Post on 08-Jan-2017
Joel Thiago Klein (Organizador)
Nefiponline Florianpolis
2012
Ncleo de tica e Filosofia Poltica
Campus Universitrio - Trindade - Florianpolis
Caixa Postal 476 Departamento de Filosofia / UFSC
CEP: 88040 900
http:// www.nefipo.ufsc.br/
Capa
Foto: Alessandro Pinzani
Design: Leon Farhi Neto Diagramao/editorao: Joel Thiago Klein
C732 Comentrios s obras de Kant: Crtica da Razo Pura / Joel Thiago Klein (Organizador) - Florianpolis: NEFIPO, 2012.
(Nefiponline) 824 p.
ISBN: 978-85-99608-08-1
1. Filosofia moderna ocidental. 2. Immanuel Kant. I. Klein, Joel Thiago . II. Ttulo
CDU: 1KANT
Licena de uso creative commons
http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/deed.pt
NEFIPO Coordenador:
Prof. Dr. Denlson Werle Vice-Coordenador:
Prof. Dr. Darlei DallAngnol
Catalogao na fonte elaborada por: Dbora Maria Russiano Pereira, CRB-14/1125
A Valerio Rohden
Noch weniger darf man hier eine Kritik der Bcher und Systeme der
reinen Vernunft erwarten, sondern die des reinen
Vernunftvermgens selbst. Nur allein, wenn diese zum Grunde liegt,
hat man einen sicheren Probierstein, den philosophischen Gehalt
alter und neuer Werke in diesem Fache zu schtzen; widrigenfalls
beurteilt der unbefugte Geschichtschreiber und Richter grundlose
Behauptungen anderer durch seine eigene, die eben so grundlos
sind.
No se deve esperar aqui uma crtica de livros e sistemas da razo
pura, mas sim a crtica da prpria faculdade pura da razo. Somen-
te sobre a base desta crtica se possui uma pedra de toque segura
para avaliar o contedo filosfico de obras antigas e novas neste
ramo; caso contrrio, o historigrafo e juiz incompetente julga afir-
maes infundadas de outros mediante suas prprias, que so igual-
mente infundadas.
KrV, B 27
SUMRIO
Apresentao ........................................................................................... 3
Lista de abreviaturas................................................................................ 5
Os prefcios (KrV A e B) Christian Hamm ......................................................................... 11
Sentido, sensibilidade e intuio: da Dissertao inaugural a Crtica Orlando Bruno Linhares ............................................................ 41
O argumento da Esttica e o problema da aprioridade: ensaio de um comentrio preliminar
Juan Adolfo Bonaccini ............................................................... 71
A unidade da intuio e a unidade da sntese Paulo Roberto Licht dos Santos ............................................... 145
Lgica geral e lgica transcendental Slvia Altmann .......................................................................... 179
A funo da deduo metafsica na Crtica da razo pura de Kant Rolf-Peter Horstmann .............................................................. 227
A verso definitiva da deduo transcendental das categorias na
primeira edio da Crtica da razo pura Mario Caimi ............................................................................. 249
A deduo transcendental B: objetivo e mtodo Pedro Costa Rego ..................................................................... 287
Para que Kant precisa do captulo do Esquematismo? Marcele Ester Klein Hentz ....................................................... 319
O problema da causalidade luz do naturalismo de Hume e do
criticismo de Kant Andrea Luisa Bucchile Faggion ............................................... 343
A refutao do idealismo: problema, objetivo e resultado do argumento
kantiano Hans Christian Klotz ................................................................ 415
Kant e o problema do ceticismo na Crtica da razo pura Marco Antonio Franciotti ........................................................ 435
Sujeitos capazes de representar, objetos que dependem da mente: Kant,
Leibniz e a Anfibolia Antonio-Maria Nunziante e Alberto Vanzo .............................. 465
A iluso transcendental Julio Esteves ............................................................................. 489
Sobre a terceira antinomia Alessandro Pinzani ................................................................... 561
Refutao do argumento ontolgico, ou filosofia crtica versus filosofia
dogmtica Andrea Luisa Bucchile Faggion ............................................... 591
A representao por analogia na Crtica da razo pura Joosinho Beckenkamp ............................................................ 613
Do uso regulativo das ideias da razo pura Carlos Adriano Ferraz ............................................................. 627
Por construo de conceitos Abel Lassalle Casanave ........................................................... 657
Liberdade e moralidade segundo Kant Guido Antnio de Almeida ....................................................... 695
O Cnon da razo pura Flvia Carvalho Chagas .......................................................... 721
A arquitetnica da razo pura Ricardo Terra ........................................................................... 747
A histria da razo pura: uma histria filosofante da filosofia Joel Thiago Klein ..................................................................... 779
APRESENTAO
Poucos foram os livros que marcaram to profundamente a
histria da filosofia quanto a Crtica da razo pura. Sua influncia
vasta, evidente e incontestvel. Por isso, conhecer essa obra, to
importante quanto difcil, uma tarefa necessria para quem quiser
estudar filosofia, seja a partir do enfoque de sua histria, seja a partir do
enfoque de seus problemas. Ela um divisor de guas a partir do qual se
colocam, de um lado, uma diversidade de posies crticas, de outro,
interpretaes que assumiram de um modo mais ou menos abrangente o
esprito da revoluo copernicana do modo de pensar.
A proposta deste livro no simples: conciliar uma rigorosa
anlise do texto kantiano e a reviso de algumas das principais obras de
literatura secundria, junto com a tentativa de tornar o texto mais claro e
compreensvel. Esse objetivo foi buscado a seu modo por cada um dos
colaboradores: reconhecidos professores e pesquisadores do tema. Este
livro tambm conta com a traduo de alguns artigos j publicados em
outras revistas e livros, os quais foram aqui acrescentados devido a sua
temtica e relevncia.
Ainda que este livro no trate de todos os temas da obra, ele
abarca alguns dos principais e por isso se apresenta como uma excelente
introduo e comentrio Crtica da razo pura. Alm disso, ao ser
disponibilizado online e de forma livre, pretende continuar qualificando
o debate filosfico e os estudos kantianos por todo Brasil, visto que os
estudantes de graduao e ps-graduao em filosofia constituem o seu
pblico alvo.
Por fim, cabe dizer ainda que este o primeiro volume de um
conjunto de comentrios a ser organizado pelo Centro de Investigaes
Kantianas da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual pretende abarcar todo o opus kantiano.
Joel Thiago Klein
Florianpolis, novembro de 2012
LISTA DE ABREVIATURAS
As citaes das obras de Kant correspondem forma recomendada pela
Akademie-Ausgabe e adotada pela Sociedade Kant Brasileira:
Siglum, AA (Bd.-Nr.): Seite[n]. Ex: IaG, AA 08: 30.
Apenas a Crtica da razo pura segue a paginao original A/B, tambm adotada pela edio da Akademie.
Anth Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (AA 07)
Antropologia em sentido pragmtico
Br Briefe (AA 10-13) Cartas
EaD Das Ende aller Dinge (AA 08)
O fim de todas as coisas
FM Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnizens und Wolff's Zeiten in
Deutschland gemacht hat? (AA 20)
Quais so os verdadeiros progressos que a metafsica
realizou na Alemanha desde a poca de Leibniz e
Wollf?
GMS Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (AA 04)
Fundamentao da metafsica dos costumes
GSK Gedanken von der wahren Schtzung der lebendigen Krfte (AA 01)
Pensamentos sobre a verdadeira avaliao das foras
vivas
IaG Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbrgerlicher Absicht (AA 08)
Ideia de uma histria universal com uma inteno
cosmopolita
6 | Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura
KpV Kritik der praktischen Vernunft (AA 05)
Crtica da razo prtica
KrV Kritik der reinen Vernunft (Originalpaginierung A/B)
Crtica da razo pura (Paginao original A/B)
KU Kritik der Urteilskraft (AA 05) Crtica da faculdade do juzo
Log
Logik (Jsche) (AA 09)
Lgica
MAM Mutmalicher Anfang der Menschheitsgeschichte
(AA 08)
Incio conjectural da histria da humanidade
MAN Metaphysische Anfangsgrnde der
Naturwissenschaften (AA 04)
Primeiros princpios metafsicos da cincia da
natureza
MSI De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis (AA 02)
Forma e princpios do mundo sensvel e do mundo
inteligvel
MS Die Metaphysik der Sitten (AA 06)
Metafsica dos costumes
OP Opus Postumum (AA 21 u. 22)
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 7
Pd Pdagogik (AA 09)
Pedagogia
Prol Prolegomena zu einer jeden knftigen Metaphysik
(AA 04)
Prolegmenos toda metafsica futura
Refl Reflexion (AA 14-19) Reflexes
RezHerder
Recensionen von J. G. Herders Ideen zur Philosophie
der Geschichte der Menscheit (AA 08)
Recenses s Idias para uma filosofia da histria da
humanidade de J.G. Herder
RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen
Vernunft (AA 06)
Religio nos limites da simples razo
SF Der Streit der Fakultten (AA 07) Conflito das faculdades
TP
ber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie
richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis (AA 08)
Sobre o dito comum: isso pode ser correto na teoria,
mas no serve para a prtica
UD Untersuchung ber die Deutlichkeit der Grundstze
der natrlichen Theologie und der Moral (AA 02)
Investigao sobre a clareza dos princpios da
teologia natural e da moral
E ber eine Entdeckung, nach der alle neue Kritik der
reinen Vernunft durch eine ltere entbehrlich
gemacht werden soll (AA 08)
Sobre uma descoberta segundo a qual toda nova
crtica da razo pura deveria ser tornada suprflua por
uma anterior.
8 | Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura
GTP ber den Gebrauch teleologischer Principien in der
Philosophie (AA 08) Sobre o uso de princpios teleolgicos na filosofia
V- Vorlesungen (AA 24 ff.)
