. Avistamos ao longe a cidade de Caster com o seu castelo. Muitas
bruxas tinham morrido ali após um longo julgamento, mas não se
queimavam bruxas em Caster, eram enforcadas. Assim, para usar uma
das expressões de marinheiro do meu pai, passamos-lhe «bem ao
largo», e em breve a deixamos para trás e atravessando uma ponte
sobre o rio Lune, antes de mudarmos a direção para sudoeste, rumo a
Heysham.
O filho do agricultor recebeu ordem para esperar no fundo do caminho
nos arredores da aldeia.
— Voltaremos ao alvorecer — informou o Mago.
— Não se preocupe. Farei com que não se arrependa.
Subimos uma trilha estreita por uma colina, com uma igreja e um
cemitério antigos à nossa direita. Ali, naquele lado abrigado da colina,
reinavam o silêncio e a tranqüilidade e árvores antigas cobriam as
pedras tumulares. Mas ao passarmos um portão para o cimo do
penhasco, fomos recebidos com uma brisa forte e o cheiro de maresia.
Diante de nós ficavam as ruínas de uma pequena capela de pedra
apenas com três paredes de pé. Estávamos a grande altitude e podia ver
uma baía lá em baixo, com uma praia de areia quase coberta pela maré
e as ondas a rebentar nas rochas de um pequeno promontório ao longe.
— Basicamente, o litoral oeste é plano — referiu o Mago —, e esta é a
altitude máxima dos penhascos do Condado. Dizem que foi aqui que os
primeiros homens desembarcaram no Condado. Vieram de uma terra
longínqua a oeste e o barco deles encalhou nas rochas lá em baixo. Os
seus descendentes construíram aquela capela.
Apontou e ali, mesmo do outro lado das ruínas, vi as sepulturas de
pedra.
— Não existe nada assim em mais nenhum lugar do Condado — disse o
Mago.
Esculpida numa imensa pedra plana, mesmo à beira de uma colina
íngreme, havia uma fila de seis caixões, cada um com a forma de um
corpo humano e com uma tampa de pedra que encaixava num sulco.
Eram de diferentes tamanhos e formas mas, regra geral, pequenos,
como se talhados para crianças, só que se tratava das sepulturas de seis
da Gente Pequena. Seis dos filhos do rei Heys.
O Mago ajoelhou ao lado da sepultura mais próxima. Por cima da cabeça
de cada uma delas havia uma cavidade quadrada e ele desenhou a sua
forma com o dedo.
Depois estendeu os dedos da mão esquerda. A mão aberta cobria a
cavidade à justa.
— Para que poderiam ter servido? — murmurou de para si mesmo.
— De que tamanho era a Gente Pequena? — indaguei. As sepulturas
eram todas de tamanhos diferentes e, agora que olhava com atenção, vi
que afinal não eram tão pequenas quanto a princípio julgara.
Em jeito de resposta, o Mago abriu o saco e retirou uma vara de
medição extensível. Abriu-a e mediu a sepultura.
— Esta tem cerca de um metro e sessenta e cinco
— anunciou —, e trinta e cinco centímetros de largura no meio. Mas
devem ter sido enterrados alguns pertences para a Gente Pequena usar
no outro mundo. Poucos teriam mais de um metro e meio de altura e
muitos eram bem mais pequenos. Com o decorrer dos anos, cada
geração foi-se tornando cada vez maior porque houve casamentos entre
eles e os invasores que vieram por mar. Por isso não se chegaram a
extinguir. O seu sangue corre ainda nas nossas veias.
O Mago virou-se para Alice e, para surpresa minha, retirou-lhe a venda.
A seguir foi a vez dos tampões dos ouvidos, guardando-os novamente na
segurança do seu saco. Alice pestanejou e olhou à sua volta. Não se
mostrou satisfeita.
— Não gosto deste lugar — queixou-se. — Algo não está certo. Há uma
má sensação.
— Verdade, minha jovem? — disse o Mago. —
Bem, isso é a coisa mais curiosa que disse o dia todo. É
estranho, porque acho este lugar bastante agradável. Não há nada como
um pouco de ar do mar revigorante!
Não me senti revigorado. A brisa cessara e agora estendiam-se braços
de nevoeiro serpenteando do mar e começava a esfriar bastante. Dentro
de uma hora escureceria. Eu sabia o que Alice queria dizer. Era um lugar
a evitar depois do pôr do Sol. Eu também sentia algo e não me pareceu
lá muito amigável.
— Há algo à espreita próximo — disse ao Mago.
— Vamos sentar-nos além e dar-lhe tempo para que se acostume a nós
— respondeu o Mago. — A nossa intenção não é assustá-lo. .
— É o fantasma de Naze? — indaguei.
— Espero que sim, rapaz. Espero bem que sim.
Mas em breve o saberemos. Seja um pouco paciente.
Sentamo-nos num talude verdejante a alguma distância, enquanto a luz
diminuía lentamente. Estava ficando cada vez mais preocupado.
— E depois de escurecer? — sondei o Mago. — O
Destruidor não vai aparecer? Agora que tirou a venda a Alice, ele saberá
onde estamos!
— Acho que estamos bastante seguros aqui, rapaz
— referiu o Mago. — Este é possivelmente o único local em todo o
Condado que ele evita. Fizeram algo aqui e, se não me engano, o
Destruidor não se aproximará daqui num raio de um quilômetro e meio.
Até pode saber que aqui estamos, mas não poderá fazer grande coisa
em relação a isso. Estou certo, minha jovem?
Alice estremeceu e concordou. — Ele está tentando falar comigo, sim.
Mas a sua voz está muito fraca e distante. Nem sequer consegue entrar-
me na cabeça.
— É precisamente o que eu esperava — declarou o Mago. — Quer dizer
que a nossa viagem não foi em vão.
— Ele quer que eu me afaste imediatamente daqui.
Quer que vá até ele. .
— E é isso o que você quer?
Alice abanou a cabeça negando e estremeceu.
— Folgo em ouvi-lo, menina, porque depois da próxima vez, conforme te
disse, ninguém poderá te ajudar. Onde é que ele está neste momento?
— Está bem debaixo da terra. Numa caverna escura e úmida. Encontrou
uns ossos mas tem fome, porque não são suficientes.
— Ótimo! Agora chegou o momento de passar à ação — anunciou o
Mago. — Vocês dois instalem-se ali em baixo abrigados por aquelas
paredes. — Apontou na direção das ruínas da capela. — Tentem dormir
enquanto eu fico de vigia aqui ao pé das sepulturas.
Não discutimos e instalamo-nos na erva dentro das ruínas da capela. Em
virtude da parede que faltava ainda conseguíamos ver o Mago e as
sepulturas. Julguei que ele fosse se sentar mas permaneceu de pé, a
mão esquerda assente no bordão.
Eu estava cansado e não tardei a adormecer. Mas acordei de repente.
Alice abanava-me o ombro.
— O que se passa? — inquiri.
— Ele está ali perdendo o seu tempo — disse Alice, apontando para o
lugar onde o Mago se encontrava agora acocorado ao pé das sepulturas.
— Há algo próximo mas é além, perto da sebe.
— Tem certeza?
Alice anuiu. — Mas vá você avisá-lo. Ele não o aceitará vindo de mim.
Aproximei-me do Mago e chamei: — Mr. Gregory!
— Ele não se mexeu e perguntei-me se teria adormecido ali acocorado.
Porém levantou-se devagar e virou a parte superior do corpo na minha
direção, mantendo os pés exatamente na mesma posição.
Havia algumas aberturas nas nuvens, mas aqueles pedaços com estrelas
não eram suficientes para me deixar ver o rosto do Mago. Não passava
de uma sombra escura debaixo do capuz.
— Alice diz que há algo além perto da sebe — informei-o.
— Ah disse — murmurou o Mago. — Nesse caso, é melhor irmos dar
uma olhada.
Encaminhamo-nos para a sebe. À medida que nos aproximávamos dela
parecia estar ficando ainda mais fria, por isso soube que Alice tinha
razão. Havia uma espécie qualquer de espírito escondido ali perto.
O Mago apontou para baixo, depois, de repente ajoelhou-se, arrancando
a erva comprida. Ajoelhei-me também e comecei a ajudá-lo. Pusemos a
descoberto mais dois túmulos de pedra. Um tinha cerca de um metro e
meio de comprimento mas o outro apenas metade daquele tamanho. Era
o túmulo mais pequeno de todos.
— Alguém com sangue antigo puro nas veias foi sepultado aqui — referiu
o Mago. — Dele adviria força. É
este o que procurávamos. Deve ser o túmulo do fantasma de Naze, sim!
Afaste-se um pouco, rapaz. Mantenha distância.
— Não posso ficar para ouvir? — perguntei. O
Mago abanou a cabeça.
— Não confia em mim? — indaguei.
— Você confia em si mesmo? — foi a resposta dele. — Faça a pergunta a
si próprio! Para começar, o mais provável é que ele apareça se só estiver
aqui um de nós.
De qualquer forma, é preferível que não ouça isto. O
Destruidor consegue ler o pensamento, lembra-se? É suficientemente
forte para impedi-lo de ler o seu? Não podemos permitir que ele saiba o
que estamos a preparar; que temos um plano; que conhecemos os seus
pontos fracos. Quando ele entra nos seus sonhos, revirando o seu
cérebro à procura de pistas e planos, tem certeza absoluta de que não
denunciará nada?
Não tinha certeza.
— É um rapaz corajoso, o mais corajoso que alguma vez me surgiu como
aprendiz. Mas não passa disso, de um aprendiz, e não podemos
esquecer. Portanto, volta para o seu canto! — ordenou-me, enxotando-
me dali.
Fiz o que me mandara e regressei esmorecido à capela em ruínas. Alice
estava dormindo, de modo que me sentei ao lado dela por alguns
momentos mas não tinha sossego. Estava agitado porque queria
realmente saber o que o fantasma de Naze teria a dizer. Quanto ao aviso
do Mago a respeito de o Destruidor me revirar a mente enquanto estava
a dormir, não me preocupou assim tanto.
Aqui estávamos a salvo do Destruidor, e se o Mago descobrisse aquilo
que necessitava saber, amanhã à noite seria o fim dele.
Abandonei então as ruínas e avancei sorrateiramente junto ao muro até
me aproximar mais do Mago. Já não era a primeira vez que desobedecia
ao meu mestre, mas era a primeira em que estivera tanto em jogo.
Sentei-me encostado ao muro e aguardei. Mas não muito.
Mesmo àquela distância, comecei a sentir muito frio e não parava de
tremer. Aproximava-se um dos mortos, mas seria o fantasma de Naze?
Começou a aparecer uma luz tênue brilhante por cima das duas
sepulturas mais pequenas. Não era particularmente humana na forma,
apenas uma coluna luminosa que mal chegava aos joelhos do Mago.
Ouvi-o começar logo a questioná-lo. O ar ficou muito parado, e apesar
de o Mago manter a voz baixa, conseguia perceber cada palavra que ele
dizia.
— Fale! — disse o Mago. — Fale, ordeno-te!
— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — ouviu-se a resposta. Apesar de
Naze ter morrido jovem e na primavera da vida, a voz do fantasma
parecia a de um homem muito velho. Era resmungada e áspera e
denotava um profundo cansaço. Mas isso não queria propriamente dizer
que não fosse o seu fantasma. O Mago dissera-me que os fantasmas não
falavam como tinham feito em vida.
Comunicavam diretamente com a nossa mente e era por isso que
conseguíamos compreender um que vivera muitas eras atrás; um que
poderia até ter falado uma língua muito diferente.
— O meu nome é John Gregory e sou o sétimo filho de um sétimo filho
— anunciou o Mago, levantando a voz. — Estou aqui para fazer o que
devia ter sido feito há muito; aqui para acabar com o mal do Destruidor
e dar-te finalmente paz. Mas há coisas que preciso saber. Primeiro, tem
de me dizer o seu nome!
Seguiu-se uma longa pausa e pensei que o fantasma não fosse
responder, mas por fim o fez.
— Sou Naze, o sétimo filho de Heys. O que deseja saber?
— Chegou o momento de acabar com isto de uma vez por todas —
referiu o Mago. — O Destruidor anda em liberdade e não tardará a
atingir poder absoluto e ameaçar toda a terra. Tem de ser aniquilado.
Por isso vim à procura dos seus conhecimentos. Como foi que o
aprisionou nas catacumbas? Como pode ser morto? É capaz de me dizer?
— É forte? — arranhou a voz de Naze. — É capaz de fechar a sua mente
e impedir que o Destruidor leia os seus pensamentos?
— Sim, sou capaz disso — respondeu o Mago.
— Então talvez haja esperança. Vou lhe dizer o que fiz.
Como aprisionei o Destruidor. Em primeiro lugar, celebrei um pacto com
ele dando-lhe o meu sangue a beber. Poderia bebê-lo mais três vezes, e
em troca, teria de obedecer três vezes às minhas ordens. No ponto mais
fundo das catacumbas de Priestown, existe uma câmara funerária que
contém as urnas com o pó dos nossos mortos antigos, os pais
fundadores do nosso povo. Foi a essa câmara que atraí o Destruidor e
lhe dei o meu sangue a beber. Em troca, revelei-me um amo exigente.
«Da primeira vez, ordenei que o Destruidor nunca mais voltasse às
criptas e se mantivesse bem longe desta zona onde o meu pai e os meus
irmãos estão sepultados, porque queria que eles descansassem em paz.
O Destruidor gemeu de contrariedade porque as criptas eram a sua
morada favorita, o lugar onde passava as horas do dia agarrado aos
ossos dos mortos e a sugar as recordações neles contidas. Mas um pacto
era um pacto e ele não tinha outra opção senão obedecer. Quando o
chamei da segunda vez, mandei-o ir aos confins da terra à procura de
conhecimentos, e esteve ausente um mês e um dia, dando-me todo o
tempo de que precisava.
«Pus então a minha gente a trabalhar, construindo e colocando o Portão
de Prata. Mas nem quando regressou o Destruidor soube de alguma
coisa porque a minha mente era forte e mantive os meus pensamentos
ocultos.
«Depois de lhe dar o meu sangue pela última vez, disse ao Destruidor o
que pretendia, gritando em voz alta o preço que ele teria de pagar.
«Fique preso a este lugar!» ordenei. «Limitado às catacumbas mais
fundas e sem saída. Mas, como não desejo a nenhum ser, por pior que
seja, que sofra sem uma réstia sequer de esperança, construí um Portão
de Prata. Se alguém cometer a tolice de abrir esse portão na sua
presença, poderá transpô-lo para a liberdade. No entanto, na sequência
disso, se alguma vez voltar a este lugar, ficará preso aqui para toda a
eternidade!»
«Foi o que a brandura do meu coração me ditou e o aprisionamento não
foi tão firme quanto deveria ter sido. Durante a minha vida, enchi-me de
compaixão pelos outros. Alguns consideraram-no uma fraqueza e nesta
ocasião provaram estar certos. Porque eu não conseguira condenar
sequer o Destruidor a uma eternidade de aprisionamento sem lhe dar
uma tênue chance de fuga.
— Fez o suficiente — comentou o Mago. — E agora vou terminar o
trabalho. Se conseguirmos levá-lo até lá, ficará preso para sempre!
Sempre é um começo. Mas como podemos matá-lo? Pode dizer-me? Esta
criatura está tão má agora, que o seu aprisionamento será insuficiente.
Preciso aniquilá-lo.
— Em primeiro lugar, deve ter adquirido a camada de carne. Em
segundo, deve estar bem no fundo das catacumbas. Em terceiro, o seu
coração tem de ser penetrado com prata. Só se todas as três condições
forem preenchidas é que finalmente morrerá. Mas existe um grande
risco para aquele que o tentar. Nos limites da morte, o Destruidor
libertará tanta energia que o seu assassino quase com certeza morrerá.
O Mago soltou um suspiro fundo.
— Agradeço-lhe a informação — disse ao fantasma. — Será duro, mas
tem de ser feito, custe o que custar.
Mas a sua tarefa está completa agora. Vá em paz. Passe para o outro
lado.
Em resposta, o fantasma de Naze gemeu tão profundamente que os
cabelos na minha nuca começaram a se levantar. Fora um gemido
carregado de agonia.
— Não haverá paz para mim — gemeu o fantasma com voz cansada. —
Não haverá paz até o Destruidor finalmente morrer. .
E, ditas aquelas palavras, a pequena coluna de luz desapareceu. Sem
perder tempo, regressei às ruínas rente ao muro. Alguns instantes
depois o Mago entrou, deitou-se na erva e fechou os olhos.
— Tenho de pensar muito bem — murmurou.
Não lhe disse nada. De repente, senti-me culpado por ter escutado a
conversa dele com o fantasma de Naze.
Agora sabia demais. Receei que, se lhe contasse, ele me mandasse
embora e fosse enfrentar o Destruidor sozinho.
— Explicarei ao raiar do dia — murmurou. — Mas agora vê se dorme.
Não é seguro deixar este local antes do nascer do Sol!
Para minha surpresa, dormi bastante bem. Antes mesmo da alvorada, fui
acordado por um estranho som de raspar. Era o Mago, a afiar a lâmina
retrátil na pedra de amolar que tirara do saco. Trabalhava
metodicamente, experimentando-a esporadicamente com o dedo.
Finalmente, deu-se por satisfeito e ouviu-se um clique quando a lâmina
se recolheu no bordão.
Pus-me em pé e estiquei as pernas durante um tempo, enquanto o Mago
se baixava, abria de novo o saco e remexia lá dentro.
— Sei exatamente o que fazer — anunciou. — Podemos derrotar o
Destruidor. É possível fazê-lo mas será a tarefa mais difícil que alguma
vez tive de realizar. Se eu falhar, afetará a todos.
— O que é preciso fazer? — inquiri, sentindo-me mal porque já o sabia.
Não me respondeu e passou por mim direto a Alice, que estava sentada,
abraçando os joelhos.
Colocou a venda e introduziu o primeiro tampão de cera no ouvido.
— Agora vamos ao outro, mas antes disso, escuta-me muito bem,
menina, porque isto é importante —
referiu. — Quando os tirar esta noite, falarei com você e terá de fazer
imediatamente o que eu disser e sem questionar. Compreendeu?
Alice anuiu e ele colocou-lhe o segundo tampão.
Mais uma vez, Alice não podia ver e não podia ouvir. E o Destruidor não
saberia o que estávamos a preparar nem para onde íamos. A menos que
de alguma forma me conseguisse ler o pensamento. Comecei a sentir-
me muito aflito por causa do que fizera. Sabia demais.
— Agora — disse o Mago, virando-se para mim.
— Vou te dizer uma coisa que te desagradará. Temos de voltar a
Priestown. Às catacumbas.
Depois, girou nos calcanhares e, agarrando Alice pelo cotovelo esquerdo,
encaminhou-a para o cavalo e a carroça onde o filho do agricultor
continuava à espera.
— Temos de ir a Priestown o mais depressa que este cavalo conseguir —
anunciou o Mago.
— Isso eu não sei — respondeu o rapaz. — O meu velho pai está a
contar comigo antes do meio-dia. Há trabalho a fazer.
O Mago estendeu-lhe uma moeda de prata. — Olhe, toma isto. Leve-nos
lá antes de escurecer e haverá outra. Não creio que o seu pai vá se
importar muito. Ele gosta de contar o seu dinheiro.
O Mago obrigou Alice a deitar-se aos nossos pés e tapou-a de novo com
a palha para que ela não pudesse ser vista por ninguém de passagem, e
em breve estávamos a caminho. A princípio, contornamos Caster mas
depois, em vez de voltarmos pelas extensões rochosas, dirigimo-nos
para a estrada principal que conduzia diretamente a Priestown.
— Não será perigoso voltar lá em pleno dia? —
perguntei, cheio de nervosismo. A estrada tinha muito movimento e
estávamos constantemente a passar por carroças e pessoas a pé. — E se
os homens do Inquisidor nos reconhecem?
— Não digo que não haja risco — afirmou o Mago.
— Mas aqueles que andavam à nossa procura provavelmente estarão
agora ocupados a transportar o corpo pelas extensões rochosas. Sem
dúvida o trarão para Priestown para sepultar, mas isso só terá lugar
amanhã; nessa altura já estará tudo terminado e iremos a caminho.
Claro que depois há que pensar na tempestade. As pessoas com algum
juízo ficarão em casa, abrigadas da chuva.
Olhei para o céu. A sul, estavam a acumular-se nuvens mas não me
parecia muito mau. Quando o referi, o Mago limitou-se a sorrir.
— Ainda tem muito que aprender — respondeu-me. — Esta vai ser uma
das maiores tempestades que alguma vez viu.
— Depois de toda aquela chuva, julguei que fôssemos ter alguns dias de
tempo bom — protestei.
— Sem dúvida que vamos, rapaz. Mas esta está longe de ser natural. Ou
muito me engano, ou o Destruidor acaba de invocar o vento para
fustigar a minha casa. É
outro sinal de quão poderoso se tornou. Irá dominar a tempestade para
mostrar a sua raiva e frustração por não ser capaz de usar Alice como
muito bem quer. Só que isso joga a nosso favor: enquanto estiver
concentrado em tal, não se preocupa muito comigo e com você. E assim
poderemos alcançar a cidade sem problemas.
— Por que temos de ir às catacumbas para matar o Destruidor? —
inquiri, esperando que ele me dissesse o que eu já sabia. Assim não
teria de continuar a fingir mais.
— É para o caso de não conseguirmos aniquilá-lo, rapaz. Pelo menos,
uma vez lá, com o Portão de Prata fechado, o Destruidor voltará a ficar
aprisionado. Desta vez para sempre. Foi o que me disse o fantasma de
Naze.
Depois, mesmo que não consiga exterminá-lo, pelo menos terei reposto
a situação existente. E agora chega de perguntas. Preciso de paz para
me preparar para o que vou fazer. .
Não tornamos a falar até chegarmos aos arredores de Priestown.
Entretanto, o céu estava escuro como breu, cortado por enormes
ziguezagues de relâmpagos enquanto os trovões ribombavam mesmo
por cima de nós. A chuva caía abundante, encharcando-nos as roupas e
sentia-me molhado e desconfortável. Tive pena de Alice porque
continuava deitada no fundo da carroça, que tinha agora quase dois
centímetros e meio de água. Devia realmente ser muito difícil não poder
ver nem ouvir e não saber para onde ia ou quando a viagem terminaria.
A minha própria viagem terminou muito mais cedo do que contava. Nos
arredores de Priestown, quando chegamos à última encruzilhada, o Mago
gritou ao filho do agricultor que parasse a carroça.
— É aqui que salta — disse, olhando-me com dureza.
Fitei-o, espantado. A chuva escorria-lhe da ponta do nariz e descia pela
barba mas não pestanejou quando me olhou com uma expressão cruel.
— Quero que volte para Chipenden — ordenou, apontando na direção da
estrada estreita que seguia rumo a nordeste. — Vá à cozinha e avise
aquele meu demônio de que posso não voltar. Diga-lhe que se for esse o
caso, terá de manter a casa segura para quando você estiver preparado.
Intacta e segura até concluir o seu aprendizado e estiver finalmente em
condições de assumir o cargo.
«Feito isso, siga para o norte de Caster e procure Bil Arkwright, o Mago
local. Ele é um pouco molengão mas é honesto e te preparará nos
próximos quatro anos.
No fim, terá de voltar para Chipenden e dedicar-se muito ao estudo. Tem
de se concentrar naqueles livros para compensar o fato de eu não estar
aqui para te preparar!
— Porquê? O que se passa? Por que não vai regressar? — perguntei. Era
outra pergunta cuja resposta eu já sabia.
O Mago abanou a cabeça, pesaroso. — Porque só existe uma forma
correta de lidar com o Destruidor e provavelmente vai custar-me a vida.
A da garota também, se não estou enganado. É duro, rapaz, mas tem de
ser feito. Talvez um dia, daqui a anos, você mesmo se veja confrontado
com uma tarefa semelhante a esta. Espero que não, mas por vezes
acontece. O meu próprio mestre morreu a fazer algo idêntico e agora é a
minha vez. A história pode repetir-se e, se assim for, temos de estar
preparados para entregar as nossas vidas. São apenas ossos do ofício,
por isso é bom que se acostume.
Perguntei-me se o Mago estaria a pensar na maldição. Esperaria morrer
por causa dela? Se ele morresse, então não haveria ninguém para
proteger Alice lá em baixo à mercê do Destruidor.
— E então Alice? — protestei. — Não contou a Alice o que vai acontecer.
Enganou-a!
— Teve de ser. Provavelmente a garota já foi longe demais para poder
ser salva. É melhor assim. Pelo menos o espírito dela ficará livre. É
melhor do que preso àquela criatura imunda.
— Por favor — supliquei. — Deixe-me ir com você. Deixe-me ajudar.
— A melhor maneira de ajudar é fazendo o que te digo! — respondeu o
Mago com impaciência e, agarrando-me no braço, empurrou-me com
rudeza da carroça.
Caí desajeitadamente, ficando de joelhos. Quando me levantei, a carroça
já se afastava e o Mago nem sequer olhou para trás.
CAPÍTULO 20
A CARTA DA MÃE
Esperei até a carroça ter quase desaparecido de vista antes de começar
a segui-la, a minha respiração a ficar presa na garganta. Não sabia o
que fazer, mas era-me insuportável a idéia do que podia suceder. O
Mago parecia resignado a morrer e a pobre Alice nem sequer sonhava o
que ia lhe acontecer.
Não deveria existir risco demais ser visto — a chuva caía
abundantemente e as nuvens negras lá em cima faziam com que
estivesse tão escuro como se fosse meia-noite. Mas os sentidos do Mago
eram apurados, e se me aproximasse demais, ele saberia de imediato.
Então, corri e caminhei alternadamente, mantendo a distância mas
conseguindo ainda avistar a carroça de tempos a tempos.
As ruas de Priestown estavam desertas e, apesar da chuva, mesmo
quando a carroça seguia bastante mais à frente, conseguia ouvir ainda
o clip-clop dos cascos e as rodas da carroça a rolarem sobre as pedras.
Não tardei a avistar o campanário branco de calcário acima dos telhados,
confirmando a direção e o destino do Mago. Tal como esperava, dirigia-
se para a casa assombrada com a cave que dava acesso às catacumbas.
Naquele momento senti algo muito estranho. Não era a habitual
sensação dormente de frio que anunciava a aproximação de algo do
escuro. Não, isto era mais como um súbito fragmento minúsculo de gelo
mesmo dentro da minha cabeça. Nunca antes sentira nada assim, mas
não precisei de mais nenhum aviso. Calculei o que fosse e consegui
limpar a minha mente antes mesmo de o Destruidor falar.
— Finalmente te encontrei, sim!
Instintivamente, parei e fechei os olhos. Quando percebi que ele não
poderia ver através deles, mantive-os fechados assim. O Mago avisara-
me de que o Destruidor não via o mundo da mesma maneira que nós.
Apesar de poder nos encontrar, tal como uma aranha estava ligada à sua
presa por um fio de seda, ele continuava a não saber onde estávamos.
Por conseguinte, tinha de me manter assim. Tudo o que os meus olhos
vissem seria filtrado pa-ra os meus pensamentos e o Destruidor não
tardaria a começar a esquadrinhá-los. Talvez conseguisse mesmo
encontrar pistas de que eu estava em Priestown.
— Onde está, rapaz? Podia muito bem me dizer. Mais cedo ou mais tarde
acabará por fazê-lo. Pode ser por bem ou por mal. A escolha é sua. .
O fragmento de gelo estava a aumentar e toda a minha cabeça a ficar
dormente. Fez-me pensar de novo no meu irmão James e na fazenda.
Como ele me perseguira naquele Inverno e enchera os meus ouvidos de
neve.
— Vou a caminho de casa — menti. — Vou para casa descansar.
Enquanto falava, imaginei que me aproximava do pátio da fazenda com
a Colina do Carrasco a avistar-se no horizonte, através da escuridão. Os
cães tinham começado a ladrar e eu aproximava-me da porta de trás,
chapinhando nas poças, a chuva a bater-me no rosto.
— Onde está Ossos Velhos? Diga-me. Para onde vai com a garota? —
Voltou para Chipenden — disse. — Vai meter Alice num poço. Tentei
dissuadi-lo mas ele não me deu ouvidos. É o que ele costuma fazer a
uma bruxa.
Imaginei-me a abrir a porta de trás e a entrar na cozinha. As cortinas
estavam corridas e a vela de cera de abelha acesa no castiçal de latão
em cima da mesa. A Mãe estava sentada na sua cadeira de balanço.
Quando entrei, ela levantou a cabeça e sorriu-me.
O Destruidor desapareceu imediatamente e o frio começou a diminuir.
Não o impedira de me ler o pensamento mas enganara-o. Conseguira!
Segundos depois o meu júbilo desapareceu. Faria outra visita? Ou, pior
ainda, faria à minha família?
Abri os olhos e comecei a correr o mais depressa que podia em direção à
casa assombrada. Passados alguns minutos, ouvi de novo o som da
carroça e retomei a marcha e a corrida alternadas.
Por fim a carroça parou, mas quase de imediato partiu e escondi-me
num beco quando ela começou a avançar na minha direção. O filho do
agricultor vinha sentado curvado e sacudia as rédeas, fazendo com que
os cascos do enorme cavalo de tiro soassem nas pedras molhadas.
Aguardei cerca de cinco minutos para dar tempo a que Alice e o Mago
entrassem na casa antes de correr pela rua e levantar a tranca da porta
do pátio. Tal como esperava, o Mago trancara a porta de trás, mas eu
tinha ainda comigo a chave de Andrew e, passado um instante,
encontrava-me na cozinha. Tirei o coto de vela do bolso, acendi-o e
depois disso não foi preciso muito tempo para descer às catacumbas.
Ouvi em algum lugar um grito lá em frente e calculei o que fosse. O
Mago atravessava o rio carregando Alice. Mesmo com a venda e os
tampões nos ouvidos, ela devia ter conseguido sentir a água corrente.
Eu próprio não tardei a atravessar as pedras no rio e alcançar o Portão
de Prata mesmo a tempo. Alice e o Mago encontravam-se já do outro
lado e ele ajoelhara, preparando-se para fechá-lo.
Levantou a cabeça, furioso, quando me viu correndo para ele.
— Eu devia ter desconfiado! — gritou, a sua voz cheia de fúria. — A sua
mãe não te ensinou que é feio desobedecer?
Em retrospectiva, entendo agora a atitude do Mago, que só queria
manter-me a salvo, mas avancei rapidamente, agarrei o portão e
comecei a abri-lo. O Mago ofereceu resistência por um momento, mas
depois desistiu e veio para o meu lado, trazendo o seu bordão.
Não soube o que dizer. Não conseguia pensar com clareza. Não fazia
idéia do que esperava conseguir indo com eles. Mas de repente, lembrei-
me novamente da maldição.
— Quero ajudar — frisei. — Andrew falou-me da maldição. Que o senhor
iria morrer sozinho no escuro sem um amigo a seu lado. Alice não é sua
amiga mas eu sou. Se eu lá estiver, não poderá se cumprir. .
Levantou o bordão acima da cabeça como se fosse me bater com ele.
Pareceu crescer em tamanho até se agigantar por cima de mim. Nunca o
vira tão furioso. A seguir, para minha surpresa e desalento, baixou o
bordão, deu um passo na minha direção e bateu-me no rosto.
Cambaleei para trás, mal podendo acreditar que fosse verdade.
Não fora um estalo forte, mas vieram-me as lágrimas aos olhos e
desceram-me pelas faces. O Pai nunca me batera daquela maneira. Não
queria acreditar que o Mago o tivesse feito e senti-me magoado por
dentro. Magoara-me mais do que qualquer dor física.
Fitou-me com dureza por alguns momentos e abanou a cabeça como se
eu tivesse sido uma enorme desilusão para ele. Depois voltou a transpor
o portão, fechando-o e trancando-o atrás de si.
— Faça o que te digo! — ordenou. — Veio a este mundo por uma razão.
Não a desperdice por causa de al-go que não pode mudar. Se não o fizer
por mim, faça-o pela sua mãe. Volte para Chipenden. Depois vá a Caster
e faça o que te pedi. Seria a vontade dela. Faça com que ela se orgulhe
de você.
Ditas aquelas palavras, o Mago girou nos calcanhares e, guiando Alice
pelo cotovelo esquerdo, conduziu-a pelo túnel. Fiquei a vê-los até
virarem a esquina e desaparecerem de vista.
Devo ter ficado ali à espera cerca de meia hora, apenas a olhar para o
portão trancado, a mente paralisada.
Por fim, sem nenhuma esperança, virei-me e comecei a retroceder. Não
sabia o que ia fazer. Provavelmente apenas obedecer ao Mago, acho.
Voltar para Chipenden, depois ir para Caster. Que outra alternativa me
restava? Mas não me saía da cabeça o fato de o Mago me ter batido.
Provavelmente seria a última vez que nos víamos e separávamo-nos
furiosos e decepcionados.
Atravessei o rio, segui o caminho empedrado e subi à cave. Uma vez ali,
sentei-me no velho carpete bolorento a tentar decidir o que fazer.
Lembrei-me de repente de outro caminho para as catacumbas que me
levaria para lá do Portão de Prata. O alçapão que dava acesso à adega,
aquele por onde alguns dos prisioneiros tinham escapado!
Conseguiria lá chegar sem ser visto? Era perfeitamente possível, se
todos estivessem na catedral.
Mas mesmo que conseguisse descer às catacumbas, não sabia de que
forma poderia ajudar. Valia a pena desobedecer de novo ao Mago e tudo
em vão? Estaria apenas a tentar desperdiçar a minha vida quando tinha
a obrigação de ir a Caster e continuar a aprender o meu ofício? Teria o
Mago razão? Acharia a Mãe que era a atitude certa? Os pensamentos
rodopiavam constantemente dentro da minha cabeça mas não me
levaram a uma resposta clara.
Era difícil ter certeza fosse do que fosse, mas o Mago sempre me dissera
para confiar nos meus instintos e eles pareciam dizer-me que tinha de
tentar fazer algo para ajudar. Por pensar nisso, lembrei-me da carta da
Mãe porque fora exatamente o que ela me dissera.
«Abra-a numa altura de grande necessidade. Confie nos seus instintos.»
Era sem dúvida uma altura de grande necessidade, por isso,
extremamente nervoso, retirei o envelope do bolso do meu casaco.
Fiquei olhando para ele alguns momentos, depois abri-o com um rasgão
e retirei a carta lá de dentro. Aproximando-a da vela, comecei a ler.
Querido Tom,
Enfrenta um momento de grande perigo. Não contava que tal crise
surgisse tão cedo e agora tudo o que posso fazer é preparar-te dizendo-
te o que enfrenta e indicando os resultados que dependem da decisão
que tem de tomar.
Há muito que não consigo ver, mas uma coisa é certa. O seu mestre irá
descer à câmara funerária no ponto mais fundo das catacumbas e ali
enfrentará o Destruidor numa luta até a morte. Por necessidade, irá usar
Alice para atraí-lo àquele lugar. Ele não tem qualquer escolha. Mas você
tem uma escolha. Pode descer à câmara funerária e tentar ajudar.
Mas, nesse caso, dos três que vão enfrentar o Destruidor, só dois sairão
vivos das catacumbas.
Mas se virar as costas neste momento, os dois lá embaixo morrerão com
certeza. E morrerão em vão.
Às vezes, nesta vida, é necessário uma pessoa sacrificar-se pelo bem
dos outros. Gostaria de te proporcionar consolo, mas não posso. Seja
forte e faça o que a sua consciência ditar. Escolha o que escolher, me
orgulharei sempre de você.
Mãe
Lembrei-me do que o Mago me dissera pouco depois de me ter aceito
como seu aprendiz. Dissera-o com tamanha convicção que ficou gravado
na minha memória.
«Principalmente, não acreditamos em profecias. Não acreditamos que o
futuro esteja determinado.»
Nem queria acreditar no que o Mago dissera porque, se a Mãe estava
certa, um de nós — o Mago, Alice ou eu — morreria lá embaixo no
escuro. Mas a carta na minha mão dizia-me sem a menor sombra de
dúvida que a profecia era possível. De que outra forma poderia a Mãe ter
sabido que o Mago e Alice estavam neste momento na câmara funerária
prestes a enfrentar o Destruidor? E como fora que eu lera a carta
precisamente no momento certo?
Instinto? Seria suficiente para explicá-lo? Estremeci e senti mais medo
do que em alguma outra ocasião desde que começara a trabalhar para o
Mago.
Senti-me como se caminhasse num pesadelo em que tudo fora decidido
de antemão e eu não podia fazer nada nem tinha qualquer escolha.
Como podia existir uma escolha, quando deixar Alice e o Mago e ir
embora teria como consequência as suas mortes?
E havia outra razão para eu ter de voltar a descer às catacumbas. A
maldição. Fora por isso que o Mago me batera? Estava furioso porque, lá
no fundo, acreditava nela e tinha medo? Mais uma razão para ajudar.
Uma vez, a Mãe dissera-me que ele seria meu professor e acabaria por
se tornar meu amigo. Era difícil dizer se chegara ou não esse momento,
mas eu era certamente mais amigo dele do que Alice e o Mago precisava
de mim!
Quando abandonei o pátio e entrei no beco, continuava a chover mas os
céus estavam tranquilos. Sentia que vinha aí mais trovoada e estávamos
no que o meu pai chama «o olho da tempestade». Foi então que, no
relativo silêncio, ouvi o sino da catedral. Não era o som pesaroso que
ouvira em casa de Andrew, o toque de finados pelo padre que se matara.
Era um toque alegre e esperançoso a chamar a congregação para as
vésperas.
Esperei então no beco, encostando-me a uma parede para evitar
molhar-me demais. Não sei por que me dava ao incômodo, visto já estar
encharcado até aos ossos.
Por fim, o sino parou de tocar, e esperava que isso significasse que
estavam todos dentro da catedral e fora do caminho. Comecei então a
dirigir-me lentamente para lá.
Virei a esquina e desci direto ao portão. A luz começava a diminuir, e as
nuvens negras continuavam acumuladas lá em cima. Depois,
subitamente, o céu iluminou-se com uma sucessão de relâmpagos e vi
que a zona em frente da catedral estava completamente deserta.
Conseguia ver o exterior escuro do edifício com os seus contrafortes
grandes e as janelas altas pontiagudas. Os vitrais estavam iluminados
pela luz de velas, e na janela à esquerda da porta encontrava-se a
imagem de S. Jorge com a armadura vestida, segurando uma espada e
um escudo com uma cruz vermelha. À direita estava S. Pedro, de pé
diante de um barco de pesca. E ao meio, por cima da porta, a escultura
malévola do Destruidor, a cabeça de gárgula, lançando-me um olhar
feroz.
O santo que me dera o nome não estava lá. To-más3, o Céptico. Tomás,
o Descrente. Não sabia se fora a minha mãe ou o meu pai que escolhera
aquele nome, mas tinham escolhido bem. Eu não acreditava naquilo em
que a Igreja acreditava; um dia seria sepultado do lado de fora, e não de
dentro, do adro de uma igreja. Assim que me tornasse mago, os meus
ossos nunca iriam repousar em solo sagrado. Mas isso não me
incomodava nem um pouco. Como costumava dizer o Mago, os padres
não sabiam nada. Ouvi cantar dentro da catedral. Provavelmente o coro
que vira ensaiar depois de falar com o padre Cairns no confessionário.
Por um momento invejei-lhes a religião. Felizmente tinham algo em que
podiam todos acreditar em conjunto. Era mais fácil estar dentro da
catedral com todas aquelas pessoas do que descer sozinho às
catacumbas úmidas e frias.
Atravessei as lajes e avancei pelo caminho largo de gravetos que seguia
ao longo da parede norte da igreja.
Quando me preparava para dobrar a esquina, o meu coração teve um
baque súbito, saltando-me para a boca. Alguém estava sentado em
frente ao alçapão, encostado à 3 Na realidade, Tomé é o nome que
damos em português ao após-tolo referido. Mas trata-se apenas de uma
variante da tradução de Thomas, o nome de Aprendiz, traduzido aqui por
Tomás (NT) parede, abrigado da chuva. A seu lado via-se uma enorme
moca de madeira. Era um dos cobradores eclesiásticos.
Quase gemi alto. Devia estar à espera daquilo. Depois de todos aqueles
prisioneiros terem fugido deviam estar preocupados com a segurança —
e também com a adega cheia de vinho e de cerveja.
Enchi-me de desespero e estive mesmo para desistir, mas precisamente
quando me virei, prestes a afastar-me na ponta dos pés, ouvi um som e
parei a escutar até ter certeza. Afinal não me enganara. Era o som de
ressonar. O guarda estava adormecido! Como diacho é que podia estar a
dormir com toda aquela trovoada?
Mal podendo acreditar na minha sorte, encaminhei-me para o alçapão,
muito, muito devagarinho, procurando que as minhas botas não
fizessem barulho nos ladrilhos, preocupado que o guarda não acordasse
a qualquer momento e eu ter de fugir dali em disparada.
Senti-me bem melhor quando me aproximei. Havia duas garrafas de
vinho vazias ali perto. Estava decerto embriagado e provavelmente
demoraria algum tempo a acordar. No entanto, continuava a não poder
correr quaisquer riscos. Ajoelhei e introduzi a chave de Andrew na
fechadura com muito cuidado. Um instante depois abrira o alçapão e
descera para os barris lá em baixo antes de voltá-lo a fechar.
Tinha ainda a caixa de mechas e um coto de vela que andavam sempre
comigo. Não levei muito tempo a acendê-la. Agora conseguia ver — mas
não sabia ainda como encontrar a câmara funerária.
CAPÍTULO 21
UM SACRIFÍCIO
Caminhei cautelosamente por entre os barris e prateleiras com vinho até
chegar à porta que dava para as catacumbas. Pelos meus cálculos
faltariam menos de quinze minutos para o anoitecer, por isso não tive de
esperar muito.
Sabia que assim que o Sol se pusesse, o meu mestre obrigaria Alice a
chamar o Destruidor pela última vez.
O Mago tentaria apunhalar o Destruidor no cora-
ção com a lâmina, mas teria unicamente uma oportunidade. Se
conseguisse, a energia libertada provavelmente o mataria. Era corajoso
da parte dele estar preparado para sacrificar a vida, mas se falhasse,
Alice sofreria também.
Ao perceber que fora enganado, e estava agora aprisionado para sempre
atrás do Portão de Prata, o Destruidor ficaria furioso. Alice e o meu
mestre pagariam certamente com as vidas se ele não fosse aniquilado
com rapidez suficiente. Prensaria seus corpos nas pedras.
Estaquei ao fundo das escadas. Que caminho devia seguir? Obtive
imediatamente resposta à minha pergunta: lembrei-me de um dos
adágios do meu pai.
«Causa sempre a melhor impressão possível!»
Bem, como eu era canhoto, fazia tudo melhor com a esquerda, por isso,
em vez de seguir pelo túnel mesmo em frente, aquele que conduzia ao
Portão de Prata e ao rio subterrâneo para lá dele, segui o da esquerda.
Era estreito, apenas com a largura suficiente para permitir a passagem
de uma pessoa, e curvava e inclinava perigosamente para baixo pelo que
tinha a sensação de estar a descer uma espiral.
Quanto mais fundo ia, mais frio ficava e soube que os mortos estavam a
se reunir. Avistava constantemente coisas pelo canto do olho: os
fantasmas da Gente Pequena, formas diminutas pouco mais do que
reflexos luminosos que se moviam constantemente para dentro e para
fora das paredes do túnel. E estava desconfiado de que havia mais atrás
de mim do que à frente — uma sensação de que me seguiam; que
descíamos todos em direção à câmara funerária.
Por fim, vi uma vela tremular lá em frente e fui sair na câmara funerária.
Era mais pequena do que esperava, uma sala circular talvez nem com
vinte passos de diâmetro. Havia uma prateleira alta por cima, escavada
na rocha, e viam-se nela enormes urnas de pedra que continham os
restos dos mortos antigos. No centro do teto existia uma abertura mais
ou menos redonda como uma chaminé, um buraco escuro ao qual a luz
da vela não chegava.
Escorria água do teto de pedra e as paredes estavam cobertas de lodo
verde. Havia também um cheiro forte: uma mistura de água podre e
estagnada.
Um banco de pedra acompanhava a curvatura da parede; o Mago estava
ali sentado, ambas as mãos apoiadas no bordão, enquanto à direita dele
estava Alice, ainda com a venda e os tampões nos ouvidos.
Quando me aproximei, ele olhou-me fixamente, mas já não parecia
zangado, apenas muito triste.
— Ainda é mais tolo do que julgava — disse-me tranquilamente, quando
avancei e me coloquei diante dele.
— Vá embora enquanto ainda pode. Dentro de momentos será tarde
demais.
Abanei a cabeça.
— Por favor, deixe-me ficar. Quero ajudar.
O Mago soltou um longo suspiro.
— Pode piorar ainda mais a situação — disse-me.
— Se o Destruidor tiver algum aviso que seja, se manterá afastado deste
lugar. A garota não sabe onde ele está e eu consigo fechar a mente a
ele. E você? E se ele ler o seu pensamento?
— O Destruidor tentou ler-me o pensamento há pouco. Queria saber
onde o senhor estava. Também onde eu estava. Mas aguentei firme e
ele não conseguiu — contei-lhe.
— Como foi que o impediu? — inquiriu, a sua voz subitamente áspera.
— Menti-lhe. Fingi que ia a caminho de casa e disse-lhe que o senhor ia
regressar a Chipenden.
— E ele acreditou em você?
— Pelo visto — respondi, sentindo-me menos cheio de certeza.
— Bem, em breve o saberemos, quando for chamado. Bem, recue um
pouco para o túnel — pediu o Mago, a sua voz mais branda. — Poderá
assistir dali. Se isto correr mal, ainda terá alguma chance de fuga. Vá lá,
rapaz! Não hesite. Está quase na hora!
Fiz o que ele mandou, recuando alguma distância no túnel. Entretanto,
sabia que o Sol já teria descido abaixo do horizonte e o crepúsculo iria
instalar-se. O Destruidor abandonaria o seu esconderijo no subsolo. Sob
a forma de espírito, podia agora voar livremente pelo ar e atravessar
rocha sólida. Uma vez chamado, viria direito a Alice, mais rápido do que
um falcão, com as asas recolhidas, descendo a pique como uma pedra
na direção da sua presa. Se o plano do Mago funcionasse, não
perceberia de onde Alice aguardava. Mal aqui estivesse, seria tarde
demais. Mas nós também estaríamos aqui, para enfrentar a sua raiva
quando percebesse que fora ludibriado e estava aprisionado.
Vi o Mago pôr-se em pé e colocar-se de frente para Alice. Baixou a
cabeça e manteve-se perfeitamente imóvel durante um longo tempo. Se
fosse um padre, diria que estava a rezar. Por fim, estendeu as mãos
para Alice e vi-o retirar-lhe o tampão de cera do ouvido esquerdo.
— Chame o Destruidor! — gritou, numa voz sonora que encheu toda a
câmara e ecoou pelo túnel. —
Faça-o agora, minha jovem! Sem demora!
Alice não falou. Nem sequer se mexeu. Não precisava fazê-lo porque o
chamava com a mente, desejando a sua presença.
Não houve aviso da chegada dele. Num momento reinava o silêncio, no
seguinte houve uma rajada de frio e o Destruidor apareceu na câmara.
Do pescoço para cima era uma réplica da gárgula sobre a porta principal
da catedral: a boca aberta, a língua a sair, orelhas de cão enormes e
chifres perigosos. Do pescoço para baixo, era uma imensa nuvem negra
informe em ebulição.
Ganhara forças para assumir a sua forma original!
Que chance tinha agora o Mago contra ele?
Por um breve momento o Destruidor permaneceu perfeitamente imóvel
enquanto os seus olhos se agitavam de um lado para o outro. Olhos com
pupilas verde-escuras, com fendas verticais. Pupilas iguais às de uma
cabra.
Depois, ao perceber onde estava, soltou um gemido de angústia e
desalento que ecoou pelo túnel a ponto de o sentir vibrar nas próprias
solas das minhas botas e sacudir-me os ossos.
— Outra vez preso! E bem preso! — exclamou com uma frieza áspera e
sibilante que ecoou nas câmaras e me penetrou como gelo.
— Sim — confirmou o Mago. — Agora está aqui e aqui ficará, preso para
sempre neste maldito lugar!
— Aprecie o seu trabalho! Aspire o seu último sopro, Ossos Velhos.
Enganou-me, sim, mas para quê? Nada será, mas eu ainda terei domínio
sobre os de lá de cima. Ainda farei exigências e eles acatarão. Sangue
fresco me enviarão aqui para baixo! Por isso foi tudo em vão!
A cabeça do Destruidor ficou maior, o focinho tornando-se ainda mais
hediondo, o queixo alongando-se e curvando para cima ao encontro do
nariz curvo. A nuvem negra descia em ebulição, formando carne, pelo
que agora era visível um pescoço e os primórdios de umas espáduas
largas, forres e musculadas. Mas em vez de pele estavam cobertas de
escamas verdes ásperas.
Eu sabia do que o Mago estava à espera. No momento em que o peito
ficasse nitidamente definido, ataca-ria direto ao coração lá dentro.
Enquanto eu observava, a nuvem em ebulição desceu mais para formar
o corpo até à pélvis. Mas enganei-me! O Mago não usou a lâmina. Como
se aparecesse de lugar nenhum, a corrente de prata estava na sua mão
esquerda e levantou o braço para a arremessar ao Destruidor.
Já o vira fazer antes. Estava presente quando ele a atirara à bruxa,
Lizzie dos Ossos, formando uma espiral perfeita e descendo sobre ela,
prendendo-lhe os braços ao lado do corpo. Ela caíra por terra e não
pudera fazer nada senão ficar ali a protestar, a corrente envolvendo-lhe
o corpo e cerrando-lhe os dentes.
Deveria suceder o mesmo aqui, tinha certeza, e seria a vez de o
Destruidor ficar ali sem poder fazer nada.
Mas, no preciso momento em que o Mago se preparava para arremessar
a corrente de prata, Alice pôs-se em pé e arrancou a venda.
Sei que não era intenção dela, mas conseguiu colocar-se entre o Mago e
o seu alvo, fazendo-o falhar a pontaria. Em vez de passar pela cabeça do
Destruidor, a corrente de prata bateu-lhe no ombro. Ao tocar-lhe, a
criatura gritou em agonia e a corrente caiu no chão.
Mas ainda não terminara e o Mago pegou rapidamente no bordão. Ao
erguê-lo, preparando-se para o cravar no Destruidor, ouviu-se um
estalido súbito e a lâmina retrátil, feita com uma liga que continha prata,
estava agora à mostra, brilhando à luz da vela. A lâmina que o vira
amolar em Heysham. Vira-o usá-la uma vez antes, quando enfrentara
Tusk, o filho da bruxa velha, Mãe Malkin.
O Mago arremessou então o bordão com força e rapidez, direto ao
Destruidor, visando-lhe o coração. Ele tentou desviar-se mas era tarde
demais para evitar por completo o golpe. A lâmina perfurou-lhe o ombro
esquerdo e ele gritou de agonia. Alice recuou, uma expressão de terror
no seu rosto, enquanto o Mago puxava o seu bordão e o preparava para
uma segunda arremetida, o seu rosto ameaçador e decidido.
Mas, de repente, ambas as velas se apagaram, mergulhando a câmara e
o túnel na escuridão. Freneticamente, recorri à caixa de mechas para
voltar a acender a minha vela mas quando ganhou vida a tremular o
Mago estava sozinho na câmara. O Destruidor desaparecera pura e
simplesmente. E Alice também!
— Onde é que ela está? — gritei, correndo na direção do Mago, que
abanava a cabeça, pesaroso.
— Não se mexa! — ordenou. — Ainda não acabou!
Olhava para cima, para o lugar onde as correntes desapareciam no
buraco escuro no teto. Havia um laço e ao lado dele uma segunda
corrente solitária. Preso à sua extremidade, e quase a tocar no chão,
via-se um gancho grande. Era uma espécie de sistema de cadernal e
roldana semelhante ao usado pelos aparelhadores para fazerem descer
as pedras dos demônios até à posição pretendida.
O Mago parecia estar à escuta. — Encontra-se em algum lugar lá em
cima — murmurou.
— É uma chaminé? — perguntei.
— Sim, rapaz. Algo desse gênero. Pelo menos, era para essa finalidade
que servia às vezes. Muito tempo depois de ter sido aprisionado, e a
Gente Pequena ter morrido e desaparecido, homens fracos e tolos
fizeram sacrifí-
cios ao Destruidor neste mesmo lugar. A chaminé levava a fumaça para
o seu antro lá em cima e eles serviam-se da corrente para fazer subir a
oferenda queimada. Como pagamento, alguns foram prensados!
Começara a suceder algo. Senti uma corrente de ar vinda da chaminé e
registrou-se um frio súbito no ar. Olhei para cima quando algo que
parecia fumaça começou a descer lentamente, enchendo a parte superior
da câmara.
Era como se todas as oferendas queimadas que alguma vez tivessem
sido preparadas neste local estivessem a ser devolvidas!
Mas era muito mais densa que fumaça; parecia água, como um
remoinho negro a girar por cima das nossas cabeças. Em segundos ficou
calmo e parado, fazendo lembrar a superfície polida de um espelho
negro. Conseguia ver os nossos reflexos nele: eu de pé ao lado do Ma-
go, o seu bordão a postos, a lâmina a apontar para cima, pronta a
estocar.
O que aconteceu em seguida foi rápido demais para se ver
convenientemente. A superfície do espelho de fumaça avolumou-se na
nossa direção e irrompeu algo com suficiente rapidez e violência,
empurrando o Mago para trás. Ele caiu pesadamente, o bordão voando-
lhe da mão e partindo-se em duas partes desiguais com um som seco
forte.
A princípio fiquei atordoado, mal conseguindo pensar, incapaz de mover
um músculo, mas por fim, todo o meu corpo começou a tremer. Fui ver
se o Mago estava bem.
Encontrava-se de costas, de olhos fechados, um fio de sangue a
escorrer-lhe do nariz para a boca aberta. Respirava profunda e
regularmente de modo que o sacudi com cuidado, tentando acordá-lo.
Não reagiu. Aproximei-me do bordão partido e peguei no mais pequeno
dos dois pedaços, aquele que tinha a lâmina acoplada. Era mais ou
menos do comprimento do meu antebraço por isso enfiei-o no cinto.
Naquele momento, eu estava ao lado da corrente a olhar para cima.
Alguém tinha de tentar ajudar Alice a aniquilar esta criatura de uma vez
por todas, e eu era o único capaz de fazê-lo. Não podia deixá-la à mercê
do Destruidor. Assim, em primeiro lugar, procurei esvaziar a mente. Se
não tivesse nada lá dentro, o Destruidor não conseguiria ler-me os
pensamentos. Provavelmente o Mago estivera a treinar durante dias por
isso eu tinha simplesmente de dar o meu melhor.
Coloquei a extremidade da vela na boca, cravando-lhe os dentes, depois
agarrei cuidadosamente a única corrente com ambas as mãos,
procurando mantê-la o mais imóvel possível. A seguir coloquei os pés
por cima do gancho e prendi a corrente entre os joelhos. Eu tinha jeito
para subir por cordas e uma corrente não era assim muito diferente.
Comecei a subir com bastante rapidez, a corrente fria e a machucar-me
a mão. Na base da fumaça densa, inspirei fundo, sustive a respiração e
enfiei a cabeça na negrura. Não conseguia ver nada, e apesar de não
respirar, a fumaça estava a entrar-me no nariz e na boca aberta e sentia
um forte bafo acre na garganta que me fazia lembrar o de salsichas
queimadas.
Subitamente, a minha cabeça saiu da fumaça e icei-me mais pela
corrente até ficar com os ombros e o peito de fora dele. Encontrava-me
numa câmara circular quase idêntica à de baixo só que, em vez de uma
chaminé por cima, havia um poço por baixo e a fumaça enchia a metade
inferior da câmara.
Na parede em frente, havia um túnel que seguia para a escuridão e
outro banco de pedra onde Alice estava sentada, a fumaça quase a
chegar-lhe aos joelhos. Tinha a mão esquerda estendida na direção do
Destruidor. A hedionda criatura estava ajoelhada na fumaça, debruçada
sobre ela, o arco nu do seu dorso fazendo-me lembrar um enorme sapo
verde. No momento em que observava, atraiu a mão dela para a sua
bocarra e ouvi Alice gritar de dor quando começou a chupar-lhe o
sangue por debaixo das unhas. Esta era a terceira vez que o Destruidor
se alimentava do sangue de Alice desde que ela o libertara.
Quando terminasse, Alice pertencer-lhe-ia!
Sentia frio, frio como gelo, e a minha mente estava vazia. Não pensava
em nada de nada. Aproximei-me mais e passei da corrente para o chão
de pedra da câmara superior. O Destruidor estava absorto demais no
que fazia pa-ra se perceber da minha presença. Sem dúvida, nesse
aspecto era como o estripador de Horshaw: quando se estava a
alimentar mais nada importava.
Aproximei-me mais e levei a mão ao pedaço do bordão do Mago no meu
cinto. Retirei-o e ergui-o acima da cabeça, a lâmina apontada ao dorso
verde escamoso do Destruidor. Só tinha de fazê-la descer com força e
cravar-lha no coração. Reassumira a forma física e ia ser o fim dele.
Morreria. Mas quando comecei a retesar o braço, senti repentinamente
medo.
Sabia o que ia me acontecer. Seria libertada tamanha energia que eu
morreria também. Seria um fantasma tal e qual o pobre Bily Bradley,
que morrera depois de um demônio lhe arrancar os dedos. Ele chegara a
ser feliz como aprendiz do Mago, mas agora estava sepultado do lado de
fora do adro da igreja de Layton. A idéia era demasiado difícil de
suportar.
Estava apavorado — apavorado de morte — e comecei de novo a tremer.
Começou nos joelhos e subiu-me pelo corpo até a mão que segurava a
lâmina começar a tremer.
O Destruidor deve ter sentido o meu medo porque virou repentinamente
a cabeça, os dedos de Alice ainda na boca, o sangue a escorrer-lhe pelo
enorme queixo curvo.
Mas depois, quando era quase tarde demais, o meu medo evaporou-se
por completo. Percebi de imediato o motivo por que estava ali a
enfrentar o Destruidor. Lembrei-me do que a Mãe dissera na carta. .
Às vezes, nesta vida, é necessário uma pessoa sacrificar-se pelo bem
dos outros.
Ela avisara-me que dos três que enfrentariam o Destruidor, apenas dois
sairiam vivos das catacumbas. De certa forma, eu achava que o Mago ou
Alice morreriam, mas percebia naquele momento de que ia ser eu!
Nunca poderia concluir o meu aprendizado, nunca iria tornar-me mago.
Mas ao sacrificar a minha vida agora poderia salvar os dois. Estava
muito calmo. Aceitara simplesmente o que tinha de ser feito.
Tive a certeza de que mesmo no último instante o Destruidor percebera
o que eu ia fazer, mas em vez de me prensar ali até à morre, virou a
cabeça na direção de Alice, que esboçou um sorriso estranho e
misterioso.
Desferi rapidamente o golpe com todas as minhas forças, enterrando a
lâmina na direção do coração dele.
Não senti a lâmina fazer contato mas ergueu-se diante dos meus olhos
uma negrura horrível; o meu corpo estremeceu da cabeça aos pés, pelo
que não tinha controle sobre os meus músculos. A vela saltou-me da
boca e senti-me a cair. Falhara o coração dele!
Por um momento, pensei que tivesse morrido. Estava tudo escuro mas
de momento o Destruidor parecia ter desaparecido. Tateei o chão à
procura da vela e tornei a acendê-la. Escutando com atenção, fiz sinal a
Alice para que permanecesse em silêncio, e ouvi um som vindo do túnel.
Um cão grande a caminhar.
Enfiei no cinto o pedaço do bordão com a lâmina.
A seguir, tirei do bolso a corrente de prata da Mãe e enrolei-a na mão e
no pulso esquerdo, a postos para arremessá-la. Com a outra mão,
peguei a vela e, sem mais delongas, fui atrás do Destruidor.
— Não, Tom, não! Deixe-o ir! — gritou Alice de trás. — Acabou. Pode
voltar para Chipenden!
Correu para mim, mas repeli-a com força. Ela cambaleou e quase caiu.
Quando avançou de novo para mim, levantei a mão esquerda para que
ela pudesse ver a corrente de prata.
— Afaste-se! Você agora pertence ao Destruidor.
Fique longe senão te prendo também!
O Destruidor alimentara-se pela última vez e agora não podia confiar em
nada do que ela dissesse. Teria de matá-lo antes de ela poder ficar livre.
Virei-lhe as costas e afastei-me rapidamente. Ouvia o Destruidor à
minha frente; atrás de mim o click-click dos sapatos bicudos de Alice
seguindo-me pelo túnel. Subitamente, os passos lá à frente cessaram.
Teria o Destruidor desaparecido simplesmente e ido para outra parte das
catacumbas? Parei e pus-me à escuta antes de avançar com maior
cautela. Foi então que vi algo lá à frente. Algo no chão do túnel. Parei
mesmo em cima e senti náuseas. Quase vomitei ali mesmo.
O irmão Peter jazia de costas. Fora prensado. A cabeça mantinha-se
intacta; os olhos arregalados, fixos, mostravam o terror que obviamente
sentira na altura da morte. Mas do pescoço para baixo o seu corpo fora
espalmado contra as pedras.
A visão deixou-me horrorizado. Durante os meus primeiros meses de
aprendizado, vira muitas coisas terríveis e estivera perto da morte mais
vezes do que queria me lembrar. Mas esta era a primeira vez que via a
morte de alguém de quem gostava — e uma morte tão horrível.
Estava ali, distraído pela visão do irmão Peter, e o Destruidor escolheu
esse momento para vir correndo pela escuridão direto para mim. Por um
momento estacou e fitou-me, as fendas verdes dos seus olhos brilhando
no escuro. O seu corpo pesado e musculoso estava coberto de pêlo preto
hirsuto e as mandíbulas escancaradas, revelando as filas de dentes
amarelos afiados. Escorria-lhe algo da língua comprida que pendia das
mandíbulas abertas.
Em vez de saliva, era sangue!
De repente, o Destruidor atacou, correndo para mim. Preparei a corrente
e ouvi Alice gritar atrás de mim.
Percebi mesmo a tempo de que ele mudara o seu ângulo de ataque. O
alvo não era eu! Era Alice!
Fiquei atordoado. Eu constituía a ameaça para o Destruidor, não Alice.
Nesse caso, porquê ela e não eu?
Instintivamente, ajustei a pontaria. Conseguia acertar nove em dez
vezes no poste no jardim do Mago, mas isto era diferente. O Destruidor
deslocava-se rapidamente, começando já a saltar. Então, fiz estalar a
corrente e lancei-a na direção da criatura, vendo-a abrir-se como uma
rede e descer na forma de uma espiral. Toda a minha prá-
tica estava a compensar e ela caiu diretamente sobre o Destruidor
enrolando-se firmemente à volta do seu corpo.
Ele rebolou sucessivamente, uivando e tentando fugir.
Teoricamente, não conseguiria se libertar, nem desaparecer nem mudar
de forma. Mas eu não ia correr riscos. Tinha de lhe trespassar
rapidamente o coração. Tinha de acabar com ele agora. Então,
precipitei-me, tirei a lâmina do cinto e preparei-me para o estocar no
peito. Os seus olhos fitaram-me quando estava preparando a lâmina.
Estavam cheios de ódio. Mas havia também medo: o terror absoluto da
morte; o terror do nada que ia enfrentar, e falou dentro da minha
cabeça, suplicando freneticamente a vida.
— Misericórdia! Misericórdia! — exclamou. — Não existe nada para nós!
Apenas escuridão. É isso que quer, rapaz?
Morrerá também!
— Não, Tom, não! Não faça isso! — gritou Alice atrás de mim, juntando
a sua voz à do Destruidor. Mas ignorei ambas. Fosse qual fosse o custo,
ele tinha de morrer. Contorcia-se nas voltas da corrente e apunhalei-o
duas vezes antes de lhe acertar no coração.
A terceira, desferi um golpe e o Destruidor desapareceu simplesmente,
mas ouvi um grito medonho. Nunca irei saber se foi o Destruidor, Alice
ou eu que emitimos aquele som. Talvez tenhamos sido os três.
Senti um soco tremendo no peito, seguido de uma estranha sensação de
afundamento. Ficou tudo silencioso e senti-me a mergulhar na
escuridão.
Depois, só sei que estava junto de uma enorme extensão de água.
Apesar do seu tamanho, era mais um lago do que um mar, pois, apesar
de soprar uma brisa agradável na direção da margem, a água
permanecia calma, como um espelho, refletindo o azul perfeito do céu.
Estavam a lançar pequenos barcos à água numa praia de areia dourada,
e conseguia ver para lá deles uma ilha bastante próxima da praia. Era
verde com árvores e prados ondulantes e pareceu-me mais maravilhosa
do que algo que alguma vez tivesse visto em toda a minha vida.
Entre as árvores no topo de uma colina havia um edifício como o castelo
que tínhamos avistado das extensões rochosas baixas ao contornarmos
Caster. Mas em vez de ser construído em pedra cinzenta fria, brilhava
com luz, como se tivessem sido usadas as faixas de um arco-íris e os
seus raios aqueciam a minha testa como um sol glorioso.
Não respirava, mas sentia-me calmo e feliz e lembro-me de pensar que
se estava morto, então a morte era agradável e só tinha de alcançar
aquele castelo, de modo que corri em direção ao barco mais próximo,
desesperado por entrar a bordo. Quando me aproximei mais, as pessoas
deixaram de tentar lançar o barco e viraram os rostos para mim.
Naquele momento soube de quem se tratava.
Eram pequenas, muito pequenas, e tinham cabelo escuro e olhos
castanhos. Era a Gente Pequena! Os Segoncíacos!
Sorriram calorosamente, precipitaram-se para mim e começaram a
puxar-me na direção do barco. Nunca me sentira tão feliz na minha vida,
tão bem-vindo, tão desejado, de modo que aceitei. Toda a minha solidão
desapareceu. Mas precisamente quando ia subir para bordo, senti uma
mão fria agarrar-me o antebraço esquerdo.
Quando me virei, não havia ninguém mas a pressão no meu braço
aumentou até que começou a doer. Sentia unhas a cravarem-se na pele.
Procurei libertar-me, entrar no barco e a Gente Pequena tentou ajudar-
me também, mas a pressão no meu braço era agora uma dor ardente.
Gritei e engoli ar num enorme hausto doloroso que soluçou na minha
garganta e me deixou o corpo todo dormente, depois foi aquecendo cada
vez mais, como se eu estivesse a arder por dentro.
Encontrava-me deitado de costas no escuro. Chovia intensamente e
sentia as gotas baterem-me nas pálpebras e na testa e entrarem-me até
na boca, escancarada.
Estava cansado demais para abrir os olhos mas ouvi a voz do Mago a
alguma distância.
— Deixe-o aí! — disse. — Deixa-o em paz, minha jovem. É tudo o que
podemos fazer por ele agora!
Abri os olhos e vi Alice debruçada sobre mim. Atrás dela estava a parede
escura da catedral. Ela agarrava-me o antebraço esquerdo, as unhas
muito afiadas na minha pele. Inclinou-se para a frente e murmurou-me
ao ouvido.
— Não se escapa assim tão facilmente, Tom. Agora voltou. Voltou aonde
pertence!
Respirei fundo e o Mago avançou, os seus olhos cheios de espanto.
Quando ajoelhou a meu lado, Alice levantou-se e afastou-se.
— Como se sente, rapaz? — perguntou-me delicadamente, ajudando-me
a sentar. — Julguei que tivesse morrido. Quando te trouxe para fora das
catacumbas, juro que não havia qualquer sopro no seu corpo!
— O Destruidor? — inquiri. — Está morto?
— Está sim, rapaz. Acabou com ele e quase consigo no processo. Acha
que consegue caminhar? Precisamos nos afastar daqui.
Vi para lá do Mago o guarda com as garrafas vazias de vinho a seu lado.
Continuava no seu sono embriagado, mas podia acordar a qualquer
instante.
Com a ajuda do Mago, consegui pôr-me em pé e nós três abandonamos
os terrenos da catedral e percorremos as ruas desertas.
A princípio, estava fraco e trêmulo, mas à medida que subíamos
afastando-nos das filas de casas com terraço e voltávamos ao campo,
comecei a sentir-me mais forte.
Passado um tempo, virei-me e olhei para trás na direção de Priestown,
que se estendia lá em baixo. As nuvens tinham-se dissipado e a Lua
aparecera. O pináculo da catedral parecia brilhar.
— Até parece mais bonita — disse, parando para ver a vista.
O Mago colocou-se a meu lado e seguiu a direção do meu olhar.
— A maior parte das coisas parece melhor vista de longe — comentou.
— Aliás, a maior parte das pessoas também.
Devia estar gracejando, de modo que sorri.
— Bem — suspirou —, a partir de agora espero que seja um lugar bem
melhor. Mas nós também não temos pressa de voltar para cá.
Mais ou menos ao fim de uma hora na estrada, encontramos um celeiro
velho abandonado onde nos abrigamos. Tinha correntes de ar, mas pelo
menos estava seco e havia um bocado de queijo amarelo para
mordiscar. Alice adormeceu imediatamente enquanto eu fiquei muito
tempo sentado a pensar no que acontecera. O Mago também não
parecia cansado mas ficou sentado em silêncio, abraçado aos joelhos.
Por fim falou.
— Como sabia como matar o Destruidor? — inquiriu. — Observei-o —
respondi. — Vi-o tentar atingi-lo no coração. . — Mas, de repente, fui
vencido pela vergonha da minha mentira e baixei a cabeça. — Não,
desculpe
— corrigi-me. — Não é verdade. Aproximei-me quando o senhor foi falar
com o fantasma de Naze. Ouvi tudo o que disse.
— E bem deve pedir desculpa, rapaz. Correu um grande risco. Se o
Destruidor tivesse conseguido ler seu pensamento. .
— Lamento muito.
— E não me disse que tinha uma corrente de prata
— referiu.
— A Mãe me deu-a — retorqui.
— Ora ainda foi bem que ela o fez. Tenho-a no meu saco e por agora
está segura. Até voltar a precisar dela. . — acrescentou com ar sinistro.
Seguiu-se outro longo silêncio, como se o Mago estivesse perdido em
pensamentos.
— Quando te trouxe para cima das catacumbas, parecias frio e morto —
disse finalmente. — Já vi tantas vezes a morte que sei que não estava
enganado. Depois a garota agarrou o seu braço e voltou a si. Não sei o
que pensar disto.
— Estive com a Gente Pequena — referi.
O Mago anuiu.
— Sim — disse —, eles estarão em paz, agora que o Destruidor morreu.
Inclusive Naze. Mas conte-me lá, rapaz? Como é que foi? Teve medo?
Abanei a cabeça.
— Tive mais medo logo depois de ter lido a carta da Mãe — expliquei-
lhe. — Ela sabia o que ia acontecer.
Senti que não tinha escolha. Que tudo estava já decidido.
Mas se tudo já está decidido, de que serve viver?
O Mago carregou o cenho e estendeu a mão.
— Mostre-me a carta — pediu.
Tirei-a do bolso e entreguei-a. Demorou muito a lê-la, no fim acabou por
me devolver. Durante um tempo não disse nada.
