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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO REDES DIGITAIS E SUSTENTABILIDADE
RICARDO BARRETTO
Corpo e sustentabilidade no habitar atópico Argumentos sobre antigas e novas relações entre
ser humano, natureza e tecnologia
SÃO PAULO
2013
RICARDO BARRETTO
Corpo e sustentabilidade no habitar atópico:
Argumentos sobre antigas e novas relações
entre ser humano, natureza e tecnologia
Monografia apresentada ao Centro de Pesquisa Atopos,
da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para obtenção do
Título de Especialista em Redes Digitais e
Sustentabilidade.
Área de concentração: Comunicação
Orientação: Prof. Dr. Massimo di Felice
Coorientação: Mestre em Ciências da Comunicação
Mariana Marchesi
SÃO PAULO
2013
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Nome: BARRETTO, Ricardo
Título: Corpo e sustentabilidade no habitar atópico: argumentos sobre antigas e novas
relações entre ser humano, natureza e tecnologia
Monografia apresentada ao Centro de Pesquisa Atopos
da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Especialista em Redes Digitais e Sustentabilidade
Aprovado em:
Banca Examinadora
Nome e Titulação: _________________________________________________
Instituição ________________________________________________________
Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________
Nome e Titulação: _________________________________________________
Instituição ________________________________________________________
Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________
Nome e Titulação: _________________________________________________
Instituição ________________________________________________________
Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________
Aos mestres das artes do movimento que ajudaram a
despertar outras percepções do corpo e suas relações
com a vida.
Agradecimento
Agradeço aos professores e pesquisadores do Centro de Pesquisa Atopos que compartilharam
saberes, questionamentos e descobertas ao longo dos últimos 18 meses.
A Mariana Marchesi pelas orientações valiosas para o aprimoramento desse estudo.
Ao Prof. Dr. Massimo Di Felice por fazer a conexão com uma nova trama de conhecimento e
perspectivas sobre o ser humano, os fluxos comunicativos e o mundo contemporâneo.
Ao Prof. M. Andre Stangl pela leveza, bom humor e sapiência com os quais se zelou pelo
curso nessa primeira turma.
E a todos os amigos, familiares, colegas de trabalho e de estudos que de algum modo
participaram e apoiaram a jornada até aqui.
RESUMO
As arquiteturas informativas em rede desempenham no mundo contemporâneo
uma importância que vai muito além da perspectiva de meios de comunicação,
uma vez que condicionam uma nova sociabilidade, interativa e colaborativa, que
está associada a novos modos de percepção e a novas formas de entrelaçamento
do corpo com o mundo. Esse é o contexto em que a humanidade enfrentará as
mudanças cada vez mais intensas na natureza em decorrência, principalmente, dos
efeitos de séculos de ação antropogência predatória do homem sobre o meio
ambiente, fundamentadas na noção cartesiana de que o ser humano está apartado
da natureza, assim como a mente está separada do corpo. Nesse sentido, faz-se
urgente uma mudança de mentalidade e de modelos de desenvolvimento. O corpo
entendido como dimensão perceptiva primoridial do ser humano tem papel
fundamental nessa transformação. É nessa perspectiva que o presente trabalho
realiza uma revisão bibliográfica e levanta diversos exemplos de iniciativas pelas
redes digitais que revelam como o corpo tem um potencial de participação
espontânea nesse processo de mudança, mas também pode ser encarado como
fonte de saber que o catalise.
Palavras-chave: habitar, sustentabilidade, tecnologia, natureza, corpo
ABSTRACT
The network information architectures play a role in the contemporary world that
overcomes the media perspective, once they engage a new sociability, that is
interactive and collaborative, as well as related to new ways of perceiving the
world and intertwining with it. This is the context in which humanity faces the
ever more intense changes in nature caused by centuries of predatory exploitation
of the environment by men, something bound to the Cartesian notion that human
beings are separated form nature, the same way the body is understood as
separated from the mind. Therefore, a change in mindsets and development
models is urgent. The body understood as the primordial perceptive dimension of
human beings plays a major role in such quest for transformation. With that in
mind, the present study enrolls in a bibliographical review of concepts towards the
relations between human beings, nature and technology; sustainability; and the
body. And also raises several examples up from digital networks that reveal how
the body holds a potential of spontaneously participating of that process, as well
as it can be considered a source of knowledge to enhance change.
Key words: inhabit, technology, nature, body, sustainability
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................9
AS FORMAS DO HABITAR ......................................................................... 15
2.1. O estar no mundo, tecnológico e natural .................................................... 15
2.2. Habitar empático, habitar exotópico .......................................................... 20
2.3. A forma do habitar atópico ....................................................................... 26
SUSTENTABILIDADE NO HABITAR .......................................................... 31
3.1. Entropia ................................................................................................... 31
3.2. Perspectiva integrada ................................................................................ 36
3.3. Prosperidade ............................................................................................. 38
CORPO E ENTRELAÇAMENTO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ........... 45
4.1. Sensorialidade e percepção ....................................................................... 45
4.2. Entrelaçamento e o habitar ........................................................................ 51
4.3. O corpo no habitar atópico ........................................................................ 56
ESPONTANEIDADE NO CORPO, INTENCIONALIDADE PARA A VIDA .. 68
5.1. A sustentabilidade e o corpo no habitar atópico .......................................... 68
5.2. Espontaneidade do corpo para a sustentabilidade ........................................ 71
5.3. Intenção no corpo ..................................................................................... 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 85
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 88
9
1. Introdução
“(...) a dimensão corpórea é imposta como um
dado essencial para a transformação da
civilidade contemporânea e para a instância de
emancipação e de liberação que a atravessa.
(MARIANI, 2004:11)1
Os rumos da história humana a partir do século XXI parecem estar
intimamente ligados a dois fatores essenciais: a relação do homem com a natureza
e a configuração da sociedade em rede.
O primeiro fator nos remete à situação limite em que nos encontramos de
depleção das condições de vida que sustentam nossa existência no planeta e a de
inúmeros outros seres. Após séculos de uma exploração intensa dos recursos
naturais, notadamente a partir da Revolução Industrial, chegamos a um panorama
no início do terceiro milênio do calendário cristão de exaurimento dessas fontes
para além da capacidade de regeneração da natureza, o que tem pressionado por
uma mudança no modelo econômico de crescimento a qualquer custo e de
reflexão sobre as relações do homem com a natureza, marcadas por um
pensamento cartesiano de separação do meio ambiente.
Esta situação vem associada a um contexto de relações humanas
igualmente marcadas pela exploração do outro e pelo distanciamento, que se
traduz num quadro de graves condições sociais para uma grande parte da
população e de um desenvolvimento que não é sinônimo de prosperidade. A
reflexão sobre as relações do ser humano com o outro e com o meio ambiente,
principalmente na perspectiva de propor modos alternativos, menos impactantes à
sociedade como um todo e à natureza que garante sua existência, nos remete nas
últimas décadas ao termo sustentabilidade.
Toda essa trajetória da história humana guarda forte ligação com o
desenvolvimento tecnológico das diferentes sociedades, que abarca perspectivas
tão diversas como de meios de produção e da própria comunicação. Seja da forma
mais simples, como o uso de uma pedra como ferramenta, até outras mais
1 Livre tradução: “ (...) la dimensione corpora si è imposta come um dato essenziale per la trasformazione dela
civiltà contemporanea e per la istanze di emancipazione e di liberazione che l’attraversano.”
10
complexas, como de arquiteturas informativas digitais, a tecnologia é uma
constante na história humana. De fato, é tão difícil pensar no ser humano sem a
relação com a tecnologia, que ela se torna essencial para a compreensão da
existência da espécie.
Essa relação se revela tanto nas ações antropogênicas de transformação da
natureza, como na extensão de estruturas, habilidades e sentidos do corpo e na
própria relação com as coisas. Daí a concepção de que novas tecnologias
influenciam fortemente a sensorialidade, a sociabilidade e a relação do ser
humano com o mundo, como nos ajuda a entender Marshal McLuhan (1964)
quando afirma que “o meio é a mensagem”.
Na contemporaneidade, essa relação entre o ser humano, as tecnologias
digitais e também o território suscita uma nova forma de estar no mundo –
denominada por Massimo Di Felice (2009) de habitar atópico. O papel
fundamental das arquiteturas informativas em rede no condicionamento dessa
nova forma de habitar – que é simultânea ao desafio da busca pela
sustentabilidade - muitas vezes camufla a influência constante do corpo na relação
do ser humano com a natureza e com a tecnologia.
Se o homem é indissociável dessas duas dimensões interdependentes,
conforme aponta Di Felice (2009), não continua a acontecer pelo corpo a
percepção e a interação com esse mundo que hibridiza o orgânico e o tecnológico?
Para responder a essa pergunta convém aproximar a relação entre habitar
atópico e sustentabilidade a conceitos sobre corporeidade.
Tantas são as possibilidades de um estudo com esse foco, que faz-se
necessário restringir esta pesquisa inicial a um mapeamento de conceitos e
argumentos que ajudem a vislumbrar caminhos que evidenciam o corpo na
relação do ser humano com o território e a tecnologia. E que, espera-se, possam
estimular novos estudos sobre a noção do corpo na relação entre habitar atópico e
sustentabilidade. Em outras palavras, a proposta dessa pesquisa é de um tatear
inicial do tema, que surge mais como um questionamento do que como uma
afirmação.
Vale observar ainda que este é um estudo marcado pelo “talvez”. Da
transição de uma época (modernidade) para outra que ainda está em configuração
11
e parece ter na forma do habitar atópico suas características mais contundentes.
Também pelo talvez de uma perspectiva de futuro incerta, em meio a previsões
científicas e evidências empíricas sobre o estado da ecosfera. E ainda a dúvida se
as novas arquiteturas digitais reticulares, por onde se amplificam os fluxos
comunicativos na contemporaneidade, continuarão a dissipar fronteiras, chegando
a abolir a barreira histórica que separa mente, corpo e natureza, desde a
consolidação do pensamento cartesiano.
O presente estudo trata dessa perspectiva do corpo frente à relação do
homem com a natureza, a sociedade e a tecnologia, trazendo referências e
integração entre assuntos como a comunicação, a economia, a filosofia, as
ciências sociais, aspectos da medicina, das artes e estudos sobre a corporeidade.
Evocar um leque tão diverso visa, em primeiro lugar, responder à
complexidade do tema que se apresenta. E, concomitantemente, atender ao anseio
por um olhar mais horizontal sobre a discussão, capaz de reunir argumentos
relevantes e instigantes para futuros estudos de caráter mais verticalizado, a partir
das constatações feitas nesse primeiro momento.
1.1. Objetivos, justificativa e objetivos específicos
Esta pesquisa pretende levantar referenciais teóricos para discutir como o
corpo revela, influencia e potencializa a relação entre sustentabilidade e o
conceito de habitar atópico proposto por Massimo di Felice (2009) na obra
“Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas
do habitar”2. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica focada em três
grupos de assuntos: as formas do habitar como pensadas por Di Felice, com
destaque para o habitar atópico; a sustentabilidade; e o corpo e sua relação de
percepção e expressão no mundo.
A opção por um recorte dessa amplitude se justifica nas fortes evidências
sobre a ligação entre esses três temas, suscitadas ao longo da primeira edição
(2012-2013) do curso de pós-graduação Redes Digitais e Sustentabilidade da
Escolad de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
2 Na Justificativa deste projeto será melhor apresentado o conceito de habitar atópico, que é resumido por Di Felice da seguinte forma: “(...)
um específico modo de estar no mundo delineado pela forma comunicativa digital, sendo assim, pelo fim da dialética entre sujeito e
território ocasionada pela configuração do espaço (Di Felice, 2009).” (DI FELICE, 2012:42)
12
A ideia é compartilhar um misto de inquietação pessoal aliada à percepção
de que autores de diferentes áreas de estudo e abordagens têm falado sobre
questões muito próximas quando tratam das características do mundo
contemporâneo e do desafio da sustentabilidade. E que perceber, refletir e atuar
sobre essas questões pode ter no corpo um catalizador comum.
A escolha do objeto aqui proposto também está ligada a outra referência de
caráter pessoal, uma vez que há mais de dez anos trabalho com o tema de
comunicação e sustentabilidade e também desenvolvo uma prática de formação
em dança contemporânea e educação somática do corpo, tendo atuado como
bailarino profissional durante alguns anos. Essa trajetória tem me permitido
constatar na prática ligações entre o diálogo nas redes digitais, iniciativas pró-
sustentabilidade e o potencial do corpo em aguçar as percepções que
fundamentam a colaboração no contexto da sustentabilidade.
De fato, o início dessa pesquisa foi conduzido de modo simultâneo à
elaboração de um trabalho de dança contemporânea com base na relação entre
corpo e tecnologia, com apoio de um grupo de estudos coordenado pela bailarina
e educadora somática Lucilene Favoreto. Não foi possível manter as duas
pesquisas simultaneamente, como era a intenção inicial, mas a vivência realizada
durante quatro meses ajudou a intensificar a reflexão e as percepções sobre o tema
desse estudo.
Algumas perguntas que serviram de referência para a pesquisa acadêmica
apresentada a seguir foram: A nova cultura comunicativa em formação,
influenciada pelas arquiteturas digitais reticulares, e que parece por vezes
intensificar um afastamento da relação com o corpo biofísico, pode ser um fator
de aproximação com a corporeidade? As características intrínsecas da forma do
habitar atópico coadunam com o processo de construção da sustentabilidade? De
que modos o corpo pode intensificar a relação entre o habitar atópico e a
sustentabilidade?
Para ajudar a responder a essas e outras perguntas que surgem ao longo do
trabalho, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos:
13
Realizar um estudo exploratório para levantar conceitos que
fundamentam a relação entre habitar atópico e sustentabilidade e a relação
entre o corpo e o habitar atópico;
Estabelecer correlações de argumentos que revelem conexões
entre o corpo e a sustentabilidade no habitar atópico;
Apresentar reflexões que mostrem o papel do corpo na
hibridização das dimensões presencial (física) e virtual da sociedade
contemporânea em rede;
Levantar exemplos nas redes digitais que permitam constatar na
prática evidências dos argumentos apresentados ao longo da reflexão sobre
a relação entre ser humano, natureza e tecnologia.
Para lidar com as questões e objetivos aqui propostos, o trabalho a seguir
foi estruturado do modo abaixo:
Capítulo 2 – “As formas do habitar”: Explora a relação homem-natureza-
tecnologia por meio do conceito das formas do habitar proposto por Massimo Di
Felice, tendo como obra de referência “Paisagens Pós-urbana: O fim da
experiência urbana e as formas comunicativas do habitar” e destaca o conceito de
habitar atópico para levantar elementos reveladores do modo do ser humano estar
no mundo contemporâneo, a partir da influência da revolução comunicativa
digital e dos fluxos informacionais em rede. Especialmente relevante para o
entendimento dessa discussão, bem como para todo o estudo que dela decorre, a
ideia de que “o meio é a mensagem”, tal qual propõe Marshall McLuhan (1964),
indicando a influência que as tecnologias exercem sobre a sensorialidade e a
sociabilidade humanas.
A revisão teórica empreendida nesse capítulo abarca conceitos de autores
visitados por Di Felice (2009) e por alguns outros, no que concernem diferentes
aspectos da relação entre tecnologia, sociabilidade humana e território, a partir de
uma perspectiva comunicativa – como no caso de Argan (1994), Baldini (1995),
Benjamin (1966), Castells (2013), De Kerckhove (2009), Foucault (2006), Garcia
(2008), Heidegger (1954), Latour (2007), Lèvy (1996), Lyotard (1984), McLuhan
(1964), Morin (1994), Puech (2008), Serres (1993) e Vatimo (1989).
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Capítulo 3 – “Sustentabilidade no habitar”: Tem por foco estabelecer um
entendimento sobre desenvolvimento sustentável e algumas de suas premissas e, a
partir daí, relações com o habitar atópico. Foram observados argumentos de
Abramovay (2012), Cechin (2012), Di Felice (2009), Elkington (1997),
Georgescu-Roegen (1971), Jackson (2009), Lovelock (2007), Pádua (2010),
Pereira (2012), Raworth (2012), Resende (2013), Sachs (2002), Sen (2000), Shiva
(1988) e Veiga (2005).
Capítulo 4 – “Corpo e entrelaçamento no mundo contemporâneo”: Traz
conceitos importantes sobre a percepção do corpo e sua relação com o estar no
mundo, fazendo paralelos com característica que fundamentam o habitar atópico,
tendo como apoio argumentos de Bergson (1948), Cardim (2009), Damasio
(1994), Doczi (1990), Foucault (1985), Husserl (1998), Mariani (2004), Merleau-
Ponty (1968), Nietzsche (1997), Sarsini (2004), Serres (2004) e Silva (2009).
Capítulo 5 – “Espontaneidade do corpo, intencionalidade para a vida”:
Realiza, por fim, a intersecção dos argumentos levantados anteriormente para
identificar o papel do corpo na relação entre ser humano, natureza e tecnologia,
resgatando conceitos dos autores trazidos anteriormente e estabelecendo algumas
novas ligações com referências de pesquisadores, profissionais da educação
somática, artistas e ativistas do corpo, como Bertazo (2004), Beziérs e Piret
(1992), Favoreto (2006), Garaudy (1984), Glennie (2012), Morin (1994), Vianna
(2005).
Ao longo dos capítulos são apresentados diversos exemplos que ajudam a
compreender a relação do corpo com os temas discutidos, a partir de reportagens
da imprensa, de referências de websites, aplicativos, e vídeos. Aqui cabe uma
ressalva que algumas questões sobre o potencial do corpo no habitar atópico e na
sustentabilidade só podem ser de fato compreendidas pelo trabalho de experiência
física e proprioceptiva. Mas espera-se que os exemplos apresentados ajudem a
construir imagens e indicações sobre os processos experienciais aos quais se
referem, clarificando a discussão conduzida ao longo do texto.
15
2. As formas do habitar
“Enquanto adotarmos a atitude de Narciso, encarando
as extensões de nossos corpos como se estivessem do
lado de fora, independentes de nós, enfrentaremos os
desafios tecnológicos com a mesma sorte, a mesma
pirueta e queda, de quem escorrega numa casca de
banana.” (MCLUHAN, 1964, p. 89)
2.1 O estar no mundo, tecnológico e natural
A vida humana sempre esteve associada e dependente dos artefatos e da
tecnologia, seja o pedaço de pau usado por um ancestral coletor ou os pigmentos a
partir de elementos orgânicos da pintura rupestre, sejam as arquiteturas digitais
em rede que hoje permitem fazer negócios, lutar pela conservação do meio
ambiente, pedir uma pizza enquanto se joga um game online com desconhecidos
que se tornam guerreiros num mundo virtual.
Esses exemplos nos ajudam a entender porque a cultura técnica é
indissociável da natureza humana, conforme propõe Michel Puech (2008). O autor
mostra que a história humana foi marcada por uma coevolução da técnica, da
linguagem e da interface cérebro-mão, que é a união entre a excepcional
habilidade manual do homem e sua capacidade de refletir sobre e representar o
que manipula, o que realiza. Cada um desses elementos foi influenciado pelos
outros num processo contínuo e definidor do ser humano:
“Essa coevolução deve servir de modelo à coexistência de uma
cultura humana (referente aos hábitos da linguagem, simbólica) e de
uma cultura tecnológica (material) que constituem na realidade uma
só e mesma cultura para um só e mesmo homo sapiens.”3 (PUECH,
2008, p. 28-29)
Essa constatação reforça que a técnica não existe isoladamente, mas
encontra-se num sistema caracterizado pela interdependência com a relação do ser
humano com o mundo. A indissociabilidade entre o homem e a técnica vai além
3 Livre tradução: “Cette coévolution doit servir de modèle à la coexistence d’une culture humaine (langagière, symbolique) et d’une culture
technologique (matérielle) qui constituent en réalité une seule et même culture pour un seul et même Homo sapiens.”
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de uma relação instrumental e ganha contornos de uma relação de intimidade com
as coisas, algo que Puech exemplifica ao citar o costume de civilizações antigas
de enterrarem os mortos junto a objetos (PUECH, 2008, p. 27).
O que está por trás da reflexão arqueológica, antropológica e poética de
Puech é o convite para irmos além de concepções da ficção científica que
mostram o homem dominado pela tecnologia; além do foco da essência da
técnica, da visão da tecnologia como meio para chegar a um fim; além das
relações de poder que possam estar presentes. Ele nos convida a olhar para a
existência de uma ligação íntima, emocional, com a tecnologia - sem deixar de
lado o fato de que o meio técnico nunca é neutro, pois as tecnologias são
produzidas com uma intenção e uma ética por trás (PUECH, 2008, p. 49-52).
Puech localiza a relação do ser humano com a técnica como ontológica:
“Ela é um modo de ser no mundo, de estender o mundo no qual
existimos por suas ações, A tecnologia é nosso modo de habitação do
mundo. É por isso que somos Homo Technologicus.”4 (PUECH, 2008,
p. 55)
Para esclarecer o conceito trazido pelo autor, vale aludir ao entendimento
de técnica expressado por Heidegger – referência para a argumentação de Puech –
conforme resume Di Felice:
“Segundo Heidegger, a ‘tékhne’, desde a sua etimologia grega,
pertencia ao âmbito do “produzir”, e, ao mesmo tempo, aquele da
‘poiésis’, conceito que, unindo em si tanto o significado técnico como
aquele artístico, aproxima a interpretação ao sentido de “tornar
visível o que estava oculto” e, consequentemente, àquele de
“descoberta”, de “revelação”.” (DI FELICE, 2009, p. 121)
Desse modo, aprofunda Di Felice (2009), o entendimento de técnica a
partir de Heidegger não é o de um “fazer puro do homem”, nem algo que possa
ser restrito a uma dimensão instrumental, mas remete à relação com a tecnologia
que resulta numa forma de habitar o mundo.