Prelees
V-Lo/Wiener Wiener Logik (AA 24) Preleo de lgica anotada segundo Wiener
V-Lo/Blomberg Logik Blomberg (AA 24)
Preleo de lgica anotada segundo Blomberg
V-MP/Dohna Kant Metaphysik Dohna (AA 28)
Preleo de metafsica anotada segundo Dohna
V-MP-
K2/Heinze
Kant Metaphysik K2 (Heinze, Schlapp) (AA 28)
Preleo de Metafsica anotada segundo Heinze e
Schlapp
V-MP-L2/Plitz Kant Metaphysik L2 (Plitz, Original) (AA 28) Preleo de metafsica anotada segundo Plitz
V-MP-L1/Plitz Kant Metaphysik L1 (Plitz) (AA 28)
Preleo de metafsica anotada segundo Plitz
V-MP/Volckmann
Metaphysik Volckmann (AA 28)
Preleo de metafsica anotada segundo Volckmann
V-MP/Schn Metaphysik von Schn, Ontologie (AA 28)
Preleo de metafsica anotada segundo Schn
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 9
VT Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in
der Philosophie (AA 08)
Sobre um suposto novo tom elevado na filosofia
WA Beantwortung der Frage: Was ist Aufklrung? (AA
08)
Resposta a pergunta: que esclarecimento?
WDO Was heit sich im Denken orientiren? (AA 08) O que significa orientar-se no pensamento?
ZeF Zum ewigen Frieden (AA 08)
paz perptua
OS PREFCIOS (KRV A E B)
Christian Hamm
Universidade Federal de Santa Maria
Nos dois Prefcios primeira Crtica, Kant expe, de forma
sucinta, os motivos e as ideias centrais do seu empreendimento crtico.
Como Kant, perante a inesperada perplexidade de grande parte dos
leitores da Primeira Edio da obra, se sentia levado a explicitar mais
detalhadamente o esprito revolucionrio da sua nova proposta
filosfica, o prefcio Segunda Edio de 1787 acaba sendo quase trs
vezes mais comprido que o anterior de 1781. O fato de ele ter redigido
uma verso completamente nova do prefcio no significa, no entanto,
que o primeiro se tornou, com isso, simplesmente obsoleto. Bem pelo
contrrio, pode-se dizer que muitos dos elementos doutrinais abordados
no contexto do segundo prefcio ganham sua plena plausibilidade e sua
fora convincente s a luz da exposio feita no primeiro.
Nos pargrafos iniciais do prefcio primeira edio da Crtica
da razo pura1, Kant descreve a situao dramtica, ou at paradoxal,
em que a razo humana se encontra. Ela, lemos, tem o destino
singular de ser incomodada por questes a que no pode esquivar-se,
pois elas lhe so impostas [aufgegeben] pela prpria natureza da
razo; mas so questes que ela tambm no pode resolver, j que
ultrapassam toda a capacidade da razo humana.2 Como a razo no
pode mudar seu destino natural nem ampliar, por fora prpria, a sua
capacidade, tambm natural, de conhecimento, , no entanto, sem
culpa que ela cai neste impasse. O que ela faz, contudo, no intuito de
sair deste impasse, adotar o mesmo procedimento de que se serve no
uso da sua capacidade de conhecimento do mundo emprico: ela
comea com princpios cujo uso inevitvel no curso da experincia e,
ao mesmo tempo, suficientemente comprovado por esta, e se eleva, a
partir destes princpios, a condies sempre mais remotas, tentando,
1 KrV, A VII A XXII. A Crtica da razo pura citada segundo as edies A
(1781) e B (1787); demais citaes das obras de Kant segundo a Akademie-
Ausgabe (AA). - Os realces tipogrficos em negrito so meus, os em itlico (no
original: grifo alemo) so de Kant. 2 KrV, A VII.
12 | Christian Hamm
assim, completar gradativamente todos os princpios j confirmados
pelas cincias naturais, com o fim de alcanar o maior grau possvel de
coeso e unidade nos seus conhecimentos.3 Mas, percebendo que desta
forma o seu labor deve sempre permanecer incompleto, uma vez que s
consegue subir a princpios sempre j condicionados por outros, mas
nunca encontrar algo absolutamente incondicionado, ela v-se obrigada
a lanar mo de princpios que transcendem todo uso possvel da
experincia., envolvendo-se assim em trevas e contradies.4 E
embora isso lhe permit[a] inferir que em qualquer ponto [...] deve haver
erros latentes, ela incapaz de descobri-los, porque os princpios que
emprega [...] transcendem o uso possvel da experincia.5 nisto que
consiste toda a aporia da razo: motivada pela sua prpria natureza a
procurar uma resposta definitiva pergunta pelos seus princpios
ltimos, ela tenta ampliar o campo da sua investigao e encontrar o
ltimo fundamento da experincia alm de toda a experincia, sem
dispor de um instrumentrio que lhe permita a realizao adequada de
tal procura com o resultado de ficar sem soluo, ou, pior ainda, com
muitas solues, mas todas elas altamente discutveis. Como a procura
dessas solues ocorre alm dos limites da experincia, ou seja,
atrs (meta, em grego) da natureza, enquanto mundo fsico, a arena
destas discusses sem fim chama-se Metafsica.6
Antes de passar para as observaes de Kant sobre a histria, a
situao atual e o possvel futuro de uma Metafsica que queira
apresentar-se como cincia,7 faz-se mister olhar ainda um pouco mais
de perto para esse pargrafo introdutrio, que contm alguns
pressupostos implcitos cujo desdobramento ter lugar s em captulos
posteriores da obra. Um destes pressupostos diz respeito expresso
natureza da razo. O que significa que certas questes irrecusveis
so impostas razo pela sua prpria natureza, ou que de sua
natureza que ela continua se elevando a condies sempre mais
remotas? J falar sobre um destino da razo s faz sentido
pressupondo que existem, de fato, certas qualidades essenciais da sua
natureza que so condicionantes deste destino, i.e., qualidades que
fazem com que o incmodo da razo por questes a que no pode
3 KrV, A VII s.
4 Ibid.
5 KrV, A VIII.
6 Ibid.
7 Prol, AA 04: 253.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 13
esquivar-se e que no pode resolver se torne um problema existencial
para ela. Quais so essas qualidades naturais? Ora, o prprio fato de a
razo sentir-se incomodada pelas ditas questes (em vez de, por
exemplo, no dar ateno a elas ou de rejeit-las como questes
simplesmente absurdas), aponta o momento crucial da sua natureza: a
razo evidentemente concebida como faculdade que procede, igual a
qualquer outro ser natural, de um modo orgnico, o que quer dizer,
neste caso, como uma faculdade capaz de organizar sistematicamente
a saber: conforme uma ideia que contm o fim e a forma do todo que
congruente com o tal fim8 no s todos os objetos do seu possvel
conhecimento e as regras e princpios que permitam esse conhecimento,
mas tambm os princpios da sua prpria auto-organizao. este seu
carter estritamente sistematizador a que se deve tanto o seu
incmodo (enquanto preocupao com a possvel incompatibilidade
sistemtica das suas respostas), como tambm e sobretudo, o impulso
ou estmulo que a faz comear e continuar sua procura por uma soluo
do problema, at sem saber como resolv-lo; e , primordialmente, nesta
sua inabalvel perseverana em continuar perguntando at o final, em
esforar-se para alcanar a maior completude e a maior ordem possvel
dos seus conhecimentos, que se manifesta a sua autntica natureza.
bvio que, sem esta pressuposio de um carter naturalmente
sistematizante da razo, todo o seu trabalho crtico ficaria em vo e sem
sentido. S uma razo assim concebida pode ser pensada como tendo a
capacidade e como sentindo, ao mesmo tempo, a necessidade9 de
8 KrV, B 860.
9 Nesta necessidade (em alemo: Bedrfnis) que a razo sente, manifesta-
se, por assim dizer, o lado subjetivo do seu destino peculiar de no poder
esquivar-se de certas questes que lhe so impostas pela [sua] prpria
natureza: enquanto faculdade orgnica, sempre orientada para a
sistematizao mais completa possvel dos seus conhecimentos, ela obviamente
deve ter, na medida em que aceita esse seu destino natural, tambm um forte
interesse em cumprir sua tarefa e em satisfazer, assim, a sua necessidade de
esforar-se neste sentido. - A distino kantiana entre o destino objetivo e
uma necessidade subjetiva da razo (explicitada o mais claramente no seu
opsculo Que significa orientar-se no pensamento?, AA 08:131-148) pode
parecer, a primeira vista, um pouco artificial, mas constitui, na verdade, e no
apenas neste contexto do prefcio, um elemento de argumentao muito
importante. entre esses dois plos que se desenvolve toda a dinmica da
procura dos ltimos fundamentos do nosso saber, e com base nesta dinmica
que se mostra no s qual o curso que a razo pode e deve tomar, ou melhor:
14 | Christian Hamm
entrar naquela arena da Metafsica e de acabar, de vez, com todas as
suas discusses sem fim.
Na descrio desta arena e no esboo da trajetria problemtica
da Metafsica, desde a poca em que ela foi tida pela rainha de todas as
cincias e em que seu domnio, sob a administrao dos dogmticos,
era desptico, at os tempos mais recentes em que ela, em conseqncia de guerras internas, acabou degenerando [...] na mais
completa anarquia,10
Kant caracteriza, em traos gerais, essas
discusses sem fim como sendo motivadas, por um lado, pelos
ataques permanentes da parte dos cticos, uma espcie de nmades
avessos a todo cultivo estvel da terra,11
os quais, convencidos da
futilidade de qualquer especulao metafsica, nada mais queriam do
que pr cobro a mesma; e, por outro, pela reao, no menos persistente,
da parte dos racionalistas, os quais, animados pela parca repercusso s
investidas radicais dos adversrios, continuavam, por sua vez, insistindo
na afirmao das suas falsas pretenses e fazendo, assim, recai[r]
tudo no velho dogmatismo carcomido e naquele descrdito do qual
se tencionara arrancar a cincia: uma disputa que resultou, enfim, em
fastio e num total indiferentismo12
a respeito deste gnero de
investigaes.