— A sua mãe é uma mulher arguta e inteligente —
afirmou finalmente o Mago. — Só assim se justifica grande parte do que
ela escreveu. Ela adivinhou exatamente o que eu ia fazer. Ela possui
conhecimentos mais do que suficientes para fazê-lo. Não é profecia. A
vida já é suficientemente má sem acreditarmos nisso. Você escolheu
descer as escadas. Mas tinha outra opção. Podia ter-se ido embora e
depois teria sido tudo diferente.
— Mas assim que escolhi, ela estava certa. Nós os três enfrentamos o
Destruidor e só dois sobreviveram. Eu morri. O senhor trouxe-me para a
superfície. Como podemos explicar isso?
O Mago não respondeu e o silêncio entre nós foi aumentando cada vez
mais. Passado um tempo, deitei-me e mergulhei num sono sem sonhos.
Não aludi à maldição.
Sabia que era algo de que ele não iria querer falar.
CAPÍTULO 22
UM ACORDO É UM ACORDO
Era quase meia-noite e uma lua em crescente erguia-se acima das
árvores. Em vez de se aproximar da casa pelo percurso mais direto, o
Mago fez-nos contornar ela vindos de leste. Pensei no jardim oriental lá
na frente e no poço que aguardava Alice. O poço que eu abrira.
Certamente não a ia meter no poço agora? Não depois do que ela fizera
para ajudar a endireitar as coisas?
Deixara que ele a vendasse e tapasse os ouvidos com cera.
E depois ficara ali sentada horas em silêncio e no escuro sem se queixar
uma só vez.
Mas depois vi o riacho lá à frente e enchi-me de uma nova esperança.
Era estreito mas de curso rápido, a água cor de prata, cintilando ao luar,
e havia uma única pedra no meio.
Ele ia pôr Alice à prova.
— Muito bem, menina — disse-lhe, a sua expressão austera. — Vá na
frente. Atravesse lá!
Quando olhei para o rosto de Alice, caiu-me o co-ração aos pés. Parecia
apavorada e lembrei-me que tivera de a transportar para atravessar o
rio perto do Portão de Prata. Agora que o Destruidor estava morto, o seu
domínio sobre Alice cessara, mas teriam os danos ultrapassado já todas
as chances de recuperação? Teria Alice se aproximado demais do
escuro? Poderia nunca mais ser livre?
Nunca mais conseguir atravessar água corrente? Era já uma bruxa
malévola plenamente desenvolvida?
Alice hesitou à beira da água e começou a tremer.
Levantou por duas vezes o pé para dar o simples passo para a pedra
plana no meio do riacho. E por duas vezes o baixou de novo. Tinha-lhe
acumulado gotas de suor na testa e começavam agora a escorrer na
direção do nariz e dos olhos.
— Vamos, Alice, você é capaz! — gritei, procurando incentivá-la. Os
meus esforços valeram um olhar fulminante do Mago.
Num esforço súbito e terrível, Alice saltou para a pedra e fez avançar a
perna esquerda quase de imediato para se transportar até à outra
margem. Uma vez lá, sentou-se apressadamente e cobriu o rosto com as
mãos.
O Mago emitiu um estalido com a língua, atravessou o riacho e subiu a
colina em passadas largas direto às árvores na orla do jardim. Deixei-me
ficar para trás enquanto Alice se levantava, depois, juntos, fomos ter
com o Mago, que aguardava de braços cruzados.
Quando o alcançamos, o Mago avançou repentinamente e agarrou Alice.
Pegando-lhe pelas pernas, colocou-a no ombro. Ela começou a lamuriar-
se e a debater-se, mas sem dizer mais nenhuma palavra, ele agarrou-a
com maior firmeza, depois virou e entrou no jardim.
Eu seguia atrás, desesperado. Ele avançava pelo jardim oriental, indo
direto às sepulturas onde estavam as bruxas, direto ao poço vazio. Não
era justo! Alice passara no teste, não passara?
— Ajude-me, Tom! Ajude-me, por favor! — suplicou Alice.
— Não pode lhe dar mais uma oportunidade? —
implorei. — Só mais uma oportunidade? Ela atravessou.
Não é uma bruxa.
— Ela passou mesmo à prova desta vez — resmungou o Mago por cima
do ombro. — Mas existe maldade dentro dela, apenas à espera de uma
oportunidade.
— Como pode afirmar semelhante coisa? Depois de tudo o que ela fez. .
— Esta é a maneira mais segura. É o melhor para todos!
Soube então que chegara o momento daquilo que o meu pai chama
«umas tantas verdades». Tinha de lhe dizer que sabia de Meg, apesar de
ele poder vir a odiar-me por isso e não querer que eu continuasse a ser
seu aprendiz.
Mas talvez uma lembrança do passado o pudesse fazer mudar de idéias.
A hipótese de Alice ir para o poço era-me insuportável, e cem vezes pior
o fato de eu ter sido obrigado a abri-lo.
O Mago chegara ao poço e parara perto da beirada.
Quando ia enfiar Alice naquela escuridão, gritei: — O senhor não fez isso
com Meg!
Virou-se para mim com uma expressão de absoluto espanto no rosto.
— O senhor não enfiou Meg no poço, não é? —
bradei. — E ela era uma bruxa! O senhor não o fez porque gostava
demais dela! Por favor, não o faça a Alice!
Não está certo!
A expressão de espanto do Mago mudou para fúria e ficou ali, hesitante,
à beira do poço; por um momento não percebi se ia atirar Alice lá para
dentro ou saltar ele mesmo. Ficou ali bastante tempo, mas depois, para
meu alívio, a fúria pareceu dar lugar a outra coisa e virou-se e afastou-
se, continuando a carregar Alice.
Contornou o novo poço vazio, passou por aquele onde Lizzie dos Ossos
estava aprisionada, afastou-se em grandes passadas das sepulturas
onde as duas bruxas mortas estavam enterradas e avançou pelo
caminho de pedras brancas que dava acesso à casa.
Apesar da recente doença, tudo aquilo por que passara e do peso de
Alice no seu ombro, o Mago caminhava tão depressa que tive de fazer
um esforço para acompanhá-lo. Retirou a chave do bolso esquerdo das
calças, abriu a porta de trás da casa e estava lá dentro antes que o meu
pé tivesse tocado no degrau.
Foi direto à cozinha e estacou próximo da lareira, onda as chamas
faziam saltar fagulhas cintilantes pela chaminé acima. A cozinha estava
quente, as velas acesas, com talheres e pratos para dois em cima da
mesa.
Lentamente, o Mago desceu Alice do ombro e colocou-a no chão. Mal os
seus sapatos bicudos assentaram nas lajes o fogo extinguiu-se logo, a
vela tremulou e quase se apagou, e o ar ficou manifestamente gelado.
No instante seguinte, ouviu-se um rosnado furioso que fez chocalhar a
louça e vibrou pelo chão. Era o demônio de estimação do Mago. Se por
caso Alice tivesse atravessado o jardim, mesmo com o Mago por perto,
tê-la-ia desfeito. Mas como o Mago a transportara, só quando os pés
dela tocaram no chão é que o demônio se percebeu da presença de
Alice. E agora não estava nada satisfeito.
O Mago colocou a mão esquerda na cabeça de Alice. A seguir, bateu
ruidosamente com o pé esquerdo nas lajes três vezes.
O ar ficou muito silencioso e o Mago gritou em voz alta:
— Agora ouça-me bem! Escute com atenção o que te digo!
Não obteve resposta mas o fogo espevitou-se um pouco e o ar pareceu
menos frio.
— Enquanto esta moça estiver em minha casa, não lhe toque nem um fio
de cabelo! — ordenou o Mago. —
Mas vige tudo o que ela fizer e zele para que faça tudo o que eu mandar.
Dito aquilo, voltou a bater três vezes nas lajes. Em resposta, o fogo
acendeu-se na grelha e a cozinha pareceu de súbito mais quente e
acolhedora.
— E agora prepare ceia para três! — ordenou o Mago. Depois fez sinal e
o seguimos pela cozinha e escadas acima. Parou do lado de fora da porta
trancada da biblioteca.
— Enquanto aqui estiver, mocinha, vai ter de ganhar para o seu sustento
— resmungou o Mago. — Há ali dentro livros que são insubstituíveis.
Nunca poderá entrar lá, mas te darei um livro de cada vez e poderá
fazer uma cópia dele. Estamos entendidos?
Alice anuiu.
— A sua segunda tarefa será contar aqui ao rapaz tudo o que Lizzie dos
Ossos te ensinou. E refiro-me a tudo. Ele tratará de anotar. Muita coisa
será disparate, claro, mas isso não importa porque nos permitirá
aumentar os nossos conhecimentos. Está preparada para o fazer?
Alice tornou a acenar com a cabeça, o seu semblante muito sério.
— Bem, então está decidido — disse o Mago. —
Dormirá no quarto por cima do de Tom, aquele mesmo no topo da casa.
E agora, pense bem no que estou dizendo. Aquele demônio lá embaixo
na cozinha sabe o que você é e o que quase se tornou. Por isso não
corra sequer o risco porque ele estará vigiando tudo o que fizer. E nada
lhe agradaria mais do que. .
O Mago soltou um suspiro longo e profundo. —
Ele não hesitará sequer — referiu. — Por isso não lhe dê razão. Fará o
que te pedi, mocinha? Merece que confiem em você?
Alice anuiu e a sua boca alargou-se num enorme sorriso. À ceia, o Mago
esteve estranhamente calado. Parecia a calma que antecede uma
tempestade. Ninguém falou muito mas os olhos de Alice vagueavam por
todo o lado e voltavam sucessivamente à enorme fogueira acesa que
enchia a divisão de calor.
Por fim, o Mago afastou de si o prato e suspirou.
— Bem, mocinha — disse —, vá-se deitar. Tenho umas coisas que
preciso conversar com o rapaz.
Quando Alice saiu, o Mago empurrou a cadeira e aproximou-se da
fogueira. Curvou-se e aqueceu as mãos por cima das chamas antes de
se virar de frente para mim.
— Bem, rapaz — resmungou —, desembuche logo. Onde descobriu isso
sobre a Meg?
— Li-o num dos seus diários — respondi, timidamente, baixando a
cabeça.
— Bem me pareceu. Eu não tinha lhe avisado?
Voltou a desobedecer-me! Há coisas na minha biblioteca que não pode
ler por enquanto — referiu o Mago com ar severo. — Coisas para as
quais não está preparado. Eu serei o melhor juiz do que te convém ler.
Entendeu?
— Sim, mestre — respondi, dirigindo-me a ele por aquele título pela
primeira vez em meses. — Mas eu teria acabado por vir a saber de Meg
mesmo assim. O padre Cairns mencionou-a e contou-me também a
respeito de Emily Burns e que o senhor a roubou do seu irmão e isso
dividiu a sua família.
— Não consigo te esconder nada, não é rapaz?
Encolhi os ombros, sentindo-me aliviado por ter tirado um peso de cima
do peito.
— Bem — disse ele, voltando para a mesa —, cheguei a uma bela idade
e não me orgulho de tudo o que fiz, mas cada história não tem só uma
versão. Nenhum de nós é perfeito, rapaz, e um dia descobrirá tudo o que
precisa saber e depois poderá fazer o seu julgamento a meu respeito. E
escusado andar a remexer no passado agora, mas quanto a Meg, irá
conhecê-la quando formos a Anglezarke. Será mais cedo do que pensa
porque, dependendo do tempo, iremos partir para a minha casa de
Inverno mais ou menos dentro de um mês. O que mais o padre Cairns te
disse?
— Ele disse que o senhor vendeu a sua alma ao Diabo. .
O Mago sorriu.
— Os padres sabem alguma coisa? Não, rapaz, a minha alma continua a
pertencer-me. Lutei longos e longos anos para conservá-la, e
contrariamente ao que seria de esperar, ainda é minha. E quanto ao
Diabo, bem, costumava pensar que o mais provável era esse mal estar
dentro de cada um de nós, como uma mecha, apenas à espera da faísca
que a acenderia. Mas, mais recentemente, comecei a perguntar-me se,
afinal, existe algo por detrás de tudo aquilo que enfrentamos, algo
escondido bem no âmago do escuro. Algo que se torna mais forte à
medida que o escuro se fortalece também. Algo a que um padre
chamaria o Diabo. .
O Mago fitou-me com dureza, os seus olhos verdes cravando-se nos
meus.
— E se existisse algo como o Diabo, rapaz? O que faríamos?
Pensei por alguns instantes antes de responder.
— Precisaríamos abrir um poço bem grande —
disse eu. — O poço mais fundo alguma vez escavado por um mago.
Depois, precisaríamos de sacos e sacos de sal e ferro e de uma pedra
realmente grande.
O Mago sorriu.
— Tem toda a razão, rapaz, haveria trabalho para metade dos pedreiros,
aparelhadores e ajudantes do Condado! Vamos, agora vá se deitar.
Amanhã voltará às suas lições, por isso precisa dormir uma boa noite de
sono.
Quando abri a porta do meu quarto, Alice saiu das sombras nas escadas.
— Gosto muito deste lugar, Tom — disse, deitando-me um enorme
sorriso. — É uma bela casa, grande e quente. Um bom lugar para estar,
agora que o Inverno se aproxima.
Retribuí o sorriso. Podia ter-lhe dito que em breve partiríamos para
Anglezarke, para a casa de Inverno do Mago, mas ela estava feliz e não
quis estragar-lhe a primeira noite.
— Um dia esta casa nos pertencerá, Tom. Não o sente? — inquiriu.
Encolhi os ombros.
— Ninguém sabe o que vai acontecer no futuro —
referi, guardando a carta da Mãe no meu subconsciente.
— O Velho Gregory te disse, não disse? Bem, há muitas coisas que ele
não sabe. Será melhor mago do que ele alguma vez foi. Nada é mais
certo do que isso!
Alice virou-se e subiu as escadas meneando o quadril. De repente, olhou
para trás.
— O Destruidor estava desesperado pelo meu sangue — afirmou. — Por
isso fiz o acordo antes de ele beber. Eu só queria que tudo voltasse a
estar bem, por isso pedi-lhe que te deixasse e ao Velho Gregory em
liberdade. O Destruidor concordou. Um acordo é um acordo, por isso ele
não podia matar o Velho Gregory e também não podia lhe fazer mal.
Você matou o Destruidor mas eu fiz com que isso fosse possível. No fim,
foi por isso que me atacou. Não podia te tocar. Porém, não conte ao
Velho Gregory. Ele não iria entender.
Alice deixou-me ali estacado nas escadas enquanto as palavras dela iam
fazendo lentamente sentido na minha mente. De certa forma, ela
sacrificara-se. Ele a teria matado, tal como fizera com Naze. Mas ela
salvara-me e ao Mago. Salvara as nossas vidas. E eu nunca o
esqueceria.
Atordoado com o que ela dissera, entrei no meu quarto e fechei a porta.
Demorei muito a adormecer.
Mais uma vez, a maior parte do que escrevi foi de memória, recorrendo
apenas ao meu livro de apontamentos quando necessário.
Alice tem-se portado bem e o Mago está muito satisfeito com o trabalho
dela. É rápida a escrever, sem que a sua caligrafia deixe de ser legível e
cuidadosa. Está também a cumprir o prometido, a contar-me as coisas
que Lizzie dos Ossos lhe ensinou para que eu as possa anotar todas.
Claro, muito embora Alice não o saiba ainda, não vai ficar muito tempo
conosco. O Mago disse-me que ela irá começar a distrair-me demais e
que não conseguirei me concentrar nos meus estudos. Não lhe agrada
ter uma garota com sapatos bicudos a viver na sua casa, especialmente
uma que esteve tão perto do escuro.
Estamos em finais de Outubro, e em breve partiremos para a casa de
Inverno do Mago em Anglezarke Moor. Ali perto, há uma fazenda gerida
por umas pessoas em quem o Mago confia. Acha que são capazes de
deixar Alice ficar com elas. Claro, obrigou-me a prometer-lhe não contar
nada a Alice por enquanto. De qualquer forma, vou ficar triste quando
ela partir.
É claro que irei conhecer Meg, a bruxa lâmia. Talvez conheça também a
outra mulher do Mago. Blackrod fica perto da charneca e é onde Emily
Burns supostamente vive ainda. Tenho a impressão de que há muitas
outras coisas no passado do Mago que ainda desconheço.
Preferia ficar em Chipenden, mas ele é o Mago e eu não passo do
aprendiz. E acabei por perceber que existe uma razão muito plausível
para tudo o que ele faz.
Thomas J. Ward
Fim
AS CRÔNICAS DE WARDSTONE
Livro III
O SEGREDO DO MAGO
CAPÍTULO 1
UMA VISITA INESPERADA
Era uma noite fria e escura de Novembro e Alice e eu estávamos
sentados na cozinha junto da chaminé com o meu mestre, o Mago. O
tempo ia esfriando cada vez mais e sabia que o Mago podia decidir a
qualquer momento que chegara a hora de partir para a sua «casa de
Inverno» na erma charneca de Anglezarke.
Eu não tinha qualquer pressa de partir. Só era aprendiz do Mago desde a
Primavera e nunca vira a casa de Anglezarke, mas não deixaria que a
minha curiosidade fosse mais forte do que eu. Sentia-me quente e
confortável aqui em Chipenden e era onde preferia ter passado o
Inverno.
Levantei a cabeça do livro dos verbos latinos que tentava aprender e
Alice captou o meu olhar. Estava sentada num escabelo perto da
chaminé, o seu rosto banhado pelo clarão quente da fogueira. Sorriu-me
e retribuí. Alice era a outra razão de eu não querer deixar Chipenden. Ela
era o mais próximo de uma amiga que eu alguma vez tivera e salvara-
me a vida numa série de ocasiões ao longo dos últimos meses. Fora
realmente muito agradável tê-la aqui conosco. Tornara mais suportável a
solidão da vida de um mago. Mas o meu mestre confidenciara-me que
ela nos deixaria em breve. Na realidade, nunca confiara nela porque
provinha de uma família de bruxas. Achava igual-1 Terreno árido e
pedregoso. No Brasil, curiosamente, o termo ganhou significado oposto,
representando área de características pantanosas, como brejos e
banhados.
mente que começaria a distrair-me das minhas lições, por isso quando o
Mago e eu fôssemos para Anglezarke, ela não viria conosco. A pobre
Alice nem tal sonhava e não tive coragem de lhe dizer, por isso, no
momento limitava-me a desfrutar aqueles nossos últimos preciosos
serões juntos em Chipenden.
Mas, afinal, acabou por ser mesmo o nosso último serão do ano:
enquanto Alice e eu estávamos sentados lendo ao clarão da fogueira e o
Mago cabeceava na sua cadeira, o toque do sino de chamamento veio
quebrar a nossa paz. Ante aquele som indesejável, o coração caiu-me
diretamente aos pés. Só podia significar uma coisa: assuntos de mago.
Sabem, é que nunca vinha ninguém na casa do Mago. Para começar,
teria sido esganado pelo demônio de estimação que guardava o
perímetro dos jardins. Por isso, apesar da luz a diminuir e do vento frio,
competia-me ir até lá abaixo ao sino no círculo de salgueiros e ver quem
necessitava de ajuda.
Sentia-me quente e confortável depois da ceia antecipada e o Mago deve
ter notado a minha relutância em partir. Abanou a cabeça como se
desiludido comigo, os seus olhos verdes chispando, ferozes.
— Vá lá embaixo, rapaz — resmungou. — Está uma noite péssima e
quem quer que seja não vai querer que o façam esperar!
Enquanto me levantava e pegava na minha capa, Alice esboçou-me um
sorriso compadecido. Sentia pena de mim, mas via também que estava
feliz ali sentada a aquecer as mãos enquanto eu tinha de sair para o
vento cortante.
Fechei com firmeza a porta de trás quando saí e, levando uma lanterna
na mão esquerda, atravessei o jardim ocidental e desci a colina, o vento
a esforçar-se bastante por me arrancar a capa das costas. Cheguei
finalmente às árvores pendentes, onde duas estradas se cruzavam.
Estava escuro e a minha lanterna lançava sombras perturbadoras, os
troncos e os ramos transformando-se em membros, garras e rostos de
trasgos. Por cima da minha cabeça, os ramos despidos dançavam e
sacudiam-se, o vento assobiando e uivando como uma banshee, um
espírito feminino que avisava de uma morte iminente.
Mas aquilo não me preocupava muito. Já estivera ali antes de escurecer
e, nas minhas viagens com o Mago, enfrentara coisas que os poriam de
cabelos em pé. Por conseguinte, não ia me incomodar por causa de
algumas sombras; estava à espera de ser recebido por alguém muito
mais nervoso do que eu me sentia. Provavelmente o filho de algum
agricultor enviado pelo pai atormentado por um fantasma e desesperado
por ajuda; um rapaz que estaria apavorado só de se aproximar da casa
do Mago.
Mas não era um rapaz que aguardava junto às árvores pendentes e
estaquei, surpreso. Ali, por debaixo da corda do sino, encontrava-se uma
figura alta vestindo uma capa preta com capuz, um bordão na mão
esquerda. Era outro mago!
O homem não se mexeu, de modo que me encaminhei para ele,
estacando à distância de apenas dois passos. Tinha ombros largos e era
ligeiramente mais alto do que o meu mestre, mas mal lhe conseguia ver
o rosto pois o capuz mantinha as suas feições na sombra. Falou antes
que eu me pudesse apresentar.
— Sem dúvida ele estará a aquecer-se à lareira enquanto você vem
apanhar frio — afirmou o desconhecido, o forte sarcasmo na sua voz. —
Não muda mesmo!
— O senhor é Mr. Arkwright? — inquiri. — Sou Tom Ward, o aprendiz de
Mr. Gregory. .
Era um palpite bastante razoável. O meu mestre, John Gregory, era o
único mago que eu alguma vez conhecera mas sabia que existiam
outros, sendo o mais pró-
ximo Bil Arkwright, que exercia o seu ofício para lá de Caster, cobrindo
as regiões setentrionais que delimitavam o Condado. Por isso era muito
provável que este homem fosse ele — apesar de não adivinhar o que o
trazia ali.
O desconhecido retirou o capuz do rosto pondo a descoberto uma barba
preta salpicada de fios grisalhos e uma cabeleira preta rebelde prateada
nas têmporas. A boca dele sorriu mas os seus olhos eram frios e duros.
— Quem sou não é da sua conta, rapaz. Mas o seu mestre conhece-me
muito bem!
Ditas aquelas palavras, levou a mão dentro da capa, retirou um envelope
e entregou-me. Vireio, examinando-o rapidamente. Estava lacrado com
cera e vinha dirigido A John Gregory.
— Bem, ponha-se a andar, rapaz. Dê-lhe a carta e avise-o de que
voltaremos a nos encontrar em breve. Estarei à espera dele lá em
Anglezarke!
Fiz o que me mandavam, enfiando o envelope no bolso das calças,
satisfeito por poder me afastar dali, já que não me sentia confortável na
presença daquele desconhecido. Ainda mal me virará e dera alguns
passos, quando a curiosidade me fez olhar para trás. Para surpresa
minha, nem sinal dele sequer. Apesar de ele próprio não ter tido tempo
de dar mais do que alguns passos, desaparecera já nas árvores.
Intrigado, estuguei o passo, ansioso por voltar para a casa e abandonar
o vento frio e cortante. Ficara curioso quanto ao conteúdo da carta.
Houvera um tom de ameaça na voz do desconhecido e, pelo que
afirmara, não parecia que o desconhecido e o meu mestre fossem ter um
encontro amigável!
Com aqueles pensamentos a rodopiar na minha cabeça, passei o banco
onde o Mago me dava lições quando o tempo estava suficientemente
quente, e cheguei às primeiras árvores do jardim ocidental. Mas depois
ouvi algo que me fez suster a respiração com o medo.
Retumbou no escuro um bramido estridente, vindo de baixo das árvores.
Foi tão intenso e aterrador que me deixou pregado ao chão. Era uma
rosnadela vibrante que se podia ouvir por quilômetros e já a escutara
antes. Sabia que era o demônio de estimação do Mago que se preparava
para defender o jardim. Mas do quê? Estaria a ser seguido?
Virei-me e ergui a lanterna, espreitando cheio de ansiedade no escuro.
Talvez o desconhecido tivesse vindo atrás de mim! Não conseguia ver
nada, de modo que apurei os ouvidos, à escuta do mais ínfimo som. Mas
só conseguia ouvir o vento a suspirar através das árvores e o ladrar
distante de um cão de fazenda. Por fim, satisfeito por não ter sido
sequer seguido, prossegui o meu caminho.
Ainda não dera outro passo quando o bramido de raiva voltou, desta vez
muito mais próximo. Os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se e
fiquei então ainda com mais medo ao sentir que a fúria do demônio me
era dirigida. Mas por que haveria de estar zangado comigo?
Eu não fizera nada de mal.
Mantive-me perfeitamente imóvel, não ousando dar outro passo,
temendo que o meu mais leve movimento pudesse levá-lo a atacar.
Estava uma noite fria, mas formava-me suor na testa e sentia
verdadeiramente medo.
— Sou só eu, Tom! — gritei finalmente na direção das árvores. — Não há
nada a temer. Trago apenas uma carta para o meu mestre. .
Ouviu-se um rosnado como resposta, desta vez muito mais suave e
distante, pelo que após alguns passos hesitantes, avancei rapidamente.
Quando cheguei à casa, o Mago estava emoldurado na porta de trás, de
bordão na mão. Ouvira o demônio e viera investigar.
— Está bem, rapaz? — gritou.
— Estou — respondi, gritando também. — O
demônio estava furioso, mas não sei porquê. Mas agora parece que se
acalmou.
Com um aceno da cabeça, o Mago voltou para dentro de casa,
guardando o seu bordão atrás da porta.
Quando o segui até à cozinha, ele estava de costas para a lareira,
aquecendo as pernas. Retirei o envelope do bolso.
— Estava um desconhecido lá em baixo, vestido como um mago —
contei-lhe, estendendo a carta. — Ele não quis me dizer o nome mas
pediu-me para lhe entregar isto. . O meu mestre avançou e arrancou-me
a carta da mão. Imediatamente a vela em cima da mesa começou a
tremular, as chamas baixaram na grelha e um frio súbito encheu a
cozinha, tudo sinais de que o demônio ainda não estava apaziguado.
Alice pareceu alarmada e quase caiu do banquinho. Mas o Mago,
arregalando os olhos, rasgou o envelope e começou a ler.
Quando terminou, ficou carrancudo, a testa franzida de contrariedade.
Murmurando algo entre dentes, atirou a carta para o fogo, onde
irrompeu em chamas, encaracolando-se e enegrecendo antes de cair
para trás da grelha. Olhei para ele, estupefato. O seu rosto enchera-se
de fúria e parecia tremer da cabeça aos pés.
— Vamos partir amanhã de manhã bem cedo para a minha casa de
Anglezarke, antes que o tempo piore —
anunciou bruscamente, cravando os olhos em Alice —, mas você só nos
acompanhará até parte do caminho, mocinha. Vou te deixar perto de
Adlington.
— Adlington? — perguntei. — Isso é onde o seu irmão Andrew vive
agora, não é?
— É, rapaz, mas ela não ficará lá. Há um agricultor e a mulher nos
arredores da aldeia que, pelas minhas contas, me devem alguns favores.
Tiveram muitos filhos, mas infelizmente só um sobreviveu. Depois, para
somar à tragédia, houve uma filha que se afogou. O rapaz trabalha
agora fora a maior parte do tempo — a saúde começa a faltar à mãe e
convinha-lhe uma ajuda. Por isso vai ser a sua nova casa.
Alice olhou para o Mago, os seus olhos arregalando-se de espanto.
— A minha nova casa? Isso não é justo! — exclamou. — Por que não
posso ficar com você? Não fiz tudo o que pediu?
Alice não saíra da linha nem uma só vez desde o Outono, altura em que
o Mago a deixara vir viver conosco em Chipenden. Ganhara para o seu
sustento fazendo cópias de alguns dos livros da biblioteca do Mago, e
contara-me muitas coisas que a tia, a bruxa Lizzie dos Ossos, lhe
ensinara para que eu as pudesse anotar e aumentar os meus
conhecimentos de bruxaria.
— Sim, menina, fez o que te pedi, por isso não tenho razões de queixa
nessa matéria — referiu o Mago. —
Mas não é esse o problema. Treinar para ser mago é uma tarefa dura: a
última coisa de que Tom precisa é ser distraído por uma garota como
você. Não existe lugar para uma mulher na vida de um mago. Na
verdade, é o único verdadeiro aspecto que temos em comum com os
padres.
— Mas onde foi buscar essa idéia de repente? Eu ajudei Tom, não o
distraí! — protestou Alice. — E não podia ter trabalhado mais
arduamente. Alguém lhe escreveu a dizer o contrário? — exigiu saber,
furiosa, fazendo um gesto na direção da parte de trás da grelha, para
onde caíra a carta queimada.
— O quê? — perguntou o Mago, arqueando os sobrolhos, mas
percebendo depois rapidamente daquilo a que ela se referia. — Não,
claro que não. Mas o que está na correspondência privada não é da sua
conta. De qualquer forma, já tomei a decisão — continuou, fitando-a
com dureza. — Por isso a discussão acaba aqui. Vai começar de novo. É
uma oportunidade tão boa como qualquer outra para que possa
encontrar o seu lugar neste mundo, mocinha. E será também a sua
última oportunidade!
Sem uma palavra ou sequer um olhar na minha direção, Alice virou
costas e subiu ruidosamente as escadas até ao quarto. Levantei-me para
segui-la e dizer-lhe algumas palavras de consolo mas o Mago chamou-
me.
— Você espera aqui, rapaz! Precisamos conversar antes de subir aquelas
escadas, por isso sente-se!
Fiz o que me mandavam e sentei-me ao pé da chaminé.
— Nada que você diga vai me fazer mudar de idéia!
Aceite isso desde já e será tudo muito mais fácil — advertiu-me o Mago.
— Até pode ser — redargui —, mas havia maneiras melhores de lhe
contar. Não podia ter falado mais delicadamente com ela?
— Tenho mais com que me preocupar do que os sentimentos da garota
— contrapôs o Mago.
Era inútil discutir com ele quando estava assim, de modo que poupei a
minha saliva. Não ficara satisfeito, mas não havia nada que eu pudesse
fazer a esse respeito.
Sabia que o meu mestre tomara a decisão há semanas e não ia mudá-la
agora. Pessoalmente, não entendia por que tínhamos afinal de ir para
Anglezarke. E por que íamos assim, tão repentinamente? Teria algo a
ver com o desconhecido e o que ele escrevera na carta? O demônio
reagira também de uma forma estranha. Seria por saber que eu trazia
aquela carta?
— O desconhecido disse que o encontraria em Anglezarke — proferi
atrapalhadamente. — Ele não me pareceu muito amistoso. Quem era?
O Mago fuzilou-me com o olhar, e cheguei a pensar que não me fosse
responder. Depois abanou a cabeça e murmurou algo entre dentes antes
de falar.
— O nome dele é Morgan e foi em tempos meu aprendiz. Um aprendiz
falhado, devo acrescentar, muito embora estudasse sob a minha
orientação durante quase cerca de três anos. Como sabe, nem todos os
meus aprendizes são bem-sucedidos. Ele não estava simplesmente à
altura do ofício, por isso guarda ressentimentos, é só. Espero que não o
veja enquanto estivermos lá em cima, mas se vir, mantenha-se bem
afastado. Ele só traz problemas.
Agora, vá lá para cima: como te disse, amanhã temos de partir cedo.
— Por que temos de ir passar o Inverno a Anglezarke? — inquiri. — Não
podíamos ficar antes aqui? Não seria mais confortável nesta casa? — Era
algo que não fazia simplesmente o menor sentido.
— Já fez perguntas suficientes para um dia! — retorquiu o Mago, a sua
voz cheia de irritação. — Mas vou te adiantar o seguinte. Nem sempre
fazemos as coisas porque as queremos fazer. E se pretende conforto,
então este ofício não é para você. Goste ou não, as pessoas precisam de
nós lá — especialmente quando as noites caem.
Somos necessários e é por isso que vamos. Agora pode subir. Nem mais
uma palavra!
Não era a resposta completa que eu esperara, mas o Mago tinha boas
razões para tudo o que fazia e eu era apenas o aprendiz com muito
ainda que aprender. Por isso, com um aceno obediente, fui me deitar.
CAPÍTULO 2
O ADEUS A CHIPENDEN
Alice estava sentada nas escadas do lado à porta do meu quarto
aguardando-me. Uma vela ao lado dela projetava sombras na porta.
— Não quero ir embora daqui, Tom — lamentou-se, pondo-se em pé. —
Tenho sido feliz aqui, de verdade que tenho. A casa de Inverno dele
também não seria má. O Velho Gregory não está a agir bem comigo!
— Lamento, Alice, até concordo, mas ele decidiu.
Não há nada que eu possa fazer.
Dava para ver que estivera a chorar mas não sabia o que mais dizer. De
repente, pegou-me na mão esquerda e apertou-a com força. — Por que
tem ele de ser sempre assim? — perguntou. — Por que detesta tanto as
mulheres e as jovens?
— Acho que ele foi muito magoado no passado —
referi delicadamente. Soubera recentemente algumas coisas sobre o
meu mestre mas até ao momento guardara-as só para mim. — Olhe,
vou contar-te algo agora, Alice, mas tem de prometer não revelar nada a
ninguém nem deixar que o Mago saiba que fui eu quem te disse!
— Prometo — murmurou, de olhos muito arregalados.
— Bem, lembra-se da altura em que ele quase te meteu no poço quando
voltamos de Priestown?
Alice anuiu. O meu mestre tratava da saúde das bruxas malévolas
mantendo-as aprisionadas vivas em poços. Estivera prestes a meter
Alice num há algum tempo, muito embora ela não o merecesse
realmente.
— Lembra-se do que eu gritei? — inquiri.
— Não consegui ouvir bem, Tom. Estava a debater-me e apavorada, mas
o que quer que tenha dito funcionou porque ele mudou de idéia. Ficarei
sempre grata por isso.
— Apenas lhe recordei que se ele não enfiara Meg no poço, também não
o deveria fazer com você!
— Meg? — interrompeu Alice. — Quem é ela?
Nunca a ouvi mencionar antes. .
— Meg é uma bruxa. Li tudo sobre ela num dos diários do Mago. Quando
era jovem apaixonou-se por ela.
Acho que lhe despedaçou o coração. E mais, ela continua a viver em
algum lugar lá em Anglezarke.
— Meg o quê?
— Meg Skelton.
— Não! Isso é impossível. Meg Skelton veio de partes estrangeiras.
Voltou para lá há anos. Todos sabem isso. Era uma bruxa lâmia e queria
voltar a estar com as da sua própria espécie.
Eu ficara sabendo muito sobre bruxas lâmia ao ler um livro na biblioteca
do Mago. A maior parte provinha da Grécia, onde a minha mãe vivera
em tempos e, no estado selvagem, alimentavam-se do sangue de
humanos.
— Bem, Alice, tem razão quanto ao fato de ela não ter nascido no
Condado, mas o Mago diz que ela ainda está aqui e que a vou conhecer
neste Inverno. Por isso, pode estar a viver na casa dele.
— Não seja tolo, Tom. Isso não é provável, não é?
Qual a mulher no seu perfeito juízo que viveria com ele?
— Ele não é tão mau assim, Alice — fiz-lhe ver. —
Temos partilhado ambos uma casa com ele durante semanas e sido
suficientemente felizes!
— Se Meg está vivendo na casa dele lá — afirmou Alice, com um sorriso
malvado no rosto —, não se admire se ele a tiver enterrado num poço.
Retribuí o sorriso. — Bem, descobriremos isso quando lá chegarmos —
disse-lhe.
— Não, Tom. Você descobrirá. Eu irei viver noutro lugar. Lembra-se?
Mas até nem é muito mau porque Adlington fica perto de Anglezarke —
referiu ela. — Não é uma grande caminhada, por isso podia vir visitar-
me, Tom. Faria isso? Faria isso por mim? Desse modo não me sentiria
tão sozinha. .
Apesar de não ter a certeza de que o Mago me deixaria ir visitada, quis
que se sentisse melhor. De repente, lembrei-me de Andrew.
— E então Andrew? — disse. — Ele é o único ir-mão que resta ao Mago e
vive e trabalha atualmente em Adlington. O meu mestre irá querer
visitá-lo de tempos em tempos, a viverem assim tão perto. E
provavelmente me levará consigo. Daremos sempre um pulo na aldeia,
tenho certeza, por isso não faltarão oportunidades para eu te ver. Alice
sorriu então e largou a minha mão. — Então faça isso, Tom. Ficarei à sua
espera. Não me desiluda. E
obrigado por ter me contado essa coisa do Velho Gregory. Apaixonado
por uma bruxa, hein? Quem diria que ele era capaz?
Em seguida, pegou na vela e subiu as escadas. Iria realmente sentir
saudades de Alice, mas arranjar um pretexto para vê-la podia ser mais
difícil do que lhe dera a entender. Certamente o Mago não aprovaria. Ele
não tinha muito tempo para garotas e avisara-me em diversas ocasiões
que tivesse cuidado com elas. Contara já a Alice o suficiente sobre o
meu mestre, talvez até demais, mas havia mais coisas no passado do
Mago do que apenas Meg.
Ele também se envolvera com outra mulher, Emily Burns, que estava já
comprometida com outro dos seus irmãos.
Este morrera entretanto mas o escândalo dividira a família, causando
muitos problemas. Supostamente, Emily estaria a viver em algum lugar
próximo de Anglezarke. Não existe uma só versão da mesma história e
não ia me pôr a julgar o Mago enquanto não soubesse mais; mesmo
assim, eram mulheres demais para qualquer homem do Condado: o
Mago tivera sem dúvida uma vida agitada!
Entrei no meu quarto e coloquei a vela em cima da mesa-de-cabeceira
ao lado da cama. Havia perto dos pés dela uma quantidade de nomes
escrita numa parede, ra-biscados ali por antigos aprendizes. Alguns
tinham concluído com êxito a sua preparação com o Mago: o nome de Bil
Arkwright encontrava-se precisamente no canto superior esquerdo.
Muitos haviam falhado, não chegando ao fim do tempo. Alguns tinham
inclusivamente morrido.
O nome de Bily Bradley figurava ali no outro canto. Fora aprendiz antes
de mim mas cometera o erro de deixar que um demônio lhe arrancasse
os dedos. Bily morrera do choque e da perda de sangue.
Observei a parede com atenção naquela noite.
Tanto quanto sabia, quem quer que tivesse ocupado aquele quarto
escrevera ali o seu nome, incluindo eu. O
meu próprio nome era bastante pequeno porque não restava muito
espaço, mas figurava lá mesmo assim. No entanto, pelo que me era
dado ver, faltava um nome. Inspecionei cuidadosamente a parede para
me certificar, mas rinha razão: não havia nenhum «Morgan» escrito na
parede. Por que seria então?
O Mago dissera que ele fora seu aprendiz, nesse caso, o que o levara a
não acrescentar o seu nome?
O que houvera de tão diferente em Morgan?
Na manhã seguinte, depois de um desjejum rápido, fizemos as trouxas e
preparamo-nos para partir. Pouco antes de sairmos, dei uma escapada à
cozinha para me despedir do demônio de estimação do Mago.
— Obrigado por todas as refeições que preparou
— disse em voz alta para o ar vazio.
Não sabia bem se o Mago ficaria muito satisfeito com a minha
deslocação especial à cozinha para agradecer: estava sempre a falar de
manter a devida distância dos
«serviçais».
Fosse como fosse, sei que o demônio gostou do elogio porque mal acabei
de proferi-lo comecei a ouvir um ronronar cavo debaixo da mesa da
cozinha e tornou-se tão forte que os tachos e panelas começaram a
bater. O demônio era praticamente invisível, mas de vez em quando
assumia a forma de um gato grande cor de camarão.
Hesitei, enchi-me de coragem e voltei a falar. Não cheguei a saber como
iria o demônio reagir ao que eu tinha a dizer.
— Desculpe se te fiz se zangar a noite passada —
disse-lhe. — Só estava fazendo o meu trabalho. Foi a carta que te
incomodou?
O demônio não podia falar, de modo que não iria obter uma resposta por
palavras. O instinto levara-me a fazer a pergunta. Uma sensação de que
era a atitude certa.
De repente, veio uma lufada de ar pela chaminé, um tênue cheiro de
fuligem, depois um fragmento de papel elevou-se da grelha e veio
assentar no tapete da lareira.
Avancei e apanhei-o. Estava queimado nas pontas e uma parte desfez-se
nos meus dedos, mas sabia que era tudo o que restava da carta que eu
entregara a pedido de Morgan.
Havia apenas algumas palavras no pedaço de papel chamuscado e olhei
para elas por um tempo antes de as conseguir entender:
Dê-me o que me pertence senão farei com que se arrependa de ter
sequer nascido. Pode começar por
Era tudo o que restava, mas bastava para me dizer que Morgan estava
ameaçando o meu mestre. Do que se tratava? O Mago tirara algo de
Morgan? Algo que lhe pertencia por direito? Não imaginava o Mago a
roubar nada.
Ele não era desses. Não fazia o menor sentido.
Os meus pensamentos foram perturbados pelo Mago a gritar da porta da
frente. — Apresse-se, rapaz! O
que está fazendo? Não se demore! Não temos o dia todo!
Amassei o papel e atirei-o de novo para a grelha, peguei no meu bordão
e corri para a porta. Alice já se encontrava lá fora mas o Mago estava na
soleira, olhando-me com desconfiança, dois sacos aos seus pés. Não
levávamos muita coisa, mas teria de carregar ambos.
Entretanto, o Mago dera-me um saco só para mim, apesar de ainda não
ter muito que meter lá dentro. Continha apenas uma corrente de prata
que me fora dada pela minha mãe, uma caixa de mechas, que fora um
presente de partida do meu pai, os meus livros de notas e algumas
roupas. Algumas das minhas meias estavam tão engomadas que quase
pareciam novas, mas o Mago comprara-me um casaco de pele de
carneiro para o Inverno, que era muito quente, e usava-o por debaixo da
minha capa. Tinha também o meu próprio bordão — um novo que o meu
mestre talhara pessoalmente em madeira de sorveira, que era muito
eficaz contra a maior parte das bruxas.
O Mago, apesar de reprovar Alice, fora generoso com o vestuário dela.
Dera-lhe também um casaco de Inverno novo, de lã preta que lhe
chegava quase aos tornozelos; tinha um capuz acoplado para lhe manter
as orelhas quentes.
O frio não parecia incomodar muito o Mago e usava a capa e o capuz tal
como fazia na Primavera e no Verão. A sua saúde estivera debilitada nos
últimos meses, mas agora parecia ter se recuperado e encontrava-se
mais forte do que nunca.
O Mago trancou a porta da frente depois de sairmos, semicerrou os olhos
para o sol de Inverno e partiu a um ritmo furioso. Peguei em ambos os
sacos e segui o melhor que podia, com Alice logo atrás de mim.
— Oh, a propósito, rapaz — gritou o Mago por cima do ombro —, vamos
passar pela fazenda do seu pai a caminho do sul. Ele ainda me deve dez
guinéus como último pagamento pela sua preparação!
Fiquei triste por deixar Chipenden. Acostumara-me à casa e aos jardins e
lamentava que eu e Alice fôssemos ficar separados a partir de agora.
Mas pelo menos tinha oportunidade de ver a minha mãe e o meu pai.
Por isso o meu coração pulou de felicidade e havia uma nova energia no
meu passo. Ia a caminho de casa!
CAPÍTULO 3
A IDA A CASA
Ao viajarmos para sul, olhava constantemente para as extensões
rochosas. Subira-as tantas vezes quase até alcançar as nuvens que
algumas delas eram mesmo velhas amigas, em particular Parlick Pike,
que ficava mais próxima da casa de Verão do Mago. Mas, ao final do
segundo dia de caminhada, aquelas enormes colinas familiares não
passavam de uma linha baixa e purpúrea no horizonte e muito jeito me
deu o meu casaco novo. Tínhamos já dormido uma noite desconfortável
enregelados num celeiro sem telhado e, apesar de o vento ter abrandado
e o sol brilhar timidamente, parecia agora estar a ficar mais frio a cada
hora que passava.
Aproximamo-nos finalmente de casa, e a ansiedade de voltar a ver a
minha família aumentava a cada passo.
Estava desesperado por ver o meu pai. Na minha última visita ele
estivera a recobrar de uma doença grave, com poucas chances de
alguma vez recuperar plenamente a saúde. De qualquer forma, ele já
tencionava deixar de trabalhar e entregar a fazenda ao meu irmão mais
velho, Jack, no princípio do Inverno. Mas a doença dele viera precipitar
os acontecimentos. O Mago chamara-lhe de a fazenda do meu pai, mas
na realidade assim já não sucedia.
Subitamente, lá em baixo, avistei o celeiro e a familiar casa da fazenda
com uma pluma de fumaça a elevar-se da chaminé. A manta de retalhos
dos campos circundantes e as árvores despidas pareciam desolados e
invernosos e ansiei aquecer as mãos na lareira da cozinha.
O meu mestre parou ao fundo do caminho.
— Bem, rapaz, não me parece que o seu irmão e a mulher dele vão ficar
muito entusiasmados por nos verem. Os assuntos dos magos
incomodam muita gente, por isso não devemos contrariá-los. Vá lá
buscar o meu dinheiro; a garota e eu ficaremos aqui à espera. Sem
dúvida estará ansioso por voltar a ver a sua família, mas não se demore
mais de uma hora. Enquanto estiver sentado junto a um fogo quente,
nós estaremos aqui a bater o dente!
Ele tinha razão: o meu irmão Jack e a mulher não gostavam dos
assuntos dos magos e tinham-me avisado no passado para não os levar
até à porta deles. Por isso, deixei Alice e o Mago e subi correndo o
caminho em direção à fazenda. Quando abri o portão, os cães
começaram a ladrar e Jack apareceu vindo da lateral do celeiro.
Não nos tínhamos dado muito bem desde que eu me tornara aprendiz do
Mago, mas daquela vez pareceu satisfeito por me ver e o seu rosto
iluminou-se num sorriso rasgado.
— Fico feliz em te ver, Tom — disse, passando o braço pelos meus
ombros.
— E eu também, Jack. Mas como está o Pai? —
inquiri.
O sorriso desapareceu do rosto do meu irmão tão rapidamente quanto
surgira.
— A verdade, Tom, é que não acho que ele esteja muito melhor do que
da última vez que esteve aqui. Há uns dias em que notamos umas
melhoras, mas logo de manhã ele tosse e cospe tanto que mal consegue
respirar.
Dói só de ouvir. Queremos ajudá-lo mas não há nada que possamos
fazer.
Abanei a cabeça, pesarosamente.
— Pobre Pai. Vou passar o Inverno ao sul — informei-o —, e vim só
buscar o resto do dinheiro que o Pai deve ao Mago. Gostaria de poder
ficar, mas não dá. O
meu mestre está à espera no fundo do caminho. Partiremos novamente
dentro de uma hora.
Não mencionei Alice. Jack sabia que ela era sobrinha de uma bruxa e
tinha pouca tolerância com ela. Já antes houvera muitas razões e não
queria que a cena se repetisse.
O meu irmão virou-se e olhou para o caminho antes de me mirar de alto
a baixo.
— Está sem dúvida vestido a caráter— comentou com um sorriso
forçado.
Ele rinha razão. Eu deixara os sacos com Alice, mas com a capa preta
vestida e segurando o meu bordão parecia mesmo uma versão menor do
meu mestre.
— Gosta do casaco? — perguntei, afastando a capa para ele o poder ver
melhor.
— Parece quente.
— Mr. Gregory comprou-o para mim. Diz que vou precisar dele. Ele tem
uma casa em Anglezarke Moor, não muito longe de Adlington. É onde
vamos passar o Inverno e faz por lá um frio de rachar.
— Sim, irá fazer frio por lá — pode ter certeza disso! Antes você do que
eu. De qualquer forma, é melhor voltar para as minhas tarefas — disse
Jack. — Não deixe a Mãe à espera. Hoje tem estado muito alegre e
animada.
Devia saber que vinha.
Dito aquilo, Jack afastou-se atravessando o pátio, parando para acenar
da esquina do celeiro. Acenei também e depois encaminhei-me para a
porta da cozinha.
Muito provavelmente a Mãe soubera que eu vinha a caminho. Ela tem
aquela maneira de sentir as coisas. Como parteira e curandeira, sabe
muitas vezes quando alguém vem pedir-lhe ajuda.
Quando empurrei a porra de trás, encontrei a Mãe sentada na sua
cadeira de balanço junto ao fogo. As cortinas estavam corridas porque
ela é muito sensível à luz do sol. Sorriu-me quando entrei na cozinha.
— Que bom te ver, filho — disse-me. — Venha aqui dar-me um abraço e
depois pode contar-me todas as suas novidades!
Aproximei-me e ela me abraçou com força. Puxei depois uma cadeira
para o pé dela. Acontecera muita coisa desde a última vez que vira a
Mãe no Outono, mas enviara-lhe uma longa carta a falar-lhe dos perigos
que enfrentara com o meu mestre durante as fases derradeiras de um
trabalho em Priestown.
— Recebeu a minha carta, Mãe?
— Recebi, sim, Tom, e lamento muito não ter respondido, mas isto tem
estado complicado por aqui e sabia que passaria por aqui a caminho do
sul. Como se tem portado Alice?
— Ela acabou por seguir o caminho certo, Mãe, e está satisfeita vivendo
conosco em Chipenden, mas o problema é que o Mago ainda não confia
nela. Vamos pa-ra a sua casa de Inverno mas Alice vai ficar numa
fazenda com pessoas que nunca viu.
— Pode parecer duro — respondeu a Mãe —, mas tenho certeza de que
Mr. Gregory sabe o que está fazendo. Será tudo para o bem dela.
Quanto a Anglezarke, tenha cuidado por lá, filho. É uma charneca
sinistra e erma.
Calculo que Alice tenha tido sorte.
— Jack contou-me do pai. É tão mau quanto esperava, Mãe? —
perguntei. Da última vez que a vira, escondera de Jack os piores receios
mas dera-me a entender que a vida do Pai se aproximava do fim.
— Contava que ele ganhasse um pouco mais de forças. Precisa ser
vigiado com cuidado para aguentar o Inverno, e estou desconfiada que
terá o mesmo rigor de outros que vi desde a minha vinda para o
Condado. Ele agora está lá em cima a dormir. Levar-te-ei a vê-lo daqui a
alguns minutos.
— No entanto, Jack parece mais animado — referi, tentando desanuviar.
— Talvez tenha aceito a idéia de ter um mago na família.
A Mãe esboçou um largo sorriso.
— E deveria estar, mas, cá para mim, tem mais a ver com o fato de Ellie
estar novamente grávida e desta vez é um rapaz — tenho certeza. Jack
sempre quis um filho. Alguém que herdasse um dia a fazenda.
Fiquei feliz por Jack. A Mãe nunca se enganava naquelas coisas. Depois
percebi que a casa parecia sossegada. Quase demasiado sossegada.
— Onde está Ellie? — inquiri.
— Que pena, Tom, escolheu o dia errado para vir de visita. Quase todas
as quartas-feiras, ela vai visitar a mãe e o pai, levando consigo a
pequena Mary. Devia ver aquela criança agora! Está enorme para oito
meses e gatinha tão depressa que são precisos sete olhos para tomar
conta dela! Seja como for, sei que o seu mestre está à sua espera e faz
frio ali, por isso vamos lá acima ver o seu pai.
O Pai dormia profundamente, com quatro almofadas nas costas, pelo
que estava quase sentado.
— Ele respira mais facilmente naquela posição —
explicou a Mãe. — Ainda tem os pulmões um pouco congestionados.
O Pai respirava ruidosamente; o seu rosto estava macilento e havia uma
linha de suor na testa. A verdade é que ele parecia bastante doente —
uma mera sombra do homem forte e saudável que em tempos tomara
conta da fazenda sozinho ao mesmo tempo que era um bom pai
carinhoso para os sete filhos.
— Olhe, Tom, sei que gostaria de lhe dar uma palavrinha ou duas mas
ele não dormiu nada a noite passada.
É preferível não o acordarmos agora. O que me diz?
— Com certeza, Mãe — concordei, mas fiquei triste por não poder falar
com o meu pai. Estava tão doente, sabia que podia nunca mais voltar a
vê-lo.
— Bem, dê-lhe apenas um beijo, filho, e vamos deixá-lo dormir. .
Olhei para a minha mãe, espantado. Não me lembrava da última vez que
dera um beijo no Pai. Uma palmada no ombro ou um aperto de mão
rápido seria mais o caso. — Vamos, Tom, dê-lhe apenas um beijo na
testa
— insistiu a Mãe. — E deseje-lhe as melhoras. Ele pode estar dormindo
mas uma parte de si ouvirá o que disser e o fará sentir-se aliviado.
Fitei a Mãe e os seus olhos cruzaram-se com os meus. Havia firmeza no
seu olhar e senti a força da sua vontade. Então, fiz exatamente o que ela
pedia. Debrucei-me sobre a cama e beijei o pai de leve na testa quente e
úmida. Notei um cheiro estranho que não soube bem identificar. Um
cheiro de flores. Um tipo de flor a que não consegui atribuir um nome.
— Rápidas melhoras, Pai — murmurei muito baixinho. — Virei aqui na
Primavera e nos veremos então. A minha boca ficou subitamente seca, e
quando lambi os lábios, senti o gosto de sal da testa dele. A Mãe sorriu
com pesar e apontou para a porta do quarto.
Quando a seguia até lá fora, o Pai começou a tossir e a pigarrear atrás
de mim. Virei-me, preocupado e, naquele momento, ele abriu os olhos e
viu-me.
— Tom! Tom! É você? — chamou, antes de dar início a outro ataque de
tosse.
A Mãe voltou para trás e debruçou-se ansiosamente sobre o Pai,
acariciando-lhe delicadamente a testa até a tosse passar por fim.
— Tom está aqui — disse-lhe —, mas não se canse com conversa
demais.
— Está se esforçando, rapaz? O seu mestre está satisfeito com você? —
perguntou o Pai, mas a sua voz era fraca e áspera, como se tivesse algo
preso na garganta.
— Sim, Pai, está a correr bem. Na verdade, essa é uma das razões por
que estou aqui — disse-lhe, aproximando-me da cama. — O meu mestre
vai sem dúvida continuar a ensinar-me e quer os últimos dez guinéus
que lhe deve para pagar o meu aprendizado.
— Que boas notícias, filho. Estou muito satisfeito por você. Gostou então
de trabalhar em Chipenden?
— Gostei, Pai — afirmei com um sorriso —, mas agora vamos passar o
Inverno na casa dele em Anglezarke Moor. De repente, o Pai ficou
alarmado.
— Oh, quem me dera não ter de ir para lá, filho —
disse, olhando para a Mãe. — Contam histórias estranhas sobre aquele
lugar, e nenhuma delas boa. Todo o cuidado é pouco quando lá estiver.
Certifique-se de que se mantenha perto do seu mestre e escute com
atenção tudo o que ele diz.
— Ficarei bem, Pai. Não se preocupe. Aprendo mais a cada dia que
passa.
— Tenho certeza que sim, filho. Devo confessar que tive as minhas
dúvidas quanto a fazer o seu aprendizado para mago, mas a sua mãe
tinha razão. É uma tarefa árdua mas alguém tem de a fazer. Ela contou-
me as suas proezas até ao momento, e orgulho-me realmente muito de
ter um filho tão corajoso. Não tenho preferidos, atenção. Tive sete filhos,
todos bons moços. Adoro todos os meus rapazes e orgulho-me muito de
cada um, mas tenho um pressentimento de que é capaz de vir a ser o
melhor da prole.
Limitei-me a sorrir, sem saber o que dizer. O Pai sorriu também, depois
fechou os olhos e, passados momentos, o ritmo da sua respiração
mudou e ele mergulhou de novo no sono. A Mãe indicou a porta e
saímos do quarto. Quando voltamos para a cozinha, perguntei à Mãe
sobre o estranho cheiro.
— Fez a pergunta, por isso não vou tentar escondê-lo de você, Tom —
referiu. — Para além de ser o sétimo filho de um sétimo filho, herdou
algumas coisas de mim. Somos ambos sensíveis ao que chamamos
«avisos de morte». Portanto, o que cheirou é a aproximação da morte..
Senti um nó na garganta e as lágrimas começaram a picar por detrás
dos meus olhos. Imediatamente a Mãe avançou e abraçou-me.
— Oh, Tom, procura não se enervar. Não significa que o seu pai vá
necessariamente morrer daqui a uma semana, um mês ou mesmo um
ano. Mas quanto mais forte o cheiro, mais próxima a morre está. Se
alguém se recupera plenamente, o cheiro desaparece. E pode suceder o
mesmo com o seu pai. Há dias em que o cheiro quase nem sequer se
nota. Estou fazendo o meu melhor por ele e ainda há esperança. De
qualquer forma, pronto, já te contei e sempre aprende algo mais.
— Obrigado, Mãe — respondi com tristeza, preparando-me para partir.
— Não vá embora nesse estado — disse a Mãe, a sua voz suave e
bondosa. — Sente-se aí ao pé do fogo que vou preparar uns sanduíches
para a viagem.
Obedeci-lhe enquanto ela preparava rapidamente um embrulho com
sanduíches de presunto e frango para nós os três.
— Não estamos nos esquecendo de nada? — indagou ela quando me
entregou o embrulho.
— O dinheiro de Mr. Gregory! — respondi. Esquecera-me por completo.
— Espere aí, Tom — disse ela. — Vou num instante buscá-lo no meu
quarto.
Por «meu quarto» não estava a referir-se ao quarto de dormir que
partilhava com o Pai. Falava do quarto trancado próximo do topo da casa
onde guardava os seus pertences. Só entrara lá uma vez desde que
começara a andar, e fora depois quando ela me dera a corrente de
prata. Mais ninguém entrava naquele quarto. Nem sequer o Pai.
Havia lá muitas caixas e arcas mas não imaginava o que pudessem
conter. Pelo que a Mãe acabara de dizer, também lá havia dinheiro. Fora,
antes de mais, o dinheiro da Mãe que comprara a nossa fazenda.
Trouxera-o consigo do seu país, a Grécia.
Antes de partir, a Mãe entregou-me o embrulho de sanduíches e contou
dez guinéus na minha mão. Quando me olhou nos olhos, detectei neles a
preocupação.
— Vai ser um Inverno longo, duro e cruel, filho.
Todos os sinais estão lá. As andorinhas voaram para sul quase um mês
antes do habitual e a primeira geada chegou quando as minhas últimas
rosas ainda estavam em flor —
algo nunca visto antes. Vai ser difícil e não creio que nenhum de nós lhe
vá sobreviver sem mudanças. E não poderia haver pior lugar onde
passá-lo do que em Anglezarke. O seu pai estava preocupado com você,
filho, e eu também estou. E as suas palavras estavam certas. Por isso
vou deixar de rodeios. Não há dúvida que o escuro está a ganhar força e
existe uma influência particularmente sinistra lá naquela charneca.
Alguns dos Deuses Antigos eram venerados ali, há muito tempo, e no
Inverno alguns deles começam a agitar-se no sono. O pior deles era
Golgoth, a quem alguns chamam o Senhor do Inverno. Por isso fique
perto do seu mestre. Ele é o único verdadeiro amigo que tem. Precisam
ajudar-se um ao outro.
— E então Alice?
A Mãe abanou a cabeça.
— Pode ser que ela fique bem e pode ser que não.
Sabe, lá naquela charneca fria vai estar mais próximo do escuro do que
na maior parte dos outros lugares do Condado, por conseguinte, essa
proximidade irá submetê-la a uma nova prova. Espero que ela a vença,
mas não consigo ver o resultado. Faça apenas o que te disse. Trabalhe
em conjunto com o seu mestre. Isso é que conta.
Abraçamo-nos mais uma vez, depois disse adeus e voltei a descer o
caminho.
CAPÍTULO 4
A CASA DE INVERNO
Quanto mais nos aproximávamos de Anglezarke, pior o tempo ficava.
Começara a chover e o vento frio de sudeste aumentou até bater com
força nos nossos rostos, as nuvens cinzentas baixas e opressivas como
um peso de chumbo a pairar por cima das nossas cabeças. Mais tarde, o
vento soprou ainda com maior intensidade e a chuva deu lugar a neve e
granizo. O solo tornou-se lama debaixo dos nossos pés e progredíamos
muito lentamente. Para piorar a situação, só encontrávamos áreas de
terra coberta de musgo e pântano traiçoeiro enlameado, e foi necessária
toda a sabedoria do Mago para sairmos dali em segurança.
Mas na manhã do terceiro dia, a chuva abrandou e as nuvens dissiparam
pelo que pudemos ver uma linha lúgubre de colinas mesmo lá à frente.
— Ali está! — anunciou o Mago, apontando para a linha do horizonte
com o seu bordão. — Anglezarke Moor. E além, cerca de seis
quilômetros e meio para sul —
repetiu o gesto —, fica Blackrod.
Estávamos distantes demais para ver a aldeia. Julguei conseguir
distinguir alguns fios de fumaça mas podiam ser nuvens.
— Como é Blackrod? — perguntei. O meu mestre mencionava-a de
tempos a tempos, por isso imaginei que fosse o lugar onde iria buscar as
nossas provisões semanais.
— Não é um lugar tão simpático quanto Chipenden, por isso é melhor
evitá-lo — sugeriu o Mago. — Vivem lá pessoas estranhas e muitas delas
são família. Eu nasci lá por isso sei o que digo. Não, Adlington é um
lugar bem mais agradável e agora já não falta muito para chegarmos.
Cerca de um quilômetro e meio para norte fica o lugar onde iremos te
deixar, mocinha — dirigiu-se a Alice.
— Chama-se Moor View Farm. Irá ficar com Mr. e Mrs.
Hurst, que são os donos.
Cerca de uma hora depois chegamos a uma casa de fazenda isolada
perto de um lago grande. Quando o Mago avançou, os cães começaram
a ladrar; não tardou a encontrar-se no pátio, a falar com um velho
agricultor que não parecia lá muito satisfeito de vê-lo. Passados cerca de
cinco minutos a mulher reuniu-se a eles. Não foi trocado um único
sorriso entre os três.
— Não vou ser bem-vinda aqui, tenho certeza! —
referiu Alice, descaindo os cantos da boca.
— Pode ser que não seja muito mau — disse-lhe, tentando animada. —
Não se esqueça, eles perderam uma filha. Há pessoas que nunca
recuperam de uma tragédia dessas.
Enquanto esperávamos, observei a fazenda com mais atenção. Não
parecia muito próspera e a maior parte dos edifícios encontrava-se em
ruínas. O celeiro estava inclinado e parecia que a próxima tempestade o
derrubaria. Tudo o que se avistava tinha um ar lúgubre. Não pude deixar
de ficar também curioso a respeito do lago ali próximo. Era uma
extensão desconsolada de água cinzenta delimitada por pântano ao
fundo, apenas com alguns salgueiros atrofiados na margem mais
próxima. Fora ali que se afogara a filha deles? Sempre que fossem às
janelas da frente, os Hursts recordar-se-iam do que acontecera.
Passados alguns minutos o Mago virou-se e fez-nos sinal para nos
aproximarmos e lá nos arrastamos pela lama em direção ao pátio.
— Este é o meu aprendiz, Tom — disse o Mago, apresentando-me ao
velho lavrador e à mulher.
Sorri e saudei-os. Ambos me baixaram a cabeça mas não retribuíram o
meu sorriso.
— E esta é a jovem Alice — continuou o Mago. —
É muito trabalhadora e será muito útil para ajudar na casa.
Sejam firmes mas gentis com ela e não lhe dará problemas. Olharam
Alice de alto a baixo mas não abriram a boca; após um breve aceno na
direção deles e um breve sorriso, pregou os olhos nos seus sapatos
bicudos. Percebi que estava infeliz; a sua estada na casa dos Hursts não
começava lá muito esperançosa. Na realidade, não a culpava. Tinham
ambos um ar infeliz e derrotado, como tivessem sido vencidos pela vida.
Os sulcos fundos no rosto e na testa de Mr. Hurst sugeriam que tinha
mais prática de franzir os sobrolhos do que de dar gargalhadas.
— Têm visto Morgan ultimamente? — inquiriu o Mago. Ante o uso súbito
do nome «Morgan» levantei bruscamente a cabeça e vi a pálpebra
esquerda de Mr.
Hurst tremelicar e entrar em espasmos. Parecia nervoso.
Talvez até assustado. Teria sido o mesmo Morgan que me entregara a
carta para o Mago?
— Não muito — respondeu Mrs. Hurst taciturna-mente, sem encarar o
Mago. — Ele fica aqui uma noite ou outra, mas vai e vem como lhe
apraz. No momento tem-se mantido principalmente afastado.
— Quando foi a última vez que ele esteve aqui?
— Há duas semanas. Talvez mais...
— Bem, quando ele aparecer aqui de novo, diga-lhe que gostaria de lhe
dar uma palavrinha ou duas. Diga-lhe que apareça lá em casa.
— Sim, lhe direi.
— Mas diga mesmo. Bem, nós vamos andando.
O Mago deu meia volta e peguei no meu bordão e nos dois sacos e
segui-o. Alice veio correndo atrás de mim e agarrou-me o braço,
obrigando-me a parar.
— Não se esqueça do que prometeu — murmurou ao meu ouvido
esquerdo. — Venha visitar-me e que não passe mais de uma semana.
Estou a contar com você, olhe que estou mesmo!
— Virei te ver, não se preocupe — respondi-lhe, esboçando um sorriso.
E depois, foi ter com os Hursts e vi os três entrarem na casa da fazenda.
Senti realmente pena de Alice, mas não podia fazer nada.
Quando deixamos para trás Moor View Farm, falei ao Mago do que me
começara a preocupar.
— Eles não pareceram muito satisfeitos por receberem Alice — comentei,
esperando que o Mago me contradissesse. Para meu choque e surpresa,
ele deu-me razão.
— Sim, lá isso é verdade, não ficaram mesmo nada satisfeitos. Mas não
tiveram outra alternativa. Sabe, os Hursts devem-me uma quantia
razoável. Por duas vezes os livrei de demônios perturbadores. E ainda
não recebi uma moeda sequer pelo meu trabalho árduo. Concordei em
saldar a dívida deles se recebessem Alice.
Nem queria acreditar no que ouvia. — Mas isso não é justo para Alice! —
protestei. — Eles podem tratá-la mal.
— Aquela jovem sabe tomar conta de si, como você muito bem sabe —
redarguiu com um sorriso forçado.
— Além disso, calculo que não vá conseguir ficar longe e virá visitá-la de
tempos em tempos para ver se está bem.
Quando abri a boca para protestar, o sorriso do Mago alargou-se ainda
mais pelo que parecia um lobo esfomeado, abrindo as mandíbulas para
arrancar a cabeça à sua presa.
— Então, estou certo? — perguntou-me.
Anuí.
— Bem que achei, rapaz. Já te conheço suficientemente bem agora. Por
isso não se preocupe demais com a garota. Preocupe-se mas é consigo.
Provavelmente vai ser um Inverno difícil. Que nos irá testar até aos
limites das nossas forças. Anglezarke não é lugar para os fracos e os
medrosos!
Algo mais estava a me intrigar, de modo que decidi deitá-lo para fora do
peito. — Ouvi-o perguntar aos Hursts por alguém chamado Morgan —
referi. — É o mesmo Morgan que lhe enviou a carta?
— Bem, espero sinceramente que não existam dois, rapaz! Um já dá
trabalho suficiente.
— Portanto, às vezes ele fica na casa dos Hursts?
— Fica sim, rapaz, que é o que se espera dado ser filho deles.
— E mandou Alice para casa dos pais de Morgan!
— articulei, estupefato.
— Sim. E sei o que estou fazendo, por isso chega de perguntas por ora.
Vamos prosseguir. Precisamos chegar lá muito antes de anoitecer.
Desde o primeiro momento em que as vira de perto, gostara do aspecto
das extensões rochosas à volta de Chipenden, mas de certa forma
Anglezarke Moor era diferente. Não conseguia perceber bem o que era,
mas quanto mais nos aproximávamos mais o meu ânimo se afundava.
Talvez fosse o fato de a estar vendo na última parte do ano, em que era
mais triste e o Inverno se aproximava.
Ou talvez fosse a própria charneca escura a erguer-se diante de mim
como um gigantesco animal adormecido, as nuvens a cobri-la das suas
alturas sombrias. Mais provavelmente, seria por todos terem me avisado
a seu respeito dizendo-me quão rigoroso iria ser o Inverno. Fosse como
fosse, senti-me ainda pior quando vi a casa do Mago, o lugar sinistro
onde iríamos ficar nos próximos meses.
Aproximamo-nos dela seguindo um regato em direção à nascente,
subindo o que o Mago chamou uma «ravina», que era uma fenda na
charneca, um vale fundo e estreito com vertentes íngremes a erguer-se
de cada lado.
A princípio, as vertentes eram apenas seixos, mas não tardou que essas
pedras soltas dessem lugar a tufos de erva e rocha descoberta, e as
escarpas escuras da ravina parecessem aproximar-se de ambos os lados.
Após cerca de vinte minutos a ravina curvava para a esquerda, e de
repente a casa do Mago surgiu lá em frente, construída mesmo
encostada à superfície da escarpa à nossa direita. O meu pai costumava
dizer que a nossa primeira impressão de algo está quase sempre correta,
por isso o coração caiu-me logo aos pés. Era o final da tarde e a luz
enfraquecia já, o que também não ajudava. A casa era maior e mais
imponente do que a de Chipenden, mas fora construída com pedra muito
mais escura, o que lhe conferia manifestamente um aspecto sinistro.
Para além de que as janelas eram pequenas, o que, combinado com o
fato de a casa ter sido construída numa ravina, tornaria certamente os
quartos lá dentro muito escuros. Era uma das casas menos convidativas
que eu alguma vez vira.
O pior de tudo, porém, era não ter jardim. Como referi, a casa fora
construída logo junto à escarpa rochosa verticalmente por detrás; na
frente, cinco ou seis passos levavam-nos à beira do regato, que não era
muito largo mas parecia fundo e muito frio. Mais trinta passos, pisando
os seixos, e tocava-se com o dedo grande do pé na superfície de rocha
do outro lado. Isto se se conseguisse atravessar as pedras escorregadias
sem cair lá dentro.
Não se elevava fumaça da chaminé, o que sugeria que não haveria uma
lareira a dar as boas-vindas. Lá em Chipenden, o demônio de estimação
do Mago sabia sempre quando regressávamos, e não só a casa estava já
aquecida, como haveria uma refeição fumegante à espera em cima da
mesa da cozinha.
Lá no alto, as paredes da ravina pareciam quase encontrar-se por cima
da casa e havia apenas uma faixa estreita de céu. Estremeci porque
fazia ainda mais frio ali em baixo na ravina do que nas vertentes mais
baixas da charneca e percebi que, mesmo no Verão, não se veria o sol
mais de uma hora ou assim cada dia. Isso levou-me a dar valor ao que
tivera em Chipenden, com matas e campos, as altas extensões rochosas
e o amplo céu no alto. Lá teríamos olhado o mundo de cima; aqui,
estávamos aprisionados num poço comprido, fundo e estreito.
Olhei nervosamente para as extremidades escuras da ravina onde se
encontravam com o céu. Alguém ou algo poderia encontrar-se lá a
espreitar-nos sem que o soubéssemos.
— Bem, rapaz, eis-nos aqui. Esta é a minha casa de Inverno. Temos
muito o que fazer: cansados ou não, vamos ter de por mãos à obra!