Puech ajuda a esmiuçar essa ideia da seguinte maneira:
4 Livre tradução: “Elle est un mode d’être-au-monde, de déployer le monde en y existant par ses actions. La technologie est notre mode
d’habitation du monde. C’est pour cela que nous sommes Homo technologicus.”
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“(...) nós habitamos naturalmente o mundo tecnológico (dirigir um
carro é para nós natural como andar a pé) e nós habitamos
tecnologicamente o mundo natural (uma incursão a uma montanha
elevada não se concebe hoje sem equipamentos de alta tecnologia). É
preciso compreender esse modo de habitação.”5 (PUECH, 2008, p.
59)
Essa relação ontológica com a técnica ajuda a entender porque, ao longo
da história ocidental, o surgimento de novas tecnologias desempenhou influência
fundamental no desenvolvimento de novos modos de sociabilidade, do
pensamento e da relação entre o homem e a natureza.
É o caso da roda que encurtou distâncias, acelerou e ampliou a circulação
de pessoas e coisas e a troca com culturas antes desconhecidas. São as ferramentas
e técnicas de transformação de matérias primas que potencializaram a força, a
destreza e a engenhosidade do corpo e permitiram a criação de novos artefatos e
de novos modos de ocupação do território e de dinâmicas sociais tão vastas como
a agricultura, as moradias e a guerra. E, certamente, as tecnologias comunicativas,
como as primeiras formas escritas dos hieróglifos, as linhas de telégrafo que se
estenderam ao longo das estradas e pelos oceanos, e a internet que levou o
conceito de rede a um novo significado em termos dos fluxos informativos sem
intermediários e fora da divisão emissor-receptor, da interatividade e da
colaboração (Di Felice, 2009).
De fato, as mudanças na sociabilidade propiciadas pelas tecnologias
comunicativas foram muito mais intensas do que os conteúdos transmitidos por
essas tecnologias. É o que McLuhan (1964) defende com a célebre expressão “o
meio é a mensagem”. Ele esclarece que seu estudo se refere a toda forma de
transporte de bens e de informação, seja como metáfora6, seja como intercâmbio:
“Toda forma de transporte não apenas conduz, mas traduz e
transforma o transmissor, o receptor e a mensagem. O uso e qualquer
meio ou extensão do homem altera as estruturas de interdependência
entre os homens, assim como altera as ratios entre os nossos
sentidos.” (MCLUHAN, 1964, p. 108)
5 Livre tradução: “nous habitons naturellement le monde technologique (conduire une voiture nous est aussi naturel que marcher à pied) et
nous habitons technologiquement le monde naturel (une randonnée en haute montagne ne se conçoit pas aujourd’hui sans équipements de haute technicité). Il s’agit de comprendre ce mode d’habitation.” 6 Segundo McLuhan, a palavra metáfora vem do grego meta perein, que significa conduzir através ou transportar. (MCLUHAN, 1964, p.
108)
18
É nessa perspectiva que pode-se compreender como transformações
associadas a certas tecnologias comunicativas são tão intensas a ponto de
representaram revoluções comunicativas, que por sua vez estão associadas ao
surgimento de novos tipos de cultura, conforme ideia proposta por Baldini (1995).
O filósofo da comunicação destaca quatro tipos de culturas: a oral, caracterizadas
pela comunicação primordialmente pela palavra falada; a cultura manuscrita ou
quirográfica, baseada na escrita; a cultura tipográfica, que tem nas páginas
impressas o meio principal de transmissão de saberes; e a cultura das mídias
elétricas e eletrônicas, caracterizadas por veículos de massa como a televisão, o
rádio e o cinema.
Massimo Di Felice (2009) toma como referência a concepção de diferentes
culturas a partir da perspectiva comunicativa para desenvolver sua reflexão sobre
distintas formas de habitar, ressaltando primeiramente as revoluções
comunicativas que as originaram, a partir da definição de Baldini:
“Três foram as revoluções mais importantes que se sucederam no
tempo, isto é, a revolução quirográfica (com a invenção da escrita
ocorrida no quarto milênio a.C.), a revolução gutenberguiana (com a
invenção da imprensa que aconteceu por volta da metade do séc. XV)
e a revolução elétrica e eletrônica (com a invenção do telégrafo, e
sucessivamente do rádio e da televisão).”7 (BALDINI, 1995 apud. DI
FELICE, 2009, p. 65)
Di Felice atualiza a reflexão de Baldini ao identificar que a tecnologia
digital da Internet - que propicia uma comunicação em rede inédita - está
associada a uma cultura da interação e, a interatividade da chamada web 2.08, que
surge num segundo momento, está associada a uma cultura da colaboração (DI
FELICE, 2009, p. 66).
Se observarmos algumas das transformações associadas a cada uma dessas
culturas comunicativas, poderemos constatar a simbiose entre o ser humano, sua
percepção do mundo, as tecnologias midiáticas e a natureza, conforme indica Di
Felice (2009) ao propor que tal simbiose se traduz numa forma de habitar.
7 BALDINI, M. Storia della communicazione. Milão: Tascabili Economici Newton,1995, p. 9.
8 Refere-se às arquiteturas e fluxos informativos que têm como foco a interação e a participação a partir de linguagens diversas e pela
conexão de pessoas e interesses diferentes.
19
A abordagem do habitar apresentada por Di Felice (2009, p. 20) vai além
de concepções arquitetônicas ou topográficas e lança um olhar para as interações e
articulações entre mídia, sujeito e território, em épocas tecnológicas diferentes e
no interior de arquiteturas comunicativas distintas. As diferentes formas do
habitar revelam não só novas características de sociabilidade, mas também de
nossa condição perceptiva, de relação com as coisas e com a natureza.
Para conceituar o habitar, Di Felice (2009) se remete a Heidegger, que o
apresenta como “o modo através do qual os mortais estão sobre a terra"
(Heidegger, 1977, apud DI FELICE, 2009, p. 54)9. O habitar seria então uma
condição ontológica do ser humano, que reúne em si os quatro elementos do que
Heidegger denomina “Quadratura” (a terra, o céu, os mortais e os divinos) e é
entendido numa perspectiva temporal, isto é, o ser é transitório, um projeto, uma
possibilidade:
“Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses,
conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um
habitar.” (HEIDEGGER, 1954, Não paginado)
Onde - de modo bem mais simplificado e menos poético que o escrito por
Heidegger - a terra remete às fontes do sustento da vida, “sustento de todo o gesto
de dedicação”; o céu remete aos ciclos e fenômenos da natureza; os deuses, à
dimensão do sagrado; e os mortais dizem respeito aos homens, que habitam ao
deixar a terra “livre em seu próprio vigor”, ao acolher o céu e aguardar os deuses
(HEIDEGGER, 1954, Não paginado).
Assim, a realização da Quadratura – a condição de ser humano – é algo
que acontece pelo relacionar-se com o mundo. Na leitura de Di Felice (2009, p.
56), o habitar “remonta a um relacionar-se e, portanto, a um comunicar”,
perspectiva que inclui também o “permanecer junto às coisas”, ou seja, a relação
com os objetos e as extensões tecnológicas do homem, uma vez que tal relação
acontece permeada pela Quadratura.
Heidegger expressa o habitar junto às coisas do seguinte modo:
“Quando os mortais protegem e cuidam das coisas em seu
crescimento. Quando edificam de maneira própria coisas que não
9 Heidegger, M. Costruire, Abitare, Pensare. In: Saggi e discorsi. Milão: Mursia, 1977, p. 96.
20
crescem. Cultivar e edificar significam, em sentido estrito, construir.
Habitar é construir desde que se preserve nas coisas a quadratura.”
(HEIDEGGER, 1954, Não paginado)
Podemos entender melhor essa relação pela metáfora da ponte, que não
vem a ocupar um lugar, mas cria e constitui uma nova identidade territorial e
relacional. Ela gera uma interação comunicativa – seja de distanciamento, seja de
proximidade - entre as coisas, os espaços e o ser humano:
“Os espaços que cada dia percorremos são dispostos e abertos por
lugares; a essência destes se funde em coisas como a ponte (...).
Falar sobre a relação entre homem e espaço faz pensar que o homem
esteja de um lado e o espaço, de outro. Ao invés disso, o espaço não é
algo que esteja à frente do homem. Não é nem um objeto externo, nem
uma experiência interior. Não há os homens e, além deles, o espaço;
já que, se digo um homem e entendo com este termo aquele ente que é
no mundo do homem, ou seja, que habita, com isto indico já com o
termo um homem o permanecer da Quadratura junto às coisas.
Também quando nos relacionamos com coisas que não são uma
vizinhança alcançável, permanecemos, mesmo assim, junto às
próprias coisas (...). Os espaços se abrem em virtude do fato de que
são admitidos dentro do habitar do homem. Que os mortais são quer
dizer que, habitando, abraçam espaços e se mantêm neles sobre a
base do seu habitar junto às coisas e lugares.” (HEIDEGGER, 1977
apud DI FELICE, 2009, p. 61)10
Com o conceito de habitar em mente, lançamos agora um olhar para a
relação ser humano-natureza-tecnologia nas três formas do habitar destacadas por
Di Felice, a partir das revoluções comunicativas às quais se referem.
2.2 Habitar empático, habitar exotópico
À fase comunicativa caracterizada pelo advento da escrita – a revolução
quirográfica definida por Baldini (1995) - Di Felice associa a forma do habitar
empático, marcada pela sequência do alfabeto, pela organização do texto e pela
“prática comunicativa instaurada com a mediação da leitura que, por um amplo
período, fará coincidir o habitar com o ler” (DI FELICE, 2009, p. 75). O homem
enxerga a paisagem por meio de textos, preenchendo-a de significados e
10
Heidegger, M. Costruire, Abitare, Pensar. In: Saggi e discorsi. Milão: Mursia, 1977, p. 103-104.
21
edificando-a à sua imagem e semelhança. Trata-se de uma forma comunicativa
unidirecional, com o sujeito emissor ativo de um lado e o espaço receptor passivo
de outro. Assim, a percepção e a interação do homem com o ambiente é de caráter
transitivo.
“No nível filosófico, o antropocentrismo, surgido com a difusão da
escrita, não situa o indivíduo na natureza, mas o coloca diante dela,
tornando-o habitante da própria razão e somente morador temporário
e ativo do ambiente ao seu redor.” (DI FELICE, 2009, p. 76)
Essa nova forma de habitar também traz uma afastamento da cultura oral
anterior, cindindo o mundo visual do auditivo, conforme aponta McLuhan:
“A palavra fonética escrita sacrificou mundos de significado e
percepção, antes assegurados por formas como o hieróglifo e o
ideograma chinês. Estas formas de escrita culturalmente mais ricas,
no entanto, não ofereciam ao homem os pontos de passagem do
mundo magicamente descontínuo e tradicional da palavra da tribo
para o meio visual, frio e uniforme.” 11
(MCLUHAN, 1964, p. 102-
103)
O autor vai além e afirma que o uso do papiro e do alfabeto criam os
incentivos para a construção de vias pavimentadas mais rápidas, que foram
decisivas para o fim das cidades muradas e das cidades-estados:
“A alteração dos agrupamentos sociais e a formação de novas
comunidades ocorre com a aceleração do movimento da informação,
por meio das mensagens em papel e do transporte rodoviário. Esta
aceleração significa mais controle a maiores distâncias.
Historicamente, representou a formação do Império romano e o
desmantelamento das cidades-estados do mundo grego.”
(MCLUHAN, 1964, p. 108)
Ao longo do tempo, a difusão da escrita e da prática da leitura vai
permitindo o acesso individual das informações, o que estimula a emancipação do
indivíduo do seu grupo. Nesse contexto, o espaço vai sendo ordenado de modo
lógico-sequencial - como a estrutura do livro organizado em parágrafos, capítulos,
11
McLuhan distingue do seguinte modo os meios quentes e frios: “(...) Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos
e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta
definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual. O telefone é um
meio frio, ou de baixa definição, porque ao ouvido é fornecida uma magra quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam
muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como
o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus usuários.” (MCLUHAN, 1964, p. 38)
22
páginas e volumes - com foco em funções e identidades preestabelecidas, o que Di
Felice chama de “forma escrita do habitar” (DI FELICE, 2009, p. 78), e que será
uma característica da arquitetura nas cidades – típica nos mosteiros e burgos - e da
própria vida cotidiana dessas cidades, com a regulamentação do trabalho e com a
elaboração de projetos políticos para o espaço urbano.
Essa lógica da escrita aplicada à vida cotidiana e à organização do espaço
nos revela como a nova forma de habitar se configura mesmo havendo uma
grande parte da população não letrada. Ou seja, o acesso direto às novas
tecnologias não é determinante para a configuração de novas formas de habitar e
para a substituição de formas anteriores.
Como veremos adiante, esse é um processo gradual em que uma acaba
predominando sobre a outra, mas durante o qual elas convivem e se influenciam
mutuamente. Ainda assim, essa característica da convivência e eventual
substituição de formas de habitar revela faces mais ostensivas, por exemplo, nos
projetos de ocupação e urbanização levados pelos colonizadores e missionários
europeus a outras regiões do mundo, que impuseram a lógica da cultura escrita
sobre formas nativas do habitar, ligadas à cultura oral.
Em meados do século XV, a invenção da imprensa, com seus caracteres
móveis, leva à segunda revolução comunicativa descrita por Baldini (1995), que
altera o modo de guardar e transmitir informações, a maneira de pensar e de
organizar e de se relacionar com o espaço. Era o surgimento, em meio ao habitar
empático, do “homem tipográfico”, termo de McLuhan (1964).
Um dos elementos característicos da cultura tipográfica, segundo Di
Felice, é a aplicação do princípio matemático ao meio ambiente, que permitirá,
por exemplo, representar graficamente o globo como uma superfície plana.
“A cidade, com seus espaços simétricos e esteticamente
harmonizados, e o espaço renascentista, representado em mapas e
cartas de navegação, assumem uma forma objetiva, tornando-se
modelos ideal-típicos e, ao mesmo tempo, projetos a serem impressos
na prática cotidiana.” (DI FELICE, 2009, p. 102)
O autor reflete que a definição geométrica do território leva ao
aprimoramento das rotas de navegação, demarcação das fronteiras e das
propriedades de terras, e traz para o espaço urbano a busca por uma forma estética
23
perfeita e real, evidente nos desenhos arquitetônicos e no distanciamento dos
projetos políticos idealistas da antiguidade clássica. Se, como já mencionado, essa
transformação no entendimento e na relação com o espaço se estende até os
projetos de colonização e evangelização - com a substituição da mentalidade e do
espaço nativos pelas formas de concepção europeias -, Di Felice (2009) mostra
que é possível identificarmos mesmo nos países europeus uma força motriz
impositiva, quando os problemas decorrentes da expansão urbana pós-revolução
industrial terão na organização e controle do espaço um foco prioritário para
governos, políticos e sociedade, com destaque para mudanças arquitetônicas
destinadas a provocar mudanças no estilo de vida dos cidadãos.
Assim, a sistematização da vida e da paisagem exprime uma forma
empática e confortadora de lidar com o espaço – no sentido de que faz dele algo
conhecido, dominado - e que, conforme afirma Di Felice (2009, p. 118), “o sujeito
habita, conquistando-o”.
“Desde a forma imaterial e escrita até aquela impressa, e nas formas
funcionais da época moderna, a cidade e o habitar ocidentais se
revelam como consequências de um processo comunicativo específico
e de um modo particular de transferir informações do sujeito-texto
para o espaço, elegendo-o como o objeto a ser moldado e
transformado.” (DI FELICE, 2009, p. 114)
Cabe observarmos que as características do habitar empático não podem
ser circunscritas exclusivamente ao período entre a revolução quirográfica e a
revolução elétrica. Seus elementos perpetuam-se até hoje, convivendo com a
forma do habitar exotópico – cuja configuração foi impulsionada com a
popularização da lâmpada elétrica e da fotografia a partir do fim do século XIX - e
convivendo com o habitar atópico, cujos indícios surgem a partir do fim do século
XX.
De modo análogo, foi no início do século XVII que surgiu uma forma de
interação midiática que estaria no âmago do habitar exotópico séculos mais tarde.
Por meio da observação do universo pelo telescópio, Galileu Galilei inaugurou
uma relação entre sujeito e território que se dá por uma experiência perceptiva
mediada por um instrumento tecnológico mecânico.
“Com o invento do telescópio de Galileu, será possível descobrir um
outro universo, distinto daquele passível de ser descoberto pelos
24
livros. Trata-se de um olho e um olhar estendidos, e transformados
pela lente do telescópio, um olho e um olhar não mais unicamente
biológicos, mas também técnicos e não orgânicos – mecânicos. (...)
Galileu representa a passagem dos filósofos do livro para os filósofos
matemáticos, a passagem do conhecimento teórico-abstrato para
aquele científico-experimental, e, acima de tudo, introduz o conceito
de observação exata, aquele obtido pela mediação através de
instrumentos e meios de visão. É a visão tecnológica da natureza. A
partir de então, olhar e conhecer o mundo se dará pela intermediação
ativa de um instrumento e de um artefato de visão.” (DI FELICE,
2009, p. 191)
Essa intermediação que gera um olhar híbrido, ao mesmo tempo orgânico
e inorgânico, tem como desdobramento fundamental para se compreender o
habitar exotópico o deslocamento do sujeito para além do ambiente geográfico,
para além do espaço físico, em direção a um espaço em movimento.
“A partir de então, o espaço e o habitat tornam-se o resultado de uma
observação técnica, que introduz uma nova forma de habitar, baseada
na reprodução tecnológica da paisagem. A passagem de um habitar
“natural”, estático e geometricamente dominado, para um habitar
flutuante e tecnológico é objeto de um ulterior e decisivo incremento
na época industrial com o advento da fotografia, da luz elétrica, do
cinema e da mídia de massa.” (DI FELICE, 2009, p. 119)
Isto significa que estamos falando de um habitar associado à metrópole
moderna. Enquanto a cidade do habitar empático apresentava um espaço estático
diante do sujeito e manipulável, no habitar exotópico o espaço se realiza por uma
apreensão mediada pela tecnologia, desde o bonde até o cinema – que surgem
como extensões elétricas em meio à floresta de cabos que transformam a estrutura
urbana em redes comunicativas e estendem o sujeito nas esferas eletrônicas e nas
formas de relações metageográficas. É o que Di Felice chama de “espaço-
artefato”:
“(...) tecnologicamente emancipado do sujeito, que faz do habitar uma
experiência deslocativa, não somente no sentido geográfico, como,
sobretudo, com a difusão da mídia de massa, no nível eletrônico-
cognitivo.” (DI FELICE, 2009, p. 118)
Aqui, o autor se refere à relação com o cinema, o rádio, a TV, as
mensagens publicitárias, que configuram “metapaisagens”, “ecossistemas
informativos”.
25
Para salientar o significado dessas “imagens-moradias flutuantes” do
habitar exotópico, Di Felice traz argumentos de Simmel e Argan. Para o
primeiro, a cidade vai criando uma forma de sociabilidade visual, na qual as
imagens em movimento intensificam “a vida nervosa e os sentidos” Simmel
(SIMMEL, 2005 apud DI FELICE, 2009, 155)12
, emancipando os cidadãos dos
ritmos da existência comunitária, e sujeitando-os àqueles ritmos frenéticos e
eletrônicos da metrópole industrial-produtiva e seus circuitos eletrônicos.
Em complemento, Di Felice destaca a observação de Argan sobre como o
significado do território na perspectiva do habitar exotópico apresenta uma
mudança em relação ao do habitar empático:
”A cidade deixa de ser lugar de proteção, de refúgio, e passa a ser,
sobretudo, lugar de comunicação: comunicação no sentido de
deslocação e de relação, mas também no sentido de transmissão de
determinados conteúdos urbanos.”13
(ARGAN, 1994, apud DI
FELICE, 2009, p. 150)
Assim, a experiência de um habitar exotópico se realiza tanto pela
possibilidade do espaço em movimento de modo emancipado ao sujeito – por
meio de trens, bondes, elevadores -, como pela percepção visual do espetáculo nos
“espaços-imagens”, “paisagens artificiais”, “meta-geografias reais e sintéticas ao
mesmo tempo”.
McLuhan nos ajuda a compreender esse contexto:
“Quem ainda se sinta inclinado a duvidar que a roda, a fotografia ou
o avião alteram nossos hábitos de percepção sensível, não pode mais
duvidar ante a iluminação elétrica. Neste domínio, o meio é a
mensagem, e quando a luz está ligada, há um mundo sensório que
desaparece quando a luz está desligada.” (MCLUHAN, 1964, p. 150)
A reflexão de McLuhan remete à questão sensorial no habitar exotópico
fortemente ligada ao olhar. Primeiramente, pela relação da cidade com a era
industrial, onde a expansão urbana e da aglomeração das pessoas tira da fala a
prioridade no estabelecimento das relações interpessoais e dá ao olhar essa
responsabilidade. É também pelo olhar que se faz a experiência das paisagens em
12
SIMMEL, G. Le metropoli e la vita dello spirito. Roma: Armando, 2005. 13
ARGAN, G. C. Storia dell’arte come storia della città. Roma: Editoria Riuniti, 1994, p. 120.