Como, no entanto, a razo, em virtude da sua natureza singular,
simplesmente no pode ficar indiferente com relao aos objetos da
Metafsica a procura do incondicionado, as questes da existncia de
Deus, da imortalidade da alma e da liberdade do homem no mundo ,
ela tem de assumir, em vez de contentar-se com um saber deficiente e
meramente aparente, a mais penosa de todas as suas incumbncias, a
saber, a do conhecimento de si mesma, e de realizar, assim, o que
constitui sua verdadeira tarefa: instituir e submeter-se a um tribunal
capaz de assegurar suas reivindicaes justas, mas tambm de repelir
todas as suas pretenses infundadas [...], de acordo com suas leis eternas
qual o uso que ela tem que fazer da sua prpria faculdade; mas tambm e
sobretudo, que ela continua permanentemente correndo risco de falhar na sua
procura do absoluto, do incondicionado: seguindo cegamente, i.e., sem
submeter-se a sua prpria crtica, seu impulso, sua nsia indomvel (KrV, B
824), ela vai ultrapassar seus limites, sem perceb-los, e perder-se nas trevas
do desconhecido. 10
KrV, A IX. 11
Ibid. 12
KrV, A X.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 15
e imutveis.13
Tal tribunal a prpria Crtica da razo pura um
tribunal em que a razo tem que conduzir um processo em causa prpria
contra si mesma, desempenhando, pois, ao mesmo tempo, o papel do
ru, o do seu advogado e do seu prprio juiz; essa crtica, portanto, no
pode ser meramente uma crtica de determinadas posies filosficas,
dos livros e dos sistemas, mas uma crtica da
faculdade da razo como tal, em relao a todos
os conhecimentos a que ela possa aspirar
independentemente de toda experincia e, por
conseguinte, a deciso sobre a possibilidade ou
impossibilidade de uma metafsica em geral, bem
como a determinao tanto das fontes como da
extenso e dos limites da mesma, e tudo isso a
partir de princpios.14
Esta caracterizao do tribunal enquanto crtica, ou autocrtica,
rene todos os momentos cruciais do empreendimento kantiano: objeto
da investigao crtica a faculdade da razo como tal, i.e., a razo
pura, no determinada empiricamente, na sua capacidade de produzir
conhecimentos independentemente de toda experincia;
conhecimentos, portanto, que, por ter como base unicamente as leis
eternas e imutveis da prpria razo, podero exigir validade
objetiva e universal e permitir, justamente por isso, uma deciso
definitiva quanto legitimidade de todas as reivindicaes e aspiraes
de uma Metafsica em geral, bem como, tambm, uma determinao,
a partir de princpios, das fontes, da extenso e dos limites, i.e., a
marcao exata dos diferentes territrios e domnios da razo.
Quanto a este ltimo momento da determinao dos limites, vale
lembrar que o prprio termo crtica (do grego krnein: discernir,
distinguir, separar, julgar) significa, em primeiro lugar, exatamente esta
atividade limitativa, e, no caso do ttulo Crtica da razo pura, at em
sentido duplo, a saber, tanto no de um mero desmembramento analtico,
i.e., da separao dos diversos elementos da razo, uns dos outros
(gen. subiectivus), e da sua respectiva especificao, como tambm no
sentido de um exame da exequibilidade e da legitimidade de tal
desmembramento ou separao (gen. obiectivus). Conforme a
13
KrV, A XI. 14
KrV, A XII.
16 | Christian Hamm
ideia principal do projeto kantiano de edificar uma metafsica
inteiramente pura, o mais importante dos limites que devem ser
determinados pela razo , sem dvida, aquele entre o mundo emprico e
o mundo inteligvel, entre fenmenos e noumenos, do condicionado e do
incondicionado, e, correspondentemente, entre conhecimento e
pensamento. Como, contudo, a nova Metafsica pretende ter carter de
uma cincia, o trabalho crtico da razo tem que incluir tambm a
determinao ou marcao de outros limites, como, p.ex., entre os
diferentes tipos de cincia, entre diferentes formas e reas da
experincia humana, em geral, e, mais importante ainda, entre as
diferentes formas do uso (imanente ou transcendente, terico ou prtico)
da razo.
Kant tem a certeza de que, em vista do fracasso de todas as
tentativas anteriores, no teve outra opo a no ser essa sua crtica
radical: este o caminho pelo qual enveredei, o nico que restara. E
no menos certo ele est de ter descoberto, neste mesmo caminho, o
nico meio de eliminar todos os equvocos dos seus predecessores
filosficos que at agora haviam dividido a razo contra si mesma no
seu uso no-emprico,15
de modo que ele se v com pleno direito a
prometer que nada resta posterioridade seno a organizao de tudo
em estilo didtico [...], mas sem poder fazer o mnimo aditamento ao contedo.
16 A certeza de ter levado a cabo com sucesso a sua
investigao crtica e de no ter deixado um s problema metafsico
que no tenha sido solucionado [...] ou a cuja soluo no se tenha
fornecido, pelo menos, a chave, deve-se a sua convico de, aps
descobrir o mal-entendido [Missverstand] da razo consigo mesma,
t-la examinado integralmente mo de princpios princpios que,
em virtude da suposta unidade perfeita da razo, garantem a validade
universal do seu uso em todos os seus quesitos particulares. essa sua
unidade perfeita, sua arquitetnica inteiramente orgnica, que abona a
integridade das suas partes e que faz com que a crtica no precise
ultrapassar a esfera da mesma e, ao modo do racionalismo dogmtico,
estender o conhecimento humano para alm dos limites da experincia
possvel, com o fim de conseguir demonstrar, por essa via problemtica,
a natureza simples da alma, a necessidade de um primeiro comeo do
mundo ou a existncia de Deus.
15
KrV, A XII. 16
KrV, A XX.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 17
O fato de ter apenas a prpria razo e seu pensar puro17
como
objeto da investigao crtica no significa, no entanto, que tal
investigao seja, s por isso, menos laboriosa que essas outras de
cunho dogmtico. Bem pelo contrrio: cumprir o que, para Kant,
simplesmente o dever da filosofia,18
a saber, desfazer, de uma vez
por todas, as fantasmagorias [Blendwerk] nascida[s] de uma interpretao errada da razo, implica no s na necessidade de uma
demonstrao criteriosa da falsidade dos preconceitos dos adversrios
dogmticos, mas tambm, mais importante ainda, na demonstrao da
viabilidade e, sobretudo, da irrefutabilidade da prpria alternativa
crtica. Com respeito a sua inteno e obrigao de fazer tudo para que
essas demonstraes saiam bem e sua prpria proposta se evidencie
completa e coerente em todos seus detalhes, Kant menciona e comenta
explicitamente os quatro princpios pelos quais ele se guiou no seu
trabalho, a saber: integridade [Vollstndigkeit], minuciosidade
[Ausfhrlichkeit], certeza [Gewissheit] e clareza [Deutlichkeit]. Quanto aos dois primeiros, sua validade e importncia derivam,
conforme ao que j foi dito, do prprio objeto da crtica, i.e., da razo,
enquanto razo pura, cujo conhecimento pormenorizado [...] eu
encontro dentro de mim mesmo,19
e das suas qualidades intrnsecas de
(a) possuir limites fixos e claramente localizveis por qualquer portador
de tal faculdade, e (b) de se apresentar, por natureza, de forma
organizada segundo princpios sistemticos; o que permite a sua
acessibilidade igualmente sistemtica, de modo que possvel
enumerar a exemplo da lgica comum [gemeine Logik]
completa e sistematicamente todas as suas operaes simples,20
operaes estas que constituem, por sua vez, a base para a determinao
e ramificao sistemtica de todas as demais operaes e tarefas da
razo.
Com respeito ao princpio da certeza, Kant antecipa o que vai
afirmar muito enfaticamente seis anos mais tarde, na sua introduo
segunda edio da Crtica,21
relativamente diferena entre um
procedimento dogmtico da razo, enquanto cincia, e o
dogmatismo de uma razo que procede sem crtica prvia da sua
17
KrV, A XIV. 18
KrV, A XIII. 19
KrV, A XIV. 20
Ibid. 21
KrV, B XXXV s.
18 | Christian Hamm
prpria capacidade: todo conhecimento que, a partir de tal crtica
prvia exigida, pretende ser vlido a priori, pode proclamar,
justamente por isso e at de forma dogmtica, que deve ser tido como
absolutamente necessrio; e, mais ainda, como se trata, no caso, de
uma determinao de todos os conhecimentos a priori, ele pode e at
deve servir de padro [Richtma e de exemplo a toda certeza filosfica (apodtica), em geral.
22
No que, enfim, diz respeito ao quarto princpio, o da clareza,
Kant salienta, como primeiro direito do leitor, o direito dele de exigir a
clareza discursiva (lgica), por conceitos, a qual, bvio, deve ser acompanhada, na medida do possvel, tambm por uma clareza
intuitiva (esttica), por intuies, i.e., por meio de exemplos e outros esclarecimentos.