Em vez de se aproximar da porta da frente, o Mago deu a volta até uma
pequena área lajeada na parte de trás da casa. Três passos desde a
porta e estávamos na superfície de rocha, que escorria água e tinha
estalactites de gelo suspensas, como os dentes de um dragão numa
história mirabolante que um dos meus tios costumava me contar.
Claro que, em semelhante local quente, os «dentes»
teriam se transformado em vapor num instante; naquele lugar frio por
detrás da casa aguentariam a maior parte do ano, e assim que nevasse,
nunca mais nos livraríamos deles senão no final da Primavera.
— Aqui usamos sempre a porra de trás, rapaz —
disse o Mago, tirando do bolso a chave que o seu irmão Andrew, o
serralheiro, fizera a seu pedido. Abriria qualquer porta desde que a
fechadura não fosse complicada demais. Eu também tinha uma chave
idêntica e já me fora útil em mais de uma ocasião.
A fechadura estava emperrada e a porta parecia relutante em abrir. Uma
vez lá dentro, fiquei deprimido com a escuridão, mas o Mago encostou o
bordão à parede, retirou uma vela do saco e acendeu-a.
— Ponha os sacos ali — disse-me, apontando para uma prateleira baixa
junto à porta de trás.
Obedeci e depois coloquei o meu bordão no canto ao lado do bordão do
Mago antes de segui-lo mais para o interior da casa.
A minha mãe teria ficado chocada com o estado da cozinha. Tinha agora
a certeza de que não havia qualquer demônio para fazer o trabalho. Era
evidente que ninguém cuidava do lugar desde que o Mago viera embora
no final do Inverno passado. Havia pó em cada superfície e teias de
aranha suspensas do teto. A pia de lavar a louça estava cheia até à
borda de panelas sujas e havia meio pão em cima da mesa, verde do
bolor. Notava-se também um leve cheiro doce e desagradável, como se
algo estivesse a apodrecer lentamente num canto escuro. Ao lado da
lareira havia uma cadeira de balanço semelhante à da Mãe lá na
fazenda. Por cima das costas via-se uma manta que parecia precisar de
uma boa lavagem. Perguntei-me a quem pertencia.
— Bem, rapaz — disse o Mago —, é melhor por mãos à obra.
Começaremos por aquecer a velha casa.
Feito isso, poderemos dar início às limpezas.
Ao lado da casa havia um enorme barracão de madeira cheio de carvão.
Nem quis pensar como toda aquela quantidade de carvão fora trazida
pela ravina. Em Chipenden, ele me mandava ir buscar as provisões para
a semana e só esperava que uma das minhas tarefas ali não fosse
carregar sacas de carvão.
Havia dois baldes grandes de carvão e os enchemos e os levamos para a
cozinha.
— Sabe acender uma boa fogueira com carvão? —
inquiriu o Mago. Anuí. No Inverno, lá na nossa fazenda, a minha primeira
tarefa todas as manhãs fora acender a lareira da cozinha.
— Pois muito bem — disse o Mago. — Você trata desta e eu encarrego-
me do da sala de visitas. Existem treze lareiras nesta velha casa, mas
acendendo seis já deve dar para aquecer o ambiente.
Ao fim de uma hora, tínhamos conseguido acender as seis lareiras: uma
na cozinha, uma na sala de visitas, uma no que o Mago chamava o seu
«gabinete de trabalho», que ficava no térreo, e outra em cada um dos
três quartos no primeiro andar. Havia mais sete divisões, incluindo o
sótão, mas não nos preocupamos com essas.
— Bem, rapaz, já é um bom começo — disse o Mago. — Agora vamos
buscar água.
Levando cada um o seu cântaro grande de barro, saímos de novo pela
porta de trás e demos a volta até à frente, onde o Mago seguiu na frente
até ao regato. A água era tão funda quanto parecera por isso foi
bastante fácil encher os nossos cântaros; e era suficientemente limpa,
fria e transparente para se verem as rochas no fundo. Era um regato
tranquilo e pouco mais do que rumorejava ao descer a ravina.
Mas precisamente quando terminara de encher o meu cântaro, senti um
movimento em algum lugar lá em cima. Não consegui propriamente ver
nada; foi realmente mais uma sensação de ser observado, e quando
olhei para o lugar onde a rocha formava uma aresta escura no céu
cinzento, não estava lá nada.
— Não olhe para cima, rapaz — censurou o Mago, uma pontinha de
irritação na sua voz. — Não lhe dê essa satisfação. Finja que não
reparou.
— Quem é ele? — indaguei, sentindo-me muito nervoso enquanto seguia
o Mago de regresso à casa.
— É difícil dizer. Não olhei, por isso não posso ter certeza — redarguiu o
Mago, estacando subitamente e pousando o cântaro. Depois mudou
rapidamente de assunto. — O que acha da casa? — perguntou.
O meu pai ensinara-me a dizer a verdade sempre que possível e sabia
que o Mago não era homem que se melindrasse facilmente.
— Gostaria mais de viver no topo de uma colina do que como uma
formiga numa fenda funda entre pedregulhos — respondi-lhe. — Até
agora, prefiro a sua casa de Chipenden.
— Eu também, rapaz — disse o Mago. — Eu também. Só aqui vim
porque tinha de ser feito. Aqui estamos mesmo à beira, à beira do
escuro, e é um lugar mau onde passar o Inverno. Há coisas lá em cima
na charneca em que nem vale a pena pensar demais, mas se não formos
nós a enfrentá-las, quem será?
— Que tipo de coisas? — inquiri, recordando o que a Mãe me dissera
mas interessado em ver o que revelaria o Mago.
— Oh, há demônios, bruxas, fantasmas e imagens fantasmagóricas com
fartura e outras coisas bem piores...
— Como Golgoth? — sugeri.
— Sim, Golgoth. Sem dúvida a sua mãe te contou tudo a seu respeito.
Acertei?
— Ela mencionou-o quando lhe disse que vínhamos para Anglezarke mas
não adiantou muito mais. Disse apenas que por vezes se agita no
Inverno.
— Lá isso agita, rapaz, e irei aumentar os seus conhecimentos a respeito
dele numa ocasião mais oportuna.
Agora olhe para aquilo — disse, apontando para onde a fumaça castanho
espesso se elevava no ar das duas filas de potes cilíndricos. Apontou
com o indicador na direção da fumaça. — Viemos aqui para dar sinal da
nossa presença, rapaz. Procurei um sinal. Só conseguia ver a fumaça.
— Quero dizer que ao estarmos aqui afirmamos que esta terra nos
pertence e não ao escuro — explicou o Mago. — Fazer frente ao escuro,
especialmente em Anglezarke, é algo bastante difícil, mas é o nosso
dever e muito meritório. De qualquer forma — referiu, pegando no
cântaro —, vamos entrar e começar as limpezas.
Durante as duas horas seguintes estive definitiva-mente atarefado a
esfregar, varrer, limpar o pó e ir lá fora bater as nuvens de poeira dos
tapetes. Por fim, depois de lavar e enxugar a louça suja, o Mago
mandou-me fazer as camas nos três quartos do primeiro andar.
— Três camas? — estranhei, perguntando-me se teria ouvido bem.
— Sim, são três, e quando terminar é melhor ir lavar as orelhas! Vamos!
Não fique aí embasbacado. Não temos o dia todo.
Então, encolhendo os ombros, fiz o que me mandavam. A roupa estava
úmida mas puxei os lençóis para baixo para que as lareiras os secassem.
Feito isso, esgotado dos esforços, vim para baixo. Quando passei pelas
escadas da cave2, ouvi algo que fez com que os cabelos na nuca
começassem a eriçar-se.
Ouvi, lá de baixo, o que pareceu um longo suspiro entrecortado, seguido
quase imediatamente de um grito fraco. Aguardei no topo das escadas à
beira da escuridão, 2 Porão, adega ou divisão subterrânea
escutando com atenção, mas não se repetiu. Teria imaginado?
Fui à cozinha e encontrei o Mago a lavar as mãos na pia.
— Ouvi algo gritar lá da cave — informei-o. — É
um fantasma?
— Não, rapaz, agora não há fantasmas nesta casa
— tratei deles todos há anos. Não, deve ser Meg. Terá sem dúvida
acordado.
Julguei ter ouvido mal. Haviam-me dito que iria conhecer Meg e sabia
que ela era uma bruxa lâmia que vivia em algum lugar em Anglezarke.
Em parte, estivera também à espera de encontrá-la instalada na casa do
Ma-go. Mas ao vê-la abandonada e fria afastara da mente essa
perspectiva. Por que haveria ela de estar dormindo lá em baixo numa
cave incrivelmente fria? Fiquei curioso, mas sabia que não devia fazer
perguntas na ocasião errada.
Às vezes, o Mago estava com disposição para responder e mandava-me
sentar e dizia-me que pegasse no meu livro de notas e enchesse a
caneta de tinta e me preparasse para escrever. Noutras ocasiões, queria
apenas despachar o assunto em mãos, e vi naquele momento a
expressão decidida patente nos seus olhos verdes, de modo que me
mantive em silêncio enquanto ele acendia uma vela.
Segui-o pelas escadas de pedra da cave. Não estava propriamente
assustado porque ele sabia o que fazia, mas estava sem dúvida nervoso.
Eu nunca vira uma bruxa lâmia antes e, apesar de ter lido um pouco
sobre elas, não sabia ao certo o que esperar. E como conseguira ela
sobreviver ali em baixo no frio e no escuro durante a Primavera, o Verão
e o Outono? De que se alimentara? Lesmas, minhocas, insetos e
caracóis, como as bruxas que o Mago aprisionava nos poços?
Depois da primeira esquina das escadas surgiu um portão de ferro com
ripas cruzadas a barrar-nos o caminho. Para lá dele, as escadas
alargavam subitamente, pelo que poderiam ter descido quatro pessoas
lado a lado.
Nunca tinha visto umas escadas de cave tão largas. Não muito longe do
portão, vi uma porta cravada na parede e fiquei curioso quanto ao que
podia estar do outro lado. O
Mago tirou uma chave do bolso e introduziu-a na fechadura. Não era a
chave que habitualmente usava.
— É uma fechadura complicada? — perguntei.
— Pode crer que é, rapaz — disse-me. — Mais complicada do que a
maior parte. Se alguma vez precisar, costumo guardar esta chave no
meu gabinete de trabalho, na prateleira de cima da estante mais
próxima da porta.
Quando abriu o portão, este emitiu um ruído tão estridente que deu a
impressão de ressoar através das pedras tanto lá em cima como lá em
baixo, pelo que toda a casa funcionou como um sino enorme.
— O ferro conseguiria impedir a maior parte deles de passar daqui, mas
se assim não fosse, ouviríamos lá em cima o que sucedia. Esta porta é
melhor do que um cão de guarda. — Para a maior parte de quem? E por
que as escadas são tão largas? — perguntei.
— Vamos primeiro ao mais importante — retrucou o Mago. — As
perguntas e as respostas podem ficar para mais tarde. Para já, temos de
tratar de Meg.
Enquanto descíamos as escadas, comecei a ouvir ruídos tênues vindos lá
de baixo. Houve um gemido e o que soou como um fraco arranhar, o
que me deixou ainda mais nervoso. Não demorei muito a perceber que
devia existir no mínimo uma área de casa debaixo do solo tão grande
quanto acima dele: sempre que as escadas davam uma volta havia uma
porta de madeira cravada na parede, e na terceira curva, um pequeno
patamar com três portas.
O Mago parou logo à frente da porta do meio, depois virou-se para mim.
— Espere aqui, rapaz — avisou-me. — Meg fica sempre um pouco
nervosa quando acorda. Precisamos de lhe dar algum tempo para se
acostumar com você.
Ditas aquelas palavras, entregou-me a vela, rodou a sua chave na
fechadura e entrou na escuridão, fechando a porta atrás de si.
Fiquei cerca de dez minutos à espera do lado de fora e não receio dizer-
lhes que aquelas escadas eram mesmo bastante arrepiantes. Por um
lado, quanto mais desciam, mais frio fazia. Por outro, conseguia ouvir
ruídos ainda mais perturbadores vindos lá de baixo, depois da esquina
seguinte, do escuro. Eram sobretudo murmúrios muito tênues, mas de
uma vez julguei ouvir um gemido distante, como se alguém ou algo
estivesse a passar um péssimo bocado.
Chegaram-me então vozes abafadas de dentro da cela onde o Mago
entrara. O meu mestre parecia estar a conversar baixinho mas com
firmeza, e a dada altura escutei um choro de mulher. Não durou muito e
ouviram-se mais murmúrios, como se nenhum deles quisesse que eu
percebesse o que diziam.
Por fim a porta abriu-se, chiando. O Mago apareceu e veio alguém atrás
dele até ao patamar.
— Esta é Meg — anunciou o meu mestre, afastando-se para que eu a
pudesse ver bem. — Vai gostar dela, rapaz. É sem dúvida a melhor
cozinheira em todo o Condado.
Quando Meg me olhou de alto a baixo, pareceu intrigada. Fitei-a no mais
puro espanto. Sabem, é que ela era simplesmente a mulher mais bonita
que eu alguma vez vira e calçava sapatos bicudos. Quando eu fora para
Chipenden, na minha primeira lição, o Mago alertara-me para os perigos
de falar com garotas que usassem sapatos bicudos. Conscientemente ou
não, alertou-me ele, algumas delas podiam ser bruxas.
Eu ignorara o aviso dele e conversara com Alice, que me metera numa
série de problemas antes de acabar por me ajudar a sair deles. Mas ali
estava o meu mestre, a ignorar o seu próprio conselho! Só que Meg não
era uma garota; era uma mulher, e tudo no rosto dela era tão perfeito
que não conseguíamos simplesmente deixar de fitar: os seus olhos, os
malares salientes, a compleição.
No entanto, foi o cabelo que a denunciou. Era prateado, a cor que se
espera encontrar numa pessoa muito mais velha. Meg não seria mais
alta do que eu e só dava pelo ombro do Mago. Observando-a mais
atentamente, percebíamos de que estivera a dormir vários meses no frio
e na umidade: viam-se um pouco de teias de aranha no seu cabelo e
manchas de bolor no seu vestido púrpura desbotado.
Existiam diversos tipos diferentes de bruxas e enchera páginas dos meus
livros de notas com as lições que o Mago me dera sobre elas. Mas
descobrira o que sabia sobre as bruxas lâmia bisbilhotando na biblioteca
do Ma-go os livros que não era suposto eu estudar.
As bruxas lâmia vinham do outro lado do mar, e nas suas terras
alimentavam-se do sangue humano. A sua condição natural é conhecida
como «selvagem», e nesse estado não se parecem nada com os
humanos e têm escamas a cobrir-lhes o corpo e garras compridas nos
dedos.
Mas são mutantes lentas e quanto maior o contato que tiverem com os
humanos, mais gradualmente vão adquirindo o seu aspecto. Passado
algum tempo transformam-se no que é conhecido como «lâmias
domésticas», que se parecem com as mulheres humanas à exceção de
uma linha de escamas verdes e amarelas que segue ao comprimento da
espinha delas. Algumas podem mesmo tornar-se benignas em vez de
malévolas. Teria Meg se tornado boa? Fora outra razão por que o Mago
não tratara dela, metendo-a num poço como sucedera a Lizzie dos
Ossos?
— Bem, Meg — referiu o Mago —, este é Tom, o meu aprendiz. É um
bom rapaz, por isso vocês dois deveriam se dar bem.
Meg estendeu a mão na minha direção. Julguei que quisesse apertar a
minha, mas antes de os nossos dedos se tocarem, ela baixou o braço de
repente, como se se tivesse queimado, e surgiu nos seus olhos uma
expressão apreensiva.
— Onde está Bily? — inquiriu, a sua voz suave como seda mas com uma
pontinha de dúvida. — Eu gostava de Bily.
Sabia que se estava a referir a Bily Bradley, o anterior aprendiz do Mago
que morrera.
— Bily morreu, Meg — explicou-lhe delicadamente o Mago.
— Já tinha lhe contado. Não se preocupe com isso.
A vida continua. Agora terá de se acostumar a Tom.
— Mas é outro nome para lembrar — queixou-se Meg com pesar. — Vale
a pena o esforço se nenhum deles dura muito?
Meg não começou logo a preparar a nossa ceia.
Mandaram-me ir buscar mais água no regato e precisei de uma dúzia de
viagens indo e vindo antes de Meg finalmente se dar por satisfeita.
Depois, usando duas das lareiras, começou a aquecer a água, mas, para
minha decepção, percebi que não se destinava a cozinhar.
Ajudei o Mago a levar uma banheira de ferro enorme para a cozinha e
enchê-la de água quente. Destinava-se a Meg.
— Vamos retirar-nos para a sala de visitas — disse o Mago —, para que
Meg possa ter alguma privacidade.
Ela passou meses lá em baixo na cave e quer retemperar-se.
Resmunguei em silêncio para mim mesmo que se o meu mestre não a
tivesse trancado lá ela poderia manter a casa limpa e arrumada para o
seu regresso todos os invernos. E, claro, isso levou a outra pergunta —
por que é que o Mago não levava Meg consigo para a casa de Verão em
Chipenden?
— Esta é a sala de visitas — disse o meu mestre, abrindo a porta e
convidando-me a entrar. — É aqui que temos as nossas conversas. É
aqui que recebemos as pessoas que precisam da nossa ajuda.
Ter uma sala de visitas é uma velha tradição do Condado. É a melhor
divisão, tornada o mais chique possível, e raramente é usada porque
tem de estar sempre limpa e arrumada para receber as visitas. O Mago
não tinha uma sala de visitas lá em Chipenden porque gostava de
manter as pessoas afastadas da casa. Por isso é que elas tinham de ir à
encruzilhada debaixo das árvores pendentes, tocar o sino e esperar.
Parecia que as regras iam ser diferentes aqui.
Lá na nossa fazenda também não nos preocupávamos com uma sala de
visitas, porque com sete irmãos éramos uma família grande e quando
vivíamos todos em casa, precisávamos de ocupar a totalidade das
divisões. De qualquer forma, a Mãe, que não nascera no Condado, acha
que ter uma sala de visitas é realmente uma idéia tola.
«De que serve ter uma sala de visitas que raramente é usada?»,
costuma ela dizer. «As pessoas têm de nos aceitar tal como somos.»
Não se podia dizer que a sala de visitas do Mago fosse muito chique,
mas o velho sofá usado era tão confortável quanto o aspecto das duas
poltronas e a divisão aquecera deliciosamente, por isso mal me sentei
comecei a sentir-me sonolento. Fora um longo dia e tínhamos caminhado
quilômetros e quilômetros.
Reprimi um bocejo mas não consegui enganar o Mago.
— Ia te dar outra lição de latim mas para isso tem de ter a mente bem
viva — disse-me. — Logo a seguir à ceia é melhor meter-se na cama,
mas levante-se cedo e reveja os verbos.
Acenei com a cabeça.
— Só mais uma coisa — lembrou-se o meu mestre, abrindo o armário
junto à lareira. Retirou uma garrafa grande de vidro castanho e ergueu-a
alto para que eu a pudesse ver. — Sabe o que é isto? — perguntou,
arqueando o cenho.
Encolhi os ombros, depois reparei no rótulo na garrafa e li-o.
— Chá de ervas — referi.
— Nunca se fie no rótulo de uma garrafa — aconselhou o Mago.
— Quero que coloque um centímetro disto numa xícara todas as
manhãs, encha de água quente, mexa bem e dê a Meg. Depois quero
que fique por perto até ela beber a última gota. Demorará um tempo
porque ela gosta de tomar pequenos goles. Será a sua tarefa mais
importante do dia. Diga-lhe sempre que é a xícara habitual de chá de
ervas para lhe manter as articulações flexíveis e os ossos fortes. Ela
ficará satisfeita.
— O que é? — perguntei. O Mago não respondeu logo. — Como sabe,
Meg é uma bruxa lâmia — acabou por afirmar —, mas a bebida faz com
que ela esqueça quem é. É bastante perigoso e perturbador alguém
lembrar-se de quem realmente é, por isso espero que nunca tenha de
passar por isto, rapaz. Será algo particularmente perigoso para todos
nós se ela se lembrar de quem é do que pode fazer.
— É por isso que a mantém na cave e longe de Chipenden?
— Sim, jogo pelo seguro. E não posso permitir que as pessoas saibam
que ela está aqui. Não iriam entender.
Há nestas paragens quem se lembre do que ela consegue fazer — muito
embora ela própria não o consiga.
— Mas como é que ela sobrevive sem comida todo o Verão?
— No seu estado selvagem, as bruxas lâmia podem por vezes levar anos
sem comer, para além de insetos, larvas e um rato ou outro. Mesmo
quando se tornam domésticas como Meg, não têm problema em passar
fome alguns meses. Para além de fazê-la dormir, uma dose grande da
poção possui muitos nutrientes, por isso Meg não corre verdadeiramente
perigo.
«Além disso, rapaz, tenho certeza de que irá gostar dela. É uma
excelente cozinheira, como não tardará a descobrir — prosseguiu o Mago
—, para além de ser uma pessoa metódica e arrumada. Mantenha
sempre os tachos e panelas arrumados e brilhantes como novos e
guarde-os no armário exatamente como gosta. Sucede o mesmo com os
talheres. Sempre arrumados na gaveta, as facas à esquerda, os garfos à
direita.
Fiquei curioso quanto ao que ela diria da confusão que encontramos.
Talvez por isso a ansiedade do Mago em certificar-se de que ficasse tudo
limpo e arrumado.
— Bem, rapaz, já falamos o suficiente. Vamos ver como ela está. .
Depois do banho, o rosto de Meg ficara com um tom rosado e saudável
fazendo-a parecer ainda mais jovem e bonita, e mesmo com o cabelo
prateado, se diria que aparentava metade da idade do Mago. Trazia
agora um vestido lavado, que era castanho, a cor dos seus olhos, e
fechava atrás com botões brancos. Era difícil ter certeza, mas pareciam
feitos de osso! Nem quis pensar no assunto.
Se fosse osso, de onde provinha?
Para minha decepção, não preparara a ceia. Como poderia tê-lo feito se
não havia comida em casa para além de meio pão bolorento? Tivemos
de nos virar com o último pedaço de queijo que o Mago trouxera consigo
para a viagem. Era queijo bom do Condado, amarelo-pálido e a
desfazer-se, mas nem por sombras chegava para satisfazer três
pessoas.
Sentamo-nos à mesa da cozinha a mordiscá-lo lentamente para fazê-lo
durar. Não se conversou muito: eu só conseguia pensar no desjejum.
— Assim que clarear, vou tratar das provisões semanais — sugeri ao
Mago. — Deveria ir a Adlington ou Blackrod?
— Mantenha-se simplesmente afastado de ambas as aldeias, rapaz —
redarguiu o Mago. — Especialmente de Blackrod. Ir buscar as provisões
é algo que não te competirá enquanto estivermos aqui. Deixe de se
preocupar. O que precisa é de se deitar cedo, por isso vá já para a
cama. O seu quarto é o que dá para a frente da casa —
tente dormir uma boa noite de sono. Meg e eu temos de conversar um
com o outro.
Obedeci e fui diretamente para a cama. O meu quarto era muito maior
do que o que me fora destinado em Chipenden, mas continuava a ter
apenas uma cama, uma cadeira e uma cômoda muito pequena. Se desse
para a parte de trás não conseguiria ver nada senão a parede de rocha
vertical de trás da casa. Felizmente dava para a frente e, mal abri a
janela de guilhotina, pude ouvir um murmúrio muito tênue do regato lá
em baixo e o uivo do vento a passar pela casa. As nuvens tinham
dissipado e brilhava uma lua cheia, lançando a sua luz prateada na
ravina que era depois refletida pelo regato. Ia estar uma noite fria, de
geada.
Enfiei a cabeça para fora da janela para ver melhor.
A lua estava logo por cima da escarpa ali à frente, parecendo
impossivelmente grande. Recortada nela, em silhueta, conseguia ver
alguém ajoelhado na superfície da escarpa, a olhar para baixo. Num
instante a figura desapareceu, mas não sem que antes eu tivesse tempo
de ver que usava capuz!
Olhei para o topo da escarpa por alguns momentos mas a figura não
reapareceu. O ar frio começava a encher o quarto, de modo que fechei a
janela. Era Morgan? E se sim, por que nos espiava? Fora também
Morgan que nos observara quando tínhamos ido buscar água ao regato?
Despi-me e enfiei-me na cama. Estava cansado, mas não deixei de ter
dificuldade em adormecer. A velha casa chiava e gemia muito, e dada
altura havia ruídos rápidos junto aos pés da cama. Provavelmente
seriam ratos debaixo das tábuas do assoalho, mas sendo o sétimo filho
de um sétimo filho, eu podia perfeitamente estar a ouvir algo muito
diferente.
Apesar de tudo, consegui finalmente embalar no sono — apenas para
acordar de repente no meio da noite.
Fiquei ali, sentindo-me inquieto, perguntando-me por que acordara tão
bruscamente. Estava escuro como breu e não conseguia ver nada, mas
sentia apenas que algo estava errado. Houvera um ruído qualquer. Tinha
certeza disso.
Não esperei muito para voltá-lo a ouvir. Dois sons diferentes que
começavam gradualmente, tornando-se cada vez mais fortes à medida
que os segundos passavam.
Um era uma espécie de zumbido estridente e o outro um atroar muito
mais baixo e cavo, como se alguém fizesse rolar pedregulhos por uma
vertente de montanha rochosa.
Só que parecia estar a acontecer em algum lugar por debaixo da casa, e
era tão intenso que as vidraças faziam barulho e até as paredes
pareciam estremecer e vibrar.
Comecei a sentir medo. Se piorasse mais, então a casa inteira viria com
certeza abaixo. Não sabia o que podia ser, mas ocorreu-me um
pensamento súbito. Poderia um tremor de terra fazer com que a ravina
se abatesse sobre a casa?
CAPÍTULO 5
O QUE HAVIA POR BAIXO
Os tremores de terra aconteciam, mas eram muito raros no Condado.
Não havia memória de um forte entre as pessoas ainda vivas. No
entanto, a casa estremecia tanto que fiquei realmente preocupado.
Vesti-me então rapidamente, calcei as botas e fui lá abaixo.
A primeira coisa em que reparei foi que a porta da cave estava aberta.
Chegavam sons tênues lá do fundo e, aguçado pela curiosidade, desci
alguns degraus. O barulho era ainda pior ali em baixo e distingui
nitidamente um grito estridente, mais animalesco do que humano.
Mas imediatamente a seguir ouvi o portão fechar-se com estrondo e uma
chave girar na fechadura. Uma vela tremulou no escuro lá em baixo e os
passos aproximaram-se. Por um segundo cheguei a sentir medo,
perguntando-me quem poderia ser, mas não tardei a constatar que
afinal era o Mago.
— O que se passa? — inquiri, pensando que ele estivera a tratar de algo
lá em baixo.
O Mago olhou para mim, uma expressão sobres-saltada no seu rosto. —
O que está fazendo de pé a esta hora? — indagou. — Desapareça daqui,
volte imediatamente para a cama!
— Julguei ouvir alguém gritar — respondi-lhe. —
E o que estava a causar todo aquele barulho? É um tremor de terra?
— Não, rapaz, não é um tremor de terra. E não precisa de se preocupar!
Tenho mais em mente neste momento do que responder às suas
perguntas. Terminará dentro de alguns instantes, por isso volte para o
seu quarto e lhe contarei tudo pela manhã — disse, afastando-me das
escadas e trancando a porta atrás de si.
O tom da voz dele disse-me que era inútil tentar argumentar, de modo
que voltei para cima, ainda preocupado com a forma como a casa
continuava a tremer e vibrar. Bem, a casa não veio abaixo e, tal como o
Mago prometera, tudo voltou a sossegar. Consegui tornar a adormecer
rapidamente mas acordei uma hora antes da alvorada e desci à cozinha.
Meg dormia na sua cadeira de balanço e não percebi se ficara ali toda a
noite ou descera sorrateiramente do seu quarto quando os ruídos tinham
começado. Não ressonava propriamente, mas de cada vez que expirava,
ouvia-se um ligeiro som sibilante.
Tendo o cuidado de não fazer barulho demais e acordá-la, deitei mais
um pouco de carvão na lareira que não tardou a espevitar-se. Em
seguida, instalei-me no banquinho junto à chaminé e comecei a rever os
verbos latinos. Tinha dois livros de notas comigo: um para escrever tudo
o que o Mago me contava sobre demônios e outros assuntos de mago; o
segundo para as lições de latim.
A Mãe ensinara-me grego, o que me impedira de ter de estudar também
aquela língua, mas tinha de pôr rapidamente o latim em dia, e os verbos
em particular davam-me muito trabalho. Muitos dos livros do Mago
estavam escritos em latim, de modo que tinha de me esforçar bastante
para aprendê-lo.
Comecei pelo princípio com o primeiro verbo que o Mago me fizera
entrar à força na cabeça. Ensinara-me os verbos latinos numa espécie de
padrão. Isso é importante porque a terminação de cada palavra é
diferente de acordo com o que se pretende dizer. É igualmente útil
recitá-los em voz alta, pois, conforme explicou o Mago, ajuda a retê-los
na memória. Não queria acordar Meg de modo que reduzi a minha voz a
pouco mais do que um murmúrio.
— Amo, amas, amat — disse, sem olhar para o livro de notas, recitando
três palavras que significam «eu amo, tu amas, ele ou ela ama».
— Já amei alguém em tempos — disse uma voz da cadeira de balanço —
, mas nem sequer me lembro de quem era.
Assustei-me de tal maneira que quase larguei o livro de notas e caí do
escabelo. Meg olhava para a lareira e não para mim, com uma expressão
no rosto que era um misto de perplexidade e tristeza.
— Bom dia, Meg — disse-lhe, esboçando um sorriso. — Espero que tenha
dormido bem.
— É muito gentil em perguntar, Bily — respondeu Meg —, mas não
dormi nada bem. Houve uma série de ruídos fortes e tenho estado a
tentar lembrar-me de algo toda a noite mas parece que continua a dar
voltas na minha cabeça. É algo muito rápido e escorregadio e não
consigo simplesmente retê-lo. Porém, não desisto facilmente, e vou
continuar aqui sentada junto à chaminé até me recordar.
Ao ouvir aquelas palavras fiquei alarmado. E se Meg se lembrasse de
quem era? Se se percebesse que era uma bruxa lâmia! Tinha de agir
rapidamente antes que fosse tarde demais.
— Não se preocupe com isso, Meg — disse-lhe, pousando o meu livro de
notas e levantando-me. — Vou preparar-lhe uma bela bebida quente.
Rapidamente, enchi a chaleira de cobre com água e pendurei-a no
gancho na chaminé para que, como diz o meu pai, o fogo lhe aquecesse
o fundo. Depois fui buscar uma xícara lavada e levei-a comigo até à sala
de visitas. Ali, tirei a garrafa castanha do armário e deitei um centímetro
da bebida na xícara. Feito isso, regressei à cozinha e esperei que a água
fervesse antes de encher a xícara quase até à borda e mexendo muito
bem conforme o Mago instruíra.
— Aqui está o seu chá de ervas, Meg. Ajudará a manter as articulações
flexíveis e os ossos fortes.
— Obrigada, Bily — disse com um sorriso. Aceitou a xícara e começou a
soprá-la, depois bebeu muito lentamente, continuando a olhar para as
chamas.
— Está delicioso — disse dali a um pouco. — É
realmente um rapaz gentil. É exatamente do que preciso para pôr os
meus ossos velhos a mexer pela manhã. .
Senti-me triste quando proferiu aquelas palavras.
Uma parte de mim não se orgulhava do que fizera. Ela estivera acordada
quase toda a noite tentando se lembrar de algo e agora a bebida só faria
piorar ainda mais a sua memória. Enquanto estava entretida a sorvê-la,
aproximei-me por detrás dela para poder ver melhor algo que me
preocupara desde a noite anterior.
Olhei com atenção para os treze botões brancos que fechavam o seu
vestido do pescoço à bainha. Claro que não podia ter a certeza absoluta,
mas tinha a suficiente.
Cada botão era feito de osso. Ela não era uma bruxa que praticasse a
magia dos ossos; era uma bruxa lâmia, um tipo não oriundo do
Condado. Mas fiquei intrigado com os botões de osso. Teriam vindo de
vítimas que ela matara no passado? E debaixo daqueles botões, dentro
do vestido, sabia que como bruxa lâmia doméstica haveria uma linha de
escamas verdes e amarelas a todo o comprimento da sua espinha.
Pouco depois, ouviu-se uma pancada na porta de trás. Fui abrir já que o
meu mestre continuava a dormir depois da sua noite conturbada.
Estava lá fora um homem com um estranho barrete de couro com abas
que lhe cobriam as orelhas. Segurava uma lanterna na mão direita; com
a esquerda conduzia um pônei carregado com tantas sacas castanhas
que era um prodígio as patas do animal não cederem sob o peso.
— Olá, meu jovem, trouxe a encomenda de Mr.
Gregory — disse, esboçando-me um sorriso de lábios tensos. — Deve ser
o novo aprendiz. Era um bom rapaz, aquele Bily, e lamento saber o que
lhe aconteceu.
— O meu nome é Tom — respondi, apresentando-me.
— Bem, Tom, como está? O meu nome é Shanks.
Importava-se de dizer ao seu mestre que trouxe provisões extra e que
irei duplicadas todas as semanas até o tempo piorar. Parece que vai ser
um Inverno rigoroso e quando a neve chegar, pode passar muito tempo
sem que eu consiga voltar aqui.
Anuí-lhe, sorri, depois olhei para cima. Continuava escuro, mas
começava a clarear e o pedaço de céu estava quase cheio de nuvens
cinzentas que avançavam de oeste.
Nessa altura, Meg veio ter comigo à porta. Parou ligeiramente atrás de
mim, mas Shanks viu-a bastante bem porque os seus olhos quase
saíram das órbitas e recuou rapidamente dois passos, quase colidindo
com o pequeno pônei.
Percebi que ele ficara assustado, mas depois de Meg dar meia volta e
regressar lá para dentro, ele se acalmou um pouco e ajudei-o a
descarregar as sacas. Enquanto o fazíamos, o Mago apareceu e pagou ao
homem.
Quando Shanks se virou para ir embora, o Mago seguiu-o pela ravina
mais ou menos cerca de trinta passos.
Começaram a falar mas estavam longe demais para eu poder apanhar
tudo o que diziam. No entanto, respeitava a Meg, tinha certeza, porque
ouvi o nome dela duas vezes.
Ouvi nitidamente Shanks afirmar, «O senhor nos disse que o assunto
dela fora resolvido!» ao que o Mago replicou, «Tenho-a bastante segura,
não se preocupe. Sei do meu ofício por isso não lhe diz respeito. E
guarde-o para si se sabe o que lhe convém!»
O meu mestre não parecia nada satisfeito quando voltou para junto de
mim. — Deste o chá de ervas a Meg?
— perguntou, desconfiado.
— Fiz exatamente como me disse — respondi-lhe
—, assim que ela acordou.
— Ela foi lá para fora? — inquiriu.
— Não, mas aproximou-se da porta e ficou atrás de mim. Shanks viu-a e
pareceu muito assustado.
— É uma pena que a tenha visto — disse o Mago.
— Ela não costuma mostrar-se daquela maneira. Pelo menos não em
anos recentes. Talvez precisemos de aumentar a dose. Conforme te
disse a noite passada, rapaz, Meg costumava causar muitos problemas
no Condado. As pessoas tinham medo dela e ainda têm. E até ao
momento, os habitantes locais não sabiam que ela andava em liberdade
pela casa. Se isto se vier a espalhar, vai ser muito ruim. As pessoas
daqui são teimosas: quando lhes mete uma coisa na cabeça não
desistem facilmente. Mas Shanks vai ficar de boca calada. Pago-lhe
suficientemente bem.
— Shanks é o merceeiro? — perguntei.
— Não, rapaz, é o carpinteiro e cangalheiro da região. A única pessoa
em Adlington que tem a coragem de se arriscar a vir aqui. Pago-lhe para
fazer as recolhas e entregas. Depois daquilo, guardamos as sacas lá
dentro em segurança, e o Mago abriu a maior e entregou a Meg o
necessário para começar a cozinhar o desjejum.
O bacon estava superior ao que o que o demônio de estimação do Mago
preparava, mesmo nas melhores manhãs, e Meg fritara bolos de batata
e mexera ovos frescos com queijo: o Mago não exagerara quando
dissera que Meg era boa cozinheira. Enquanto devorávamos o desjejum,
perguntei-lhe sobre os estranhos ruídos durante a noite.
— Agora não existem motivos para preocupações
— disse-me, engolindo outra grande bocada de bolo de batata. — Esta
casa foi construída sobre uma linha antiga, por isso são de esperar
problemas de vez em quando. Por vezes, um tremor de terra a
quilômetros daqui acaba por provocar distúrbios numa série de linhas.
Os demônios podem ser obrigados a sair dos lugares onde estão bem
instalados. A noite passada passou por baixo de nós um demônio. Tive
de ir à cave só para ver se estava tudo seguro e em condições.
O Mago falara-me dessas linhas quando estávamos em Chipenden. Eram
linhas de força por debaixo da terra, como estradas que alguns tipos de
demônio usam para ir rapidamente de um lugar a outro.
— Atenção, por vezes significa que vêm aí problemas — prosseguiu ele.
— Quando se instalam num novo local, começam com frequência por
pregar peças — às vezes perigosas — e isso implica trabalho para nós.
Atente nas minhas palavras, rapaz, podemos perfeitamente ter de
enfrentar um demônio local antes do final da semana.
Depois do desjejum fui ter a minha lição de latim no gabinete de
trabalho do Mago. Era uma divisão pequena com duas cadeiras de
madeira com espaldar, uma mesa grande, um escabelo solitário de
madeira com três pernas, soalho descoberto e muitas estantes altas em
madeira escura. Estava um pouco gelada também; o fogo da véspera
encontrava-se agora reduzido a cinzas cinzentas na grelha.
— Sente-se, rapaz. As cadeiras são duras mas não podemos ficar muito
confortáveis quando estamos a estudar. Não gostaria que adormecesse
— referiu o Mago deitando-me um olhar penetrante.
Relanceei as estantes. A sala era soturna, apenas iluminada pela luz
cinzenta da janela e duas velas, pelo que não reparara então que as
prateleiras estavam vazias.
— Onde estão todos os livros? — indaguei.
— Em Chipenden — onde é que acha, rapaz? Não vale a pena ter livros
aqui com o frio e a umidade. Os livros não gostam dessas condições.
Não, teremos apenas de nos virar com o que trouxemos conosco e talvez
fazer umas anotações pessoais enquanto aqui estivermos. Não pode
simplesmente ler livros o tempo todo e deixar que outros os escrevam.
Sabia que o Mago trouxera consigo uns quantos livros, o que tornara o
seu saco muito pesado, ao passo que eu me cingira aos meus livros de
notas. Na hora que se seguiu, estive debruçado com os verbos latinos.
Era um trabalho árduo e fiquei satisfeito quando o Mago sugeriu que
fizéssemos uma pausa, mas não com o que ele fez em seguida.
Puxou o escabelo de madeira para junto da estante mais próxima da
porta. Depois subiu para ele e tateou a prateleira de cima.
— Bem, rapaz — disse-me, mostrando a chave, de rosto muito
carregado. — Não podemos adiar mais. Vamos descer e ver a cave
propriamente dita. Mas primeiro vamos certificar-nos de que Meg está
bem. Não quero que ela saiba que vamos lá abaixo. Pode deixá-la
nervosa. Não lhe agrada nem um pouco a idéia daquelas escadas!
Aquelas palavras deixaram-me entusiasmado e assustado ao mesmo
tempo. Estivera morto de curiosidade em saber o que ficava para lá das
escadas do porão, mas, simultaneamente, sabia que descer até lá seria
tudo menos uma experiência agradável.
Encontramos Meg ainda na cozinha. Lavara a louça e estava naquele
momento sentada em frente da lareira, dormitando novamente.
— Ela está bastante feliz no momento — afirmou o Mago. — Para além
de lhe afetar a memória, a poção a faz dormir muito.
Cada um de nós acendeu uma vela antes de descer as escadas de pedra,
o Mago seguindo na frente. Desta vez reparei melhor no que me
rodeava, tentando registrar na minha memória a parte subterrânea da
casa. Já descera em algum porões, mas tinha a sensação de que esta
provavelmente seria a mais assustadora e invulgar.
Depois de o Mago ter aberto o portão de ferro, virou-se e bateu-me no
ombro. — Meg raramente vai ao meu gabinete de trabalho — referiu —,
mas aconteça o que acontecer, nunca a deixe se apoderar desta chave.
Anuí, vendo o Mago trancar o portão atrás de nós.
Olhei para baixo. .
— Por que os degraus lá em baixo são tão largos?
— voltei a perguntar.
— Têm de ser, rapaz. Trazem-se e levam-se coisas por estas escadas.
Os artífices precisam de bom acesso.
— Os artífices?
— Ferreiros e pedreiros, claro — os ofícios de que dependemos para o
nosso tipo de trabalho!
Enquanto descíamos, o Mago seguindo na frente, a minha vela projetou
a sua sombra trêmula na parede, e apesar do eco das nossas botas nos
degraus de pedra, ouvi os primeiros ruídos tênues vindos lá bem do
fundo. Houve um suspiro e uma tossidela engasgada distante. Estava
sem dúvida algo ou alguém lá em baixo!
Existiam quatro níveis subterrâneos. Os dois primeiros tinham ambos
apenas uma porta, cravada na pedra, mas chegamos finalmente ao
terceiro, que tinha as três portas que eu vira na véspera.
— A do meio, como sabe, é onde Meg costuma dormir quando estou
ausente — referiu o Mago.
Agora fora-lhe atribuído um quarto lá em cima, ao lado da do Mago,
provavelmente para poder estar de olho nela — muito embora, a julgar
pelo sucedido na última noite, ela preferisse dormir na cadeira de
balanço junto à lareira.
— Não uso muito as outras — continuou o Mago
—, mas podem ser muito úteis para manterem uma bruxa trancada em
segurança enquanto são tomadas todas as providências.
— Quer dizer enquanto preparam um poço?
— Sim, eu faço isso, rapaz. Como terá reparado, aqui não é como em
Chipenden. Não possuo o luxo de um jardim, por isso tenho de
aproveitar o subsolo...
O quarto nível e o mais baixo era, logicamente, a própria cave. Antes
mesmo de virarmos a última esquina e ser completamente visível, ouvi
coisas que fizeram tremer a vela na minha mão, pondo a sombra do
Mago a dançar furiosamente.
Houve sussurros e gemidos e, o pior de tudo, um leve som de
raspadelas. Sendo o sétimo filho de um sétimo filho, consigo ouvir aquilo
que escapa à maioria das pessoas, mas não há meio de me acostumar.
Há dias em que sou mais corajoso do que noutros, é tudo o que posso
afirmar. O Mago parecia suficientemente calmo, mas também toda a
vida fizera aquilo.
A cave era grande, ainda maior do que eu esperava, tão grande, na
verdade, que devia ter uma área superior à do térreo da casa. Uma
parede escorria água e o teto baixo mesmo por cima dela estava cheio
de umidade, de modo que me perguntei se ficaria à beira do regato ou
na realidade por debaixo dele.
A parte seca do teto encontrava-se coberta de teias de aranha, tão
grossas e emaranhadas que devia ter estado um exército de aranhas a
tecer. Se apenas uma ou duas aranhas tinham tecido aquilo, então não
as queria conhecer. Passei muito tempo olhando para o teto e as
paredes porque estava a retardar o momento em que teria de olhar para
o solo. Mas alguns segundos depois senti os olhos do Mago cravados em
mim, de modo que não tive outra alternativa e acabei por me obrigar a
olhar para baixo.
Vira o que o Mago guardava em dois dos jardins lá em Chipenden.
Calculei que ali fosse mais do mesmo, mas ao passo que as sepulturas e
os poços lá estavam espalhados entre as árvores onde o sol
esporadicamente incidia pintalgando o solo de sombras, aqui havia
muitas mais e senti-me encurralado, rodeado de quatro paredes e do
teto baixo com teias de aranha.
Havia nove sepulturas de bruxas, cada uma assinalada com uma lápide,
e a parte da frente deste um metro e oitenta de solo guarnecida de
pedras mais pequenas. Presas àquelas pedras por parafusos de ferro e a
cobrir cada pedaço de terra, viam-se treze barras grossas de ferro.
Tinham sido colocadas ali para impedir as bruxas mortas debaixo delas
de abrirem caminho escavando até à superfície.
Depois, ao longo de uma parede da cave, havia pedras muito mais
pesadas, maiores. Eram três e cada uma fora talhada pelo pedreiro
exatamente da mesma maneira: A letra grega beta avisava quem
soubesse ler os símbolos que os demônios estavam aprisionados em
segurança por debaixo delas, e o numeral romano «I» no canto direito
indicava que eram de primeira categoria, criaturas mortíferas capazes de
acabar com um homem em menos de um piscar de olhos. Nada de novo
nisso, pensei, e como o Mago era bom no que fazia, não havia nada a
temer dos demônios que estavam ali aprisionados.
— Há também aqui em baixo duas bruxas vivas —
afirmou o Mago —, e aqui está a primeira — prosseguiu, apontando para
um poço quadrado escuro com uma cerca de pequenas pedras
atravessada por treze barras de ferro para a impedir de sair. — Repare
na pedra angular — disse, apontando para baixo.
Vi então algo em que não reparara antes, mesmo lá em Chipenden. O
Mago aproximou mais a vela para que eu pudesse ver melhor. Havia um
símbolo, muito menor do que o das pedras de demônio, seguido do
nome da bruxa.
— O símbolo é a letra grega sigma porque classificamos todas as bruxas
com «F» de feiticeira3. São tantos os tipos que, sendo mulheres e sutis,
com frequência se torna difícil categorizá-las com exatidão — explicou o
Mago. — Ainda mais do que um demônio, uma bruxa 3 À semelhança de
exemplos anteriores, a equivalência perde-se com a tradução, visto a
letra sigma corresponder a S de sorceress, feiticeira em português. (NT)
possui uma personalidade capaz de mudar com o tempo.
Por isso tem de referir a história delas — a história completa de cada
uma delas, aprisionada ou livre, está registrada na biblioteca lá em
Chipenden.
Sabia que não era verdade no que dizia respeito a Meg. Havia muito
pouco escrito sobre ela na biblioteca do Mago, mas não comentei nada.
De repente, ouvi uma leve agitação vinda da escuridão do poço e recuei
rapidamente um passo.
— Bessy é uma bruxa de primeira categoria? —
perguntei nervosamente ao Mago, porque eram as mais perigosas e
capazes de matar. — Não está assinalado na pedra. . — Todos os
demônios e bruxas nesta cave são de primeira categoria — disse-me o
Mago —, e aprisionei-os todos, por isso nem sempre vale a pena dar
mais trabalho ao pedreiro ao talhar a pedra, mas não tem nada a temer
aqui, rapaz. A Velha Bessy já ali está há muito tempo. Nós a
incomodamos e ela só está se agitando no sono, é tudo.
Agora, venha aqui ver isto. .
Era outro poço de bruxa, exatamente como o primeiro, mas senti
subitamente um arrepio de frio. Algo me disse que o que quer que
estava naquele poço era muito mais perigoso do que Bessy, adormecida
que apenas tentava ficar confortável no solo frio e úmido.
— Agora já podia olhar com mais atenção, rapaz
— disse o Mago —, para que possa ver com o que estamos a lidar.
Levante a sua vela, olhe para baixo e certifique-se de que mantenha os
pés bem recuados!
Não o queria fazer, mas a voz do Mago era firme.
Fora uma ordem. Olhar para o fundo do poço fazia parte da minha
preparação, por isso não tinha escolha.
Inclinei o meu corpo para a frente, mantendo os dedos dos pés bem
recuados das grades e levantei a vela, que lançou uma luz tremulante
pelo poço abaixo. Naquele preciso instante, ouvi um barulho lá no fundo
e algo enorme correu pelo chão e até às sombras escuras no canto mais
próximo. Pareceu cheio de vida, como se capaz de escalar pela parede
do poço para cima mais depressa do que eu conseguia pestanejar!
— Erga a vela bem acima das grades e olhe com atenção! — ordenou o
Mago.
Obedeci, segurando-a à distância do braço. A princípio, apenas consegui
ver dois olhos enormes e cruéis a fitar-me, dois pontos de fogo refletindo
a chama da vela.
Quando olhei com mais atenção, vi um enorme rosto descarnado
emoldurado por um emaranhado de cabelo espesso seboso e um corpo
atarracado por debaixo dele.
Tinha quatro membros e eram mais braços do que pernas, com mãos
grandes alongadas que terminavam com compridas garras afiadas.
Senti um arrepio e a minha mão tremeu tanto que quase deixei cair a
vela pelas grades. Recuei rápido demais e quase caí, mas o Mago
agarrou-me o ombro e firmou-me.
— Não é nada bonito de se ver, rapaz — murmurou, abanando a cabeça.
— O que temos ali em baixo é uma bruxa lâmia. Parecia bastante
humana há mais de vinte anos quando a coloquei ali. Agora tornou-se
novamente selvagem. É o que acontece quando se mete uma bruxa
lâmia num poço. Privada da companhia humana, ela volta lentamente ao
que era. E mesmo passados todos estes anos, ainda está forte. Por isso
conservo as grades de ferro nas escadas. Se alguma vez conseguisse
sair daqui, sempre a retardaria por uns tempos.
«E não é tudo, rapaz. Sabe, um poço normal de bruxa não é
suficientemente bom para ela. Existem também grades de ferro nos
lados e no fundo do poço, enterradas debaixo do solo. Por conseguinte,
ela está dentro de uma jaula. Isso, para além de uma camada de sal e
ferro do outro lado. Ela é também capaz de escavar rapidamente e fundo
com aquelas quatro mãos com garras, por isso é a única maneira de a
conseguirmos impedir de sair! Diga-me, sabe quem ela é?
Que pergunta tão estranha. Olhei para baixo e li o seu nome na pedra.
O Mago deve ter visto a expressão no meu rosto ao fazer-se luz porque
sorriu com ar sinistro.
— Sim, rapaz. É a irmã de Meg..
— E Meg sabe que ela está aqui em baixo? — inquiri.
— Já soube, mas agora não consegue se lembrar; por isso é melhor
mantê-la assim. Agora venha aqui —
tenho algo mais para te mostrar.
Caminhou na frente por entre as pedras até ao canto extremo, que
aparentava ser a parte mais seca da cave; o teto por cima parecia na
sua maior parte limpo de teias de aranha. Havia um poço aberto, pronto
a ser usado, e a tampa estava mesmo ao lado dele no solo, à espera de
ser arrastada e posicionada.
Vi então, pela primeira vez, como se fazia a tampa para um poço de
bruxa. As pedras exteriores eram unidas com cimento num quadrado e
os pinos compridos atravessavam-nas de uma ponta à outra para haver
a certeza de que se mantinha no lugar. As treze barras de ferro eram
também, na realidade, compridos parafusos, fixos por porcas que
entravam nas pedras. Era uma obra muito inteligente e um pedreiro e
um ferreiro, trabalhando em conjunto, necessitavam de muita perícia
para executá-la.
De repente, a minha boca abriu-se e assim permaneceu tempo suficiente
até que o Mago percebeu. Desta vez, não havia símbolo, mas já fora
gravado um nome na pedra angular mais próxima:
— Qual te parece a melhor maneira, rapaz? —
perguntou o Mago. — Chá de ervas, ou isto? Porque vai ser uma ou a
outra.
— Chá de ervas — respondi, a minha voz pouco mais do que um
murmúrio.
— Certo, portanto, agora já sabe por que não pode se permitir esquecer
de lhe dar todas as manhãs. Se se esquecer, ela se lembrará, e não
quero ser obrigado a trazê-la aqui para baixo.
Havia uma pergunta que queria lhe fazer, mas não fiz porque sabia que
não iria agradar ao Mago. Queria saber por que o que era
suficientemente bom para uma bruxa não servia para todas as outras.
Mesmo assim, sabia que não podia me queixar muito, nunca iria
esquecer quão próximo do escuro Alice estivera. Tão próximo que o
Mago achara por bem metê-la num poço. Só cedera porque eu lhe
recordara que ele não o fizera com Meg.
Naquela noite, tive dificuldade em adormecer. A minha cabeça rodava
com o que vira e a percepção do lugar onde vivia. Fora já confrontado
com algumas coisas assustadoras, mas viver numa casa com sepulturas
de bruxas, demônios aprisionados e bruxas vivas na cave não me
deixava lá muito tranquilo. No fim, decidi descer na ponta dos pés.
Deixara o meu livro de notas na cozinha e queria o das lições de latim:
sabia que meia hora a olhar para as listas enfadonhas de nomes e
verbos com certeza fariam chegar o sono.
Antes mesmo de chegar ao fundo das escadas, ouvi ruídos com que não
esperava. Alguém chorava baixinho na cozinha e escutei a voz do Mago
a conversar em voz baixa. Quando cheguei à porta da cozinha, não
entrei; estava entreaberta e vi algo pela fresta que me deixou pregado
ao chão.
Meg estava sentada na cadeira de balanço perto da chaminé. Apoiava a
cabeça nas mãos e os seus ombros subiam e desciam com os soluços. O
Mago estava debruçado sobre ela, falando baixinho e acariciando-lhe o
cabelo. O rosto dele, iluminado pela luz da vela, estava meio virado para
mim e tinha uma expressão que nunca lhe vira antes. Era semelhante à
maneira como o rosto grande e sisudo do meu irmão Jack por vezes se
suaviza quando olha para a mulher, Ellie.
Depois, enquanto observava, para meu espanto, uma lágrima rolou do
olho esquerdo do meu mestre e desceu pela face até lhe chegar à boca.
Sabia que não devia continuar a espreitar, de modo que voltei para a
cama.
CAPÍTULO 6
UMA PESSOA MUITO PERIGOSA
Os dias não tardaram a entrar numa rotina fixa.
De manhã, as minhas tarefas eram acender as lareiras do térreo e ir
buscar água fresca no regato. Dia sim dia não, tinha de acender todas as
lareiras na casa para que não ficasse úmida demais.. Enquanto
preparava as lareiras dos quartos, tinha instruções para abrir cada janela
cerca de dez minutos a fim de arejar o quarto. Primeiro era necessário
limpar todas as grelhas e subia e descia várias vezes as escadas que
dava graças quando tudo terminava. A do sótão era a pior, claro, e
costumava começar por ela, antes que as minhas pernas ficassem
cansadas demais.
O sótão era realmente uma divisão grande, a maior da casa, com um
imenso espaço de chão. Só tinha uma janela que era uma enorme
clarabóia no telhado. O espaço estava vazio à exceção de uma
escrivaninha de mogno, que se encontrava fechada à chave. Na chapa
de latão à volta do buraco estava gravado um pentagrama, uma estrela
de cinco pontas dentro de três círculos concêntricos.
Sabia que os pentagramas serviam para proteger os magos quando
invocavam espíritos malignos e fiquei curioso em saber por que razão a
chapa apresentava aquele desenho.
A escrivaninha parecia ser bastante cara e perguntei-me também o que
conteria e por que razão o Mago não a trouxera para o seu gabinete de
trabalho, que seria um local muito mais adequado e útil. Nunca tive
oportunidade de lhe perguntar sobre escrivaninha, e quando finalmente
conversamos sobre o assunto, já era tarde demais.
Depois de arejar o sótão, começava a descer, um piso de cada vez. Os
três quartos mesmo por debaixo do sótão não estavam mobiliados.
Havia dois na frente da casa e um na parte de trás.
Este era o pior quarto e também o mais escuro da casa pois só tinha
uma janela, virada para a escarpa. Quando levantei a vidraça e espreitei,
a rocha úmida estava tão próxima que quase era possível estender o
braço e tocar-lhe. Havia uma saliência na escarpa com um caminho a
subir. Pareceu-me que seria possível passar da janela pa-ra a saliência.
Não que eu fosse tolo ao ponto de tentar!
Uma escorregada e abriria os miolos lá em baixo nas lajes.
Depois de acender as lareiras, dei o chá de ervas a Meg, a seguir treinei
os verbos latinos até ao desjejum, que era muito mais tarde do que lá
em Chipenden. Após o que vinham as lições durante a maior parte do
dia, mas, ao final da tarde eu costumava ir dar um pequeno passeio com
o Mago, não mais de vinte minutos a descer até à base da ravina, no
ponto onde desembocava nas vertentes mais baixas da charneca. Apesar
do trabalho árduo de acender as lareiras, fazia muito mais exercício em
Chipenden e começava a sentir-me inquieto. A cada manhã o ar parecia
mais frio e o Mago disse-me que a primeira neve não tardaria a chegar.
Uma manhã o meu mestre foi a Adlington visitar o irmão Andrew, o
serralheiro. Quando lhe perguntei se o podia acompanhar, ele recusou.
— Não, rapaz, alguém precisa ficar vigiando Meg.
Além disso, tenho de conversar com Andrew. Os assuntos de família são
particulares. E quero pô-lo a par do que está acontecendo...
Presumi que o Mago fosse contar ao irmão toda a história sobre o que
nos acontecera em Priestown, altura em que o meu mestre quase
morrera na fogueira por ordem do Inquisidor. Mal tínhamos regressado a
Chipenden, o Mago enviara uma carta para Adlington, informando o
irmão de que estava salvo, mas provavelmente agora queria narrar os
pormenores.
Fiquei realmente desapontado por me excluírem —
estava desesperado por saber como se dava Alice — mas não tinha
escolha e, apesar do chá de ervas, Meg precisava realmente de ser
vigiada com atenção. O Mago temia em particular que ela pudesse sair
da casa e afastar-se, por isso tinha de me certificar de que tanto a porta
da frente como a de trás se conservavam fechadas à chave. Por sinal,
ela teve uma atitude completamente inesperada. .
A tarde já ia adiantada, e estivera no gabinete de trabalho do Mago a
escrever uma lição no meu livro de notas. De quinze em quinze minutos
ia ver se Meg estava bem. Normalmente, encontrava-a a cochilar diante
da chaminé; ou isso ou a preparar os legumes para a ceia.
Mas quando a fui ver desta vez, ela não estava lá.
Corri primeiro para as portas, por via das dúvidas, mas estavam ambas
trancadas. Depois de ir espreitar a sala de visitas, fui lá em cima.
Esperara encontrá-la no quarto, mas após bater à porta e não obter
resposta, experimentei abri-la. Estava vazio.
Quanto mais subia, pior me começava a sentir.
Quando vi o sótão também vazio, entrei em pânico. Mas depois respirei
fundo. «Pense!», disse para com os meus botões. Onde mais poderia
Meg estar?
Só havia um outro lugar e era nas escadas que conduziam à cave. Não
parecera provável porque o Mago me dissera que só a idéia das escadas
a deixava nervosa. Primeiro fui ao gabinete de trabalho dele,
empoleirando-me no escabelo para procurar em cima da estante. Era
impossível ela ter encontrado a chave sem eu perceber, mas confirmei
mesmo assim. Ainda se encontrava lá. Suspirando de alívio, acendi uma
vela e desci as escadas.
Ouvi o portão muito antes de alcançá-lo. Não parava de soar
atroadoramente, fazendo repercutir aquela barulheira pela casa acima.
Se não tivesse sido o fato de esperar encontrar Meg ali, teria presumido
que algo viera da cave e tentava sair.
Mas era sem dúvida Meg. Agarrara-se às grades com força e as lágrimas
escorriam-lhe pela face. A luz da vela, vi-a abanar o portão. Pela força
que imprimia, dava para ver que ainda estava muito forte.
— Venha, Meg — disse-lhe delicadamente —, vamos para cima. Está frio
e há correntes de ar aqui em baixo. Se não tiver cuidado, apanhará um
resfriado.
— Mas alguém está lá em baixo, Bily. Alguém lá em baixo que precisa de
ajuda.
— Não está ninguém lá em baixo — disse-lhe, consciente de lhe mentir.
A irmã dela, Márcia, a lâmia selvagem, encontrava-se lá, aprisionada no
seu poço. Começava Meg a recordar-se?
— Mas tenho certeza que está, Bily. Não me lembro do nome dela, mas
está lá em baixo e precisa de mim.
Por favor, abra o portão e ajude-me. Deixe-me ir lá embaixo ver. Por
que não vem comigo e traz a sua vela?
— Não posso, Meg. Sabe, eu não tenho a chave que abre o portão.
Venha, por favor. Volte para a cozinha. . — John saberá onde está a
chave? — inquiriu Meg.
— Provavelmente. Por que não lhe perguntamos quando ele regressar?
— Sim, Bily, é uma boa idéia. Faremos isso!
Meg sorriu-me por entre as lágrimas e subiu as escadas. Levei-a para a
cozinha e sentei-a na cadeira de balanço junto à chaminé.
— Sente-se aqui e aqueça-se, Meg. Vou preparar-lhe outra xícara de chá
de ervas. Vai precisar depois de ter estado naquelas escadas frias e
úmidas...
Meg tomara já a dose habitual do dia e não queria correr o risco de
deixá-la doente, por isso coloquei apenas uma quantidade muito
pequena e adicionei água quente.
Agradeceu-me e não tardou a engoli-lo. Quando o Mago regressou, ela
já estava dormindo.
Quando lhe contei o sucedido, ele abanou a cabeça.
— Isto não me agrada nada, rapaz! A partir de agora, a dose matinal
dela tem de ser dois centímetros no fundo de uma xícara. Não o quero
fazer, mas não há outra alternativa.
Ficara realmente abatido. Raramente lhe vira um ar tão tristonho. Mas
não tardei a descobrir que não era só por causa de Meg.
— Tive más notícias, rapaz — disse-me, deixando-se cair pesadamente
numa cadeira junto à chaminé. —
Emily Burns faleceu. Já arrefeceu na sepultura há mais de um mês.
Não soube o que dizer. Tinham passado muitos anos desde que ele vira
Emily. De então para cá Meg fora a mulher da sua vida. Por que estaria
tão triste?
— Lamento — disse-lhe desajeitadamente.
— Mas não lamenta tanto quanto eu, rapaz — referiu o Mago. — Emily
era uma boa mulher. Teve uma vida difícil mas sempre se esforçou
muito. O mundo ficará mais pobre agora que ela partiu! Quando os bons
morrem, sempre se liberta algum mal que de outro modo estaria
controlado!
Ia perguntar-lhe o que queria dizer com aquelas palavras misteriosas,
mas naquele momento Meg começou a agitar-se e abriu os olhos por
isso remetemo-nos ao silêncio e ele não tornou a mencionar Emily.
Ao desjejum da oitava manhã depois de termos chegado, o Mago afastou
de si o prato, congratulou Meg pelos seus cozinhados e depois virou-se
para mim.
— Bem, rapaz, acho que está na hora de ir ver como se está saindo
aquela jovem. Acha que consegue encontrar o caminho?
Anuí, tentando não dar mostras de grande satisfação, e dez minutos
depois descia em passadas a ravina indo sair do outro lado da vertente
com o céu aberto lá no alto. Passei a norte de Adlington, em direção a
Moor View Farm, onde Alice ficara instalada.
Quando o Mago decidira viajar para a sua casa de Inverno, eu presumira
que pouco depois o tempo iria piorar e, na verdade, fora arrefecendo
gradualmente. Mas hoje parecia ter mudado para melhor. Apesar de
estar uma manhã fria, com geada, o sol brilhava, não havia nuvens e
conseguia ver a uma distância de quilômetros. Era uma daquelas
manhãs em que era bom estar vivo.
Alice deve ter me visto aproximar colina abaixo porque saiu do pátio da
fazenda e veio ao meu encontro.
Havia uma pequena mata perto do limite da fazenda e aguardou ali na
sombra das árvores. Parecia realmente triste, e percebi, antes sequer de
ela falar, que não estava feliz no seu novo lar.
— Não é justo, Tom. O Velho Gregory não podia ter me arranjado lugar
pior onde ficar! Não é muito divertido estar com os Hursts!
— É mesmo tão mau assim, Alice? — inquiri.
— Estaria melhor em Pendle, pode ter certeza.
Era em Pendle que vivia a maior parte da família de bruxas de Alice. E
ela detestava porque a tratavam mal.
— São cruéis com você, Alice? — perguntei, ficando alarmado.
Alice abanou a cabeça.
— Ainda não me puseram a mão em cima. Mas não falam muito comigo.
E não demorei a perceber por que eram tão calados e infelizes. É aquele
filho deles — o que se chama Morgan, por quem o Velho Gregory
perguntou.
É cruel e mau, se é. Nunca vi nada assim. Que tipo de filho bate no pai e
grita com a mãe até a fazer chorar? Nem sequer lhes chama Mãe e Pai.
«Velho» e «Velha» é o melhor que conseguem dele. Têm medo dele, se
têm, e mentiram ao Velho Gregory porque Morgan vai lá muitas vezes.
Não tenho nada a ver com isso, mas não aguento mais. Se for
necessário, de uma maneira ou de outra, dou-lhe cabo.
— Não faça nada por enquanto — aconselhei-a. —
Deixe-me falar primeiro com o Mago.
— Não me parece que ele vá correr a ajudar. Calculo que o Velho
Gregory tenha feito de propósito. Aquele filho deles é da mesma laia.
Anda de capa com capuz e traz também um bordão! Provavelmente
pediu-lhe que ficasse de olho em mim.
— Bem, ele não é mago, Alice.
— O que mais poderia ser?
— É um dos aprendizes fracassados do Mago e eles não se dão. Lembra-
se da última noite em Chipenden em que trouxe uma carta e o Mago
ficou realmente furioso? Não tive oportunidade de te contar, mas aquela
carta era de Morgan. Ele tem andado a ameaçar o Mago. Disse que o
meu mestre tem algo que lhe pertence.
— Bem, ele é mesmo muito perigoso — continuou Alice. — Não visita
apenas a casa. Algumas noites desce a colina e vai ao lago. Observei-o a
noite passada. Põe-se perto da beirada e olha fixamente para a água.
Por vezes a sua boca move-se como se falasse com alguém. A irmã dele
afogou-se no lago, não foi? Calculo que esteja falando com o fantasma
dela. Não me surpreenderia se ele a tivesse afogado!
— E bate no pai? — perguntei. Aquilo foi o que mais me chocou. Fez-me
pensar no meu próprio pai e formou-me um nó na garganta só da
lembrança. Como podia alguém levantar a mão contra o próprio pai?
Alice acenou com a cabeça.
— Discutiram duas vezes desde que estou lá.
Grandes desavenças. Da primeira vez, o velho Mr. Hurst tentou expulsá-
lo da casa e andaram se atracar. Morgan é muito mais jovem e forte e
pode calcular quem levou a pior. Da segunda vez, arrastou o pai lá para
cima e trancou-o no seu quarto. O velho começou a gritar. Não gostei
nada daquilo. Fez-me lembrar quando vivia com a minha própria família
lá em Pendle. Talvez se contar ao Velho Gregory como isto é mau, ele
me deixe vir morar com vocês.
— Não creio que fosse gostar de Anglezarke. A cave está cheia de poços
e ele tem duas bruxas vivas lá em baixo, e uma delas é irmã de Meg e é
uma bruxa lâmia selvagem. É medonho vê-la correr pelo poço. Mas
tenho mais pena da própria Meg. Tinha razão a respeito dela.
Vive na casa com o Mago, mas está medicada com uma poção para não
conseguir se lembrar de quem é. Passa mais da metade do ano trancada
numa cela lá em baixo perto da cave. É realmente triste de ver. Mas o
Mago não tem outra alternativa. Ou isso ou metê-la num poço como a
irmã. — Não está certo manter uma bruxa num poço.
Nunca concordei com isso. Mas preferia estar lá com você do que ter de
ver Morgan a maior parte dos dias. Sinto-me sozinha, Tom. Sinto a sua
falta!
— Também sinto a sua falta, Alice, mas não posso fazer nada no
momento. Porém, vou contar ao Mago o que acabou de dizer, e pedir-lhe
novamente. Farei o meu melhor, prometo. Mas diga-me, Morgan está lá
em baixo neste momento? — indaguei, indicando a fazenda com a
cabeça.
Alice abanou a cabeça.
— Não o vejo desde ontem. Sem dúvida voltará em breve.
Não falamos muito mais depois porque Mrs. Hurst, a mulher do
agricultor, apareceu à porta e começou a chamar Alice, e ela teve de ir
embora.
Alice ficou carrancuda e ergueu os olhos para o céu.
— Virei te visitar em breve! — prometi-lhe quando ela se virou para ir.
— Faça isso, Tom. Mas peça ao Velho Gregory, por favor!
No entanto, não voltei logo para casa do Mago. Fui mesmo até ao topo
da charneca, onde o vento poderia limpar as teias de aranha da minha
cabeça. A minha primeira impressão foi de que o topo da charneca era
bastante plano, e a paisagem menos bonita do que a das extensões
rochosas por cima de Chipenden. Tão pouco era a vista dos campos lá
em baixo tão dramática.
Mesmo assim, havia colinas mais altas a sul e leste, e para lá de
Anglezarke, até mais charnecas. Mesmo a sul ficavam Winter Fíill e
Rivington, Smithhil s para lá delas e, a leste, Turton Moor e Darwen
Moor. Sabia porque estudara os mapas do Mago antes de partirmos,
tendo o cuidado de os dobrar cuidadosamente depois. Assim, tinha já na
mente uma boa idéia da configuração da zona. Havia muito o que
explorar e decidi que iria pedir um dia de folga ao Mago para o fazer
antes que o tempo invernoso chegasse de verdade. Calculei que
provavelmente ele concordasse em parte porque compete a um mago
conhecer a geografia do Condado, a fim de ir rapidamente de um lugar
ao outro e encontrar o caminho quando alguém manda pedir ajuda.
Desci mais até ver uma pequena colina arredondada ao longe, mesmo
no cimo da charneca. Parecia artificial e calculei que fosse uma cripta,
uma elevação tumular de algum antigo chefe de clã. Precisamente
quando ia me afastar, apareceu uma figura no seu cume. Trazia um
bordão na mão esquerda e usava uma capa com o capuz puxado para a
frente. Só podia ser Morgan!
O seu aparecimento na cripta foi tão súbito que quase pareceu ter
surgido do nada. No entanto, o bom senso disse-me que ele subira
simplesmente a vertente do outro lado da colina.
Mas o que fazia ele? Não conseguia perceber. Parecia uma espécie de
dança! Sacudia-se e agitava os braços no ar. Depois, muito de repente,
soltou um urro de raiva e arremessou o bordão ao chão. Estava em
fúria. Mas do quê?
Um instante depois, avançou do leste, uma mancha de bruma que o
escondeu, de modo que retomei o meu caminho. Certamente não me
agradava nada ter de ficar frente a frente com ele. Especialmente
atendendo ao seu presente estado de espírito!
Depois daquilo, não me detive demais nas charnecas. De qualquer
forma, se eu regressasse em tempo razoável, provavelmente o Mago me
deixaria voltar a ver Alice em breve. E estava ansioso por lhe contar o
que soubera.
Assim, depois da nossa refeição do meio-dia, contei ao meu mestre que
vira Morgan no cume da charneca e tudo o que Alice dissera a respeito
dele.
O Mago coçou a barba e suspirou. — A garota tem razão. Morgan é uma
pessoa muito perigosa, não há dúvida. Veste-se como um mago e
algumas pessoas crédulas toma-o agora por isso. Mas falta-lhe a
disciplina para dominar o nosso ofício. Era também preguiçoso e
negligente. Já se vão quase dezoito anos desde que ele me deixou, e de
lá para cá tem andado sobretudo a fazer das suas.