26
movimento e dos espaços-imagens - que será motivo de agregação entre as
pessoas - e do surgimento dos novos olhares intermediados pelas tecnologias,
como no caso da fotografia:
“A reprodução técnica da paisagem determinará, como destaca W.
Benjamin, um efeito dilatador e multiplicativo do espaço, que
resultará na perda do ‘hic et nunc’, isto é, do seu sentido objetivo e
único, e, ao mesmo tempo, no surgimento de uma natureza
tecnológica que se coloca à frente do sujeito como alteridade
autônoma: “entende-se assim como a natureza que fala para a
câmera seja distinta daquela que fala para os olhos”. (DI FELICE,
2009, p. 119)
Essa possibilidade de outro olhar é potencializada pelos meios de
comunicação em massa que ajudam a mostrar, como aponta Vattimo (1989), a
crise do colonialismo e do eurocentrismo, mostrando que o ideal europeu de
humanidade era um dentre outros possíveis e que muitas vezes foi imposto a
outras sociedades pela violência. É o que Vattimo chama de dissolução dos pontos
de vista centrais e que coaduna com a ideia de fim das metanarrativas – como
aponta Lyotard (1984) ao referir-se ao forte abalo sofrido por noções que outrora
foram sustentáculos da sociedade ocidental, como o progresso, a modernidade e o
racionalismo.
2.3. A forma do habitar atópico
Se a interação com as tecnologias da eletricidade representou um estalo
para um novo olhar e uma nova sociabilidade, associado à expansão do sentido do
lugar (genius loci) para os espaços informativos, geográficos e imateriais, é de se
imaginar que as tecnologias digitais exerçam impacto de grande intensidade.
Difundidas a partir do final do século XX e com a rede planetária da internet, as
tecnologias digitais possibilitaram a circulação instantânea de informações, por
meio de uma comunicação que, de modo inédito na história da humanidade, não
se baseia na separação emissor e receptor.
“O resultado do surgimento desse novo social interativo e ilimitado é
a construção de uma sociabilidade e um habitar pós-territorial. Além
da arquitetura e da geografia, o habitar atópico não é mais ligado às
coordenadas topográficas nem a um genius loci, mas a fluxos
27
informativos e a uma espacialidade morante, nem externa nem
interna, um habitar nem sedentário nem nômade que por meio da
tecnologia wireless e da computação móvel, faz do corpo o suporte da
informação, aglomerando a “biomassa” com a “infomassa”, numa
inter-relação fluida.” (DI FELICE, 2009, p. 226)
No capítulo 4 abordaremos uma perspectiva um pouco diversa da
concepção do corpo enquanto suporte da informação. Pelo momento, manteremos
foco na perspectiva contemporânea que Di Felice apresenta do conceito de
habitar, proposto por Heidegger, que o leva a definir uma sociabilidade
transorgânica:
“Referimo-nos aqui aos estudos do filósofo Michel Serres14
e do
antropólogo Bruno Latour15
, segundo os quais as redes digitais
produzem um significado de interação que une os elementos
orgânicos àqueles inorgânicos, desenvolvendo formas simbióticas
entre a técnica e o humano.” (DI FELICE, 2012, p. 41-42)
Outro autor que reflete sobre a ligação contemporânea entre o homem e a
tecnologia é Puech (2008), que a contextualiza num mundo onde não se pensam
mais questões filosóficas fundamentais, como liberdade, conhecimento, valores –
uma mudança que guarda paralelo com o fim das metanarrativas descrito por
Lyotard.
Puech afirma que “nesse mundo do conforto e da democracia, as pequenas
coisas da cotidianidade se tornaram uma grande questão” (PUECH, 2008, p. 10).
Segundo ele, essa concepção está associada ao argumento de Heidegger na obra
Ser e Tempo de que a contemporaneidade é marcada por uma sensação de
abandono e que a necessidade de reflexão foi substituída pela noção de
“utensilidade”, pela qual todos os entes – humanos e não humanos – estão à
disposição de uso e dos quais “nos servimos”. Puech resgata essa reflexão de
Heidegger para falar de uma filosofia da tecnologia.
Nessa perspectiva, ele encara o ser humano na contemporaneidade como
Homo sapiens technologicus , para o qual:
“(...) é mais fácil fazer que pensar, mais fácil realizar uma ação que
compreender seu sentido ou que a respaldar em uma decisão, é mais
14
SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 15
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de uma antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1994.
28
fácil construir e fazer funcionar sistemas de objetos que assumir
existencialmente a responsabilidade por eles. O desamparo é também
um atraso crônico do pensamento sobre o fazer e o saber fazer.”
(PUECH, 2008, p. 18)
Localizemos na reflexão de Puech outra característica importante do
habitar atópico, quando ele indica que se o mundo moderno era científico, o
mundo contemporâneo é tecnológico; se a ciência é um discurso, a técnica é uma
ação (PUECH, 2008, p. 21-22).
Já em relação ao território, a atopia não seria um “não-lugar”, mas, como
propõe Di Felice (2009), uma localidade “on demand”, “plural e tecno-
subjetiva”. Vêm daí, por exemplo, novos rumos das cidadanias contemporâneas,
que não mais estão restritas a um espaço e a um tempo únicos e objetivos, mas
desenvolvem-se simultaneamente e com maior velocidade em diversos lugares,
virtual e presencialmente, a partir da interação digital. Di Felice cita Lèvy para
refletir a respeito:
“A multiplicação contemporânea dos espaços faz-nos nômades de um
novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errâncias e de migração
dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um
sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e
se bifurcam aos nossos pés, forçando-nos à heterogênese.” (LÈVY,
1996 apud DI FELICE, 2009, p. 239)16
E é Latour quem nos traz em forma de pergunta uma síntese provocadora
que serve como referência ao habitar atópico: “Será nossa culpa se as redes são
ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como a discurso, coletivas
como a sociedade?” (LATOUR, 2001, p. 12)
É importante pontuar aqui que ao fundir realidade, discurso e coletividade
as redes digitais amplificam tanto o caráter interativo e colaborativo das relações
humanas, como também alimentam sua dimensão de controle. A diferença é que
as instituições que outrora regulavam os fluxos comunicativos perdem esse papel
nas arquiteturas reticulares do habitar atópico. Assim, o coletivo que muitas vezes
é dado a “bisbilhotices”, a difundir padrões de comportamento - como dos corpos-
mercadoria esculpidos por cirurgia e musculação - (Garcia, 2008) e a lançar
16
Lèvy, P. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 77.
29
informações a público a revelia de quem é constrangido por elas, exerce também
um papel de revelador das estratégias e ações das instituições, trazendo a
transparência (Vattimo, 1989) como valor incontornável, capaz de por em xeque
manipulações, monopólios, ingerências, incongruências entre discurso e prática.
Para citar apenas alguns casos: Vatileaks, sobre desvio de recursos pelo
Banco do Vaticano; o caso Snowden, sobre espionagem internacional em meios
digitais pelo governo dos EUA; a tentativa da Monsanto de estabelecer
propriedade intelectual sobre alimentos produzidos em todo o mundo; a lei contra
homossexuais em Uganda; o uso de mão de obra escrava por grandes marcas
fabricantes de roupas no Brasil.
Lembrando que a rede tem o caráter de hibridizar real e virtual, tornando-
se fundamental para a eclosão de manifestações que também tomam as ruas, como
no caso dos Indignados na Espanha, da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street e
das manifestações pelo Brasil em 2013.
Manuel Castells resume do seguinte modo a nova configuração propiciada
pelas redes: “Sem depender das organizações, a sociedade tem a capacidade de
se organizar, debater e intervir no espaço público.”17
A sociedade em rede vai muito além das ações de controle social e torna-
se propositora e executora de alternativas pelo engajamento colaborativo e a co-
criação (Garcia, 2008) que faz surgir novas práticas como o crowdsourcing e o
crowdfunding18
, que parecem apontar não para as resistências indicadas por
Foucault (2006), que realimentam o controle e o poder das instituições, mas para
caminhos sinuosos, inesperados e imprevisíveis que propiciam a recusa ao jogo
como jugo, conforme indica Queiroz (2008) em sua leitura da obra de Jean
Baudrillard.
Por fim, as visões de Di Felice (2009) e Latour (2001) sobre a rede nos
ajudam a fiar uma ligação estreita com a concepção de complexidade como
tecido, apresentada por Morin (1994);
“O que é a complexidade? A primeira vista, a complexidade é um
tecido (complexus: o que está tecido em conjunto) de constituintes
17
Afirmação feita por Castells durante a conferência “Redes de indignação e esperança”, realizada no evento Fronteiras do Pensamento
2013, em São Paulo. Disponível em: http://www.fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16%2C68. Acessado em: 29 jul. 2013. 18
Iniciativas baseadas na inteligência e na produção coletiva a partir das redes digitais são genericamente conhecidas como crowdsourcing,
e muitas vezes têm como desdobramento o crowdfunding, que é a apresentação de projetos dos mais diferentes tipos, em plataformas digitais.
30
heterogêneos inseparáveis associados: apresenta o paradoxo do uno e
do múltiplo. Ao mirar com mais atenção, a complexidade é,
efetivamente, o tecido de eventos, ações, interações, retroações,
determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico.
Assim é que a complexidade se apresenta com as linhas inquietantes
do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da
incerteza (...)”19
(MORIN, 1994, p. 32)
O pensamento de Morin nos permite compreender as arquiteturas e
dinâmicas reticulares do habitar atópico como fenômenos da complexidade,
hibridizando real e virtual, conectando ser humano, natureza e tecnologia num
diálogo constante e mutável. Um diálogo capaz de fundir ideias outrora
impensáveis e de rever paradigmas tidos como incontestáveis.
É neste sentido que investigaremos a seguir como o habitar atópico se
relaciona com o desafio da sustentabilidade que lhe é contemporâneo e
constitutivo. E, posteriormente, a manifestação do corpo nessa relação.
19
Livre tradução: “¿Qué es la complejidad? A primera vista la complejidad es un tejido (complexus: lo que está tejido en conjunto) de
constituyentes heterogéneos inseparablemente asociados: presenta la paradoja de lo uno y lo múltiple. Al mirar com más atención, la complejidad es, efectivamente, el tejido de eventos, acciones, interacciones, retroacciones, determinaciones, azares, que constituyen nuestro
mundo fenoménico. Así es que la complejidad se presenta con los rasgos inquietantes de lo enredado, de lo inextricable, del desorden, la
ambigüedad, la incertidumbre.”
31
3. Sustentabilidade no habitar
“(…) nosso foco no futuro deve ser não só nas
mudanças em tecnologia e nos sistemas de
gestão, mas nos valores e mentalidades.”
(ELKINGTON, 1997, p. 7)20
O habitar atópico descrito no capítulo anterior se configura a partir do
advento das tecnologias digitais, das arquiteturas informativas reticulares e de
uma sociabilidade interativa e colaborativa. Mas, também, em meio à mudança
fundamental das condições ecológicas necessárias à vida no planeta,
simultaneamente a um quadro de diferenças extremas de oportunidade e
condições de vida entre os seres humanos.
O enfrentamento desses dois desafios, que guardam uma relação de
interdependência, é o foco das reflexões e ações da chamada sustentabilidade,
tema que será abordado neste capítulo. A ideia é explorarmos alguns conceitos
sobre sustentabilidade e identificar a coincidência de suas premissas com
características da forma do habitar atópico, que lhe é contemporânea.
3.1 Entropia
As alterações ambientais de origem antropogênica fazem parte da relação
do ser humano com a natureza, mas o acúmulo de seus impactos sobre o planeta,
principalmente a partir da Revolução Industrial, passou a representar obstáculo à
capacidade de suporte à vida e de regeneração da natureza.
Interessante notar como esse contexto surge em meio à forma do habitar
empático, em que a natureza, como exposto no capítulo anterior, é vista como
algo a conquistar.
“A revolução científica na Europa transformou a natureza de terra
mater, em uma máquina e uma fonte de material bruto; com essa
transformação, foram removidos todos os laços éticos e cognitivos
contra sua violação e exploração. A revolução industrial converteu a
20
Livre tradução: “(…) our focus in future must not only be on changes in technology and in management systems, but also on values and
mindsets.”
32
economia da prudente gestão de recursos para o sustento e a
satisfação de necessidades básicas em um processo de produção de
commodities para a maximização do lucro. O industrialismo criou um
apetite sem limites para a exploração de recursos, e a ciência
moderna forneceu a licença ética e cognitiva para tornar possível tal
exploração, aceitável e desejável.(...)”21
(SHIVA, 1988, p. xiv-xv)
Entre os inúmeros exemplos dos desdobramentos que surgem dessa
relação, destaca-se a abrupta mudança das condições climáticas, associada ao
aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera – que em 2013
chegaram à marca das 400 partes por milhão, algo jamais ocorrido ao longo da
história do ser humano no planeta22
.
Como aponta o Relatório Estado do Mundo 2013:
“(...) o uso da atmosfera, da crosta, das florestas, dos estoques
pesqueiros, da água e demais recursos já é uma força tão grande
quanto a da natureza.” (BROWN, 2013, p. 8)
Isto se reflete, por exemplo, na diminuição da água disponível para
consumo, seja por assoreamento de rios, pela poluição das águas ou pela
perturbação dos regimes das chuvas. Na perda de vegetação nativa, com impactos
para a qualidade dos solos para agricultura, o controle de pragas e doenças, o
desenvolvimento de remédios, a alimentação de comunidades locais. Ou ainda na
redução das populações de abelhas em taxas superiores a 30% em algumas
regiões, por impacto de agrotóxicos no sistema nervoso desses insetos, e a
consequente queda no serviço ecossistêmico da polinização, essencial para a
perpetuação de vegetação nativa e da agricultura mundial23
. Entre diversos outros
fenômenos ocasionados pela ação do homem - que já utiliza recursos em uma
escala correspondente a 1,5 planetas Terra24
- se impõem como obstáculos a sua
própria condição de vida, principalmente de populações de baixa renda que já se
21
Livre tradução: “The scientific revolution in Europe transformed nature from terra mater into a machine and a source of raw material;
with this transformation it removed all ethical and cognitive constraints against its violation and exploitation. The industrial revolution
converted economics from the prudent management of resources for sustenance and basic needs satisfaction into a process of commodity production for profit maximization. Industrialism created a limitless appetite for resource exploitation, and modern science provided the
ethical and cognitive license to make such exploitation possible, acceptable- and-desirable.” 22
Dado apresentado pelo Scripps Institution of Oceanography, da Universidade de San Diego, conforme noticiado pelo Instituto Carbono
Brasil em 10 mai 2013. Disponível em: http://www.institutocarbonobrasil.org.br/mudancas_climaticas1/noticia=733981. Acessado em 14
ago. 2013. 23
Informações que fazem parte de reportagem especial do serviço de informação da Universidade de Yale, o Environment 360. Disponível
em: http://e360.yale.edu/feature/declining_bee_populations_pose_a_threat_to_global_agriculture/2645/. Acessado em 14 ago. 2013. 24
Segundo informações da organização Global Footprint Network. Disponível em:
http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/page/world_footprint/. Acessado em 14 ago. 2013.
33
encontram em situação de vulnerabilidade ou que dependem diretamente dos
recursos naturais da região que habitam para sobreviver.
Se a ameaça que representam os efeitos ambientais da ação antropogênica
não é uma novidade - no Brasil, por exemplo, tem-se conhecimento de relatos a
respeito desde a época do Império (DEAN, 2001) -, é a partir da segunda metade
do século XX que a questão ganha tons alarmistas por meio de estudos científicos,
da organização do movimento ambientalista e dos protestos de movimentos
sociais.
Esse panorama guarda relação com a forma do habitar exotópico, que ao
estimular uma perspectiva deslocativa do olhar, intensifica a crise dos pontos de
vista centrais (VATTIMO, 1989) já mencionada no capítulo 1, trazendo à tona a
pressão de novos grupos contrários à ideia de desenvolvimento enquanto
crescimento econômico per se. Entre outros desdobramentos, podemos identificar
a defesa de um modo diferente de relação com a natureza e dentro da sociedade,
que não mais fundamentados na conquista e domínio do território, na imposição
de diretrizes sociopolíticas que não respeitam o meio ambiente e as singularidades
locais e na geração de riqueza com desigualdade e no desrespeito à diversidade,
para citar apenas alguns fatores.
O reverberar da questão ambiental entre governos tem como primeiro
marco no plano internacional a Conferência de Estocolmo, em 1976, que foi o
primeiro encontro oficial da Organização das Nações Unidas para discutir a
questão, inaugurando décadas de debates, de negociações de tratados e de
implementação e discussão de políticas internacionais, tendo como alguns de seus
marcos a Rio 92 e a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade
Biológica (PEREIRA, 2012).
É desse processo que surge a ideia de sustentabilidade, para a qual uma
grande variedade de conceitos foi elaborada. Muitos deles, de modos diferentes,
pregam a busca por formas de harmonizar as atividades antrópicas com a
manutenção de condições ambientais necessárias à vida humana no planeta e a
garantia de equidade nos direitos, oportunidades e condições de vida na
sociedade, a exemplo do que propõe Raworth (2012).
34
Se a multiplicidade de proposições já existentes para um termo tão novo na
história do pensamento humano torna difícil exaurir as possibilidades de seu
entendimento, é relevante nos debruçarmos sobre algumas definições para
estabelecer associações entre seus fundamentos e as premissas do habitar atópico.
A abordagem da relação entre os limites da natureza e o impacto das
atividades humanas é foco de estudos da Economia Ecológica, que traz uma
perspectiva de interdependência e coevolução da economia e dos ecossistemas.
Essa escola de pensamento tem como um dos pilares a concepção de Georgescu-
Roegen, que aponta, como veremos a seguir, para a degradação dos recursos
naturais pelas atividades humanas, numa referência ao conceito de entropia, da
segunda lei da termodinâmica25
.
Esse é um argumento que será explorado por muitos autores, como Cechin
(2010), que faz uma análise dos conceitos do economista Georgescu-Roegen26
para mostrar como, no mundo contemporâneo, a natureza representa um limite à
economia. Ele explica que a economia é um subsistema aberto, dentro de um
sistema finito que é o planeta, por sua vez sujeito à lei da entropia. Esta implica
que as mudanças na qualidade da energia de um sistema tendem a torná-la
inutilizável, isto é, parte da energia não pode ser transformada em trabalho. Sendo
o processo econômico um processo aberto, ele depende da entrada de energia e
materiais de baixa entropia, com capacidade de realização de trabalho, e libera
resíduos de alta entropia, seja em forma de calor, seja em forma de particulados,
como o caso da poluição.
Portanto, se é fundamental pesquisa em tecnologia para melhora de
eficiência dos modos produtivos, só pode haver sustentabilidade com a
minimização do fluxo de matéria e energia que atravessam o subsistema economia
– o que diminuiria a pressão sobre os estoques de recursos naturais e a geração de
resíduos.
25
Como esclarece o Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, existem três formas referenciais para enunciar a
segunda lei da termodinâmica. O enunciado de Kelvin: “É impossível remover energia térmica de um sistema a uma certa temperatura e
converter essa energia integralmente em trabalho mecânico sem que haja uma modificação no sistema ou em suas vizinhanças”; o enunciado de Clausius “Não há nenhum processo onde o único efeito de energia térmica seja o de transferir energia de um corpo frio para
outro quente”; e o enunciado de Kelvin-Planck: “É impossível que uma máquina térmica, operando em ciclos, tenha como único efeito a
extração de calor de um reservatório e a execução de trabalho integral dessa quantidade de energia”. Disponível em http://www.if.ufrgs.br/~dschulz/web/segunda_lei.htm. Acessado em 20 ago. 2013. 26
Cechin cita em sua pesquisa onze obras de Georgescu-Roegen que apoiam sua litura sobre o conceito da entropia para o desenvolvimento
sustentável.
35
Acompanhando essa premissa, Cechin (2010) traz o entendimento de que,
a partir de certa escala, a economia degrada as fontes de recursos e os sorvedouros
de resíduos e, portanto, no estágio atual, notadamente em países desenvolvidos,
deveria haver uma mudança do modelo baseado em crescimento, para um de
decrescimento, com redução da entropia.
É importante sublinhar que a questão da entropia na perspectiva da
sustentabilidade vai além de um olhar econômico. Uma concepção complementar
é inspirada pela noção de complexidade, como nos aponta Morin:
“Descobriu-se no universo físico um princípio hemorrágico de
degradação e de desordem (segundo princípio da Termodinâmica);
logo, no suposto lugar da simplicidade física e lógica, descobriu-se a
extrema complexidade microfísica; a partícula não é um ladrilho
primário, mas sim uma fronteira sobre uma complexidade talvez
inconcebível; o cosmos não é uma máquina perfeita, mas sim um
processo em via de desintegração e, ao mesmo tempo, de
organização.”27
(MORIN, 1994, p. 33)
O autor nos remete a ideia de que os seres vivos são sistemas abertos em
constante estado de desequilíbrio que é organizado em um dinamismo
estabilizado, por meio da relação com o ambiente, não como simples dependência,
mas como relação constitutiva. Apesar dos seres vivos parecerem sempre os
mesmos, seus constituintes estão sempre se renovando por dinâmicas internas e
pelo diálogo com o ambiente. Trata-se, portanto, de “sistemas auto-eco-
organizadores” (MORIN, 1994, p. 45). E se tal organização acontece por meio de
fluxos informativos – entendidos aqui como todo tipo de troca -, quanto maior o
estabelecimento de interações entre si e o ambiente, maior a possibilidade de
organização que reduza a entropia.