23 Ora, correspondentemente essncia do seu
projeto, Kant admite que ele importava-se mais com a ideia de
22
KrV, A XV. Tendo em vista que, segundo a sua prpria constatao rigorosa,
nesta espcie de reflexes no se admite, em absoluto, o opinar e que
qualquer procedimento ou soluo de carter meramente hipottico
simplesmente mercadoria proibida (ibid.), Kant se v levado a fazer um
pequeno comentrio com referncia a uma parte das suas investigaes [...]
mais importantes, feitas no segundo captulo da Analtica Transcendental da
Crtica, sob o ttulo de Deduo dos conceitos puros do entendimento, em
que, como ele mesmo admite, pode parecer que ele prprio deixou de observar
o suficiente o cumprimento dos seus preceitos crticos. Nesta reflexo [...] um
tanto profunda, Kant distingue dois lados, dos quais um considerado o
mais essencial se refere aos objetos do entendimento puro, visando a expor e
tornar compreensvel a validade objetiva dos seus conceitos a priori, enquanto
o outro se pe a refletir sobre o prprio entendimento, do ponto de vista da sua
possibilidade e dos poderes cognoscitivos nos quais ele prprio assenta, ou
seja, sobre a questo como possvel a prpria faculdade de pensar? (KrV, A
XVI s.). com respeito a esta ltima deduo subjetiva que Kant reconhece
ter adotado um procedimento que, por constituir, em certo sentido, uma busca
da causa de um efeito dado, teria, de fato, certa semelhana com uma
hiptese e que, visto por si s, at poderia ser entendido como um caso em que
ele prprio se permiti[ria] opinar, e onde, por conseguinte, o leitor deveria ter
igual direito a opinar diferentemente (KrV, A XVII) uma interpretao, no
entanto, que Kant rejeita veementemente, apontando, a esse respeito, para suas
respectivas explanaes posteriores, feitas em outra oportunidade (ibid.), que
mostrariam de forma concludente que, na verdade, nem o seu procedimento na
referida deduo pode ser chamado de hipottico, nem seu contedo ser visto
como matria de um mero opinar. 23
KrV, A XVIII.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 19
providenciar a clareza do primeiro tipo do que a do segundo e, mais, que
foi exatamente isso sua preocupao com a clareza conceitual que
fez com que, finalmente, no conseguisse satisfazer a segunda
exigncia, a qual, como reconhece, por ser menos rigorosa no deixa,
contudo, de ser justa. Mas, no obstante o reconhecimento da carncia
de exemplos e outros esclarecimentos, i.e., da falta de uma clareza
mais intuitiva, e a despeito de todas as dvidas que ele teve, no
decurso de quase todo [seu] trabalho, sobre a maneira como deveria
proceder neste ponto, Kant julga ter bons motivos para defender a sua
deciso de optar por uma forma de exposio mais seca e meramente
escolstica: alm do que ele chama de causa acidental24
o fato de
que algo que j se conseguiu esclarecer o suficiente mediante conceitos
simplesmente no necessita de maiores explicitaes por outros meios
ele alega a magnitude da sua tarefa e a grande quantidade dos
assuntos abordados na obra que o teriam levado a fazer um uso
bastante econmico dos referidos recursos. A incluso de mais
exemplos e comentrios no s teria avolumado demasiadamente essa
obra, j bastante volumosa, mas poderia ter resultado tambm em algo
muito mais inoportuno, a saber, na dificultao ou at obstruo do
acesso compreenso da argumentao crtica no seu todo. Pois, como
reza o texto,25
mesmo que os meios teis clareza [Hilfsmittel der Deutlichkeit] possam ajudar em partes, eles frequentemente distraem
no conjunto, na medida em que, por um lado, no permitem ao leitor
chegar com a suficiente presteza viso compreensiva do todo e, por
outro, encobrem e desfiguram, com todas as suas cores vivas, a
articulao do sistema, impossibilitando assim justamente o que mais
importa, a saber: julgar da unidade e da consistncia desse mesmo
sistema. Tendo em vista que a Crtica, conforme ao prprio autor, no
orientada para o uso popular, dirigindo-se, portanto, no a amadores
ou aprendizes,26
mas a profissionais filosficos, aos conhecedores
propriamente ditos das cincias,27
Kant acredita poder contar com a
disposio e a preparao necessrias dos seus leitores para que estes
alie[m] seus esforos aos do autor,28
no intuito de captar a ideia
central do raciocnio crtico em sua singularidade e descobrir a lgica
24
Ibid. 25
KrV, A XIX. 26
Prol, AA 04:255. 27
KrV, A XVIII. 28
KrV, A XIX.
20 | Christian Hamm
interna do seu funcionamento. nesta perspectiva de uma recepo
adequada e, se possvel, produtiva, da nova Metafsica a ser
desenvolvida e fundamentada nesta obra, que Kant volta a apontar, mais
uma vez, para o que constitui o caracterstico e, ao mesmo tempo, o
radicalmente novo da sua proposta: Enquanto a nica entre todas as
cincias que vai poder reclamar para si um acabamento completo e
duradouro, ela representa nada mais do que o inventrio
sistematicamente ordenado de todas as nossas posses adquiridas
pela razo pura, cuja integralidade se baseia no simples fato de que
tudo o que a razo tira inteiramente de si mesma no pode passar
despercebido nem esconder-se a essa mesma razo, mas posto a
luz por ela, tanto que se tenha descoberto o seu princpio comum. ,
pois, a perfeita unidade dessa espcie de conhecimentos, obtidos
exclusivamente a partir de conceitos puros e sem a menor influncia de
algo oriundo da experincia, que torna aquela integralidade
incondicional no s praticvel, mas tambm necessria.29
No ltimo pargrafo, Kant anuncia seu plano de publicar um tal
sistema da razo pura (especulativa), sob o ttulo de Metafsica da
Natureza, uma obra que ser [...] incomparavelmente mais rica em contedo do que a presente Crtica e cuja tarefa principal deveria ser
vista, correspondentemente a sua caracterizao inicial, apenas na
exposio detalhada das fontes e das condies de possibilidade da
razo pura, i.e., no tanto na construo e instaurao de algo j definido
e elaborado em termos doutrinais, mas em aplanar e mondar o terreno
totalmente invadido por ervas daninhas,30
para possibilitar tal
construo em data posterior. sabido que esse plano no foi realizado:
o tratado Primeiros princpios metafsicos da cincia natural, do ano 1786, certamente no constitui a obra anunciada, uma vez que tambm
no prefcio segunda edio da Crtica, publicada um ano depois, encontramos ainda a promessa de aprontar, o mais breve possvel,
uma Metafsica da Natureza [...] como confirmao da correo da
Crtica da razo especulativa.31
Em vez desta obra projetada, Kant
publicou, nos seis anos entre a primeira e a segunda edio da Crtica,
uma srie de outras obras, entre elas os Prolegmenos (1783), a Fundamentao da metafsica dos costumes (1785), Ideia de uma
histria universal de um ponto de vista cosmopolita (1784) e a j
29
KrV, A XX. 30
KrV, A XXI. 31
KrV, B XLIII.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 21
mencionada Primeiros princpios metafsicos, obras estas que
exceo dos Prolegmenos, outra exposio, mais sucinta, da prpria
primeira Crtica e elaborada em mtodo analtico,32
com o fim de
facilitar ao leitor a melhor compreenso desta ltima no esto
diretamente relacionadas com a temtica tratada na Crtica, embora,
quanto ao modo e a perspectiva do tratamento dos seus respectivos
assuntos, claramente inspiradas pelo esprito e os resultados principais
da mesma.
O prefcio segunda edio da Crtica, mais longo e, em funo
da recepo problemtica da primeira, escrito num tom mais didtico
que o anterior, reflete no s o esforo renovado do autor no sentido de
tornar compreensveis os princpios fundamentais da sua obra e de evitar
o surgimento de outros mal-entendidos referentes aos objetivos crticos
da sua nova Metafsica, mas tambm a sua segurana absoluta de esta
proposta, no obstante a incompreenso inicial e as violentas
controvrsias por ela causadas, continuar vlida sem restrio alguma.
Os dois motivos centrais em volta dos quais gravita a
argumentao no segundo prefcio so a necessidade de a Metafsica
finalmente tomar o curso seguro de uma cincia e a de uma
revoluo do modo de pensar a ser levada a cabo para alcanar tal
fim. Com ambos os motivos, Kant retoma o teor daquela manifestao
programtica de Francis Bacon que ele escolheu como lema para sua
obra toda. Neste pequeno texto reproduzido na primeira pgina da
Crtica trata-se da passagem inicial da Instauratio magna (cuja segunda parte constitui o famoso Novum Organon) Bacon se dirige ao
pblico, pedindo que
os homens considerem [nosso assunto] no uma
opinio preconcebida, mas, de fato, uma obra
sria; e que se convenam de que no se trata da
fundao de uma seita ou de uma determinada
doutrina, mas que procuro o benefcio para a
grandeza da humanidade. Que, ento, cada um, no
seu prprio interesse ... atenda ao bem comum ... e
se empenhe por ele. Afinal, que cada um tenha
boa f e no julgue nossa Instauratio algo infinito
ou sobre-humano e a compreenda neste sentido:
32
Prol, AA 04:263.
22 | Christian Hamm
pois, em verdade, ela significa o fim e o devido
trmino de imensos erros.33
neste mesmo esprito iluminista de Bacon que Kant quer que
tambm a sua obra seja entendida: como ruptura necessria de uma
forma de pensamento que se tornou ultrapassada e obsoleta, e, ao
mesmo tempo, como contra-projeto crtico o nico possvel34
ao
dogmatismo da Metafsica tradicional.