Tem-se na conta de um esconjurador e leva dinheiro de gente boa e
honesta quando está mais vulnerável. Tentei impedi-lo de seguir maus
caminhos, mas pelos vistos algumas pessoas recusam-se simplesmente
a ser ajudadas.
— Um esconjurador? — inquiri, não familiarizado com a palavra.
— É outra palavra para mago ou feiticeiro, rapaz.
Alguém que pratica a chamada magia. Ele efetua também algumas
curas, mas a sua especialidade é a necromancia.
— Necromancia? O que é isso? — inquiri. Nunca ouvira o Mago usar o
termo antes e percebi que teria de tomar muitas notas no meu livro
depois da nossa conversa.
— Pense, rapaz. Vem do grego, por isso deve conseguir entender o que
significa!
— Bem, nekros significa «cadáver» — afirmei, após alguma reflexão
cuidada. — Por isso calculo que seja algo ligado aos mortos.
— Lindo rapaz! Ele é um esconjurador que usa os mortos para o
ajudarem e darem-lhe poder.
— Como? — quis saber.
— Bem, conforme já te disse, os fantasmas e imagens fantasmagóricas
intervém ambos na atividade. Mas ao passo que nós conversamos
demoradamente com eles e os mandamos embora, ele faz o contrário.
Ele aproveita-se dos mortos. Usa-os como espiões. Encoraja-os a ficar
presos à terra para servir os seus propósitos e ajudá-lo a encher os
bolsos de prata. Às vezes ludibriando gente vulnerável e aflita.
— Nesse caso ele é uma fraude? — perguntei.
— Não, ele fala mesmo com os mortos. Portanto lembre-se disto, e
lembre-se bem: Morgan é um homem perigoso e as suas ligações com o
escuro têm-lhe granjeado alguns poderes muito reais e perigosos que
deveríamos temer. É também implacável, e machucaria seriamente
alguém que se atravessasse no seu caminho. Por isso, mantenha-se bem
distante dele, rapaz.
— Por que não o impediu antes? — perguntei. —
Não podia ter tratado dele há anos?
— É uma longa história — retorquiu o meu mestre. — Por acaso até
podia, só que o momento não era oportuno então. Mas trataremos dele
em breve. Procure manter-se afastado dele até estarmos preparados —
e pare de me dizer como fazer o meu trabalho!
Baixei a cabeça e o meu mestre bateu-me de leve no braço.
— Vamos, rapaz, nada está perdido. O seu raciocínio está certo. Agrada-
me ver que pense por si mesmo. E
a garota agiu bem ao espiá-lo falando com o fantasma da irmã. Foi
exatamente por isso que a coloquei lá, para ficar atenta a esse tipo de
coisas!
— Mas não é justo! — protestei. — O senhor sabia que Alice iria passar
lá um mau bocado.
— Sabia que não iria ser um mar de rosas, rapaz.
Mas a garota tem de compensar pelo que fez no passado e ela é mais do
que capaz de olhar por si mesma. Ainda assim, quando tivermos tratado
de Morgan, será um lar muito mais feliz. Mas primeiro temos de
encontrá-lo.
— Alice disse que os Hursts mentiram. Morgan visita a fazenda muitas
vezes.
— Ah pois visita!
— Disse-me que no momento ele não está lá mas que pode regressar a
qualquer instante.
— Bem, talvez seja por aí que deveríamos iniciar a nossa busca amanhã
— afirmou o Mago, parecendo pensativo.
Como o silêncio se prolongasse, cumpri a minha promessa a Alice muito
embora soubesse que o pedido era uma perda de tempo.
— Alice não poderia ficar de novo conosco? —
perguntei. — Ela tem mesmo passado um mau bocado. É
cruel abandoná-la quando existe espaço suficiente para ela aqui.
— Para quê fazer uma pergunta se já sabe a resposta? — argumentou o
Mago, deitando-me um olhar furioso. — Não me venha com falas
mansas. Se deixar que o coração mande na sua cabeça, então o escuro
te vencerá sempre. Não se esqueças, rapaz — pode muito bem um dia
lhe salvar a vida. E já temos bruxas de sobra a viver aqui.
E a nossa conversa morreu ali. Mas não fomos à fazenda dos Hursts no
dia seguinte. Aconteceu algo que alterou tudo.
CAPÍTULO 7
O ARREMESSADOR DE PEDRAS
Logo a seguir ao desjejum, o filho enorme e entrançado de um agricultor
por pouco não colocava abaixo a porta de trás com ambos os punhos,
como se a sua vida dependesse disso.
— O que está tentando fazer, meu grande bruta-montes? — exclamou o
Mago, escancarando a porta. —
Quer arrebentar com isto?
O rapaz parou de dar socos na porta e o seu rosto ficou vermelho que
nem um pimentão.
— Perguntei pelo senhor na aldeia — disse, apontando na direção de
Adlington. — Um carpinteiro veio ao pátio e indicou o caminho para cá.
Disse-me que batesse com força na porta de trás.
— Sim, mas ele disse bater, não arrebentar com ela
— redarguiu o Mago, furioso. — Adiante-se, qual o assunto que te traz
até mim?
— O Pai mandou-me. Ele disse para vir imediatamente. É um assunto
mau. Morreu um homem.
— Quem é o seu pai? — inquiriu o Mago.
— Henry Luddock. Moramos em Stone Farm, perto de Orshaw Clough.
— Já conheço o seu pai e trabalhei para ele antes.
Por acaso não será o Wiliam?
— Isso mesmo. .
— Bem, William, da última vez que visitei Stone Farm não passava de
um bebê de colo. Vejo agora que está aflito, por isso entre e sente-se.
Depois respire fundo, acalma-se e comece pelo princípio. Quero todos os
pormenores, por isso não omita nada — ordenou o Mago.
Quando atravessamos a cozinha para chegar à sala de visitas, nem sinal
de Meg. Quando não estava a trabalhar, costumava vir sentar-se na sua
cadeira de balanço, aquecendo as mãos na lareira da cozinha. Perguntei-
me se estaria escondida visto termos visitas — algo que deveria ter feito
quando Shanks viera entregar as mercearias.
Uma vez na sala de visitas, William deu início ao seu relato dos
acontecimentos que tinham começado bastante mal e depois ficado bem
pior. Parecia que um demônio, provavelmente aquele que o meu mestre
e eu ouvíramos atravessar as linhas antigas noites antes, se instalara em
Stone Farm, dando início às suas travessuras fazendo alguns ruídos
durante a noite. Mexera nos tachos e panelas da cozinha, batera na
porta da frente e dera murros nas paredes várias vezes. Era suficiente
para eu o identificar logo pelas notas que tomara a respeito dos
demônios. Era um barulhento, por isso já calculava o que se seguiria na
história de Wiliam. Na manhã seguinte começara a arremessar pedras.
Inicialmente, tinham sido apenas pequenos seixos, que batiam nas
vidraças, rebolavam pelas telhas ou caíam pela chaminé. Depois as
pedras tornaram-se maiores. Muito maiores.
O Mago ensinara-me que os barulhentos por vezes evoluíam
para arremessadores de pedras. Estes eram demônios com mau gênio e
muito perigosos de enfrentar. O morto era um pastor que trabalhava
para Henry Luddock. O seu corpo fora encontrado na vertente inferior da
charneca.
— Tinha a cabeça esmigalhada — contou-nos William. — A pedra que o
matou era maior do que a cabeça dele. — Tem certeza de que não foi
um acidente? —
perguntou o Mago. — Ele pode ter tropeçado, caído e batido com a
cabeça.
— Claro que temos a certeza: ele estava estendido de costas e tinha a
pedra em cima dele. Depois, enquanto trazíamos o corpo para baixo,
começaram a cair outras pedras à nossa volta. Foi horrível. Julguei que
ia morrer.
Irá nos ajudar? Por favor. O meu pai está louco de preocupação. Há
trabalho a fazer mas não é seguro sair para o exterior.
— Sim, volte e diga ao seu pai que estou a caminho. Quanto ao trabalho,
ordenhem as vacas e só façam o que for mesmo necessário. Os
carneiros sabem cuidar de si próprios, pelo menos até a neve chegar,
por isso afastem-se da vertente da colina.
Depois de William ir embora, o Mago virou-se para mim e abanou a
cabeça pesarosamente.
— É um caso complicado, rapaz — disse. — Os arremessadores de
pedras são turbulentos mas raramente matam, por isso este patife pode
voltar a fazer o mesmo.
Já tratei antes de um ou dois como ele e normalmente acabou pelo
menos com uma forte dor de cabeça pelo meu trabalho. Não é bem o
mesmo que lidar com um estripador, mas por vezes pode ser igualmente
perigoso. Houve magos que foram mortos por arremessadores de
pedras.
Já lidara com um estripador no Outono. O Mago estivera doente e tivera
de fazer tudo sem ele, auxiliado por um aparelhador e o seu ajudante.
Fora bastante assustador porque os estripadores costumam matar a sua
presa.
Este também era assustador, mas de uma forma diferente.
Não podíamos fazer muito para nos defendermos dos pedregulhos que
caíam do céu!
— Bem, alguém tem de fazê-lo! — respondi com um sorriso, pondo um
ar corajoso.
O Mago anuiu com gravidade.
— E tem, rapaz, por isso vamos lá nos apressar.
Havia algo que se impunha fazer antes de partirmos. O Mago levou-me
de novo para a sala de visitas e disse-me que fosse buscar a garrafa
castanha rotulada
«CHÁ DE ERVAS».
— Prepare outra bebida para Meg, rapaz — disse o Mago. — Só que
desta vez faça-a mais forte. Encha uns bons centímetros. Deve funcionar
pois voltaremos ainda esta semana.
Fiz o que me mandavam, usando pelo menos cinco centímetros da
bebida escura. Depois pus a chaleira ao fogo e enchi a xícara quase até à
borda com água quente.
— Beba isto, Meg — disse-lhe o Mago quando lhe entreguei a xícara
fumegante. — Vai precisar porque o tempo está a esfriar e pode te
causar dores nos ossos.
Meg sorriu-lhe e dez minutos depois ela esvaziara a xícara e começava
já a cabecear. O Mago entregou-me a chave do portão e disse-me que
fosse andando. Depois pegou em Meg como se fosse um bebê e veio
atrás de mim, com esforço.
Abri o portão, depois desci as escadas e esperei junto à porta do meio
das três enquanto o meu mestre levava Meg para o interior escuro.
Deixou a porta aberta e pude escutar cada palavra que lhe disse.
— Boa noite, meu amor — proferiu. — Sonhe com o nosso jardim.
Sei perfeitamente que não deveria ter escutado, mas escutara, e senti-
me um pouco embaraçado ao ouvir logo o meu mestre falar daquela
maneira.
E a que jardim se referia o Mago? Seriam os jardins de Chipenden? Se
sim, esperava que fosse o jardim ocidental com a vista para as
extensões rochosas. Nos outros dois, com os poços dos demônios e as
sepulturas das bruxas, nem valia sequer a pena pensar.
Meg não deu qualquer resposta, mas o Mago deve tê-la acordado
quando saiu e trancou a porta atrás de si, porque ela começou
subitamente a chorar como uma criança com medo do escuro. Ao ouvir
aquele som, o Mago estacou e esperou um longo tempo do lado de fora
da porta até o choro finalmente passar e ser substituído por outro som
muito tênue. Ouvi o silvo da respiração que saía por entre os dentes de
Meg ao expirar.
— Ela agora está bem — disse baixinho ao meu mestre. — Está
dormindo. Ouço-a ressonar.
— Nada disso, rapaz! — respondeu o Mago, deitando-me um dos seus
olhares fulminantes. — É mais cantar do que ressonar! — Bem, a mim
parecia-me sem dúvida ressonar, e só me ocorreu que o Mago não
admitia nem a menor atenção a Meg. De qualquer forma, dito isto,
subimos, trancamos o portão e preparamos as nossas coisas para a
viagem.
Seguimos para leste, embrenhando-nos cada vez mais na ravina, até
ficar tão estreita que quase tínhamos de caminhar dentro do regato e
havia apenas uma minúscula fenda de céu cinzento por cima de nós.
Depois, para minha surpresa, chegamos a uns degraus talhados na
rocha.
Eram estreitos e íngremes, escorregadios com pedaços de gelo. Eu
carregava o saco pesado do Mago, o que significava que, se
escorregasse, só tinha uma mão livre para me salvar.
Seguindo o meu mestre, consegui chegar ao topo inteiro e valeu sem
dúvida a escalada porque estava de novo no ar puro, rodeado de amplos
espaços. O vento soprava com rajadas dignas de nos arrancarem da
charneca e as nuvens eram escuras e ameaçadoras, passando tão rente
às nossas cabeças que quase parecia possível estender o braço e tocar-
lhes.
Conforme lhes disse, sendo uma charneca, Anglezarke era alta mas
muito mais plana do que as extensões rochosas que deixáramos para
trás em Chipenden. Havia, porém, algumas colinas e vales, alguns deles
com formas muito estranhas. Um em particular destacava-se porque era
uma elevação pequena, arredondada e lisa demais para ser natural.
Quando passamos perto dela, reconheci-a subitamente como a cripta
onde vira o filho dos Hursts.
— Foi onde vi Morgan — disse ao Mago. — Ele estava mesmo ali no topo.
— Não duvido que estivesse. Ele sempre teve um fascínio por aquela
cripta e não consegue ficar longe dela.
Sabe, chamam-lhe Round Loaf4, por causa da forma —
explicou o Mago, apoiando-se no seu bordão. — Foi construída em
tempos antigos, pelos primeiros homens que chegaram ao Condado
vindos do oeste. Desembarcaram em Heysham, como muito bem sabe.
— Para que serve? — inquiri.
— Poucos o sabem ao certo, mas muitos são suficientemente tolos para
dar um palpite. A maioria pensa que é apenas uma cripta onde jaz um
antigo rei com a ar-4 Pão Redondo. (NT)
madura e o ouro. Pessoas gananciosas abriram poços fundos, mas,
apesar de todo o seu trabalho árduo, não encontraram nada. Sabe o que
significa a palavra Anglezarke, rapaz?
Abanei a cabeça e senti um arrepio de frio.
— Pois bem, significa «templo pagão». Toda a charneca era uma imensa
igreja, aberta para os céus, onde aquele povo antigo venerava os
Deuses Antigos. E, como a sua mãe te contou, o mais poderoso desses
deuses chamava-se Golgoth, que significa Senhor do Inverno. Há quem
diga que esta elevação era o seu altar especial. Para começar, ele
possuía uma força poderosa sobre os elementos, um espírito da natureza
que adorava o frio. E
como foi venerado durante tanto tempo e tão fervorosa-mente, tornou-
se consciente e voluntarioso, ficando por vezes mais tempo depois da
estação que lhe fora atribuída e ameaçando um domínio de gelo e neve
um ano inteiro.
Há quem pense até que foi o poder de Golgoth que provocou a última
Era Glacial. Vá lá saber. Para todos os efeitos, nas profundezas do
Inverno, no solstício, temendo que o frio pudesse nunca mais acabar e a
Primavera nunca mais voltar, as pessoas ofereceram sacrifícios para o
apaziguar. Foram sacrifícios de sangue, porque os homens nunca
aprendem.
— Animais? — perguntei.
— Humanos, rapaz — fizeram-no para que, empanturrado com o sangue
das vítimas, Golgoth ficasse saciado e mergulhasse num sono profundo,
deixando a Primavera voltar. Subsistem ainda os ossos dos que foram
sacrificados. Escave em qualquer ponto no raio de um quilômetro daqui
e não tardará a encontrar ossos com fartura.
«Esta elevação é algo mais que sempre me trouxe desconfianças em
relação a Morgan. Não conseguia manter-se afastado deste lugar e
sempre se mostrou interessado em Golgoth — interessado demais para o
meu gosto
— e provavelmente ainda mostra. Sabe, há quem pense que Golgoth
podia ser a solução para alcançar a supremacia mágica, e se um
esconjurador como Morgan aproveitasse o poder de Golgoth, então a
força do escuro viria a dominar o Condado.
— E acha que Golgoth ainda está aqui, em algum lugar na charneca. .
— Sim. Dizem que dorme lá no fundo por debaixo dela. Daí o interesse
de Morgan em Golgoth ser perigoso.
O problema, rapaz, é que os Deuses Antigos ganham força quando são
venerados por homens tolos. O poder de Golgoth diminuiu quando esse
culto cessou e ele mergulhou num sono profundo. Um sono de que
nós não queremos que acorde.
— Mas por que deixaram as pessoas de o venerar?
Julguei que tivessem medo de que o Inverno pudesse nunca mais
acabar?
— Sim, rapaz, isso é verdade, mas por vezes há outras circunstâncias
mais importantes. Talvez uma tribo mais forte que se muda para a
charneca com um deus diferente. Ou talvez as sementeiras não cresçam
e um povo tenha de se deslocar para uma zona mais fértil. A razão
perde-se no tempo, mas neste momento Golgoth dorme.
E é assim que quero que ele fique. Por isso mantenha-se afastado deste
lugar, rapaz, é o conselho que te dou. E
vamos tentar manter Morgan longe dele também. Agora ande daí, já não
resta muito mais luz do dia, por isso é melhor apressarmo-nos.
Ditas aquelas palavras, o Mago afastou-nos e uma hora depois deixamos
a charneca e rumamos a norte, chegando a Stone Farm antes de
escurecer. William, o filho do agricultor, estava à nossa espera ao fundo
do caminho e subimos a colina em direção à fazenda precisamente
quando a luz começava a desaparecer. Mas antes de visitar a casa da
fazenda, o Mago insistiu em ser conduzido ao local onde fora encontrado
o corpo. Uma trilha que partia do portão na parte de trás da fazenda
conduzia diretamente à charneca, que era escura e ameaçadora sob o
céu cinzento. O vento amainara entretanto, as nuvens avançando
lentamente e parecendo carregadas de neve.
Cerca de duzentos passos levaram-nos a uma ravina muito mais
pequena do que aquela onde fora construída a casa do Mago, mas não
menos sinistra e ameaçadora. Era apenas um barranco estreito cheio de
lama e pedras, dividido ao meio por um riacho de curso rápido.
Parecia não haver muito mais que ver mas não me sentia à vontade,
nem tão pouco Wil iam. Os olhos dele andavam de um lado para o outro
e virava-se constantemente de repente, como se pensasse que algo se
pudesse aproximar dele por trás. Era curioso observar mas também eu
estava assustado demais para esboçar sequer um sorriso. — Com que
então é este o lugar? — perguntou o Mago quando parou.
William anuiu e indicou um pedaço de solo onde os tufos de erva
estavam espalmados.
— E aquela é a pedra que levantamos da cabeça dele — disse,
apontando para um bocado de rocha cinzenta grande. — Foi preciso dois
para a içar!
A rocha era grande e olhei para ela carrancudo, temendo pensar que
algo assim pudera cair do céu. Fez-me perceber quão perigoso um
arremessador de pedras podia ser.
Depois, de um momento para o outro, começaram a cair pedras. A
primeira era pequena, o ruído dela ao bater na erva tão fraco que mal o
ouvi acima do gorgolejar do riacho. Olhei para as nuvens bem a tempo
de ver uma pedra bem maior descer, por pouco não me acertando na
cabeça. Não tardou que principiassem a cair à nossa volta pedras de
todos os tamanhos, algumas suficientemente grandes para nos
causarem danos graves.
O Mago apontou com o bordão na direção da fazenda e, para minha
surpresa, voltou para trás, começando a descer a ravina. Deslocávamo-
nos rapidamente, e procurei acompanhar o ritmo, o saco tornando-se
mais pesado a cada passo, a lama escorregadia sob os meus pés. Só
quando chegamos ao pátio da fazenda é que paramos, exaustos.
As pedras tinham deixado de cair, mas uma delas fizera estragos. Havia
um golpe na testa do Mago, de onde escorria sangue. Não era grave
nem punha em risco a sua saúde, mas vê-lo ferido daquela maneira
deixou-me preocupado.
Um arremessador de pedras matara um homem e, no entanto, de
alguma forma, o meu mestre — que já não era nada jovem — ia ter de
lidar com ele. Eu sabia que amanhã ele ia mesmo precisar do aprendiz.
Sabia que ia ser um dia aterrador.
Henry Luddock recebeu-nos muito bem quando regressamos à fazenda.
Em breve estávamos sentados na cozinha dele em frente a uma lareira
de toras acesa. Era um homem grande, corado e jovial que não se
deixara abater pela ameaça do demônio. Ficara triste com a morte do
pastor que contratara, mas foi simpático e atencioso conosco e quis
fazer de anfitrião oferecendo-nos uma lauta ceia.
— Obrigado pela oferta, Henry — disse-lhe o Ma-go, declinando
educadamente. — É muito gentil da sua parte, mas nós nunca
trabalhamos de barriga cheia. Só arranjaríamos confusão. Mas esteja à
vontade e coma o que quiser.
Para meu desalento foi exatamente o que a família Luddock fez.
Sentaram-se e atacaram doses monumentais de empada de vitela,
enquanto uma miserável bocada de queijo e um copo de água foi tudo o
que o Mago nos permitiu.
Fiquei então ali sentado a mordiscar o meu queijo, pensando em Alice
naquela casa onde era tão infeliz. Se não tivesse sido este demônio,
talvez o Mago tivesse tratado de Morgan e melhorado a situação. Mas
com um arremessador de pedras para enfrentar, sabia-se lá quando é
que ele o poderia fazer.
Não havia quartos a mais em casa dos Luddocks e o Mago e eu
passamos uma noite desconfortável, cada um embrulhado no seu
cobertor no chão da cozinha, perto das cinzas da lareira. Frios e rígidos,
levantamo-nos na manhã seguinte bem antes da alvorada e partimos
para a aldeia mais próxima, que se chamava Belmont. O caminho era
sempre a descer, o que facilitava o avanço, mas sabia que não
tardaríamos a retroceder cada passo, efetuando a difícil subida de volta
à fazenda.
Belmont não era muito grande — apenas uma encruzilhada com meia
dúzia de casas e o ferrador que tínhamos vindo visitar. O ferreiro não
pareceu muito satisfeito por nos ver, mas provavelmente dever-se-ia ao
fato de as nossas pancadas o terem arrancado da cama. Era grande e
musculoso como a maior parte dos ferreiros, decerto não um homem
para brincadeiras, mas olhava o Mago com desconfiança e parecia
constrangido. Conhecia bem o ofício do meu mestre.
— Preciso de um machado novo — disse o Mago.
O ferreiro apontou para a parede por detrás da forja, onde havia uma
série de lâminas expostas, toscamente moldadas, à espera do
acabamento final.
O Mago escolheu rapidamente, apontando para a maior. Era enorme e
com lâminas duplas e o ferreiro olhou rapidamente o meu mestre de alto
a baixo, como se a avaliar se seria suficientemente grande e forte para a
manejar. Depois, sem mais delongas, anuiu, resmungou e começou a
trabalhar. Permaneci junto à forja, observando enquanto o ferreiro
aquecia, batia e moldava as lâminas na bigorna, mergulhando-as amiúde
numa tina com água no meio de um enorme fervilhar e uma nuvem de
vapor.
Enfiou-as num comprido cabo de madeira antes de afiá-las na mó, as
faíscas saltando. No total, passou quase uma hora antes de o ferreiro se
dar finalmente por satisfeito e entregar o machado ao meu mestre.
— Agora, vou precisar de um escudo grande —
pediu o Mago. — Tem de ser suficientemente grande para nos proteger
aos dois, no entanto, bastante leve para o rapaz o erguer por cima da
cabeça.
O ferreiro pareceu surpreendido mas foi à loja na parte de trás e voltou
com um enorme escudo redondo.
Era feito de madeira com um rebordo de metal. Tinha também uma
aplicação em ferro ao meio, com um espigão, que o ferreiro começou por
remover, substituindo-a por mais madeira a fim de tornar o escudo mais
leve. A seguir, cobriu o exterior do escudo com folha de alumínio.
Segurando a extremidade exterior, podia agora erguer o escudo acima
da minha cabeça com ambos os braços esticados. O Mago disse que
assim não dava pois eu machucaria os dedos e podia largar o escudo.
Então, a habitual tira de couro foi substituída por duas pegas de madeira
que ficariam do lado de dentro do rebordo.
— Ora bem, vejamos como se sai — disse o Mago.
Obrigou-me a segurar o escudo em várias posições e diferentes ângulos
e, dando-se finalmente por satisfeito, pagou ao ferreiro e regressamos a
Stone Farm.
Fomos logo direto à extensão rochosa. O Mago teve de deixar o seu
bordão pois tinha as mãos cheias de levar o machado e o seu próprio
saco. Eu me via atrapalhado com o pesado escudo, satisfeito por ele não
esperar que lhe carregasse também o saco. Subimos até alcançarmos o
local onde o homem morrera. Então, o Mago parou e olhou-me
duramente nos olhos.
— Agora precisa de ser corajoso, rapaz. Muito corajoso. E temos de agir
rapidamente — advertiu-me. — O
demônio habita debaixo das raízes de um velho espinheiro além. Temos
de derrubar e queimar a árvore para expulsá-lo.
— Como é que o sabe? — indaguei. — Os arremessadores de pedras
costumam viver sob as raízes das árvores?
— Eles vivem onde lhes convém. Mas geralmente os demônios gostam
de viver em ravinas e, em particular, debaixo das raízes dos espinheiros.
O pastor foi morto aqui mesmo no sopé desta ravina. E sei que existe
um espinheiro além porque é exatamente onde tratei do último, há
quase dezenove anos, quando o jovem John era apenas um bebê de colo
e Morgan meu aprendiz. Mas isso criou-nos um problema porque se
aquele demônio deu ouvidos a um pouco de persuasão simpática e se foi
embora quando lhe pedi, este é um arremessador de pedras velhaco que
já matou, por isso as palavras não serão suficientes.
Assim, seguindo para norte, entramos na extremidade ocidental da
ravina, o Mago impondo um ritmo acelerado à minha frente: não
tardamos a sentir dificuldade em respirar. A lama deu gradualmente
lugar a pedras soltas, tornando difícil o piso sob os nossos pés.
A princípio, mantivemo-nos perto do topo da ravina, mas depois o Mago
começou a descer o cascalho até chegarmos à beira do riacho. Era baixo
e estreito, mas continuava a saltar sobre as pedras, precipitando-se na
descida com tamanha força que teria sido difícil atravessá-lo.
Continuamos a subir contra a corrente, as margens de ambos os lados
erguendo-se íngremes até só ser visível uma nesga de céu lá em cima.
Depois, apesar do ruído do riacho, ouvi o primeiro seixo cair na água
mesmo lá à frente. Era algo de que estivera à espera, mas em breve se
seguiram outras, obrigando-me a tirar o escudo das costas e tentar
segurá-lo por cima das nossas cabeças. O Mago era mais alto do que eu
de modo que tinha de levantá-lo bastante, e não tardou que os ombros e
os braços me começassem a doer. Apesar de manter o escudo à altura
dos braços, o Mago era obrigado a curvar-se e o progresso não era
confortável para nenhum de nós.
Dali a pouco avistamos o espinheiro. Não sendo particularmente grande,
era uma árvore antiga, preta e re-torcida, com raízes nodosas que
faziam lembrar garras.
Erguia-se em desafio, tendo sobrevivido uma centena de anos ou mais
às piores intempéries. Era um bom local pa-ra um demônio se alojar,
especialmente um arremessador de pedras como este, um tipo que
evitava a companhia humana e gostava de estar sozinho.
A queda de pedras aumentava a cada minuto, e precisamente quando
chegamos à árvore, uma maior do que o meu punho embateu no
escudo, por pouco não me ensurdecendo.
— Mantenha-se firme, rapaz! — gritou o Mago.
Depois as pedras pararam de cair.
— Além. . — O meu mestre apontou e, na escuridão por debaixo dos
ramos das árvores, vi o demônio começar a ganhar forma. O Mago
dissera-me que este tipo de demônio era, na realidade, um espírito e
não tinha nem carne, nem sangue nem ossos seus; mas, por vezes,
quando tentava assustar as pessoas, cobria-se de coisas que o tornavam
visível aos olhos humanos. Desta vez estava a usar as pedras e a lama
por debaixo da árvore. Elevaram-se numa enorme nuvem úmida
rodopiante e colaram-se de modo a poder-se ver a sua forma.
Não foi uma visão bonita. Tinha seis braços enormes que, presumo,
eram bastante úteis para arremessar pedras. Não admirava que atirasse
tantas tão depressa. A cabeça era também enorme, assim como o rosto
coberto de lama, visco e pedras que se moveram quando nos olhou
sinistramente, tal como se estivesse a ocorrer lá debaixo um tremor de
terra. Havia uma fenda preta no lugar da boca e dois enormes buracos
pretos onde deveriam ter estado os olhos.
Ignorando o demônio e não perdendo tempo, quando as pedras
começaram a chover de novo, o Mago foi direito à árvore, o machado
descendo já quando a alcançou. A velha madeira nodosa era rija e foram
necessários alguns golpes para lhe cortar os ramos. Eu perdera de vista
o demônio, estando ocupado demais tentando manter o escudo erguido
e repelir as pedras maiores que caíam na nossa direção. O escudo
parecia ficar mais pesado a cada minuto e os meus braços tremiam do
esforço de o manter no alto.
O Mago atacou o tronco, atingindo-o com fúria.
Percebi então por que escolhera um machado com lâminas duplas:
rodava-o tanto para a frente como para trás em enormes arcos de
segadeira, a ponto de sentir a minha própria vida em risco. Olhando para
ele, ninguém diria que fosse tão forte. Estava muito longe de ser jovem,
mas soube então, pela maneira como a lâmina do machado se cravou
fundo na madeira, que, apesar da sua idade e recente falta de saúde,
continuava pelo menos tão forte quanto o ferreiro e teria feito dois do
meu pai.
O Mago não derrubou logo o espinheiro; rachou o tronco, depois pousou
o machado e levou a mão ao saco preto de couro. Não consegui ver bem
o que fazia porque as pedras principiaram a chover mais intensamente
do que nunca. Olhei de soslaio e vi o demônio começar a ondular e
expandir-se: enormes músculos salientes irrompiam por todo o seu
corpo como furúnculos inflamados. E, quando saltaram mais lama e
seixos, quase duplicou de tamanho.
Aconteceram depois duas coisas numa sucessão rápida.
A primeira foi cair do céu um enorme pedregulho à nossa direita que se
enterrou até a metade no solo. Se nos caísse em cima, o escudo teria
sido insuficiente. Ficaríamos ambos espalmados. A segunda foi a árvore
irromper subitamente em chamas. Tal como disse, não tive oportunidade
de ver de que forma o Mago agiu, mas o resultado foi sem dúvida
espetacular. A árvore acendeu-se com um enorme whoosh e as chamas
iluminaram o céu, as faúlhas a saltar em todas as direções.
Quando olhei para a esquerda, o demônio desaparecera, pelo que, com
braços trêmulos, baixei o escudo e assentei a extremidade inferior no
solo. Assim que o fiz, o Mago pegou no saco, pôs o machado ao ombro
e, sem dizer uma palavra ou olhar para trás, começou a descer a
extensão rochosa.
— Ande daí, rapaz — gritou lá para trás. — Não demore! Então, peguei
no escudo e segui-o, não arriscando sequer um olhar à retaguarda.
Dali a nada o Mago abrandou e alcancei-o.
— Pronto? — inquiri. — Acabou?
— Não sejas tolo! — disse, abanando a cabeça. —
Ainda mal começou. Aquilo foi só o primeiro passo. A fazenda de Henry
Luddock está segura por ora mas aquele demônio voltará a atacar em
algum lugar muito em breve.
O pior ainda está por vir!
Fiquei decepcionado porque julgara que o perigo passara e a nossa
tarefa fora concluída. Estava ansioso por uma refeição quente e
saborosa, mas o Mago acabara de destruir as minhas esperanças porque
teríamos de continuar a jejuar.
Assim que voltamos, ele informou Henry Luddock de que se livrara do
demônio. O agricultor agradeceu-lhe e prometeu pagar-lhe no Outono
seguinte, logo a seguir às colheitas; cinco minutos depois estávamos de
regresso à casa de Inverno do Mago.
— Tem certeza de que o demônio voltará? Realmente julguei que o
trabalho ficara concluído — disse ao Mago enquanto atravessávamos a
charneca, o vento a empurrar-nos por trás.
— Na verdade, o trabalho ficou meio feito, rapaz, mas o pior ainda está
para vir. Tal como um esquilo enterra as bolotas para comer mais tarde,
um demônio acumula reservas de força no lugar onde se alojou.
Felizmente, por ora desapareceram, arderam juntamente com a árvore.
Vencemos a primeira grande batalha, mas depois de uns dias a reunir
forças, recomeçará a atormentar outra pessoa.
— Nesse caso vamos aprisioná-lo num poço?
— Não, rapaz. Quando um arremessador de pedras mata tão
descontraidamente, é preciso dar um jeito de vez!
— Mas onde ele irá buscar novas forças? — perguntei.
— No medo, rapaz. É assim que ele consegue. Um arremessador de
pedras alimenta-se do medo daqueles que atormenta. Alguma pobre
família aqui perto vai ter uma noite de terror. Não sei para onde ele irá
ou quem escolherá, por isso não se pode fazer nada nem mandar avisar.
É algo que temos de aceitar. Como matar aquela pobre árvore. Não o
queria fazer mas tinha pouca escolha. Aquele demônio se deslocará,
reunirá forças, mas daqui a um dia ou dois encontrará um novo lar mais
definitivo. E
é então que virá alguém pedir-nos ajuda.
— Por que se tornou antes de mais o demônio velhaco? — quis saber. —
Por que matou?
— Por que matam as pessoas? — perguntou o Mago.
— Algumas fazem-no e outras não. E algumas que começam por ser
boas acabam más. Calculo que este arremessador de pedras tenha se
fartado de ser apenas um barulhento, espreitando às esquinas dos
edifícios para assustar as pessoas com pancadas e socos durante a noite.
Queria mais: queria toda a vertente da colina só para si e planejou
expulsar o pobre Henry Luddock e a sua família da fazenda. Mas agora,
como lhe destruímos o lar, irá precisar de outro. Por isso irá seguir ao
longo da linha antiga.
Anuí.
— Bem, talvez isto te anime — disse-me, retirando um pedaço de queijo
amarelo do bolso. Partiu um bocadinho e entregou-me. — Mastigue-o —
aconselhou —, mas não o engula todo de imediato.
Uma vez na casa do Mago, fomos buscar Meg à cave e retomei a minha
rotina de tarefas e lições. Mas havia uma grande diferença. Como
aguardávamos problemas com o demônio, o jejum continuou. Para mim
era uma tortura ver Meg cozinhar as refeições para si própria enquanto
nós passávamos fome. Jejuávamos há três dias inteiros até o meu
estômago julgar que me tinham cortado a garganta, mas finalmente,
cerca do meio-dia do quarto dia, ouviu-se uma pancada sonora na porta
das traseiras...
— Vá lá ver quem é, rapaz! — ordenou o Mago. —
São sem dúvida as novas por que temos aguardado.
Fiz o que me mandavam, mas quando abri a porta, para meu espanto,
encontrei Alice ali à espera.
— O velho Mr. Hurst mandou-me — referiu Alice.
— Há um demônio a atormentar Moor View Farm. Então? Não me
convida a entrar?
CAPÍTULO 8
O REGRESSO DO ARREMESSADOR DE PEDRAS
O Mago acertara em cheio na sua previsão mas ficou tão surpreendido
quanto eu quando conduzi a nossa visita à cozinha.
— O demônio apareceu na fazenda dos Hursts —
informei-o. — Mr. Hurst manda pedir ajuda.
— Venha até à sala de visitas, minha jovem. Falaremos lá — disse,
virando-se para indicar o caminho.
Alice sorriu-me mas não sem antes olhar na direção de Meg, que estava
de costas para nós a aquecer as mãos por cima da lareira.
— Sente-se — ordenou o meu mestre a Alice, fechando a porta da sala
de visitas. — Agora conte-me tudo.
Comece pelo princípio e leve o tempo que precisar.
— Não há muito que contar — esclareceu Alice.
— Tom falou-me o suficiente sobre demônios para ter a certeza de que é
um arremessador de pedras. Há dias que está a lançar pedras sobre a
fazenda — não é seguro sair.
Arrisquei a minha vida só para o vir aqui buscar. O pátio está cheio de
pedras grandes. Quase não resta uma vidraça e derrubou três tubos da
chaminé. Só por um triz ninguém ficou ferido.
— Morgan não tentou fazer nada? — indagou o Mago. — Ensinei-lhe o
suficiente do básico sobre demônios.
— Não o vejo há dias. Também não faz falta nenhuma!
— Parece que é aquilo de que temos estado à espera — referi.
— Sim, também acho. É melhor preparar o chá de ervas. Faça-o tão
forte quanto da última vez.
Levantei-me e abri o armário ao lado da lareira, retirando a garrafa
grande de vidro castanho. Quando me virei, vi a censura no rosto de
Alice. O Mago também a viu. — Sem dúvida, como de costume, o rapaz
pôs-te a par dos meus assuntos privados. Sabe, por conseguinte, o que
ele vai fazer e por que é necessário. Tire-me então essa cara!
Alice não respondeu mas seguiu-me até à cozinha e viu-me preparar o
chá de ervas enquanto o Mago ia ao gabinete de trabalho buscar o seu
diário para o atualizar.
Quando terminei, Meg dormitava na sua cadeira, de modo que tive de
acordá-la com jeitinho abanando-lhe o ombro.
— Tome, Meg — disse-lhe quando abriu os olhos.
— Aqui tem o seu chá de ervas. Beba-o com cuidado para não queimar a
boca. .
Aceitou a xícara mas depois olhou para ela pensativamente.
— Já não tomei hoje o meu chá, Bily?
— Precisa de outra xícara, Meg, porque o tempo está esfriando a cada
dia.
— Oh! Quem é a sua amiga, Billy? É uma garota muito bonita! Que
lindos olhos castanhos!
Alice sorriu quando ela me chamou «Billy» e apresentou-se.
— Sou Alice e costumava viver em Chipenden.
Agora estou morando numa fazenda aqui perto.
— Bom, venha visitar-nos sempre que quiser —
convidou Meg. — Não há muita companhia feminina ultimamente. Teria
muito bom te ver.
— Beba o seu chá, Meg — interrompi. — Beba-o enquanto está quente.
Faz-lhe melhor assim.
Meg começou então a beber a poção e não demorou muito a terminar
tudo e a voltar a cabecear.
— É melhor levá-la pelas escadas para o frio e a umidade! — disse Alice,
uma pontinha de azedume na sua voz.
Não tive oportunidade de responder porque o Ma-go saiu do gabinete de
trabalho e levantou Meg da cadeira.
Peguei numa vela e abri o portão enquanto ele a transpor-tava para a
cela na cave. Alice ficou na cozinha. Cinco minutos após o nosso
regresso, estávamos os três na estrada. Moor View Farm ficara muito
maltratada. Tal como Alice descrevera, o pátio estava cheio de pedras e
quase todas as vidraças tinham sido partidas. A janela da cozinha era a
única ainda intacta. A porta da frente encontrava-se trancada mas o
Mago usou a sua chave e abriu-a em segundos. Procuramos os Hursts e
fomos dar com eles encolhidos na cave; do demônio nem sinal.
O Mago não perdeu tempo.
— Terão de sair imediatamente daqui — disse ao velho agricultor e à
mulher. — Temo que não haja outra solução. Levem apenas o essencial
e ponham-se a caminho. Deixem-me fazer o necessário.
— Mas para onde iremos? — perguntou Mrs.
Hurst, à beira das lágrimas.
— Se ficarem, não posso responder pelas suas vidas — avisou-os o Mago
sem rodeios. — Têm parentes em Adlington. Terão de os receber.
— Quanto tempo antes de podermos voltar? —
perguntou Mr. Hurst. Estava preocupado com os seus meios de
subsistência.
— Três dias no máximo — respondeu o Mago. —
Mas não se preocupe com a fazenda. O meu rapaz se encarregará do
que for necessário.
Enquanto se preparavam, o meu mestre ordenou-me que fizesse o
máximo possível de tarefas da fazenda. Reinava o silêncio: não caíam
pedras e parecia que o demônio repousava. Então, tirando o melhor
partido da situação, comecei por ordenhar as vacas; estava já escuro
quando terminei. Quando me dirigi à cozinha, o Mago estava sentado à
mesa, sozinho.
— Onde está Alice? — perguntei.
— Partiu com os Hursts, para onde mais poderia ter ido? Não pode haver
uma garota a envolver-se no nosso caminho quando temos de tratar de
um demônio.
Estava realmente cansado, por isso nem me dei ao trabalho de
argumentar. Esperara em parte que Alice fosse autorizada a ficar.
— Sente-se e tire essa expressão carrancuda, rapaz.
É capaz de azedar o leite. Precisamos estar a postos.
— Onde está o demônio neste momento? — inquiri. O Mago encolheu os
ombros.
— A descansar debaixo de uma árvore ou de um pedregulho, presumo.
Agora que escureceu, não tardará muito a aparecer. Os demônios podem
estar ativos de dia e, como descobrimos à nossa custa na extensão
rochosa, defender-se-ão se provocados. Mas a noite é a altura preferida
deles e quando estão também mais fortes.
— Se for o mesmo demônio que encontramos em Stone Farm, então a
situação pode complicar-se. Por um lado, se lembrará de nós assim que
se aproximar e vai querer vingar-se do que lhe fizemos. Não se
contentará em partir vidros e derrubar alguns tubos de chaminé. Irá
tentar arrasar esta casa de fazenda conosco lá dentro. Por isso vai ser
uma luta até ao fim. De qualquer forma, rapaz, anime-se — disse-me,
ao ver a preocupação estampada no meu rosto. — É uma casa velha e
bem construída com pedra do Condado sobre alicerces muito fortes. A
maior parte dos demônios é mais estúpida do que parece, por isso ainda
não estamos mortos. Precisamos é de enfraquecê-lo mais. Vou oferecer-
me como alvo. Quando lhe tiver esgotado a força, você armado com sal
e ferro, por isso enche os seus bolsos, rapaz, e fique a postos!
Eu próprio usara o truque do sal e do ferro quando enfrentara a bruxa
velha, Mãe Malkin. As duas substâncias combinadas eram muito eficazes
contra o escuro. O sal queimaria o demônio; o ferro sugaria a força.
Segui então as instruções do meu mestre, enchendo os bolsos de sal e
ferro tirado das bolsas que ele guardava dentro do seu saco.
* * *
Precisamente antes da meia-noite o demônio atacou. Há horas que se
preparava uma grande tempestade e os primeiros rumores longínquos
tinham dado lugar a fortes trovões e relâmpagos lá no alto e extensos
raios.
Encontrávamo-nos ambos na cozinha, sentados à mesa, quando
aconteceu.
— Aí vem ele — murmurou o Mago, a sua voz tão baixa que mais parecia
falar consigo mesmo do que comigo. Tinha razão: alguns segundos
depois o demônio desceu bombástica e ruidosamente a extensão
rochosa e precipitou-se sobre a casa da fazenda. Parecia que um rio
transbordara e uma inundação se precipitava para nós.
A janela da cozinha estilhaçou-se, espalhando fragmentos de vidro por
todo o lado, e a porta de trás curvou para dentro como se um enorme
peso estivesse encostado a ela. Depois toda a casa abanou como uma
árvore numa tempestade, inclinando-se primeiro numa direção, depois
na outra. Sei que parece impossível, mas juro que foi o que aconteceu.
A seguir ouviu-se um barulho de arrancar e rebentar lá em cima e as
telhas começaram a voar do telhado e a partir-se no pátio da fazenda.
Depois, durante alguns segundos ficou tudo muito sossegado, como se o
demônio estivesse a repousar ou a pensar no que fazer em seguida.
— Está na hora de acabar com isto, rapaz — anunciou o Mago. — Você
fica aqui e vigia pela janela. Tenho certeza de que isto vai se complicar.
Julguei que estivesse já tudo bastante complicado, mas não comentei.
— Custe o que custar, aconteça o que acontecer —
prosseguiu o meu mestre —, não vá lá para fora. Use apenas o sal e o
ferro quando o demônio entrar na cozinha.
Se o aplicar lá fora com este tempo, não terá o impacto pleno. Por isso
prepare-se.
O Mago destrancou a porta e, levando o seu bordão, saiu para o pátio da
fazenda. Era o homem mais corajoso que eu já conhecera. Não teria me
agradado nada enfrentar aquele demônio sem claridade.
Estava escuro como breu, e na cozinha todas as velas tinham se
apagado. Ser mergulhado na mais completa escuridão era a última coisa
que eu queria, mas felizmente ainda tínhamos uma lanterna. Trouxe-a
para junto da janela mas não iluminava muito o pátio. O Mago
encontrava-se a alguma distância por isso não conseguia ver tudo o que
acontecia e estava dependente dos relâmpagos.
Ouvi o Mago bater três vezes com o bordão nas lajes; depois, soltando
um uivo, o demônio foi direito a ele, atravessando o pátio da fazenda da
esquerda para a direita.
A seguir houve um grito de dor e um som semelhante a um ramo a
partir-se. Quando se deu novo relâmpago, vi o Mago de joelhos, as mãos
estendidas à sua frente, tentando proteger a cabeça. O seu bordão
estava nas lajes a alguma distância dele, partido em três bocados.
No escuro, ouvi pedras atingirem as lajes perto do Mago e mais telhas a
cair do telhado por cima dele. Gritou de dor talvez umas duas ou três
vezes e, apesar de ter me mandado vigiar da janela e esperar que o
demônio entras-se, perguntei-me se deveria ir tentar ajudar. O meu
mestre estava a passar um mau bocado e tudo indicava que não se
ficaria por ali.
Olhei para a escuridão, tentando ver o que acontecia, esperando que os
relâmpagos voltassem a iluminar o pátio. Não conseguia sequer ver o
Mago. Mas depois a porta de trás começou a abrir-se muito lentamente,
chiando. Apavorado, afastei-me dela, recuando até ficar contra a parede.
Viria o demônio agora atrás de mim? Pousei a lanterna em cima da mesa
e preparei-me para levar as mãos aos bolsos a fim de tirar o sal e o
ferro. Um vulto escuro transpôs lentamente a soleira entrando na
cozinha e fiquei estarrecido, petrificado, mas depois aspirei
ruidosamente ao ver o Mago de quatro. Viera rastejando em direção à
porta na sombra da parede. Por isso eu não o conseguira ver.
Avancei rapidamente, fechei a porta com força, depois o ajudei a
aproximar-se da mesa. Foi uma luta porque todo o corpo dele parecia
tremer e não lhe restava muita força nas pernas. Estava um caco. O
demônio machucara-o seriamente: havia sangue em todo o seu rosto e
um galo do tamanho de um ovo na testa. Apoiou ambas as mãos na
beira da mesa, esforçando-se por se aguentar de pé. Quando abriu a
boca para falar, reparei que lhe faltava um dos dentes da frente. Não era
nada bonito de se ver.
— Não se preocupe, rapaz — gemeu. — Pusemos ele em movimento.
Não lhe resta muita força e chegou a hora de acabar com ele de vez.
Prepare-se para usar o sal e o ferro, mas aconteça o que acontecer, não
falhe!
Com «pôr em movimento» o Mago queria dizer que se oferecera como
alvo e o demônio gastara muita energia a tentar destruí-lo e encontrava-
se agora bastante mais enfraquecido. Mas quão mais enfraquecido?
Ainda podia ser assaz perigoso.
Naquele preciso instante, a porta voltou a escancarar-se e desta vez o
demônio entrou mesmo. O relâmpago iluminou-o e vi a cabeça redonda
e os seis braços cobertos de lama. Mas havia uma diferença: parecia
agora muito mais pequeno. Perdera uma parte da sua força e o Mago
não sofrerá em vão. Com o coração em sobressalto e os joelhos a
tremer, avancei para enfrentar o demônio. Depois, fui aos bolsos, retirei
duas mãos cheias e arremessei-as ao demônio. Sal da minha mão
direita; ferro da esquerda. Apesar do que lhe custara, o Mago fizera tudo
certinho. Primeiro queimara a árvore do demônio, retirando-lhe a
reserva de energia. Depois oferecera-se como alvo lá fora, sugando
ainda mais força ao demônio. Mas eu tinha de terminar o trabalho ali
dentro. E não podia permitir-me falhar.
Havia apenas a corrente de ar da janela com a porta aberta, e a minha
pontaria foi certeira. A nuvem de sal e ferro atingiu o demônio em cheio.
Houve um grito, tão forte e estridente que me fez ranger os dentes e
quase rebentou os tímpanos. O sal queimava a criatura, o ferro retirava-
lhe a restante energia. No momento seguinte o demônio desaparecera.
Fora-se. Para sempre. Eu acabara com ele de vez!
Mas o meu alívio foi de pouca duração. Vi o Mago cambalear e percebi
que ia cair. Tentei alcançá-lo, realmente tentei. Mas foi tarde demais. Os
seus joelhos cederam, perdeu o apoio da mesa e caiu para trás, batendo
com toda a força com a cabeça nas lajes da cozinha. Esforcei-me por
levantá-lo mas era um peso morto e, reparei, para meu desalento, que
sangrava bastante do nariz.
Entrei em pânico. A princípio, não o ouvia respirar.
Depois, senti finalmente o sopro sair-lhe muito tênue da garganta. O
Mago estava gravemente ferido e precisava com urgência de um médico.
CAPÍTULO 9
AVISOS DE MORTE
Corri todo o caminho colina abaixo até à aldeia sob chuva torrencial, a
trovoada a rebentar lá em cima e os raios vivos a bifurcar o céu.
Não tinha a mínima idéia de onde o médico morava e, em desespero,
bati à primeira porta que encontrei. Não obtive resposta de modo que
dei socos com força na seguinte. Como também não me respondessem,
lembrei-me que o irmão do Mago, Andrew, tinha uma loja em algum
lugar na aldeia. Continuei então a descer, correndo em direção ao
centro, escorregando no empedrado e atravessando os riachos de água
da chuva que vinham em cascata pela colina abaixo.
Demorei muito a encontrar a casa de Andrew. Era menor do que a que
ele alugara em Priestown, mas estava bem localizada, em Babylon Lane,
mesmo à esquina do que parecia ser a principal fila de lojas da aldeia.
Um relâmpago iluminou a tabuleta por cima da vitrine: ANDREW
GREGORY MESTRE SERRALHEIRO
Bati ruidosamente com os nós dos dedos na porta da loja e, como não
obtivesse qualquer resposta, agarrei na maçaneta e sacudi-a
violentamente, ainda sem qualquer resultado. Perguntei-me se Andrew
estaria a fazer algum trabalho fora dali. Talvez passasse a noite noutra
aldeia.
Depois ouvi levantar a janela de guilhotina de um quarto por cima da
loja e uma voz masculina irada gritar na noite.
— Vá embora daqui! Imediatamente! O que pretende com tanta
barulheira a esta hora da noite em que gente decente precisa de dormir?
— Procuro um médico! — gritei na direção da janela retangular escura.
— É urgente. Um homem pode estar morrendo!
— Bem, está perdendo o seu tempo aqui! Isso é uma loja de serralheiro!
— Trabalho para o irmão de Andrew Gregory. Ele vive na casa lá em
cima na ravina à beira da charneca. Sou aprendiz dele!
Houve um novo relâmpago e vislumbrei o rosto lá em cima, e vi o medo
estampado nele. Provavelmente a aldeia inteira sabia que o irmão de
Andrew era mago.
— Vive um médico em Bolton Road, a cerca de cem metros para sul!
— Onde fica Bolton Road? — demandei.
— Desça a colina até a encruzilhada e vire à esquerda. Estará em Bolton
Road. Depois segue sempre em frente. É a última casa da fila!
Então, a janela foi fechada com força, mas já não importava: tinha a
informação necessária. Desci então a colina correndo, virei à esquerda,
continuei a correr, respirando a custo e em breve batia à porta da última
casa da fila.
Os médicos estão acostumados a ser acordados no meio da noite para
emergências, por isso este não demorou muito a vir abrir a porta. Era
um homem baixo com um bigode fino preto e cabelo a embranquecer
nas têmporas. Segurava uma vela e anuiu enquanto eu falava,
parecendo muito calmo e entendido. Contei-lhe que o homem ferido
estava em Moor View Farm, mas quando lhe expliquei quem precisava
de ajuda e porquê, os seus modos mudaram e a vela começou a tremer-
lhe na mão.
— Volta para lá que seguirei o mais depressa possível — respondeu,
fechando-me a porta na cara.
Tornei a subir na direção da charneca mas ia preocupado. O médico
ficara manifestamente assustado por ter de tratar um mago. Iria cumprir
o que prometera? Iria realmente seguir-me até à fazenda? Se não o
fizesse, o Mago podia morrer. Tanto quanto sabia, ele até já podia estar
morto e, com o coração apertado, arrastei-me colina acima o mais
depressa possível. Entretanto, o pior da tempestade afastara-se já e só
se ouviam os ruídos distantes da trovoada por cima da charneca e um ou
outro relâmpago forte.
Não precisava de ter me preocupado com o médico. Fora fiel à sua
palavra e chegara à fazenda apenas quinze minutos ou mais depois de
mim.
Mas não se demorou muito. Quando examinou o Mago, as suas mãos
tremiam tanto que nem precisei da expressão de olhos arregalados no
rosto dele para perceber que estava apavorado. Ninguém gosta de ficar
próximo de um mago. Contara-lhe também o sucedido no pá-
tio e na cozinha, o que só viera piorar a situação. Olhava
constantemente à sua volta como se esperasse ver o demônio
aproximar-se sorrateiramente de si. Até teria achado piada se não me
sentisse tão triste e preocupado.
Ajudou-me, porém, a levar o Mago lá para cima e a metê-lo na cama.
Depois encostou o ouvido ao peito do Mago e escutou com atenção.
Quando se levantou, abanava a cabeça.
— A pneumonia está a atacar-lhe os pulmões —
disse por fim.
— Não há nada que eu possa fazer.
— Ele é forte! — protestei. — Há de melhorar.
Virou-se para mim com uma expressão no rosto que já vira antes
noutros médicos. Era um ar profissional, um misto de compaixão e
calma, uma máscara adotada quando têm de dar más notícias aos
familiares dos gravemente doentes.
— Temo que o prognóstico seja muito mau, rapaz
— disse, batendo-me delicadamente no ombro. — O seu mestre está
morrendo, é improvável que sobreviva a esta noite. Mas a morte acaba
por chegar a todos nós, por isso só temos de aceitá-la. Está aqui
sozinho?
Anuí.
— Ficará bem?
Tornei a anuir.
— Bem, vou mandar alguém aqui em cima pela manhã — anunciou,
pegando na maleta e preparando-se para sair. — Ele vai precisar ser
lavado — acrescentou sinistramente.
Sabia o que ele queria dizer com aquilo. Era tradição do Condado lavar
os mortos antes do enterro. Sempre me parecera uma idéia tola. Qual a
necessidade de lavar alguém que iria acabar dentro de um caixão na
terra? Fiquei furioso e estive quase para lhe dizer, mas consegui
controlar-me e vim sentar-me ao lado da cama, ouvindo o esforço do
Mago para respirar.
Ele não podia estar morrendo! Recusava-me a acreditar. Como podia
morrer depois de tudo aquilo por que passara? Não estava simplesmente
preparado para o aceitar. O médico só podia ter-se enganado, não? Mas,
por muito que me esforçasse por me convencer de que o médico estava
errado, comecei a desesperar. Sabem, lembrei-me daquilo que a Mãe
dissera sobre os avisos de morte. Lembrei-me do cheiro no quarto do
Pai, aquele fedor a flores, e que a Mãe afirmara ser um sinal da
aproximação da morte. Eu possuía o dom dela e sentia naquele
momento o cheiro porque vinha do Mago e ficava mais forte a cada
minuto.
Mas quando o dia chegou, o meu mestre continuava vivo e a mulher
enviada pelo médico para lhe lavar o corpo não conseguiu disfarçar a
decepção no rosto.
— Não posso ficar para além do meio-dia. Tenho outro para lavar esta
tarde! — anunciou bruscamente, mas depois mandou-me ir buscar um
lençol lavado e rasgá-lo em sete tiras e trazer-lhe uma tigela com água
fria.
Depois de fazer o que ela me pedira, pegou numa tira do lençol e
dobrou-a até não ficar maior do que a palma da mão e mergulhou-a na
água. Depois usou-a para molhar a testa e o queixo do Mago. Era difícil
dizer se o fizera para ele se sentir melhor ou para poupar algum tempo
quando lavasse o corpo mais tarde.
Feito isso, sentou-se ao lado da cama e começou a tricotar o que
pareciam ser roupas de bebê. Falou bastante também, contando-me a
história da sua vida e gabando-se das suas duas atividades. Para além
de lavar os mortos e prepará-los para o enterro, era também a parteira
local.
Apanhara uma forte constipação e tossia constantemente para cima do
Mago, assoando o nariz vermelho a um lenço grande pintalgado.
Pouco antes do meio-dia começou a guardar tudo, preparando-se para
partir.
— Voltarei pela manhã para amortalhá-lo — referiu. — Não sobreviverá a
uma segunda noite.
— Não existe qualquer esperança? — inquiri, consciente de que o Mago
não abrira os olhos desde que batera com a cabeça.
— Escute a respiração dele — disse-me.
Escutei com atenção. A sua respiração tinha um som áspero, com um
ligeiro ruído. Parecia que tinha a traquéia comprimida.
— É o estertor da morte — disse-me. — O seu tempo neste mundo está
chegando ao fim.
Naquele momento, ouviu-se uma pancada na porta da frente e fui ver
quem era. Quando abri a porta, Alice encontrava-se perto do degrau, o
casaco de lã abotoado até ao pescoço e o capuz puxado para a frente.
— Alice! — exclamei, bastante satisfeito por vê-la.
— O Mago machucou-se ao tratar do demônio. Bateu com a parte de
trás da cabeça e o médico acha que ele vai morrer!
— Deixe-me vê-lo — afirmou Alice, afastando-me.
— Talvez não seja tão mau quanto parece. Os médicos podem enganar-
se. Ele está lá em cima?
Anuí e segui Alice até ao quarto da frente. Aproximou-se logo do Mago e
pôs a mão na testa dele. A seguir levantou-lhe a pálpebra esquerda com
o polegar e observou o olho com muita atenção.
— Ainda há esperança — referiu Alice. — Acho que vou poder ajudar. .
A mulher pegou no saco e preparou-se para sair, a indignação a vincar-
lhe a testa.
— Bem, já percebi tudo! — exclamou, olhando pa-ra os sapatos bicudos
de Alice. — Uma bruxinha veio em auxílio de um mago!
Alice levantou a cabeça, os seus olhos chispando de raiva, escancarou a
boca e mostrou os dentes. Depois bufou à mulher, que recuou
rapidamente dois passos da cama.
— Não conte que ele te agradeça! — disse a Alice, em tom de aviso,
recuando até à porta do quarto antes de descer as escadas a correr.
— Não tenho grande coisa comigo — afirmou Alice depois de a mulher
ter ido embora. Desabotoou o casaco e retirou uma pequena bolsa de
couro do bolso interior. Estava presa com um cordel, abriu-a e deitou
algumas folhas secas na palma da mão. — Para já, vou preparar-lhe
uma poção rápida — disse.
Enquanto ela ia à cozinha, sentei-me à cabeceira do Mago, fazendo o
que podia para o ajudar. Todo o seu corpo ardia em febre e continuei a
molhar-lhe a testa com o pano espremido e a tentar fazer baixar a febre.
Descia-lhe um fio constante de sangue e muco do nariz e continuava a
escorrer-lhe para o bigode, pelo que tinha de o estar sempre a limpar. O
tempo todo o peito dele chiava e o cheiro a flores era mais forte do que
nunca, de modo que comecei a achar que, apesar das palavras de Alice,
a enfermeira estava certa e não faltaria muito para ele se finar. Dali a
pouco Alice voltou a subir as escadas trazendo uma xícara meio cheia de
um líquido amarelo-claro, e levantei a cabeça do Mago enquanto ela lhe
deitava um pouco na boca. Desejei que a Mãe estivesse ali mas sabia
que Alice também não lhe ficava atrás: conforme me dissera a Mãe uma
vez, ela era entendida em poções.
O Mago engasgou-se e cuspiu um pouco mas conseguimos que ele
bebesse quase tudo.
— É realmente uma péssima altura do ano mas talvez consiga arranjar
algo melhor — anunciou Alice. —
Vale a pena ir lá fora procurar. Não que ele o mereça, da forma como
me tratou!
Agradeci a Alice e acompanhei-a à porta da frente.
Deixara de chover mas havia uma frieza no ar úmido. As árvores
estavam despidas e parecia tudo desolado. — É
Inverno, Alice. O que pode encontrar se não cresce quase nada?
— Mesmo no Inverno, há raízes e cascas que se podem usar — replicou
Alice, abotoando o casaco por causa do frio. — É preciso saber onde
procurar. Regres-sarei o mais depressa que puder. .
Voltei para o quarto a fim de fazer companhia ao Mago, triste e perdido.
Sei que parece egoísmo mas não podia deixar de começar a preocupar-
me comigo. Era impossível concluir o aprendizado sem o Mago. Teria de
ir para norte de Caster, onde Arkwright exercia o seu ofício e pedir-lhe
que me aceitasse. Como ele fora em tempos aprendiz do Mago e vivera
em Chipenden tal como eu, talvez o fizesse, mas não era garantido.
Podia ter já um aprendiz. Depois daquele pensamento, senti-me pior.
Verdadeiramente culpado. Porque só estivera a pensar em mim, não no
meu mestre.
Então, passado mais ou menos uma hora, o Mago abriu de repente os
olhos. Estavam esgazeados e brilhantes da febre e, para começar, não
creio que tivesse me re-conhecido. No entanto, ainda se lembrava de
como dar ordens e começou a gritá-las a plenos pulmões como se
pensasse que eu era surdo ou assim.
— Ajude-me a levantar! Levante-me já! Rápido!
Rápido! Vamos! — gritou, enquanto eu o tentava ajudar a ficar sentado e
empilhava as almofadas por detrás das suas costas. Começou a gemer
forte, e os seus olhos deram a volta nas órbitas até só serem visíveis as
córneas.
— Traga-me uma bebida! — berrou. — Preciso de uma bebida!
Havia um jarro de água fria na mesa-de-cabeceira, enchi meia xícara e
aproximei-lha delicadamente dos lábios. — Beba devagarinho —
aconselhei, mas o Mago engoliu uma grande golada e cuspiu-a para cima
das cobertas. — Mas que porcaria é esta? Não mereço melhor?
— bradou, as suas pupilas voltando a aparecer e fixando-se em mim,
esgazeadas e iradas. — Traga-me vinho! E
que seja tinto. É do que preciso!
Não achei que fosse nada boa idéia, visto estar tão doente, mas ele
tornou a insistir. Queria vinho e tinha de ser tinto.
— Lamento, mas não há vinho — expliquei, mantendo a voz calma para
não o deixar ainda mais agitado.
— Claro que não há vinho aqui! Isto é um quarto!
— gritou. — Lá em baixo na cozinha, é onde o poderá arranjar. Se não,
experimente a cave. Vá procurar. E rapidinho. Não me faça esperar.
Havia cerca de meia dúzia de garrafas de vinho na cozinha e eram todas
de tinto. O problema era que nem sinal de um saca-rolhas — também
não me esforcei por procurá-lo. Levei então a garrafa para o quarto,
pensando que o assunto morreria ali.
Mas enganei-me: mal me aproximei da cama, o meu mestre tirou-me a
garrafa das mãos, meteu-a na boca e puxou a rolha com os dentes que
lhe restavam. Por um momento, pensei que a tivesse engolido, mas de
repente cuspiu-a com tamanha força que a rolha fez ricochete na parede
oposta.
Depois começou a beber e, enquanto bebia, falou.
Nunca antes vira o Mago beber álcool, mas agora parecia não conseguir
enfiá-lo pela garganta abaixo com rapidez suficiente. Foi ficando cada
vez mais excitado, a conversa redundando em tagarelice contínua. Não
fazia grande sentido porque ele delirava da febre e da bebida. Uma
grande parte era também em latim, a língua que eu me esforçava ainda
por aprender. A dada altura começou a fazer sucessivamente o sinal da
cruz com a mão direita, à semelhança dos padres.
Lá na nossa fazenda, o vinho era algo que raramente bebíamos. A Mãe
prepara o seu próprio vinho de baga de sabugueiro e é realmente muito
bom. Só o vai buscar em ocasiões especiais, porém: quando eu vivia lá
em casa, já era uma sorte darem-me meio copo de vinho duas vezes por
ano. O Mago emborcou a garrafa inteira em menos de quinze minutos e
depois ficou mal disposto
— tão mal disposto que por pouco não morria engasgado ali mesmo.
Claro que tive de limpar a porcaria recorrendo às tiras do lençol.
Alice regressou pouco depois e preparou outra poção com as raízes que
encontrara. Trabalhamos juntos e conseguimos enfiá-la pela goela do
Mago, e instantes depois voltara a adormecer.
Feito isso, Alice farejou o ar e franziu o nariz.
Mesmo depois de eu ter mudado a roupa de cama o quarto estava ainda
empestado, mas pelo menos já não sentia o cheiro de flores. Pelo menos
foi o que me pareceu então. Não me dera conta de que o Mago estava a
melhorar.
Afinal de contas, o médico e a enfermeira tinham-se enganado: horas
depois a febre baixara e o meu mestre tossia mucosidades espessas dos
pulmões, enchendo lenços com a mesma rapidez com que eu conseguia
encontrá-los, de modo que acabei por rasgar outro lençol em tiras. Ele
estava no caminho lento para a recuperação. E, mais uma vez, o mérito
fora todo de Alice.
CAPÍTULO 10
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Os Hursts regressaram no dia seguinte mas pareciam perdidos e
desnorteados, como se não soubessem por onde começar a livrar-se
daquela confusão. O Mago passava a maior parte do tempo a dormir
mas não podíamos deixá-lo ficar num quarto com o vento entrando a
uivar pelos vidros partidos, de modo que fui buscar algum dinheiro no
saco dele e entreguei-o a Mr. Hurst para pagar algumas das reparações.
Foram contratados trabalhadores da aldeia: um vidraceiro colocou um
novo vidro nas janelas do quarto e da cozinha enquanto Shanks tapava
temporariamente as restantes com tábuas para manter afastados os
elementos.
Eu próprio tive um dia atarefado, a acender as lareiras nos quartos e
uma lá em baixo na cozinha, ajudando também nas tarefas da fazenda,
especialmente a ordenha. Mr.
Hurst efetuou algum trabalho mas faltava-lhe energia. Parecia já não
gostar da vida e ter perdido toda a vontade de viver. — Valha-me Deus!
Valha-me Deus! — murmurava constantemente de si para si, sem
ânimo. E mais uma vez ouvi-o dizer nitidamente, ao olhar para o telhado
do celeiro, o seu rosto cheio de angústia: — Que mal fiz eu?
Que mal fiz eu para merecer isto?
Naquela noite, pouco depois de termos terminado a ceia, ouvimos três
pancadas fortes na porta da frente e o pobre Mr. Hurst pôs-se em pé tão
repentinamente que quase caiu para trás por cima da cadeira.
— Eu vou abrir — disse Mrs. Hurst, apoiando delicadamente a mão no
braço do marido. — Você fica aqui, querido, e vê se mantém a calma.
Não volte a atormentar-se.
Pela reação deles calculei que fosse Morgan à porta.
E houve algo na maneira como as três pancadas tinham sido dadas que
me enregelou até aos ossos. As minhas suspeitas confirmaram-se
quando Alice olhou para mim, descaiu os cantos da boca e articulou
silenciosamente a palavra «Morgan».
Morgan avançou pomposamente pela sala à frente da mãe. Trazia um
bordão e um saco. Com a capa e o capuz, parecia mesmo um mago.
— Bem, isto está acolhedor. E temos aqui o jovem aprendiz — disse,
virando-se para mim. — Voltamos a encontrar-nos, Mancebo Ward.
Respondi baixando-lhe a cabeça.
— Mas afinal o que se passa aqui, Velho? — Morgan atormentou Mr.
Hurst. — Aquele pátio está uma lástima. Onde está o seu orgulho? Vai
deixar este lugar cair aos bocados.
— A culpa não é dele. Mas você é estúpido ou quê?
— ripostou Alice, a sua voz carregada de hostilidade. —
Qualquer tolo percebe que foi obra de um demônio!
Morgan carregou o cenho e fuzilou-a com o olhar, levantando um pouco
o bordão, mas Alice retribuiu o olhar dele com um sorriso escarninho.
— Com que então o Mago enviou o seu aprendiz para tratar dele, hein?
— referiu Morgan, virando-se para a mãe. — Bom, aí tem o pagamento,
não é, Velha? Recebe aqui a bruxinha dele e nem sequer se dá ao
trabalho de vir ajudar a aprisionar o seu demônio. Sempre me saiu um
patife sem coração.
Pus-me em pé num ápice.
— Mr. Gregory veio, sim senhor. Está lá em cima porque ficou muito
maltratado ao enfrentar o demônio.
Percebi imediatamente de que falara demais. De repente, senti temor
pelo meu mestre. Morgan ameaçara-o no passado e agora o Mago
estava fraco e indefeso.
— Oh, afinal tem língua — disse ele, escarnecendo de mim. — Se quer
saber a minha opinião, o seu mestre já deu o que tinha a dar.
Machucou-se ao aprisionar um demônio? Santo Deus, esse é o truque
mais fácil do livro!
Mas a idade não perdoa. Manifestamente, o velho tolo já não tem
préstimo. É melhor eu ir lá acima dar-lhe uma palavrinha.
Dito aquilo, Morgan atravessou a cozinha e começou a subir as escadas
para os quartos. Inclinei-me e murmurei a Alice que se deixasse ficar
onde estava. Depois saí da cozinha e dirigi-me para as escadas. A
princípio, cuidei que Mrs. Hurst me fosse pedir para ficar, mas ela
limitou-se a permanecer sentada e cobriu o rosto com as mãos.
Comecei a subir sorrateiramente as escadas, mas alguns degraus
chiaram de modo que subi apenas três antes de parar para escutar as
gargalhadas roufenhas vindas lá de cima, seguidas do som da tosse do
Mago. Depois as escadas chiaram atrás de mim, virei-me e vi Alice com
o dedo encostado aos lábios a impor silêncio.
Seguidamente, chegou-me a voz do Mago do quarto lá em cima.
— Continua a escavar naquela velha elevação tumular? — ouvi-o
perguntar. — Ainda um dia será a sua morte. Devia ter mais juízo.
Mantenha-se afastado enquanto ainda te resta fôlego no corpo.
— Bem que você me podia facilitar — replicou Morgan. — É só devolver-
me o que é meu. Não peço mais nada.
— Se eu te desse, causaria estragos incalculáveis.
Isso se sobrevivesse. Por que tem de ser assim? Pare de se meter com o
escuro e veja se toma juízo, rapaz! Lembre-se das promessas que fez à
sua mãe. Ainda não é tarde demais para tomar outro rumo na vida.
— Escusa de fingir que se preocupa comigo —
respondeu Morgan. — E não se atreva a falar da minha mãe. Nunca quis
saber de nenhum de nós, essa é que é a verdade. Nada senão aquela
bruxa. Assim que lhe apareceu Meg Skelton, a minha pobre mãe não
teve qualquer chance. E onde é que isso o levou? E onde é que isso a
levou a não ser condená-la a uma vida de infortúnio?
— Não, rapaz. Eu gostava de você e gostava da sua mãe. Amei-a em
tempos, como muito bem sabe, e toda a minha vida fiz o possível para a
ajudar. E por amor a ela tentei ajudar-te, apesar de tudo o que fez!