Outra forma de entender o conceito de entropia na perspectiva da
sustentabilidade envolve desdobramentos sociopolíticos relevantes, como os
indicados por Vandana Shiva:
“A segunda lei da termodinâmica prevê que o desenvolvimento
econômico intensivo em recursos e intensivo em resíduos deve se
tornar uma ameaça à sobrevivência da espécie humana no longo
prazo. Lutas políticas baseadas na ecologia em países industrialmente
27
Livre tradução: “Se ha descubierto en el universo físico un principio hemorrágico de degradación y de desorden (segundo principio de la
Termodinámica); luego, en el supuesto lugar de la simplicidad física y lógica, se ha descubierto la extrema complejidad microfísica; la
partícula no es un ladrillo primario, sino uma frontera sobre una complejidad tal vez inconcebible; el cosmos no es una máquina perfecta,
sino un proceso em vías de desintegración y, al mismo tiempo, de organización.”
36
avançados têm raiz nesse conflito entre opções de sobrevivência de
longo prazo e superprodução e superconsumo de curto prazo. Lutas
políticas de mulheres, camponeses e tribos baseadas na ecologia em
países como a Índia são bem mais agudas e urgentes, uma vez que
têm raiz na ameaça imediata às opções de sobrevivência para a maior
parte da população, imposta pelo crescimento econômico intensivo
em recursos e perdulário em recursos para o benefício da minoria.”28
(SHIVA, 1989, p. 9)
3.2. Perspectiva integrada
Contextos como os apresentados acima e as possibilidades de
entendimento da entropia em nossa relação com o mundo apontam para o que
Veiga (2005) considera a inevitabilidade da sustentabilidade, cuja complexidade
demanda uma abordagem integrada:
”(...) todas as esferas do conhecimento devem trazer a natureza de
volta. Não por arrependimento romântico, mas como consequência de
renovação das humanidades baseada nos mais recentes avanços
obtidos.” (VEIGA, 2005, p. 151)
Essa demanda por integração de informações e conhecimento guarda
interessante paralelo com a perspectiva do habitar atópico, caracterizado pela
comunicação em rede e pelas iniciativas colaborativas – o que inclui as diferentes
áreas do conhecimento acadêmico. Nesse contexto, vale ressaltar ainda que
“trazer a natureza de volta” é algo que prevê uma relação íntima com a tecnologia
digital – outra característica do habitar atópico - uma vez que as informações
sobre a natureza, a serem consideradas em diferentes esferas de conhecimento,
estão bastante associadas hoje à sua digitalização por satélites, câmeras,
dispositivos de medição, georreferenciamento etc. E que, a partir desses dados, a
mudança de interação com a natureza acontecerá também por meio dos
dispositivos tecnológicos digitais, numa perspectiva reticular que reúne actantes
humanos e não humanos29
.
28
Livre tradução: “The second law of thermodynamics predicts that resource intensive and resource wasteful economic development must
become a threat to the survival of the human species in the long run. Political struggles based on ecology in industrially advanced countries
are rooted in this conflict between long term survival options and short term over-production and over-consumption. Political struggles of
women, peasants and tribals based on ecology in countries like India are far more acute and urgent since they are rooted in the immediate threat to the options for survival for the vast majority of the people, posed by resource intensive and resource wasteful economic growth for
the benefit of a minority.” 29
Conforme termo proposto por Latour (2001) e apresentado no capítulo anterior.
37
Quando Veiga (2005) fala em integração de conhecimentos, nos indica que
concepções fora da economia – uma das esferas que mais tem refletido
sistematicamente sobre a questão da sustentabilidade - devem ser trazidas para o
diálogo sobre o tema.
De fato, o entendimento sobre sustentabilidade extrapola a perspectiva
primeiramente econômica e traz outros recortes. Um exemplo, é a proposta de
Sachs (1998) de interação de atores, esferas de conhecimento e dimensões da
sociabilidade, que podem ser agrupados em oito dimensões para refletir a
sustentabilidade: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica e
política (nacional e internacional).
Já a Teoria de Gaia, de Lovelock (1998), tem por foco a interação dos
organismos na Terra com os arredores inorgânicos, formando um sistema
complexo autorregulador que contribui para manter as condições para a vida no
planeta.
Aqui é possível identificarmos novamente a característica do habitar
atópico de interação dos mais variados actantes, na perspectiva do que propõe
Latour (2001), ou seja, a interação reticular entre humanos e não-humanos, em
sentido amplo.
Dentre as abordagens que nos ajudam a entender a sustentabilidade a partir
de uma perspectiva relacional do ser humano com a natureza, destaca-se também
o conceito de história ambiental, tal qual apresentado por Pádua (2010), que
propõe a reflexão sobre uma história não da humanidade, mas da biosfera, da qual
o homem é parte:
“(...) A visão de uma natureza em permanente movimento e
transformação ao longo do tempo, obviamente, não favorece a
capacidade de persuasão de teorias deterministas (mesmo que elas
ainda possam existir nos quadros do grande politeísmo teórico da
atualidade). É nesse ambiente teórico renovado, na virada do século
XX para o XXI, que a história ambiental procura repensar, na
definição de Elinor Melville e Guillermo Castro, “as interações entre
os sistemas sociais e os sistemas naturais, e as consequências dessas
interações para ambas as partes, ao longo do tempo” (Castro, 2007).”
(PÁDUA, 2010, p. 85)
Vale citar ainda abordagens que, embora dentro da economia, fazem a
junção entre diferentes perspectivas, como no caso de Abramovay (2012), que
38
ressalta o ponto de vista socioambiental da sustentabilidade ao defender, como
resposta aos limites da natureza, a inserção da ética no centro da vida econômica.
Isto significa olharmos também para os desdobramentos sociais dos modos de
produção e distribuição de riquezas. Novamente, a perspectiva integrada.
3.3 Prosperidade
Uma abordagem econômica que ganhou especial atenção recentemente, e
que é desenvolvida a partir de argumentos trazidos de outras áreas do
conhecimento que não só a economia - mas também a antropologia, a psicologia e
até mesmo noções do islamismo - é a de prosperidade sem crescimento, proposta
por Jackson (2009). Segundo o autor, o modelo econômico centrado no
crescimento contínuo trouxe de um lado o endividamento pessoal e de nações e de
outro foi incapaz de distribuir de modo razoavelmente equânime as riquezas do
mundo, gerando desigualdades sociais gigantescas que levam a tensões entre os
mais pobres e que resultam em impactos para toda a sociedade. Neste sentido, o
autor analisa a crise econômico-financeira mundial, deflagrada em 2008, como
evidência da “irresponsabilidade sistêmica” necessária para manter o modelo de
crescimento constante:
“A era da irresponsabilidade demonstra uma cegueira de longo prazo
em relação às limitações do mundo material. Esta cegueira é tão
evidente em nossa inabilidade para regular mercados financeiros,
como o é em nossa inabilidade de proteger recursos naturais e de
reduzir danos ecológicos. Nossas dívidas ecológicas são tão instáveis
quanto nossas dívidas financeiras. Nenhuma delas é contabilizada
apropriadamente na incansável busca pelo crescimento do
consumo.”30
(JACKSON, 2009, p. 27)
Nessa mesma perspectiva, Resende (2013) resume do seguinte modo o
esgotamento do modelo econômico vigente:
“Diante da evidência de que o dano da atividade econômica sobre o
planeta se aproxima do limite do tolerável, a identificação do
crescimento econômico com o aumento do bem-estar tornou-se
obrigatoriamente questionável. (...) O desafio de continuar a elevar a
30
Livre tradução: The age of irresponsibility demonstrates a long term blindness to the limitations of the material world. This blindness is as
evident in our inability to regulate financial markets as it is in our inability to protect natural resources and curtail ecological damage. Our
ecological debts are as unstable as our financial debts. Neither is properly accounted for in the relentless pursuit of consumption growth.”
39
qualidade de vida, o bem-estar, de uma forma sustentável — palavra
que se tornou um horrível lugar-comum — se mostra tão relevante
como sempre foi. Assim como a imposição de sacrificar a contínua
melhora da qualidade de vida em nome dos limites ecológicos parece
irrealista, mais irrealista ainda, absurdo mesmo, é imaginar que a
mera incorporação do neologismo “sustentável”, aposto a
crescimento, a consumo ou ao que quer que seja, nos permitirá seguir
o curso do aumento dos níveis de consumo observados no século
passado. Se formos necessariamente obrigados a crescer e a
enriquecer para continuar a melhorar a qualidade de vida, estaremos
diante de um impasse, pois é evidente que não será mais possível
crescer, enriquecer e sobretudo consumir, nos padr es de hoje, por
muito mais tempo, sem esbarrar nos limites físicos do meio ambiente”
(RESENDE, 2013, p. 24)
Como alternativa de desenvolvimento, Tim Jackson propõe mudar o foco
para a ideia de prosperidade, que vai muito além das questões materiais:
“Prosperidade tem dimens es sociais e psicológicas vitais. Estar bem
é em parte a habilidade de dar e receber amor, desfrutar o respeito de
nossos pares, contribuir para trabalhos úteis, e ter um senso de
pertencimento e confiança na comunidade. Resumindo, um importante
componente da prosperidade é a habilidade de participar da vida da
sociedade com sentido.”31
(JACKSON, 2009, p. 7)
Esta concepção está relacionada à ideia de “capacidade para
florescimento” humano que Amartya Sen apresenta em sua reflexão sobre
desenvolvimento como liberdade (Sen, 2000). Impossível ignorarmos o fato de
que existe aí um paralelo com o conceito de habitar, de Heidegger (1954). Isto é,
quando Jackson fala em participação com sentido, existe aí terreno fértil para
entendermos aí a realização da Quadratura (céu, terra, deuses, mortais) proposta
por Heidegger, e a condição para o estar do ser humano no mundo.
Tim Jackson oferece então uma definição que pode ser tomada como
possível conceito de sustentabilidade:
“Uma prosperidade justa e duradoura não pode estar isolada das
condições materiais. Capacidades fazem fronteira por um lado com a
escala da população global e, por outro, com a ecologia finita do
planeta. Ignorar essas fronteiras naturais ao florescimento é
31
Livre tradução: “Prosperity has vital social and psychological dimensions. To do well is in part about the ability to give and receive love,
to enjoy the respect of your peers, to contribute useful work, and to have a sense of belonging and trust in the community. In short, an
important component of prosperity is the ability to participate meaningfully in the life of society.”
40
condenar nossos descendentes - e nossas criaturas companheiras – a
um planeta empobrecido.”32
(JACKSON, 2009, p. 7)
Assim, a prosperidade como norte da sustentabilidade implica um
entendimento das interdependências que caracterizam a relação entre a sociedade
e a natureza. É nesse contexto de delimitação por fronteiras sociais e ambientais
que se desenrolam as capacidades para florescimento do ser humano e que emerge
a liberdade do seu desenvolvimento (Sen, 2000). Por isso, Tim Jackson reforça a
ideia de capacidades delimitadas.
Na perspectiva do habitar atópico, é possível compreendermos o respeito a
essas fronteiras, a esses limites sociais e ambientais, como resultado do diálogo
homem-natureza-tecnologia no habitar atópico, onde as fronteiras entre actantes
humanos e não humanos são dissipadas, consolidando uma percepção de
inseparabilidade e interdependência condizente com o respeito aos limites sociais
e ambientais.
Tim Jackson faz uma reflexão ainda sobre a relação do ser humano com as
coisas como parte da ideia de prosperidade. Por um lado, a antropologia e estudos
sobre consumo mostram, diz Jackson, que o ser humano tem uma tendência a
incutir sentidos sociais e psicológicos em coisas materiais:
“Produtos de consumo representam uma linguagem simbólica pela
qual nos comunicamos continuamente uns com os outros, não apenas
sobre coisas em si, mas sobre o que é realmente importante para nós:
família, amizade, senso de pertencimento, comunidade, identidade,
status social, sentidos e propósitos na vida.”33
(JACKSON, 2009,
p.38)
Tim Jackson argumenta que a relação com as coisas é, portanto, parte da
conversação social – em outras palavras, da comunicação. E ressalva, a partir de
estudo da antropóloga Mary Douglas34
, que este não é um fenômeno
exclusivamente ocidental e moderno e que já foi reconhecido em diversas outras
sociedades. Tim Jackson afirma assim que as dimensões material e não-material
32
“A fair and lasting prosperity cannot be isolated from these material conditions. Capabilities are bounded on the one hand by the scale of
the global population and on the other by the finite ecology of the planet. To ignore these natural bounds to flourishing is to condemn our
descendants – and our fellow creatures – to an impoverished planet.” 33
“Consumer goods provide a symbolic language in which we communicate continually with each other, not just about raw stuff, but about
what really matters to us: family, friendship, sense of belonging, community, identity, social status, meaning and purpose in life.” 34
Douglas, M. 2006 (1976). Relative Poverty, Relative Communication, in Halsey, A. (ed), Traditions of Social Policy, Oxford: Basil
Blackwell; reprinted as Chapter 21 in Jackson 2006a.
41
da prosperidade estão interligadas “por meio da linguagem das coisas”. Aqui,
novamente, um paralelo possível com a reflexão de Heidegger (1954) que
argumenta que os mortais habitam junto às coisas e lugares.
Tal aproximação é sublinhada quando Jackson (2009) busca apoio em uma
noção da psicologia para reforçar a ligação do homem com as coisas:
“Um dos processos psicológicos vitais aqui é o que o pesquisador em
consumo Russ Belk chamou de cathexis: um processo de ligação que
nos leva a pensar (e até sentir) possessões materiais como parte de
um eu estendido.”35
(JACKSON, 2009, p. 64)
De outro lado, Tim Jackson mostra por meio de pesquisas e dados
estatísticos que a acumulação de renda e a acumulação material passam a gerar
pouca ou nenhuma satisfação adicional após determinado patamar. Portanto, o
crescimento contínuo não seria uma condição para a prosperidade. Também cita
estudos que mostram que um aumento na renda per capta não leva
automaticamente a melhoras em saúde, educação e expectativa de vida. Em outras
palavras, “(…) não há uma regra rígida e direta para a relação entre aumento da
renda e incremento do florescimento”.36
(JACKSON, 2009, p. 43)
Sobre esse contexto, Resende (2013) argumenta:
“Não há como melhorar a qualidade de vida de comunidades
excessivamente pobres sem aumentar sua renda, mas a partir de um
patamar mínimo, capaz de assegurar as necessidades básicas, o
aumento da renda não está necessariamente associado à melhora da
qualidade de vida. Mais renda nem sempre significa mais bem-estar.”
(RESENDE, 2013, p. 25)
O economista afirma que, pelo contrário, o estilo consumista, a partir de
certo nível, passa a contribuir para a redução do bem-estar. Desse ponto de vista,
ele aprofunda a discussão:
“O que então explicaria o aumento da qualidade de vida a partir do
patamar mínimo de renda que a grande maioria dos países já
atingiu? Qual o fator mais importante para a melhoria do bem-estar
nos países que já saíram da pobreza absoluta? Segundo he Spirit
evel, a resposta é uma só: a redução das desigualdades. A melhor
distribuição de renda é o fator determinante da melhora da qualidade
35
Livre tradução: “One of the vital psychological processes here is what consumer researcher Russ Belk called
cathexis: a process of attachment that leads us to think of (and even feel) material possessions as part of the ‘extended self’.” 36
Livre tradução: “ (…) there is no hard and fast rule here on the relationship between income growth and improved flourishing”
42
de vida, do bem-estar, da felicidade de um país.” (RESENDE, 2013,
p. 28)37
Fica claro, portanto, que o caminho apontado por Resende encontra
obstáculo na exacerbação do fenômeno humano de relação com as coisas, que
toma a forma de uma cultura consumista, como apontado anteriormente por
Jackson (2009) ao tratar da “gaiola do consumismo”, onde a economia depende
do crescimento do consumo para sua sobrevivência, levando indivíduos, empresas
e governos a abdicar de liberdades de atuação pelo ideal do maior consumo:
“Esse é um sistema ansioso e definitivamente patológico. Mas em
certo nível ele funciona. A incansável busca por novidades pode
minar o bem-estar. Mas o sistema continua economicamente viável
contanto que a liquidez seja preservada e o consumo cresça. Ele
colapsa quando um deles paralisa”38
(JACKSON, 2009, p. 65).
Assim, a “gaiola do consumismo” é vista por Jackson como um obstáculo
à liberdade e à sustentabilidade e mudanças em valores, estilos de vida e estrutura
social são necessárias para o estabelecimento de outra relação entre sociedade e
natureza. Na perspectiva do habitar junto às coisas proposta por Heidegger,
poderíamos pensar que a “gaiola do consumismo” vem a ser um obstáculo à
própria realização da Quadratura na relação junto às coisas.
Jackson traz alguns breves exemplos de iniciativas piloto criadas pela
sociedade civil como alternativas aos modelos vigentes e propõe também algumas
diretrizes para empresas e governos. Mas para o presente trabalho, basta termos
em mente a seguinte proposição:
“A limitada busca por crescimento representa uma distorção horrível
do bem comum e de valores humanos correlatos. Ela também debilita
o papel legítimo do governo. No fim do dia, o Estado é o dispositivo
de compromisso da sociedade, par excellence, e o principal agente
para a proteção da nossa prosperidade compartilhada. Uma nova
37
Resende faz referência ao estudo dos médicos infectologistas ingleses, Richard Wilkinson e Kate Pickett, no livro “The Spirit Level”,
publicado em 2010, em que ao pesquisarem motivos para a queda no nível de saúde da população em diferentes países, constatam que a
redução da desigualdade contribui mais para o bem-estar do que o crescimento da economia. E isso acontece numa perspectiva não de renda absoluta, mas de renda relativa, conforme esclarece Resende: “(...) Não é o fato de ser pobre que faz alguém infeliz, mas o fato de ser mais
pobre que seus pares. Há algo profundamente corrosivo na desigualdade. O crescimento econômico, nas sociedades onde existe grande
desigualdade, não aumenta o bem-estar ao contrário, substitui as doenças e as dificuldades da pobreza absoluta pelas doenças e as infelicidades da riqueza material. Nas sociedades desiguais, o crescimento transfere para os pobres as doenças anteriormente associadas
aos ricos, que se tornam muito mais frequentes nos pobres que nos ricos.” (RESENDE, 2013, p. 31). E como observa Resende, ambos
pobres e ricos são afetados e mais infelizes na desigualdade e mais felizes numa sociedade equânime. 38
Livre tradução: “It’s an anxious, and ultimately a pathological system. But at one level it works. The relentless pursuit of novelty may
undermine wellbeing. But the system remains economically viable as long as liquidity is preserved and consumption rises. It collapses when
either of these stalls.”
43
visão de governança que abrace esse papel é necessária com
urgência.”39
(JACKSON, 2009, p. 11)
O autor enxerga o Estado como tendo um papel central para uma
sociedade mais sustentável. Mas a nova sociabilidade reticular e colaborativa
associada ao habitar atópico aponta para caminhos que não passam
necessariamente por uma centralidade do Estado. Exemplos desses embriões
existem nos mais diferentes contextos: iniciativas de modificação do espaço
urbano nas grandes metrópoles a partir de ações colaborativas sem a presença do
governo40
; as populações indígenas que inauguram uma nova fase de valorização
de sua cultura pela conexão com as arquiteturas digitais reticulares (Pereira,
2007); as comunidades de permacultura baseadas na convivência e na produção
coletiva de alimentos e bens41
; a recomposição de florestas pela parceria entre
ONGs, doadores individuais e empresas apoiadoras42
; projetos para promover
inovação tecnológica na cadeia de valor de grandes empresas a partir da conexão
com pequenos negócios43
etc.
Por diferentes caminhos, essas iniciativas nos revelam possibilidades de
novas relações na sociedade e entre homem e natureza - todas elas permeadas pela
perspectiva reticular característica do habitar atópico -, que parecem traduzir o
sentido da sustentabilidade.
Em outras palavras, a sociabilidade reticular e colaborativa do habitar
atópico abre espaço para uma inédita integração de conhecimentos e saberes para
lidar com a perspectiva sistêmica necessária ao reconhecimento e respeito dos
limites da natureza e da sociedade, numa dinâmica não de centralidades, mas de
diálogo e construção conjunta de alternativas. A tecnologia vem inserida nesse
caminho como actante que conecta e potencializa os diálogos em rede; que
favorece a transparência e o controle social de processos decisórios, de aplicação 39 Livre tradução: “ he narrow pursuit of growth represents a horrible distortion of the common good and of underlying human values. It
also undermines the legitimate role of government itself. At the end of the day, the state is society’s commitment device, par excellence, and the principal agent in protecting our shared prosperity. A new vision of governance that embraces this role is urgently needed.” 40
Referência nesse tipo de iniciativa é o movimento Transition Towns, que acontece em diversos países, entre eles o Brasil. Disponível em:
http://transitionbrasil.ning.com/. Acessado em 20 ago. 2013. 41
Lista de links com experiências e informações de grupos de pessoas e organizações que desenvolvem a Permacultura no Brasil disponível
em: http://www.permacultura.org.br/. Acessado em 20 ago.2013. 42
Uma referência desse tipo de iniciativa no Brasil é da organização não-governamental SOS Mata Atlântica. Disponível em:
http://www.sosmatatlantica.org.br. Acessado em 20 ago. 2013. 43
Como exemplo, o projeto Inovação para Sustentabilidade na Cadeia de Valor, promovido pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade
(GVces) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP). Disponível em:
http://www.fgv.br/ces/inova. Acessado em 20 ago. 2013.