Diferentemente do primeiro prefcio, Kant agora no parte da
situao peculiar, do destino singular, da razo humana na procura de
respostas a suas perguntas metafsicas, mas, bem na perspectiva da
advertncia baconiana, da questo do progresso do conhecimento
cientfico, em geral, e da sua possvel promoo na histria, para se
dedicar s depois, num segundo passo e com base num conceito de
cincia suficientemente clarificado, procura e a possvel determinao
do lugar especfico da Metafsica, enquanto cincia. Na sua narrao da
histria do progresso das cincias, Kant retoma alguns dos pontos
centrais j expostos nos Prolegmenos, sem entrar, neste novo contexto, numa discusso pormenorizada dos argumentos usados naquele escrito
de 1783. Resumidamente, a argumentao apresentada na primeira parte
do prefcio a seguinte:
Considerando a heterogeneidade e a indefinio de seus rumos, a
falta de acordo quanto determinao das formas do seu procedimento
e, em consequncia disso, os seus frequentes fracassos e retrocessos, a
histria das cincias se apresenta, em grandes linhas, como um mero
andar s palpadelas (essa, alis, tambm uma expresso predileta de
Bacon), muito longe de tomar o caminho seguro de uma cincia.35
A
nica cincia que conseguiu descobrir este caminho e o tem trilhado
desde os tempos mais antigos a Lgica, a qual, assim Kant, por no
ter podido dar um passo atrs, desde Aristteles [...] e at hoje no
conseguiu dar um passo adiante, parece estar concluda e acabada.36
Concluda e acabada pode ser considerada a Lgica (clssico-
aristotlica) pelo fato de que ela no s expe detalhadamente, mas
tambm consegue prova[r] rigorosamente [...] as regras formais de
33
KrV, B II. 34
KrV, A XII. 35
KrV, B VII. 36
KrV, B VIII.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 23
todo o pensar.37
Mas como o grande xito dela se deve unicamente
sua limitao, i.e., ao fato de que ela pode e at deve abstrair de todos
os objetos do conhecimento e ocupar-se apenas do prprio entendimento
e de sua forma, ela, enfim, no pode passar de uma mera propedutica,
de uma espcie de vestbulo das cincias; no obstante sua inegvel
necessidade para qualquer ajuizamento de conhecimentos, a
aquisio deles deve ser procurada nas prprias e objetivamente
assim chamadas cincias.38
neste ponto que Kant comea a explanar seu conceito destas
cincias, marcando o domnio e as formas do uso delas e traando, com
base nisso, as linhas gerais do caminho a ser tomado na procura da
aquisio daqueles conhecimentos por meio dos quais deve ser
possvel uma fundamentao segura e definitivamente vlida das
mesmas: Na medida em que deve haver razo nas cincias, algo tem
que ser conhecido nelas a priori, e esse conhecimento da razo pode
relacionar-se de dois modos ao seu objeto, a saber, de um modo terico
e de um modo prtico, isto , ou meramente para determinar esse
objeto e seu conceito [...], ou para, alm disso, torn-lo real.39
Seguindo seu mtodo crtico, Kant aponta a necessidade de expor,
primeiro, sozinha [...] a parte pura de cada um, i.e., aquela parte em
que a razo determina o seu objeto inteiramente a priori [...], sem
mistur-la ao que provm de outras fontes,40
referindo, enfim, a
Matemtica e a Fsica como aqueles dois conhecimentos tericos da
razo que devem determinar seus objetos a priori, a primeira de modo inteiramente a priori, a segunda pelo menos em parte.
41
Quanto Matemtica, l-se que j foi na poca antiga, entre o
admirvel povo dos gregos, que ela ingressou no caminho seguro de
uma cincia, e que esse ingresso no se deu de forma gradual, mas
deve ser atribudo, antes, a uma revoluo no modo de pensar,
operada, provavelmente, pelo lampejo feliz de um nico homem:
Ao primeiro a demonstrar o tringulo issceles
(tenha-se chamado Thales ou como se queira)
acendeu-se uma luz; pois entendeu que no
37
KrV, B IX. 38
Ibid. 39
KrV, B IX s. 40
KrV, B X. 41
Ibid.
24 | Christian Hamm
deveria indagar o que via na figura, nem ater-se ao
simples conceito da mesma e como que apreender
disso suas propriedades, mas produzir o que
segundo conceitos ele mesmo nela introduziu
pensando a priori e apresentou (por
construo), e que, para saber de modo seguro
algo a priori, no deveria acrescentar nada coisa
a no ser o que resultava necessariamente daquilo
que ele mesmo havia posto nele em
conformidade com seu conceito.42
atravs desse impor [hineinlegen], introduzir pensando
[hineindenken] e apresentar por construo [durch Konstruktion
darstellen] que aqui descrito o conceito metodolgico central da argumentao kantiana, o conceito de a priori: o que a razo impe
ou introduz pensando na figura geomtrica exatamente aquela parte
pura do conhecimento (terico) pela qual ela consegue determinar seu
objeto independentemente de tudo o que provm de outras fontes. -
Para o mesmo fim o de uma clarificao ou concretizao deste
conceito e da sua funo metodologicamente crucial para a realizao da
revoluo no modo de pensar servem tambm os exemplos clssicos
da rea da Cincia da Natureza, nos pargrafos seguintes. Kant
menciona os experimentos de Galilei, que deixou suas esferas rolar
sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, bem
como os de outros grandes pesquisadores da natureza, como Torricelli
ou Stahl: para todos eles, igualmente, acendeu-se uma luz, na medida
em que eles
perceberam [...] que a razo s compreende o que
ela mesma produz segundo o seu projeto, que ela
tem de ir frente com princpios dos seus juzos
segundo leis constantes e obrigar a natureza a
responder s suas perguntas [...], tendo numa das
mos os princpios unicamente segundo os quais
fenmenos concordantes entre si podem valer
como leis, e na outra o experimento que ela
imaginou segundo aqueles princpios,
42
KrV, B XI s.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 25
para, isso sim, ser instruda pela natureza, mas no na qualidade de
um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, seno como
um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder s perguntas
que lhes prope;43
concluindo que, assim, tambm a Fsica deve a to
vantajosa revoluo no seu modo de pensar ideia de procurar na
natureza [...], segundo o que a prpria razo coloca nela, aquilo que precisa aprender dela e sobre o que nada saberia por si prpria.
diferena da Matemtica e da Cincia da Natureza que assim
foram levadas, uma j muito cedo, outra mais tarde, ao caminho seguro
de uma cincia, a Metafsica, embora mais antiga que estas, no teve
ainda fortuna bastante para encetar tal caminho. Ela, enquanto um
conhecimento da razo inteiramente isolado,44
permaneceu envolvida,
sem se importar com o ensinamento da experincia, naquelas
discusses sem fim,45
exercitando suas foras no combate simulado
e fazendo com que seu mtodo no passasse de um mero tatear e, pior
ainda, um tatear entre meros conceitos.46
A pergunta de Kant, no
entanto, se, depois de tantas iniciativas frustradas, ser, por ventura,
impossvel Metafsica encontrar para si o caminho seguro de uma
cincia, meramente retrica: obvio que tal possibilidade no pode ser
negada, dado que isso simplesmente contrariaria a prpria natureza da
nossa razo que, em virtude da sua aspirao natural procura da
maior unidade e completude possvel, j por este motivo sistemtico-
arquitetnico, no poder deix-la fora da sua construo. Faz, portanto,
sentido meditar, a partir dos exemplos da Matemtica e da Cincia da
Natureza e da revoluo levada a cabo nelas, sobre o elemento
essencial da transformao da maneira de pensar das mesmas e, por
analogia com elas, ao menos tentar [zum Versuche] imit-las nisso,
47 quer dizer: tentar mostrar que, do mesmo modo que a histria
daquelas cincias evidenciou a possibilidade e a necessidade do
progresso de um tatear emprico at um curso seguro, tambm na
Metafsica tal progresso deve ser pensado como possvel e necessrio
o que significa, j com vista exposio posterior da doutrina kantiana:
mostrar que o mtodo crtico-transcendental nela desenvolvido no tem
nada de artificial ou forado, uma vez que ele se encontra j pr-
43
KrV, B XII s. 44
KrV, B XIV. 45
Cf. KrV, A IX. 46
KrV, B XV. 47
KrV, B XVI.
26 | Christian Hamm
formado substancialmente, e faz muito tempo, no carter lgico-
construtivista da metodologia da matemtica e das cincias naturais.
Kant v o elemento essencial sobre o qual deve ser meditado
na determinao, ou melhor, na necessidade de uma nova determinao,
da relao entre sujeito e objeto de conhecimento: At agora se sups
que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos;
mas como todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a
priori sobre os mesmos [...] fracassaram sob esta pressuposio, a sada
s pode ser a inverso dessa relao, ou seja, admitir que os objetos
tm que se regular pelo nosso conhecimento.48
neste ponto que
Kant faz uso do seu famoso exemplo da virada, ou revoluo, no
pensamento de Coprnico que,
ao perceber que pouco adiantava na explicao
dos movimentos celestes, admitindo que todo o
exrcito de astros girava em torno do expectador,
tentou ver se no seria mais bem-sucedido se
deixasse o expectador mover-se e, em
contrapartida, os astros em repouso.49
Aplicado Metafsica, isso significa que tambm ela ter que
tratar seus objetos como este, Coprnico, tratou os astros, ou seja, deix-
los em repouso, e enfocar, primeiro, o papel do espectador, i.e., no
caso, a razo e suas condies de relacionar-se com tais objetos. Com
isso, Kant est retomando sua ideia condutora, exposta atrs, de um
impor ou introduzir a priori: o que introduzido a priori e,
portanto, tem que preceder de certa forma a qualquer conhecimento
concreto so as regras que fundamentam e, ao mesmo tempo, limitam
a produo deste conhecimento; e mediante essas regras tratadas
mais tarde, sob os ttulos de conceitos puros do entendimento e
princpios transcendentais da faculdade de julgar, na Analtica
transcendental da Crtica que a razo opera a acomodao dos
objetos (Gegenstnde) s nossas faculdades de conhecimento.