O Mago recomeçou a tossir e ouvi Morgan soltar uma imprecação e
começar a encaminhar-se para a porta.
— Agora as coisas mudaram, Velho, e quero o que me é devido —
exigiu. — E se não me der, terei de usar outros meios.
Alice e eu viramo-nos em conjunto e descemos as escadas. Tínhamos
chegado precisamente à cozinha quando as botas dele rasparam no
primeiro degrau.
Mas, afinal, Morgan nem sequer olhou para nós. De semblante muito
carregado, ignorando a mãe e o pai dele, atravessou a cozinha em
grandes passadas e entrou no corredor. Escutamos todos em silêncio
quando ele correu um ferrolho e abriu a fechadura de uma porta no
corredor, ouvindo-se depois os seus passos ruidosos do outro lado da
divisão. Decorridos alguns momentos, ouvimo-lo voltar a sair e fechar e
trancar a porta. Um instante depois saiu de casa; a porta da frente bateu
com estrondo atrás de si.
À mesa, ninguém abriu a boca, mas não pude deixar de olhar para Mrs.
Hurst. Pelos vistos o Mago amara-a também. Bom, envolvera-se já com
três mulheres! E era por essa razão que Morgan parecia guardar
ressentimentos contra ele.
— Vamos te levar para a cama, querido — dirigiu-se Mrs. Hurst ao
marido, a sua voz suave e afetuosa.
— Está precisando é de uma boa noite de sono. Se sentirá muito melhor
de manhã.
Então, os dois levantaram-se da mesa, o pobre Mr.
Hurst arrastando os pés em direção à porta, cabisbaixo.
Senti realmente pena de ambos. Ninguém merecia um filho como
Morgan. A mulher dele estacou junto à ombreira e olhou para nós.
— Não se demorem a subir, vocês dois — disse, ao que anuímos ambos
cortesmente e depois ficamos a ouvi-los subir as escadas juntos.
— Bem — disse Alice —, agora estamos só nós dois. Por que não vamos
dar uma espiada ao quarto de Morgan? Quem sabe o que poderíamos
encontrar. .
— O quarto onde ele acabou de entrar?
Alice acenou com a cabeça.
— Às vezes ouvem-se lá estranhos ruídos. Gostaria de ver o que está lá
dentro.
Então, tirou a vela da palmatória e saiu da cozinha à minha frente,
atravessando a sala de estar e indo ter ao corredor.
Havia duas divisões que comunicavam com aquele corredor. De costas
para a porta da frente, ia-se ter à sala de estar; à esquerda havia outra
porta pintada de preto.
Tinha um ferrolho no exterior.
— É esta — murmurou Alice, tocando na porta com a ponta do seu
sapato bicudo e correndo o ferrolho.
— Se não estivesse trancada, já teria ido bisbilhotar lá dentro. Mas agora
não há problema. A sua chave não tardará a abri-la, Tom. — Apontou
para a fechadura.
A minha chave destrancou de fato a porta e abri-a.
Era uma divisão bastante grande, mais comprida do que larga, com uma
janela tapada com tábuas ao fundo, de onde pendiam uns pesados
cortinados pretos. O chão era lajeado, tal como o resto do rés-do-chão,
mas não havia tapetes nem carpetes. E viam-se apenas três peças de
mobília no quarto: uma mesa de madeira comprida com uma cadeira de
espaldar em cada extremidade.
Alice foi a primeira a entrar no quarto.
— Não há muito que ver, não é? — comentei. —
O que esperava encontrar?
— Não sei bem, mas julguei que houvesse algo mais — começou Alice.
— Às vezes ouço sinos tocar aqui dentro. Sobretudo sinos pequenos,
como aqueles que cabem na nossa mão. Mas uma vez ouvi um sino de
funeral que parecia bastante grande e tocava de uma torre de igreja.
Depois, ouve-se muitas vezes o som de água a escorrer e uma menina a
chorar. Calculo que seja a irmã dele que morreu.
— Ouve os sons quando ele está dentro do quarto?
— Principalmente, mas mesmo quando ele não está em casa, às vezes
ouço um cão a ladrar e a rosnar ou até a farejar mesmo junto à porta
como se tentasse libertar-se.
É por isso que os Hursts o mantêm sempre trancado.
Acho que têm medo que possa sair de lá alguma coisa desagradável.
— No entanto, não sinto nada aqui dentro — disse a Alice. Não havia a
sensação de frio que me avisa quando algo do escuro está próximo. — O
Mago diz que Morgan é um necromante que usa os mortos. Fala com
eles e obriga-os a submeter-se à sua vontade.
— Mas onde ele vai buscar o poder? Não usa magia dos ossos ou do
sangue como uma bruxa — comentou Alice —, e também não tem um
familiar. Eu conseguiria cheirá-lo com certeza se tivesse um. Portanto o
que é, Tom? Encolhi os ombros.
— Talvez seja Golgoth, ou um dos Deuses Antigos. Ouviu o que o Mago
acabou de dizer sobre Morgan andar a escavar naquela elevação tumular
e que isso havia de ser a sua morte? Bem, é um mausoléu chamada
Round Loaf e fica lá em cima da charneca. Talvez ele esteja tentando
invocar Golgoth como faziam os antigos. Talvez Golgoth queira ser
invocado e esteja a ajudá-lo de alguma maneira. Mas Morgan ainda não
é capaz de o fazer porque o Mago tem algo de que ele precisa. Algo que
tornaria tudo mais fácil.
Alice anuiu pensativamente. — Deve ser isso, Tom, mas algumas das
coisas que eles disseram foram também intrigantes. Não vejo o Velho
Gregory e Mrs. Hurst juntos. Custa-me a acreditar que sejam um casal.
Também me custava a acreditar. Muito mesmo. De qualquer forma, não
havia muito mais que ver, por isso saímos do quarto e fechamos e
trancamos a porta. Havia mistérios a resolver — segredos no passado do
Mago — e estava a ficar cada vez mais curioso.
Morgan não voltou a aparecer em Moor View Farm, mas decorreu outra
semana antes de podermos regressar a casa do Mago. Shanks foi
chamado, e efetuamos a viagem de volta com o Mago montado no
pequeno pônei e eu e Alice a pé atrás.
Shanks recusou-se a pôr os pés dentro de casa e voltou para Adlington,
deixando o Mago conosco. Entretanto, eu contara já ao meu mestre que
provavelmente as poções de Alice lhe tinham salvo a vida. Ele não disse
nada mas não se opôs quando o ajudamos ambos a subir até ao quarto.
Estava ainda muito debilitado e ia levar algum tempo a recuperar
plenamente. A viagem de regresso também o cansara. Mal se aguentava
nas pernas e ficou lá em cima uns dois dias.
Algo que me surpreendeu foi não mencionar sequer Meg de início.
Também não lhe recordei: não me agradava ter de descer as escadas
até à cave sozinho. Como ela passara todo o Verão a dormir lá em baixo,
mais alguns dias não teriam grande importância. Assim, tive de fazer a
maior parte das tarefas. Alice deu uma ajuda, mas não tanta quanta a
que eu teria gostado.
— Só porque sou uma garota isso não significa que tenha de ser só eu a
cozinhar! — resmungou quando lhe sugeri que o faria melhor do que eu.
— Mas eu não sei cozinhar, Alice — argumentei.
— Lá em casa era a Mãe que o fazia, o demônio do Mago encarregava-se
de tudo em Chipenden e aqui era Meg.
— Bem, vai ter oportunidade de aprender — redarguiu Alice com um
sorriso. — E quanto a Meg, aposto que não estaria disposta a cozinhar se
não fosse todo aquele chá de ervas!
Então, na manhã do terceiro dia, o Mago desceu penosamente as
escadas e sentou-se à mesa enquanto eu me esforçava por preparar o
desjejum. Cozinhar era uma tarefa bem mais dura do que se afigurava,
mas não tão dura quanto ficou o bacon.
Comemos em silêncio até que, passados alguns minutos, o Mago afastou
de si o prato.
— Ainda bem que estou sem apetite, rapaz — comentou, abanando a
cabeça. — Porque a fome me obriga-ria a comer tudo isso e não sei bem
se sobreviveria à experiência.
Alice desatou às gargalhadas, satisfeita por ver o meu mestre no bom
caminho para a recuperação. Quanto às tiras debacon, já comera
melhores, mas estava suficientemente faminto para devorar tudo e Alice
também. Comecei a animar porque parecia que o Mago sempre a ia
deixar ficar.
Na manhã seguinte, o Mago decidiu finalmente que chegara a altura de
ir acordar Meg. Ainda não tinha muita força nas pernas de modo que
desci as escadas com ele e ajudei-o a trazer Meg de volta para a cozinha
enquanto Alice aquecia água. O esforço revelou-se excessivo para ele, e
as suas mãos começaram a tremer tanto que teve de voltar para a
cama.
Ajudei Alice a preparar a banheira para Meg.
— Obrigada, Bily — disse Meg quando começamos a enchê-la de água
quente. — É um rapaz muito atencioso. E a sua linda amiga também é
muito útil. Como se chamas, querida?
— Chamam-me Alice. . — respondeu com um sorriso.
— Bem, Alice, tem família a viver aqui próximo? É
bom estar vivendo perto da família. Quem me dera ter.
Mas agora vivem tão longe.
— Eu agora não vejo a minha família. Não são boa companhia e estou
melhor sem elas — respondeu Alice.
— Não pode ser! — exclamou Meg. — Mas o que pode ter corrido mal,
querida?
— Eram bruxas — replicou Alice com um sorrisinho malvado de esguelha
na minha direção.
Fiquei muito irritado. Aquele tipo de conversa podia despertar a memória
de Meg. Alice estava a fazer de propósito.
— Em tempos conheci uma bruxa — comentou Meg, uma expressão
sonhadora nos olhos. — Mas foi há muitos anos...
— Acho que o seu banho já está pronto, Meg —
disse-lhe, agarrando o braço de Alice e afastando-a dali. —
Nós vamos para o gabinete de trabalho, para que ela possa ter alguma
privacidade.
Uma vez no gabinete de trabalho do Mago, insurgi-me contra Alice.
— Por que tinha de dizer-lhe aquilo? Podia começar a lembrar-se de que
ela própria era uma bruxa.
— Seria tão mau assim? — indagou Alice. — Não é justo, ser tratada
daquela maneira. Mais valia estar morta.
Já lhe fui apresentada, mas logo ela me esqueceu.
— Mais valia estar morta? Muito provavelmente acabaria num poço —
retorqui, furioso.
— Bem, por que não lhe dá simplesmente um pouco menos do chá de
ervas — para que ela possa ter uma vida melhor e não se esteja sempre
a esquecer de tudo? Com a dose certa, ela não se lembraria de tudo mas
seria muito melhor para ela. Deixe-me fazê-lo, Tom. Não é muito difícil.
Dar-lhe-ei um bocadinho a menos todos os dias até acertarmos.
— Não, Alice! Não se atreva! — adverti-a. — Se o Mago descobrisse te
mandaria de volta para os Hursts num abrir e fechar de olhos. De
qualquer forma, não vale a pena o risco. Algo pode correr mal.
Alice abanou a cabeça.
— Mas não está certo, Tom. Tem de se fazer algo mais cedo ou mais
tarde.
— Bem, então mais tarde do que cedo. Você não vai fazer nada com o
chá de ervas, não é? Prometa-me.
Alice sorriu.
— Prometo, mas acho que devia falar do assunto com o Velho Gregory.
Fará isso?
— Agora não é o momento certo, pois ainda está doente. Mas farei
quando achar que a ocasião é propícia.
Ele não vai atender, porém. Sucede assim há anos. Por que haveria de o
mudar agora?
— Somente fale com ele, é tudo o que peço.
Então concordei, apesar de saber que estaria a perder o meu tempo e só
iria aborrecer o Mago escusada-mente. Mas Alice começava a preocupar-
me. Queria confiar nela, mas tinha sem dúvida uma cisma em relação a
Meg. O Mago desceu ao final da tarde e conseguiu comer um pouco de
caldo, depois passou o serão embrulhado num cobertor diante da lareira.
Quando fui me deitar, continuava lá, e Alice ajudava Meg a lavar as
panelas para o desjejum.
Na manhã seguinte, que era uma terça-feira, o Ma-go deu-me uma
breve lição de latim. Não parecia lá muito bem: cansava-se rapidamente
e voltou para a cama, de modo que fiquei sozinho no gabinete de
trabalho o resto do dia.
Depois, ao final da tarde, ouviu-se bater na porta de trás e encontrei
Shanks, o homem que fazia as entregas do Mago, ali à espera. Tinha
uma expressão muito nervosa e olhava constantemente por cima do
ombro esquerdo, como se esperasse que alguém aparecesse por detrás
de mim a qualquer momento.
— Trouxe a encomenda de Mr. Gregory — disse, indicando com a cabeça
o pônei atrás de si carregado de sacas castanhas. — E trago uma carta
para você. Foi entregue na casa errada e estavam fora em negócios.
Acabaram de regressar, por isso deve ter mais de uma semana.
Olhei para ele, espantado. Quem me poderia mandar uma carta para
aqui? Levou a mão ao bolso do casaco, retirou um envelope amarrotado
e entregou-me. Fiquei apreensivo porque reconheci a caligrafia do meu
irmão Jack no envelope e soube que deveria ter custado uma pequena
fortuna enviar a carta pela mala-postal: tinha de ser algo grave. Eram na
certa más notícias.
Abri o envelope rasgando-o e desdobrei a carta, que era breve e concisa.
Caro Tom
O estado do nosso pai agravou-se novamente. Piora a olhos vistos.
Todos os filhos dele estão aqui, menos você, por isso é melhor vir
imediatamente para casa.
Jack
Jack sempre fora direto e aquelas palavras deixaram-me o coração
muito apertado. Não podia acreditar que o pai fosse morrer. Não
conseguia sequer imaginá-lo.
O mundo não seria o mesmo sem ele. E se a carta de Jack estava na
aldeia há uma semana, à espera de ser lida, eu podia chegar já tarde
demais. Enquanto Shanks descarregava as nossas provisões, corri lá
para dentro, subi ao quarto do Mago e, com mãos trêmulas, mostrei-lhe
a carta. Ele leu-a, depois soltou um suspiro profundo.
— Lamento saber as más novas — disse. — É
melhor ir imediatamente a sua casa. Numa altura desta a sua mãe vai
precisar de você a seu lado.
— E então o senhor? — inquiri. — Ficará bem?
— Não se preocupe comigo, não tarda ficarei bom.
Não, vá embora enquanto ainda resta alguma claridade.
Vai querer descer a charneca muito antes de a noite cair.
Quando desci à cozinha, Alice e Meg estavam ambas a cochichar. Meg
sorriu quando me viu.
— Esta noite vou preparar uma ceia especial para ambos — anunciou.
— Não vou estar aqui para a ceia, Meg — disse-lhe.
— O meu pai está doente e tenho de ir para casa por alguns dias.
— Lamento sabê-lo, Bily. A neve vem aí com certeza, por isso proteja-se
bem do frio. As queimaduras podem fazer-te cair os dedos.
— A situação é muito má, Tom? — perguntou Alice, parecendo
preocupada, de modo que lhe entreguei a carta e ela leu-a rapidamente.
— Oh, Tom! Lamento muito — disse, avançando para me dar um abraço.
— Talvez não seja bem o que parece. . Mas quando os nossos olhos se
cruzaram, pude ver que ela só estava a tentar fazer-me sentir melhor.
Temíamos ambos o pior.
Preparei-me para partir. Não me preocupei com o meu saco — deixei-o
no gabinete de trabalho — mas levei o meu bordão; no meu bolso, para
além de um pedaço grande de queijo amarelo esboroado para a viagem,
tinha a caixa de mechas e um toco de vela. Nunca se sabia quando
poderiam vir a ser úteis.
Depois de me despedir do Mago, dirigi-me à porta de trás com Alice.
Para minha surpresa, em vez de se despedir ali, tirou o casaco do cabide
e vestiu-o.
— Vou com você até ao fim da ravina — anunciou, esboçando-me um
sorriso triste.
Descemos então juntos. Não falamos. Sentia-me atordoado e receoso,
ao passo que Alice se mostrou deveras submissa. Quando chegamos ao
fundo da ravina e me virei para Alice a fim de me despedir, para minha
surpresa, vi que havia lágrimas nos olhos dela.
— O que se passa, Alice?
— Não vou estar aqui quando regressar. O Velho Gregory vai me mandar
embora. Vou voltar para Moor View Farm.
— Oh, lamento, Alice. Ele não me falou nada a esse respeito. Pensei que
estivesse tudo bem.
— Ele me disse a noite passada. Acha que estou próximo demais de
Meg.
— Próximo demais?
— Penso que pode ser porque nos viu a conversar uma com a outra, é
tudo. Quem sabe o que vai dentro da cabeça do Velho Gregory. Achei
por bem te avisar. Para que saiba onde me encontrar quando regressar.
— Irei visitá-la assim que puder — disse-lhe. —
Antes mesmo de voltar para casa do Mago.
— Obrigada, Tom — respondeu Alice, pegando-me por um breve instante
na mão esquerda para a apertar afetuosamente.
Deixei-a então e continuei a descer, parando uma vez para olhar para
trás. Continuava lá a observar-me, de modo que lhe acenei. Alice não
me dissera quaisquer palavras finais de consolo. Não mencionara o meu
pai. Ambos sabíamos que não havia nada a dizer e receava o que fosse
encontrar em casa.
O crepúsculo chegou rapidamente, ajudado por uma camada de nuvens
espessas e carregadas vinda de norte. Escurecia já quando deixei as
alturas da charneca; não sei como, consegui desorientar-me e não
encontrei o trilho que tencionava tomar.
Lá em baixo havia um aglomerado de árvores e um muro baixo de pedra
seca com um pequeno edifício a alguma distância para lá dele — talvez
uma cabana de criado de lavoura, o que significava que muito
provavelmente haveria uma pequena estrada ou trilho que partia dela
descendo a colina. Subi o muro mas hesitei antes de descer para o outro
lado. Para começar, teria mais de um metro e oitenta de altura e
descobri que estava a olhar para um grande cemitério. Também não
havia uma cabana ao longe. Era uma pequena capela.
Encolhi os ombros e desci para o meio das lápides.
Até podia ter o seu quê de arrepiante, mas eu era o aprendiz do Mago e
tinha de me acostumar a lugares como este apesar de estar quase
escuro. Comecei a avançar por entre as sepulturas, sempre a descer, e
não tardou que os meus pés pisassem um caminho de gravetos que
seguia em direção à capela.
Devia ser sempre direto. O caminho passava ao lado da capela; para lá
dela, serpenteava por entre as lápides em direção a dois enormes teixos
que formavam um arco por cima de um portão. Deveria ter continuado a
caminhar, mas via-se um brilho de luz no vitral da capela, prova de uma
vela a tremular. Quando passei pela porta, reparei que estava
ligeiramente entreaberta e ouvi nitidamente uma voz lá dentro.
Uma voz que gritou uma única palavra: — Tom!
Era uma voz cava, uma voz masculina, uma voz que estava acostumada
a que lhe obedecessem. Não a reconheci.
Conquanto parecesse improvável, senti que me chamavam. E quem
poderia estar dentro da capela que sabia o meu nome, ou que eu
passava por ali no escuro naquele momento? Não deveria estar ninguém
na capela àquela hora da noite. Só seria usada esporadicamente, para
breves serviços antes dos funerais.
Quase antes de perceber o que fazia, aproximei-me da porta da capela,
abri-a e entrei. Para minha surpresa não havia ninguém lá, mas reparei
de imediato em algo realmente estranho na configuração interior. Em
vez de virados para o altar, com um corredor de permeio, os bancos
estavam em quatro longas filas encostados à parede e defronte para um
único confessionário grande na parede à minha direita, com duas velas
enormes posicionadas como sentinelas de cada lado dele.
O confessionário tinha as duas entradas habituais, a do padre e a do
penitente. Um confessionário contém, na realidade, dois compartimentos
com uma divisória de modo a que, apesar de o padre poder ouvir as
confissões através de uma grelha, não consiga ver o rosto da pessoa que
se confessa. Mas havia ali algo de estranho. As portas tinham sido
retiradas, de modo que me encontrava defronte de dois retângulos da
mais completa escuridão.
Enquanto olhava para as portas, sentindo-me muito agitado, alguém
saiu do escuro pela entrada do padre à esquerda e avançou na minha
direção. Usava uma capa e um capuz tal como o Mago.
Era Morgan, apesar de a voz que me chamou não ter sido a dele. Estava
mais alguém na capela? Quando ele se aproximou, tive uma súbita
sensação de frio intenso.
Não o frio habitual que me dizia que algo do escuro estava próximo. De
certa forma, era diferente. Fez-me lembrar o frio que sentira quando
enfrentara em Priestown o espírito maléfico a que chamavam o
Destruidor.
— Voltamos a encontrar-nos, Tom — disse Morgan com um leve sorriso
escarninho. — Lamento saber a notícia do seu pai. Mas ele teve uma
vida boa. A morte acaba por bater à porta de todos nós.
O meu coração agitou-se no peito e parei de respirar. Como é que ele
soubera da doença do Pai?
— Mas a morte não é o fim, Tom — disse ele, dando outro passo na
minha direção. — E durante algum tempo podemos falar com aqueles
que amamos. Gostaria de falar com o seu pai? Eu podia invocá-lo agora
para você, se é isso que quer...
Não respondi. Só naquele instante comecei a compenetrar-me do que
ele dizia. Senti-me entorpecido.
— Oh, lamento, Tom. É claro que você não sabe não é? — prosseguiu
Morgan. — O seu pai morreu na semana passada.
CAPÍTULO 11
O QUARTO DA MÃE
Morgan voltou a sorrir, mas o coração saltou-me para a boca e enchi-me
de pânico: o mundo girou à minha volta.
Sem pensar, virei-me e corri para a porta. Uma vez lá fora, continuei a
descer o caminho, os meus pés esmagando os gravetos. Quando cheguei
no portão, virei-me e olhei para trás. Viera até à entrada da capela. O
seu rosto estava no escuro pelo que não lhe pude ver a expressão, mas
levantou a mão e acenou-me. O tipo de aceno que se faria a um amigo.
Não correspondi. Limitei-me a abrir o portão e continuar a descer a
vertente, um misto de pensamentos e emoções às voltas na minha
cabeça. Ficara perturbado ao pensar que o meu pai podia encontrar-se
já morto. Estaria Morgan certo do que afirmara? Ele era necromante, por
isso invocara algum fantasma que lho dissera? Recusei-me a acreditar e
tentei remetê-lo para o meu subconsciente.
E por que desatara eu a fugir? Devia ter ficado e dito o que pensava a
seu respeito. Mas surgira-me um nó na garganta e as minhas pernas
tinham-me levado até à porta antes de ter sequer tempo de pensar. Não
podia afirmar que estava com medo dele, muito embora fosse arrepiante
ouvi-lo dizer semelhantes coisas na capela, com as velas a tremular
atrás dele. Era o fato de ser confrontado assim com aquela notícia.
Não me lembro muito do resto da viagem, para além do fato de parecer
estar a esfriar e a ventar mais. Na noite do segundo dia, o vento mudara
para nordeste e o céu parecia carregado de neve.
A neve só começou a cair quando me encontrava a cerca de meia hora
de casa. A luz principiara a diminuir, mas conhecia o caminho como a
palma da minha mão e isso não me impediu o progresso. Quando abri o
portão da fazenda um cobertor branco cobria tudo e fiquei gelado até
aos ossos. A neve torna sempre tudo mais tranquilo, mas parecia ter
descido um silêncio noturno especial sobre a casa. Entrei no pátio e o
silêncio cessou quando os cães começaram a ladrar.
Não havia ninguém por perto, muito embora uma luz tremulasse numa
das janelas do quarto das traseiras.
Chegara tarde de mais? Levava o coração já aos pés e temi o pior dos
piores.
Vi então Jack: avançou em grandes passadas pelo pátio na minha
direção. Vinha carrancudo, as sobrancelhas espessas unidas por cima do
nariz.
— Por que demorou? — inquiriu, furioso. — Não leva uma semana, não
é? Os nossos irmãos já partiram. E
James vive a meio caminho do Condado! Foi o único que não chegou.
— A sua carta foi para na morada errada. Recebi-a uma semana depois
— expliquei. — Mas como está ele?
Cheguei tarde demais? — perguntei, sustendo a respiração mas lendo já
a verdade no rosto de Jack.
Jack suspirou e baixou a cabeça como se não conseguisse encarar-me.
Quando tornou a levantar a cabeça, os seus olhos brilhavam com
lágrimas.
— Ele se foi, Tom — disse baixinho, toda a aspe-reza e a raiva
desaparecidas. — Morreu tranquilamente enquanto dormia fez ontem
uma semana.
Antes que percebesse, abraçava-me e chorávamos ambos. Nunca mais
ia voltar a ver o meu pai; nunca mais iria ouvir a sua voz, as suas velhas
histórias e adágios sábios; nunca mais apertaria a sua mão ou lhe
pediria um conselho; e a idéia era insuportável. Mas enquanto ali estava,
lembrei-me de alguém que sentiria essa perda ainda mais do que eu.
— Pobre Mãe — disse, quando consegui voltar a falar. — Como é que ela
tem passado?
— Mal, Tom. Muito mal — afirmou Jack, abanando a cabeça com pesar.
— Nunca antes vira a Mãe chorar e foi algo terrível de se ver. Ela ficou
fora de si, durante dias não comeu nem dormiu. E no dia seguinte ao
funeral, preparou um saco e partiu, dizendo que precisava de se afastar
por uns tempos.
— Para onde é que ela foi?
Jack abanou a cabeça, o seu rosto cheio de infelicidade.
— Quem me dera saber — disse.
Não comentei com Jack, mas lembrei-me do que o Pai uma vez me
dissera: que a Mãe tinha a sua própria vida para viver e que depois de
ele morrer e ser enterrado provavelmente regressaria ao seu próprio
país. E dissera que quando esse momento chegasse eu teria de ser forte
e deixá-la partir com um sorriso. Só esperava que não o tivesse feito já.
Partiria sem se despedir de mim? Esperava que não. Precisava mesmo
de voltar a vê-la, nem que fosse pela última vez.
Foi a pior ceia que alguma vez me lembro de tomar em casa.
Era tão triste não ter a Mãe e o Pai à mesa e olhava constantemente
para a cadeira vazia do Pai. A bebê estava lá em cima no berço, por isso
éramos apenas os três, Jack, Ellie e eu, sentados à mesa e a debicar
lentamente a comida.
Quando a olhei, Ellie sorriu com pesar mas estava muito calada. Tinha a
impressão de que queria me dizer algo mas esperava pela ocasião certa.
— O guisado está mesmo muito bom, Ellie — disse-lhe. — É uma pena
desperdiçar, mas não sou capaz de comer muito. Não tenho muita fome.
— Não se preocupe, Tom — respondeu-me com doçura. — Eu entendo.
Nenhum de nós está com apetite.
Coma apenas o que aguentar. É importante manter as forças numa
altura como esta.
— Provavelmente não será o momento certo, mas queria dar os
parabéns, aos dois. Da última vez que estive aqui, a Mãe contou-me que
está à espera de outro bebê e que vai ser um rapaz.
Jack sorriu, pesaroso, a sua voz embargada.
— Obrigado, Tom. Se ao menos o Pai tivesse vivido para ver o neto
nascer. . — Pigarreou como se fosse dizer algo importante. — Olha —
começou. — Por que não fica conosco alguns dias até o tempo melhorar?
Não precisa de voltar já amanhã, não é? A verdade é que seria bom uma
ajuda na fazenda. James ficou dois dias mas teve de voltar ao trabalho.
James, o meu segundo irmão mais velho; era ferreiro. Duvidei que ele
tivesse ficado depois do funeral, pois Jack precisava realmente de ajuda
no trabalho da fazenda. Não eram as sementeiras na Primavera, nem as
colheitas no Outono, em que toda a ajuda era bem-vinda.
Não, Jack queria que eu ficasse pela mesma razão que precisara de
James. Apesar de detestar os assuntos dos magos e não gostar de me
ter por perto, precisava que eu preenchesse o vazio, a solidão de estar
ali sem o Pai e a Mãe. — Vai ser bom ficar alguns dias — disse-lhe,
sorrindo. — Ainda bem que pode, Tom. Agradeço muito —
afirmou, afastando o prato muito embora mal tivesse comido um terço.
— Vou me deitar.
— Vou lá mais tarde, querido — disse Ellie a Jack.
— Não se importa que eu fique aqui um pouco a fazer companhia a Tom,
não é?
— De modo algum — respondeu.
Depois de ele sair, Ellie sorriu-me calorosamente.
Estava mais bonita do que nunca, mas tinha um ar cansado e triste, a
tensão da última semana sendo parcialmente responsável por isso.
— Obrigada por aceitar ficar um pouco, Tom —
disse-me. — Ele precisa falar dos velhos tempos com um dos irmãos. É
assim que se chora, falando sucessivamente do assunto. Mas acho
também que ele precisa de você porque acredita que se estiver aqui,
provavelmente a Mãe voltará. .
Não me ocorrera tal. A Mãe sentia as coisas. Saberia que eu estava na
fazenda. Podia realmente voltar para me ver.
— Espero que sim.
— Também eu, Tom. Mas escute, quero que seja paciente com Jack.
Sabe, há uma coisa que ele ainda não te contou. Havia uma surpresa no
testamento do seu pai.
Algo com que ele não contava. .
Fiquei intrigado. Uma surpresa? O que poderia ser?
A família inteira sabia que, com a morte do Pai, Jack, como filho mais
velho, herdaria a fazenda. Não valia a pena dividi-la entre os sete,
tornando-a cada vez menor. Era a tradição do Condado. Ia sempre para
o filho mais velho, com a garantia de a viúva lá poder ficar enquanto
fosse viva. — Uma surpresa agradável? — perguntei, na dúvida, sem
saber o que esperar.
— Não, não é dessa maneira que Jack o vê. Mas não quero que me
interprete mal, Tom. Ele só está pensando em mim e em Mary e, claro,
no filho que vai nascer
— disse-me, passando a mão pela barriga. — Sabe, Jack não herdou a
casa toda. Foi-te deixado um quarto. .
— O quarto da Mãe? — perguntei, adivinhando já a resposta. Era o
quarto onde a Mãe guardava as suas coisas particulares; onde guardara
a corrente de prata que me dera no Outono.
— Sim, Tom — afirmou Ellie. — Aquele quarto fechado mesmo por
debaixo do sótão. Aquele quarto e tudo o que está lá dentro. Muito
embora Jack possua a casa e a terra, será sempre permitido a você o
acesso àquele quarto e poderá ficar lá quando quiser. Jack empalideceu
quando foi feita a leitura do testamento. Significa que você pode mesmo
viver aqui, se for essa a sua intenção. Eu sabia que Jack não me queria
perto da casa não fosse dar-se o caso de eu trazer algo comigo; algo do
escuro. Não podia contra-argumentar porque tal já sucedera uma vez. A
velha bruxa, Mãe Malkin, acabara por vir ter à nossa cave na Primavera
passada. Jack e a filha bebê de Elie, Mary, tinham corrido mesmo perigo.
— A Mãe fez algum comentário? — perguntei.
— Nem uma palavra. Jack ficou incomodado demais para falar do
assunto e depois ela foi embora no dia seguinte.
Não consegui deixar de pensar que, ao destinar-me o quarto, tal
significava que iria partir em breve; voltar para o seu próprio país e
deixar-nos para sempre. Isto se não se tivesse ido já embora.
Na manhã seguinte levantei-me muito cedo mas Ellie chegara à cozinha
antes de mim. Foi o cheiro de salsichas a fritar que me levou lá abaixo.
Apesar de tudo o que acontecera, o meu apetite começava a voltar.
— Teve uma boa noite de sono, Tom? — perguntou, brindando-me com
um grande sorriso.
Anuí mas era uma pequena mentira. Demorara muito a adormecer e
depois acordara diversas vezes. E
sempre que abria os olhos, a dor voltava-me, como se percebesse pela
primeira vez de que o Pai morrera.
— Onde está a bebê? — perguntei.
— Mary está lá em cima com Jack. Gosta de passar algum tempo com
ela todas as manhãs. Sempre é um bom pretexto para começar a
trabalhar um pouco mais tarde.
Hoje também não vai adiantar muito — disse-me, apontando para a
janela. Os flocos de neve desciam a rodopiar e a divisão estava mais
iluminada do que num dia de Verão pois a luz refletia-se da neve
acumulada no pátio.
Não tardei a atacar um prato de salsichas com ovos.
Enquanto comia, Jack desceu e me fez companhia à mesa.
Baixou-me a cabeça e começou a comer o seu desjejum; Ellie veio até a
divisão da frente, deixando-nos a sós. Ele debicava a comida,
mastigando-a devagar, e comecei a sentir-me culpado por estar a
saborear o meu desjejum.
— Ellie contou-me que já sabe do testamento —
falou por fim Jack.
Anuí mas não disse nada.
— Olhe, Tom, como filho mais velho, sou o executor do testamento e é
meu dever certificar-me de que as vontades do Pai são cumpridas, mas
gostaria de saber se poderíamos chegar a um acordo — disse. — E se eu
te comprasse o quarto? Se conseguisse arranjar o dinheiro, me
venderia? E quanto às coisas da Mãe lá dentro, tenho certeza de que Mr.
Gregory te deixaria guardá-las em Chipenden. .
— Preciso de tempo para pensar, Jack — redarguiu-lhe. — Isto foi um
grande choque. Aconteceu coisas demais muito rapidamente. Não se
preocupe, não faço tenções de vir aqui constantemente. Estarei ocupado
demais. Jack levou a mão ao bolso das calças e retirou um molho de
chaves. Colocou-as na mesa à minha frente.
Havia uma chave grande e três mais pequenas: a primeira era da porta
do quarto; as outras três das caixas e arcas lá dentro. — Bem, aqui
estão as chaves. Quer sem dúvida ir lá em cima ver a sua herança.
Debrucei-me e empurrei de novo as chaves na direção dele.
— Não, Jack — disse-lhe. — Guarde-as por agora.
Não irei ao quarto sem antes ter falado com a Mãe.
Olhou-me, espantado.
— Tem certeza?
Anuí e ele voltou a enfiar as chaves no bolso, não se falando mais no
assunto.
O que Jack afirmara fazia bastante sentido. Mas eu não queria o dinheiro
dele. Para comprar a minha parte, ele teria de pedir um empréstimo e,
financeiramente, a situação seria bastante difícil visto ter de administrar
sozinho a fazenda. No que me dizia respeito, ele podia ficar com o
quarto. E tinha certeza de que o Mago me deixaria guardar as caixas e
arcas da Mãe em Chipenden. Mas desconfiava que era vontade da Mãe
que eu ficasse com o quarto, e só isso me impediu de concordar
prontamente.
Estava no testamento do Pai mas provavelmente a decisão fora dela. A
Mãe tivera sempre uma boa razão para tudo o que fazia, por isso não
podia decidir nada enquanto não falasse cara a cara com ela.
Naquela tarde, fui visitar o jazigo do Pai. Jack queria acompanhar-me,
mas consegui dissuadi-lo. Precisava de isolar-me. Uma hora ou mais
para pensar e chorar sozinho. E havia algo mais que precisava saber.
Algo que não poderia fazer se Jack me acompanhasse. Ele não teria
compreendido ou, quando muito, ficaria deveras transtornado.
Calculei o meu passeio de modo a chegar lá ao pôr do Sol, apenas com a
luz suficiente para encontrar a sepultura. Era um cemitério ermo,
coberto de neve, a cerca de oitocentos metros da igreja. O próprio adro
da igreja estava tão cheio que tinham consagrado mais aquele solo
sagrado. Na realidade, não passava de um pequeno campo delimitado
por uma sebe de espinheiro com dois sicômoros a estabelecer os limites
ocidentais. Foi fácil encontrar a sepultura do Pai na primeira fila de
jazigos que avançavam mês a mês pelo campo. A sepultura dele ainda
não tinha pedra, contudo fora assinalada temporariamente com uma
cruz, o nome dele talhado fundo na madeira: JOHN WARD
ETERNO DESCANSO
Permaneci algum tempo junto daquela cruz de madeira, pensando em
todos os momentos felizes que tí-
nhamos passado em família; recordando a infância, com a Mãe e o Pai
felizes e atarefados e todos os meus irmãos a viverem em casa. Recordei
a última vez que falara com o Pai e de ele me ter dito que se orgulhava
de ter um filho tão corajoso e que, apesar de não ter quaisquer
preferidos, continuava a achar que eu saíra o melhor deles todos.
Vieram-me as lágrimas aos olhos e chorei alto junto à campa. Mas
quando escureceu, respirei fundo e fortaleci-me, concentrando-me no
que havia a fazer. Assuntos de magos. — Pai! Pai! — chamei na
escuridão. — Está aí?
Consegue ouvir-me?
Chamei três vezes exatamente da mesma maneira, mas a cada ocasião
os únicos sons que ouvi foram o vento a assobiar por entre a sebe de
espinheiro e um cão solitário a ladrar ao longe. Suspirei então de alívio.
O Pai não estava ali. O seu espírito não ficara preso ali. Não se apegara
à sepultura. Só esperava que tivesse ido para um lugar melhor.
Ainda não me decidira quanto a Deus. Talvez Deus existisse e talvez Ele
não existisse. Se Ele existisse, dar-se-ia ao incômodo de me escutar? Eu
não tinha por hábito rezar, mas tratava-se do Pai, de modo que abri uma
exceção.
— Por favor, Deus, dê-lhe paz — pedi, baixinho.
— Se for o que ele merece. Foi um homem bom e muito trabalhador e
eu amava-o.
Depois virei-me e, muito triste, regressei a casa.
Permaneci na fazenda cerca de uma semana.
Quando chegou a altura de partir, chovia, a neve meio derretida no
pátio.
A Mãe não regressara e perguntei-me se alguma vez o faria. Mas a
minha principal obrigação era voltar para Anglezarke e ver como estava
o Mago. Só esperava que continuasse a recuperar. Prometi a Jack e Ellie
que os viria visitar na Primavera e que falaríamos então a respeito do
quarto. Empreendi a longa caminhada para sul, pensando no Pai e em
tudo o que mudara. Ainda há pouco tempo eu vivia lá em casa feliz com
os meus pais e seis irmãos, e o Pai estava forte e com saúde. Agora tudo
se alterara.
Tudo se desmoronara.
De certa forma, nunca poderia regressar ao lar porque ele já não existia.
Agora estava tudo muito diferente. Os edifícios podiam continuar a ser
os mesmos, assim como a vista da Colina do Carrasco da janela do meu
antigo quarto. Mas, sem o Pai e a Mãe não seria simplesmente o lar.
Sabia que perdera algo para sempre.
CAPÍTULO 12
NECROMANCIA
Quanto mais para sul viajava, mais esfriava, a chuva a transformar-se
gradualmente em neve. Estava cansado e queria seguir logo para casa
do Mago mas prometera a Alice que a iria visitar primeiro e tencionava
ser fiel à minha palavra.
Quando surgiu Moor View Farm, já estava escuro.
O vento amainara e o céu estava limpo. A lua aparecera e a neve
tornava tudo muito mais brilhante do que o costume; para lá da casa da
fazenda, o lago era um espelho escuro refletindo as estrelas.
A própria fazenda estava às escuras. A maior parte dos agricultores do
Condado recolhia-se cedo, por isso era algo com que já estava a contar.
Esperava, no entanto, que Alice tivesse dado pela minha aproximação e
escapulido para se vir encontrar comigo. Subi a vedação limite e
atravessei um campo em direção ao aglomerado de edifícios dilapidados.
Apareceu um estábulo à minha frente, e ouvindo um som invulgar,
estaquei junto à porta aberta.
Alguém chorava.
Aproximei-me da ombreira da porta e os animais lá dentro agitaram-se
nervosamente. Senti imediatamente o cheiro. Não era o habitual odor
adocicado a animais, acrescido de umas quantas saudáveis bostas de
vaca. Era disenteria, uma doença digestiva a que o gado e os porcos
estão sujeitos. Tem tratamento, mas aquele gado estava doente e
negligenciado. A situação piorara consideravelmente desde a última vez
que eu lá estivera.
Foi então que percebi que alguém me vigiava. A minha esquerda,
iluminado por um raio de luar, Mr. Hurst estava sentado acocorado num
banco de ordenha. Escorriam lágrimas pelas faces do velho e olhava
para mim, a infelicidade estampada no seu rosto. Recuei um passo
quando ele se pôs em pé.
— Desapareça daqui! Deixe-me em paz! — gritou, brandindo o punho na
minha direção, tremendo da cabeça aos pés.
Fiquei chocado e incomodado. Sempre fora tão tímido e plácido, nunca
dirigindo a mim nem a Alice uma palavra irada. Naquele momento
parecia desesperado e no limite das suas forças. Afastei-me, cabisbaixo.
Sentia muita pena dele. Morgan devia tê-lo tratado muito mal: por isso
ficara fora de si. Não sabia o que fazer mas pensei que o melhor seria
ter uma conversa com Alice.
Continuei a avançar até chegar ao pátio. A casa mantinha-se às escuras
e não sabia bem o que fazer. Alice devia estar dormindo profundamente,
não percebendo que eu estava perto. Esperei um momento, a minha
respiração fazendo vapor no ar frio.
Aproximei-me da porta de trás e bati duas vezes.
Nem precisei bater de novo. Passados alguns instantes a porta abriu-se
lentamente, chiando nas dobradiças e Mrs.
Hurst enfiou a cabeça, piscando os olhos ao luar.
— Preciso falar com Alice — disse-lhe.
— Entre, entre — convidou, a sua voz fraca e rouca.
Havia um tapete do lado de dentro da porta, de modo que entrei logo
para o pequeno corredor e, depois de sorrir e agradecer-lhe
cortesmente, sacudi a neve das botas o melhor que pude. Lá à frente
ficavam as duas portas interiores. A da direita estava fechada; mas a
porta do quarto de Morgan encontrava-se parcialmente aberta e vi luz de
vela a tremular do outro lado.
— Entre — disse ela, apontando para lá.
Ainda hesitei, perguntando-me o que faria Alice no quarto de Morgan,
mas entrei mesmo assim. O ar estava carregado do fedor de sebo e, por
alguma razão, a primeira coisa em que reparei foi numa vela grossa feita
de cera preta, que fora colocada num enorme castiçal de latão.
Estava posicionada no meio da comprida mesa de madeira com as duas
cadeiras uma defronte da outra, em cada extremo.
Esperara ver ali Alice mas enganara-me. Sentada na extremidade mais
próxima da mesa, e a olhar na direção da vela, estava uma figura
encapuzada. Virou-se para mim e vi uma barba e um sorriso escarninho.
Era Morgan.
Mais uma vez, o meu instinto foi fugir dali, mas ouvi dois sons atrás de
mim. O primeiro foi a porta fechando-se com firmeza.
O segundo foi o pesado ferrolho a ser corrido. À
minha frente estava a janela coberta com um cortinado pesado e
nenhuma outra porta. Encontrava-me trancado no quarto com Morgan.
Relanceei a divisão, olhando para as lajes de pedra à mostra, depois
para a cadeira vazia à espera. O quarto estava frio e senti arrepios.
Havia uma lareira mas estava cheia de cinzas apagadas.
— Sente-se, Tom — disse Morgan. — Temos muito o que conversar.
Não me mexi, de modo que ele me indicou a cadeira defronte de si.
— Vim aqui para falar com Alice — respondi-lhe.
— Alice foi embora — referiu Morgan. — Partiu há três dias.
— Embora? Embora para onde? — inquiri.
— Ela não disse. Não era uma garota muito faladora, aquela Alice. Nem
se deu ao incômodo de dizer que ia embora. Agora, Tom, a última vez
que entrou neste quarto foi sem ser convidado, como um ladrão no meio
da noite, com aquela garota a seu lado. Mas vamos esquecer isso porque
agora é muito bem-vindo. Por isso, volto a dizer. Sente-se.
Cheio de receio, sentei-me, mas conservei o bordão erguido na mão
esquerda, agarrando-o com firmeza. Como soubera que tínhamos
entrado no quarto dele? E estava muito preocupado com Alice. Para
onde poderia ter ido? Certamente não para Pendle? O meu olhar cruzou-
se com o de Morgan. Subitamente, com um sorriso, puxou o capuz para
trás expondo a sua cabeleira rebelde. Estava muito mais grisalha do que
da última vez. A luz da vela, o seu rosto parecia irregular e as rugas
bastante mais profundas.
— Ofereceria vinho — disse —, mas não bebo quando estou trabalhando.
— Não costumo beber vinho — respondi-lhe.
— Mas come sem dúvida queijo — comentou, um sorriso escarninho no
rosto.
Não lhe respondi e o seu semblante ficou sério. De repente, debruçou-
se, franziu os lábios e soprou com força. A vela tremulou e apagou-se,
mergulhando o quarto na mais absoluta negrura, ao mesmo tempo que o
cheiro de sebo se intensificava.
— Somos só você, eu e o escuro — referiu Morgan. — Consegue
aguentar? Está apto a ser meu aprendiz?
Tinham sido as palavras exatas que o Mago me dissera na cave da casa
assombrada em Horshaw, o lugar onde me levara logo no primeiro dia
do meu aprendizado.
Fizera-o para avaliar se eu tinha ou não fibra para me tornar mago. As
palavras que proferira no momento em que a vela se apagara.
— Aposto que quando desceu pela primeira vez as escadas da cave, ele
estava sentado no canto e levantou-se no momento em que se
aproximou — prosseguiu Morgan. — Nada muda. Você, eu e duas dúzias
de outros ou mais. Absolutamente previsível. Velho tolo! Não admira que
ninguém aguente ficar muito tempo com ele.
— Você ficou três anos — respondi baixinho no escuro.
— Já encontrou a língua, Tom? Isso é bom — afirmou Morgan. — Vejo
que ele esteve a falar de mim.
Disse algo de bom?
— Nem por isso.
— O que não me surpreende. E contou por que desisti do aprendizado de
mago?
Nesta altura, os meus olhos tinham-se adaptado ao escuro e conseguia
de fato distinguir a forma da cabeça dele a olhar para mim do outro lado
da mesa. Podia ter lhe contado que o Mago dissera que lhe faltava
disciplina e não estava à altura da tarefa, mas decidi fazer-lhe antes
algumas perguntas da minha lavra.
— O que pretende de mim? E por que a porta foi trancada? — inquiri.
— Para que não possa voltar a fugir — respondeu Morgan. — Para que
não tenha outra escolha senão ficares e enfrentar o que tenho para te
mostrar. Constou-me que é um bom aprendiz. Tanto você como eu
sabemos que o seu mestre não aprecia isso. Portanto, esta é a primeira
lição do seu novo aprendizado. Já terá tido alguns encontros com os
mortos, mas agora vou aumentar os seus conhecimentos. E aumentá-los
significativamente.
— Por que haveria você de querer fazer isso? —
desafiei-o. — Mr. Gregory está me ensinando tudo o que preciso saber.
— Primeiro o mais importante, Tom — replicou Morgan. — Primeiro
vamos falar de fantasmas. O que sabe sobre eles?
Decidi fazer-lhe a vontade. Talvez se o deixasse por para fora tudo o que
ele queria, pudesse ir embora e regressar a casa do Mago.
— A maior parte dos fantasmas está presa aos ossos; outros, ao lugar
onde sofreram ou cometeram algum crime terrível enquanto ainda na
terra. Não são livres de vaguear à vontade.
— Muito bem, Tom — afirmou Morgan, uma pontinha de escárnio por
detrás da sua voz. — E aposto que escreveu também tudo no seu livro
de notas, como um bom pequeno aprendiz. Bem, aqui vai algo que o
velho tolo não te ensinou. Não o terá mencionado porque não gosta de
pensar no assunto. Aqui vai a grande pergunta.
Para onde vão os mortos depois da morte? E não estou a falar de
fantasmas e imagens fantasmagóricas aprisionados. Refiro-me aos
outros mortos. A esmagadora maioria.
Pessoas como o seu pai.
Ante a menção ao meu pai endireitei-me e olhei com dureza para
Morgan.
— O que sabe sobre o meu pai? — indaguei, furioso. — Como soube que
ele morreu?
— Tudo a seu tempo, Tom. Tudo a seu tempo.
Tenho poderes que o seu mestre apenas pode imaginar.
Mas não respondeu à minha pergunta. Para onde vão os mortos depois
da morte?
— A Igreja diz o Céu, o Inferno, o Purgatório ou Limbo — respondi. —
Não tenho certeza de tudo isso e Mr. Gregory nunca fala do assunto. Mas
acredito que a alma sobrevive à morte.
— O Purgatório é um lugar para onde as almas iam a fim de se
limparem, sofrendo até serem dignas de entrar no Céu. O Limbo era
mais misterioso. Os padres pensavam que aqueles que não foram
batizados iam para lá.
Supostamente, estaria destinado às almas que não eram propriamente
más mas, sem terem culpa própria, não eram dignas de entrar no Céu.
— O que sabe a Igreja? — indagou Morgan, o tom de escárnio a entrar
na sua voz. — Isso é talvez a única coisa em que o Velho Gregory e eu
estamos de acordo.
Mas sabe, Tom, dos quatro lugares que acabou de mencionar, o Limbo é
de longe o mais útil para alguém como eu. O seu nome vem da palavra
latina Umbus, que significa
«orla» ou «franja». Repare, para onde quer que se dirija, a maioria dos
mortos tem primeiro de passar pelo Limbo, que fica na orla deste
mundo, e alguns têm muita dificuldade em fazê-lo. Uma parte dos
fracos, dos timoratos e dos culpados recua, voltando a este mundo para
se tornar fantasmas, juntando-se aos apegados, que já estão presos à
terra. São os mais fáceis de controlar. Mas até os fortes e bons têm de
se esforçar e lutar para transporem o Limbo.
É um processo demorado, e enquanto são retardados, tenho o poder de
alcançar ali a alma que eu quiser. Posso impedi-la de prosseguir. Posso
fazer dela o que quiser. Se necessário, fazê-la sofrer.
— Os mortos tiveram as suas vidas. Para eles acabou. Mas nós
continuamos vivos e podemos usá-los. Podemos lucrar com eles. Quero
aquilo que Gregory me deve. Quero a sua casa em Chipenden com
aquela enorme biblioteca cheia de livros que contêm tanto
conhecimento.
E depois há algo mais. Algo muito mais importante.
Algo que ele me roubou. Ele tem um grimoire5, um livro de fórmulas e
rituais, e vai ajudar-me a recuperá-lo.
Em troca, pode continuar o seu aprendizado, comigo a preparar-te. E
ensinarei coisas que ele nunca imaginou.
Colocarei o verdadeiro poder nas pontas dos seus dedos!
— Não quero que me ensine — ripostei, furioso.
— Estou satisfeito com as coisas tal como estão!
— O que te faz pensar que tem voto no assunto?
— perguntou Morgan, a sua voz subitamente fria e ameaçadora. — Acho
que chegou a hora de te mostrar do que sou capaz. Agora, para a sua
própria segurança, quero que fique sentado sem se mexer e escute com
atenção. Aconteça o que acontecer, não tente sair dessa cadeira!
O quarto tornou-se muito silencioso e obedeci. O
que mais podia fazer? A porta estava trancada e ele era maior e mais
forte do que eu. Podia usar o meu bordão contra ele, mas sem
verdadeira garantia de sucesso. Por ora, o melhor era alinhar no jogo
dele, até conseguir fugir e voltar para o Mago.
Ouviu-se um som tênue no escuro. Algo entre um roçar e um ruído
surdo de passos. Era um pouco como ratos a correrem debaixo das
tábuas do soalho. Mas não 5 O termo encontra-se sempre em francês no
original. (NT) havia tábuas, apenas lajes pesadas de pedra, e senti o
quarto começar a arrefecer. Normalmente, teria sido um sinal de que
algo se aproximava; algo que não pertencia a este mundo. Mas, mais
uma vez, este frio era diferente, tal como sucedera quando tínhamos
falado na capela.
De repente, um sino tocou algures no ar lá muito por cima das nossas
cabeças. Era cavo e pesaroso, como se chamasse os enlutados para um
funeral, e tão forte que a mesa vibrou. Senti-o ressoar através das lajes
por debaixo dos meus pés. O sino tocou nove vezes ao todo, cada
repique mais fraco do que o que o antecedera. Seguiram-se
imediatamente três pancadas sonoras na mesa.
Conseguia distinguir o vulto de Morgan e não parecia estar a mover-se.
As pancadas repetiram-se, mais fortes do que nunca, e o pesado castiçal
de latão tombou, rebolou pelo tampo da mesa e caiu no chão.
No quarto escurecido, o silêncio que se seguiu foi quase doloroso e tive a
sensação de que os meus ouvidos iam rebentar. Sustinha a respiração e
apenas ouvia o latejar dentro da minha cabeça, o bater rápido do meu
coração.
O estranho frio intensificou-se e depois Morgan falou no escuro.
— Irmã minha, aquiete-se e escute bem! — ordenou. Ouvi então o
barulho de água a pingar. Parecia haver um buraco no teto e estar a
escorrer para o centro do tampo da mesa, onde estivera a vela.
Seguidamente uma voz respondeu. Parecia vir da boca de Morgan.
Conseguia apenas distinguir o contorno da cabeça dele e era capaz de
jurar que o seu maxilar se movia, mas era uma voz de menina e não
havia como um homem adulto poder imitar o timbre e a intensidade.
— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — exclamou a voz.
O ruído de água a pingar aumentou e ouviu-se um leve chapinhar, como
se se tivesse formado uma poça no tampo da mesa.
— Obedeça-me e te darei descanso — gritou Morgan. — É com outro que
desejo falar. Traga-o a este lugar e depois pode voltar para o lugar de
onde veio. Está um rapaz comigo neste quarto. Consegue vê-lo?
— Sim, vejo-o — respondeu a voz da garota. — Ele acaba de perder
alguém. Sinto a sua tristeza.
— O nome do rapaz é Thomas Ward — disse Morgan. — Chora o pai.
Traga-nos já o espírito do pai dele!
O frio começou a diminuir e a água deixou de pingar. Não podia
acreditar no que acabara de ouvir. Morgan ia mesmo invocar o espírito
do Pai? Senti-me ultrajado.
— Não está ansioso por falar mais uma vez com o seu pai? — demandou
Morgan. — Já falei com ele e disse-me que todos os seus irmãos o
visitaram no leito de morte para se despedirem menos você, e que nem
sequer foi ao funeral dele. Isso o deixou triste. Muito triste. Agora vão
poder ambos remediar a situação.
Fiquei atônito. Como podia realmente Morgan saber o que sucedera? A
menos que tivesse de fato estado em contacto com o espírito do Pai. .
— Eu não tive culpa! — protestei, irritado e incomodado. — Não recebi a
mensagem a tempo.
— Bem, agora vai ter oportunidade de lhe dizer isso pessoalmente. .
Começou de novo a esfriar. Depois uma voz falou-me do outro lado da
mesa. O maxilar de Morgan movia-se de novo mas, para meu desalento,
foi a voz do pai que lhe saiu pela boca. Não havia a menor dúvida.
Ninguém poderia ter imitado com tanta perfeição a voz de outrem. Até
parecia que o Pai estava sentado à minha frente na cadeira oposta.
— Está escuro — exclamou o Pai —, e não consigo sequer ver um palmo
diante do nariz. Acendam uma vela para mim, por favor. Acendam uma
vela para que eu possa ser salvo.
Senti-me pessimamente ao imaginar o Pai sozinho e com medo no
escuro. Tentei gritar e tranqüiliza-lo mas Morgan falou primeiro.
— Como pode ser salvo? — disse, a sua voz cava, poderosa e cheia de
autoridade. — Como pode um pecador como você ir para a luz? Um
pecador que sempre trabalhou no dia do Senhor?
— Oh, perdoe-me! Perdoe-me, Senhor! — exclamou o Pai. — Eu era
agricultor, e havia tarefas a fazer. Trabalhei que me fartei mas nunca
havia horas suficientes num dia. Tinha uma família para sustentar. Mas
sempre paguei os dízimos, não guardei nada que pudesse pertencer à
Igreja. Sempre fui crente, de verdade que fui. E ensinei os meus filhos a
distinguir o bem do mal. Fiz tudo o que um pai deveria fazer.
— Um dos seus filhos está agora aqui — disse Morgan. — Gostaria de
falar com ele pela última vez?
— Por favor. Por favor. Sim. Deixe-me falar com ele. É
Jack? Houve coisas que gostaria de lhe ter dito em vida. Coisas por dizer
que gostaria de falar agora!
— Não — retorquiu Morgan. —Jack não está aqui.
É o seu filho mais novo, Tom.
— Tom! Tom! Está aí? É realmente você?
— Sou eu, Pai. Sou eu! — exclamei, sentindo um nó começar a formar-
se na garganta. Não suportava a i-déia de o Pai a sofrer assim naquela
escuridão. O que fizera ele para o merecer? — Lamento não ter chegado
a casa a tempo. Lamento não ter ido ao seu funeral. Recebi a mensagem
tarde demais. Se tem algo a dizer a Jack, fale comigo. Transmitir-lhe-ei
a sua mensagem — disse, as lágrimas começando a picar-me por detrás
dos olhos.
— Tenho de falar com Jack por causa da fazenda, filho.
Lamento não ter deixado ela toda. Ele é o meu mais velho e tinha
o direito de primogenitura. Mas dei ouvidos à sua mãe. Diga-lhe
que lamento ter deixado aquele quarto.
As lágrimas desciam-me agora pelo rosto. Fora um choque saber que a
Mãe e o Pai não tinham estado de acordo sobre o quarto. Queria
prometer ao Pai que o re-mediaria dando o quarto a Jack, mas não podia
porque tinha de tomar em consideração os desejos da Mãe. Precisava
falar primeiro com ela. Mas procurei tranquilizar o Pai. Era o máximo que
podia fazer.
— Não se preocupe, Pai! Tudo vai se resolver. Falarei com Jack sobre o
assunto. Não haverá quaisquer problemas na família. Nenhum mesmo.
Não se preocupe.
Vai ficar tudo bem.
— É um bom rapaz, Tom — disse o Pai, a sua voz cheia de gratidão.
— Um bom rapaz! — interrompeu Morgan. — Ele é tudo menos isso. Foi
este o filho que entregou a um mago! Sete filhos teve e não ofereceu
nenhum à Igreja!
— Oh! Lamento! Lamento muito! — exclamou a voz do Pai, angustiada.
— Mas nenhum dos meus moços tinha vocação. Nenhum quis ser padre.
Esforcei-me por encontrar um oficio para cada um deles, e quando
chegou ao último dos meus filhos, a mãe dele quis que fosse aprendiz de
mago. Opus-me fortemente e discutimos por causa disso mais do que
alguma vez discutimos antes.
Mas acabei por ceder, porque a amava e não podia negar-lhe o que ela
tanto queria. Perdoe-me! Fui fraco e pus o amor terreno acima do meu
dever para com Deus!
— Realmente o fez! — exclamou Morgan em voz alta. — Não existe
perdão para alguém como você, e agora terá de sofrer as dores do
Inferno. Sente as chamas começarem a te lamber a carne? Sente o calor
começar a aumentar?
— Não, Senhor! Por favor! Por favor! A dor é insuportável! Por favor,
poupe-me. Farei tudo! Tudo!
Pus-me em pé, cheio de raiva. Morgan estava a fazer isto ao Pai. A levar
o Pai a acreditar que estava no Inferno. A fazê-lo sentir uma dor terrível.
Não podia permitir que continuasse.
— Não lhe dê ouvidos, Pai! — gritei. — Não existem chamas. Não existe
dor. Vá em paz! Vá em paz! Procure a luz! Procure a luz!
Dei quatro passos rápidos para a esquerda da mesa e, com todas as
minhas forças, levantei o bordão na direção da figura encapuzada e
desferi-lhe um golpe terrível.
Sem articular uma palavra, caiu para a direita e ouvi a cadeira tombar
nas lajes. Rapidamente, tirei do bolso a caixa de mechas e o toco de
vela. Momentos depois, conseguira acender a vela. Levantei-a e olhei à
minha volta. A cadeira tombara de lado e havia uma capa preta sobre
ela que chegava às lajes. Mas nem sinal de Morgan! Espetei com o meu
bordão mas estava tão vazia quanto parecia. Ele eclipsara-se!
Reparei então em algo em cima da mesa. A madeira estava seca como
um osso e não havia qualquer vestígio da água que parecera escorrer e
empoçar ali, mas estava um envelope preto no lugar onde se encontrara
o castiçal de latão.
Pousando a vela na borda da mesa, estendi o braço e peguei no
envelope. Estava lacrado, mas podiam ler-se as palavras:
Ao Meu Novo Aprendiz, Tom Ward
Rasguei o envelope e desdobrei a folha de papel lá dentro.
Bem, já viu do que sou capaz. E o que acabei de fazer, posso
perfeitamente repetir. Aprisionei o seu pai no Limbo. Assim, posso
alcançá-lo sempre que me aprouver e fazê-lo acreditar em tudo o que eu
quero. Não existe limite para a dor que posso lhe infligir.
Se quer salvá-lo disso, obedeça a minha vontade. Primeiro, preciso de
algo da casa de Gregory. Lá em cima no sótão, fechado dentro da sua
escrivaninha, há uma caixa de madeira e dentro dela um grimoire, que é
uma espécie de livro de fórmulas e rituais poderosos. Está encadernado
em couro verde e tem um pentagrama prateado gravado na capa. É
meu. Traga-o.
Segundo, não conte a ninguém o que viu. Terceiro, tem que aceitar que
agora você é meu aprendiz, obrigado a me servir por um período de
cinco anos a partir deste dia senão o seu pai sofrerá.
Em sinal da sua aceitação, bata três vezes no tampo da mesa.
A porta está aberta e, seja qual for a sua decisão, é livre para ir. A
escolha é sua.
Morgan G.
Não suportei a idéia do espírito do Pai em tormento. Mas também não
queria ser aprendiz de Morgan. Tive relutância em bater na mesa, mas
sempre podia ganhar algum tempo. Morgan iria pensar que eu aceitara
as suas exigências e pouparia o Pai ao sofrimento por ora, enquanto
consultava o Mago. Ele saberia qual a melhor atitude.
Respirei fundo e bati três vezes na mesa. Sustive a respiração e pus-me
à escuta, mas não houve qualquer reconhecimento. O quarto estava
absolutamente silencioso. Experimentei a porta e ela abriu-se. Não dera
por isso, mas o ferrolho fora recolhido. Voltei à mesa, peguei na minha
caixa de mechas, apaguei a vela e guardei ambas nos bolsos. Depois,
agarrando no meu bordão, saí do quarto e abri a porta da frente.
Quase caí de espanto. Era pleno dia! O sol ofuscava, refletindo-se na
neve e passavam pelo menos duas horas da alva! Parecia que estivera
apenas uns quinze minutos no quarto com Morgan, no entanto,
decorrera o mesmo número de horas.
Não encontrava explicação para tal. O Mago dissera-me que Morgan era
um homem perigoso que lidava com o escuro. Mas o Mago não referira
que ele era capaz daquilo que eu vira. Morgan era um esconjurador
poderoso e perigoso com verdadeiros poderes mágicos e estremeci só de
pensar em ter de voltar a enfrentá-lo. Momentos depois arrastava-me
pela neve funda o mais depressa que podia, subindo a colina em direção
a casa do Mago.
CAPÍTULO 13
CILADA E TRAIÇÃO
A casa não tardou a surgir mesmo lá à frente, a fumaça castanha que se
elevava dos tubos da chaminé a dizer-me que lá dentro me esperavam
acolhedoras lareiras.
Bati na porta de trás. A minha chave abriria a maior parte das
fechaduras, mas não a usei. Como estivera fora algum tempo, pareceu-
me mais respeitoso esperar que me convidassem a entrar. Bati três
vezes antes de a porta finalmente ser aberta por Meg, que me sorriu
antes de se afastar para me receber.
— Sai depressa da neve, Tom! — exclamou. — É
bom te ver de volta.
Uma vez lá dentro, retirei a capa e o casaco de pele de borrego, encostei
o bordão ao canto e sacudi a neve das botas.
— Sente-se — disse Meg, conduzindo-me pelas lajes até à chaminé. —
Está tremendo de frio. Vou trazer uma tigela de sopa quente para te
aquecer os ossos. Terá de servir por ora — mais tarde prepararei uma
bela refeição.
Eram mais tremedeiras do que arrepios, incomodado pelo que
acontecera no quarto de Morgan, mas, aos poucos, consegui acalmar.
Obedeci, vindo aquecer as mãos na chaminé, vendo as minhas botas
começarem a fumegar.
— É bom ver que ainda tem todos os dedos! —
comentou Meg.
Sorri.
— Onde está Mr. Gregory? — indaguei, perguntando-me se fora
chamado a resolver algum assunto de mago. Esperava que tivesse, pois
isso significaria que estava de novo em forma.
— Ainda está de cama. Ele agora precisa repousar o máximo possível.
— Mas ainda não se notam grandes melhoras?
— Vai melhorando aos poucos — respondeu Meg.
— Mas ainda demorará o seu tempo. Estas coisas não podem ser
apressadas. Tente não o incomodar ou sobre-carregar demais. Ele
precisa descansar e dormir o mais que puder.
Trouxe uma tigela fumegante com canja de galinha, de modo que lhe
agradeci e a bebi devagar, sentindo que começava a aquecer por dentro.
— Como está o seu pobre pai? — perguntou-me subitamente, quando se
sentou na cadeira de balanço. —
Já está melhorando?
Fiquei surpreendido por se ter lembrado, e a pergunta fez-me vir de
novo as lágrimas aos olhos.
— Ele morreu, Meg — informei-a. — Mas esteve muito doente.
— É pena, Tom. Lamento muito. Sei o que é perder a família. .
Senti a dor de perder o Pai apertar-me o estômago e pensei no que
Morgan fizera ao espírito dele. O Pai não merecia aquilo. Não podia
deixar que voltasse a acontecer. Tinha de agir. Meg remeteu-se ao
silêncio e olhou para as chamas.
Passado um tempo, fechou os olhos e começou a canta-rolar uma
melodia muito baixinho entre dentes. Quando terminei a sopa, fui
colocar a tigela em cima da mesa.
— Obrigado, Meg. Estava muito boa — disse-lhe.
Não respondeu e pareceu dormitar. Era algo que fazia com frequência,
adormecer na cadeira de balanço perto da chaminé.
Não sabia o que fazer de seguida. Tivera esperança de falar com o meu
mestre a respeito de Morgan, mas ele não estava suficientemente bem
para ser incomodado com o assunto. Não queria perturbá-lo e fazê-lo
piorar. Talvez enquanto ele estivesse a dormir eu pudesse ir procurar o
seu grimoire; ver se estava onde Morgan dissera. Talvez al-go nele me
ajudasse a decidir o que fazer. Uma coisa era certa: com o meu mestre
tão doente e Alice desaparecida, estava por minha conta, e cabia-me
tomar a atitude certa em relação ao meu pai. Ele era o mais importante,
e tinha de fazer algo para acabar com o seu sofrimento às mãos de
Morgan. Começaria por procurar o grimoire.
O Mago estava lá em cima a dormir e podia não ter melhor oportunidade
de o fazer. Uma parte de mim sentia-se mal só de pensar em levá-lo
sem avisar o Mago. Mas as explicações teriam de ficar para mais tarde.
O Pai era tudo o que importava naquele momento. Não suportava a idéia
de ele voltar a ser torturado por Morgan.
Mas quando ia sair da cozinha, Meg abriu de repente os olhos e
debruçou-se para espevitar o fogo.
— Vou num instante ver Mr. Gregory — comuniquei-lhe.
— Não, Tom, por enquanto não podemos incomodá-lo — disse-me. —
Fique aí sentado e aqueça-se depois da longa caminhada que fez no frio.
— Bem, primeiro vou buscar o meu livro de notas no gabinete de
trabalho — referi.
Mas dirigi-me à sala de visitas e não ao gabinete de trabalho. Se o Mago
continuava de cama, Meg ainda não tomara o chá de ervas. Precisava
que ela dormisse um pouco a fim de poder ir à procura do grimoire, e o
chá de ervas era a maneira mais fácil de fazê-lo. Retirei então a garrafa
de vidro castanho do armário e enchi dois centímetros da bebida na
xícara. Depois fui à cozinha e comecei a aquecer a água.
— O que é isto? — perguntou Meg com um sorriso, quando estendi a
xícara na sua direção.
— É chá de ervas, Meg. Beba-o. Impedirá o frio de se lhe entranhar nos
ossos.
O único aviso que tive foi quando o sorriso lhe desapareceu do rosto.
Meg sacudiu-me a xícara da mão e ela desfez-se em pedaços nas lajes
da cozinha. Depois levantou-se, agarrou-me o pulso e arrastou-me para
junto de si.
Tentei afastar-me mas ela era forte demais. Senti que podia me partir o
braço sem grande esforço.
— Mentiroso! Mentiroso! — gritou, o rosto dela a escassos centímetros
do meu. — Esperava mais de você, mas não é melhor do que John
Gregory! Não diga que não te dei uma oportunidade. Revelou-se tal e
qual ele.
Também queria me tirar a memória, não queria, rapaz?
Mas agora lembro-me de tudo. Sei o que era e sei o que sou! Com os
nossos rostos quase a tocarem-se, Meg cheirou-me ruidosamente.
— Também sei o que você é — disse, a sua voz agora pouco mais do que
um murmúrio. — Sei o que está pensando. Conheço os seus mais negros
segredos, aqueles que nem à sua própria mãe contaria.
Os seus olhos estavam cravados nos meus. Não eram pontos de fogo
como os de Mãe Malkin quando tínhamos estado frente a frente na
Primavera, mas pareciam estar a aumentar de tamanho. Ela era uma
bruxa lâmia e o seu corpo mais forte do que o meu, e agora a sua mente
começava a controlar-me também.
— Sei o que podia vir a ser um dia, Tom Ward —
murmurou —, mas esse dia ainda vem muito longe. Não passa de um
rapaz, enquanto que eu ando nesta terra há mais anos do que me
consigo lembrar. Por isso não me venha com nenhum dos truques de
John Gregory, porque os conheço todos. Cada um deles!
Virou-me, de modo que fiquei sem a poder encarar e largou-me o braço,
transferindo rapidamente a mão para o meu pescoço.
— Por favor, Meg! Não fiz por mal — supliquei.
— Queria ajudaá-la. Falei do assunto com Alice. Ela também a queria
ajudar.
— É fácil falar neste momento. Dar-me de beber aquela mistura imunda
era uma forma de me ajudar? Não me parece. Acabaram-se as mentiras,
senão vai ser pior para você!
— Mas não são mentiras, Meg. Lembre-se — Alice vem de uma família
de bruxas. Ela compreendeu-a e sentiu muita pena do que estava a
acontecer. Eu ia falar com Mr. Gregory sobre você e. .
— Pois sim, rapaz! Já ouvi desculpas de sobra! —
proferiu com brusquidão. — Mexa-se para a cave. Vamos ver
se você gosta de estar lá em baixo. É exatamente o que merece. Quero
que saiba aquilo por que passei. Não dormia o tempo todo, sabe.
Acordava constantemente e passava longas horas a pensar, sozinha no
escuro. Fraca demais fraca para me mexer, fraca demais para me pôr
em pé — a tentar desesperadamente lembrar-me de tudo o que você e
John Gregory gostariam que eu esquecesse —
ainda conseguia pensar e sentir, sabendo que iriam ser uns longos
meses tediosos e solitários antes de alguém vir abrir a porta e me deixar
sair. .