44
de recursos e de produção de resultados; bem como ampliando a voz dos actantes
humanos – principalmente dos que são comumente alijados da construção dos
rumos da sociedade – e dos actantes não-humanos, notadamente a natureza, que,
como veremos a seguir, tem sua visibilidade ampliada e presentifica-se em vídeos,
mapas, sons, dados. Tudo isso colaborando para outros modos de perceber e para
a emersão de novos sentidos para o habitar.
45
4. Corpo e entrelaçamento no mundo contemporâneo
“Na era contemporânea, não se parte nem se retorna.
O mar é em qualquer lugar. Dentro e fora de nós. Nós
somos mar.” (DI FELICE, 2009, p. 24)
Damos início agora a uma reflexão sobre como o corpo constitui e ajuda a
compreender a relação homem-natureza-tecnologia na complexidade reticular do
habitar atópico. Evidenciar aí o corpo é um misto de exercício poético, de convite
ao olhar de dentro e de caminhar pela ponte que conecta diferentes aspectos dessa
forma contemporânea de habitar.
Isso porque o corpo, como veremos a seguir, desempenha papel
fundamental na percepção e na expressão da sociabilidade reticular que é
reveladora do habitar atópico, além de aparecer cada vez mais constituído - em si
ou por meio de extensões - numa forma híbrida entre o orgânico e o tecnológico e
relacionar-se com a natureza também virtualmente.
4.1. Sensorialidade e percepção
Um convite velado para pensarmos sobre a corporeidade nas
transformações advindas das revoluções tecnológicas comunicativas pode ser
identificado em Di Felice (2009), a partir de uma citação indireta que faz de
McLuhan44
sobre as mudanças na sociabilidade:
“O seu ponto de partida está na constatação de que a introdução de
um novo médium em uma cultura muda o ‘equilíbrio sensorial’ e,
consequentemente, as formas e as práticas das interações.” (DI
FELICE, 2009, p. 161)
Essa reflexão de McLuhan (1964) é notória quando comenta a mudança de
sensorialidade na passagem das culturas orais para as culturas da escrita:
44
MCLUHAN, M. Gli instrumenti del comunicare. Milão: Il Saggiatore, 1967.
46
“(...) ao falar, tendemos a reagir a cada situação, seguindo o tom e o
gesto até de nosso próprio ato de falar. Já o escrever tende a ser uma
espécie de ação separada e especializada, sem muita oportunidade e
apelo para a reação. O homem ou a sociedade letrada desenvolve
uma enorme força de atenção em qualquer coisa, com um
considerável distanciamento em relação ao envolvimento sentimental
e emocional experimentado por um homem ou uma sociedade não-
letrada.” (MCLUHAN, 1964, p. 97)
Ele amplia essa reflexão ao associar um caráter visual à sensorialidade da
cultura escrita e um caráter auditivo á sensorialidade da cultura oral:
“A civilização se baseia na alfabetização porque esta é um
processamento uniforme de uma cultura pelo sentido da visão,
projetado no espaço e no tempo pelo alfabeto. Nas culturas tribais, a
experiência se organiza segundo o sentido vital auditivo, que reprime
os valores visuais. A audição, a diferença do olhar frio e neutro, é
hiperestética, sutil e todo-inclusiva. As culturas orais agem e reagem
ao mesmo tempo. A cultura fonética fornece aos homens os meios de
reprimir sentimentos e emoções quando envolvidos na ação. Agir sem
reagir e sem se envolver é uma das vantagens peculiares ao homem
ocidental letrado.” (MCLUHAN, 1964, p. 105)
Portanto, quando McLuhan fala na mudança de sensorialidade ou na
“alteração dos hábitos de percepção sensível” (MCLUHAN, 1964, p. 34) está
indicando que o corpo possui um papel importante = não único - nas formas e
práticas de interação com o mundo, as quais são modificadas conforme novas
tecnologias são desenvolvidas.
Mais adiante dedicaremos foco maior a esse tipo de situação no habitar
atópico, mas, para o momento, voltemos nossa atenção para dois argumentos que
guardam uma relação estreita entre si, e são especialmente relevantes para
compreender o papel do corpo na relação entre homem, natureza e tecnologia: a
questão da percepção e o habitar do mundo.
Benjamin (1966), McLuhan (1964), Serres (2004) e Di Felice (2009)
associam às mudanças de culturas comunicativas o surgimento de diferentes
modos de percepção, que reverberam em novas formas de sociabilidade. Cabe,
portanto, visitarmos algumas reflexões sobre como a dimensão perceptiva do
corpo se realiza, conforme indicam conceitos de diferentes autores. A intenção
não é equiparar seus argumentos, mas ressaltar, em concepções diversas, como o
corpo é em si a dimensão perceptiva que possibilita o relacionar-se com o mundo.
47
Destaca-se primeiramente Bergson (1948), que reflete sobre a relação
entre o corpo e as coisas condicionando a interação do ser humano com o
ambiente:
“Pois se nosso corpo é a matéria à qual nossa consciência se
aplica, ele é coextensivo à nossa consciência, ele compreende
tudo que percebemos, ele vai até as estrelas.”45
(BERGSON,
1948, p. 138)
Bergson define essa relação como nosso “corpo imenso”, e lhe confere um
caráter de mão dupla, concepção que melhor compreendemos com a leitura de
Cardim (2009):
“As coisas têm uma ação à distância sobre nosso corpo, mas
também nosso corpo exerce uma ação à distância sobre as
coisas, isto é a percepção.” (CARDIM, 2009, p. 65)
O corpo imenso, nos diz Bergson, muda a todo instante por estar em
conjunção com o que chama de “corpo mínimo”:
“Esse corpo interior é central, relativamente invariável, é sempre
presente. Ele não é apenas presente, ele é agente: é por ele, e por ele
somente, que nós podemos mover outras partes do grande corpo. E
como a ação é o que conta, como se entende que nós somos onde
agimos, há o costume de aprisionar a consciência no corpo mínimo,
de negligenciar o corpo imenso.”46
(BERGSON, 1948, p. 138)
Embora não aborde a questão das interações com as tecnologias – que
também nos permitem mover “outras partes do grande corpo” -, Bergson faz
importante alerta sobre como um entendimento restrito da corporeidade está
respaldado na perspectiva da ciência cartesiana, que centra na mente a relação do
corpo com o mundo, como vemos na continuação da reflexão exposta acima:
“Isso parece, de outro lado, autorizado pela ciência, a qual mantém a
percepção externa por um epifenômeno de processos intracerebrais
que a ela correspondem: tudo que é percebido sobre o corpo maior
será então apenas um fantasma projetado para fora pelo menor. (...)
45 Livre tradução: “Car si notre corps est la matière à laquelle notre conscience s'applique, il est coextensif à notre conscience, il comprend
tout ce que nous percevons, il va jusqu'aux étoiles.”
46
Livre tradução: “Ce corps intérieur et central, relativement invariable, est toujours présent. Il n'est pas seulement présent, il est agissant :
c'est par lui, et par lui seulement, que nous pouvons mouvoir d'autres parties du grand corps. Et comme l'action est ce qui compte, comme il
est entendu que nous sommes là où nous agissons, on a coutume d'enfermer la conscience dans le corps minime, de négliger le corps
immense.”
48
Mas a verdade é outra, e nós somos realmente, embora por partes de
nós mesmos que variam sem cessar e onde residem apenas as ações
virtuais, dentro de tudo o que percebemos.”47
(BERGSON, 1948, p.
138)
Bergson propõe assim uma comunhão entre matéria, corpo e ambiente, por
meio da percepção. O sentido dessa ideia será abordado por outros autores e será
bastante relevante para pensarmos o corpo no habitar atópico.
Outro autor de referência na reflexão sobre corpo, percepção e a relação
com o mundo é Husserl. Ele fala em um corpo sujeito, que coexiste com um corpo
objeto (matéria) e, como nos ajuda a compreender Cardim (2009), é responsável
por desempenhar um acesso a todos os objetos por meio dos sentidos e da emoção
– uma extereocepção - e pela consciência encarnada, que é decorrência do corpo
que é envolvido pelo mundo circundante e que se encarna no interior desse mundo
para, a partir daí, as coisas se tornarem coisas para ele.
“Dizer, em minha existência natural, “Eu sou, Eu penso, Eu vivo”
significa que sou um ser humano entre outros no mundo, que eu tenho
uma relação com a natureza através do meu corpo físico, e que nesse
corpo meus cogitatos, percepções, memórias, julgamentos etc. são
incorporados como fatos psicofísicos.”48
(HUSSERL, 1998, p. 9-10)
A extereocepção e a consciência encarnada atuam conjuntamente com a
propriocepção49
e resultam no potencial perceptivo do corpo, que é ao mesmo
tempo sensível e senciente50
, como observa Cardim sobre a reflexão de Husserl:
“Compreendido em sua forma espaço-temporal orgânica e em sua
relação interna com o viver, o corpo torna-se o lugar da inscrição do
sensível.” (CARDIM, 2009, p. 57)
47
Livre tradução: ”On y paraît d'ailleurs autorisé par la science, laquelle tient la perception extérieure pour un épiphénomène des processus
intra-cérébraux qui y correspondent : tout ce qui est perçu du plus grand corps ne serait donc qu'un fantôme projeté au dehors par le plus
petit. (...) Mais la vérité est tout autre, et nous sommes réellement, quoique par des parties de nous-mêmes qui varient sans cesse et où ne siègent que des actions virtuelles, dans tout ce que nous percevons.” 48
Livre tradução: “ o say, in my natural existence, “I am, I think, I live,” means that I am one human being among others in the world, that
I am related to nature through my physical body, and that in this body my cogittationes, perceptions, memories, judgments, etc. are incorporated as psycho-physical facts.” 49
Termo que exprime a capacidade que temos de reconhecer internamente (sem uso da visão ou do tato) a posição, orientação e localização
espacial do corpo, seu tônus muscular e a posição de cada “parte” do corpo em relação às demais. Bem como a pulsação, a respiração, a temperatura, entre outras características. 50
A expressão indica que o corpo tem a capacidade de sentir, de ser afetado pelo mundo por meio dos sentidos, e que se reconhece nesse ato,
percebe-se sentindo.
49
Husserl, assim como Heidegger e Sartre, foi referência importante para
Merleau-Ponty, que dedicou grande parte dos seus estudos à questão da percepção
e desenvolveu conceitos divididos em duas fases de seu pensamento. A primeira,
bastante conhecida pela obra “Fenomenologia da percepção” (Merleau-Ponty,
1971), em que recusa - como nos ajuda a esclarecer Cardim (2009) - a distinção
tradicional da filosofia entre sujeito como coisa (em si) ou como consciência (para
si). Para Merleau-Ponty, nessa fase, o homem é sujeito e objeto, ao mesmo tempo,
e o corpo está no mundo em duas camadas justapostas, a do corpo objeto e a do
corpo habitual (fenomenal). É daí que Merleau-Ponty propõe o corpo como
mediador da percepção:
“(...) a experiência da percepção nos põe em presença do momento
em que se constituem para nós as coisas, as verdades, os bens; que a
percepção nos dá um logos em estado nascente, que ela nos ensina,
fora de todo dogmatismo, as verdadeiras condições da própria
objetividade; que ela nos conclama as tarefas do conhecimento e da
ação. Não se trata de reduzir o saber humano ao sentir, mas de
assistir ao nascimento desse saber, de nos torná-lo tão sensível
quanto o sensível, de reconquistar a consciência da racionalidade
(...)” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 67)
Para o autor, o corpo é o lugar da percepção, mas não como unidade
isolada e, sim, como dimensão perceptiva que se associa ao que é percebido:
“Eu organizo com meu corpo uma compreensão do mundo, e a
relação com o meu corpo não é a de um Eu puro, que teria
sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas habito
o meu corpo e por ele habito as coisas.” (MERLEAU-PONTY,
1971, p. 106)
Aqui, o autor traz a ideia de habitar, que, como veremos adiante, sofrerá
um ajuste na segunda fase de seu pensamento. Tendo como principal referência a
obra inacabada “O visível e o invisível” - que nos interessa especialmente para o
presente estudo -, a segunda fase do pensamento de Merleau-Ponty traz a
substituição da ideia de corpo em camadas por um corpo que é simultaneamente
sensível e senciente.
Apesar de ser, à primeira vista, uma concepção similar à de Husserl,
Merleau-Ponty se distancia das noções que o filósofo alemão preserva do Ego, da
consciência e da subjetividade na relação do corpo com o mundo. Merleau-Ponty
50
afirma que sua concepção se aproxima mais da reflexão de Sartre sobre a
subjetividade:
“O único modo de assegurar meu acesso às coisas mesmas seria
purificar minha noção de subjetividade completamente: não há nem
mesmo qualquer “subjetividade” ou “Ego” a consciência não tem
“habitante”, eu devo desembaraça-la completamente da apercepção
secundária que faz dela o reverso de um corpo, a propriedade de um
“psiquismo”, e devo descobri-la como o “nada”, o “vazio”, que tem
a capacidade de receber a plenitude do mundo, ou melhor, que
precisa dele para lidar com seu próprio vazio.”51
(MERLEAU-
PONTY, 1968, p. 52)
Esse “nada” permeável ou ávido pelo mundo é o lugar da percepção, que
acontece pelo “entrelaçamento” entre a “carne” do corpo e a “carne” do mundo.
Merleau-Ponty explica que não existe definição na filosofia para o que chama de
carne, e por isso remete-se a ela como elemento (ar, água, fogo, terra). Mas
esclarece que se refere a uma “gravidez dos possíveis”, à dimensão do “sensível e
senciente” no corpo vivo e apenas do “sensível” quando se trata da carne do
mundo – já que esta não é senciente:
“É em termos de seu significado intrínseco que o mundo sensível é
“mais velho” que o universo do pensamento, porque o mundo sensível
é visível e relativamente contínuo, e porque o universo do
pensamento, que é invisível e contém lacunas, constitui à primeira
vista um todo e tem sua verdade apenas sob a condição que esteja
apoiado na estrutura canônica do mundo sensível.”52
(MERLEAU-
PONTY, 1968, p. 12)
O invisível não está, portanto, escondido e sim em estado latente,
vinculado ao entrelaçamento entre a carne do corpo e a carne do mundo:
“(…) uma vez que uma relação corpo-mundo é reconhecida, existe
uma ramificação do meu corpo e uma ramificação do mundo e uma
correspondência entre seu interior e meu exterior, entre meu interior
e seu exterior.”53
(MERLEAU-PONTY, 1968, p. 136)
51
Livre tradução: “The only way to ensure my access to the things themselves would be to purify my notion of the subjectivity completely:
there is not even any "subjectivity" or "Ego"; the consciousness is without "inhabitant," I must extricate it completely from the secondary
apperceptions that make of it the reverse of a body, the property of a "psychism," and I must discover it as the "nothing," the "void," which
has the capacity for receiving the plenitude of the world, or rather which needs it to bear its own emptiness.” 52
Livre tradução para o trecho a seguir: “It is in terms of its intrinsic meaning and structure that the sensible world is "older" than the
universe of thought, because the sensible world is visible and relatively continuous, and because the universe of thought, which is invisible
and contains gaps, constitutes at first sight a whole and has its truth only on condition that it be supported on the canonical structures of the
sensible world.” 53
Livre tradução para o trecho a seguir: “One can say that we perceive the things themselves, that we are the world that thinks itself—or that
the world is at the heart of our flesh. In any case, once a body-world relationship is recognized, there is a ramification of my body and a
ramification of the world and a correspondence between its inside and my outside, between my inside and its outside.”
51
É desse entrelaçamento entre o corpo e o mundo que acontece o que
Merlea-Ponty denomina quiasma, conforme esclarece Silva:
“(...) não há aí limite algum demarcável, pois o corpo e o mundo se
engendram reciprocamente num só circuito, numa só experiência
comum. Há, entre eles, um quiasma ou um regime de promiscuidade.”
(SILVA, 2009, p. 173)
4.2 Entrelaçamento e o habitar
Merleau-Ponty fundamenta no entrelaçamento, no quiasma, o caminho
para o habitar as coisas, o habitar o mundo - ideia que nos remete ao conceito de
Heidegger54
, pelo qual o habitar acontece por meio da Quadratura (céu, terra,
deuses, mortais) e se dá, também, junto às coisas.
Como vimos anteriormente, este conceito heideggeriano, que indica uma
relação ontológica de intimidade com o mundo, é base para a proposição do
habitar atópico enunciada por Di Felice (2009). Merleau-Ponty (1968) também se
refere por diversas vezes ao conceito de Ser em Heidegger, quando reflete sobre o
habitar. Essa aproximação da ideia de habitar em Heidegger e do habitar em
Merleau-Ponty é especialmente relevante para o presente estudo, uma vez que
Merleau-Ponty localiza o corpo como dimensão perceptiva fundamental para que
esse habitar se realize. E assim, nos abre um caminho para o entendimento da
corporeidade no habitar atópico.
É interessante notar como essa perspectiva não está ausente da obra de Di
Felice:
“A impossibilidade de perfeita distinção dos limites que separam os
nossos corpos do mundo e daqueles outros entrepostos entre os
instrumentos técnicos e a nossa percepção, induz, em nossos dias a
necessidade de repensar os significados e as formas das relações
comunicativas com o ambiente, a partir das tecnologias utilizadas
para comunicar com ele. O próprio conceito de mídias, analisado
nesta perspectiva, pode ser pensado, no caminho dos estudos
propostos por D. De Kerckhove [2009], como uma psicotecnologia,
ou seja, como uma tecnologia de inteligência, que interpreta e
54
Cf. Capítulo 3
52
organiza as informações em simbiose com a nossa estrutura mental
(...)” (DI FELICE, 2009, p. 63-64)
A expressão “simbiose transorgânica”, utilizada por Di Felice (2009), nos
ajuda a compreender o corpo no habitar atópico, e remete tanto às interações entre
homem, natureza e tecnologia - que se mostram imbricadas em rede – como ao
sentido da constituição híbrida do corpo, como veremos adiante.
A simbiose entre corpo e tecnologia indica que há um quiasma entre o
corpo e as arquiteturas informativas reticulares e seus fluxos e dinâmicas
comunicativas, que, segundo a ideia de que “o meio é a mensagem” (McLuhan,
1964), condicionarão os modos de perceber, de interpretar e de dialogar,
fortalecendo a sociabilidade reticular dessa forma contemporânea do habitar.
Di Felice chama atenção para a simbiose cérebro-tecnologia. Mas é
importante observarmos que mesmo quando falamos em cognição, o corpo todo
tem participação na produção de pensamentos e ações. É o que nos ajuda a
entender Damasio (1994):
“Não é costume fazer referência aos organismos quando falamos de
cérebro e mente. Tem sido tão óbvio que a mente evolve da atividade
dos neurônios, que apenas os neurônios são discutidos como se seu
funcionamento pudesse ser independente do resto do organismo. Mas
conforme eu investiguei problemas de memória, linguagem e razão
em diversos seres humanos com danos cerebrais, a ideia que
atividades mentais, dos aspectos mais simples aos mais sublimes,
demandam que o cérebro e o corpo estejam adequados, tornou-se
especialmente contundente. (...) A alma respira pelo corpo, e
sofrimento, tenha início na pele ou numa imagem mental, acontece na
carne.”55
(DAMASIO, 1994, p. 17)
Para compreender como a percepção e a realização cotidiana das
interações entre homem, natureza e tecnologia passam pelo corpo, temos
novamente a referência do habitar que acontece pelo quiasma entre o corpo e o
mundo. Isto vale dizer que o caráter de dimensão perceptiva do corpo funde-se à
rede de actantes humanos e não humanos (Latour, 2008). Em outras palavras, as
funções e sentidos corporais que constroem a percepção se estendem por
55
Livre tradução: “It is not customary to refer to organisms when we talk about brain and mind. It has been so obvious that mind arises
from the activity of neurons that only neurons are discussed as if their operation could be independent from that of the rest of the organism. But as I investigated disorders of memory, language, and reason in numerous human beings with brain damage, the idea that mental activity,
from its simplest aspects to its most sublime, requires both brain and body proper became especially compelling. (…) he soul breathes
through the body, and suffering, whether it starts in the skin or in a mental image, happens in the flesh.”
53
dispositivos, por fluxos comunicativos, pela digitalização da natureza, do outro e
de si mesmo.
Cabe lembrar aqui a referência que Di Felice (2009) faz ao conceito de
Psicastenia, de Olalquiaga (1998)56
:
“ o indivíduo passa a se confundir com o espaço, sem delimitar ao
certo o que é seu corpo e o ambiente, nele se camuflando.” (DI
FELICE, 2009, p. 161)
Para Di Felice, este é o fenômeno observado no habitar atópico, quando
“(...) os habitantes habitam nas jazidas informáticas e nos interstícios das
interações” (DI FELICE, 2009, p. 256)57
. Mas também um lembrete de que o
habitar atópico acontece primordialmente pelas interações reticulares - que podem
ou não estar diretamente associadas a dispositivos tecnológicos – mas que estão
ligadas a uma sociabilidade em rede, uma rede que hibridiza o que é presencial e o
que é virtual.