Relacionando os objetos da intuio, enquanto representaes, no a
seus respectivos conceitos derivados deles mesmos, mas a conceitos
produzidos somente na base daquelas regras que definem ou
determinam o que esses objetos so e s podem ser para ns,
48
KrV, B XVI. 49
Ibid.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 27
constitui-se uma forma de experincia que permite conhecer algo a
respeito do seu objeto que, por ter sido posto nele unicamente segundo
seus princpios prprios e conforme o seu prprio conceito, precede
necessariamente esse conhecimento, enquanto meramente emprico-
particular, garantindo, assim, o carter a priori do mesmo; pois
a prpria experincia um modo de conhecimento
que requer entendimento, cuja regra tenho que
pressupor a priori em mim ainda antes de me
serem dados objetos e que expressa em
conceitos a priori, pelos quais portanto todos os
objetos da experincia necessariamente tm que se
regular e com eles concordar.50
A ideia de que todos os objetos da experincia tm que se
regular [...] pelos conceitos, pela imposio das suas formas puras,
implica, assim, a correlao imediata entre o objeto e o conhecimento
o que significa, por sua vez, que no pode haver nenhum objeto em si:
somente o conhecimento que produz o objeto. Cabe notar que essa
ideia de uma relao produtiva entre conhecimento e objeto no
contraria a outra tese fundamental de Kant, segundo a qual todo o
nosso conhecimento comea com a experincia e em que o termo
experincia usado em sentido comum, i.e., no da coleo e do
desenvolvimento de conhecimentos, a partir de objetos empiricamente
dados que tocam nossos sentidos.51
Aqui se trata, antes, no da
marcao do ponto de partida de todo conhecimento, mas da
fundamentao a priori do conceito de experincia em e como
conhecimento. esse o sentido daquela constatao basilar de que, em
todas as coisas, podemos conhecer a priori s aquilo que ns mesmos
colocamos nelas; e com base nesta fundamentao apriorstica da
experincia que Kant, enfim, pode afirmar que a anunciada tentativa
de imitar as Cincias da Matemtica e da Fsica, no que tange a
demonstrao do carter a priori dos seus princpios, alcanou o xito
desejado e promete Metafsica o caminho seguro de uma cincia52
se bem que, conforme a distino anterior entre uma perspectiva terica
e outra prtica das cincias,53
s na sua primeira parte, i.e., na parte
50
KrV, B XVII s. 51
KrV, B 1. 52
KrV, B XIX. 53
KrV, B IX.
28 | Christian Hamm
em que ela se ocupa com conceitos a priori relacionados a objetos da
experincia.
A segunda parte da Metafsica (de que trata tambm a segunda
parte deste prefcio) se dedica exclusivamente ao que constitui, na
acepo tradicional, a matria mais prpria da mesma, a saber, tudo
aquilo que ultrapassa a esfera da experincia, o suprassensvel ou
incondicionado. Quanto reflexo terica sobre esta matria e seus
temas centrais: Deus, liberdade e imortalidade da alma, fica claro que,
para ela, a revoluo no pensamento e a mudana do mtodo
resultante da mesma tm consequncias graves. O fato de essa mudana
permitir explicar a possibilidade de um conhecimento a priori e
demonstrar satisfatoriamente as leis que subjazem a priori natureza,
enquanto conjunto dos objetos da experincia,54
significa, ao
mesmo tempo, que fora deste mbito da natureza no pode haver outra
esfera referentemente a qual tal conhecimento possvel e para que tal
demonstrao pode ser vlida. Foi exatamente este momento da
excluso explcita de qualquer forma de conhecimento meta-fsico, i.e.,
de qualquer possibilidade de fundamentar racionalmente algo que no
for dado empiricamente, que tinha causado o mal-estar dos leitores da
primeira edio da Crtica e que os levou a acusar Kant de querer
aniquilar ou de esmagar (Mendelssohn) toda Metafsica. Ora, Kant
admite que a deduo da nossa faculdade de conhecer a priori,
realizada na primeira parte da Metafsica, e o que foi provado nela, a
saber, que, com esta faculdade, jamais podemos transcender os limites
da experincia possvel, conduz a um resultado estranho e [...] muito
prejudicial ao inteiro fim da mesma55
mas, como ele acrescenta, na
mesma frase: prejudicial s aparentemente, porque, na verdade, a
restrio de todo conhecimento especulativo da razo aos objetos da
experincia no implica, de modo algum, na simples negao daqueles
objetos transcendentes nem na contestao da legitimidade da
pressuposio dos mesmos, mas apenas, isso sim, na reformulao
radical da forma do uso que a razo pode fazer da sua prpria faculdade
de conhecimento em relao a tais objetos. neste sentido que Kant
lembra que o assunto da sua crtica apenas um tratado do mtodo
(e ainda no um sistema da prpria cincia metafsica) que, enquanto
tal, tem que se ocupar, primeiramente, com a fundamentao e a
demarcao do terreno em que uma Metafsica que pretende ser
54
KrV, B XIX. 55
Ibid.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 29
cincia deve ser localizada e, mais, com a integrao coerente das
diversas partes dela na sua construo estrutural interna [innerer
Gliederbau].56
O problema primordial a ser resolvido , assim, o de
encontrar e de definir exatamente o mtodo que permita operar a
integrao, ou melhor: a harmonizao, da segunda parte da Metafsica,
enquanto Metafsica do incondicionado, com a primeira, enquanto
Metafsica da experincia, sem abrir mo de nenhum dos princpios j
definitivamente consolidados da primeira, mas, tambm, sem cortar ou
negar, por outro lado, o que constitui justamente a necessidade natural e
o interesse mais essencial da segunda.
O fato de que a exposio deste problema e da sua soluo ocupa
quase todo o resto do prefcio mostra, por um lado, que Kant, no fundo,
est dando razo queles crticos que tinham problemas com a
compreenso do projeto crtico-transcendental, ou, no seu todo, ou, pelo
menos, no que tange a questo reclamada do papel e do (novo) lugar
sistemtico da segunda parte da Metafsica e da sua figura central do
incondicionado; mas mostra, tambm, que ele agora, seis anos depois da
primeira apresentao da sua proposta, est em condies de descrever
de forma muito mais precisa e muito mais convincente que e porque as
duas partes da Metafsica no podem ser pensadas e tratadas como
elementos doutrinais separados, mas como sendo necessariamente
relacionados um com o outro, ou seja, como unidade sistemtica.
Retomando a ideia do carter experimental (zum Versuche)57
da mudana da maneira de pensar na Metafsica, Kant considera o
resultado da primeira avaliao do conhecimento a priori da razo
aparentemente prejudicial ao interesse essencial de uma Metafsica
do incondicionado plenamente confirmado pelo experimento [...]
de uma contraprova da verdade, realizado na sua prpria
fundamentao do incondicionado (na segunda parte da Crtica), segundo a qual todo conhecimento racional e aqui Kant introduz seu
conhecido par de conceitos s atinge fenmenos, e no a coisa em si,
a qual, embora real para si, continua desconhecida por ns.58
A
partir desta distino, ele formula os argumentos em que se baseia a
referida contraprova, da seguinte maneira:
56
KrV, B XXII s. 57
KrV, B XVI. 58
KrV, B XX.
30 | Christian Hamm
(a) o que nos impele a ultrapassar os limites da experincia o
incondicionado que a razo exige nas coisas em si [...] para todo
condicionado, a fim de completar assim a srie das condies;
(b) partindo do suposto que nosso conhecimento de experincia
se guie pelos objetos como coisas em si, o incondicionado no pode
ser pensado sem contradio; (c) supondo, contrariamente, que nossa representao das coisas,
tais como elas nos so dadas, se guie no por estas como coisas em si,
mas que estes objetos, como fenmenos, se guiem pelo nosso modo de
representao, a contradio desaparece; do que resulta: que o
incondicionado tem de ser encontrado no em coisas enquanto as
conhecemos, (como nos so dadas), mas sim nas coisas enquanto no
as conhecemos, como coisas em si mesmas.59
Sendo assim e visto que a razo especulativa no tem como
progredir neste campo do suprassensvel, resta ainda procurar mas
agora s no conhecimento prtico da razo certos dados que
permitam determinar aquele conceito racional transcendente do
incondicionado, e ultrapassar deste modo, i.e., unicamente com
propsito prtico, os limites de toda experincia possvel.60
Com isso, se torna ainda mais claro porque, para Kant e na
perspectiva da nova Metafsica purificada pela Crtica,61
o prejuzo
causado pela referida deduo apenas aparente. Aquilo que, a
primeira vista, parece constituir, de fato, um efeito negativo desta
operao, a saber, a rigorosa proibio de ultrapassar os limites da
experincia, se torna positivo, na medida em que a razo especulativa,
resistindo tentao de usar seus prprios princpios a priori para operar
tal ultrapassagem e ampliar o domnio do seu conhecimento, consegue
assim, por um lado, evitar a reduo do domnio e a desvalorizao, ou
restrio, do uso puro (prtico) da razo62
e, por outro, determinar, e
justamente em virtude da sua prpria fora limitadora, no o prprio
conceito do incondicionado, mas, ao menos, o espao em que a
pretensa ampliao do conhecimento pode ou tem que ser levada a cabo,
se bem que ela dev[a] deix-lo vazio.63
A crtica continua, portanto,
necessariamente
59
Ibid. 60
KrV, B XXI. 61
KrV, B XXIV. 62
KrV, B XXV. 63
KrV, B XXI.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 31
negativa na medida em que limita a razo
especulativa; mas dado que, assim procedendo,
ela remove ao mesmo tempo um bice que limita
ou at ameaa aniquilar o uso da razo prtica, ela
tem, de fato, uma utilidade positiva e muito
importante, to logo se esteja convencido de que
existe um uso prtico absolutamente necessrio da
razo pura (o uso moral) no qual esta se estende
inevitavelmente acima dos limites da
sensibilidade.64
O fato de Kant aqui, aps a sua abordagem geogrfica dos
limites da razo65
, dar tanta importncia, no s ao aspecto arquitetnico
dessa limitao, mas tambm sua funo produtiva de remover um
bice que poderia aniquilar [vernichten] o uso da razo prtica, se
deve necessidade de ter que mostrar que a referida limitao e, junto
com isso, o reconhecimento implcito da legitimidade dos interesses, de
natureza diferente, da razo prtica, no podem ser entendidos como
algo simplesmente dado, mas, antes, como resultado exatamente
daquela autocrtica necessria a que a prpria razo especulativa tem
que se submeter, ou seja, como ato crtico que esta, uma vez
esclarecida, pode e deve realizar, para alcanar e, enfim, garantir a
exigida unidade da razo consigo mesma. E , de fato, essa limitao
(ou mais exato: aquele experimento exitoso da razo crtica do qual
esta o resultado) com sua distino necessria, decorrente dela, entre
64
Ibid. 65
Quanto ao carter geogrfico da abordagem, vale conferir a exposio
detalhada do conceito de limite nos ltimos pargrafos dos Prolegmenos,
onde Kant comenta esse conceito (Grenze, em alemo) em termos bem
parecidos, contrapondo-o ao outro de barreira (Schranke). - L-se, neste
contexto, que, diferena de barreiras, que so meras negaes que afetam
uma grandeza, enquanto ela no possuir inteireza absoluta, limites
pressupem sempre um espao que encontrado fora de um certo lugar
determinado e o compreende [...]. Nas suas tentativas dialticas em que a
Metafsica nos leva a tais limites, nossa razo v, por assim dizer, ao redor de
si, um espao para o conhecimento das coisas em si mesmas, se bem que nunca
possa ter delas conceitos determinados (Prol, AA 04:352); ou, um pouco mais
tarde: O que [a razo terica] deve limitar tem que se encontrar fora dela, e
este o campo dos puros entes de entendimentos [...], para ns, contudo, um
espao vazio, no qual a razo pode conhecer formas de coisas, mas no as
prprias coisas (Prol, AA 04:360s.).