A princípio debati-me, esforçando-me ao máximo por resistir, mas em
vão: ela era forte demais. Continuando a prender-me pelo pescoço, fez-
me descer as escadas da cave, os meus pés mal tocando no chão, até
chegarmos ao portão de ferro. Ela tinha a chave e não tardamos a
transpô-lo e descer mais ao subterrâneo.
Não se preocupara com uma vela e, apesar de conseguir dar com o
caminho no escuro muito melhor do que a maioria das pessoas, a cada
esquina ia escurecendo e era mais difícil ver. A idéia da cave lá em baixo
apavorava-me.
Lembrei-me da irmã dela, a bruxa lâmia selvagem, ainda aprisionada no
poço; não queria nem por sombras estar perto dela. Para meu alívio,
quando viramos a terceira esquina, ela obrigou-me a parar junto às três
portas.
Com outra chave, abriu a porta da esquerda, enfiou-me lá dentro e
trancou-a depois. A seguir ouvi-a abrir a cela ao lado da minha e entrar.
Não se demorou muito tempo. Não tardou que a porta batesse ao ser
fechada e começou a subir as escadas. Alguns instantes depois ouviu-se
o som do portão de ferro a fechar-se ruidosamente; mais passos,
tornando-se cada vez mais sumidos; e depois silêncio.
Aguardei alguns minutos para o caso de ela voltar atrás por alguma
razão, depois remexi nos bolsos à procura do coto de vela e da caixa de
mechas. Segundos depois a vela estava acesa e observei a minha cela.
Era pequena, não teria mais de oito passos por quatro, com um monte
de palha ao canto a servir de cama. As paredes eram feitas de blocos de
pedra e a porta fora construída em carvalho forte, com um ralo quadrado
perto do cimo fechado com quatro barras verticais de ferro.
Sentei-me no chão de pedra ao canto a pensar na minha situação. O que
acontecera durante a minha ausência? Tinha a certeza de que o Mago se
encontrava agora na cela ao lado da minha, aquela onde Meg passava os
verões. Que outro motivo levara Meg a entrar ali? Mas como acabara o
Mago sob o poder de Meg? Ainda não se encontrava bem quando eu
saíra de casa. Teria talvez esquecido de dar o chá de ervas a Meg e ela
recuperara a memória? Talvez ela colocasse algo na comida ou na
bebida dele — muito provavelmente a mesma substância que ele usara
todos aqueles anos para a manter dócil.
Mas não era tudo — houvera a influência de Alice.
Estivera a conversar com Meg, a dizer-lhe que provinha de uma família
de bruxas. Por vezes cochichavam as duas.
Do que tinham falado? Se Alice conseguira levar a sua por diante, a dose
do chá de ervas de Meg teria sido reduzida.
Bem, não culpei Alice pelo que sucedera, mas a sua presença em casa
do Mago certamente não ajudara em nada a situação.
Quando eu regressara, Meg limitara-se a fingir estar confusa e a
enganar-me. Dera-me realmente o que chamara «uma oportunidade»?
Se não tivesse tentado impingir o chá de ervas, haveria me tratado de
forma diferente?
E depois fez-se luz. Quando voltara para Anglezarke, viera tão
embrenhado nos meus pensamentos sobre Morgan e o Pai, que fora
completamente cego às evidências —
sinais que via naquele momento com clareza. Meg chamara-me «Tom»,
e não «Billy», pela primeira vez na vida.
E lembrara-se do meu pai. Por que eu não percebera na altura? Deveria
ter ficado de pé atrás. Deixara que o meu coração mandasse na cabeça,
e agora o Condado inteiro corria perigo. Uma bruxa lâmia novamente
livre para vaguear, e nem um mago nem um aprendiz para a impedirem.
O que estava feito estava feito, mas de certa forma conseguia perceber.
Havia boas e más notícias, mas a maior parte era má. Meg cheirara-me
usando os seus poderes de bruxa.
Sabia muito a meu respeito mas esquecera-se de me revistar, senão
teria encontrado a caixa de mechas e a vela. Teria descoberto também a
chave — a chave que podia abrir a maior parte das portas desde que não
fossem muito complexas. Essa era a boa notícia. Podia sair da minha
cela. Podia abrir também a porta da cela do Mago.
A má notícia era que a chave não seria suficiente para me permitir
transpor o portão. De outro modo o Mago não teria uma especial
guardada em cima da estante na biblioteca. E, naquele momento, a
chave estava na posse de Meg. Mesmo que conseguisse tirar-nos das
celas, continuávamos encurralados na cave. Por conseguinte, o que eu
tinha a fazer naquele momento era pensar com clareza. Precisava falar
com o Mago. O meu mestre saberia qual a melhor atitude a tomar.
Usei então a chave para abrir a porta da minha cela.
Não fez muito barulho, mas a porta da cela parecia presa e, não
obstante os meus esforços, abriu-se com barulho, que ecoou para cima e
para baixo nas escadas. Esperava que Meg estivesse lá em cima junto à
lareira da cozinha e não tivesse ouvido. Pegando na vela, vim em bicos
de pés até ao corredor e aproximei-a das grades da cela do Mago.
Espreitei lá para dentro mas não consegui ver muito. Havia uma cama
ao canto e um monte escuro em cima dela.
Era o Mago?
— Mr. Gregory! Mr. Gregory! — chamei através das grades, imprimindo
urgência à minha voz ao mesmo tempo que tentava manter o seu
volume o mais baixo possível.
Veio um gemido cavo da trouxa e moveu-se lentamente. Parecia sem
dúvida o Mago. Ia precisamente chamar de novo quando ouvi um som
súbito vindo lá de baixo nas escadas. Virei-me e escutei. Por um
momento houve silêncio. Depois ouvi-o de novo. Algo vinha subindo as
escadas na minha direção.
Uma ratazana? Não, parecia grande demais para tal.
Subitamente, parou. Teria me enganado? Imaginara simplesmente o
som? O medo consegue pregar peças na mente. Como costumava dizer
o Mago, é importante reconhecer a diferença entre estar acordado e a
sonhar.
Sem me dar conta, sustivera a respiração. Então, quando expirei, o
movimento pelas escadas acima recomeçou. Não conseguia ver para lá
da esquina, de modo que só podia avaliar pelos sons que emitia. Não me
parecia algo a arrastar-se, por isso não podia ser uma bruxa morta que
de alguma maneira conseguira libertar-se. Não era o som de botas, por
isso também não podia ser uma imagem fantasmagórica ou um
fantasma a subir as escadas, ou sequer um ser humano que estivera
escondido lá em baixo por alguma razão. Era um som que nunca antes
na vida escutara.
Algo se movia, depois parava; voltava a mover-se e a seguir estacava
com igual rapidez. Algo que subia a correr em mais do que duas pernas!
Que outra coisa podia ser? Tinha de ser a bruxa lâmia selvagem! Após
anos naquele poço, teria uma necessidade frenética de sangue humano.
E vinha diretamente para mim!
Em pânico, sem pensar, voltei correndo para a minha cela, fechei a porta
e tranquei-a rapidamente. A seguir apaguei a vela — caso contrário ela
veria a luz e seria atraída para ela. Mas estaria ainda assim seguro
dentro de uma cela trancada? Se a bruxa conseguira escapar do poço,
devia ter sido capaz de dobrar as grades. Percebi então de que Meg
podia simplesmente ter libertado a irmã do poço, e por um momento
senti-me um pouco melhor. Mas não tive sequer tempo de suspirar de
alívio. Sabem, lembrei-me de algo que o Mago dissera a respeito do
portão:
«O ferro conseguiria impedir a maior parte deles de passar daqui. .»
A bruxa lâmia era a coisa mais perigosa na cave.
Portanto, se estivesse decidida a escapar, talvez nem o portão de ferro
entrelaçado fosse suficiente para impedi-la por muito tempo! Quanto às
grades de ferro da minha cela, era bom nem pensar. A minha única
esperança era que a bruxa continuasse relativamente fraca depois de
tanto tempo no poço.
Mantive-me perfeitamente imóvel e à escuta, esforçando-me por respirar
silenciosamente. Ouvia-a aproximar-se, correndo e parando, correndo
até ficar cada vez mais perto. Comprimi-me ao canto e parei mesmo de
respirar.
Algo tocou de leve na porta. O contato seguinte com a madeira foi mais
forte e houve um som de arranhar, como se garras afiadas se
estivessem a cravar, tentando firmar-se. Era como se algo estivesse a
marinhar pela porta apoiando-se nas garras. Correra para a minha cela
sem pensar e agora desejava ter-me trancado na outra cela com o
Mago. Talvez o conseguisse acordar e perguntar-lhe o que fazer.
Estava escuro. Muito escuro. Tão escuro que, dentro da minha cela, não
sabia dizer onde terminava a porta e começavam as paredes de cada
lado. Mas o retângulo, cortado pelas quatro barras verticais, era
ligeiramente mais pálido do que as imediações, pelo que tinha de vir
alguma luz das escadas, projetando uma tênue iluminação da parede do
lado de fora da minha cela.
Uma forma deslocou-se através do retângulo. Era em silhueta mas
conseguia vê-la o suficiente para dizer que se tratava de algo
semelhante a uma mão. Ouvi-a agarrar as grades. Mas não dava a
impressão de carne e músculo a entrarem em contato com elas. Ouviu-
se um ruído áspero, quase como se uma lima a raspar no ferro, seguida
de um silvo explosivo de raiva e dor. A bruxa lâmia tocara no ferro e
devia estar a sentir fortes dores. Só a sua vontade a mantinha ali. A
seguir, algo grande deslocou-se pela frente das grades, como o disco de
uma lua escura a eclipsar a luz pálida do outro lado. Só podia ser a
cabeça da bruxa. Espreitava-me através das grades mas estava escuro
demais para lhe ver os olhos!
Outro ruído áspero e a porta gemeu e chiou. Tremi de medo. Sabia o
que estava acontecendo. Ela tentava dobrar as grades ou arrancá-las da
porta de madeira.
Se tivesse comigo o bordão de sorveira, teria batido na bruxa através
das grades e talvez a afastasse. Mas não tinha nada. A minha corrente
de prata encontrava-se no meu saco, mas não me seria útil ali. Não
dispunha de nada que pudesse usar para me defender.
A porta gemeu e chiou quando a pressão sobre ela aumentou e ouvi-a
começar a ceder. A bruxa voltou a bufar e emitiu um som fungoso,
resmungado. Estava ansiosa por lá entrar, desesperada por beber o meu
sangue.
Mas, para meu alívio, ouviu-se um súbito ressoar de metal vindo lá de
cima das escadas e a lâmia largou as grades e desapareceu de vista.
Ouvi o eco de passos em aproximação e a luz de uma vela tremulou na
parede do outro lado das grades.
— Para trás! Para trás! — ouvi Meg gritar do lado de fora da porta,
seguido do som da lâmia selvagem a correr pelas escadas abaixo.
Depois houve um tremular da luz da vela e o ruído de sapatos bicudos
seguindo a criatura até lá abaixo. Fiquei onde estava, acocorado ao
canto. Dali a um tempo os passos voltaram a aproximar-se, ouvi um
balde ser pousado no chão e uma chave a rodar na fechadura da minha
cela.
Mesmo a tempo, antes de Meg abrir a porta, voltei a guardar o toco de
vela e a caixa de mechas nos bolsos.
Ainda bem que não me trancara na cela do Mago senão ela teria sabido
da minha chave.
Meg surgiu enquadrada pela ombreira, segurando a vela. Com a outra
mão, fez-me sinal para me aproximar dela. Não me mexi. Estava
assustado demais.
— Venha aqui, rapaz — disse-me, rindo para si mesma. — Não tenha
medo. Não vou te morder!
Ajoelhei-me, mas as minhas pernas estavam vacilantes demais para me
aguentar de pé.
— Quer vir aqui, rapaz? Ou tenho de te ir buscar?
— perguntou Meg. — Olhe que a primeira é mais fácil e menos dolorosa.
.
Desta vez, o terror fez-me levantar. Até podia ser
«doméstica», mas Meg continuava a ser uma bruxa lâmia cujo alimento
preferido provavelmente era o sangue. O
chá de ervas fizera-a esquecê-lo. Mas naquele momento sabia
exatamente o que era. E sabia o que queria. Havia compulsão na sua
voz; uma energia que me sugou a vontade e fez atravessar a cela até à
porta aberta.
— Sorte a sua eu ter decidido alimentar Mareia antes — referiu,
apontando para o balde.
Olhei para lá. Estava vazio. Não sei o que contivera, mas via-se uma
película de sangue no fundo.
— Por pouco não ficava para depois, mas lembrei-me então de quão
desesperada ela estava por te apanhar, sendo você tão jovem. John
Gregory não tem nem metade do atrativo — disse-me com um sorriso
fraco e cruel, indicando com a cabeça a cela ao lado e confirmando-me
que o Mago estava realmente lá.
— Ele gosta muito de você — apelei a Meg, em desespero. — Sempre
gostou. Por isso, peço-lhe que não o trate desta maneira! Na realidade,
ele ama-a. Ele ama-a.
de verdade! — afirmei, repetindo as palavras. — Ele chegou mesmo a
escrevê-lo num dos seus livros de notas.
Não era suposto eu descobri-lo, mas descobri e até o li. É
mesmo verdade.
Lembrava-me palavra por palavra do que ele escrevera. . «Como podia
colocá-la no poço, quando percebi que a amava mais do que a minha
própria alma.»
— O amor! — escarneceu Meg. — O que sabe um homem destes sobre o
amor?
— Foi quando se viram pela primeira vez e ele estava para a meter num
poço porque era o seu dever. Ele não foi capaz, Meg! Não conseguiu
fazê-lo porque a amava demais. Contrariava tudo o que lhe tinham
ensinado e em que acreditava, mas ele salvou-a do poço! Ele só lhe deu
o chá porque não havia outra escolha. O poço ou o chá — ele escolheu o
que lhe pareceu melhor, porque gosta muito de você.
Meg bufou de raiva e olhou para o fundo do balde como se quisesse
lambê-lo até ficar limpo.
— Bem, isso foi há muito tempo e ele tem sem dúvida uma forma
curiosa de o mostrar — disse. — Talvez agora consiga entender o que é
estar trancada aqui embaixo metade do ano. Porque agora não há
pressa. Vou demorar muito tempo a pensar no que fazer exatamente
com ele. Quanto a você, não passa de um rapaz e não te culpo assim
tanto. Não pode saber, porque foi assim que ele te ensinou. E é uma
vida dura. Um ofício difícil.
«Até te deixaria partir — prosseguiu ela. — Mas você não conseguiria
ficar quieto, não é? Está na sua natureza. Na maneira como foi educado.
Iria pedir ajuda.
Haveria de querer salvá-lo. As pessoas daqui não gostam muito de mim.
Talvez eu lhes tenha dado boas razões no passado, mas a maior parte
merecia o que lhes aconteceu.
Viria uma turba atrás de mim. Muitos para eu poder fazer alguma coisa.
Não, se te deixasse sair, seria o meu fim.
Mas vou prometer-te uma coisa. Não te darei à minha irmã. Não o
merece.
Dito aquilo, fez-me sinal para voltar lá para o fundo; depois fechou a
porta e trancou-a de novo.
— Mais tarde trago algo que comer — disse-me através das grades. —
Talvez nessa altura já tenha pensado no que é melhor fazer com você.
Passaram horas e horas antes de ela regressar e nesse intervalo tive
chance de pensar num plano.
Pus-me à escuta com muita atenção e ouvi Meg começar a descer as
escadas. Lá fora devia estar precisamente a começar a escurecer.
Imagino que viesse me trazer uma ceia antecipada. Só esperava que não
fosse a última. Ouvi-a destrancar o portão e o som metálico dele a abrir-
se. Concentrei-me então ao máximo, registrando o tempo que decorria
entre a segunda pancada do portão a ser fechado e o retomar do tic,
tic dos seus sapatos bicudos.
Tinha dois planos. O segundo estava cheio de riscos, por isso só
esperava que o primeiro funcionasse.
Vislumbrei luz de vela através das grades e Meg pousou alguma coisa do
lado de fora da minha cela, correu a fechadura da porta e abriu-a. Era
um tabuleiro com duas tigelas de sopa fumegante e duas colheres.
— Estive pensando, Meg — disse-lhe, experimentando o meu primeiro
plano, que era persuadi-la com palavras. — Algo que poderia tornar tudo
muito melhor pa-ra ambos. Por que não me entrega o governo da casa?
Eu podia acender as lareiras e ir buscar a água. Podia ajudar muito. E o
que fará quando Shanks vier entregar as mercearias? Se for a Meg a
abrir a porta, ele saberá que está livre. Mas se for eu a abrir, ele nunca
suspeitará. E se vier alguém para resolver assuntos de mago, eu podia
simplesmente dizer que ele ainda está doente. Se me deixasse ir abrir a
porta, levaria muito tempo até que alguém soubesse que está em
liberdade. Teria muito tempo para decidir o que fazer com Mr. Gregory.
Meg sorriu.
— Coma a sua sopa, rapaz.
Baixei-me, tirei a tigela do tabuleiro e peguei numa das colheres.
Quando me endireitei, Meg mandou-me recuar e começou a fechar a
porta da cela.
— Uma bela tentativa, rapaz — disse —, mas quanto tempo passaria
antes de tentar libertar o seu mestre? Não muito, aposto!
Meg trancou a porta. O meu primeiro plano falhara. Não tinha outra
alternativa senão tentar o segundo.
Pousei a tigela da sopa no chão e retirei a minha chave do bolso. Ouvia
já Meg a rodar a sua chave na fechadura da cela do Mago. Esperei,
arriscando, não perdendo ainda a esperança.
Eu tinha razão! Ela entrara na cela do Mago. Calculei que estivesse fraco
demais ou grogue para conseguir se levantar e aproximar da porta. Ela
podia ter mesmo de alimentá-lo. Por isso, sem perder tempo. Abri a
fechadura da minha porta, empurrando-a cuidadosamente e saí cá para
fora. Felizmente não prendeu nem fez barulho desta vez.
Ponderara tudo cuidadosamente, pesando os riscos na minha mente.
Uma opção teria sido ir direito à cela do Mago e tentar enfrentar Meg.
Em circunstâncias normais, juntos, o meu mestre e eu teríamos estado à
altura dela, mas desconfiava que o Mago se encontrava fraco demais
para ajudar. E não tínhamos nada com que lutar contra ela: nem bordão
de sorveira nem corrente.
Resolvi então tentar ir buscar a corrente de prata ao meu saco no
gabinete de trabalho e tentar aprisionar Meg.
Para o conseguir, contava com duas coisas. Uma era que a lâmia
selvagem não subisse as escadas correndo e me apanhasse antes de eu
ter tempo de transpor o portão de ferro. A segunda era Meg não ter
chegado a trancar o portão. Daí a minha enorme concentração. O portão
abrira-se com ruído e os saltos tinham começado quase de imediato a
fazer barulho ao descerem. Não tivera tempo de trancá-lo. Ou pelo
menos assim me parecia!
Avancei primeiro na ponta dos pés, um passo de cada vez, e olhava
constantemente por cima do ombro: para a cela, a fim de ver se Meg
vinha a sair; depois para a esquina das escadas, a fim de ver se a lâmia
selvagem Márcia me seguia. Tinha esperança de que estivesse
demasiado empanturrada depois da refeição da manhã. Ou que não
subisse da cave enquanto Meg ali estivesse. Talvez receasse a irmã.
Descera sem dúvida rapidamente as escadas an-te a ordem de Meg.
Alcancei finalmente o portão e agarrei o ferro frio.
Estava trancado? Para meu alívio, cedeu e abri-o, tentando que o
movimento fosse o mais suave possível. Mas o Mago soubera o que fazia
quando o mandara colocar nas escadas. Houve um ruído e a casa inteira
lá em cima pareceu repicar como um sino.
Imediatamente Meg abandonou a cela do Mago e subiu as escadas
correndo na minha direção, os braços erguidos, os dedos abertos e
arqueados como garras. Por um momento fiquei estático. Nem queria
acreditar na rapidez com que ela se movia. Mais dois segundos e teria
sido tarde demais, mas corri também. Corri e corri sem olhar para trás.
Até ao topo das escadas, depois atravessando a cozinha, consciente de
que Meg vinha mesmo atrás de mim, ouvindo os seus passos em
perseguição e esperando sentir a qualquer instante as unhas dela
cravarem-se na minha pele. Não havia tempo para ir buscar o meu saco
ao gabinete de trabalho. Teria sido impossível abri-lo e retirar a corrente
de prata a tempo. Junto à porta de trás, arrebanhei a minha capa, o
casaco e o bordão, destranquei a porta e saí disparado para o frio gélido.
Não me enganara. Era crepúsculo, mas havia ainda muita luz para ver.
Olhava constantemente para trás mas nem sinal de perseguição. Desci a
ravina o mais depressa que consegui, mas não foi tarefa fácil. A neve
começava a ficar dura sob os pés e havia-a com abundância.
Quando cheguei ao fundo da vertente, estaquei e olhei de novo para
trás. Meg não me seguira. Fazia um frio de rachar e o vento soprava de
norte com rajadas, de modo que vesti o meu casaco de pele de carneiro,
coloquei a capa por cima. Depois parei para pensar, a respiração saindo-
me em vapor no ar frio.
Senti-me um covarde por deixar assim o Mago à mercê de Meg, e tinha
de compensar o que fizera. Impunha-se salvar o Mago e arrancá-lo das
garras dela. Mas pa-ra isso precisava de ajuda. E essa estava perto: o
irmão do Mago, Andrew, vivia e trabalhava em Adlington, e já me
ajudara antes em Priestown. Era o serralheiro que fizera uma chave para
o Mago abrir o Portão de Prata que aprisionara o Destruidor. Seria bem
mais fácil fazer uma chave para o portão de ferro na cave do Mago. E
era exatamente disso que eu necessitava.
Ia ter de voltar a entrar sorrateiramente na casa de Inverno, transpor o
portão e tirar o Mago da cela, o que era mais fácil dizer do que fazer.
Havia uma lâmia selvagem à solta — já para não falar de Meg.
Tentando não pensar muito nas dificuldades pela frente, arrastei-me pela
neve em direção a Adlington. Era sempre a descer. Mas em breve teria
de regressar.
CAPÍTULO 14
PRESOS PELA NEVE
As ruas empedradas da aldeia de Adlington estavam cobertas por quinze
centímetros ou mais de neve. Na luz que desaparecia, as crianças
tinham saído em força, encantadas, rindo, guinchando e berrando,
deslizando ou atirando bolas de neve umas às outras. Os adultos
estavam menos felizes. Passaram por mim duas mulheres todas
embrulhadas em xales, pisando nervosamente o passeio coberto de
neve, cabisbaixas, vendo onde punham os pés.
Levavam cestos vazios e desciam em direção a Babylon Lane para
algumas compras de última hora. Segui na mesma direção até chegar à
loja de Andrew.
Quando levantei a tranca e empurrei a porta, tiniu uma campainha. A
loja estava vazia mas ouvi alguém aproximar-se vindo da parte de trás.
Soou o tic, tic, tic de sapatos bicudos e, para meu espanto, Alice entrou
e aproximou-se do balcão, um enorme sorriso no rosto.
— Que bom te ver, Tom! Estava curiosa quanto ao tempo que demoraria
a me encontrar. .
— O que faz aqui? — inquiri, espantado.
— Trabalho para Andrew, claro! Deu-me trabalho e casa — retorquiu
com um sorriso. — Olho pela loja para ele poder estar mais tempo na
oficina. Faço a maior parte da comida e das limpezas também. Andrew é
um bom homem.
Permaneci um momento em silêncio e Alice deve ter percebido a
expressão no meu rosto porque o sorriso desapareceu rapidamente e
pareceu preocupada. — O seu pai. . — disse.
— Quando cheguei lá, o Pai já tinha falecido. Foi tarde demais, Alice.
Não consegui dizer mais nada porque me embargou a voz e fiquei com
um nó na garganta. Mas logo Alice se aproximou e colocou a mão no
meu ombro.
— Oh, Tom! Lamento muito — disse-me. — Vamos lá para trás e se
aqueça na lareira.
A sala de estar era confortável, com um sofá, duas poltronas cômodas e
um generoso fogo de carvão aceso na grelha.
— Gosto de uma boa lareira — afirmou Alice, toda feliz. — Andrew é
mais cuidadoso com o carvão do que eu, mas foi fazer um serviço e só
voltará muito depois de escurecer. Patrão fora. .
Apoiei o meu bordão no canto antes de me afundar no sofá, que ficava
defronte da lareira. Em vez de se sentar ao meu lado, Alice ajoelhou
junto à lareira, os joelhos no carpete, pelo que o seu perfil esquerdo
estava virado para mim.
— Por que deixou a casa dos Hursts? — indaguei.
— Tive de ir embora — referiu Alice, carregando o cenho. — Morgan não
parava de insistir para que o ajudasse de uma certa maneira, mas não
queria explicar bem como. Guarda ressentimentos. Tinha um plano
qualquer para se vingar do Velho Gregory.
Pensei que provavelmente saberia do que ela estava a falar mas decidi
não lhe dizer nada. Prometera a Morgan que não contaria a ninguém os
seus planos. Ele era um necromante que usava os espíritos para
descobrir as coisas. Não podia correr o risco. Não podia contar a Alice
não fosse ele descobrir e voltar a fazer o Pai sofrer.
— Ele não me deixava em paz — continuou Alice.
— Foi por isso que vim embora. Não suportava vê-lo nem mais um
minuto. Então lembrei-me de Andrew. Mas chega de falar de mim, Tom.
Lamento saber do seu pai.
Quer falar do assunto?
— Foi difícil, Alice. Nem sequer pude ir ao funeral do Pai. E a Mãe
desapareceu e ninguém sabe onde ela está. É capaz de ter voltado para
a sua própria terra e nunca mais vou tornar a vê-lar. Sinto-me tão
sozinho. .
— Olha que tenho estado sozinha a maior parte da minha vida, Tom. Por
isso conheço a sensação. No entanto, temos um ao outro, não temos? —
perguntou, debruçando-se para me pegar na mão. — Estaremos sempre
juntos. Nem sequer o Velho Gregory o conseguirá impedir!
— O Mago não está em posição de fazer nada de momento — afirmei. —
Quando regressei, Meg é que levava vantagem. Ele é que está trancado
agora. Preciso que Andrew me faça uma chave para poder tirar o Mago
dali. Preciso da sua ajuda. Você e Andrew são as únicas pessoas a quem
posso recorrer.
— Parece-me que ele teve finalmente o que merecia — comentou Alice,
retirando a sua mão da minha, um leve sorriso a fazer-lhe subir os
cantos da boca. — Provou uma boa dose do seu próprio veneno!
— Não posso simplesmente deixá-lo ali — apelei a Alice. — E então a
outra lâmia? A selvagem? A irmã de Meg? Ela saiu do poço e vagueia
pelas escadas do outro lado do portão. E se ela consegue sair da casa?
Poderia vir até aqui, à aldeia. Ninguém estaria seguro e vivem aqui
muitas crianças.
— E então Meg? — perguntou Alice. — Não é tão simples assim, não é?
Não merece ir para um poço. Também não merece passar o resto da
vida a beber chá de ervas! Dê lá por onde der, isso tem de acabar.
— Isso quer dizer que não vai ajudar?
— Eu não disse isso, Tom. Só que tem de ser muito bem pensado, é
tudo.
Pouco depois de escurecer, Andrew regressou. Eu estava à espera dele
na loja quando entrou.
— O que foi desta vez, Tom? — perguntou, sacudindo a neve das botas e
esfregando as mãos uma na outra para que o sangue voltasse a circular
devidamente. — O
que quer aquele meu irmão agora?
Andrew fazia-me sempre lembrar um espantalho bem vestido, os
membros desengonçados e estranhos, mas era simpático e bonacheirão
e realmente muito bom no seu ofício.
— Ele está de novo em apuros — contei a Andrew. — Preciso que me
faça uma chave para o podermos tirar de lá. E é muito urgente.
— Uma chave? Uma chave para o quê?
— O portão nas escadas da cave em casa dele. Meg aprisionou-o lá em
baixo.
Andrew abanou a cabeça e deu um estalido com a língua.
— Não posso dizer que me surpreenda. Mais dia menos dia tinha de
acontecer. Só me espanta que tenha demorado tanto tempo! Sempre
achei que Meg acabaria por levar a melhor sobre ele. Ele preocupa-se
demais com ela, sempre foi assim. Deve ter baixado a guarda.
— Mas vai ajudar?
— Claro que vou. Ele é meu irmão, não é? Mas andei no frio a maior
parte do dia e não consigo fazer nada enquanto não aquecer os ossos e
aconchegar o estômago com alguma comida quente. Vai contar-me tudo
depois de comermos.
Não provara muito os cozidos de Alice, à exceção dos coelhos
preparados nas brasas de uma fogueira ao ar livre, mas a avaliar pelo
cheiro apetitoso a guisado que vinha da cozinha, preparava-me para um
verdadeiro petisco. Não fiquei decepcionado.
— Isto está mesmo muito bom, Alice — disse, atacando logo.
Alice sorriu.
— Sim, melhor do que a porcaria que me deu para comer em
Anglezarke.
Rimos, depois comemos em silêncio até não restar uma migalha de
comida. Foi Andrew quem falou primeiro.
— Não tenho uma chave daquele portão — disse-me. — A fechadura e a
chave foram feitas por um serralheiro de Blackrod há uns bons quarenta
anos ou mais.
Entretanto já morreu mas nenhum se lhe compara na fama, por isso
estamos perante um mecanismo muito complexo. Teria de ir lá na casa
ver a fechadura. A maneira mais fácil seria tentar arrombá-la para você
poder transpor o portão.
— Podemos lá ir esta noite? — inquiri.
— Quanto mais depressa, melhor — disse-me. —
Mas gostaria de saber exatamente o que vamos enfrentar.
Onde é mais provável Meg estar?
— Ela costuma dormir numa cadeira de balanço junto à lareira na
cozinha. Mas mesmo que conseguíssemos passar por Meg em segurança
e transpor o portão, há outro problema. .
Falei-lhe então da bruxa lâmia selvagem à solta na cave. Ele abanava
constantemente a cabeça como se não pudesse acreditar ao ponto a que
as coisas haviam chegado. — Como pensa tratar dela? Vai usar aquela
sua corrente de prata?
— Não a tenho comigo — informei-o. — Está no meu saco. E
provavelmente o saco continuará no seu lugar habitual no gabinete de
trabalho do Mago. Mas tenho o meu bordão. É feito de madeira de
sorveira e se tiver sorte manterá uma lâmia à distância.
Andrew abanou a cabeça e não pareceu muito satisfeito.
— Não se lhe pode chamar um plano, Tom. É perigoso demais. Não
consigo arrombar uma fechadura enquanto você repele duas bruxas,
mas existe outra maneira
— disse-me. — Podíamos pedir a uma dúzia de homens da aldeia ou
mais para nos acompanharem e tratarem de Meg de uma vez por todas.
— Não — insurgiu-se Alice. — Assim não dá. É
cruel demais. Sabia que estava se lembrando da altura em que a turba
de Chipenden atacara a casa onde ela vivia com a tia, Lizzie dos Ossos.
Alice e a tia tinham-nos pressentido e fugido mesmo a tempo, mas
ardera tudo e tinham perdido todos os seus pertences.
— Mr. Gregory não havia de querer isso, tenho certeza — afirmei.
— Lá isso é verdade — concordou Andrew. — É a maneira mais segura,
mas provavelmente John nunca me perdoaria. Pronto, parece que
voltamos ao primeiro plano.
— Está se esquecendo de uma coisa — referiu Alice. — Uma bruxa
daquelas não consegue cheirá-lo à distância, Tom. Não funciona com o
sétimo filho de um sé-
timo filho, não é? Muito provavelmente eu também escaparia — isto é,
se decidir ir com você. Mas com Andrew é diferente. Mal ele se aproxime
da casa ela cheirá-lo-á e estará à espera.
— Se ela estiver dormindo, talvez consigamos passar — alvitrei, mas não
me sentia muito confiante.
— Mesmo que adormecida, continua a ser um risco muito grande —
frisou Alice. — Só devíamos ir nós dois, Tom. Podíamos encontrar a
chave e não seria sequer preciso arrombar a fechadura. Onde é que o
Mago a costuma guardar?
— Normalmente em cima da estante, mas Meg pode perfeitamente tê-la
consigo.
— Bem, se não estiver lá, vamos buscar o seu saco no gabinete de
trabalho e a aprisionamos com uma corrente de prata para podermos lhe
tirar a chave. De qualquer forma, não vamos precisar de você, Andrew.
Eu e Tom damos conta do recado.
Andrew sorriu.
— Seria muito bom — disse. — Gosto de manter distância daquela casa
e da sua cave. Mas não posso permitir que vocês vão sozinhos sem
algum apoio. O melhor é eu dar-lhes algum avanço e seguir mais tarde.
Se não aparecerem à porta dentro de meia hora, então volto a Adlington
e trago uma dúzia de matulões da aldeia. John terá depois de enfrentar
as consequências disso.
— Está bem — acedi. — Mas quanto mais penso no assunto, mais me
convenço que entrar pela porta de trás é arriscado demais — comentei
com Alice. — Conforme disse, à noite Meg dorme na cozinha, numa
cadeira junto à chaminé. Vai ouvir-nos e teremos de passar por ela para
chegar ao gabinete de trabalho. A porta da frente seria ligeiramente
melhor mas continua a ser um grande risco acordá-la. Podíamos entrar
pela janela de um dos quartos da parte de trás. O melhor fica no piso
logo abaixo do sótão, onde a escarpa está muito perto do parapeito.
Os fechos das janelas dos quartos estão quase todos enferrujados ou
partidos. Acho que conseguiríamos chegar lá, forçar a janela e entrar.
— Isso é uma loucura — protestou Andrew. — Já estive naquele quarto e
vi o intervalo entre a escarpa e a saliência. É largo demais. Além disso,
se está preocupado em enfiar uma chave na fechadura da porta de trás,
imagina só o barulho que faria a arrombar uma janela!
Alice sorriu, como se eu tivesse dito alguma tolice, mas logo lhe fiz
desaparecer o sorriso do rosto.
— Meg não nos ouviria se alguém batesse com força n porta de trás no
preciso instante em que eu forçasse a janela. . — sugeri.
Vi a boca de Andrew abrir-se ao perceber lentamente da minha
sugestão.
— Não — disse —, você não pode estar a querer. .
— Por que não, Andrew? — perguntei-lhe. — Afinal, é o irmão de Mr.
Gregory. Tem motivos suficientes para ir lá a casa de visita.
— Sim, e podia acabar na cave, prisioneiro com John!
— Não me parece. O meu palpite é que Meg nem sequer abrirá a porta.
Ela não quer que ninguém da aldeia saiba que está livre senão poderia
atrair uma turba. O senhor podia bater à porta quatro ou cinco vezes
antes de se ir embora, dando-me todo o tempo de que preciso para
entrar pela janela.
— Acho que é capaz de funcionar — corroborou Alice. Andrew afastou de
si o prato e não falou por muito tempo.
— Há uma coisa que continua a preocupar-me —
afirmou por fim. — O intervalo entre a escarpa e o parapeito da janela.
Não te vejo a vencê-lo. Estará também escorregadio.
— Vale a pena tentar — disse-lhe —, mas se eu não conseguir, podíamos
voltar mais tarde e arriscar entrar pela porta de trás.
— Talvez fosse mais fácil usando uma tábua — alvitrou Andrew. —
Tenho uma lá atrás que poderia servir.
Alice só teria de firmá-la com o pé no parapeito enquanto você se
arrasta. Não seria fácil, mas tenho também um pequeno pé-de-cabra
muito apropriado para o trabalho —
acrescentou.
— Sempre vale a pena tentar — disse-lhes, procurando aparentar maior
coragem do que sentia.
Ficou decidido, e Alice pareceu determinada em ajudar. Andrew foi
buscar a tábua ao pátio. Quando abrimos a porta da frente para sair,
soprava lá fora uma tempestade de neve. Andrew abanou a cabeça.
— Seria uma loucura irem agora — referiu. — Aquela tempestade de
neve é digna do próprio Golgoth. A neve se acumulará e será perigoso lá
em cima na charneca.
Podiam perder-se e morrer gelados. Não, o melhor é esperarem até
amanhã de manhã. Não se preocupe — disse, batendo-me no ombro. —
Aquele meu irmão é um sobrevivente, como muito bem sabe. Senão não
teria durado tanto. Havia apenas dois quartos por cima da loja; um pa-
ra Andrew e um para Alice, de modo que dormi no sofá na sala de estar,
embrulhado num cobertor. O fogo apagara-se na grelha e primeiro a sala
arrefeceu, depois ficou gélida. Perdi a conta ao número de vezes que
acordei durante a noite. Na última ocasião, a luz da alvorada brilhava
por detrás das cortinas, de modo que decidi levantar-me.
Bocejei, espreguicei-me e andei de um lado para o outro a fim de tirar a
rigidez das articulações. Foi então que ouvi um barulho vindo da frente.
Parecia que alguém batera três vezes na vitrine.
Quando entrei na loja, estava cheia de luz refletida da neve. Tinha-se
sem dúvida acumulado durante a noite e vinha até à base da janela. E
ali, encostado ao vidro, estava um envelope preto. Fora posicionado de
forma a eu poder ver o que estava escrito nele. Vinha dirigido a mim! Só
podia ser de Morgan.
Uma parte de mim queria ir embora dali. Mas percebi depois de que as
ruas começariam a ficar movimentadas e qualquer um de passagem o
veria. Podiam pegar nele e lê-lo, e não estava nada interessado em que
um desconhecido soubesse dos meus assuntos.
Havia tanta neve amontoada junto à porta da frente que não a consegui
abrir e tive de sair pela porta de trás, abrir o portão do pátio e dar a
volta. Só quando me preparava para me enfiar na neve é que me dei
conta de algo muito estranho. Não havia pegadas. A minha frente estava
um monte enorme de neve sem qualquer marca na sua superfície. Como
fora lá parar a carta?
Apanhei-a e, ao fazê-lo, abri um sulco fundo na neve. Tornei a dar a
volta por trás, entrei na cozinha, abri a carta e li-a.
Estarei no átrio da igreja de St. George, bem a oeste da aldeia. Se quer
o melhor tanto para o seu pai como para o seu velho mestre, não me
faça esperar. Não me obrigue a ir procurá-lo, Não irá gostar.
Morgan G.
Não reparara na assinatura da sua última carta, mas naquele momento
chamou-me a atenção. Teria mudado de nome? A inicial do seu apelido
deveria ter sido H de Hurst. Intrigado, dobrei a carta e guardei-a no
bolso. Pensei ir acordar Alice e mostrar-lhe a carta. Talvez devesse levá-
la comigo. Mas a última pessoa que ela quereria ver agora era Morgan.
Referira já que abandonara Moor View Farm porque não o suportava
nem mais um minuto. E, na realidade, sabia que não podia contar a Alice
ainda que quisesse: temia Morgan e o que ele pudesse fazer ao Pai.
Para ser sincero, estava também com medo do que ele me pudesse
fazer. Com tamanho poder, era realmente perigoso: não se lhe podia
desobedecer. Então, coloquei a minha capa, peguei no meu bordão e saí,
encaminhando-me logo para o átrio da igreja.
Era uma velha igreja, quase escondida pelos teixos antigos aglomerados
à sua volta. Algumas das pedras assinalavam as sepulturas dos
habitantes locais que tinham morrido séculos antes. Vi Morgan ao longe,
sua silhueta no céu cinzento, apoiado no seu bordão, o capuz puxado
sobre a cabeça por causa do frio. Estava na parte mais nova do átrio,
onde eram sepultados os que tinham morrido recentemente.
A princípio, não deu pela minha presença. A sua cabeça estava inclinada
na direção de uma sepultura, os olhos fechados como se rezasse. Olhei
também para baixo, de espanto. O átrio tinha alguns centímetros ou
metros de neve, resultado do vento da noite anterior, mas esta sepultura
estava completamente limpa dela, apenas um retângulo de solo úmido.
Quase parecia ter sido aberta recentemente. Olhei à minha volta mas
não vi sinais de uma pá ou de qualquer outra ferramenta que pudesse
ter sido usada para remover a neve.
— Leia a inscrição na pedra! — ordenou Morgan, olhando-me pela
primeira vez.
Fiz o que me mandavam. Tinham sido sepultados quatro corpos na
mesma tumba, empilhados uns por cima dos outros segundo o costume
do Condado, a fim de poupar espaço no átrio da igreja e garantir que os
familiares ficavam juntos na morte. Três eram crianças mas o último
fora a mãe delas. As crianças tinham morrido há cinquenta anos ou
mais, com dois, um e três anos de idade, respectivamente. A mãe
falecera recentemente e o seu nome era Emily Burns, a mulher com
quem em tempos o Mago se envolvera. A mulher que ele roubara a um
dos próprios irmãos, o Padre Gregory.
— Ela teve uma vida dura — afirmou Morgan. —
Viveu a maior parte dela em Blackrod, mas quando soube que estava
morrendo, veio aqui passar os últimos meses com a irmã. Perder assim
três filhos destroçou-lhe o co-ração, e mesmo depois de todos os anos
que passaram nunca se recuperou plenamente. No entanto, os outros
quatro sobreviveram. Dois trabalham em Horwich e constituíram família.
O mais velho abandonou o Condado há dez anos e nunca mais soube
nada dele desde então. Eu fui o sétimo e último. .
Demorei alguns momentos até que tudo se começasse a encaixar.
Recordei o que o Mago lhe dissera no quarto em casa dos Hursts:
«Eu gostava de você e gostava da sua mãe. Amei-a em tempos, como
muito bem sabe.. »
Lembrei-me também de como assinara a carta para mim com a inicial
«G».
— Sim — disse-me. — Pouco depois de eu nascer, o meu pai abandonou
o lar pela última vez. Nunca casou com a minha mãe. Nunca nos deu o
nome. Mas eu assumi-o mesmo assim.
Olhei para ele, espantado.
— Sim — afirmou com um sorriso sinistro. —
Emily Burns era a minha verdadeira mãe. Sou filho de John Gregory.
Morgan olhou para longe quando falou.
— Ele nos abandonou. Deixou os filhos. Não é coisa que um pai deva
fazer, não é?
Quis defender o Mago mas não sabia o que dizer.
Então mantive-me calado.
— No entanto, ele proveu financeiramente o nosso sustento — disse
Morgan. — Devo-lhe isso. Durante uns tempos aguentamos, mas depois
a minha mãe teve um esgotamento e não suportou. Cada um de nós foi
acolhido por uma família. Coube-me tirar a palha mais pequena e acabei
nos Hursts. Mas quando fiz dezessete anos, o meu pai veio me buscar e
aceitou-me como seu aprendiz.
«Durante uns tempos, fui bastante feliz. Há muito que queria um pai e
agora tinha um, por isso esforçava-me por lhe agradar. De início, dei
tudo por tudo, mas acho que não conseguia esquecer o que ele fizera à
minha mãe, e aos poucos comecei a não me deixar enganar. Ao fim de
três anos ele começou a repetir-se. Já sabia tudo o que ele fazia e até
mais. Sabia que podia ser melhor e mais forte do que ele. Sou o sétimo
filho de um sétimo filho de um sétimo filho. Um três vezes sete.
Notei o tom de arrogância na sua voz e isso aborreceu-me.
— Foi por isso que não escreveu o seu nome na parede do quarto em
Chipenden como todos os outros aprendizes? — proferi de repente. — É
por se achar melhor do que o resto de nós? Melhor do que o Mago?
Morgan sorriu afetadamente.
— Não o vou negar. Foi por isso que vim embora para seguir o meu
caminho. Sou principalmente um auto-didata mas continuo a aprender. E
sou capaz de fazer coisas que nem passam pela cabeça daquele velho
tolo. Coisas que ele tem medo de experimentar. Pense só! Conhecimento
e poder como os meus — e a garantia de que o seu pai descansa em
paz. É o que estou a oferecer em troca de uma pequena ajuda. .
Estava abismado com tudo o que Morgan me dizia.
E, a ser verdade, dava uma imagem muito má do Mago.
Sabia já que ele trocara Emily Burns por Meg. Mas acabara de descobrir
que ele também era pai, que tivera sete filhos dela mas que os
abandonara a todos. Sentia-me magoado por dentro e decepcionado.
Não parava de pensar no meu próprio pai, que ficara com a família e
toda a sua vida trabalhara arduamente. E podia agora sofrer por causa
do capricho de Morgan. Estava transtornado e furioso. O cemitério
pareceu saltar para o céu e quase caí.
— Então, meu jovem aprendiz, trouxe-o?
A minha expressão deve ter parecido atrapalhada.
— O grimoire, claro. Pedi que me trouxesse. Tinha esperança de que me
obedecesse senão o seu pobre pai iria sofrer bastante.
— Não consegui ir buscá-lo. Mr. Gregory observa tudo — respondi,
baixando a cabeça.
Claro que não ia contar a Morgan que o meu mestre estava à mercê de
Meg. Se ele sonhasse que o Mago estava fora do caminho podia ir
pessoalmente buscar o grimoire. Sim, o meu mestre podia ter alguns
terríveis segredos obscuros, mas eu continuava a ser seu aprendiz e
respeitava-o. Precisava de mais tempo. Tempo para resgatar o meu
mestre e contar-lhe tudo sobre Morgan. Juntos, havíamos derrotado um
arremessador de pedras; certamente juntos conseguiríamos também
impedir Morgan.
— Preciso de mais tempo — disse-lhe. — Sou capaz de fazê-lo mas terei
de esperar por uma oportunidade.
— Bem, não leve muito tempo. Traga-me o livro na próxima terça-feira à
noite, logo a seguir ao pôr do Sol.
Lembra-se da capela no cemitério?
Anuí.
— Bem, é lá que estarei à espera.
— Não creio que o consiga fazer assim tão depressa.
— Arranje uma maneira! — falou com rispidez. —
E faça sem que Gregory se dê pela sua falta.
— E o que irá fazer com ele? — inquiri.
— Bem, Tom, quando mo trouxer irá descobrir, não é? Não me desiluda!
Se começar a vacilar, pense no seu pobre pai e no que ele pode vir a
sofrer. .
Sabia até onde podia ir a crueldade de Morgan. Vira como ele fizera o
pobre Mr. Hurst chorar; ouvira o relato de Alice em como ele arrastara o
velho para o seu quarto e o trancara lá dentro. Se Morgan pudesse fazer
mal ao meu pai, não hesitaria, disso não tinha a menor dúvida.
E depois, enquanto eu estava ali a tremer, ouvi novamente dentro da
minha cabeça a voz angustiada do meu pai enquanto, a toda a minha
volta, o ar estremecia e se agitava.
«Por favor, filho, suplico-lhe, faça o que ele pede senão serei torturado
para toda a eternidade. Por favor, filho, traga-o logo.»
Enquanto a voz se afastava, Morgan sorriu sinistramente.
— Bem, ouviu o que disse o seu pai. Por isso é melhor ser um filho
obediente..
E continuando a sorrir sinistramente, deu meia volta e abandonou o
cemitério.
Sabia que não estava nada certo roubar o grimoire para Morgan, mas ao
vê-lo afastar-se, percebi que não tinha outra escolha. De certa forma,
teria de o conseguir enquanto resgatávamos o Mago.
CAPÍTULO 15
A DESCIDA À CAVE
Quando voltei ao estabelecimento de Andrew, Alice estava na cozinha
preparando o desjejum. Era presunto com ovos e cheirava
deliciosamente.
— Saiu cedo esta manhã, Tom — observou ela.
— Estava dolorido depois de dormir no sofá —
menti. — Precisava esticar um pouco as pernas.
— Bem, sentirá muito melhor depois do desjejum.
— Não posso, Alice. É melhor jejuar quando vamos enfrentar o escuro.
— Não acredito que algumas bocadas vão te fazer grande mal! —
protestou.
Não me dei ao trabalho de contestar. Havia coisas que ela me contara
sobre bruxaria que eu aceitava com reservas; ao passo que havia coisas
em que o Mago acreditava piamente que a deixavam com um sorriso de
escárnio. Assim, guardei silêncio e vi-a e a Andrew comerem enquanto
eu salivava.
Depois do desjejum partimos logo para casa do Mago. A manhã ia pela
metade mas a luz diminuía rapidamente, o céu carregado de nuvens
escuras. Parecia que vinha aí mais neve.
Deixamos Andrew na base da ravina. Esperaria dez minutos para nos dar
tempo de chegar à charneca por cima da casa. Mais tarde, depois de
termos batido à porta, afastar-se-ia e ficaria a vigiar de longe,
aguardando que nós aparecêssemos e assinalássemos o nosso sucesso.
— Boa sorte, mas não me façam esperar muito tempo — pediu Andrew
—, senão morro congelado!
Acenamos em despedida e, levando a tábua e o meu bordão, e com o
pequeno pé-de-cabra enfiado no bolso de dentro do meu casaco,
comecei a subir a vertente da charneca. Enquanto nos arrastávamos por
ela acima, eu na frente e Alice logo atrás de mim, a neve era esmagada
pelos nossos pés e principiava a ficar mais gelada. A descida até à casa
deixava-me preocupado. Seria escorregadia e perigosa.
Em breve começamos a seguir por um caminho para a ravina. Este
caminho tornou-se então um carreiro, com a escarpa à nossa esquerda e
uma queda a pique à nossa direita.
— Olhe bem onde põe os pés, Alice! — avisei. —
É um longo caminho até lá embaixo. Um deslize e precisaríamos escavar
com uma pá.
Alguns momentos depois avistamos a casa; então estacamos. Conforme
o combinado, aguardamos o som de Andrew a aproximar-se pela frente.
Decorreram cinco minutos antes de ouvirmos botas a pisar a neve gélida
lá em baixo. Em algum lugar por ali, um Andrew muito nervoso estaria a
contornar a lateral da casa e a dirigir-se à porta de trás. Rapidamente,
levantei-me e comecei a levar a tábua para a casa. Quando chegamos à
retaguarda, de frente para a janela de trás, ajoelhei e tentei posicionar a
tábua. Consegui assentar a outra extremidade no parapeito da janela
logo à primeira. O que me preocupava era o rebordo não ser muito
largo. Receava que a tábua pudesse deslizar quando estivesse a
atravessar e eu caísse lá em baixo no pátio. Por isso era importante que
Alice a firmasse na beira da escarpa.
— Apóia aí o pé! — murmurei, indicando a extremidade mais próxima da
tábua. Entregando o meu bordão a Alice, ajoelhei na tábua e preparei-
me para rastejar por ela. A distância não era muita mas estava nervoso
e de início os meus membros recusaram obedecer-me. A distância até às
lajes cobertas de neve lá em baixo era grande.
Comecei finalmente a engatinhar, tentando não olhar para a grande
caída lá em baixo. Em breve estava ajoelhado próximo do parapeito da
janela; uma vez lá, tirei o pequeno pé-de-cabra do bolso do meu casaco
e posicionei-o por debaixo do caixilho da janela. Naquele preciso
instante, Andrew bateu com força à porta da parte de trás quase
diretamente por baixo de mim.
Ecoaram três pancadas ruidosas pela ravina abaixo.
A cada pancada, ia aplicando o pé-de-cabra, tentando levantar a janela
de guilhotina. Na pausa que se seguiu, mantive-me perfeitamente
imóvel.
Truz! Truz! Truz!
Voltei a forçar a janela, mas sem qualquer indício de sucesso. Começava
a perguntar-me quantas vezes teria Andrew de bater antes de a
coragem lhe faltar. Talvez o fecho fosse mais forte do que eu previra.
Quantas oportunidades teríamos? Talvez a bruxa acabasse por vir abrir a
porta. Se sim, não quereria estar na pele de Andrew.
Truz! Truz! Truz!
Desta vez, finalmente, consegui. Levantei a janela e, mal houve um
intervalo suficiente, subi-a com ambas as mãos.
Truz! Truz! Truz! veio o som lá debaixo. Se tivesse olhado, poderia ter
visto Andrew, mas fixei o olhar no parapeito da janela e entrei no quarto
antes de voltar a guardar o pé-de-cabra no bolso. Alice debruçou-se e
entregou-me o bordão, depois atravessou a tábua mais depressa do que
eu o fizera. Uma vez lá dentro recolhi-a, para o caso de Meg vir ao pátio
e vê-la lá de baixo. A seguir fechamos a janela.
Feito isso, sentamo-nos os dois no chão, às escuras, escutando com
atenção. Não se houve mais pancadas na porta da frente. Não a ouvira
abrir-se por isso esperava que Andrew se tivesse afastado em
segurança. O som que temia agora era o de Meg a subir as escadas.
Teria ouvido a janela ser forçada?
Combinara já com Alice que, se conseguíssemos entrar na casa em
segurança, esperaríamos quinze minutos ou mais antes de avançarmos.
O primeiro passo seria ir buscar o meu saco ao gabinete de trabalho do
Mago. Assim que a corrente de prata estivesse nas minhas mãos, as
nossas chances de sucesso seriam muito maiores.
Mas não contara a Alice o que Morgan queria que eu fizesse. Não lhe
falara do grimoire porque sabia que me diria que era um tolo em dar-
lho. Mas ela podia falar à vontade. Não era o pai dela que eventualmente
sofreria. A sua voz a suplicar no escuro voltava constantemente para me
atormentar. Era por demais insuportável.
Se conseguisse resgatar o Mago e de alguma forma aprisionar Meg,
precisaria subir no sótão. Tinha de fazê-lo.
Estava a trair o Mago mas não podia deixar o Pai sofrer mais. Então não
tivemos outro remédio senão esperar, escutando nervosamente cada
ruído da velha casa.
Passado cerca de um quarto de hora, bati de leve no ombro de Alice,
levantei-me com cuidado, peguei no meu bordão e avancei
cautelosamente em direção à porta do quarto.
Não estava trancada e abri-a, saindo para o patamar. Estava ainda mais
escuro nas escadas, com uma mancha de negrura à nossa espera lá em
baixo. Comecei a descer, um passo lento, parando para escutar antes de
arriscar dar um segundo. Adotei aquele padrão: passo, pausa e escutar;
passo, pausa e escutar. A dada altura, um degrau chiou sob os meus
pés. Estacamos e esperamos pelo menos cinco minutos, pensando que
podíamos ter despertado a bruxa. E quando os pés de Alice provocaram
um segundo chiado, tivemos de repetir o processo! Demorou uma
eternidade, mas chegamos finalmente ao térreo.
Momentos depois, tínhamos entrado no gabinete de trabalho do Mago.
Estava mais claro ali dentro, e consegui ver o meu próprio saco ainda no
canto onde o deixara, mas nem sinal do saco do Mago. Tirei a corrente
de prata e enrolei-a à volta da mão e do pulso esquerdo, a postos para a
lançar. Fazia-o com aquele braço: quando treinara no jardim do Mago,
conseguira lançar a corrente sobre um poste à distância de dois metros e
quarenta, nove vezes em dez. Por isso, agora, frente a frente quer com
a lâmia selvagem quer com Meg, tinha uma boa chance de sucesso. Um
ataque de ambas simultaneamente seria uma outra história e não me
agradava pensar nisso.
A seguir, debrucei-me e encostei os lábios ao ouvido de Alice.
— Veja se a chave está em cima da estante —
murmurei, apontando para o local.
Havia uma chance de Meg ter a chave do portão à cintura, mas
recordava-me de algo que o Mago uma vez me dissera sobre ela: que
era metódica e guardava sempre tudo no devido lugar. Estivera a referir-
se a tachos e panelas, facas e garfos. Sucederia o mesmo com a chave?
Valia bem a pena verificar.
Por isso, enquanto Alice ia buscar uma cadeira e a posicionava junto à
estante, fiquei de guarda junto à porta aberta, com a corrente a postos.
Ela subiu para a cadeira e tateou cuidadosamente a superfície superior
da última prateleira antes de esboçar um largo sorriso e exibir a chave.
Não me enganara! Tínhamos a chave do portão!
Continuando a agarrar a corrente, peguei no meu bordão e saí
cautelosamente do gabinete de trabalho em direção às escadas para a
cave. Esperara que Meg estivesse acordada mas ouvia o som da
respiração dela na cozinha, o ar a sair-lhe pela boca ao expirar. Dormia
profundamente, e até não nos podíamos queixar da nossa sorte.
Uma opção seria ter ido diretamente à cozinha e aprisionar Meg
enquanto ainda estava dormindo, mas precisava da corrente para
enfrentar a ameaça da lâmia selvagem na cave. Descemos lentamente
as escadas, Alice agora na frente, até chegarmos ao portão. Era um
momento perigoso e explicara já que um ruído do portão ressoaria pela
casa toda. Mas Alice inseriu a chave muito cuidadosamente e rodou-a
sem um som. Conseguiu fazer o mesmo ao deslocar o portão, que
deixamos aberto para o caso de termos de sair rapidamente da cave.
Estava muito escuro lá em baixo e bati de leve no ombro de Alice, o sinal
para parar. Enfiei a corrente no bolso, encostei o bordão cuidadosamente
à parede e, usando a minha caixa de mechas, acendi um toco de vela e
entreguei-o a Alice. Mais uma vez, seguia um passo atrás dela, a
corrente e o bordão a postos. A vela era um risco calculado porque,
apesar de as escadas descerem em espiral, sempre poderia chegar um
brilho de luz à cave e alertar a lâmia selvagem. Mas precisávamos
mesmo de alguma luz para cuidar do Mago como devia ser e tirá-lo da
cela.
Acabou por se revelar a decisão certa. .
De repente, Alice arfou, estacou subitamente e apontou para baixo.
Vinha uma corrente de ar frio da cave, fazendo a chama da vela dançar
e tremular, e avistei à sua luz um vulto escuro a mover-se rapidamente
pelas escadas na nossa direção. Por um momento, o meu coração bateu
disparado, julgando que era a lâmia selvagem: desci para junto de Alice,
ergui a mão esquerda e preparei-me para lançar a corrente de prata.
Mas quando a corrente de ar lá em baixo cessou, a luz firmou-se e vi
que o movimento rápido do vulto escuro fora uma ilusão causada pelo
tremular da chama. Al-go se movia mesmo pelas escadas, mas
rastejava; arrastando-se com uma lentidão tão incrível que teria
demorado uma eternidade a alcançar o portão.
Era Bessy Hill, a outra bruxa viva — aquela que estivera no poço ao lado
da lâmia selvagem. O cabelo grisalho era comprido, gorduroso e estava
carregado de pequenos insetos pretos, ao passo que o vestido andrajoso
estava manchado de bolor e com laivos de visco. Arrastava lentamente o
corpo pelas escadas, mas apesar de ter conseguido libertar-se da
sepultura, anos a sobreviver com uma dieta de lesmas, vermes e outras
criaturas rastejantes prenunciava uma fraca força. Claro que o caso
mudaria de figura se tivéssemos dado assim de caras com ela no escuro.
Paramos. Se ela conseguisse agarrar um dos nossos tornozelos seria
difícil arrancá-la. Estava desesperada por sangue e ferraria os dentes em
qualquer carne quente que se aproximasse. Uma bocada de sangue
torná-la-ia de imediato muito mais forte e perigosa. Era assustador, mas
tínhamos de passar por ela.
Continuei a descer nervosamente, fazendo sinal a Alice para me seguir.
As escadas eram largas e foi possível passar a uma distância confortável
da bruxa. Estranhei que ela tivesse conseguido fugir do poço. Uma
possibilidade era a lâmia selvagem ter afastado as grades para ela. Ou
talvez fosse Meg que a libertara. Quando passamos, olhei-a
rapidamente. A cabeça estava virada para nós mas os olhos firmemente
fechados. No entanto, a boca estava aberta, e a comprida língua
purpúrea pendente sobre o degrau, como se lambesse algo da pedra
úmida. Cheirou, fungou, virou a cabeça para cima e tentou levantar a
mão.
Quando abriu os olhos eram como dois pontos de fogo acesos no escuro.
Descemos rapidamente, deixando-a para trás.
Quando chegamos ao patamar com as três portas, entreguei o meu
bordão a Alice. Esta aceitou-o com um esgar.
Não gostava de pegar em madeira de sorveira. Mas eu tirava já a minha
própria chave do bolso e não tardaria a abrir a porta da cela do Mago.
Até então, preocupava-me que ele pudesse não se encontrar lá. Pensei
que Meg o tivesse mudado para outro qualquer lugar, até metê-lo num
poço na cave. Mas lá estava ele, sentado na cama com a cabeça nas
mãos. Quando a luz da vela tremulou na cela, ele olhou na nossa
direção, mas a sua expressão era de perplexidade. Depois de olhar para
as escadas e escutar com atenção para me certificar de que a lâmia não
vinha subindo, entrei na cela com Alice e ajudamos o Mago a levantar-
se. Não ofereceu resistência quando o puxamos na direção da porta. Não
pareceu reconhecer nenhum de nós e calculei que Meg lhe tivesse dado
recentemente uma dose forte da poção.
A minha corrente encontrava-se agora de novo no bolso — não o melhor
lugar para ela se a lâmia atacasse, mas não tinha alternativa. O
progresso pelas escadas era lento enquanto o Mago arrastava os passos,
Alice e eu amparando-o pelos cotovelos. Eu olhava constantemente para
trás mas não vinham sons ameaçadores lá de baixo.
Quando chegamos à bruxa nas escadas, estava dormindo, os olhos
ligeiramente fechados, ressonando sonoramente com a boca aberta.
Naquele momento estava esgotada de subir as escadas.
Não tardamos a alcançar o portão. Uma vez transposto, Alice voltou a
fechá-lo cuidadosa e silenciosamente e tirei-lhe a chave e guardei-a no
meu bolso. Continuamos a subir até chegarmos ao térreo. O som da
respiração de Meg vinda da cozinha garantiu-me que também ela
continuava dormindo, pelo que tinha naquele momento uma decisão
importante a tomar. Ou ajudava Alice a tirar o Mago da casa ou entrava
na cozinha e aprisionava Meg com a corrente de prata.
Se conseguisse aprisionada, acabaria tudo e a casa voltaria para as
nossas mãos. Mas a tentativa envolvia muitos riscos. Meg podia acordar
de repente — e nove vezes em dez não era o mesmo que dez em dez!
Eu podia falhar e Meg era incrivelmente forte. O Mago não estava em
condições de ajudar, e nós os três ficaríamos à mercê de Meg. Então
apontei pelo corredor para a porta da frente. Momentos depois a porta
fora aberta e ajudei Alice a levar o Mago lá para fora. A seguir, tirei-lhe a
vela, aproximando-a do meu corpo para não se apagar.
— Tenho algo a fazer lá dentro de casa — disse-lhe. — Não demorarei
muito, mas leva Mr. Gregory daqui. Andrew deve estar à espera mais
abaixo na ravina.
— Não seja tolo, Tom! — exclamou Alice, o seu rosto cheio de
preocupação. — O que poderia ser tão importante para querer voltar ali?
— Confie em mim, Alice. Tem de ser feito. Nos encontramos na casa de
Andrew.
— Há algo que ainda não me contou — queixou-se Alice. — O que é?
Não confia em mim?
— Vá, Alice, por favor. Faça o que te digo. Mais tarde explicarei tudo.
Relutantemente, Alice começou a descer a colina, conduzindo o Mago
pelo cotovelo. Não olhou para trás e percebi que estava realmente
furiosa comigo.
CAPÍTULO 16
A SUBIDA AO SÓTÃO
Uma vez lá dentro, fechei a porta atrás de mim e comecei a subir as
escadas. Na minha mão direita segurava a vela; na esquerda levava o
bordão de sorveira. A corrente de prata continuava no bolso esquerdo do
meu casaco de pele de carneiro. Subi mais depressa do que havíamos
descido mas continuei a ter cuidado. Não queria acordar Meg. Tinha
também outra preocupação. A minha chave seria grande demais para a
fechadura na escrivaninha do Mago. Ia ter de forçá-la com o pé-de-cabra
e provavelmente isso faria mais do que apenas algum barulho.
Enquanto ia subindo as escadas, comecei a sentir-me cada vez mais
inquieto. Meg continuava a dormir, mas poderia acordar a qualquer
instante. Se me seguisse escadas acima, eu tinha sempre hipótese de
reposicionar a tábua e efetuar a fuga pela janela do quarto das traseiras.
Mas aperceber-me-ia a tempo da chegada dela? Alice tinha razão. Em
face de tal, era mesmo uma tolice. Mas continuava a pensar no Pai e
obriguei as minhas pernas a continuarem a subir as escadas.
Não tardei muito a encontrar-me perto da porta do sótão. Preparava-me
para a abrir e entrar quando ouvi um leve som. Parecia uma espécie de
raspadelas...
Escutei cheio de nervosismo com o ouvido esquerdo colado à porta e
ouvi de novo o som de raspadelas. O que poderia fazer um ruído assim?
Não tinha outra alternativa senão ignorar e tentar obter o que Morgan
queria. Comecei a rodar a maçaneta. Só então, ao entrar devagar na
divisão, percebi que devia ter fugido com Alice e o Mago enquanto ainda
tinha chance.Devia ter contado ao meu mestre tudo o que acontecera
com Morgan e seguido o conselho dele. O Mago teria sabido qual a
melhor maneira de ajudar o Pai.
Todos os meus instintos me diziam naquele momento que fugisse. Era
como se uma voz gritasse «Perigo!
Perigo! Perigo!» sucessivamente dentro da minha cabeça.
Quando entrei, quase fechei a porta atrás de mim. Senti um forte
impulso para fazê-lo mas de certa forma consegui resistir. Estava escuro
de modo que levantei a vela acima da minha cabeça a fim de ver
melhor; houve então uma explosão súbita de ar frio que se extinguiu
gradualmente.
Via lá em cima o contorno pálido da clarabóia. Estava escancarada e
uma brisa fria desceu na direção do meu rosto. Havia seis pequenas
aves empoleiradas na borda da clarabóia. Mantinham-se caladas, como
se aguardando pacientemente algo. E, por debaixo delas, estava patente
o horror daquela divisão.
As tábuas do soalho encontravam-se cheias de penas, salpicadas de
sangue e sujas de fragmentos de aves mortas. Parecia que entrara uma
raposa num galinheiro.
Viam-se asas, patas, cabeças e centenas e centenas de penas. Desciam
penas pelo ar, rodopiando à volta da minha cabeça, agitadas pela brisa
gélida que soprava pela clarabóia. Quando vi algo muito maior, não
fiquei surpreendido. Mas a sua visão enregelou-me até aos ossos.
Acocorada ao canto, perto da escrivaninha, estava a lâmia selvagem, de
olhos fechados, as pálpebras superiores grossas e pesadas. De certa
forma, o seu corpo parecia menor mas o rosto estava maior do que da
última vez que o vira. Já não descarnado mas pálido e inchado, as faces
quase duas bolsas. Enquanto olhava, a boca abriu-se ligeiramente e
escorreu um fio de sangue pelo queixo que começou a pingar para o
soalho. Lambeu os beiços, abriu os olhos e fitou-me como se tivesse
todo o tempo do mundo.
Estivera a alimentar-se. A alimentar-se das aves.
Abrira a clarabóia e depois atraíra as aves às suas mãos férreas com
garras, obrigando-as a voar até onde aguardava sentada. Depois, uma
por uma, começara a beber-lhes o sangue, mantendo-as ainda vivas por
perto com uma fórmula de compulsão. Tinham asas mas haviam perdido
a vontade de voar.
Eu não tinha asas, no entanto tinha pernas. Mas elas não queriam me
obedecer e fiquei pregado ao chão com medo. Avançou para mim muito
lentamente. Talvez fosse por estar pesada, de tão empanturrada de
sangue.
Talvez sentisse que não havia pressa.
Se tivesse corrido pelo chão direto a mim, seria o fim. Nunca conseguiria
sair do sótão. Mas ela avançava lentamente. Muito lentamente. E o
horror de a ver aproximar-se foi suficiente para quebrar o feitiço. De
repente fiquei livre. Podia mover-me. Mover-me mais depressa do que
alguma vez antes o fizera.
Não pensara usar nem a corrente nem o bordão. As minhas pernas
agiram mais rápidas do que o meu pensamento. Enquanto a lâmia
rastejava pelo soalho, virei-me e corri. E enquanto corria, houve um
bater de asas atrás de mim: a minha fuga libertara as aves aprisionadas
da fórmula. Aterrorizado, com o coração em sobressalto, desci as
escadas fazendo barulho suficiente para despertar os mortos. Mas não
queria saber. Tinha de sair e afastar-me da lâmia. Nada mais importava.
Toda a minha coragem desaparecera.
Mas alguém estava à minha espera nas sombras ao fundo das escadas.
Meg.
Por que não virará das escadas para o quarto da parte de trás? Devia
ter-me concentrado. Pensado cuidadosamente. Mas entrara em pânico e
perdera a minha oportunidade de escapar. A lâmia selvagem estava
empanturrada demais de sangue para se mover com rapidez. Teria
conseguido abrir a janela, posicionar a tábua e atravessá-la até à
segurança. E agora os meus passos pesados escadas abaixo haviam
despertado Meg.
Lá estava ela, entre mim e a porta da frente. Enquanto em algum lugar
atrás de mim, provavelmente já a descer as escadas, encontrava-se a
lâmia selvagem. Meg olhou para mim, o seu rosto belo alargando-se
num sorriso. Havia luz suficiente para ver que não era um sorriso
amigável. Subitamente, debruçou-se sobre mim e cheirou-me
ruidosamente três vezes.
— Disse antes que não te daria à minha irmã —
referiu. — Mas isso agora mudou. Sei o que fez. Há um preço a pagar
por isso. Um preço de sangue!
Não respondi porque recuava já lentamente pelas escadas acima.
Continuava a segurar o toco da vela de modo que o enfiei no bolso das
calças. Feito isso, transferi o meu bordão para a mão direita e retirei a
corrente de prata do bolso esquerdo do meu casaco de pele de borrego.
Ela deve ter visto ou sentido a corrente, porque subiu rapidamente as
escadas direto para mim, as mãos estendidas como se quisesse
arrancar-me os olhos. Entrei em pânico, fiz pontaria e arremessei-lhe
diretamente a corrente. Não me concentrei e falhou-lhe por completo a
cabeça. Mas felizmente para mim, bateu-lhe no ombro e no flanco
esquerdo. Ao tocar-lhe, ela gritou de agonia e foi de encontro à parede.
Vendo a minha oportunidade, passei a correr por ela e cheguei ao fundo
das escadas antes de me virar para enfrentá-la. Pelo menos agora não
teria a ameaça da irmã dela atrás de mim. A corrente continuava nos
degraus de cima. Só me restava o bordão de madeira de sorveira. Era a
madeira mais poderosa de todas para usar contra uma bruxa. Mas Meg
não era do Condado; era uma bruxa lâmia de uma terra estrangeira.
Seria eficaz contra ela?
Meg recuperou o equilíbrio e virou-se para mim.
— O toque da prata é agonia para mim, rapaz —
disse, o seu rosto contorcido de fúria. — Gostaria de sentir uma dor
assim?
Desceu um degrau, e quando o fez, arrastou deliberadamente as costas
da mão esquerda pela parede junto ao corpo. Enquanto observava,
raspou as unhas pelo estuque, deixando nele sulcos profundos. O
estuque era velho e muito rijo. Estava a mostrar-me o que as suas
unhas poderiam fazer à minha carne. Quando Meg deu outro passo,
preparei o meu bordão, apontando-o para cima, pronto a atingir-lhe a
cabeça e os ombros. Mas agora eu estava a usar a cabeça. A concentrar-
me. E quando ela atacou, precipitando-se pelas escadas para mim,
baixei rapidamente o bordão, atirando-lhe aos pés. Os olhos dela
arregalaram-se quando viu o que eu estava a tentar fazer, mas a sua
aceleração era excessiva: as pernas emaranha-ram-se no bordão e caiu
de cabeça pelas escadas. O bordão foi-me arrancado das mãos, mas
agora tinha oportunidade de recuperar a corrente e saltei por cima dela
e subi as escadas correndo.