Ainda assim, no momento de configuração do habitar atópico em que nos
encontramos, cabe ressaltar que a sociabilidade reticular que o caracteriza – e que
reverbera nos modos de percepção e interação do corpo - é algo em processo de
estabelecimento e parece se revelar de modos variados. Isso é de se esperar
quando entendemos estar num período de transição entre as formas do habitar
exotópico e atópico e que mesmo que uma passe a se configurar mais fortemente,
não significa extirpar a outra - ou mesmo o habitar empático, que continua a
mostrar indícios na complexa sociabilidade humana. Uma imagem que ilustra essa
noção é a da coexistência de mídias de épocas diversas no mundo contemporâneo
(os livros, o cinema, o rádio, os discos de vinil, a televisão, o computador, os
dispositivos móveis etc.).
Para avançar a compreensão a respeito do corpo na configuração do
habitar atópico, vale uma reflexão a partir da visão de Michel Serres (2004) sobre
o papel fundamental do corpo para o estar no mundo:
“A origem do conhecimento, e não somente a do conhecimento
intersubjetivo, mas também do objetivo, reside no corpo. Não se pode
56
Olalquiaga, C. Megalópolis: sensibilidades culturais contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 1998. 57
Di Felice traz essa reflexão a partir de um desdobramento da ideia de Deleuze e Guatarri (1997) sobre o artesão que mora na matéria que
trabalha.
54
conhecer qualquer pessoa ou coisa antes que o corpo adquira a
forma, a aparência, o movimento, o habitus, antes que ele com sua
fisionomia entre em ação. É dessa forma que o esquema corporal é
adquirido, exposto, aprimorado, refinado e armazenado em uma
memória viva e esquecidiça. Receber, emitir, conservar, transmitir:
estes são, todos, atos especializados do corpo. ” (SERRES, 2004, p.
68-69)
Serres não especifica sua concepção de habitus, mas cabe trazer aqui a
proposição de Bourdieu (1996, p. 14=22), que remete a estruturas incorporadas
que revelam práticas entre seres humanos que são ao mesmo tempo distintas e
distintivas no que diz respeito aos gostos, comportamento, interpretações,
percepções, opiniões e que podem condicionar escolhas pessoais, práticas e estilos
de vida.
Ao destacar a importância do corpo para o estar no mundo, Serres
menciona mudanças que acontecem no corpo com a introdução de novas
tecnologias, usando como exemplo as mídias da palavra escrita:
”Os novos suportes de memorização e de transporte de signos, como
as tábuas de cera, o pergaminho ou a imprensa, fizeram com que
esquecêssemos a prioridade do corpo nessas funções; as culturas sem
escrita ainda os conhecem.” (SERRES, 2004, p. 68-69)
Se as mídias da palavra escrita tiveram tal efeito sobre o corpo, cuja
presença no mundo e percepção foram modificadas pela relação com essas
tecnologias, é de se esperar que da relação com o digital também emerjam novas
formas de perceber e relacionar-se. Daremos atenção a isso mais adiante. Mas
pelo momento vamos nos ater à questão da “prioridade do corpo” levantada por
Serres – ou seja, dos modos próprios do corpo orgânico se relacionar com o
mundo.
Ao argumentar que o intercâmbio de informação das culturas escritas
exige pouco da “prioridade do corpo”, Michel Serres nos faz lembrar da mudança
de equilíbrio sensorial nas formas e práticas de interação decorrente da introdução
de novas mídias. Quando McLuhan (1964) traz esse seu argumento para o
contexto de mudança da cultura oral para a cultura escrita, ele ressalta que o
hábtio de percepção sensível que é alterado nessa passagem diz respeito à
hiperestesia – a enorme interação entre os sentidos – típica das populações da
55
tradição oral. Nos indica, portanto, que o grau de estímulo e interações entre os
sentidos do corpo gera uma mudança perceptiva estrondosa.
Podemos entender essa dinâmica ao refletir que os fluxos comunicativos
eram primordialmente de caráter oral e a palavra era acessada a partir da fala - que
reverbera em frequência, ritmo e melodia internamente nos ouvidos, ossos, carne,
mucosas de quem fala e de quem ouve, criando uma relação de intimidade com a
palavra pela experiência do corpo e pelo contato direto entre os interlocutores. Já
na forma escrita e lida num suporte à frente, externo ao corpo, a relação é de
afastamento, Na perspectiva de meio que influencia a sociabilidade, destacamos a
observação de Marchesi (2012) sobre o impacto da escrita:
“cria uma relação de indiferença e exterioridade entre o observador e
o mundo que o cerca. (...) A visualidade da palavra escrita,
principalmente aquela reproduzida mecanicamente pela tipografia,
põe o mundo à frente do sujeito, e este, por sua vez, do lado de fora
do mundo.” (MARCHESI, 2012, p. 44)
O corpo passa a habitar o mundo tanto por essa relação de afastamento,
como condicionado pela lógica linear da palavra escrita. Tal forma de habitar gera
um outro tipo de quiasma entre corpo e mundo, o que pode ser apreendido, por
exemplo, no ambiente que se busca dominar pela construção das cidades
estruturadas pela lógica dos livros divididos em parágrafos, páginas e capítulos.
Em relação à corporeidade, temos o exemplo dos corpos vigiados, punidos,
disciplinados, normalizados tanto por técnicas de enquadramento do
comportamento, como pela própria arquitetura dos espaços, a exemplo do que
observa Foucault (2004) em relação às escolas, hospitais, prisões, fábricas.
No contexto do presente estudo, localizamos as provocações de Foucault
no argumento de Heidegger de que construir é também uma forma de habitar -
nesse caso, a forma do habitar empático definida por Di Felice (2009)58
. A
recursividade de que fala Morin (1994) nos alerta que se uma tecnologia redefine
modos de relação do corpo no mundo, é possível que eles não tenham um marco
zero no surgimento da tecnologia, mas mudanças de percepção e interação já em
curso foram criadoras da nova tecnologia. Portanto, um processo influencia o
outro, sem que haja uma raiz definida.
58
Cf. Capítulo 2.
56
Assim, se o surgimento da escrita traz uma mediação com o mundo que
afasta o corpo orgânico, devemos ponderar que ele próprio esteve envolvido em
sua concepção.
A questão, portanto, não seria identificar – a partir das mudanças de
culturas comunicativas e de formas de habitar - onde há perda da “prioridade do
corpo”, mas como os modos do corpo se relacionar com o mundo são alterados e
se mantêm participantes do desenvolvimento e da interação com as tecnologias,
ao mesmo tempo em que essas abrem espaço para que outras “prioridades do
corpo” emerjam.
É o caso, por exemplo, do surgimento das mídias da eletricidade, que,
segundo McLuhan, trazem em certo grau uma volta à sinestesia, à interação entre
os sentidos do corpo que havia na cultura oral. Essas mídias estimulam mais
amplamente os sentidos do corpo do que o fazia a escrita. É nesse sentido, que o
autor fala em uma “sensibilidade áudio-tátil” – em que a audição é mais próxima
daquela da oralidade e onde o tato é entendido por McLuhan como uma conexão
do corpo com o mundo – e não simplesmente o sentido específico do tato: “(...) a
tatilidade é a inter-relação dos sentidos, mais do que o contato isolado da pele e
do objeto.” (MCLUHAN, 1964, p. 352)
Temos aí, um paralelo interessante entre a perspectiva da sinestesia do
tato, de McLuhan, com a ideia de carne do corpo que se entrelaça com o mundo,
na concepção de Merleau-Ponty.
4.3 O corpo no habitar atópico
Essa breve revisitação de alguns dos aspectos da corporeidade nas formas
do habitar empático e do exotópico torna mais fácil a tarefa de vislumbrar a
trajetória que o corpo está a percorrer no habitar atópico. Nele, o relacionar-se
com o mundo pela experiência corporal passa pela relação de integração com as
extensões tecnológicas digitais e com as potencialidades aparentemente infinitas
das funções, do alcance, do poder de sistematizar informações e de estabelecer
conexões, próprias dos dispositivos digitais.
57
Os desdobramentos daí decorrentes ainda são imprevisíveis. Por exemplo,
não existe consenso entre estudiosos de áreas como psicologia, neurologia e
pedagogia sobre os impactos da relação com as tecnologias para o corpo e sua
capacidade cognitiva59
.
Mas algumas emanações corporais da nossa relação com as tecnologias
digitais reticulares nos permitem constatar que está em formação uma
corporeidade diferente. Relatos médicos sobre pessoas conectadas às novas
tecnologias trazem constatações como: diminuição de concentração e memória,
aumento da capacidade para realização de multitarefas 60
, maior propensão a
lesões na coluna cervical (pelo uso excessivo de computadores, tablets e
smartphones)61
, ampliação do potencial comunicativo (pelo alcance da fala, da
escuta, da visão, das informações escritas e de interação entre os seres humanos)
(ZYWIKA; DANOWSKI, 2008), aumento de transtornos de ansiedade62
, dentre
diversas outras constatações.
Se ainda é cedo para determinar a consolidação de efeitos corporais e se o
desdobramento de fatores tão variados ainda é nebuloso, podemos nos remeter ao
próprio corpo que habita o mundo reticular - virtual e presencial - para vislumbrar
que essas novas condições são experienciadas por meio da sociabilidade em rede.
Em outras palavras, qualquer das possíveis situações mencionadas anteriormente é
facilmente assimilada pela rede, que passa a dialogar a respeito, a trocar
informações, a conectar referências que ajudam a construir caminhos para lidar
com os desafios e as oportunidades identificadas. O que parecia ser uma questão
restrita ao corpo orgânico, passa a ser tratada pela inteligência coletiva propiciada
pela rede (híbrida entre virtual e presencial) e, assim, torna-se repertório potencial
do corpo em sua dimensão transorgânica.
Ainda assim, cabe uma ressalva que nos remete aos modos próprios do
corpo orgânico, conforme indicação de Serres (2004) acima. Quando, por
59
Conforme evidencia a reportagem “A internet faz mal ao cérebro?”, publicada no website da Revista Época em 20 out 2011. Disponível
em: http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/10/internet-faz-mal-ao-cerebro.html. Acessado em 20 ago. 2013. 60
Cf. Artigo “A evolução da memória”, publicado em One Health Mag em 25 jul. 2013. Disponível em:
www.onehealthmag.com.br/index.php/a-evolucao-da-memoria/. Acessado em 21 ag0. 2013. 61 Cf. Artigo “Uso abusivo de smartphones e computadores causam lesões graves nos membros superiores”, do serviço Em Dia com a Saúde,
a Sociedade Beneficiente Israelita Brasileira – Albert Einstein. Disponível em: http://www.einstein.br/einstein-saude/em-dia-com-a-
saude/Paginas/uso-abusivo-de-smartphones-e-computadores-causam-lesoes-graves-nos-membros-superiores.aspx. Acessado em 21 ago. 2013. 62
Cf. Artigo “Smartphone: atractive but dangerous”, publicado pelo jornal Bangguk Post, de 26 jul. 2013. Disponível em:
www.dgupost.com/news/articleView.html?idxno=1269. Acessado em 21 ago. 2013.
58
exemplo, identificamos uma lesão na coluna cervical causada pela cabeça que se
mantém baixa diante de um smartphone, temos aí a corporificação da mensagem
de que o engajamento com um dispositivo tecnológico pode exceder os limites do
corpo orgânico. Isso nos lembra que permanecemos sendo um corpo com
demandas e sensibilidades biológicas e psicofísicas em seu sentido mais amplo.
Ou seja, permanece latente a voz da “prioridade do corpo” indicada por Serres
(2004) – em algum momento ela se faz ouvir, não para bradar uma ruptura com a
tecnologia, mas para orientar um cuidado de si63
, agregar um saber corporal à
relação com a tecnologia, com o habitar, e reforçar a sabedoria do corpo à qual se
refere Nietzsche: “Existe mais sagacidade em teu corpo que em tua melhor
sabedoria.”64
(NIETZSCHE, 1997, p. 40)
Essa expressão do saber humano que tem no corpo sua fonte é reforçada
pela reflexão de Damasio (1994):
“(...) o corpo, como representado no cérebro, pode constituir a
moldura indispensável de referência aos processos neurais que
experienciamos como a mente, que nosso próprio organismo, mais do
que alguma realidade absoluta externa, é usada como referência
fundamental para as construções que fazemos do mundo a nossa volta
e para a construção do sempre presente senso de subjetividade que é
parte e agrupamento das nossas experiências; que nossos mais
refinados pensamentos e ações, nossas maiores alegrias e mais
profundas tristezas, usam o corpo como medida.”65
(DAMASIO,
1994, p. XVI)
Damasio nos lembra ainda que esse papel do corpo na experiência humana
é algo que a engrandece nas mais diferentes relações – e aqui podemos pensar
mesmo a interação homem-natureza-tecnologia:
“Descobrir que um sentimento particular depende da atividade em um
número de sistemas cerebrais interagindo com um número de órgãos
do corpo não diminui o status daquele sentimento como um fenômeno
humano. Nem a angústia nem o envolvimento que o amor ou a arte
podem suscitar são desvalorizados pelo entendimento da miríade de
processos biológicos que fazem deles o que são. Precisamente o
63
O termo é proposto aqui a partir do estudo de Foucault (1985), que aponta para uma atenção e uma dedicação a atividades que podem
envolver a meditação, a busca por conhecimento, os exercícios físicos, a alimentação, mas aqui a perspectiva não é a do corpo como doente ou como réu - que deve ser constantemente tratado ou julgado - mas no sentido de aceitação da condição humana e de cultivar o saber do
corpo proposto por Nietzsche – o corpo como revelador de si próprio e do mundo, a dimensão perceptiva que realiza o habitar 64
Livre tradução: ”There is more sagacity in thy body than in thy best wisdom.” 65 Livre tradução: “(…) the body, as represented in the brain, may constitute the indispensable frame of reference for the neural processes
that we experience as the mind; that our very organism rather than some absolute external reality is used as the ground reference for the
constructions we make of the world around us and for the construction of the ever-present sense of subjectivity that is part and parcel of our
experiences; that our most refined thoughts and best actions, our greatest joys and deepest sorrows, use the body as a yardstick.”
59
oposto deveria ser verdadeiro: Nosso senso de admiração deveria
aumentar ante os intricados mecanismos que tornam possível tal
mágica. Sentimentos formam a base do que os humanos descreveram
por milênios como a alma humana ou espírito.”66
(DAMASIO, 1994,
p. XVI)
Mas retornemos à ideia de que, no habitar atópico, há a possibilidade da
inteligência coletiva ser indutora de uma conexão com o saber corporal. Isso traz
uma situação onde o saber para orientar uma atenção do corpo não vem
necessariamente de um profissional especializado, como um médico, ou de uma
instituição, mas da rede – na qual o médico é mais um empreendedor cognitivo67
.
Temos aí, outro potencial desdobramento do habitar atópico: o cuidado de
si num contexto de sociabilidade reticular vem da interação do coletivo e não mais
apenas dos corpos técnicos especializados. Isso aponta para uma dissolução do
monopólio das instituições especializadas em relação ao saber e à aplicação das
técnicas sobre o corpo.
Nesse contexto, não podemos ignorar o fato de que a dimensão
transorgânica do corpo também será parte do cuidado de si no habitar atópico. Por
exemplo, se pensarmos em termos de “transporte de signos e de memorização”,
conforme provocou Serres anteriormente, a associação do corpo com o digital
reticular parece intensificar esses dois processos ao permitir que em um comando
de teclas ou de voz resgatemos nas redes digitais um conhecimento ancestral ou
lancemos, de uma cultura a outra, signos que anteriormente poderiam levar anos
para ganhar permeabilidade. Ou ainda, no caso de uma eventual diminuição da
capacidade da memória orgânica pela interação com a tecnologia, podemos ter o
recurso de games online que ajudam a estimular as funções cognitivas de memória
e concentração68
.
Com a reflexão trazida aqui buscamos mostrar que uma abordagem
dialética não é o melhor caminho para se compreender o corpo no habitar atópico.
66 Livre tradução: “To discover that a particular feeling depends on activity in a number of specific brain systems interacting with a number
of body organs does not diminish the status of that feeling as a human phenomenon. Neither anguish nor the elation that love or art can
bring about are devalued by understanding some of the myriad biological processes that make them what they are. Precisely the opposite
should be true: Our sense of wonder should increase before the intricate mechanisms that make such magic possible. Feelings form the base for what humans have described for millennia as the human soul or spirit.” 67
Termo de Massimo Di Felice que indica aquele que vivencia um acontecimento ou experiência e o distribui pelas mídias digitais
diretamente, sem mediações. 68
Cf. Reportagem “Cientistas desenvolvem estímulo cerebral para aprimorar a memória”, publicada por Universia Brasil, em 25 jul. 2013.
Disponível em: http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/02/09/910364/cientistas-desenvolvem-estimulo-cerebral-aprimorar-
memoria.html. Acessado em 18 ago. 2013.
60
Não se trata de saber se a condição transorgância do corpo é positiva ou negativa,
mas de como desdobramentos aparentemente opostos se integram numa mesma e
nova configuração do corpo e de seu estar no mundo. Trata-se do caráter
complexo (Morin, 1994) do habitar atópico.
Cabe observar ainda que não é só o “corpo orgânico” que se adapta à
relação com a tecnologia, ela própria parece ser desenvolvida com maior atenção
ao corpo. Por exemplo, a percepção de que é incongruente monopolizar a atenção
do corpo para operar dispositivos comunicativos digitais parece já ter dado sinais
de alerta à indústria eletrônica. Quando pensamos no nível de interação propiciado
pelos dispositivos de realidade aumentada69
, pelos videogames que respondem aos
movimentos humanos e pelas tecnologias de vestir70
, vemos aí um novo tipo de
tecnologia digital que dá mais vazão a potencialidades do corpo do que a simples
relação com o teclado e a tela. Esse tipo de dispositivo abre espaço para que o
corpo conectado às tecnologias e às redes esteja, ao mesmo tempo, livre para
habitar a si mesmo e ao espaço, desimpedido de explorar mais amplamente as
potencialidades de suas múltiplas habilidades e sentidos, realizando a fusão do
presencial e do virtual. Encontra-se aí uma característica importantíssima do
habitar atópico que é a sociabilidade em rede – rede esta que não se limita aos
espaços virtuais mais que os integra aos meios físicos, gerando experiências
transorgânicas.
Pensar a corporeidade nesse contexto implica, portanto, refletir sobre um
corpo igualmente híbrido, como nos ajuda a pensar Sarsini (2004):
“Definitivamente os cyborgs enquanto entidades mistas de corpo e
máquina, fusões de orgânico e tecnológico, incrustrações
transgênicas, evidenciam a condição do sujeito pós-moderno-
múltiplo, sem fronteiras, multidimensionais; esses constituem a
imagem da superação dos dualismos tradicionais – corpo/mente,
natureza/cultura, orgânico/inorgânico, animal/mecânico,
homem/mulher, teoria/prática etc. – que simplificam o panorama
complexo, contraditório, heterogêneo do corpo; os cyborgs são
evocativos de contaminações, de formas diversas de interações e de
comunicações entre sujeitos; são imagens no espaço fractal mas
também potencialidades de mudanças no curso das ciências; são
figurações da globalização do mundo e do sistema complexo das
69
Tecnologias que integram em tempo real o mundo físico e informações virtuais, para além das telas de aparelhos digitais. Alguns
exemplos no vídeo “Top 5 Augmented Reality Apps”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NqUSfjTSLyo. Acessado em 14
ago.2013. 70
Arquiteturas informativas em forma de roupas e acessórios que interagem com a pessoa que as veste e com as redes digitais. Alguns
exemplos no vídeo “The Future of Wearable Technology”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4qFW4zwXzLs. Acessado em
14 ago. 2013.
61
redes, mas também íntima experiência de fronteiras, linguagem
política para provocar os domínios da ciência e da tecnologia.”
(SARSINI, 2004, p. 212)71
A colocação de Sarsini nos estimula a pensar o caráter recursivo (Morin,
1994) do desenvolvimento das novas tecnologias e sua relação com o corpo. Em
outras palavras, as próprias mudanças de sensorialidade e percepção associadas às
novas tecnologias são simultaneamente embrionárias ao surgimento dessas
tecnologias, pairam latentes, invisíveis, como estímulos silenciosos para sua
viabilização. Delimitar o que vem antes do quê seria possivelmente uma perda de
tempo e uma recusa à compreensão da complexidade por trás de tais fenômenos.
Isso nos indica um diálogo vivo que apoia ou desvia de um caminho mais
radical da evolução transorgânica das tecnologias, representado pela disseminação
de dispositivos conectados diretamente ao corpo – subcutâneos, cerebrais,
interórgãos -– cuja interação por meio dos impulsos neurais dispensaria qualquer
gestual para o acionamento da tecnologia. Essa é uma realidade que causa
calafrios em muitas pessoas, mas que já está em curso, tendo como foco aqueles
que sofrem de paralisias e problemas motores72
. Se fará parte do cotidiano de uma
gama maior de pessoas é algo que possivelmente passará pela ponderação do
universo perceptivo do corpo sobre si mesmo e o mundo, bem como por uma boa
dose de reflexão sobre ética e a prioridade do corpo.
Mas essa não é a discussão em pauta neste estudo. A ideia foi levantar
alguns pontos que ajudam a entender o corpo na forma do habitar atópico, como
sua condição transorgânica e sua experiência segundo um modo reticular.