32 | Christian Hamm
uma esfera fenomnica e a outra das coisas em si que permite pensar a
ltima como domnio prprio e legtimo da razo prtica, em que esta,
agora autorizada, mas no dominada pela razo especulativa e seguindo
seus princpios prprios, pode ocupar-se do trabalho de determinar a
priori os seus conceitos transcendentes. Na medida em que consegue
orientar-se nesta esfera do puro pensamento66
o que significa ,
primeiramente: adotar, tambm neste mbito, aquele princpio
revolucionrio segundo o qual os objetos, aqui: os objetos do
pensamento, tm que se regular pelas nossas condies cognoscitivas
e preencher aquele espao vazio com os dados prticos,67
que ela
mesma escolhe segundo sua prpria necessidade [Bedrfnis], sua forma de procedimento se torna homognea e sistematicamente coerente
com o resultado to desejado de que, enfim, tambm a segunda parte
da Metafsica, a Metafsica do incondicionado, poder tomar o curso
seguro de uma cincia.
Os dados com os quais a razo prtica tem que lidar e que, sob
a nova perspectiva crtica, no figuram mais conceitos, mas ideias
transcendentais (cujas qualidades e cujo uso legtimo so tratados em
pormenor na Dialtica transcendental), as quais se apresentam agora,
consequentemente, no mais como objetos de um possvel
conhecimento, mas como problemas ou tarefas (Aufgaben) a serem resolvidas, so as ideias morais de Deus, liberdade e imortalidade.
Como, segundo as ponderaes de Kant a esse respeito, a discusso das
questes da existncia de Deus e da imortalidade da alma s faz sentido
sob a condio da demonstrabilidade de uma vontade livre, quer dizer:
da possibilidade da coexistncia da necessidade causal natural com a
liberdade da vontade, essa questo da liberdade e de uma possvel
legislao moral baseada nela que Kant pe em foco nos pargrafos
seguintes.
Quanto abordagem deste tema, Kant se encontra numa situao
mais confortvel do que seis anos atrs, j que ele agora pode recorrer
tambm aos resultados da sua argumentao na Fundamentao da metafsica dos costumes do ano de 1785. Nesta obra, ele j tinha
mostrado que a exigida validade universal do principio supremo da
moralidade e do imperativo categrico dele decorrente68
no pode ser
deduzida empiricamente nem determinada a priori pela razo
66
WDO, AA 08:136 ss. 67
KrV, B XXII. 68
GMS, AA 04:392 ss.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 33
especulativa, mas que ela depende necessariamente da pressuposio
prtica de uma vontade livre, i.e., no condicionada por causas
naturais, mas baseada na prpria autonomia da mesma; e que, para
resolver esse problema, no h outra via seno a aplicao da distino
sistemtica, fundamentada na Crtica, entre dois mundos de que ns,
como seres racionais, fazemos parte, ou dois diferentes pontos de vista
que podemos assumir, para poder nos pensar livres, enquanto
membros do mundo inteligvel que reconhecem a autonomia da
vontade juntamente com a sua consequncia, a moralidade, ou como
obrigados e, enquanto tais, pertencentes ao mundo sensvel e contudo
ao mesmo tempo tambm ao mundo inteligvel.69
Nas respectivas passagens do prefcio, essas consideraes so
retomadas (em parte, at nas mesmas palavras) e ainda completadas pela
seguinte argumentao ex negativo: Suposto que a referida distino
entre dois mundos e dois pontos de vista diferentes, ou, em geral,
entre coisas como objetos da experincia e como coisas em si
mesmas, no fosse feito, o princpio da causalidade natural teria que
valer para todas as coisas em geral enquanto causas eficientes; o que
significaria que, com respeito a um mesmo ente, como, por exemplo, a
alma humana, no seria possvel dizer que sua vontade livre e que
ela est, ao mesmo tempo, submetida necessidade natural, isto , que
ela no livre, sem cair numa evidente contradio, j que, em ambas
as proposies, o termo alma seria usado exatamente no mesmo
sentido, ou seja, como coisa em geral.70
Mas, conclui Kant, se a
Crtica no errou ensinando a tomar o objeto em dois sentidos, a saber,
como fenmeno ou como coisa em si mesma, e se, por conseguinte, o
princpio da causalidade s incide sobre coisas tomadas no primeiro
sentido, a saber, enquanto so objetos da experincia, ao passo que, no
segundo sentido, estas mesmas coisas no lhe esto submetidas, ento
exatamente a mesma vontade seria pensada no
fenmeno (nas aes visveis) como
necessariamente conforme lei natural e nessa
medida no livre, e por outro lado ainda assim,
enquanto pertencente a uma coisa em si mesma,
pensada como no submetida lei natural e
69
GMS, AA 04:453. 70
KrV, B XXVII.
34 | Christian Hamm
portanto como livre, sem que nisso ocorra uma
contradio.71
Pressuposto, ento, que (a) as formas de legislao interna em
cada uma das duas esferas, da natureza e da liberdade, independem
sistematicamente uma da outra, de modo que o reconhecimento mtuo
da sua autonomia pode ser pensado como dado a priori, que (b) a
liberdade no contraditria em si mesma, i.e., que ela, pelo menos,
pode ser pensada72
sem contradio, e que (c) ela, tomada em outra
relao, no se ope ao mecanismo da natureza na mesma ao,
evidencia-se que deve ser possvel conceber uma doutrina da
moralidade que pode manter o seu lugar ao lado da doutrina da
natureza o que, como Kant conclui, no ocorreria se a crtica no
tivesse nos instrudo previamente sobre a nossa inevitvel ignorncia
acerca das coisas em si mesmas e limitado a meros fenmenos tudo o
que podemos conhecer teoricamente.73
O mesmo vale,
evidentemente, tambm com respeito aos outros conceitos prticos
centrais, como Deus e imortalidade, que Kant, para ser breve,74
s
menciona, mas no discute no prefcio: tambm eles podem tornar-se
objeto da nossa reflexo crtica somente depois do seu deslocamento da
rea do conhecimento, ocupada por eles ilegitimamente, segundo a
Crtica desde sempre, e depois de uma redefinio radical da via de
71
KrV, B XXVII s. Seja lembrado que sem contradio significa aqui, i.e.,
numa esfera em que, segundo a doutrina crtica, no h conhecimento, sempre
apenas sem contradio no pensamento o que, perante a importncia do
assunto em questo, pode parecer muito pouco, tanto aos olhos dos adversrios
conservadores das Escolas da poca, como tambm na perspectiva do prprio
projeto da fundamentao de uma tica de carter universal. Mas visto que
qualquer outra afirmao substancial sobre o carter da relao entre fenmeno
e coisa em si e suas respectivas reas s seria possvel na base da contraposio
de certas caractersticas relacionadas ao prprio contedo de cada uma deles,
a qualidade de no se contradizer resulta a nica forma de caracterizao
possvel - que, conforme a argumentao seguinte, tambm suficiente. 72
Vale anotar que, neste contexto (KrV, B XXIX), Kant diz explicitamente que
a liberdade deve ser apenas pensvel, sem necessidade de compreend-la
mais a fundo [ohne ntig zu haben, sie weiter einzusehen], pelo que
ressaltada, mais uma vez, a exclusividade do mencionado critrio da no
contradio. 73
KrV, B XXIX. 74
Ibid.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 35
acesso aos mesmos; sendo que, tambm neste caso, a restrio, disso
decorrente, do uso especulativo da razo implicaria, na realidade, uma
ampliao, mas, conforme ao anterior, somente no seu uso prtico, o
nico legtimo e, como vale enfatizar com relao s mencionadas
tarefas que a razo prtica tem que resolver, o nico que permite
orientar-se [...] no incomensurvel espao do supra-sensvel75
e que
promete xito na sua procura de uma sada daquelas contradies76
em
que ela se envolveu justamente por no ter visto ou no ter usado
adequadamente os instrumentos que lhe teriam permitido encontrar, j
mais cedo, o lugar a ela destinado na construo estrutural interna da
Metafsica.77
exatamente com este fim, de tornar mensurvel aquele
espao supra-sensvel e de fornecer o instrumentrio adequado para
efetuar a necessria medio, que Kant t[e]ve que suprimir [aufheben]
o saber para obter lugar para a f.78
Saber quer dizer aqui, claro, o falso saber, o saber das coisas em si, como pretenso objeto do
conhecimento especulativo; e f, aquele outro conhecimento, de carter prtico-moral, que deve sua validade, diferentemente do
terico, no fundamentao por conceitos do entendimento, mas
determinao por princpios da razo (prtica), julgados necessrios
por ela mesma, como exposto e defendido por Kant, sob o ttulo de
uma f racional [Vernunftglaube], na Doutrina transcendental do mtodo desta Crtica e, sobretudo, na Crtica da razo prtica e, mais
tarde, no seu escrito sobre Religio.