Apanhei a corrente, enrolei-a em volta do pulso esquerdo e preparei-me
para a lançar de novo. Desta vez estava decidido a não falhar.
Ela sorriu-me, o rosto cheio de escárnio.
— Já falhou uma vez. Não é tão fácil quanto arremessá-la àquele poste
no jardim de Gregory, não é? As suas mãos estão a suar, rapaz?
Começam a tremer? Só tem mais uma oportunidade. E depois será meu.
.
Sabia que ela estava apenas tentando destruir a minha confiança e
aumentar as probabilidades de eu falhar.
Então, respirei fundo e recordei a minha preparação. Nove vezes em
dez, conseguia atingir o poste. E nunca falhara duas vezes seguidas. Só
o medo conseguiria me impedir naquele momento. Só a dúvida. Então,
respirei fundo e concentrei-me. Quando Meg se levantou, fiz pontaria
com cuidado.
Estalei a corrente no ar como um chicote antes de a arremessar
diretamente à bruxa. Caiu numa espiral perfeita às avessas a envolver-
lhe a cabeça e o corpo. Soltou um grito, que foi cortado subitamente
quando a corrente de prata lhe apertou a boca e ela caiu pesadamente
no chão.
Com muita cautela, desci as escadas e olhei-a de perto. Para meu alívio,
ficara bem aprisionada. Olhei-a nos olhos e vi ali a dor. Mas, apesar de a
corrente de prata a estar machucando, havia também desafio no seu
olhar. De repente, a expressão dela mudou e percebi que olhava pa-ra lá
de mim, para as escadas. Simultaneamente, ouvi passos em corrida e
virei-me, vendo Márcia, a lâmia selvagem, descer as escadas direto para
mim.
Mais uma vez, o fato de estar já saciada de sangue salvou-me.
Continuava inchada e lenta. Caso contrário, haveria atacado antes
mesmo de eu ter sequer uma chance de pestanejar. Então, peguei no
meu bordão de sorveira e subi as escadas ao encontro dela. O ódio ardia
nos seus olhos de pálpebras pesadas, e os quatro membros finos por
debaixo do seu corpo ficaram tensos, prontos a saltar.
A princípio, não tive tempo de sentir medo e ataquei com o bordão na
direção do seu rosto inchado. Não suportou o toque da madeira de
sorveira e arfou de dor quando a minha terceira estocada a atingiu logo
por debaixo do olho esquerdo. Bufou de fúria e começou a recuar, o
cabelo preto comprido e gorduroso a roçar nos degraus de ambos os
lados e a deixar um rasto viscoso úmido.
Não sei quanto tempo lutei com ela. O tempo parecia ter parado. O suor
escorria-me da testa e tinha dificuldade em respirar, o meu coração a
bater ruidosamente tanto do esforço como do medo. Sabia que a
qualquer momento ela poderia penetrar a minha guarda ou então eu
podia tropeçar — caso esse em que ela me alcançaria num ápice, os
seus dentes afiados a ferrar-me nas pernas. Mas obriguei-a finalmente a
recuar para a porta do sótão, depois estoquei-a freneticamente para a
enfiar lá dentro.
Feito isso, fechei a porta com força e tranquei-a, usando a minha chave.
Sabia que a porta não a deteria por muito tempo, e enquanto descia as
escadas, ouvi as garras dela já a começar a desfazer a porta de madeira.
Estava na hora de fugir. Seguiria os outros até à loja de Andrew. Quando
o Mago recuperasse poderíamos regressar e resolver tudo.
Mas quando abri a porta da frente, uma intensa tempestade de neve
fustigava lá fora, a neve atingindo-me no rosto. Podia dar com o
caminho até à orla da ravina, mas seria loucura avançar para lá dela.
Mesmo que descesse a charneca em segurança, morreria congelado ao
tentar alcançar Adlington. Fechei rapidamente a porta. Só me restava
uma outra opção.
Meg não era maior do que eu nem muito pesada.
Decidi então levada para a cave e colocá-la no poço. Feito isso, podia
trancar-me por detrás do portão com ela e ficar relativamente a salvo da
lâmia selvagem. Ou pelo menos por um bocado. Nem mesmo o portão
impediria eterna-mente Marcia.
Todavia, tinha ainda que me preocupar com a outra bruxa, Bessy Hil .
Deixei então Meg no topo das escadas da cave e procurei rapidamente o
saco do Mago. Encontrei-o por fim na cozinha e, com celeridade, enchi
os bolsos de sal e ferro. Feito isso, levei Meg para a cave, segurando-a
no ombro direito pelas pernas. Na minha mão esquerda levava
simultaneamente o bordão e uma vela.
Demorei algum tempo a colocá-la lá e tive o cuidado de trancar o portão
atrás de mim. Mais uma vez, mantive-me bem afastado de Bessy Hil ,
que continuava a ressonar nas escadas.
Depois de tudo o que acontecera, queria arrastar Meg pelos pés e deixar
que a cabeça dela batesse em cada degrau. Mas não o fiz.
Provavelmente estaria já a sofrer bastante por causa da corrente de
prata que a prendia com força. E, de qualquer forma, apesar de tudo, o
Mago haveria de querer que ela fosse tratada o melhor possível.
Por conseguinte, tive cuidado com Meg.
Mas quando a enfiei pela borda do poço, não resisti ao comentário que
se segue.
— Sonhe com o seu jardim! — disse-lhe, conferindo à minha voz o tom
mais sarcástico possível. Depois deixei-a e, agarrando no meu toco de
vela, voltei a subir as escadas. Estava agora na altura de ir tratar da
outra bruxa, Bessy Hil . Devo tê-la acordado ao descer porque fungava e
bufava ao subir de novo lentamente em direção ao portão. Levei as
mãos aos bolsos das calças e retirei uma mão-cheia de sal e uma mão-
cheia de ferro. Mas não os atirei; cerca de três degraus acima dela,
espalhei uma linha de sal de parede a parede, depois polvilhei por cima
com ferro. E a seguir desloquei-me ao comprimento do degrau e
misturei-os cuidadosamente para formar uma barreira que a bruxa não
conseguisse transpor.
Por fim, aproximei-me do portão e sentei-me três degraus abaixo dele,
para o caso de a lâmia selvagem descer e tentar alcançar-me através
das grades.
Fiquei ali sentado vendo a vela arder até ficar cada vez mais pequena.
Muito antes de ameaçar extinguir-se, senti pena do que dissera a Meg. O
meu pai não teria gostado que eu fosse sarcástico àquele ponto. Ele não
me educara assim. Meg não podia ser má de todo. O Mago amava-a e
ela amara-o em tempos. E como se iria sentir quando visse que eu a
metera no poço? Que eu fizera algo que pessoalmente ele nunca tivera
coragem de fazer?
Dali a um tempo a vela apagou-se de vez e fiquei no escuro. Chegavam
tênues murmúrios e arranhadelas lá do fundo da cave onde as bruxas
mortas se agitavam e, de tempos a tempos, o som da bruxa viva
enfraquecida, cheirando e fungando de frustração, sem conseguir
atravessar a barreira de sal e ferro.
Estava quase a dormir quando a lâmia selvagem chegou de repente,
tendo finalmente aberto caminho através da porta do sótão. A minha
visão noturna é boa, mas estava escuro nas escadas da cave e só ouvia
a investida das suas pernas avançando em corrida e depois uma
pancada quando um vulto escuro se arremessou contra o portão e
começou a arranhar o metal. O coração saltou-me para a boca. Parecia
estar de novo esfomeada de modo que peguei no meu bordão de
sorveira e ataquei-a, desesperado, através das grades.
A princípio, não afetou o frenesi dela, e ouvi a grade gemer quando o
metal dobrou e cedeu. Mas depois tive sorte. Devia tê-la atingido num
ponto nervoso, provavelmente um olho, porque ela guinchou
estridentemente e afastou-se do portão, subindo de novo as escadas
lamuriando-se.
Quando a tempestade de neve passasse e o Mago ficasse
suficientemente forte, voltaria para resolver a situação — tinha certeza
disso. Só não sabia quando. Ia ser uma longa tarde e uma noite ainda
mais longa depois daquilo. Podia ter de passar dias ali nas escadas. Não
sabia quantas vezes Márcia atacaria o portão.
Mais duas vezes o fez, e depois de a ter expulsado uma terceira, retirou-
se pelas escadas acima e desapareceu de vista. Perguntei-me se teria
voltado para o topo da ca-sa. Talvez andasse à caça de ratazanas ou
ratos. Passado um tempo, tive de me esforçar para me manter
acordado.
Não podia permitir-me adormecer porque o portão estava já
enfraquecido. Se não me encontrasse a postos para a repelir, ela não
demoraria muito a abrir caminho à força.
Encontrava-me em sérios apuros. Se ao menos não tivesse vindo buscar
o grimoire, estaria são e salvo com o Mago e Alice na casa de Andrew.
CAPÍTULO 17
UMAS QUANTAS VERDADES
Os degraus eram desconfortáveis e muito frios. Passado um tempo, de
acordo com os meus cálculos, a noite voltaria a dar lugar ao dia. Tinha
fome e a minha boca estava ressecada da sede.
Quanto tempo teria de passar ali em baixo? Quanto tempo antes de o
Mago aparecer? E se o meu mestre não recuperasse devidamente e
estivesse doente demais para vir? Depois comecei a preocupar-me com
Alice. E se ela voltasse à casa à minha procura? Julgaria que a lâmia
estava aprisionada na cave. Não sabia que estivera no sótão; que
andava agora à solta pela casa.
Ouvi finalmente ruídos em algum lugar lá em cima.
Não pernas a correr mas o murmúrio bem-vindo de vozes humanas e as
pancadas de botas a descer e depois o som de algo pesado a ser
arrastado pelas escadas. A luz de uma vela tremulou ao contornar a
esquina e pus-me em pé.
— Bem, Andrew! Parece que afinal não vai ser preciso — disse uma voz
que reconheci imediatamente.
O Mago aproximou-se do portão. Arrastava atrás de si a lâmia selvagem,
firmemente aprisionada com uma corrente de prata. A seu lado estava
Andrew, que o acompanhara para arrombar a fechadura.
— Bem, rapaz, não fique aí embasbacado — disse-me o Mago. — Abra o
portão e deixe-nos entrar.
Fiz rapidamente o que me mandavam. Queria contar ao Mago o que
sucedera com Meg, mas quando abri a boca para falar, ele abanou a
cabeça e assentou uma mão no meu ombro.
— Primeiro o mais importante — redarguiu, a sua voz simpática e
compreensiva, como se soubesse exatamente o que eu tinha feito. —
Tem sido difícil para todos nós e há muito que conversar. Mas ficará para
mais tarde.
Primeiro o trabalho que é preciso fazer. .
Dito aquilo, com Andrew na dianteira erguendo a vela alto, partimos
escadas abaixo. Quando nos aproximamos da bruxa viva, Andrew
estacou e a vela começou a tremer na sua mão.
— Andrew, dê a vela ao rapaz — pediu o Mago. —
É melhor ir para cima e esperar na porta que cheguem o pedreiro e o
ferreiro. Depois pode dizer-lhes que estamos aqui em baixo.
Com um suspiro de alívio, Andrew entregou-me a vela, e depois de
acenar na direção do Mago voltou a subir as escadas. Continuamos a
descer até chegarmos à cave, com o teto baixo carregado de espessas
teias de aranha. O
Mago avançou direto para o poço da bruxa lâmia, onde as grades tinham
sido dobradas, com espaço de sobra para a atirar para o escuro — e o
Mago não perdeu tempo a preparar-se para fazer exatamente isso.
— Bordão a postos, rapaz! — ordenou.
Coloquei-me então a seu lado, a vela na mão direita para iluminar a
lâmia e o poço, o bordão de sorveira posicionado para repeli-la.
O Mago segurou a lâmia por cima das grades afastadas e, com um
esticão súbito, torceu a corrente de prata para a direita, dando-lhe um
golpe súbito. Ela desenrolou-se e, com um grito estridente, a lâmia caiu
no escuro.
Imediatamente o Mago ajoelhou ao lado do poço e começou a passar a
corrente de prata de uma barra à outra por cima da abertura para criar
uma barreira temporária que a lâmia não conseguisse transpor. Lá de
baixo das sombras, a lâmia bufou na nossa direção, furiosamente, mas
não esboçou qualquer tentativa de subir correndo; passados alguns
momentos o trabalho estava concluído.
— Pronto, aquilo deve aguentá-la até o pedreiro e o ferreiro chegarem —
disse o meu mestre, pondo-se em pé. — Agora vamos ver como está
Meg..
Abeirou-se do poço de Meg e eu segui-o, levando a vela. Ele abanou a
cabeça, contristado. Meg estava deitada de costas a olhar para cima, os
olhos arregalados e furiosos, mas a corrente prendia-a ainda firmemente
e não conseguia falar.
— Peço desculpa — disse-lhe. — Muitas desculpas.
Não tive. .
O Mago ergueu a mão para me silenciar.
— Guarde as suas palavras para mais tarde, rapaz.
Custa-me tanto ver isto. .
Ouvi a voz do Mago ficar embargada e captei um vislumbre de dor no
seu rosto. Desviei rapidamente o olhar. Seguiu-se um longo silêncio,
mas finalmente ele soltou um suspiro profundo.
— O que está feito está feito — disse, com pesar
—, mas nunca pensei que fosse chegar a este ponto. Não ao cabo de
todos estes anos. Adiante, vamos tratar da outra. . Subimos de novo as
escadas até chegarmos à bruxa viva, Bessy Hil .
— A propósito, foi bem pensado, rapaz! — exclamou o Mago, indicando a
linha de sal e ferro. — É bom ver que tem iniciativa.
Bessy Hil virou a cabeça lentamente para a esquerda e pareceu querer
tentar falar. O Mago abanou a cabeça com pesar e apontou para os pés
dela.
— Olhe, rapaz. Pegue no pé direito, que eu pegarei no esquerdo. Vamos
descê-la devagar. Delicadamente, agora! Não queremos que ela bata
com a cabeça. .
Fizemos exatamente isso, e foi um trabalho desagradável: o pé direito
de Bessy estava frio, úmido e pegajoso, e quando a arrastamos ela
começou a fungar e a bufar. No entanto, não foi por muito tempo e em
breve ela estava de volta ao poço. Agora só era necessário substituir as
grades dobradas e ela ficaria segura por um longo tempo. Durante um
tempo não falamos e calculei que o Mago estivesse a pensar em Meg,
mas não tardou que ouvíssemos o som distante de vozes masculinas e
botas pesadas.
— Bem, rapaz, devem ser o ferreiro e o pedreiro.
Tinha pensado em te pedir que tratasse de Meg, mas não está certo e
não me furtarei ao que tem de ser feito. Por isso suba essas escadas e
prepare uma boa lareira em todas as divisões do térreo. Fez um bom
trabalho — falaremos mais tarde.
Ao subir, cruzei-me com o ferreiro e o pedreiro.
— Mr. Gregory está lá em baixo — disse-lhes.
Anuíram e continuaram a descer. Nenhum parecia satisfeito. Era um
trabalho sinistro mas tinha de ser feito.
Mais tarde, quando voltei à cave para dizer ao Mago que acendera as
lareiras, Meg continuava no poço mas a minha corrente de prata estava
em segurança na posse dele e entregou-a sem dizer uma palavra. A
cobertura de pedra e ferro fora arrastada para a posição e presa com
pernos de metal cravados fundo no solo.
Agora ela estava tão firmemente aprisionada debaixo de grades de ferro
quanto as outras bruxas. O Mago devia ter ficado realmente triste por
ter de fazer aquilo, mas não deixara de fazê-lo. Levara quase uma
eternidade, mas Meg estava finalmente aprisionada.
A tarde ia já bastante adiantada quando o trabalho ficou concluído e o
pedreiro e o ferreiro finalmente foram embora. O Mago virou-se para
mim quando fechou a porta e cofiou a barba.
— Só falta mais uma coisa antes de comermos, rapaz. Agora já podia ir
até lá acima limpar aquela porcaria no sótão.
Mesmo depois de tudo o que acontecera eu não esquecera
o grimoire. Não esquecera o que Morgan podia fazer ao Pai. E ali estava
a minha oportunidade! Então, com as mãos a tremer ante a idéia de ir
trair o Mago e roubar o grimoire, levei um balde e um esfregão até ao
só-
tão. Depois de fechar a clarabóia, comecei a limpar o chão o mais
depressa que podia. Uma vez concluída a tarefa, bastariam alguns
momentos para forçar a fechadura da escrivaninha e esconder
o grimoire no meu quarto. Nunca vira o Mago ir ao sótão. Por isso podia
entregá-lo a Morgan sem que ele percebesse que desaparecera.
Tendo limpo as penas e o sangue do chão, convergi a minha atenção
para a escrivaninha. Apesar de ser uma peça bem feita, trabalhada mas
maciça, não iria demorar muito tempo a abri-la. Retirei o pequeno pé-
de-cabra do bolso do casaco e introduzi-o na fenda entre as portas.
Naquele momento ouvi passos atrás de mim e dei um pulo, atrapalhado,
ao ver o Mago de pé à porta, uma expressão de raiva e incredulidade no
rosto.
— Bem, rapaz! O que temos aqui?
— Nada — menti. — Estava apenas limpando esta velha escrivaninha.
— Não minta, rapaz. Não há nada pior neste mundo do que um
mentiroso. Então foi por isto que voltou à casa. A garota estranhou. .
— Morgan mandou-me vir buscar o grimoire na sua escrivaninha no
sótão! — deitei tudo para fora e baixei a cabeça de vergonha. — Era
para levar-lhe na terça-feira à noite na capela do cemitério. Peço
desculpa, peço mil desculpas. Nunca o quis trair. Só não suportava a
idéia do que ele podia fazer ao Pai se eu não o levasse.
— Ao seu pai? — O Mago ficou carrancudo. —
Como pode Morgan fazer mal ao seu pai?
— O meu pai morreu, Mr. Gregory.
— Sim, a garota contou-me a noite passada. Lamento sabê-lo.
— Bem, Morgan invocou o espírito do Pai e aterrorizou-o. .
O Mago levantou a mão.
— Acalme-se, rapaz. Acaba com essa algaraviada e fale mais devagar.
Onde foi que tudo isto aconteceu?
— No quarto dele na fazenda. Ele invocou primeiro a irmã e ela trouxe o
Pai. Era mesmo a voz do Pai e Morgan o fez pensar que estava no
Inferno. Voltou a fazê-lo em Adlington — ouvi nitidamente a voz do Pai
dentro da minha cabeça — e Morgan disse que continuaria a fazê-lo se
eu não lhe obedecesse. Voltei para buscar o grimoire, mas quando
cheguei ao sótão, a lâmia selvagem estava lá a alimentar-se das aves.
Desci as escadas a correr, em pânico e encontrei Meg ali à espera. O
meu primeiro lançamento da corrente não lhe acertou e julguei que
estava acabado.
— Sim, podia ter-te custado a vida — observou o meu mestre, abanando
a cabeça de reprovação.
— Estava desesperado — disse-lhe.
— Isso não me interessa, rapaz — redarguiu o Mago, cofiando a barba.
— Não disse que se mantivesse afastado dele? Devia ter me contado
tudo, não vir aqui sorrateiro roubar algo a mando daquele tolo do
Morgan.
Fiquei ofendido com o uso da palavra «roubar». Era inegável que teria
sido um roubo, mas ouvi-lo usar aquela palavra magoou-me
profundamente.
— Não pude. Meg tinha-o prisioneiro. De qualquer forma, o senhor não
me contou tudo — redargui, irado. —
Por que não me disse que Morgan era seu filho? Como posso confiar em
você quando faz segredo de semelhantes coisas? Contou-me que ele era
filho de Mr. e Mrs. Hurst
— mas não, era seu filho. O sétimo filho que teve com Emily Burns. Fiz o
que fiz porque amo o meu pai. Mas o seu filho nunca faria o mesmo por
você. Ele quer destru-
í-lo. Diz que é um velho tolo!
Sabia que tinha ido longe demais, mas o Mago limitou-se a sorrir
sinistramente e a abanar a cabeça.
— Acho que não existe maior tolo do que um velho tolo, e certamente
algumas vezes o fui, mas quanto ao resto. .
Fitou-me com dureza, os seus olhos verdes brilhando intensamente.
— Morgan não é meu filho! É um mentiroso! —
disse-me, dando de repente um murro em cima da escrivaninha, o seu
rosto lívido de raiva. — Foi, é e sempre será. Só está tentando lhe
confundir e manipular. Eu não tenho filhos — algumas vezes me
arrependi, mas se tivesse um filho, acha que o renegaria? O seu pai teria
renegado? Abanei a cabeça.
— Gostaria de ouvir a história toda, se é assim tão importante para
você?
Anuí.
— Bem, não vou negar que roubei Emily Burns do meu próprio irmão.
Ou que isso magoou muito a minha própria família. Em particular o meu
próprio irmão.
Nunca o neguei e tenho pouco a alegar em minha defesa a não ser que
era jovem. Desejava-a, rapaz, e tinha de ser minha. Um dia perceberá o
que quero dizer, mas só metade da culpa foi minha. Emily era uma
mulher forte e também me desejava. Mas não tardou a fartar-se de
mim, tal como se fartara do meu irmão. Acabou por arranjar outro
homem.
— Edwin Furner, assim se chamava e, apesar de ser o sétimo filho de
um sétimo filho, trabalhava como curtidor. Nem todos os habilitados a
fazê-lo seguem o nosso ofício. Durante dois anos correu tudo bem, e
eram felizes juntos. Mas logo depois de o segundo filho nascer, ele
ausentou-se durante quase um ano, deixando-a com duas crianças
pequenas.
«Seria preferível que se tivesse mantido longe, mas volte e meia
aparecia, como uma erva daninha. De cada vez que se tornava a ir
embora, ela ficava à espera de outro filho dele. Ao todo foram sete.
Morgan foi o sétimo de Furner. Depois disso, ele nunca mais voltou.
O Mago abanou a cabeça, pesaroso.
— Emily teve uma vida dura, rapaz, e continuamos amigos. Então,
ajudava-a conforme podia. Umas vezes com dinheiro, outras arranjando
trabalho para os moços dela mais crescidos. Como não havia um pai que
cuidasse deles, o que mais podia eu fazer? Quando Morgan tinha
dezesseis anos, arranjei-lhe trabalho em Moor View Farm.
Os Hursts gostaram tanto dele que acabaram por adotá-lo.
Não tinham um filho homem e teria acabado por herdar a fazenda. Mas
ele não gostava do trabalho, e a coisa começou a azedar. Não aguentou
nem um ano.
«Como te disse, eles tiveram uma filha. Era mais ou menos da mesma
idade e chamava-se Eveline. Jovens como eram, Morgan e Eveline
apaixonaram-se. Os pais não aceitaram porque queriam que eles fossem
irmão e irmã, de modo que batiam nos dois; tornaram a vida deles um
inferno. Por fim, não aguentando mais, Eveline afogou-se no lago.
Depois disso, Emily suplicou-me que afastasse Morgan de lá e o
aceitasse como meu aprendiz.
Na altura, pareceu-me uma solução razoável, mas tinha as minhas
dúvidas e constatei que estava certo. Aguentou três anos, até que
finalmente voltou para Emily, mas não conseguia se manter afastado de
Moor View Farm. Ainda vai lá às vezes — pelo menos quando não anda a
fazer maldades em outros lados.
«A irmã deve ser uma apegada, alguém que não consegue atravessar
para o outro lado. E por causa disso, ele tem-na em seu poder. E não há
dúvidas de que está ficando mais forte. Parece sem dúvida ter exercido
algum poder sobre você. É melhor me contar exatamente o que se
passou entre vocês os dois.
Assim fiz, e enquanto falávamos, o Mago pedia-me constantemente
pormenores. Comecei pelo meu encontro com Morgan na capela do
cemitério à beira da charneca e terminei com a nossa conversa junto à
campa de Emily Burns. — Estou entendendo — disse o Mago quando
terminei. — Agora está bastante claro. Conforme te disse antes, Morgan
sempre sentiu fascínio pela antiga elevação tumular na charneca. Se for
escavando sucessivamente, acabará por encontrar algo. Bem, quando
ele era meu aprendiz, acabou por encontrar uma arca selada com
o grimoire lá dentro. E esse grimoire contém um ritual que é a única
maneira de invocar Golgoth. Foi então o que ele tentou fazer. Felizmente
cheguei antes do ritual ter ido longe de mais e pus-lhe fim.
— O que teria acontecido se ele conseguisse? —
inquiri.
— Nem é bom pensar nisso, rapaz. Um erro no ritual e ele teria morrido.
Antes isso do que concluí-lo com êxito. Sabe, ele seguiu as instruções à
letra e desenhou um pentagrama no chão do seu quarto em Moor View
Farm, uma estrela de cinco pontas dentro de três círculos concêntricos.
Por isso, se acertasse no resto, estaria suficientemente seguro lá dentro.
Mas Golgoth teria se materializado no exterior do pentagrama e andaria
à solta pelo Condado. Não foi em vão que lhe chamaram o Senhor do
Inverno. Podiam passar anos antes de o Verão regressar.
A morte pelo frio gélido e a fome poderiam ter sido o nosso destino.
Morgan ofereceu o cão da fazenda em sacrifício. Golgoth nunca lhe tocou
mas o pobre animal morreu de susto.
«Portanto, como disse, impedi Morgan a tempo.
Terminei o aprendizado dele e tirei-lhe o grimoire. Depois, a mãe dele e
eu o obrigamos a prometer que deixaria Golgoth em paz e não tentaria
invocá-lo de novo. Ela acreditou na sua promessa, e por causa dela dei-
lhe todas as oportunidades e sempre tive esperança de que a sua fé nele
se justificasse. Mas, apesar de lhe ter interrompido o ritual, algum do
poder de Golgoth fora já despertado e ligou-se a ele. A sua mãe estava
certa — este vai ser um Inverno muito, muito rigoroso. Estou convencido
de que tem a ver com Golgoth e Morgan. Quando Morgan deixou de
estar sob a minha alçada, virou-se para o escuro e os seus poderes têm
vindo a aumentar. E está convencido de que o grimoire lhe conferirá o
derradeiro poder.
— Ele já consegue fazer coisas que um homem não deveria. Algumas
são pouco mais do que truques de magia, como mudar a temperatura
numa divisão para impressionar os crédulos. Mas parece que agora ele
consegue também submeter os mortos à sua vontade — não apenas os
fantasmas mas outros espíritos que pairam no Limbo entre esta vida e o
outro lado. Custa-me dizer isto, mas a situação parece muito sinistra.
Temo sinceramente que Morgan tenha a capacidade de fazer mal ao
espírito do seu pobre pai. .
O Mago olhou para a clarabóia, depois para a escrivaninha. Abanou a
cabeça, contristado.
— Bem, rapaz, vá lá para baixo e falaremos um pouco mais do assunto. .
Quinze minutos depois, o meu mestre estava ali sentado em silêncio na
cadeira de balanço de Meg e uma sopa de ervilha fervia numa panela.
— Tem muito apetite, rapaz? — perguntou.
— Não como desde ontem — respondi-lhe.
Ao ouvir aquilo sorriu, expondo o intervalo onde o demônio lhe partira o
dente da frente, levantou-se, colocou duas tigelas em cima da mesa e
serviu a sopa quente com uma concha. Em breve eu deitava pão na sopa
fumegante. O Mago dispensou o pão mas esvaziou a sua tigela.
— Lamento muito que o seu pai tenha falecido —
disse, afastando de si a malga vazia. — Não deveria ter nada a temer
depois da morte. Infelizmente, Morgan está usando o poder de Golgoth
para lhe fazer mal e lhe atingir através dele. Mas não se preocupe,
rapaz, vamos pôr fim a isto assim que pudermos. E quanto ao outro
disparate, Morgan não é meu filho nem nunca foi. — Voltou a olhar-me
nos olhos. — Então, acredita em mim?
Anuí, mas não devo ter sido suficientemente convincente porque o Mago
suspirou e abanou a cabeça.
— Bem, rapaz, ou é ele o mentiroso ou então sou eu. Convém decidir
qual de nós o é. Se não existir confiança entre nós, é inaceitável
continuar como meu aprendiz. Mas uma coisa é certa, não deixaria você
ir para o lado dele. Antes disso, agarraria você pela nuca, lhe devolveria
à sua mãe e deixaria que ela te metesse algum juízo nessa cabeça dura.
O tom dele foi áspero e, apesar de tudo o que acontecera, senti-me
realmente atrapalhado.
— Não me poderia devolver à minha mãe — respondi-lhe com azedume.
— Cheguei tarde demais ao funeral e nem sequer a consegui ver. Logo
depois ela partiu para algum lugar — talvez a sua própria terra. Não
creio que ela vá voltar. .
— Bem, dê-lhe espaço, rapaz. Ela acabou de perder o marido e precisa
de tempo para chorar e pensar. Mas você vai voltar a vê-la e não tardará
muito, tenho certeza.
E isto não é uma profecia. É o bom senso a falar. Se ela for, que seja,
mas antes de tal irá querer despedir-se como deve ser de todos os seus
filhos.
«Seja como for, o que Morgan tem estado a fazer é uma coisa terrível,
mas não se preocupe — irei encontrá-lo e impedi-lo de uma vez por
todas.
Sentia-me cansado demais para dizer fosse o que fosse, pelo que me
limitei a acenar com a cabeça. Só esperava que ele tivesse razão.
CAPÍTULO 18
A CAPELA DOS MORTOS
Apesar de todas as promessas do Mago, não foi possível tratar logo de
Morgan. Durante as duas semanas seguintes o tempo esteve tão mau
que quase nunca saímos de casa.
As tempestades de neve sucediam-se sobre a ravina, atirando os flocos
a rodopiar contra as janelas e enterrando a parte da frente da casa
quase até ao nível dos quartos do primeiro andar. Começava a acreditar
que Golgoth fora efetivamente despertado e fiquei grato por Shanks ter
tido a idéia de entregar provisões extra. Quando chegou a terça-feira
indicada por Morgan para o nosso encontro, fiquei nervoso e esperei em
parte vê-lo aparecer lá em casa.
Mas as tempestades de neve eram tão fortes que ninguém conseguiria
atravessar a charneca. Mesmo assim, cada hora fechado naquela casa
era uma tortura. Estava desesperado por sair e ir procurar Morgan para
pôr fim ao sofrimento do meu pai.
O meu mestre impôs-nos a rotina habitual de dormir, comer e lições
enquanto durou a tempestade de neve, mas acrescentou um elemento
novo. Todas as tardes ele descia as escadas da cave para conversar com
Meg e dar-lhe algum alimento. Normalmente eram apenas algumas
bolachas mas por vezes ele levava para baixo os restos do nosso
almoço. Fiquei curioso se os dois falariam quando ele estava lá em
baixo, apesar de saber que era desnecessário perguntar. Tínhamos
combinado não haver mais segredos entre nós mas percebi que o Mago
contava ainda com alguma privacidade.
As duas outras bruxas teriam de se aguentar o melhor que pudessem,
mastigando minhocas, lesmas e tudo o mais que conseguissem retirar da
terra úmida, mas Meg continuava a ser um caso especial. Esperara em
parte que, muito em breve, o Mago voltasse a dar o chá de ervas a Meg
e a trouxesse da cave. Ela era sem dúvida muito melhor cozinheira do
que qualquer um de nós, mas depois de tudo o que acontecera não
conseguia deixar de me sentir mais seguro com ela lá em baixo no poço.
No entanto, o Mago preocupava-me. Apiedara-se? Depois de todos os
avisos para não confiar nas mulheres, ei-lo que voltava a quebrar as
suas próprias regras. Quis dizer-lhe, mas como podia fazer tal coisa se o
via tão transtornado por causa de Meg?
Ainda não comia como devia ser e uma manhã tinha os olhos vermelhos
e inchados como se os tivesse esfregado. Perguntei-me mesmo se
estivera a chorar e isso me fez pensar na minha reação numa situação
semelhante.
E se eu fosse o Mago, com Alice lá em baixo no poço?
Teria feito o mesmo? Perguntava-me também como estaria Alice.
Decidira já que, se o tempo alguma vez melhorasse, perguntaria ao meu
mestre se podia ir fazer uma visita à loja de Andrew para vê-la de novo.
Então, inesperadamente, uma manhã o tempo mudou de fato. Não
parava de pensar na ameaça ao Pai, na esperança de que, na primeira
oportunidade, fôssemos atrás de Morgan. Mas tal não iria acontecer.
Com o sol vieram os assuntos de magos. O meu mestre e eu fomos
chamados para Platt Farm, que ficava mais para leste.
Eram problemas com um demônio, ou pelo menos assim parecia.
Passou uma hora ou mais antes de nos pormos a caminho porque
primeiro o Mago talhou para si um novo bordão de madeira de sorveira,
e quando finalmente chegamos, após uma caminhada difícil de duas
horas pela neve funda, nem sinal do demônio que estivera nas
proximidades e o agricultor desfez-se em desculpas por se ter
equivocado, atribuindo as culpas à mulher, que era dada a
sonambulismo. Contou que ela mudara as coisas na cozinha e fizera
barulho com os tachos e panelas, incomodando a família inteira,
acordando na manhã seguinte sem qualquer lembrança de tal. Ficou
embaraçado por nos ter chamado para nada e quase ansioso demais por
pagar o Mago pelo incômodo.
Fiquei furioso por termos perdido tempo precioso e disse-o ao Mago no
regresso. Ele concordou.
— Aqui há gato — respondeu. — Ou muito me engano, rapaz, ou viemos
numa caçada inútil. Já tinha visto alguém tão interessado em levar a
mão ao bolso e pagar? Abanei a cabeça e estugamos o passo, o Mago na
frente, ansioso por chegar a casa. Uma vez lá, encontramos a porta de
trás já aberta. A fechadura fora forçada.
Depois de ir verificar se a porta e o portão da cave continuavam seguros,
o Mago mandou-me esperar na cozinha e foi lá acima. Passados cinco
minutos desceu, abanando a cabeça, furioso.
— O grimoire desapareceu! — anunciou. — Bem, rapaz, sabemos
perfeitamente de quem isto é obra! Quem mais poderia ser senão
Morgan? Ele tem Golgoth sob o seu poder o suficiente para parar a neve,
e depois arranja uma artimanha para nos roubar.
Pareceu-me estranho que Morgan não tivesse tentado antes roubar
o grimoire. Teria sido bastante fácil durante os verões, quando Meg
estava trancada na cela nas escadas da cave e a parte de cima da casa
se encontrava vazia. Mas depois lembrei-me do que o Mago me dissera
— a promessa que Morgan fizera à mãe de não voltar a tentar invocar
Golgoth. Talvez tivesse cumprido a sua palavra até a mãe morrer;
depois de a chorar, era agora livre de fazer o que lhe conviesse.
— Bem, hoje pouco podemos fazer senão ir a Adlington e pedir ao meu
irmão que venha arrumar a porta
— disse o Mago. — Mas não mencione o grimoire. Eu mesmo lhe contarei
quando achar oportuno. E no caminho, vamos fazer uma visitinha a Moor
View Farm. Sem dúvida encontrarei lá Morgan mas há umas perguntas
que quero fazer aos Hursts.
Fiquei curioso quanto à razão de não querer falar a Andrew
do grimoire, mas deu para perceber que ele não estava com disposição
para perguntas.
Partimos logo para Moor View Farm. Quando chegamos, o Mago foi
sozinho falar com os Hursts e me mandou esperar no pátio. Nem sinal de
Morgan. O meu mestre demorou-se algum tempo na casa da fazenda e
saiu de lá carrancudo. De lábios cerrados, encaminhou-se para a loja de
Andrew.
O Mago agiu como se se tratasse simplesmente de uma visita fraterna,
fazendo com que eu ficasse de novo curioso quanto à razão por que não
mencionava nada do que acontecera. No entanto, foi bom voltar a ver
Alice.
Ela preparou-nos uma ceia tardia e aquecemo-nos defronte da enorme
lareira na sala de estar antes de nos sentarmos à mesa. Quando
terminamos de comer, o Mago virou-se para Alice.
— Foi uma boa ceia, minha jovem — disse, sorrindo-lhe ligeiramente —,
mas agora tenho assuntos particulares a tratar com o meu irmão e Tom.
Por isso é melhor ir se deitar!
— Por que haveria eu de ir me deitar? — perguntou, eriçando-se de
raiva. — Eu vivo aqui, o senhor não.
— Por favor, Alice, faça o que diz John — pediu Andrew com delicadeza.
— Tenho certeza de que existe uma razão muito boa para não querer
que ouça o que vai contar.
Alice deitou um olhar fulminante a Andrew, mas a casa era dele e
obedeceu, quase batendo com a porta e subindo ruidosamente as
escadas.
— Quanto menos ela souber, melhor — referiu o Mago. — Acabei de ir
visitar os Hursts e tive uma conversinha com a mulher sobre a razão da
partida da jovem Alice. Parece que discutiu com Morgan e foi-se embora
furiosa, mas dois dias antes disso, eles tinham andado muito chegados e
passaram muito tempo no quarto dele no térreo. Pode não ser nada. Mas
também pode perfeitamente suceder que ele tenha tentado aliciá-la
assim como procurou fazer aqui com o rapaz — referiu, indicando-me
com a cabeça. — Tentou e falhou. Mas, de qualquer forma, é melhor que
ela não ouça isto. Esta manhã, Morgan ar-rombou-me a casa e roubou
o grimoire.
Andrew ficou realmente preocupado e abriu a boca para falar, mas eu
antecipei-me-lhe.
— Isso não é justo! — protestei com o Mago. —
Alice odeia Morgan. Ela mesma me disse. Por que outra razão iria
embora? De modo algum ela o ajudaria.
O Mago abanou a cabeça, irado.
— Algumas lições custam mais a entrar nessa sua cabeça tola do que
outras! — ripostou. — Ao fim de todo este tempo, ainda não aprendeu
que não se pode confiar plenamente naquela garota. Ela precisa ser
sempre vigiada.
Por isso me certifiquei de que a tinha por perto. Para além disso, não a
permitiria a menos de quinze quilômetros de você. — Bem, esperem lá
— interrompeu Andrew. —
Disse que Morgan roubou o grimoire! Como pode ser tão tolo, John?
Devia ter queimado aquele livro infernal enquanto teve oportunidade! Se
ele tentar de novo aquele ritual, tudo pode acontecer. Tinha esperança
de ver mais alguns verões antes de o meu tempo terminar. Ele devia ter
sido destruído. Só não entendo por que o guardou todos estes anos!
— Olhe, Andrew, isto só a mim diz respeito e vai ter de confiar no que te
digo. Respondo-te que tive as minhas razões.
— Emily, hein?
O Mago ignorou-o.
— O que está feito está feito e desejo que Morgan nunca tivesse levado
o grimoire e que este se encontrasse seguro fechado a sete chaves.
— Também eu! — respondeu Andrew, subindo a voz e ficando mais
furioso a cada segundo. — A sua obrigação é para com o Condado.
Disse-o vezes sem conta.
A sua atitude de conservar aquele livro em vez de o queimar resume-se
a uma incúria no cumprimento desse dever!
— Bem, irmão, agradeço a sua hospitalidade mas não essas palavras
duras — redarguiu o Mago, com uma pontinha de raiva na sua voz. — Eu
não interfiro no seu ofício e você deveria confiar que faço o que é melhor
para todos. Só aqui vim para te pôr a par da situação, mas foi um dia
longo e difícil e está na hora de irmos nos deitar antes que digamos algo
de que nos venhamos realmente a arrepender!
Sem mais delongas, deixamos à pressa a casa de Andrew. Quando
vínhamos descendo a rua, lembrei-me da razão por que lá tínhamos ido
antes de mais.
— Não chegamos a pedir a Andrew que arranjasse a fechadura —
lembrei-lhe. — Quer que volte lá correndo e o faça?
— Nem pense nisso, rapaz — respondeu o Mago, irado. — Nem que ele
fosse o último serralheiro no Condado! Preferia arranjá-la eu mesmo.
— Bem, agora que o tempo melhorou — inquiri
—, podíamos começar a procurar Morgan amanhã? Estou muito
preocupado com o Pai. .
— Deixe isso comigo, rapaz — afirmou o Mago, a sua voz mais suave. —
Pensei em alguns lugares onde Morgan possa estar escondido. O melhor
é eu partir amanhã bem antes da alvorada.
— Posso ir com você? — perguntei.
— Não, rapaz. Sozinho tenho mais chances de apanhá-lo dormindo.
Confie em mim. É melhor assim.
Confiei no Mago. Apesar de encontrar algum sentido no que ele dizia,
continuava a querer ir com ele. Tentei persuadi-lo mais uma vez mas
percebi que só estaria a gastar saliva. Quando se mete uma coisa na
cabeça do Mago, o melhor é aceitar e deixá-lo levá-la por diante.
Na manhã seguinte, quando desci à cozinha, nem sinal do Mago. A capa
e o bordão dele tinham desaparecido e, conforme o prometido, saíra de
casa muito antes da alvorada em busca de Morgan. Quando terminei o
desjejum, o meu mestre ainda não regressara e percebi que a sua
ausência me proporcionava uma ocasião boa demais para ser
desperdiçada. Estava curioso em relação a Meg e decidi fazer-lhe uma
visita à cave para ver como estava.
Então, fui buscar a chave em cima da estante, acendi uma vela e desci
as escadas.
Atravessei o portão e tranquei-o atrás de mim, continuando a descer em
direção à cave, mas quando cheguei ao patamar com as três portas uma
voz chamou subitamente da cela do meio:
— John! John! É você? Reservou a nossa passagem?
Estaquei subitamente. Era a voz de Meg. Libertara-a do poço e metera-a
na cela onde estaria mais confortável. Afinal sempre se apiedara. Não
tardaria que nos próximos dias ela estivesse de volta à cozinha. Mas o
que quisera ela dizer com «reservou a nossa passagem»? Iria ela viajar?
Acompanhá-la-ia o Mago?
Subitamente ouvi Meg cheirar ruidosamente.
— Então, rapaz, o que faz aqui em baixo? Aproxime-se da porta para
que eu possa te ver melhor.
Ela cheirara-me, por isso era impossível afastar-me subindo
sorrateiramente as escadas. Iria sem dúvida contar ao Mago onde eu
estivera. Então, aproximei-me da porta da cela e espreitei lá para
dentro, tendo o cuidado de não me aproximar demais.
O rosto belo de Meg sorriu-me através das grades.
Não era o sorriso sinistro que me deitara quando tínhamos lutado. Para
minha surpresa, foi quase simpático.
— Como está, Meg? — perguntei cortesmente.
— Já estive melhor e já estive pior — respondeu Meg. — Não graças a
você. Mas o que está feito está feito e não te culpo por isso. Você é o
que é. Você e John têm muito em comum. Mas vou te dar um conselho
— isto é, se estiver disposto a escutar.
— Claro que escutarei — disse-lhe.
— Nesse caso, preste atenção ao que tenho a dizer.
Trate bem a garota. Alice gosta de você. Trate-a melhor do que John me
tratou e não se arrependerá. Não é necessário acabar desta maneira.
— Gosto muito de Alice e farei o meu melhor.
— Veja se faz mesmo.
— Ouvi-a perguntar por «reservar uma passagem»
— disse-lhe, virando-me para vir embora. — O que queria dizer?
— Não é da sua conta, rapaz — replicou Meg. —
Podia perguntar a John mas não creio que se desse ao in-cômodo porque
iria obter dele a mesma resposta. E não me parece que ele quisesse
você a andar por aqui sem a sua permissão, não é?
Ante o que murmurei «adeus» e subi as escadas, tendo o cuidado de
trancar o portão depois de sair. Pelo visto, parecia que o Mago tinha os
seus segredos, e desconfiava que sempre haveria de ter. Assim que
coloquei a chave no lugar certo ele regressou.
— Encontrou Morgan? — perguntei, desapontado.
Já sabia a resposta. Se tivesse encontrado, Morgan acompanhá-lo-ia,
amarrado como um prisioneiro.
— Não, rapaz, lamento dizer que não. Julguei que o pudesse encontrar
escondido na torre abandonada em Rivington — referiu o Mago. — Ele
esteve lá recentemente, porém, sem dúvida a tramar alguma. Mas
parece-me que nunca pára muito tempo num lugar. Mesmo assim, não
se preocupe, voltarei a procurá-lo amanhã logo pela manhã.
Bem, entretanto, pode fazer-me um favor. Esta tarde, vá dar uma volta
até Adlington e peça àquele meu irmão para vir consertar a porta de trás
— afirmou o Mago. — E diga-lhe que lamento termos trocado palavras
azedas e que um dia ele irá compreender que fiz tudo com a melhor das
intenções.
As lições vespertinas prolongaram-se até mais tarde do que o costume e
faltavam menos de duas horas para escurecer quando, levando o meu
bordão de sorveira, parti finalmente para Adlington.
Andrew recebeu-me bem e o seu rosto rasgou-se num sorriso quando
lhe transmiti o pedido de desculpas do Mago: aceitou logo ir arranjar a
porta dentro de um dia ou dois. Depois, passei quinze minutos a
conversar com Alice, apesar de ela me parecer um pouco distante.
Provavelmente seria por a terem mandado para a cama na noite
anterior. Depois de me despedir, parti em direção à casa do Mago,
ansioso por regressar antes que escurecesse por completo.
Não estava caminhando há mais de cinco minutos quando ouvi um ruído
leve atrás de mim. Virei-me e vi alguém a seguir-me pela colina acima.
Era Alice, de modo que esperei que ela me alcançasse. Trazia vestido o
casaco de lã e quando se aproximou, os seus sapatos bicudos tinham
deixado pegadas nítidas na neve.
— Estão tramando alguma, estão — afirmou Alice com um sorriso. — O
que foi que eles não quiseram que eu ouvisse a noite passada? Pode me
contar, não pode, Tom? Entre nós não existem quaisquer segredos.
Passamos por muito juntos, se passamos.
O Sol já se pusera e começava a escurecer.
— É muito complicado — disse-lhe, impaciente por partir. — Não tenho
muito tempo.
Alice inclinou-se e agarrou-me o braço.
— Anda, Tom, pode me contar!
— Mr. Gregory não confia em você — expliquei-lhe. — Acha que se
aproximou demais de Morgan.
Mrs. Hurst contou-lhe que você e Morgan passaram muito tempo juntos
no quarto dele no térreo...
— Não é novidade nenhuma o Velho Gregory não confiar em mim! —
exclamou Alice com um sorriso escarninho. — Morgan estava planejando
algo grande. Um ritual, disse, que ia torná-lo rico e poderoso. Queria a
minha ajuda, pois queria, e insistiu e insistiu até eu já não suportar vê-lo
à minha frente. Foi tudo o que aconteceu.
Por isso, Tom, diga-me o que se passa. Pode me contar...
Finalmente, percebendo que ela não iria desistir nunca, cedi, e Alice
caminhou a meu lado enquanto relutantemente lhe explicava o que
sucedera. Falei-lhe do grimoire e de Morgan querer que eu o roubasse e
que andava torturando o espírito do Pai. Depois contei-lhe que tínhamos
sido roubados e íamos agora à procura de Morgan.
Alice não ficou nada satisfeita com o que lhe contei, é o mínimo que
posso afirmar.
— Está dizendo que fomos nós dois à casa do Velho Gregory sem
mencionar o que tinha planejado? Nada de nada! Tencionava ir ao sótão
e não me disse. Não está certo, Tom. Olha que arrisquei a minha vida, e
merecia mais consideração. Muito mais!
— Desculpe, Alice. Peço mil desculpas. Mas só conseguia pensar no Pai e
no que Morgan estava lhe fazendo. Não raciocinava direito. Sei que devia
ter confiado em você.
— Agora já é um pouco tarde. Mesmo assim, acho que sei onde poderias
encontrar Morgan esta noite..
Olhei-a, espantado.
— É terça-feira — referiu Alice —, e nas noites de terça-feira ele faz
sempre a mesma coisa. Tem feito desde o final do Verão, sim. Há uma
capela na colina. Fica dentro do cemitério. Vêm pessoas de muito longe
e ele cobra-lhes dinheiro. Fui lá com ele uma vez. Ele faz os mortos
falar. Não é padre mas tem uma congregação de fazer inveja a muitas
igrejas.
Lembrei-me da primeira vez que o encontrara —
quando recebera notícias sobre o Pai e ia a caminho de casa. Fora
também numa terça-feira. Eu trilhara pelo cemitério e ele saíra de
dentro da capela. Devia ter estado à espera de que a sua congregação
chegasse. Mandara-me também trazer-lhe o grimoire numa terça-feira
logo a seguir ao pôr do Sol. Mas onde é que eu tinha a cabeça? Por que
não somara dois e dois?
— Não acredita em mim? — perguntou Alice.
— Claro que acredito em você — disse-lhe. — Sei onde fica a capela. Já
estive lá antes.
— Nesse caso, por que não passa por lá a caminho de casa? — alvitrou
Alice. — Se eu estiver certa e ele se encontrar lá, pode ir avisar o Velho
Gregory. Talvez consiga chegar a tempo de apanhá-lo! Mas não se
esqueça de mencionar que fui eu que te disse onde ele estava. Talvez
isso o faça mudar de impressão a meu respeito. Não que tenha muita
esperança, porém.
— Venha comigo, sugeri-lhe. — Podia ficar vigiando enquanto eu iria
avisar o Mago. Assim, se não voltarmos a tempo saberemos para onde
ele foi.
Alice abanou a cabeça.
— Não, Tom. Por que haveria de fazê-lo depois do que aconteceu? Não
me agrada que não confiem em mim.
Não é bonito. De qualquer forma, você tem o seu trabalho e eu tenho o
meu. A loja tem estado com muito movimento. Trabalhei o dia todo, se
trabalhei, e agora vou aquecer-me à lareira, não passar o tempo a bater
o dente aqui no frio. Faça o que tem a fazer e deixe que o Velho Gregory
trate de Morgan. Mas não me meta nisto.
Dito aquilo, Alice deu meia volta e começou a descer a colina. Fiquei
desapontado e um pouco triste, mas não podia realmente culpá-la. Se eu
tivera segredos para com ela, por que haveria de me ajudar?
Entretanto, estava quase escuro e as estrelas começavam a brilhar no
céu. Então, sem perder mais tempo, escolhi um percurso que me levou
ao topo da charneca e dei a volta até no muro de pedra seca, no local
exato da mata onde o escalara naquela terça-feira à noite em que ia a
caminho da minha casa. Encostei-me no muro baixo e olhei na direção
da capela. A luz de velas tremulava no vitral. Depois reparei em algo
muito para lá do cemitério.
Pontos dispersos de luz subiam a vertente na minha direção.
Lanternas! Os membros da congregação de Morgan aproximavam-se.
Apesar de não ter certeza, provavelmente ele estaria lá dentro, à espera
de que chegassem.
Virei-me então e segui por entre as árvores tomando imediatamente a
direção da casa do Mago. Tinha de ir buscar o meu mestre e trazê-lo a
tempo de apanhar Morgan. Mas não dera nem uma dúzia de passos
quando saiu alguém das sombras à minha frente. Uma figura
encapuzada com uma capa preta. Estaquei quando avançou para mim.
Era Morgan.
— Desiludiu-me, Tom — disse, a sua voz cruel e dura. — Pedi que me
trouxesse algo. Desiludiu-me tanto que tive de ir lá buscá-lo
pessoalmente. Não foi pedir muito, não é? Não quando estava tanto em
jogo.
Não respondi e ele aproximou-se mais um passo.
Virei-me para fugir, mas antes que me conseguisse mover, ele agarrou-
me pelo ombro. Debati-me por um instante e tentei erguer o meu
bordão para atingi-lo mas levei subitamente um soco forte na têmpora
direita. Ficou tudo escuro e senti-me cair.
Quando abri os olhos, encontrei-me na capela. Doía-me a cabeça e
sentia vontade de vomitar. Estava sentado na última fila de bancos com
as costas apoiadas na parede de pedra fria, virado para o confessionário.
De cada lado dele encontravam-se duas velas enormes.
Morgan estava sentado em frente do confessionário, virado diretamente
para mim.
— Bem, Tom. Tenho assuntos a tratar primeiro.
Mas falaremos disto depois.
— Tenho de regressar — disse-lhe, sentindo dificuldade em formar as
palavras. — Se não o fizer, Mr.
Gregory se perguntará onde estou.
— Deixe-o perguntar. Que importância tem o que ele pensa? Nunca mais
vai voltar. . Agora é meu aprendiz e tenho um trabalho para você fazer
esta noite.
Com um sorriso de triunfo, Morgan entrou no confessionário, usando a
entrada do padre à esquerda. Já não conseguia vê-lo. As velas
projetavam a sua luz na direção da capela mas as duas entradas eram
retângulos completamente escuros.
Tentei levantar-me e fugir mas sentia-me fraco demais e as minhas
pernas ainda não funcionavam bem.
Sentia a cabeça a latejar e a visão turva depois do soco na cabeça, pelo
que só me restava permanecer ali sentado, a tentar dominar-me e
esperançado de que não fosse vomitar. Passados alguns momentos,
chegaram os primeiros membros da congregação de Morgan. Entraram
duas mulheres, ouvi o tinir de metal sobre metal. Não reparara antes,
mas havia uma bandeja de coleta em cobre do lado esquerdo da porta e
cada pessoa depositava nela uma moeda antes de ir ocupar o seu lugar.
Depois, sem um olhar na minha direção, mantendo as cabeças baixas,
sentaram-se num dos bancos da frente.
Os bancos começaram a encher-se mas reparei que todos os que
entravam na capela deixavam lá fora a sua lanterna. A congregação era
sobretudo constituída por mulheres — os poucos homens presentes
eram relativamente idosos. Ninguém falava. Aguardávamos em silêncio
à exceção do tinir das moedas e do ruído da bandeja. Por fim, quando a
maior parte dos lugares foi ocupada, a porta pareceu fechar-se sozinha.
Ou isso, ou alguém lá fora a puxara.
Agora a única luz provinha das velas de ambos os lados do
confessionário. Houve algumas tossidelas, alguém na frente pigarreou e
depois reinou um silêncio expectante em que não se ouvia sequer uma
mosca. Sucedeu exatamente o mesmo que no quarto escuro em Moor
View Farm. Tive a sensação de que os meus ouvidos iam arrebentar. De
repente, senti um arrepio. Avançava para mim uma friagem vinda do
confessionário. Morgan recorria ao poder que alcançara ao tentar invocar
Golgoth.
No silêncio, a voz de Morgan soou subitamente muito alto.
— Irmã minha! Irmã minha, está aí?
Em resposta, ouviram-se três pancadas sonoras no chão da capela, tão
fortes que todo o edifício pareceu estremecer, seguidas de um longo
suspiro entrecortado que veio do escuro da entrada do penitente.
— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — ouviu-se a súplica lamurienta
de uma garota. Pouco mais foi do que um murmúrio, mas cheio de
angústia, a origem da voz da garota novamente naquela entrada escura
do confessionário.
A irmã de Morgan era uma apegada e encontrava-se sob o domínio dele.
Estava ali contrariada.
Ele estava a fazê-la sofrer mas a congregação não o sabia, e senti o
nervosismo, a expectativa e a excitação das pessoas à minha volta,
enquanto aguardavam que Morgan invocasse familiares e amigos que a
morte levara.
— Obedeça-me primeiro. Depois pode descansar!
— atroou a voz de Morgan.
Como se em resposta àquelas palavras, avançou do escuro uma forma
branca ficando emoldurada pela entrada da porta do penitente.
Conquanto Eveline se tivesse afogado por volta dos dezesseis anos, o
espírito dela parecia pouco mais velho do que Alice. O rosto, as pernas e
os braços à mostra eram tão brancos quanto o vestido que usava.
Colava-lhe ao corpo como se saturado de água e tinha o cabelo escorrido
e molhado. Provocou uma onda de espanto entre a congregação, mas o
que mais me atraiu foram os olhos dela. Eram grandes, luminosos e
absolutamente tristes. Nunca olhara para um rosto tão cheio de dor
como o do fantasma de Eveline.
— Estou aqui. O que quer?
— Há outros com você? Outros que desejem falar com alguém aqui
presente?
— Há alguns. Aqui perto está um espírito de criança que dá pelo nome
de Maureen. Gostaria de falar com Matilda, sua querida mãe..
Ante aquilo, uma mulher no banco da frente pôs-se em pé e estendeu os
braços em súplica. Parecia estar tentando falar mas o seu corpo tremia
de emoção e apenas soltou um gemido dos lábios. A figura de Eveline
retro-cedeu para o escuro e algo mais avançou.
— Mãe? Mãe? — exclamou uma nova voz feminina do compartimento do
penitente. Desta vez, pertencia a uma criança muito jovem. — Venha
aqui, Mãe. Por favor, por favor! Sinto tanto a sua falta. .
Então, a mulher saiu do seu lugar e começou a cambalear em direção ao
confessionário, ainda de braços estendidos. Houve uma súbita aspiração
de ar da congregação, e percebi imediatamente porquê. Via-se um vulto
pálido no escuro à direita da porta. Parecia uma menina, não mais de
quatro ou cinco anos de idade, com cabelo comprido a cair-lhe pelos
ombros.
— Dê-me a mão, Mãe! Por favor, dê-me a mão! — exclamou a criança e
uma pequena mão branca saiu do escuro da porta. Estendeu-se para a
mulher, que caiu de joelhos e a agarrou, levando-a ansiosamente aos
lábios.
— Oh, a sua mãozinha está tão fria, tão gelada! —
exclamou a mulher e começou a chorar, os soluços e lamentos
angustiados enchendo toda a capela. Prolongou-se por longos minutos,
até finalmente a mão recuar para a entrada e a mãe voltar vacilante ao
seu lugar.
Depois, seguiu-se mais do mesmo. Umas vezes adultos, outras crianças,
materializaram-se na escuridão da porta do penitente. Houve vislumbres
de sombras de vultos, rostos pálidos e, mais raramente, uma mão
estendida para a vela. E registrou-se quase sempre uma forte reação
emocional do parente ou amigo que estabelecia contato.
Passado um tempo, comecei a sentir-me nauseado com o espetáculo,
desejando que terminasse. Morgan era um homem inteligente e
perigoso, usando o poder de Golgoth para aprisionar estes pobres
espíritos à sua vontade. Enquanto escutava a angústia dos vivos e o
tormento dos mortos, veio-me à idéia o tilintar do dinheiro ao cair na
bandeja de cobre da coleta.
Finalmente terminou. A congregação abandonou a capela em fila e a
porta fechou-se com força atrás deles, como se impelida por uma mão
invisível.
Morgan não deixou logo o confessionário, mas o frio começou
gradualmente a diminuir. Quando saiu e se abeirou de mim, havia
pérolas de suor na sua testa.
— Como está aquele meu pai depois de mandá-lo numa caçada inútil? —
perguntou Morgan com um sorriso cínico. — O velho tolo gostou do
passeio até Platt Farm?
— Mr. Gregory não é seu pai — afirmei com muita calma, levantando-
me, trêmulo. — O nome do seu verdadeiro pai é Edwin Furner, um
curtidor local. Todo mundo sabe a verdade mas você não a consegue
encarar.
Só diz mentira atrás de mentira. Vamos até Adlington perguntar a
algumas pessoas. Vamos perguntar à irmã da sua mãe — ela ainda vive
lá. Se todos afirmarem o mesmo, talvez então eu comece a acreditar em
você. Mas não creio que o façam. Você também é pai — o pai das
mentiras! E contou tantas que agora começa a acreditar nelas!
Lívido de raiva, Morgan desferiu um soco na minha direção. Procurei
esquivar-me mas continuava ainda meio grogue e as minhas reações
eram lentas demais. O punho dele atingiu-me novamente a têmpora,
quase no mesmo lugar que da última vez. Caí, batendo com a nuca nas
pedras.
Desta vez não cheguei a perder a consciência, mas fui levantado do chão
e o rosto dele aproximou-se demais do meu. Senti o gosto a sangue na
minha boca e um dos meus olhos estava quase fechado, tão inchado que
mal conseguia ver por ele. Mas a expressão,no rosto de Morgan era
suficientemente explícita e não me agradou o que vi. Tinha a boca
torcida, os olhos brilhantes e furiosos.
Parecia mais o rosto de um animal selvagem do que de um homem.
CAPÍTULO 19
ROUND LOAF
— Teve a sua oportunidade mas deixou-a escapar! No entanto, já
arranjei outra utilidade para você. De que não irá gostar! Vamos, leve
estas coisas! — resmungou Morgan, atirando algo na minha direção.
Era uma pá. Ainda mal a agarrara já estava me entregando um saco
volumoso, tão pesado que teve de me ajudar a pô-lo ao ombro. Depois
empurrou-me na direção da porta da capela e a seguir para o frio. Fiquei
ali a tiritar, procurando aguentar-me sob o peso do saco, sentindo-me
doente demais e fraco para fugir. Mesmo que o fizesse, tinha certeza de
que ele me alcançaria em segundos e seguir-se-ia outra sova. O vento
começava a soprar com força de nordeste com nuvens a acumular-se
para encobrir as estrelas. Parecia que ia nevar de novo.
Deu-me outro empurrão para que eu começasse a caminhar, depois veio
atrás, levando uma lanterna. Não tardamos a subir até ao topo da
charneca erma coberta de neve, deixando muito para trás as últimas
árvores dispersas. Não tinha outra escolha senão continuar a subir. Se
não me deslocasse com rapidez suficiente, receberia um empurrão nas
costas. Uma vez escorreguei e caí de bruços, largando o saco. Por causa
disso, levei um soco nas costelas, com tanta força que fiquei com pavor
de voltar a cair.
Ordenou-me que pegasse no saco e lá fomos subindo a custo pela neve
até eu perder qualquer noção do tempo. Mas, por fim, chegados ao alto
da charneca, mandou-me parar. Não muito lá à frente havia uma colina
demasiado lisa e arredondada, a sua cobertura de neve brilhando branca
à luz das estrelas que restava. Reconheci então o que era. Round Loaf, a
cripta que o Mago me indicara quando tínhamos ido tratar do demônio a
Owshaw Clough. O monte de terra de onde Morgan desenterrara
o grimoire.
Morgan fez um gesto para leste e empurrou-me à sua frente. A mais ou
menos uns duzentos passos havia um pequeno pedregulho. Quando lá
chegamos, ele mediu rapidamente dez passos para sul dele, enquanto
eu me perguntava quais as chances de conseguir agredi-lo com a pá e
tentar a fuga. Mas sentia-me ainda fraco e ele era maior e muito mais
forte do que eu.
— Cave além! — ordenou, apontando para a neve.
Obedeci e não tardei a atravessar a camada de neve e a alcançar a terra
escura. O solo por debaixo da neve estava congelado e o avanço era
difícil. Perguntei-me se me estaria a obrigar a cavar a minha própria
sepultura, mas ainda não tinha chegado aos trinta centímetros quando a
pá bateu subitamente em pedra.
— Sucessivamente, os tolos têm escavado aquela cripta — referiu,
apontando na direção de Round Loaf. —
Mas nunca descobriram o que eu descobri. Existe uma câmara no fundo,
aqui por debaixo mas a entrada fica muito mais distante do que alguma
vez se desconfiaria. A última vez que desci lá foi na noite a seguir à
morte da minha mãe e tenho estado a tentar recuperar o meu livro
desde então! Agora limpe a pedra — temos muito trabalho pela frente!
Estava aterrado porque suspeitava agora que Morgan tencionava invocar
Golgoth naquela mesma noite.
Mas fiz o que ele me ordenou, e quando terminei, tirou-me a pá e,
usando-a como alavanca, esforçou-se por desencaixar a pedra e desviá-
la para o lado. Levou muito tempo, e quando finalmente conseguiu, a
neve começava a cair, o vento assobiando sobre a charneca e soprando
com cada vez maior intensidade. Vinha aí outra tempestade de neve.
Ergueu a lanterna por cima do buraco, e à sua luz vi degraus que
conduziam à escuridão lá em baixo.
— Comece a descer! — disse-me, erguendo o punho ameaçadoramente.
Estremeci e fiz o que me mandavam, Morgan segurando a lanterna
enquanto eu descia com cuidado, o peso do saco a dificultar-me o
equilíbrio. Eram ao todo dez degraus. Ao fundo deles, encontrei-me num
túnel estreito. No topo dos degraus, Morgan pousara a lanterna e estava
de novo a colocar a pedra. A princípio pensei que fosse ter dificuldade
em consegui-lo, mas acabou por voltar a assentar no lugar com uma
pancada surda, fechando-nos lá dentro como uma lápide encerra os
mortos.
Desceu os degraus trazendo a lanterna e a pá e mandou-me seguir na
frente, ao que obedeci.
Segurava a lanterna alto atrás de mim e ela projetava a minha sombra
lá à frente no túnel, que seguia em linha reta. O chão, as paredes e o
teto eram de terra e fora usada madeira em intervalos para escorar o
teto. Em dado ponto desabara, quase nos obstruindo o caminho, e tive
de tirar o saco antes de me comprimir para passar e arrastá-lo pelo
estreito intervalo atrás de mim. O estado do túnel deixou-me nervoso.
Se o teto desabasse, seríamos enterrados vivos ou ficaríamos
aprisionados para sempre no subterrâneo. Tinha uma forte sensação do
peso enorme da terra por cima de nós.
Finalmente, o túnel desembocou numa grande câmara oval. Era imensa,
com as dimensões generosas de uma igreja razoável e as paredes e o
teto tinham sido construídos em pedra. Mas o mais extraordinário de
tudo era o chão. À primeira vista, julguei que fosse ladrilhado, mas
percebi depois que era um elaborado mosaico descrevendo todo o tipo
de criaturas monstruosas através do posicionamento cuidadoso de
milhares e milhares de pequenas pedras coloridas. Alguns eram seres
míticos sobre os quais lera no Bestiário do Mago, outros que vislumbrara
apenas em pesadelos: híbridos grotescos como o minotauro, metade
touro, metade homem; gigantescos vermes com longos corpos tortuosos
e mandíbulas vorazes; e um basilisco, uma serpente com patas, uma
cabeça em crista e olhos assassinos penetrantes. Cada um destes era
em si suficiente para disputar a minha atenção, mas havia algo mais que
de imediato prendeu o meu olhar. .
E que, mesmo no centro do chão, construído com pedras negras,
estavam três círculos concêntricos e dentro deles uma estrela de cinco
pontas. Soube imediatamente o que era e vi os meus piores receios
confirmados.
Tratava-se de um pentagrama, um dispositivo usado por um
esconjurador de onde lançava fórmulas ou invocava demônios malignos
do escuro. Mas este fora construído pelos primeiros homens que tinham
chegado a Anglezarke a fim de invocarem Golgoth, o mais poderoso dos
Deuses Antigos. E agora Morgan ia usá-lo.
Morgan parecia saber exatamente o que tencionava fazer e logo me pôs
a trabalhar, ordenando-me que limpasse o chão até reluzir, em
particular a seção central do mosaico que representava o pentagrama.
— Não deve haver nem a menor partícula de terra, senão pode correr
tudo mal! — advertiu-me.
Não me dei ao incômodo de perguntar o que queria dizer porque já
percebera tudo. Ele tencionava seguir o ritual mais mortífero
no grimoire. Ia invocar Golgoth enquanto nós ficávamos protegidos no
seu centro. A limpeza era vital porque a terra podia servir para
atravessar as suas defesas.
Existiam várias tinas grandes no fundo da câmara e uma delas continha
sal. No saco que eu carregara, entre outros artigos, incluindo
o grimoire, estava um frasco grande com água e uns panos. Servindo-
me de um pano molhado, teria de esfregar o mosaico com sal, depois
limpá-lo até ele se dar por satisfeito.
Pareceu-me ter levado horas naquilo. De tempos em tempos, olhava à
minha volta, tentando ver se haveria algo na câmara que viesse a
revelar-se útil para vencer Morgan e fugir. Mas ele devia ter abandonado
a pá no túnel porque nem sinal dela na câmara; também não havia mais
nada que eu pudesse usar como arma. Reparei então numa argola
grande de ferro na parede junto ao chão e perguntei-me qual a sua
utilidade. Parecia algo para amarrar um animal.
Quando terminei de limpar o chão, para meu horror, Morgan agarrou-me
de repente, arrastou-me para a parede, amarrou as minhas mãos com
força atrás das costas e prendeu o restante da corda à argola. Depois
dedicou-se com afinco aos preparativos. Senti o meu estômago às
voltas, ao perceber subitamente o que ia acontecer.
Morgan agiria do interior do pentagrama, protegido de algo que
aparecesse na câmara, ao passo que eu ficaria amarrado àquela argola
na parede sem qualquer defesa possível. Iria realizar-se alguma espécie
de sacrifício? Fora essa a finalidade inicial da argola? Depois lembrei-me
do que o Mago dissera a respeito do cão da fazenda. Quando Morgan
experimentara o ritual no seu quarto, o animal morrera de susto. .
Retirou do saco cinco velas pretas grossas que colocou mesmo na
extremidade de cada uma das pontas da estrela do pentagrama. Abriu
então o grimoire e, ao acender cada vela, leu no livro uma breve fórmula
encantatória.
Feito isso, sentou-se de pernas cruzadas mesmo no centro do
pentagrama e, mantendo o livro aberto, olhou diretamente para mim.
— Sabe que dia é hoje? — perguntou.
— É terça-feira — respondi.
— E a data?
Não falei e ele respondeu por mim.
— É o dia vinte e um de Dezembro. O Solstício de Inverno. O meio exato
do Inverno antes de os dias começarem gradualmente a aumentar. Por
isso vai ser uma noite longa. A noite mais longa de todo o ano. E quando
terminar, só um de nós sairá desta câmara — afirmou Morgan. — A
minha intenção é invocar Golgoth, o mais poderoso dos Deuses Antigos.
E vou fazê-lo aqui no preciso lugar onde foi executado pelos antigos.
Esta cripta foi construída num ponto de enorme energia onde as linhas
convergem. Nada mais nada menos do que cinco delas intersectam-se
mesmo no centro do pentagrama onde estou sentado.
— Não será perigoso despertar Golgoth? — perguntei. — O Inverno pode
durar anos.
— E se durar? — inquiriu Morgan. — O Inverno é o meu tempo.
— Mas as sementeiras não crescerão. As pessoas morrerão de fome!
— E daí? Os fracos morrem sempre — respondeu Morgan. — Os fortes
herdam a terra. Com o ritual de invocação Golgoth não terá outra
escolha senão obedecer.
E ficará aprisionado aqui, dentro desta câmara, até eu o libertar.
Aprisionado até me dar o que quero.
— E o que é que quer? — perguntei. — O que pode justificar fazer mal a
tanta gente?
— Quero poder! O que mais dá valor à vida? O
poder que Golgoth me dará. A capacidade de gelar o sangue nas veias
de um homem. Matar com um olhar. Todos os homens me temerão. E,
nas profundezas de um longo e frio Inverno, quando eu matar, quem
saberá que tirei uma vida? E quem poderá prová-lo? John Gregory será o
segundo a morrer, mas não o último. E você morrerá antes dele. —
Morgan riu baixinho. — Você servirá de isca.