Aproveitemos essa digressão para acrescentar um novo parênteses sobre
uma inquietação frequente quando se trata da cultura digital: a questão do acesso.
Este também não é um tema central para o presente estudo, mas visitá-lo
brevemente tem o objetivo de desmistificar a questão do acesso como um
71
Livre tradução: “In definitiva i cyborgs in quanto entitá miste di corpo e macchina, fusioni di orgânico e tecnológico, incroci transgenici,
ben evidenziano la condizione del soggeto postmoderno-multiplo, senza confini, multidimensionale essi costituiscono l’immagine del
superamento dei dualismi tradizionali – corpo/mente, natura/cultura, organico/inorganico, animale/meccanico, uomo/donna, teoria/prassi,
etc – che semplificano la visuale complessa, contraddittoria, dis-omogenea del corpo; i cyborgs sono evocativi di contaminacioni, di forme divers d’interazione e di comunicazione fra soggetti sono immagini nello spazio frattale ma anche potenzialità di cambiarei nel corso dele
scienze; sono figurazioni dela globalizzazione del mondo e del sistema complesso dele reti ma anche intima esperienza dei confini,
linguaggio politico per sfidare il dominio dela scienza e dela tecnologia.” 72
As pesquisas do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis nesse campo têm ganhado bastante visibilidade mundo afora. Um exemplo
sobre seu trabalho é mostrado pelo vídeo “Miguel Nicolelis: A monkey that controls a robot with its thoughts”. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=CR_LBcZg_84. Acessado em 14 ago. 2013.
62
obstáculo à constituição de uma sociabilidade reticular e de uma forma atópica de
habitar. Além de indicar que o acesso traz desdobramentos diferentes para cada
grupo.
Já observamos anteriormente que a formação de um habitar atópico é algo
que está em processo, já que o próprio aparecimento das arquiteturas digitais
reticulares é um fenômeno recente. Assim como a escrita, o livro impresso, a luz
elétrica e a TV não foram tecnologias instantaneamente acessadas por todos, as
novas tecnologias digitais também estão em processo de assimilação. O
crescimento de acesso a elas, no entanto, indica que este processo tem sido
bastante rápido e abarca mesmo grupos comumente referidos como à margem,
como os mais velhos, os mais pobres, as comunidades tradicionais e aquelas
vivendo em lugares mais isolados.
Tomando por base a realidade brasileira, podemos citar como exemplos
dessa dinâmica o barateamento e a disseminação de dispositivos como os
smartphones73
; a difusão da internet nas periferias pela cultura do uso
compartilhado, seja de computadores pessoais, seja de acesso por lan houses74
; o
enorme crescimento de conexão com a internet entre os idosos75
; e a ampliação do
acesso por comunidades mais isoladas e tradicionais - revelada nos exemplos dos
povos indígenas Suruí, que habitam regiões do Mato Grosso e Rondônia, e do
povo indígena Ashaninka, que habita a Amazônia Brasileira, em aldeias no Estado
do Acre.
Todos esses exemplos revelam que o acesso ao digital e a inclusão numa
sociabilidade reticular acontecem de modo rápido. Certamente, surgem
implicações culturais de todo o tipo, que serão diferentes para cada um desses
grupos e se revelarão ao longo do tempo, como parte do caráter vivo das culturas
apontado por Geertz (1989), que longe de serem estáticas e rígidas são
caracterizadas por mudanças, fluidez e capacidade de integrar elementos
aparentemente conflitantes.
73
Cf. Reportagem “Smartphones chegarão perto de celulares básicos no Brasil até o fim de 2013”, publicada no portal IG, Tecnologia, em
13 jun. 2013. http://tecnologia.ig.com.br/especial/2013-06-13/smartphones-chegarao-perto-de-celulares-basicos-no-brasil-ate-o-fim-de-2013.html. Acessado em 14 ago. 2013. 74
Cf. Reportagem e vídeo “A internet é a nova rua da periferia” publicada no website PORVIR, em 20 jul. 2012.
http://porvir.org/porpessoas/a-internet-e-nova-rua-da-periferia/20120720. Acessado em 14 ago. 2013. 75
Cf. Reportagem “Acesso de idosos à internet cresce 225% em cinco anos”, publicada no portal UOL, 18 mai. 2013. Disponível em:
http://mais.uol.com.br/view/cphaa0gl2x8r/acesso-de-idosos-a-internet-cresce-223-em-5-anos-04020C1A3160D8A14326?types=A&.
Acessado em 14 ago. 2013.
63
Pegando os dois casos indígenas citados, temos uma situação em que o
contato com a cultura não-indígena se amplifica, o que para alguns poderia ser um
sinal de ameaça. Mas existem indícios fortes, nessa mudança cultural pela
conexão digital, de uma valorização que se expressa, por exemplo, na exaltação de
valores dos Ashaninka pelo diálogo em rede com índios e não-indios de fora e na
defesa de seu território a partir do monitoramento que fazem de suas terras
indígenas por imagens de satélite76
.
Essa questão do monitoramento também se observa no caso dos Suruí, que
fazem uso também de GPS e que desenvolveram ainda uma versão digital de seu
território, com aldeias, bichos, aspectos da história e dos modos de vida, e que
reforça, de uma nova maneira, a identidade cultural desses povos e sua
valorização para o mundo que outrora era tido como exterior e agora mantém-se
conectado aos Suruí77
.
Pereira (2007) destaca significados importantes do que chama de
“presença nativa no ciberespaço”, como a “auto-representação”, o “fortalecimento
cultural” e o “protagonismo” frente aos conflitos étnico-sociais pela interação com
as novas configurações dos fluxos comunicativos.
Os exemplos dos Ashaninka e Suruí nos permitem retornar à discussão
desse estudo sobre a relação homem-natureza-tecnologia. Eles nos lembram que
desdobramentos culturais e das novas relações estimuladas pelas arquiteturas
digitais reticulares não estão restritos ao corpo próprio e sua relação com os outros
e as coisas. Dizem respeito também à relação do corpo com a natureza.
Aqui vale resgatar o sentido da proposição de Bergson sobre o corpo
imenso e o corpo mínimo. É possível identificar nos dias de hoje que a
criatividade e a curiosidade do intelecto humano, o senso de urgência, de
necessidade e de oportunidade frente aos limites da natureza, expressam-se de
modo cada vez mais integrado com a tecnologia, levando ao desenvolvimento de
novos dispositivos que permitem novos caminhos de relacionamento do ser
humano com o planeta. Verdadeiras extensões dos sentidos e habilidades
corporais, como as lentes e sensores para georreferenciamento que se tornam
76 Cf. Reportagem “A última fronteira”, da TV Record, de 20 mai. 2013. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8kqGwrcY0Q0 . Acessado em 14 ago. 2013. 77 Cf. Reportagem “Índios suruis (sic!) usam celulares e GPS para defender a terra do desmatamento”, da Globo News, Programa Cidades e
Soluções. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=DLcED2du2EE. Acessado em 14 ago. 2013.
64
nossos olhos e labirintos auriculares sobre a terra. Ao mesmo tempo em que
engajam a cognição humana numa rede integrada com as tecnologias e com o
planeta por elas digitalizado, ampliando nossa percepção sobre o oicos e
permitindo criar modos mais sustentáveis para os desdobramentos biofísicos de
nossa relação com a natureza.
Do mesmo modo, a digitalização da natureza aliada ao maior
conhecimento científico a seu respeito lhe confere voz, permitindo que ela emerja
como actante de fato nesta nova sociabilidade. O derretimento das calotas polares
não é mais apenas uma informação do noticiário ou de um relatório do IPCC
(Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas); é acompanhado por
câmeras, por dispositivos que a cada dia emitem o alerta dos biomas gelados:
“estou derretendo!” Os medidores de poluentes no ar das cidades e da
concentração de gases do efeito estufa na atmosfera também dão voz ao actante
natureza numa linguagem cada vez mais acessível ao cidadão comum: “o ar está
mais sujo”, “o efeito estufa está mais intenso”, “vocês estão poluindo muito”. A
natureza continua a fazer acontecer suas dinâmicas, seus ciclos – mesmo passando
por desestabilizações impostas por nós ou por ela própria – e vai nos fazendo
readaptar nossos modos de vida para que continuemos participando da mesma
rede planetária, para que mantenhamos o corpo ligado à natureza num mesmo
fluxo informativo. Permanecer nele depende da nossa sensibilidade para com a
voz digitalizada da natureza, bem como das conexões e da mobilização que
fazemos entre actantes humanos e não humanos.
Em outras palavras, a digitalização da natureza estimula uma nova relação
entre ela e o corpo. O corpo que se vê fora da natureza – que a considera ambiente
(do latim ambire, o que está em volta) – está fadado a desaparecer fisicamente, ao
exaurir as condições naturais para sua perpetuação; ou desaparecer como ideia,
abrindo espaço para um corpo que se veja e atue de modo integrado, e assim se
perpetue biologicamente.
A própria ciência, numa abordagem contemporânea e reticular, nos chama
atenção para o fato de que corpo, mente e ambiente são indissociáveis:
“(i) O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo
indissociável, integrado por meio de circuitos bioquímicos e neurais
reguladores (incluindo componentes neurais endócrinos, imunes e
65
autonômicos); (2) O organismo interage com o ambiente com um conjunto; a
interação não é nem do corpo sozinho nem do cérebro sozinho; (3) As
operações fisiológicas que chamamos de mente são derivadas do conjunto
estrutural e funcional e não do cérebro isoladamente; fenômenos mentais podem
ser inteiramente entendidos apenas no contexto de um organismo interagindo
em um ambiente. O ambiente é, em parte, um produto da própria atividade do
organismo, apenas ressalta a complexidade das interações que temos de levar
em conta.”78
(DAMASIO, 1994, p. 16-17)
Neste sentido, podemos afirmar que a relação entre homem, natureza e
tecnologia o leva a fortalecer o quiasma com o mundo, qual proposto por
Merleau-Ponty (1964). De certo modo, nos aproxima da imagem de corpo imenso,
proposta por Bergson, onde o corpo compreende e atua no planeta com a noção de
que influencia e é influenciado pela natureza, mesmo à distância: “coextensivo á
consciência, ele compreende tudo o que percebemos, ele vai até as estrelas”
(BERGSON, 1948, p. 138).
Esse mesmo fenômeno de digitalização da natureza que remete ao “corpo
imenso” tem ajudado a questionar a própria noção cartesiana do corpo como um
aglomerado de membros e órgãos, revelando o corpo como rede de redes -
fenômeno associada também ao conhecimento científico, à curiosidade do cidadão
comum em suas buscas digitais e à cultura do compartilhamento.
Agora a digitalização do corpo diz que não existimos mais como ser
humano uno, mas que nossos corpos são também redes, não só de átomos, células,
órgãos, sistemas, mas também dos dispositivos integrados dentro e fora do corpo
biofísico, desde próteses até os aparelhos de comunicação móvel, de estruturas
físicas que seguem a mesma arquitetura em espiral de estruturas universo afora79
(DOCZI, 1990) e de microorganismos80
, sem os quais a vida desse aparentemente
78 Livre tradução: “(i) The human brain and the rest of the body constitute an indissociable organism, integrated by means of mutually
interactive biochemical and neural regulatory circuits (including endocrine, immune, and autonomic neural components); (ii)The organism
interacts with the environment as an ensemble: the interaction is neither of the body alone nor of the brain alone; (iii) The physiological operations that we call mind are derived from the structural and functional ensemble rather than from the brain alone: mental phenomena
can be fully understood only in the context of an organism's interacting in an environment. That the environment is, in part, a product of the
organism's activity itself, merely underscores the complexity of interactions we must take into account.” 79
Em “O Poder dos Limites”, o arquiteto György Doczi nos fala de um “princípio dianérgico” – a formação de diferentes estruturas a partir
de espirais opostas que conformam uma unidade, seguindo sempre a mesma proporção, conhecida como proporção áurea. Essas espirais
estão presentes nos miolos das flores, no formato das galáxias, nos ossos do corpo humano, nos grafismos e artefatos de inúmeros povos tradicionais, É o fractal por excelência. 80
O projeto Microbioma Humano, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, mapeou os microrganismos do corpo,
identificando cerca de 10 mil espécies, como informa a notícia “Cientistas anunciam ter completado a identificação do microbioma
66
uno ser humano não vicejaria; de fluxos cognitivos que se associam aos fluxos
informativos digitais; de sentidos que se constroem mundo afora pela inteligência
coletiva e interação conectiva.
Essa noção da constituição biodiversa e tecnológica do corpo abre espaço
para uma nova forma de o compreender ao misturar-se a outro ingrediente, que é a
percepção estimulada pela sociabilidade em rede. Esta é aquela condição
perceptiva que estabelece mais facilmente conexões antes nebulosas, como entre
actantes humanos e não humanos ou entre fenômenos e entre ideias que antes
pareciam desconexos ou opostos. Em outras palavras, uma percepção avessa a
fronteiras.
Esse estímulo a uma percepção sem fronteiras não se desdobra apenas num
entrelaçamento com o mundo pela interação com o digital, mas também alimenta
um fenômeno especificamente orgânico.
A percepção das mudanças na natureza e de nossa interação com ela é
acessível ao corpo orgânico – num grau diferente do acesso potencializado pela
tecnologia, de uma ordem do sensível, própria da corporeidade, do indizível, de
dimensões que saberes da cultura oriental relacionam com o chi81
(Capra, 2000) –
algo possivelmente próximo da carne do corpo que Merleau-Ponty dizia ser
inclassificável pela filosofia. Como já nos indicou Serres (2004), ao falar da
prioridade do corpo; Damasio (1994), ao mostrar a importância das
potencialidades do corpo para o estar no mundo; e Nietzsche (1997) sobre a
sabedoria do corpo, para a conexão com a natureza precisamos apenas percebê-la.
Aqui identificamos novamente um fenômeno dialógico (Morin, 1994).
Como já observamos antes, mesmo o que parece uma relação estritamente
orgânica, fatalmente será apropriada pela dimensão transorgânica do corpo, uma
vez que uma experiência de conexão com a natureza, o luar, as mudanças
climáticas, a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos, as geografias
eventualmente serão digitalizados, guardados em nossa memória virtual,
compartilhados na rede, acessados e comentados em nossas extensões
tecnológicas.
humano”, no website G1, de 13 jun. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/06/cientistas-anunciam-ter-
completado-identificacao-do-microbioma-humano.html. Acessado em 03/08/2013. 81
Termo que de modo simplificado poderia ser traduzido como energia vital.
67
Vimos, portanto, que as mudanças sensoriais e perceptivas associadas ao
habitar atópico estimulam um reconhecimento do reticular no mundo – uma nova
percepção das conexões das coisas e dos processos naturais e antropogênicos e
seus desdobramentos. Ao mesmo tempo em que estimulam o reconhecimento da
condição reticular e fractal do corpo próprio e de tornar suas potencialidades, sua
capacidade perceptiva, sensitiva, cinética, psico e biofísica unas com o habitar do
mundo.
É chegada a hora de entendermos que desdobramentos podem surgir da
relação do corpo com o desafio da sustentabilidade no habitar atópico.
68
5. Espontaneidade no corpo, intencionalidade para a vida
“(...) todo corpo verdadeiramente mergulhado na vida
autêntica e na aprendizagem corajosa e direta recebe
delas uma força vertical igual a esse mesmo corpo,
dirigida para a descoberta.” (SERRES, 2004, p.141)
5.1 A sustentabilidade e o corpo no habitar atópico
Após entendermos como o habitar atópico (Di Felice, 2009) se relaciona
com a sustentabilidade e como o entrelaçamento do corpo com o mundo
(Merleau-Ponty, 1968) se manifesta nessa forma de habitar, podemos finalmente
explorar os desdobramentos tangíveis e rumos possíveis para a relação do corpo
com o desafio da sustentabilidade, no âmbito do habitar atópico.
Retomemos de modo breve o entendimento de sustentabilidade exposto no
capítulo 2, para então nos lançarmos às conexões com o corpo. Vimos que
conduzir a economia dentro dos limites da natureza e da sociedade, reduzindo a
entropia e impactos negativos sobre as condições de vida para o ser humano - e
para as espécies que hoje habitam o planeta - é algo que passa por uma mudança
de concepção de desenvolvimento. Não mais aquela baseada no crescimento
infinito, nem no consumo de mercadorias e nem no endividamento financeiro e
ecológico (Jackson, 2009). Colocar em prática tamanho desafio é um exercício
que exige criatividade e desapego de antigos modelos, para lidar com diferentes
perspectivas de desenvolvimento sustentável - como as encontradas em
Abramovay (2012), Cechin (2012), Lovelock (1998), Raworth (2012), Sachs
(1998), Shiva (1988) e Veiga (2005) – e, em especial, a de prosperidade
desatrelada do crescimento, tendo como horizonte não a acumulação e o consumo,
mas a “habilidade de participar da vida da sociedade com sentido” (Jakson,
2009), alimentando a “capacidade para florescimento” humano (Sen, 2000).
Identificamos no detalhamento dessa ideia a ligação com a Quadratura
(céu, terra, deuses, mortais) proposta por Heidegger (1954) como definidora de
69
um habitar que: cultiva os gestos de dedicação às fontes de sustento da vida;
reconhece os ciclos, ritmos e dinâmicas em que ela está imersa; abre-se à
espiritualidade; coaduna com os seres humanos. Um fundamento possível para
fazer emergir a prosperidade “justa e duradoura” proposta por Jackson (2009),
interdependente da relação com a sociedade e a natureza, e desviante da trajetória
de “irresponsabilidade sistêmica” do modelo de crescimento constante. Implica,
portanto, uma mudança de pensamento e ação que se traduza numa forma de
habitar diferente daquela que nos trouxe ao atual momento de crise
socioambiental.
Encontramos aí uma ponte importantíssima entre o corpo e a
sustentabilidade, já que tamanha mudança passa involuntariamente pelo corpo,
pois ele configura o universo perceptivo que torna possível qualquer
transformação de entendimento humano do estar no mundo – como nos aponta,
em diferentes abordagens, Bergson (1948), Husserl (1998), Merleau-Ponty
(1968), Cardim (2009), Silva (2009) e também McLuhan (1964). Desse último,
destacamos o conceito de que “o meio é a mensagem” para observar como o
corpo, no habitar atópico, é estimulado e transformado pela sociabilidade reticular
no sentido de enxergar e engendrar conexões, de estar no mundo de modo
interativo e colaborativo (Di Felice, 2009). E assim traduzir em pensamentos, em
atos, em uma forma de habitar o entrelaçamento com a natureza, com as coisas,
com os outros (Merleau-Ponty, 1968).
Se no habitar atópico o quiasma do corpo com o mundo subentende a
assimilação do mundo como uma rede de sistemas abertos (Morin, 1994), e se tal
assimilação é o que impulsiona o devir da sustentabilidade, então o gérmen para a
sustentabilidade está latente no corpo que habita de forma atópica. Haveria, assim,
um potencial de engajamento “espontâneo” desse corpo com os preceitos da
sustentabilidade apontados acima – engajamento que cresce, portanto, quanto
mais o habitar se realiza de modo conectivo e reticular entre actantes humanos e
não-humanos (Latour, 2008).
Nesse momento, abre-se o espaço para refletirmos também sobre a
possibilidade de que a participação do corpo no desenvolvimento sustentável vá
além de uma emanação espontânea e seja efetivamente convocada por um olhar
intencional a esse corpo que intui e fareja a sustentabilidade. Uma atenção
70
deliberada a seu universo reticular, aos saberes encarnados nesse corpo, cuja voz
ajuda a mover os novos pensamentos e ações necessárias ao desafio civilizatório
do século XXI. Essa mesma sabedoria do corpo (Nietzsche, 1999) que agrega a
relação com a tecnologia, não só pela escuta atenta às dinâmicas conectivas que as
arquiteturas digitais propõem, mas por essa relação ser condicionada pelo toque
sensível e senciente do corpo.
Mas deixemos essa ideia pairando um instante, para seguir com o
entendimento do que seria o potencial de participação espontânea do corpo na
sustentabilidade. É chave para essa compreensão a mudança de sensorialidade
(McLuhan, 1964) em consonância com as arquiteturas digitais reticulares.
Vimos a partir de Di Felice (2009) que, no passado, a sensorialidade
condicionada pelo caráter visual, de reduzidos estímulos ao corpo, segmentador e
linear da escrita esteve associada a um habitar empático, de domesticação do
ambiente, e preparou terreno fértil para o entendimento cartesiano de um corpo
fragmentado e para a sua normalização e submissão às instituições (Foucault,
2004). De modo análogo, o caráter áudio-tátil e deslocativo da sensorialidade no
habitar exotópico, condicionado pelas tecnologias comunicativas da eletricidade,
contribuiu para um questionamento dos pontos de vista centrais (Vattimo, 1989) e
das metanarrativas (Lyotard, 1984) como da modernidade, do progresso e do
domínio da natureza. No habitar atópico, a sensorialidade do corpo conectiva e
aberta a estímulos, que aflora recursivamente (Morin, 1994) criadora e
condicionada pelas arquiteturas digitais reticulares, configura uma sociabilidade
em rede, interativa, colaborativa e ávida por conexões entre actantes humanos e
não humanos (Latour, 2008). Decorre daí que modelos político-econômicos
prontos e instituições verticalizadas, surdos às vozes e à participação das redes
virtuais e presenciais, são fortemente questionados. Assim como as atividades
humanas que negligenciam as conexões com a natureza.