A insistncia de Kant no carter racional de tal f, isto , na sua
legitimidade e at necessidade por motivos racionais, mostra, bem
como a nova critica, feita no mesmo contexto,79
ao dogmatismo da
Metafsica como a verdadeira fonte de toda [...] incredulidade, hostil
moralidade, que, para aqueles que acusaram Kant de querer destruir
toda Metafsica, h bons motivos de repensar suas objees a respeito. O
que Kant realmente quer destruir, no a Metafsica, mas so apenas
as pretenses dogmticas da filosofia das Escolas e seu preconceito
de poder progredir nela sem crtica da razo.80
neste sentido que,
75
WDO, AA 08:137. 76
KrV, A VII. 77
KrV, B XXIII. 78
KrV, B XXX. 79
KrV, B XXX. 80
Ibid.
36 | Christian Hamm
tambm noutra parte,81
ele volta a ressaltar que a perda que a razo
especulativa tem que sofrer na posse que at agora se arrogou atinge
somente o monoplio das escolas, mas de modo algum o interesse dos homens,
82 os quais, uma vez que se trata de um interesse natural
deles, devem, bem pelo contrrio, ser tambm naturalmente
interessados na adoo de um mtodo que, como este crtico, promete
fazer progredi-los na busca de uma soluo para as suas questes
existenciais.
Na ltima parte do prefcio, Kant volta a falar, de forma sumria,
sobre a finalidade, a necessidade e o mrito do seu empreendimento
crtico todo, retomando tambm alguns dos pontos j comentados no
primeiro prefcio. Como ele tem a conscincia de ter criado uma
cincia totalmente nova, da qual ningum antes havia pensado, da qual
at a simples ideia era desconhecida e para a qual nada do que foi dado
at agora pde ser de utilidade,83
e como ele sabe tambm que foi
precisamente essa novidade total dos seus pensamentos crticos que
causou tantos mal-entendidos e tantas controvrsias, no s na
comunidade filosfica, mas no inteiro mundo letrado da poca, ele
ressalta, mais uma vez, o problema da compreenso adequada do seu
projeto crtico.84
A esse respeito, Kant aponta no s a inegvel
complexidade da matria abordada na Crtica e a portanto, inevitvel densidade da sua prpria argumentao a respeito, mas tambm certo
comodismo, da parte do seu pblico, que, acostumado com o
dogmatismo em voga85
ou em virtude da mudana da linguagem de
escola para o popular,86
parece tender, pelo menos em parte, para
continuar a especular comodamente sobre coisas de que nada entende e
de que [...] ningum no mundo jamais entender coisa alguma, em vez
de se carregar com o rduo trabalho de submeter seu prprio modo de
pensar a uma crtica radical e contribuir assim para a necessria
consolidao da Metafsica. Que tal atitude de indiferena, ou at
rejeio, pode ter sido favorecida, alm disso, pela opacidade do assunto
tratado e pela forma complicada da sua apresentao, muito provvel e
at admitido, ao menos indiretamente, pelo prprio Kant que, num
81
KrV, B XXXII. 82
KrV, B XXXII. 83
Prol, AA 04:261 s. 84
KrV, B XXX ss. 85
KrV, B XXXI. 86
Cf. KrV, A X.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 37
comentrio final referente a esta segunda edio, se dirige aos seus
leitores no caso, entretanto, no tanto aos indiferentes, mas queles
homens perspicazes que realmente se esforaram por entender suas
exposies crticas afirmando ter corrigi[do], na medida do possvel,
as dificuldades e obscuridades que talvez tenham dado origem a vrias
interpretaes errneas em que [estes ltimos], talvez no sem culpa
minha, incidiram ao julgarem este livro,87
e concluindo que, quanto
exposio da sua teoria, at resta ainda muito a fazer. esta
mesma inteno de remediar [...] a m [ou] falsa interpretao da
obra, a que se devem tambm vrias explicitaes e correes
aplicadas ainda a diversas partes doutrinais,88
que, no entanto, como
Kant faz questo de ressaltar, devem todas servir unicamente para
facilitar ao leitor a compreenso das mesmas, sem, contudo, muda[r]
absolutamente nada no tocante s proposies e mesmo aos seus
argumentos.89
convico de no mais precisar mudar nada nas proposies
e nos argumentos da sua teoria corresponde, enfim, o que j foi
realado enfaticamente no quadro do primeiro prefcio90
e o que Kant
87
KrV, B XXXVII. 88
KrV, B XXXVIII. 89
KrV, B XLII. Com respeito a essas correes e acrscimos Kant
menciona s cinco, que se referem m interpretao [...] do conceito do
tempo na Esttica, obscuridade da deduo dos conceitos do
entendimento, suposta falta de evidncia suficiente nas provas dos
princpios do entendimento puro, falsa interpretao dos paralogismos
antepostos Psicologia racional e, como nico acrscimo propriamente dito,
nova refutao do idealismo psicolgico e uma prova rigorosa [...] da
realidade objetiva da intuio externa seja apenas anotado que a questo da
quantidade e, sobretudo, da qualidade das alteraes e das complementaes
aplicadas na edio B sempre foi e continua ainda objeto de muita discusso.
Sem entrar no debate, cabe ao menos mencionar que, neste caso, a grande
maioria dos comentadores de opinio que (a) o nmero das intervenes no
texto maior do que indicado por Kant e que (b) boa parte das correes
aplicadas se refere, tambm ao contrrio das afirmaes no texto, no s a
aspectos de carter meramente retrico-estilstico da apresentao, mas afeta,
em muitos casos (como, p.ex., na nova Introduo Crtica, no cap. III da
Analtica dos princpios que trata da Distino de todos os objetos em geral
em phaenomena e noumena, ou em vrias passagens do cap. II do 2 livro da
Dialtica sobre a Antinomia da razo, entre outros), tambm o contedo das
prprias proposies e seus argumentos. 90
KrV, A XIII ss.
38 | Christian Hamm
volta a declarar agora, nas ltimas pginas do segundo: que toda a
crtica levada a efeito neste livro segue, desde o princpio, a ideia da
completude do [seu] plano, quer dizer, que esta crtica, no fundo, nada
mais representa do que a execuo completa e definitiva de um plano
cuja dimenso determinada e cuja exequibilidade garantida pela
prpria natureza da razo pura especulativa na sua qualidade particular
de cont[er] uma verdadeira estrutura articulada [Gliederbau] em que
tudo rgo, ou seja, onde tudo existe para cada parte e cada parte
para todas as outras e em que, portanto, a menor fragilidade, seja uma
falha (erro) ou uma deficincia, ter que se trair inevitavelmente no
uso.91
essa ideia da completude do plano, possibilitada e motivada
pela prpria razo, e, na base desta,
a evidncia que a experimentao da igualdade do
resultado produz, quer se proceda dos mnimos
elementos at o todo da razo pura, quer se
retorne desde o todo [...] at cada parte, enquanto
que a tentativa de modificar o mnimo detalhe
ocasiona logo contradies na s do sistema, mas
tambm da razo humana geral,92
de que Kant tira a certeza de que sua empresa crtica no podia falhar
justamente por ter conseguido, de forma completa, localizar, identificar
e unir coerentemente os vrios elementos no todo daquela estrutura
articulada que a prpria razo representa. E essa completude
reivindicada tanto para o plano como para a execuo dele (na
Crtica), baseada na suposio de uma estrutura articulada da razo
tambm completa, que implica no s que Kant, de fato, no pode se
permitir fazer grandes alteraes no interior da mesma (nem admitir
que algumas das suas correes so substanciais), sem por em risco a
efetividade e a homogeneidade dos seus princpios constitutivos de
funcionamento, mas tambm, e mais importante, que ele pode
considerar como plenamente justificada sua confiana na validade
universal do seu sistema e, portanto, esperar que ele afirmar-se-,
na sua imutabilidade, tambm no futuro.93
91
KrV, B XXXVII s. 92
KrV, B XXXVIII. 93
Ibid.
Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 39
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SENTIDO, SENSIBILIDADE E INTUIO: DA
DISSERTAO INAUGURAL A CRTICA
Orlando Bruno Linhares
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Introduo
Redigida s pressas em 1770, a Dissertao inaugural 1 antecipa
importantes distines conceituais da esttica transcendental da Crtica
da razo pura2 (sensibilidade e entendimento, receptividade e
espontaneidade, matria e forma do conhecimento, intuio pura e
intuio emprica,3 sentido externo e sentido interno, e fenmeno e coisa
em si) e desenvolve o aspecto crtico da teoria da sensibilidade, mas
esto ausentes os conceitos de esttica,4 de transcendental
5 e de esttica
1 Tambm conhecida por Dissertao de 1770, o ttulo da obra Acerca da
forma e dos princpios do mundo sensvel e do mundo inteligvel. 2 De agora em diante ao me referir a Crtica da razo pura empregarei apenas o
termo Crtica. 3 A intuio emprica est presente na Dissertao inaugural, mas no com
estas palavras. Por exemplo, na 5 seo, 23, Kant distingue a intuio
emprica da pura da seguinte maneira. Em todas as cincias cujos princpios
so dados intuitivamente, seja mediante uma intuio sensvel (experincia),
seja mediante uma intuio que, sendo na verdade sensitiva, , contudo, pura
(conceito de espao, de tempo e de nmero), isto , na cincia natural e na
matemtica, o uso que d o mtodo (MSI, AA 02: 411). 4 Em sua fase crtica, Kant atribui ao termo esttica dois significados distintos:
na primeira Crtica refere-se sensibilidade a priori na perspectiva do
conhecimento terico e na Crtica da faculdade de julgar crtica do gosto ou
filosofia da arte. O termo esttica, compreendido como teoria do belo, aparece
pela primeira vez, em 1735, nas Reflexes sobre poesia de Baumgarten, no
contexto de uma potica, mas ele tambm o compreende no domnio terico. Na
Metafsica, no captulo sobre a psicologia emprica, Baumgarten trata da
exposio sistemtica do conjunto dos princpios da faculdade de conhecer
inferior. Mas o aspecto mais significativo do conceito de esttica para
Baumgarten o relacionado s belas artes. Neste sentido, a esttica como
42 | Orlando Bruno Linhares
transcendental.6 Apesar de Kant negar as representaes inatas
7 e
conceber as intuies puras do espao e do tempo como a priori, ainda