De engodo para atrair Golgoth aqui. Tive de me contentar com um cão
da última vez mas um ser humano é muito melhor. Golgoth roubará a
pequena centelha de vida do seu corpo e a acrescentará à dele. A sua
alma também. O
seu corpo e a sua alma se apagarão ambos num instante.
— Tem realmente certeza de que o pentagrama o protegerá? —
indaguei, tentando não pensar no que ele dissera, procurando lançar
alguma dúvida na sua mente.
— Os rituais têm de ser exatos. Se omitir algo ou pronunciar mal uma só
palavra que seja, pode não funcionar. E nesse caso, nenhum de nós
alguma vez sairá desta câmara.
Seremos ambos destruídos.
— Quem te disse isso? Aquele velho tolo do Gregory! — escarneceu
Morgan. — Seria de esperar. E sabe porquê? Porque lhe falta a coragem
para experimentar algo verdadeiramente ambicioso. Ele só sabe obrigar
aprendizes crédulos a abrir poços inúteis antes de voltá-los a encher!
Durante anos, tentou afastar-me disto. Até me obrigou a jurar à minha
mãe que nunca mais voltaria a tentar o ritual. O amor a ela manteve-me
preso a essa promessa, até a sua morte acabar por me libertar e ser
finalmente possível apoderar-me do que é meu! O Velho Gregory é meu
inimigo.
— Por que o odeia tanto? — demandei. — O que pode ele ter feito para
magoá-lo? Tudo o que ele fez foi com as melhores intenções. E de longe
muito melhor pessoa do que você e generoso demais também. Ele
ajudou a sua mãe quando o seu verdadeiro pai foi embora.
Ele deu-lhe um aprendizado e mesmo quando você se virou para o
escuro, poupou-o ao que realmente merecia.
Uma bruxa malévola não é pior do que você, e ela é aprisionada viva
num poço!
— Ele até pode ter feito isso, é verdade — contrapôs Morgan, a sua voz
calma e perigosa. — Mas agora é tarde demais. Tem razão. Odeio-o.
Nasci com um fragmento de escuridão na minha alma. Que foi crescendo
até eu ser o que vê hoje diante de si. O Velho Gregory é um servo da
luz, ao passo que agora eu pertenço completamente ao escuro. Por
causa disso, ele é meu inimigo natural. O escuro detesta a luz. Sempre
foi assim!
— Não! — exclamei. — Não precisa ser assim.
Você tem uma escolha. Pode ser o que quiser. Você amava a sua mãe. É
capaz de amar. Não tem de pertencer ao escuro, não entende? Nunca é
tarde demais para mudar!
— Poupe as suas palavras e cale-se! — retrucou Morgan, furioso. — Já
falamos demais. Está na hora de começar o ritual. .
Por um tempo fez-se silêncio e tudo o que ouvia era o bater do meu
próprio coração. Por fim, Morgan começou a entoar do grimoire, a sua
voz subindo e descendo de um modo rítmico, monótono que me fez
lembrar muito a forma como os padres por vezes rezam perante uma
congregação. A maior parte era em latim mas havia também palavras de
pelo menos uma língua que não reconheci. Continuou sem parar; não
parecia estar acontecendo nada. Comecei a alimentar esperanças de que
o ritual não fosse funcionar ou que ele cometesse um erro e Golgoth não
aparecesse. Mas não tardei a sentir que algo ia mudando.
Estava a ficar ligeiramente mais frio na câmara. A mudança era muito
lenta e gradual, como se algo muito grande estivesse se aproximando
mas tivesse uma boa distância a percorrer. Era aquele frio especial que
sentira anteriormente ao redor de Morgan. O poder que retirara de
Golgoth.
Comecei a perguntar-me quais as minhas chances de ser salvo. Não
demorei muito a perceber que eram muito reduzidas. Ninguém tinha
conhecimento da entrada para o túnel. Apesar de eu ter escavado a
terra e posto a pedra a descoberto, as condições atmosféricas tinham-se
agravado e uma tempestade de neve não tardaria a cobri-la de novo. O
Mago não me encontraria, mas ficaria suficientemente preocupado para
vir à minha procura durante uma tempestade de neve? Se fosse à loja
de Andrew, talvez Alice lhe dissesse para onde eu tinha ido. Mas mesmo
que se dirigisse à capela, quais as chances de encontrar o meu bordão?
Ficara na mata do lado de fora da vedação; nesta altura estaria coberto
de neve.
Constatei que podia mover um pouco as mãos. Daria para alargar a
corda o suficiente para libertá-las? Comecei a tentar, unindo-as e
afastando-as, torcendo os pulsos e os dedos. Pelo menos Morgan não
conseguia detectar as minhas manobras. Estava ocupado demais a
entoar as palavras do ritual, mal fazendo sequer uma pausa quando
virava uma página do grimoire. Depois, quando olhei para ele, percebi
algo mais. Parecia haver sombras novas na câmara. Sombras que não
podiam ser explicadas pela posição das cinco velas. E a maioria das
sombras movia-se. Algumas eram como fumaça negra, outras né-
voas cinzentas ou brancas, contorcendo-se na orla exterior do
pentagrama, como se tentassem entrar.
O que eram? Tratar-se-iam de apegados, acidental-mente apanhados
pela força do ritual e trazidos até este lugar contra a sua vontade? Ou
talvez os espíritos daqueles que tinham sido enterrados na cripta e suas
proximidades. Qualquer das hipóteses era provável, pois era um ritual de
compulsão. E se reparassem em mim? Não poderiam alcançar Morgan:
ele estava protegido. E se percebessem a minha presença?
Mal aquele pensamento entrara na minha cabeça quando comecei a
ouvir tênues murmúrios a toda a minha volta. Era difícil captar o
significado do que proferiam, mas havia ênfase numa ou noutra palavra.
Ouvi duas vezes «sangue» e também a palavra «osso» e depois,
perfeitamente, o meu próprio sobrenome, «Ward».
Comecei a tremer de forma descontrolada. Estava com medo mas
combatia-o intensamente. O Mago dissera-me muitas vezes que o escuro
se alimentava do terror: o primeiro passo para derrotá-lo era enfrentar e
derrotar o nosso próprio medo. Então tentei; seriamente que tentei, mas
era muito difícil porque não enfrentava o escuro munido das técnicas que
aprendera. Não me encontrava de pé, a agarrar um bordão de sorveira
ou a arremessar sal e ferro. Fora amarrado e feito prisioneiro,
completamente indefeso, enquanto Morgan realizava talvez o ritual mais
perigoso que um esconjurador alguma vez tentara.
E eu fazia parte desse ritual, uma centelha de vida que era oferecida a
Golgoth, para prendê-lo a este lugar. E
segundo Morgan, assim que aparecesse, se apoderaria não só da minha
vida mas também da minha alma. Sempre me convencera de que viveria
após a morte. Poderia tal ser-me negado? Conseguiria algo matar a
nossa própria alma?
Mas depois os murmúrios diminuíram gradualmente, as sombras
dissolveram-se e pareceu até ficar um pouco mais quente. As minhas
tremuras abrandaram e soltei um suspiro de alívio, mas Morgan
continuava a entoar e a virar as páginas. Comecei a pensar que a dada
altura ele cometeria um erro e falharia; rapidamente percebi que estava
enganado.
Em breve o frio voltou e com ele os espectros de fumaça, contorcendo-
se e agitando-se nos limites do pentagrama. E desta vez foi pior porque
reconheci um dos espectros. Tinha a forma de Eveline, com olhos
enormes e cheios de medo.
Os murmúrios intensificaram-se e estavam carregados de um ódio tão
intenso que quase lhe senti a amargura; coisas invisíveis rodopiavam em
volta da minha cabeça, passando tão perto que senti correntes de ar
baterem-me no rosto, levantando-me os cabelos no couro cabeludo. Em
breve a ameaça tornou-se mais substancial.
Dedos invisíveis puxavam-me o cabelo ou beliscavam-me a pele do rosto
e do pescoço, e um bafo frio e fedorento deslizou pela minha testa, nariz
e boca.
Novamente tudo se aquietou. Mas foi por pouco tempo. Mais uma vez, a
friagem aumentou e os espectros reuniram-se. E assim continuou,
minuto após minuto, hora após hora durante aquela noite mais longa do
ano.
Mas os períodos de paz e calma eram cada vez mais pequenos; os
tempos de medo maiores. Havia um ritmo no que estava a acontecer. O
ritual ia ganhando poder. Era como as ondas de uma maré a subir vindo
rebentar numa praia rochosa e íngreme. Cada onda era mais furiosa e
intensa do que a que a precedera. Cada uma avançava mais pelos
seixos. E, a cada pico de atividade, o tumulto intensificava-se. As vozes
gritavam nos meus ouvidos e círculos sinistros de luz purpúrea andavam
agora de roda do pentagrama próximo do teto da câmara. E então,
finalmente, após o que pareceram horas de Morgan a entoar
do grimoire, lá conseguiu o que se propusera fazer.
Golgoth obedecera ao seu chamado.
CAPÍTULO 20
GOLGOTH
Por longos minutos aterradores ouvi Golgoth aproximar-se. O próprio
solo começou a tremer e parecia que algum gigante furioso subia em
direção a nós das entranhas da terra. Um gigante com garras imensas
que dilacerava rocha sólida na sua ansiedade de abrir caminho à força
até à câmara.
Se eu estivesse na pele de Morgan, teria ficado apavorado,
simplesmente petrificado do susto, incapaz de articular outra palavra. Ou
teria suspenso o ritual porque era uma loucura prosseguir. Mas ele não o
fez. Morgan continuou simplesmente a ler do grimoire. Rendera-se ao
escuro, procurando o poder por que ansiava, fosse a que custo fosse.
Apesar dos ruídos ameaçadores lá das profundezas, deixara de soprar
qualquer vento, mas as cinco velas pretas começaram a tremular e
quase se apagaram. Perguntei-me qual a sua importância para o ritual.
Eram uma parte vital das defesas do pentagrama? Parecia muito
provável: se se apagassem, ele ficaria tão inseguro quanto eu.
As velas voltaram a tremular, mas nem o menor sinal de medo da parte
de Morgan. Estava completamente absorto no ritual e ia entoando
do grimoire, alheio ao perigo.
O solo começou a tremer com maior violência e vinham mais sons altos
e perturbadores lá de baixo. Nesta altura, havia tantos espectros
reunidos à volta do pentagrama que se fundiam numa névoa
turbilhonante cinzenta e branca e as suas formas individuais já não se
distinguiam. Um vórtice de energia pressionava a barreira invisível que
assinalava o perímetro do pentagrama e ameaçava ceder a qualquer
momento.
Mais alguns momentos e tal teria sucedido — tenho certeza. Mas ocorreu
algo que expulsou os espectros da câmara e provavelmente para o lugar
de onde vinham.
Ao começarem a cair pequenas pedras do teto, ouviu-se um ronco,
juntamente com uma cacofonia de som tangente e triturante, e olhei
para a minha direita, na direção do túnel que nos trouxera até à câmara.
Vi uma avalanche de terra quando o teto desabou, fechando-nos lá
dentro, lançando uma profusão de detritos e poeira para o lado de fora.
Desânimo dos desânimos, o túnel estava agora completamente
bloqueado. Acontecesse o que acontecesse então, ficaria aprisionado ali
para sempre.
Naquele momento, a morte quase teria sido bem-vinda: pelo menos
assim a minha alma sobreviveria.
Porque eu sabia que, muito em breve, Golgoth chegaria e o meu corpo e
a minha alma seriam ambos destruídos. Eu seria aniquilado. E o medo
que senti então deixou todo o meu corpo a tremer.
Mas, muito subitamente, registrou-se uma mudança. Sem aviso, Morgan
parou de entoar e pôs-se em pé.
Os seus olhos arregalaram-se de terror e largou o livro.
Dirigiu-se para a beira do pentagrama: deu um passo na minha direção
e escancarou a boca. Os seus olhos estavam cheios de medo.
A princípio, convenci-me de que tentava falar ou gritar. Agora entendo.
Refletindo, percebo que estava simplesmente a tentar respirar.
Tinham se formado cristais de gelo dentro dos seus pulmões e aquele
passo foi o último que deu. Abrir a boca foi o derradeiro movimento
consciente que fez. Ficou imobilizado à minha frente. Literalmente
congelado, coberto da cabeça aos pés de uma película branca de gelo.
Depois tombou para a frente e, no momento em que a testa, os braços e
os ombros dele bateram no solo, partiu-se como uma estalactite de gelo.
Era como vidro frágil a desfazer-se em estilhaços. Morgan partira-se,
pulverizara-se, mas não brotou sangue porque estava congelado mesmo
até ao âmago do seu ser. Agora estava morto.
Morto e bem morto.
Presumo que tenha cometido um erro caro durante o ritual e Golgoth
materializara-se dentro do pentagrama para matar o necromante ali
mesmo. Por ora, registrava-se uma presença latente dentro dos três
círculos concêntricos. Apesar das cinco velas a tremular não a conseguia
ver mas sabia que estava ali, e sentia olhos frios hostis a me fitar do
pentagrama logo na minha direção.
Senti o desespero de Golgoth em sair. Uma vez fo-ra dele, ficaria livre
para impor a sua vontade ao Condado; livre para o mergulhar em
décadas de Inverno gélido. As chamas das velas voltaram a dançar como
se estivessem a ser bafejadas por um sopro invisível mas eu não podia
fazer nada. Estava apavorado. O que podia eu fazer para salvar o
Condado? Absolutamente nada: estava amarrado à argola de ferro à
espera do meu próprio destino.
Naquele momento, Golgoth dirigiu-se a mim do pentagrama. .
— Jaz um tolo morto à minha frente. É também tolo?
A voz dele encheu a câmara, ecoando de cada canto seu. Era como um
vento agreste, enchendo de neve as sinistras alturas de Anglezarke.
Não respondi e a voz de Golgoth voltou a ouvir-se, desta vez mais baixa
e áspera, como uma lima grossa a raspar num balde de metal.
— Tem uma língua, mortal? Fale, senão congelo-a e parto-a como fiz ao
tolo!
— Não sou tolo — respondi, os meus dentes começando a bater de medo
e frio.
— Apraz-me ouvir isso. Porque se é de fato abençoado com a sabedoria,
então, antes desta noite terminar, elevar-te-ia para lá do ponto mais alto
desta terra.
— Sou feliz como estou — repliquei.
— Sem a minha ajuda, perecerá aqui. É a morte que pretende? Isso te
fará feliz?
Não respondi.
— Só tem de retirar uma vela do círculo. Apenas uma vela.
Faça isso e eu serei livre e você viverá.
Preso à argola, encontrava-me a vários metros da vela mais próxima,
por isso não sabia como queria ele que eu a alcançasse. Mesmo que
fosse possível, não o teria feito. Não podia salvar a minha vida a custa
das milhares de pessoas que sofreriam no Condado.
— Não! — disse. — Não o farei.
— Apesar de aprisionado nos limites deste círculo, ainda posso te
alcançar. Deixe-me mostrar. .
O frio começou a irradiar do pentagrama, o mosaico embranquecendo
com o gelo. Foi-se formando um padrão de cristais de gelo até que
comecei a sentir o frio a subir do chão pela minha carne, principiando a
entorpecer-me até aos ossos. Recordei o aviso de Meg quando saíra de
casa: «. .proteja-se bem do frio. As queimaduras podem fazer cair os
dedos.»
O frio mais intenso atacava-me as costas, junto às minhas mãos, no sítio
onde estavam presas à argola e, à medida que o frio me atacava a
carne, imaginei os meus dedos gelados com o sangue já sem circular, a
ficar enegrecidos e quebradiços, prontos a partir-se como os ramos
mortos de um tronco moribundo. Senti a minha boca abrir-se para
gritar, o ar frio a arranhar-me a garganta por dentro. Pensei na Mãe.
Agora nunca mais a voltaria a ver.
Mas, subitamente, tombei para o lado, afastando-me da argola de ferro.
Olhei para trás e vi que estava em pedaços no fundo da parede. Golgoth
congelara-a e fragmentara-a a fim de me libertar. Fizera-o para que eu
pudesse cumprir a sua ordem. Voltou a falar comigo do pentagrama,
mas desta vez a sua voz pareceu-me mais fraca.
— Retire a vela. Faça-o agora senão roubarei mais do que a sua vida.
Destruirei também a sua alma. .
Aquelas palavras encheram-me de um gelo maior do que o frio que
partira a argola de ferro. Morgan não se enganara. A minha própria alma
estava em risco. Mas, pa-ra salvá-la, bastava obedecer. Continuava com
as mãos amarradas atrás das costas e não tinha qualquer tato. Mas
podia ter-me levantado, avançado para a vela mais próxima e derrubá-
la. Mas pensei naqueles que sofreriam por causa do que eu fizesse. O
próprio frio intenso do Inverno mataria primeiro os velhos e os jovens.
Os bebês morreriam nos berços. Mas a ameaça seria ainda maior. As
sementeiras não cresceriam e não haveria colheitas no próximo ano. E
por quantos anos mais? Não haveria nada para alimentar o gado.
Grassaria a fome. Milhares perece-riam. E a culpa seria toda minha.
Derrubar a vela salvaria a minha própria vida. Salvaria também a minha
alma. Mas o meu primeiro dever era sempre para com o Condado. Podia
nunca mais tornar a ver a Mãe, mas se libertasse Golgoth, alguma vez
conseguiria voltar a encará-la? Sentiria vergonha de mim e eu não
suportaria isso. Custasse o que custasse, tinha de fazer o que estava
certo. Mais valia não ser nada do que viver com a culpa!
— Não o farei — disse a Golgoth. — Prefiro morrer aqui do que libertá-lo.
— Então morra, tolo! — respondeu Golgoth, e imediatamente o frio
começou a intensificar-se. Então fechei os olhos e esperei pelo fim,
enquanto sentia o meu corpo ficar entorpecido. Curiosamente, já não
tinha medo. Enchi-me de resignação. Aceitei o que estava prestes a
acontecer.
O frio deve ter-me feito desmaiar porque depois só me lembro de abrir
os olhos.
Reinavam o silêncio e o sossego na câmara e o ar estava muito mais
quente. Para meu alívio, Golgoth fora embora. Já não sentia a presença
dele. Mas por que não levara por diante a sua ameaça?
O pentagrama estava intacto e as cinco velas continuavam todas acesas.
Conseguia ver lá dentro uma figura deitada de bruços. Reconheci Morgan
pela capa. Desviei rapidamente o olhar. O branco fora substituído por
vermelho. Os pedaços de Morgan tinham começado a descongelar.
Para meu espanto, continuava vivo. Mas por quanto tempo? Estava
preso. Em breve as velas chegariam ao fim e se apagariam e ficaria
mergulhado na escuridão para sempre.
Queria viver e, de repente, comecei a lutar desesperadamente com a
corda. Já não me encontrava preso à argola de ferro mas mantinha as
mãos amarradas atrás das costas. Sentia-as dormentes mas a circulação
retomava-se.
Se ao menos as conseguisse soltar, poderia usar as velas uma de cada
vez. Isso me daria horas de luz de vela para trabalhar. A passagem
estava bloqueada mas podia escavar com as próprias mãos. Valia a pena
tentar. A terra estaria mole. E talvez nem todo o túnel se encontrasse
obstruído.
Até podia acabar por encontrar a pá!
Durante alguns momentos enchi-me de esperança.
Mas a corda não cedia e as minhas tentativas de libertação pareciam
deixá-la ainda mais apertada. A minha lembrança recuou vários meses,
até à Primavera, quando me tornara aprendiz do Mago. Lizzie dos Ossos
amarrara-me num poço tencionando matar-me e usar os meus ossos
para a sua magia negra. Também me debatera, mas não conseguira
escapar. Fora Alice quem me salvara, usando uma faca para me libertar.
Como desejava poder chamar por Alice naquele momento! Mas não
podia. Estava sozinho e ninguém sabia sequer onde eu me encontrava.
Dali a um tempo, cessei o meu esforço frenético para me libertar. Deitei-
me, fechei os olhos e tentei reunir forças para um derradeiro esforço. Foi
então, enquanto permanecia deitado, completamente imóvel, a minha
respiração quase normal, que me lembrei de repente das velas do
pentagrama. Podia usar a chama de uma delas para queimar a corda
que me amarrava! Por que não pensara nisso antes? Sentei-me
rapidamente. Tinha agora uma chance concreta de ficar livre. Mas foi
nesse momento que ouvi um ruído vindo da direção do túnel bloqueado.
O que poderia ser? Teria afinal o Mago tomado conhecimento e vindo em
meu socorro? Mas não me parecia uma pá. Era mais um ruído de
arranhar, como se algo a cavar na terra caída. Poderia ser uma
ratazana? O
ruído estava a aumentar. Poderia ser mais do que uma?
Uma família de ratazanas que vivia nas profundezas da cripta? Dizia-se
que as ratazanas comiam tudo. Havia até histórias de ratazanas que
roubavam bebês recém-nascidos dos berços. E se sentissem o cheiro de
carne humana? Quereriam comer os pedaços do corpo morto de
Morgan? E depois? Se virariam para mim? Me ataca-riam enquanto ainda
estava vivo?
O ruído tornou-se mais forte. Algo escavava no túnel bloqueado em
direção à câmara. Algo abria caminho através da terra. O que poderia
ser? Observei, fascinado mas aterrorizado, quando apareceu um
pequeno buraco mais ou menos na metade entre o teto e o chão da
câmara e a terra resvalou dele, caindo para a beira do chão de mosaicos.
Senti uma corrente de ar que fez tremular as velas. Apareceram duas
mãos mas não eram humanas. Vi dedos alongados e, em vez de unhas,
dez garras curvas que tinham aberto caminho pela terra até à câmara.
Por isso, antes mesmo de a cabeça aparecer, sabia exatamente quem
era.
Não sei como, a lâmia selvagem fugira da cave do Mago e cheirara-me.
Marcia Skelton viera atrás do meu sangue.
CAPÍTULO 21
A ARMADILHA
A lâmia selvagem puxou o corpo pelo buraco e desceu correndo para o
chão de mosaico. Ouvi-a farejar duas vezes, mas não olhava para mim.
Correndo nos quatro membros com a cabeça baixa e o cabelo preto
comprido e gorduroso a arrastar pelo chão, avançou até à beira do
pentagrama, as garras provocando um ruído agudo ao rasparem no
mármore. Estacou e ouvi-a farejar sonoramente ao mesmo tempo que
olhava para o que restava de Morgan.
Mantive-me muito quieto, quase não conseguindo acreditar que ela não
me atacasse logo. Morgan acabara praticamente de morrer, mas tudo
me levava a crer que ela fosse preferir o sangue fresco de uma pessoa
viva. E ouvi então outro barulho vindo do túnel. Algo mais se
aproximava. . Apareceram de novo duas mãos mas estas tinham dedos
humanos com unhas em vez de garras afiadas.
Quando surgiu a cabeça, bastou um olhar para saber quem era. Vi os
malares salientes, os olhos azuis vivos e o cabelo cinza-prateado. Era
Meg.
Saiu de lá, sacudiu-se e avançou na minha direção.
Devia ter deixado os sapatos bicudos do outro lado, mas o som dos pés
descalços ao aproximar-se era assustador.
Não admirava que a lâmia selvagem tivesse mantido a distância. Meg
queria-me só para si, e depois de tudo o que acontecera, não podia
esperar qualquer misericórdia.
Ajoelhou a uma distância alcançável e os seus lábios alargaram-se num
sorriso sinistro.
— Está apenas a um passo da morte — referiu Meg, aproximando-se
mais e escancarando a boca até eu lhe conseguir ver os dentes alvos,
ávida por me morder.
Senti o seu hálito no meu rosto e pescoço e comecei a tremer. Mas
depois ela baixou-se e, para minha surpresa, roeu a corda que me
prendia as mãos.
— Poucos humanos estiveram tão perto de uma bruxa lâmia e
escaparam com vida — disse-me, antes de se levantar. — Considere-se
um sortudo!
Fiquei ali sentado a olhá-la, boquiaberto. Sentia-me fraco demais para
me mexer.
— Levante-se, rapaz! — ordenou. — Não temos a noite toda. John
Gregory está à sua espera. Ele vai querer saber o que estava
acontecendo aqui em baixo.
Pus-me em pé, tremulo, e fiquei ali durante alguns momentos, sentindo-
me fraco e nauseado, receando desfalecer. Por que haveria ela de me
ajudar? O que acontecera entre o Mago e Meg? Levara-lhe comida.
Tinham tido longas conversas. Estaria a fazê-lo porque o Mago lhe
pedira? Haviam voltado a ser amigos?
— Vá buscar o grimoire — mandou Meg, apontando na direção do
pentagrama. — Eu não posso entrar naquele círculo, nem tão pouco
pode Marcia...
Dei um passo em direção ao pentagrama mas estaquei ao ver o livro.
Estava em cima de uma poça de sangue. Não suportava pegar-lhe e de
qualquer forma ficara estragado. Vislumbrei então os restos de Morgan e
o meu estômago agitou-se. Baixei a cabeça, tentando apagar a imagem
da minha mente. Não queria voltar a vê-lo num pesadelo.
— Faça o que te digo, vá buscar o grimoire! — ordenou Meg, levantando
ligeiramente a voz. — John Gregory não te agradecerá por o deixar aqui
para que mais alguém o encontre um dia.
Fiz o que mandavam e entrei no pentagrama. Baixei-me e apanhei o
livro. Estava úmido e pegajoso de sangue. Senti o cheiro e o meu
estômago agitou-se e nauseou-se mais uma vez. Fiz um esforço enorme
para não vomitar e abandonei o pentagrama, pegando na vela mais
próxima. Não me agradava a idéia de voltar a entrar no túnel escuro
acompanhado de duas bruxas lâmia.
Provavelmente, a remoção da vela quebrara o poder do pentagrama e
pensei que Marcia fosse entrar nele para se alimentar. Mas pouco depois
de farejar na direção do corpo, afastou-se. Meg seguia na dianteira com
Marcia em algum lugar atrás de mim. Só esperava que não estivesse
próximo demais dos meus calcanhares. Saímos para a luz pálida que
antecede a alvorada. A tempestade passara, mas continuava a nevar
ligeiramente. O Mago aguardava precisamente do lado de fora da
entrada e baixou-se, estendendo-me a mão. Atirei a vela preta para a
neve e agarrei a sua mão esquerda com a minha; puxou-me lá para
fora. Logo a seguir apareceu a lâmia selvagem, que saiu para a neve.
Abri a boca para falar mas o meu mestre levou um dedo aos lábios a
impor silêncio.
— Tudo a seu tempo. Pode me contar depois —
disse ele. — Morgan está morto?
Anuí e baixei a cabeça.
— Bem, esta pode ser a sua tumba — referiu o Mago.
Com aquelas palavras, afastou-se e agarrou na extremidade da pedra,
posicionando-a. Equilibrou-a sobre a entrada do buraco e quando se deu
por satisfeito, deixou-a cair. Feito isso, ajoelhou e, usando as mãos,
começou a cobrir a pedra com terra solta e neve. Dando-se por
satisfeito, pôs-se em pé.
— Dê-me o livro — ordenou o Mago.
Entreguei-lho, satisfeito por me livrar dele. O Mago pegou nele e olhou
para a capa. Quando o transferiu para a outra mão, ficaram manchas de
sangue nos seus dedos.
Abanando a cabeça, triste e cansado, começou a afastar-se das
elevações da charneca rumando para sua casa de Inverno. Sempre que
eu olhava por cima do ombro via que as duas bruxas lâmia vinham logo
atrás.
Uma vez em casa, o Mago conduziu-me à cozinha, alimentou a lareira
com carvão e, enquanto as chamas ganhavam vida, começou a preparar
o desjejum. Ainda me ofereci para ajudar mas ele indicou-me a minha
cadeira.
— Recupere as suas forças, rapaz — disse-me. —
Passou por muita coisa. Mal senti o cheiro dos ovos a serem cozinhados
e do pão a torrar fiquei muito melhor.
Meg e a irmã tinham-se retirado para a cave mas não queria falar delas.
Era melhor o Mago contar-me o sucedido quando entendesse. Em breve
estávamos ambos à mesa a devorar pratadas de ovos e torradas. Por
fim, sentindo-me reconfortado, limpei o prato com o pão e recostei-me
na cadeira.
— Bem, rapaz, sente-se em condições de falar? Ou deixamos para mais
tarde?
— Gostaria de resolver isto já — respondi. Sabia que mal lhe contasse
tudo o que acontecera me sentiria muito melhor. Seria o primeiro passo
para tirar todo o peso dos ombros.
— Nesse caso, comece pelo princípio e não omita nada! — afirmou o
Mago.
Segui à risca as instruções dele, começando pela conversa que tivera
com Alice na colina, em que ela me dissera onde encontrar Morgan, e
terminando no clímax do ritual — a chegada de Golgoth e as ameaças
que ele me fizera depois da morte de Morgan.
— Calculo que Morgan tenha cometido um erro —
referi. — Golgoth apareceu dentro do pentagrama.
— Não, rapaz — respondeu o Mago, abanando a cabeça, pesaroso —, ele
deve ter recitado o ritual palavra por palavra. Sabe, a culpa foi minha.
Tenho o sangue de Morgan nas minhas mãos.
— Não entendo. O que quer dizer? — perguntei.
— Eu devia ter tratado dele antes, quando tentou invocar Golgoth em
todos aqueles anos — disse o Mago.
— Já nessa altura Morgan era muito perigoso e irrecuperavelmente
perdido mesmo. Eu sabia e devia tê-lo metido num poço, mas a mãe
dele, Emily, pediu-me e suplicou-me que não o fizesse. Ele queria poder
e mostrava-se amargo e distorcido pela raiva, mas ela acreditava que
isso se devia ao fato de a vida ter sido má com ele e lhe ter faltado um
pai para o orientar. Senti uma certa pena do rapaz e cuidei da mãe dele,
deixando que o coração mandasse na minha cabeça. Mas, lá no fundo,
sabia que ele não sentia a falta de um pai. Tanto Mr. Hurst como eu
tentamos sê-lo para ele. Não, o que lhe faltava realmente era a
disciplina para ser um mago, a coragem e a perseverança para dedicar a
vida a uma arte que traz muito pouco em termos de recompensas
mundanas. Mas, ao invés de castigá-lo por tentar invocar Golgoth, pus
simplesmente fim ao seu aprendizado e obriguei-o a jurar-me e à mãe
que não iria atrás de Golgoth nem do grimoire.
«Expulso e sem ofício, Morgan procurou poder e riqueza através da
necromancia e virou-se para o escuro.
Sabia que todos os invernos a tentação do poder de Golgoth aumentaria,
acabando por se tornar avassaladora para ele. Então, preparei-lhe uma
armadilha, mas só se ele tentasse realmente invocar o Senhor do
Inverno é que essa armadilha seria ativada.
— Armadilha? Qual armadilha? Não entendo.
— Ele sempre foi preguiçoso no que tocava aos estudos — contou o
Mago, cofiando pensativamente a barba. — A língua era o seu ponto
fraco e nunca aprendeu cuidadosamente o vocabulário de latim. Era pior
ainda nas outras línguas. Começou a aprender a Prosa Antiga no terceiro
ano. Era a língua falada pelos primeiros homens que chegaram ao
Condado, aqueles que construíram Round Loaf e veneraram Golgoth.
Aqueles que escreveram o grimoire. Ele não foi muito longe. Sabia
pronunciá-la, ler a Prosa Antiga em voz alta, mas havia graves lacunas
nos seus conhecimentos.
«Sabe, rapaz, eu não podia correr quaisquer riscos.
O nosso primeiro dever é sempre para com o Condado.
Então, há alguns anos, mandei copiar o grimoire. O texto original foi
destruído e a nova versão encadernada dentro da capa original. Houve
várias trocas de palavras no livro para tornar os rituais inúteis. Mas só
foi efetuada uma mudança no ritual de Golgoth. A palavra wioutan, que
significa «fora» ou «exterior», foi substituída por wioinnan, que significa
«dentro»...
— Então foi por isso que Golgoth apareceu dentro do pentagrama —
afirmei, espantado com a armadilha do Mago. Guardara aquele segredo
durante anos.
— Não confiava em Morgan, de modo que lhe preparei um ardil por via
das dúvidas. Deu-me muito trabalho mandar copiar e alterar
o grimoire, mas, como te disse, o nosso dever é proteger o Condado.
Emily sabia o que eu fizera, mas tinha muito mais fé nele do que eu.
Achava que mudaria de atitude e nunca mais tentaria invocar Golgoth.
Ele jurou-lhe, e eu fui testemunha desse juramento. Nunca escondi onde
estava o grimoire. Aquela escrivaninha esteve sempre à vista e Morgan
sabia onde vir, e acabei por constatar que eu tinha razão. Teria vindo
buscá-lo há anos mas o juramento à mãe impedia-o. Assim que soube
que ela morrera, temi o pior e percebi por que Morgan me contatara lá
em Chipenden. .
Seguiu-se um longo silêncio e o Mago voltou a co-fiar a barba,
meditando.
— O que aconteceu no fim? — inquiri. — Por que Golgoth não me
matou? Por que foi simplesmente embora?
— Depois de ser invocado, o seu tempo dentro do pentagrama era
limitado. Cada momento que permanecesse ali estaria a enfraquecer.
Acabou por ter de partir.
Claro, se o tivesse deixado sair, as coisas seriam muito diferentes. Ele
seria livre de vagar pelo Condado, que teria sido assolado por um
Inverno sem fim. Portanto, agiu bem, rapaz. Fez a sua obrigação e não
se pode exigir mais do que isso.
— Como foi que me encontrou? — indaguei.
— Nesse aspecto, os seus primeiros agradecimentos devem ir para a
garota. Como vi que não regressava, vim falar com Andrew e soube a
que horas tinha saído da loja. Foi a sua amiga Alice que me contou onde
havia ido.
Ela queria vir ajudar a te procurar, mas eu não a deixei.
Trabalho melhor sozinho — dispenso uma garota a seguir-me os passos.
Quase tivemos de amarrá-la a uma cadeira para não vir atrás de mim.
Quando cheguei, soprava uma tempestade de neve de nordeste e a
capela estava deserta. Ainda procurei em volta do cemitério, mas não
me demorei muito. Só havia uma pessoa a quem recorrer então. A única
que te poderia encontrar naquelas condições.
«Meg não tardou a lhe farejar. Encontrou o seu bordão na mata no topo
da colina e seguiu o seu rastro até à cripta. Não tardou muito a
encontrar a entrada, mas quando levantei a pedra, o túnel estava
bloqueado. Então, foi Marcia que abriu caminho até você. Já são três a
merecer os seus agradecimentos.
— Três bruxas — frisei.
O Mago ignorou-me.
— De qualquer forma, Alice irá voltar para casa de Andrew, conforme
esperava. Quanto a Meg e à irmã, a partir de agora permanecerão lá em
baixo nas escadas da cave, por detrás do portão — mas não ficará
trancado.
— Nesse caso, o senhor e Meg voltaram a ser amigos? — Não, a situação
não é a mesma que quando nos conhecemos. Gostaria de fazer voltar o
tempo atrás, mas isso não é de todo possível. Sabe, rapaz, chegamos a
um acordo. A situação não pode ficar como está, mas falaremos mais do
assunto depois de descansar.
— E o Pai? — perguntei. — Ele ficará bem agora?
— Ele foi um bom homem e agora que Morgan morreu e o seu poder se
quebrou, o seu pai não deveria ter nada a temer. Absolutamente nada.
Ninguém sabe exatamente o que acontece depois de morrermos —
afirmou o Mago, soltando um suspiro. — Se soubéssemos, não existiriam
tantas religiões diferentes a dizerem todas coisas diferentes e a julgarem
todas que têm razão. A meu ver não interessa qual delas siga. Ou
mesmo se caminha sozinho e toma o seu próprio rumo. Desde que viva
a vida como deve ser e respeite a crenças dos outros como o seu pai te
ensinou, decerto não estará muito longe da verdade. Ele irá encontrar o
caminho através da luz, sim. Não há necessidade de se preocupar com
isso. E, por agora, chega de conversa. Teve uma noite longa e difícil, por
isso vá se deitar algumas horas.
Mas fiquei na cama mais do que algumas horas.
Desenvolvera uma febre muito alta e o médico veio três vezes de
Adlington antes de ficar finalmente satisfeito por eu estar em vias de
melhorar. Na verdade, decorreu mais outra semana antes de me
encontrar em condições de ir novamente lá abaixo, com a maior parte
das horas do dia passadas embrulhado num cobertor diante da lareira do
gabinete de trabalho.
O Mago também não exigiu muito de mim nas lições, e decorreu mais
uma semana inteira depois disso até me encontrar de fato apto a descer
a Adlington e ver Alice. Estava sozinha na loja. Como não havia
fregueses, tivemos tempo para uma longa conversa. Falamos na loja,
encostados ao balcão de madeira vazio.
Enquanto estivera doente, o Mago fora lá de visita e ela estava a par de
quase tudo o que sucedera. Portanto, eu só tinha de preencher os
pormenores e pedir mais uma vez desculpa por ter ocultado os fatos.
— De qualquer forma, Alice, obrigado por dizer ao Mago que eu tinha ido
à capela. Caso contrário, nunca teriam me encontrado — afirmei,
chegando então ao fim na minha história.
— Só gostaria que tivesse confiado mais em mim, Tom. Devia ter me
contado muito antes o que Morgan andava a fazer ao seu pai.
— Desculpe — disse-lhe. — No futuro não lhe esconderei nada. .
— Nunca irei cair nas boas graças do Velho Gregory, não é? Ele não
confia nem um pouco em mim!
— Ele tem muito melhor opinião de você do que antes — referi. — Dê-
lhe tempo, é tudo.
— Mas, na Primavera, quando voltar para Chipenden, vou ter de ficar
aqui. Quem me dera ir com você...
— Julguei que gostasse de trabalhar na loja de Andrew.
— Podia ser pior — redarguiu Alice —, mas Chipenden é muito melhor.
Gosto de estar naquela casa grande com o seu jardim. E vou sentir a sua
falta, Tom.
— Também vou sentir a sua, Alice. Mas pelo menos não está em Pendle.
De qualquer forma, no próximo Inverno voltaremos e tentarei vir visitar-
te mais vezes.
— Isso seria bom — afirmou Alice.
Daí a um tempo animou-se e finalmente, quando me preparava para
sair, ela pediu-me que fizesse algo.
— Na manhã em que partir para Chipenden, pedirá ao Velho Gregory se
me leva também?
— Pedirei. Mas não creio que vá servir de nada, Alice.
— Mas vai lhe pedir, não vai? Ele não se vai irritar com você, não é?
— Não se preocupe. Vou lhe pedir.
— Promete?
— Prometo — respondi com um sorriso. Antes, já me metera em
confusão por fazer promessas a Alice, mas desta vez não haveria grande
mal. Na pior das hipóteses, o Mago podia simplesmente recusar.
CAPÍTULO 22
É MELHOR ASSIM
Apesar de ter sido um Inverno frio, decorridas três semanas sobre a
morte de Morgan o tempo estava muito mais quente e iniciou-se o
degelo. Deste modo, foi possível a Shanks efetuar a primeira entrega
desde há uma eternidade. Como sempre, ajudei-o a descarregar, mas
quando foi embora, o Mago seguiu-o por um bom tempo pela ravina
abaixo e tiveram os dois uma longa conversa.
Passados alguns dias, logo a seguir ao desjejum, Shanks veio entregar
um caixão à nossa porta, o pequeno pônei quase cambaleando sob o seu
peso. Depois de ajudá-lo a desamarrá-lo, descemos ele cuidadosamente.
Não era tão pesado quanto parecia mas tinha umas dimensões
avantajadas, e nunca vira um caixão tão bem feito. Tinha duas pegas de
transporte em latão de cada lado e era feito de madeira escura
envernizada. Não o levamos para dentro de casa, preferimos deixá-lo
junto à porta de trás.
— Para que é isto? — perguntei ao Mago, quando Shanks desapareceu
ao longe.
— Saber eu sei, mas terá de descobrir por si mesmo
— respondeu-me, batendo de lado no nariz. — Pense e venha me
procurar quando tiver encontrado a solução.
A hora do almoço chegou sem que visse as minhas suspeitas
confirmadas.
— Vou estar fora alguns dias, rapaz. Acha que consegue se virar
sozinho?
Tinha a boca cheia, de maneira que anuí e continuei a devorar o guisado
de carneiro.
— Não me pergunta onde vou?
— Assuntos de mago? — sugeri.
— Não, rapaz. Isto são assuntos de família. Meg e a irmã vão regressar
à sua terra. Partirão de Sunderland Point e vou acompanhá-las em
segurança durante a viagem.
Sunderland Point ficava a sul de Heysham e era o maior porto no
Condado. Barcos de todo o mundo subiam o rio Lune para ancorar ali.
Soube então que o meu palpite sobre o caixão estava certo.
— Nesse caso, Marcia irá no caixão — afirmei.
— Acertou de primeira, rapaz — disse o Mago com um sorriso. — Uma
dose particularmente grande de chá de ervas deveria mantê-la
sossegada. Não conseguiria embarcar da maneira habitual. Poderia
incomodar os passageiros. No que se refere ao capitão do porto, a irmã
de Meg morreu e ela vai levá-la para ser enterrada no seu país. Para
todos os efeitos, como te disse, irei com elas até ao porto só para ver se
embarcam em segurança. Claro que iremos viajar de noite.
Pernoitaremos sem dúvida numa estalagem e Meg passará as horas do
dia escondida.
Terei pena de vê-la partir, mas é melhor assim.
— Uma vez ouvi-o conversar com Meg sobre um jardim que tinham
partilhado. Era o seu jardim em Chipenden?
— Era sim, rapaz. O jardim ocidental, como deve calcular. Passamos
muitas horas felizes sentados naquele mesmo banco onde agora te dou
com frequência lições.
— Nesse caso, o que aconteceu? — inquiri. — Por que trouxe Meg para
Anglezarke e a colocou na cave? Por que teve de lhe ministrar chá de
ervas?
— O que se passou entre mim e Meg só a nós diz respeito! — retrucou o
Mago, deitando-me um longo olhar inquiridor. Por um momento, pareceu
realmente zangado e percebi que a minha curiosidade me fizera ir longe
demais. Mas depois suspirou e abanou a cabeça penosamente.
— Como sabe, Meg ainda é uma mulher extrema-mente bela e deu fez a
cabeça de muitos homens. Era grande o meu ciúme e discutimos vezes
sem conta. Mas isso não foi tudo. Ela era voluntariosa e fez muitos
inimigos no Condado. Os que a aborreceram aprenderam a temê-la. E
aqueles que vivem com medo durante tempo demais tornam-se
perigosos. Ela acabou por ser acusada de bruxaria e foram apresentados
relatos ao Xerife de Caster. Foi um caso muito sério e mandaram um
polícia prendê-la.
— Ela estaria segura na sua casa de Chipenden, não estaria? O demônio
teria impedido o polícia de se aproximar dela.
— Teria sim, rapaz. E os teria também matado!
Mas ele só estava fazendo o seu trabalho e, apesar de amar Meg, não
queria a perda da vida daquele jovem policial a pesar-me na consciência,
de modo que tinha de me certificar de que Meg desaparecia. Desci à
aldeia e encontrei-me com ele lá e, com a ajuda do ferreiro como
testemunha, consegui convencê-lo de que ela fugira do Condado.
— Consequentemente, trouxe-a para cá e tem passado os verões
trancada na cela nas escadas da cave e os invernos metida dentro de
casa. Era isso ou vê-la a balançar na extremidade de uma corda — como
sabe, em Caster as bruxas são enforcadas. A dada altura, anos depois,
ela saiu e aterrorizou alguns dos habitantes locais. Para apaziguá-los,
tive de prometer que a aprisionaria num poço na cave. Foi por isso que
Shanks ficou tão aflito quando a viu naquela manhã. De qualquer forma,
agora ela vai finalmente regressar à sua terra. É algo que deveria ter
feito há anos mas não conseguia simplesmente deixá-la partir. —
Portanto, ela quer regressar?
— Acho que ela sabe que é melhor assim. Além disso, Meg já não sente
por mim o mesmo que sinto por ela — afirmou, parecendo mais velho e
triste do que alguma vez o vira antes. — Vou sentir saudades dela,
rapaz.
Muitas saudades mesmo. A vida não será igual sem ela.
Era a única coisa que tornava os invernos aqui suportáveis... Ao pôr do
Sol, vi o Mago selar a irmã de Meg, Marcia, no caixão. Depois, quando o
último parafuso de latão foi apertado, ajudei-o a transportá-lo pela
ravina. Era pesado e cambaleávamos um pouco sob ele, esforçando-nos
por manter os pés no solo macio e lamacento, enquanto Meg seguia
atrás levando a sua bagagem. Enquanto descíamos em solene silêncio
até à escuridão do vale, lembrei-me de um funeral real.
O Mago combinara de estar uma carruagem à nossa espera na estrada.
Os quatro cavalos ficaram nervosos quando nos aproximamos, dilatando
as narinas, a respiração a sair em vapor ao luar, e o cocheiro esforçou-
se por controlá-los. Assim que se acalmaram, desceu, parecendo
também muito nervoso, aproximou-se do Mago e levou a mão ao boné
em deferência. Os maxilares tremiam-lhe e parecia pronto a saltar da
própria pele.
— Não há nada a temer e, conforme prometi, lhe pagarei bem. Agora me
ajude a levantar isto — pediu o Mago, batendo no caixão de Marcia.
Içaram-no para o bagageiro na traseira da carruagem e o Mago
observou com atenção enquanto o cocheiro o prendia com uma corda.
Enquanto estavam ocupados, Meg aproximou-se e sorriu-me
sinistramente, mostrando os dentes.
— É um rapaz perigoso, Tom, um rapaz muito perigoso — disse,
aproximando-se mais. — Tenha cuidado, não arranje inimigos demais...
Não soube o que responder.
— Faz-me um favor, rapaz? — murmurou ao meu ouvido.
Anuí, constrangido.
— Ele não é tão frio quanto faz crer a todos — referiu, indicando o meu
mestre. — Cuide dele por mim. —
Então sorri e acenei com a cabeça.
Quando o Mago se reuniu a nós, ela esboçou-lhe um sorriso simpático e
caloroso que me fez pensar que lá no fundo ainda gostava um pouco
dele. E depois pegou-lhe na mão e apertou-a. Ele abriu a boca como se
fosse dizer algo mas as palavras não saíram. Brilhavam lágrimas nos
seus olhos e pareceu sufocado pela emoção.
Embaraçado, virei-lhes as costas e afastei-me alguns passos.
Murmuraram entre si durante alguns momentos, depois encaminharam-
se juntos para a carruagem. Enquanto o cocheiro mantinha a porta
aberta e lhe esboçava uma ligeira vênia, o Mago ajudou Meg a subir.
Depois veio ter comigo.
— Bem, rapaz, nós vamos andando. Volte para a casa — disse o Mago.
— Ajudaria se eu fosse com você? — inquiri.
— Não, rapaz, mas obrigado mesmo assim. Há algumas coisas que
preciso fazer sozinho. Um dia, quando for mais velho, acho que irá
compreender. Mas espero que nunca tenha de passar por nada assim. .
Mas eu já compreendia: lembrei-me de tê-lo visto com Meg na cozinha,
as lágrimas nas suas faces. Sabia o que ele sentia. E conseguia também
imaginar-me no lugar do Mago e a ter de me despedir de Alice pela
última vez.
Era assim que eu e Alice iríamos acabar?
Alguns momentos depois o Mago entrou, e assim que se sentou ao lado
de Meg o cocheiro aplicou o chicote nos dorsos dos quatro cavalos. A
carruagem afastou-se e começou a ganhar velocidade. Seguiram para
norte, rumo a Sunderland Point, enquanto eu regressava lentamente
pela ravina em direção à casa.
Uma vez lá dentro, aqueci sopa de ervilhas para a minha ceia e instalei-
me junto à lareira. O vento não soprava lá fora e não podia deixar de
ouvir os chiados e os gemidos na velha casa. As tábuas do soalho a
assentar, um degrau a ranger, um rato a correr por detrás da parede. E
imaginei até que conseguia ouvir, lá em baixo na cave, muito para lá do
portão de metal, os murmúrios dos mortos e dos quase mortos no fundo
dos poços.
Foi então que me dei conta do ponto onde chegara.
Eis-me ali, sozinho numa casa enorme com uma cave cheia de demônios
e bruxas aprisionados, e não sentia nem um pouco de medo. Era o
aprendiz do Mago e na Primavera completaria o meu primeiro ano de
preparação.
Dali a quatro, eu próprio seria um mago!
CAPÍTULO 23
O REGRESSO A CHIPENDEN
Uma manhã, já mesmo no final de Abril, quando ia buscar água no
regato, o Mago seguiu-me até lá fora. O sol acabara de se erguer por
cima da extremidade da ravina e ele sorriu na direção do seu tênue
calor. Na escarpa por detrás da casa, as estalactites de gelo derretiam
rapidamente, a água a escorrer para as lajes.
— Este é o primeiro dia de Primavera, rapaz —
disse-me —, por isso vamos voltar para Chipenden!
Há semanas que eu ansiava ouvir aquelas palavras.
Desde que regressara sem Meg, o Mago andava muito calado e retraído,
e a casa parecia mais tristonha e deprimente do que nunca. Estava
desesperado por ir embora dali. Então, na hora que se seguiu, andei
numa roda-viva a efetuar todas as tarefas necessárias: limpar as grelhas
e lavar todos os pratos, xícaras e panelas para nos facilitar a vida
quando regressássemos no Inverno seguinte. Por fim, o Mago fechou à
chave a porta de trás e começou a descer a ravina em grandes
passadas, comigo atrás todo satisfeito, levando os dois sacos do
costume assim como o meu bordão de sorveira.
Não esquecera a minha promessa a Alice — perguntar se podia vir
conosco para Chipenden — mas só estava à espera do momento certo,
quando percebi que, em vez de seguirmos o percurso mais direto para o
norte, tínhamos tomado o rumo de Adlington. Apesar de ele ter ido lá no
dia anterior, calculei que o Mago quisesse despedir-se mais uma vez do
irmão. Continuava a hesitar em mencionar Alice quando avistamos a
loja.
Para minha surpresa, tanto Andrew como Alice vieram nos receber na
rua empedrada. Alice trazia uma pequena trouxa com os seus pertences
e parecia a postos para uma viagem. Sorria e mostrava-se
entusiasmada.
— Tenha um bom e próspero Verão, Andrew —
gritou o Mago, animado. — Nos vemos em Novembro!
— Para você também, irmão! — respondeu Andrew acenando. Depois,
para meu enorme espanto, o Mago virou costas e começou a afastar-se
e, quando me voltei para segui-lo, Alice acertou o passo comigo sorrindo
de orelha a orelha.
— Oh, esqueci-me de te dizer, rapaz — falou o Mago por cima do ombro
—, Alice irá ficar conosco em Chipenden nas mesmas condições de
antes. Tratei de tudo ontem com Andrew. Ela precisa estar num lugar
onde eu a possa vigiar atentamente!
— Grande surpresa, não é, Tom? Está satisfeito por me ver, não está? —
inquiriu Alice.
— Claro que estou satisfeito por te ver e muito contente mesmo por ir
regressar conosco a Chipenden. É
a última coisa que esperava. Mr. Gregory não me disse nada. — Oh! Ele
fez isso? — Alice soltou uma gargalhada. — Bem, agora já sabe o que
sente quando as pessoas escondem segredos e não te dizem coisas que
devia saber!
Isso é para aprender!
Também me ri. Não levava a mal o sarcasmo de Alice. Eu merecia-o.
Devia ter-lhe contado tudo sobre a minha intenção de roubar
o grimoire. Se o tivesse feito, ela poderia ter metido algum juízo na
minha cabeça. Mas isso já passara e caminhamos os dois felizes no
nosso tão esperado regresso a Chipenden.
No dia seguinte houve outra surpresa. O caminho de regresso a
Chipenden levou-nos a cerca de seis quilômetros e meio da nossa
fazenda. Ia perguntar se podia ir fazer uma visita mas o Mago
antecipou-se.
— Acho que devia ir visitar a sua família, rapaz.
Pode ficar a saber se a sua mãe voltou; se sim, estará à espera de te
ver. Eu vou andando, e aproveito para ir ver um cirurgião.
— Um cirurgião? Está doente? — indaguei, começando a ficar
preocupado com ele.
— Não, rapaz. O homem em questão também é dentista. Tem uma
grande variedade de dentes de mortos e deve haver alguma coisa que
me sirva — disse, esboçando-me um largo sorriso pelo que pude ver o
intervalo que ficara no sítio onde o demônio lhe partira o dente da
frente.
— Onde é que ele os vai arranjar? — perguntei, abismado. — Aos
ladrões de sepulturas?
— A maior parte vem de antigos campos de batalha — explicou o Mago,
abanando a cabeça. — Ele vai fazer-me uma dentadura e em breve
estarei como novo.
Tem também uma bela variedade de botões de osso. Meg costurava
todos os seus vestidos e era uma das suas melhores clientes — referiu o
Mago, pesaroso.
Fiquei satisfeito ao ouvir aquilo. Pelo menos os botões dela não tinham
vindo das suas antigas vítimas, como suspeitara inicialmente.
— Bom, vá lá então — disse o Mago —, e leve a garota com você para te
fazer companhia no caminho de regresso.
Adorei obedecer. Era óbvio que o Mago não queria Alice a segui-lo. Mas
eu teria o problema de sempre. Jack não a queria um passo para lá dos
limites da fazenda e, como a Fazenda do Cervejeiro agora lhe pertencia,
nem valia a pena discutir.
Uma hora ou mais depois de Alice e eu termos avistado a fazenda,
reparei em algo muito estranho. Para norte, mesmo a seguir ao limite da
fazenda, ficava a Colina do Carrasco, onde uma pluma de fumaça escura
se elevava agora das árvores no seu topo. Alguém acendera uma
fogueira ali. Quem faria semelhante coisa? Nunca ninguém lá ia porque
era assombrada pelas imagens fantasmagóricas dos homens que tinham
sido enforcados durante a guerra civil que grassara no Condado gerações
antes. Até os cães da fazenda a evitavam.
Instintivamente, soube que era a Mãe. Não entendia por que se
encontrava ali, mas quem mais ousaria fazê-lo? Então, nos desviamos
para leste da fazenda e, uma vez transposto o seu limite norte, subimos
as colinas por entre as árvores. Nem sinal das imagens fantasmagóricas
e a Colina do Carrasco estava silenciosa e sossegada, os ramos despidos
brilhando ao sol naquele fim de tarde. As árvores estavam a rebentar
mas faltaria ainda uma semana ou mais para as folhas aparecerem. A
Primavera viera muito tarde este ano.
Assim que alcançamos o seu topo, tive a confirma-
ção. A Mãe estava sentada diante de uma fogueira olhando para as
chamas. Estava abrigada debaixo de um refúgio de troncos, ramos e
folhas mortas que a protegiam do sol.
Tinha o cabelo empastado de terra e parecia não se lavar há muito
tempo. Perdera também peso e o rosto estava descarnado, o semblante
triste e cansado, talvez da própria vida.
— Mãe! Mãe! — exclamei, sentando-me ao lado dela na terra úmida. —
Está bem?
Não me respondeu logo e notava-se uma expressão distante no olhar.
Cheguei a pensar que não tivesse me ouvido. Mas depois, continuando a
fitar a fogueira, colocou a mão esquerda no meu ombro.
— Ainda bem que voltou, Tom — disse por fim.
— Há dias que estou à sua espera. .
— Por onde andou, Mãe?
Não respondeu, mas, após uma longa pausa, ergueu o olhar e encarou-
me.
— Em breve seguirei o meu caminho mas precisamos conversar antes de
eu partir.
— Não, a Mãe não está em condições de ir a nenhum lugar. Por que não
desce à fazenda e se alimenta?
Precisa também de uma boa noite de sono. Jack sabe que está aqui?
— Sabe, filho. Jack vem me ver todos os dias e me pede que faça o que
acaba de dizer. Mas é doloroso demais descer até lá agora sem o seu pai
na casa. Fiquei muito abalada, Tom, e tenho o coração destroçado. Mas
agora que finalmente chegou, farei um esforço para ir lá em baixo pela
última vez antes de abandonar em definitivo o Condado.
— Não vá, Mãe! Por favor não nos abandone! —
supliquei. A Mãe não respondeu, limitando-se a fitar as chamas.
— Pense no seu primeiro neto, Mãe! — continuei, desesperadamente. —
Não o quer ver nascer? Não quer também ver a pequena Mary crescer? E
então eu? Preciso de você! Não quer que eu conclua o meu aprendizado
e me torne mago? A Mãe salvou-me no passado e posso precisar
novamente da sua ajuda para conseguir chegar lá...
A Mãe continuou sem responder e, de repente, Alice sentou-se de modo
a ficar logo de frente para ela do outro lado da fogueira.
— Não tem certeza, não é? — perguntou à Mãe, os seus olhos intensos à
luz da fogueira. — Não sabe realmente o que quer fazer.
A Mãe levantou a cabeça, os olhos marejados de lágrimas.
— Que idade tem, minha jovem? Treze, não é? —
perguntou. — Não passa de uma criança. Como pode saber dos meus
assuntos?
— Posso só ter treze anos — retorquiu Alice em tom de desafio —, mas
conheço a vida. Mais do que alguns que a viveram inteira. Algumas
coisas aprendi. Outras sei apenas. Talvez já nascesse a sabê-las. Não
imagino porquê. É assim, pronto. E sei o que se passa com você.
Algumas coisas, pelo menos. Sei que está dividida entre partir e ficar.
Não é assim? É verdade, não é?
A Mãe baixou a cabeça e depois, para meu espanto, anuiu. — O poder do
escuro aumenta, isso é mais do que evidente, e é algo que já disse antes
a Tom — referiu a Mãe, virando-se de novo para mim, os seus olhos
brilhando mais intensamente do que os de qualquer bruxa que eu
alguma vez enfrentara. — Sabe, é o mundo inteiro que está a
desmoronar sob o poder do escuro, não apenas o Condado. Preciso de
combatê-lo no meu próprio país.
Se eu regressar agora, talvez consiga fazer algo antes que seja tarde
demais! E há outras coisas que deixei por resolver.
— Que coisas, Mãe?
— Muito em breve saberá. Não me pergunte agora.
— Mas estaria sozinha, Mãe. O que pode fazer sozinha?
— Não, Tom, não estaria sozinha. Há outros que me ajudariam — muito
poucos, devo confessar.
— Fique aqui, Mãe. Fique aqui e deixe que ele venha até nós —
supliquei. — Vamos enfrentá-lo juntos na minha terra, não na sua. .
A Mãe sorriu com pesar.
— Esta é mesmo a sua terra?
— É sim, Mãe. Este é o Condado, onde eu nasci. A terra a que vim para
poder defendê-la do escuro. Foi o que a Mãe me contou. Disse que eu
seria o último aprendiz do Mago e depois me caberia manter tudo em
segurança.
— Isso é verdade e não o vou negar — afirmou a Mãe, com ar cansado,
fitando as chamas.
— Então fique e vamos enfrentá-lo juntos. O Ma-go está me preparando.
Por que não me prepara também?
Há coisas que a Mãe consegue fazer e ele não. A forma como silenciou
as imagens fantasmagóricas aqui na Colina do Carrasco. Ele disse que
não se podia fazer nada em relação às imagens fantasmagóricas; que
elas com o tempo acabavam simplesmente por sumir. Mas a Mãe
conseguiu.
Ficaram silenciosas por muitos meses! E herdei também outras coisas.
«Avisos de morte», foi o que lhe chamou.
Eu soube quando o Mago esteve recentemente às portas da morte. E,
vendo bem, soube também quando estava a recuperar. E da próxima
vez saberei quando alguém conseguir vencer a doença. Não vá, por
favor. Fique comigo e ensine-me.
— Não, Tom — afirmou a Mãe, pondo-se em pé.
— Lamento, mas já tomei a minha decisão. Ficarei aqui mais uma noite,
mas amanhã partirei.
Soube que já argumentara o suficiente e seria egoísmo continuar.
Prometera ao meu pai que a deixaria partir quando chegasse a altura e
ela tinha chegado. Alice estava certa: a Mãe sentia-se dividida, mas
sabia que não me cabia tomar a decisão por ela.
A Mãe virou-se para Alice.
— Percorreu um longo caminho, minha jovem.
Mais do que alguma vez pude esperar. Mas ainda terá de enfrentar
testes maiores. Vão ambos precisar unir forças contra o que aí vem. A
estrela de John Gregory começa a perder o brilho. Vocês dois são o
futuro e a esperança do Condado. Ele precisa ter ambos a seu lado.
A Mãe olhava-me quando terminou de falar. Fitei por um momento a
fogueira e senti um arrepio.
— A fogueira está quase apagada, Mãe — disse, sorrindo-lhe.
— Tem razão — respondeu a Mãe. — Vamos até à fazenda. Os três.
— Jack não vai gostar de ver Alice — recordei-lhe.
— Pois terá de aguentar — respondeu a Mãe, num tom que me disse que
não toleraria quaisquer interferências de Jack.
E de fato, na felicidade de ver a Mãe de volta, Jack quase não pareceu
dar pela presença de Alice.
Depois de tomar um banho e mudar de roupa, apesar da insistência de
Elie para que descansasse, a Mãe fez questão de preparar o guisado da
ceia. Fiquei entretanto com ela na cozinha e contei-lhe quase tudo o que
acontecera em Anglezarke. Só não lhe disse que Morgan torturara o
espírito do Pai. Conhecendo a Mãe, não me surpreenderia se descobrisse
que ela já o sabia. Mas mesmo que fosse esse o caso, continuaria a ser
muito doloroso para ela. Já sofrerá bastante.
Quando terminei, ela pouco mais fez para além de me abraçar e dizer
que a deixara orgulhosa. Era bom estar em casa. A pequena Mary
dormia que nem um anjinho lá em cima, a vela de cera de abelha estava
no castiçal no centro da mesa, ardia um fogo quente na grelha e a
comida da Mãe fora posta na mesa.
Mas por debaixo da superfície tudo mudara e iria continuar a mudar.
Todos nós o sabíamos.
A Mãe sentou-se à cabeceira da mesa, no lugar que fora em tempos do
Pai, e quase parecia igual a si própria.
Alice e eu sentamo-nos diante de Jack e Ellie. Claro que nesta altura
Jack já se recompusera e eu podia afirmar que não se sentia confortável
com a presença de Alice ali, mas não havia nada a fazer.
Falou-se pouco à mesa naquela noite, mas quando terminamos o
guisado, a Mãe afastou o prato e levantou-se. Olhou para cada um de
nós à vez antes de falar.
— Esta pode muito bem ser a última ceia que partilharemos juntos —
anunciou. — Amanhã à noite irei abandonar o Condado e é possível que
nunca mais volte.
— Não, Mãe. Não diga isso — suplicou Jack, mas ela impôs-lhe silêncio
levantando a mão esquerda.
— Agora todos vocês vão ter de olhar uns pelos outros — referiu com
pesar. — É o que o seu pai e eu desejaríamos. Mas tenho algo a lhe
dizer, Jack. Por isso ouça bem. O que está no testamento do seu pai não
pode ser mudado porque reflete também a minha vontade. O
quarto debaixo do sótão pertencerá a Tom para o resto da sua vida.
Mesmo que você morra e o seu filho o herde, continuaria a ser assim.
Não posso te explicar as minhas razões, Jack, porque não iria gostar do
que eu lhe dissesse.
Mas estão em causa muito mais coisas do que apenas os seus
sentimentos. O meu último desejo, antes de partir, é que aceite
integralmente o que tem de ser feito. Então, filho, aceita?
Jack anuiu e baixou a cabeça. Ellie pareceu assustada e senti pena dela.
— Muito bem, Jack, fico satisfeita por isto se resolver. Agora vá buscar
as chaves do meu quarto.
Jack foi à parte da frente da casa e voltou quase de imediato. Havia ao
todo quatro chaves. As três mais pequenas eram das arcas dentro do
quarto. Jack colocou-as na mesa diante da Mãe, que pegou nelas com a
mão esquerda.
— Tom e Alice — disse a Mãe —, venham os dois comigo. — Dizendo
isto, afastou-se da mesa, saiu da cozinha e começou a subir as escadas.
Dirigiu-se sem hesitações ao seu quarto privado. Aquele que estava
sempre fechado.
A Mãe abriu a porta e segui-a até lá dentro. O
quarto estava igual ao que recordava, cheio de arcas, caixas e baús. No
Outono, levara-me ali e dera-me a corrente de prata que estava na arca
maior, mais próxima da janela.
Sem aquela corrente, estaria agora novamente prisioneiro de Meg ou,
muito provavelmente, teria sido dado a comer à irmã dela. Mas o que
mais haveria dentro das três arcas maiores? Começava a sentir-me
realmente curioso.
Naquele momento olhei para trás de mim. Alice continuava do lado de
fora do quarto, uma expressão nervosa e hesitante no rosto. Fitava o
limiar.
— Entre e feche a porta, Alice — pediu a Mãe, delicadamente. Quando
Alice entrou no quarto, a Mãe esboçou-lhe um grande sorriso e
entregou-me as chaves. —
Tome, Tom, agora são suas. Não as dê a mais ninguém.
Nem sequer a Jack. Conserve-as sempre consigo. Agora este quarto lhe
pertence.
Alice observava tudo, de olhos arregalados. Sabia que ela adoraria
começar a remexer naquelas caixas, descobrir todos os seus segredos.
Tenho de admitir que sentia a mesma vontade.
— Posso ver agora o que está nas arcas, Mãe? —
perguntei.
— Lá dentro encontrará as respostas para muitas coisas que te têm
andado a intrigar; coisas sobre mim que nunca contei, nem mesmo ao
seu pai. O meu passado e o meu futuro estão dentro dessas caixas. Mas
vai precisar de lucidez e astúcia para perceber tudo. Passou por muita
coisa e está cansado e abalado, por isso é melhor esperar que eu tenha
partido, Tom. Volte no final da Primavera e faça-o então, quando estiver
cheio de esperança e os dias forem maiores. Seria o ideal.
Fiquei desapontado, mas sorri e anuí.
— Como queira, Mãe — disse-lhe.
— Há mais uma coisa que preciso lhe dizer. Este quarto é mais do que
apenas a soma do seu conteúdo.
Uma vez trancado, nada de mal conseguirá entrar aqui. Se for corajoso e
a sua alma pura e boa, este quarto é um re-duto, uma fortaleza contra o
escuro, melhor protegida do que até a casa do seu mestre em
Chipenden. Use-o apenas quando algo muito algo terrível te perseguir e
as sua própria vida e alma correrem perigo. É o seu último refúgio.
— Só para mim, Mãe?
A Mãe olhou para Alice e depois de novo para mim. — Alice está aqui
neste momento, por isso, sim, Alice também poderá usá-lo. Foi por isso
que a trouxe aqui agora, só para ter certeza. Mas nunca traga mais
ninguém. Nem Jack, nem Ellie, nem sequer o seu mestre.
— Porquê, Mãe? — inquiri. — Por que Mr. Gregory não pode usá-lo?
Não acreditava que o Mago não pudesse usá-lo em caso de extrema
necessidade.
— Porque há um preço a pagar por usar este quarto. Vocês dois são
jovens e fortes e o seu poder está a crescer. Sobreviverão. Mas, como te
disse, o poder de John Gregory está a diminuir. Ele está a apagar-se
como uma vela. Usar este quarto lhe retiraria o resto das forças.
E, se a necessidade surgir, tem de lhe dizer exatamente isso. E diga-lhe
também que fui eu que o afirmei.
Manifestei a minha concordância e foi tudo. Alice e eu passamos lá a
noite, mas assim que o Sol nasceu, após um bom desjejum, a Mãe nos
mandou partir para Chipenden. Jack ia arranjar uma carroça para vir
buscar a Mãe ao crepúsculo e levá-la a Sunderland Point. Dali partiria
para a sua terra atrás de Meg e da irmã dela.
A Mãe despediu-se de Alice e disse-lhe que fosse andando e esperasse
por mim junto no portão do pátio.
Sorrindo, Alice acenou e afastou-se.
Quando nos abraçamos pelo que sabia ser a última vez, a Mãe tentou
dizer algo, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta e desceu-lhe
uma lágrima pela face.
— O que é, Mãe? — perguntei de mansinho.
— Desculpe, filho — disse-me. — Estou tentando ser forte mas é tão
difícil que já não aguento. Não quero dizer nada que piore a situação
para você.
— Diga-o, por favor, diga o que precisa dizer —
supliquei, agora as lágrimas também nos meus olhos.
— É que o tempo passa tão rapidamente e fui tão feliz aqui. Ficaria se
pudesse, de verdade que sim, mas é minha obrigação partir. Fui tão feliz
com o seu pai. Nunca houve homem mais honesto, sincero e afetuoso. E
a minha felicidade ficou completa quando você e os seus ir-mãos
nasceram. Nunca mais irei conhecer tamanha alegria. Mas agora acabou
e tenho de me libertar do passado.
Está desaparecendo tão rapidamente que mais parece um breve sonho
feliz. .
— Por que tem de ser assim? — perguntei, cheio de amargura. — Por
que tem a vida de ser tão curta, com todas as coisas boas a passarem
rapidamente? Vale sequer a pena vivê-la?
A Mãe olhou-me com tristeza.
— Se alcançar tudo aquilo que espero, então outros irão considerar que
a sua vida valeu a pena ser vivida, filho, mesmo que você não. Nasceu
para servir o Condado.
E é isso que tem de fazer.
Abraçamo-nos com força pela última vez e pensei que o meu coração
não fosse aguentar.
— Adeus, meu filho — murmurou e roçou os lábios na minha face. Foi
dificílimo suportá-lo e afastei-me imediatamente. Mas após alguns
passos virei-me para acenar e vi a mãe acenar também das sombras do
lado de dentro da porta. Quando me virei de novo pouco depois, ela já
voltara para a cozinha.
Então, acabrunhado, rumei a Chipenden com Alice, o último beijo da
minha mãe na face. Ainda só tinha treze anos mas sabia que a minha
infância já terminara.
* * *
Estávamos de novo em Chipenden: as campainhas tinham finalmente
aberto, as aves cantavam e o sol ficava mais quente a cada dia que
passava.
Alice nunca se sentira tão feliz mas estava muito curiosa em relação ao
conteúdo das arcas no quarto da Mãe. Não a posso levar comigo à
fazenda porque isso deixaria Jack e Ellie perturbados demais, mas estou
planejando ir lá no mês que vem e prometi lhe contar tudo o que
encontrasse nelas.
O Mago parece ter recuperado por completo a saúde e todos os dias leva
horas a caminhar pelas extensões rochosas para aumentar a sua
resistência. Nunca o vi tão magro e rijo, mas algo parece ter mudado
dentro da sua cabeça. Por vezes há longos silêncios durante as lições em
que parece esquecer-se da minha presença ali. E olha muito para o
espaço com uma expressão preocupada no rosto. Apesar do fato de
parecer mais forte do que nunca, disse-me que sente que o seu tempo
na terra está chegando ao fim.
Há coisas que quer fazer antes de morrer. Coisas que andou anos e anos
a adiar. Em primeiro lugar, fala em ir para leste de Pendle para acabar
de uma vez por todas com os três agrupamentos de bruxas. São ao todo
trinta e nove bruxas! Parece-me uma tentativa muito perigosa e não
vejo como possa realizá-la. Mas não tenho palavra no assunto e seguirei
o meu mestre para onde quer que ele escolha ir. Continuo a ser o
aprendiz e ele é o Mago.
Thomas J. Ward.
Fim
By anjo_high_tech
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