Temos, assim, os primeiros sinais de uma inteligência e uma actância
coletivas e de caráter reticular (Di Felice, 2009), que emergem da relação do
corpo com a tecnologia, e estão aptas a lidar com o desafio complexo da
sustentabilidade.
Ou seja, o potencial de participação espontânea do corpo na
sustentabilidade aflora desse corpo como rede de redes (átomos, células, órgãos,
71
microrganismos, próteses), e em rede com o mundo, que está permeável a
perceber de novos modos os desafios e oportunidades para o desenvolvimento
humano, que passa a ser construído colaborativamente, em contraste com lógicas
de hierarquia e liderança rígidas.
5.2 Espontaneidade do corpo para a sustentabilidade
Vejamos alguns exemplos de como o corpo imerso na sociabilidade
reticular e aberto às conexões com o mundo já revela impulsos de construção de
novas dinâmicas na sociedade e na relação com a natureza, a partir da interação
com as tecnologias. Podemos citar os aplicativos que conectam diferentes actantes
para mapear problemas e encaminhar soluções nas cidades82
, a cultura de mapas
coletivos online que favorece a reconexão presencial com os espaços públicos em
uma dada região83
; laboratórios que conjugam academia e cidadãos para criar
soluções a desafios locais e globais84
, projetos artísticos que conectam artistas,
linguagens e espaços85
.
Não podemos ignorar que compartilhar e produzir seja o que for a partir da
inteligência coletiva e da colaboração não é exatamente uma novidade - por
exemplo, mutirões, escambo e trocas entre amigos e vizinhos já existem há muito
tempo86
. Por outro lado as arquiteturas reticulares e a sociabilidade do habitar
atópico potencializam, diversificam e multiplicam as modalidades colaborativas
(o surgimento do termo crowdsourcing é uma referência disso87
), conduzidas por
corpos que se percebem interdependentes das cidades, dos recursos naturais, dos
82
O brasileiro CoLab é um exemplo de conexão para coconstrução de soluções entre cidadãos e poder público. Disponível em:
http://colab.re/. Acessado em 01 ago. 2013. 83
Como exemplo, a plataforma Mapas Coletivos. Disponível em: http://www.mapascoletivos.com.br/. Acessado em: 01 ago. 2013. 84
Um exemplo é o CoLab do Instituto de Tecnologia de Massachussets, voltado para soluções nas cidades e geração de renda a partir de
parceria com comunidades locais. Disponível em: http://web.mit.edu/colab/. Acessado em: 01 ao. 2013. 85
O Conexão Cultural é um exemplo de rede que estimula tanto intervenções artísticas coletivas como a colaboração entre centros culturais
mundo afora. Disponível em: http://www.conexaocultural.org/. Acessado em 01 ago. 2013. 86
Existe até o termo “envelhação” para designar iniciativas que existiam no passado e agora são recuperadas de outros modos na cultura
digital reticular, para promover inovações, como mostra reportagem da Revista Página 22, publicada em setembro de 2011. Disponível em:
pagina22.com.br/index.php/2011/09/o-futuro-no-preterito/ . Acessado em: 01 ago. 2013. 87
Iniciativas baseadas na inteligência e na produção coletiva a partir das redes digitais são genericamente conhecidas como crowdsourcing, e
muitas vezes têm como desdobramento o crowdfunding, que é a apresentação de projetos dos mais diferentes tipos, em plataformas digitais.
No Brasil, o exemplo mais conhecido de crowdfunding é o da iniciativa Catarse. Disponível em: http://catarse.me/pt/projects. Acessado em
01 ago. 2013.
72
outros corpos, das coisas, dos fluxos informativos, de saberes tradicionais, das
experiências presenciais, do diálogo virtual, dos compartilhamentos.
Um possível desdobramento desse engajamento do corpo em iniciativas
coletivas, aliado ao controle social exercido pelas redes, é o de reorientação do
Estado e das instituições na sociedade para formas mais permeáveis, dialógicas e
transparentes de atuação e para uma nova perspectiva democrática (Castels,
2013).
Sinais dessa mudança potencial têm se tornado cada vez mais frequentes.
Entre os exemplos, a Primavera Árabe, que levou a mudanças de governos em
diversos países, e das manifestações ocorridas no Brasil em 201388
. Merecem
destaque também as mobilizações por políticas públicas que ocorrem permeadas
pelo conceito de crowdsourcing (Bott; Young, 2012). É o caso das redes em torno
dos Sistemas de Informação Geográfica e Participativa (PGIS, na sigla em inglês),
voltadas ao mapeamento de questões de desenvolvimento sustentável para
fundamentar tanto políticas elaboradas pelos governos como propostas diretas das
comunidades89
. Outro exemplo é das populações de diferentes partes do mundo
que mapeiam suas necessidades em situações de crise, orientando a ação de apoio
governamental e de ajuda humanitária90
.
Essas, entre tantas iniciativas existentes atualmente, revelam um traço
importante da sociabilidade que nasce de – ao mesmo tempo em que desperta -
um corpo que assume sua condição de sistema aberto, em rede com outros
actantes. E pelo coletivo é capaz de grandes mudanças nas dinâmicas sociais, que
outrora insistiam agir como sistemas fechados.
Podemos aludir à própria economia, cujo caráter sustentável está atrelado a
repensa-la como um subsistema aberto, dentro de um sistema finito que é o
planeta, sujeito à lei da entropia (Cechin, 2012). Exemplos disso vêm tanto da
sociedade civil – por iniciativas como economia criativa, moedas sociais,
88
O resultado mais evidente das manifestações no Brasil, que combina com o estopim desse movimento, foi a redução nos preços de
passagens de ônibus em diversos municípios brasileiros após protestos em escala nacional, como mostra relato do Movimento Passe Livre.
Disponível em: http://saopaulo.mpl.org.br/2013/06/21/fomos-vitoriosos-viva-a-luta-do-povo/. Acessado em 01 ago. 2013. 89
É a proposta, por exemplo, da Aboriginal Mapping Network. Disponível em: http://www.nativemaps.org/. Acessado em: 01 ago. 2013. 90
É o caso da Ushahidi, arquitetura informativa associada a casos de desastres naturais, como o terremoto no Haiti em 2010, e conflitos
violentos, como os ocorridos no Kenya após as eleições de 2008. Disponível em: http://www.ushahidi.com/. Acessado em 01 ago. 2013.
73
economia solidária e empreendedorismo social91
– quanto das próprias empresas.
Para citar apenas um caso, a Nike, após sofrer duro golpe de reputação nos anos
90, por usar mão-de-obra infantil, vem conduzindo um longo processo de
reformulação que inclui uma plataforma aberta de inovação em ecoeficiência,
onde todos podem colaborar com ideias ou utilizar as que já fazem parte do banco
de dados92
– inclusive concorrentes. Isso para que, segundo a própria empresa, a
sustentabilidade vá além de um diferencial reputacional no mercado e se torne o
pano de fundo comum à atuação do setor empresarial.93
O entrelaçamento do corpo com as tecnologias digitais reticulares revela
outro modo de engajamento espontâneo na sustentabilidade ao estimular novas
formas de consumo, menos relacionadas à compra e à posse e mais ligadas a
dinâmicas reticulares como o compartilhar. São exemplos as feiras de troca e os
bazares entre amigos94
; as redes de consumo colaborativo, que promovem
intercâmbio de serviços (uma aula de inglês por uma de violão; brigadeiros de
festa por passeio com o cachorro, uma carona para a praia por um quarto para
dormir) e/ou o compartilhamento de objetos (ferramentas, automóveis, bicicletas,
livros, utensílios domésticos)95
; e ainda as redes de criação de soluções caseiras a
produtos vendidos no mercado96
. Tais práticas são incipientes se considerarmos a
magnitude do mercado consumidor, mas sua multiplicação e a lógica que as move
constituem uma semente desestabilizadora de um dos principais obstáculos à
sustentabilidade: a “gaiola do consumismo” (Jackson, 2009).
Esses novos modos do corpo realizar o habitar junto às coisas (Di Felice,
2009) são condizentes com o espírito de compartilhar interesses comuns,
característico do habitar atópico. Esses interesses e as comunidades que se
formam em torno deles serão tão variados quanto é a própria sociedade e
escondem conexões transversais entre os actantes, que não respondem mais a uma
91
Novas modalidades econômicas que têm como norte benefícios para a coletividade, conforme descreve matéria da Revista Página 22
publicada em 14 abr. 2012. Disponível em: http://www.pagina22.com.br/index.php/2012/04/de-que-economia-estamos-falando/. Acessado em 01 ago. 2013. 92
Trata-se da plataforma digital GreenExchange. Disponível em: http://www.greenxchange.cc/. Acessado em 02 ago. 2013. 93
Entrevista a respeito com a vice-presidente de Negócios Sustentáveis e Inovação da Nike Inc., Hannah Jones, publicada na edição de
novembro de 2010 da Revista Página 22. Disponível em: http://pagina22.com.br/index.php/2010/11/a-grande-virada/. Acessado em 02 ago. 2013. 94
Matéria a respeito publicada na revista Página 22, em 13 mar. 2012. Disponível em: http://www.pagina22.com.br/index.php/2012/03/a-
liquidacao-do-consumismo/. Acessado em 01 ago. 2013. 95
Ver referências no website Adital. Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73427. Acessado em: 01 ago.
2013. 96
É o exemplo do website XPOCK. Disponível em: http://xpock.com.br/9-dicas-que-podem-facilitar-sua-vida/. Acessado em 01 ago. 2013.
74
lógica de segmentação de grupos. Essa sociabilidade reticular, de corpos
conectivos, sem intermediários, favorecendo encontros significativos para cada
um, alimenta a “vida com sentido” referida por Jackson (2009) como caminho
para o desenvolvimento sustentável, estimulando a emersão de novos valores e de
atividades antropogênicas condizentes com eles.
Não podemos ignorar que a atratividade dessa cultura conectiva pode
gerar, no entanto, um monopólio da atenção do corpo pelo virtual, o que se revela
em questões como transtornos de ansiedade, sedentarismo traduzido em dores nos
músculos e articulações, problemas de circulação, reclusão estimulando
comportamentos depressivos. Situações que contrariam a ideia de que o habitar
atópico torna o corpo transorgânico: nos casos acima, a dimensão orgânica parece
definhar. E a depleção do orgânico significa exclusão na rede e negligência da
sustentabilidade.
Cabe resgatar, no entanto, a observação do capítulo 3 sobre como essas
mesmas questões podem gerar novos grupos de interesse, voltados a uma
reconexão com a corporeidade97
.
Então por que refletir sobre a dimensão física presencial do corpo na rede
se ela acabará sendo assimilada pelo diálogo reticular? Primeiramente, porque o
entendimento da rede no habitar atópico é do híbrido entre o presencial e o virtual.
Depois, porque a reconexão com a corporeidade demanda uma dimensão física
presencial, uma vez que guardamos uma dimensão biológica, instintiva, ancestral
no corpo que é a da vontade de contato:
“Apesar de todo o conhecimento acumulado a seu respeito, o corpo
humano ainda não foi completamente explorado e talvez nunca
cheguemos a conclusões definitivas sobre suas potencialidades. De
qualquer forma, sua existência revela a presença de algo cuja
dimensão transcende a própria materialidade: aquilo que comumente
chamamos de energia vital.” (VIANNA, 2005, p. 116)
O contato físico com o mundo continua sendo uma força reticular sem
igual para a vida. Essa ainda é a situação cotidiana em que a rede corporal se
potencializa para além da atividade mental, do dedilhar teclados, do dialogar
97
Um exemplo é a iniciativa Design to Move, que busca estimular a atividade física frente ao fato de que o sedentarismo tem se tornado
crescente nas gerações recentes pela interação com tecnologias digitais e de mobilidade motorizada. Disponível em:
http://www.designedtomove.org/. Acessado em 01 ago.2013.
75
tendo à frente uma tela que muitas vezes nos faz olhar de cima para baixo,
cabisbaixos.
Esse não é um juízo de valor, é uma noção de amplitude dos sentidos do
corpo que entram em diálogo com o mundo – e como observou McLuhan (1964),
essa amplitude dos estímulos é norteadora da percepção, dos hábitos, da
sociabilidade. Uma sociedade em rede e sustentável demanda um corpo reticular,
que cultiva a sustentabilidade para si.
Ela passa pelo abraço que conforta uma tristeza mais do que um
emoticon98
, pelo reconhecimento da nossa constituição em carne e osso que
demanda comida saudável e movimento para se perpetuar sem as limitações de
doenças e mazelas. A sustentabilidade se faz pelo corpo que reconhece que
envelhece e morre assim como a natureza que o sustenta, ainda que nossas linhas
do tempo nas redes sociais perpetuem uma memória com um recorte de nossas
existências. Faz-se pela epimelese99
que nos impulsiona ao cuidar das coisas, a
habitá-las, mas que tem origem no amamentar da cria em contato direto com o
corpo da mãe. Faz-se pelo sexo carnal que acende a rede sensória e agita os fluxos
do corpo de modo mais complexo e abrangente que a masturbação entre duas
pessoas que se veem numa superfície sem cheiro, temperatura, textura – pelo
menos no momento atual de nosso desenvolvimento tecnológico.
Fazer alarde sobre essa “prioridade do corpo”, no termo usado por Serres
(1994), não tem o intuito de estabelecer uma oposição, uma dicotomia. A intenção
é outra, de confiar no corpo para que indique o equilíbrio dinâmico da relação
transorgânica com os dispositivos tecnológicos e com o ambiente. Negociação da
qual participam intensamente as arquiteturas digitais reticulares, ajudando a
apontar oportunidades e caminhos para a experiência carnalizada, ao viabilizar
flash mobs100
, transbordar manifestações para a rua, favorecer encontros de “corpo
e alma”, animar coletivos que festejam no espaço público, engajar uma
comunidade no diálogo sobre impactos da instalação de um grande
empreendimento, conectar grupos que meditam nos parques, reunir mutirões para
98
Ícones utilizados em diálogos nas redes digitais para simbolizar sentimentos e sensações. 99
Comportamento típico dos mamíferos de cuidado e zelo pela prole que carece de maturidade para sobreviver, de acordo com explanação
de Marchesini (2010) já referida no capítulo 3. 100
Intervenções geralmente em espaços públicos, combinadas a partir das redes sociais, que resultam em aglomerações repentinas para
realização de ações inusitadas e que depois se dispersam rapidamente.
76
o cultivo de hortas, emaranhar entusiastas do movimento que transformam a
cidade em território do parkour101
.
Merece atenção, ainda, a relação de intimidade entre o corpo e as
arquiteturas digitais reticulares, que o estendem por dispositivos e ampliam seus
sentidos integrando-o a uma vida digitalizada. Dimensão reveladora de mundos
que estão além do alcance da nossa sensorialidade orgânica imediata – seja pela
distância e pela ampliação da capacidade visual, auditiva e vocal; seja pela
possibilidade de digitalizar o mundo e coloca-lo ao alcance da rede.
É o caso da aproximação com a natureza por meio de satélites, câmeras,
sensores, dispositivos de georreferenciamento. E que permitirá uma interação
também por meio dos dispositivos tecnológicos digitais, numa perspectiva
reticular que se expressa desde as campanhas online contra o desmatamento, até
os aplicativos que identificam pássaros pelo canto102
, que mapeiam árvores
frutíferas pela cidade103
, que dizem quais são as frutas da estação para auxiliar o
consumo consciente104
, que registram as aventuras dos adeptos do ecoturismo e a
natureza preservada ao redor do mundo105
.
Nesse habitar reticular que não mais negligencia conexões no mundo,
temos a oportunidade de reverter a negligência histórica do corpo. Escancarar a
percepção o corpo como universo reticular e não mais apartado pela perspectiva
cartesiana e das ciências humanas enquanto pensamento, alma, natureza.
Em outras palavras, por que não ir além da emanação espontânea de uma
nova sociabilidade sustentável encarnada no corpo e intencionalmente mergulhar
em sua rede, deixar que ele nos ensine mais?
101
Também conhecida como “arte do deslocamento”, é uma movimentação que consiste em ir de um ponto a outro, o mais rápido possível,
superando qualquer obstáculo pelo caminho, como muros, escada, fossos, andaimes. Para nossa discussão, vale trazer a conversa entre
Leonard Akira, praticante e instrutor pioneiro no Brasil, e um frequentador de seu blog: “Mas Akira , voltando ao assunto principal, você não acha Prince of Persia [um jogo de computador] divertido e com movimentos que lembram o Parkour?
Claroooooo que eu curto Prince of Persia e joguei vários no meu PSP, mais galera isso já passou, por exemplo (sic!) Assasin's Creed [outro
jogo] é demais e totalmente baseado em Parkour! Só que é em terceira pessoa!”. Disponível em: http://www.leparkourbrasil.blogger.com.br/. Acessado em 02 ago. 2013. 102
Aplicativo para iPhone Aves do Brasil – Mata Atlântiva. Disponível em: http://planetasustentavel.abril.com.br/aves/app/. Acessado em
20 ago. 2013. 103
Aplicativo Neighborhoodfruit. Disponível em: http://neighborhoodfruit.com/iphoneapp . Acessado em 2 ago. 2013. 104 Aplicativo Seasons App. Disponível em: http://www.seasonsapp.com/. Acessado em 2 ago. 2013. 105 Aplicativo Project Noah. Disponível em: http://www.projectnoah.org/. Acessado em 2 ago. 2013.
77
5.3. Intenção no corpo
Assumir a proposição de Nietzsche (1997) do corpo como fonte de saber é
valiosíssima e especialmente ressonante no habitar atópico.
Este entendimento vem ao encontro de e amplifica o sentido de uma
abordagem integrada do conhecimento para a construção da sustentabilidade
(VEIGA, 2005). Se entendemos que uma mudança de percepção é necessária,
recorrer ao corpo é mais que recomendável, é urgente!
O acesso a este saber do corpo pode se dar pelas abordagens mais variadas,
como nos mostram a seguir diferentes pesquisadores, educadores, artistas e
ativistas do corpo. Um primeiro exemplo vem da própria coordenação motora, a
partir da perspectiva de Béziers e Piret106
:
“A coordenação nos faz escultor se nós a pensamos como uma
escultura móvel e perpétua. Ela nos faz homem por tudo isso que nos
faz descobrir e compreender.
E você, o que vai fazer? Pegue-a em suas mãos. Coloque-a dentro de
seus olhos, dentro do seu conhecimento. Esse instrumento é também
seu. Olhe-o, você irá se encontrar e a maneira pela qual você vai se
utilizar disso é justamente o que ela fará de você.”107108
(apud
FAVORETO, 2006, p. 8)
O “olhar de dentro”, a meditação, a propriocepção, o explorar intencional,
silencioso e cinético do universo sensorial, topográfico e psicomotor do corpo
evidenciam o conhecimento encarnado de nossa relação com o mundo nas tensões
musculares, nos padrões de movimento, nos modos de expressão, nas entranhas,
nas sensações e insights que surgem durante essa imersão. É o que nos ajuda a
compreender Klauss Vianna109
:
106
Madelene Béziers e Suzanne Piret desenvolveram durante mais de 30 anos um trabalho de estudo, reflexão e sistematização sobre a
coordenação motora, e de técnicas mecânicas para a organização psicomotora do homem, que se tornou referência recorrente para terapeutas, artistas cênicos e médicos, e que faz uma ponte entre a motricidade do corpo e sua dimensão perceptiva e expressiva. 107 “Manuscrito de Piret lido por Béziers na finalização de um dos módulos do Curso de Formação na Coordenação Motora orientado por
M.M. Béziers e sua irmã Yva Hunsinger em São Paulo, 2001.” 108
Tradução da autora para o trecho a seguir: “La coordination nous fait sculptr si nous la pensons comme une sculpture móbie et
perpételle. Elle nous fait home par tout ce qu’elle nous fait découvrir et comprendre.
Et vous qu’en ferrez-vouz? Prenez la dans vos mains. Dans vos yeux, dans votre connassance. Cet outil est aussi lê vôtr. Regarder le, vos y
retrouverez et de la maniére dont vous aller l’utiliser, c’est cela qu’il fera de vous.” 109
Bailarino, coreógrafo e professor, Klauss Vianna foi pioneiro no estudo do movimento e na conceituação de um trabalho corporal capaz
de exprimir o universo interior de dançarinos, atores e pessoas em busca de crescimento. Rejeitando modelos prontos e o formalismo que os
embasa, foi introdutor da educação somática no Brasil, num trabalho que se tornou referencial.
78
“O fato de cada pessoa ser, em síntese, o próprio mundo, um
microcosmo, permite que ela encontre respostas para suas dúvidas,
paixões e ansiedades quando mergulha com coragem e técnica em seu
universo interior.” (VIANNA, 2005:114)
O horizonte não é o de reconhecimento de comportamento para lhe impor
controle. É sim o de aprimorar um saber de si, de se render à complexidade e à
poesia do corpo, de aceitar a condição humana e de compreender melhor o mundo
a partir de nossa dimensão de fractal e de interdependência com as coisas, os
outros, a natureza.
Essa condição de fractal pode se revelar, por exemplo, na atenção para e
na percepção do relógio biológico encarnado em nosso corpo. E no entendimento
– com apoio de informações nas redes digitais - de que, assim como nos animais,
ele está conectado à rotação da Terra e à órbita da Lua, como explica o
paleontólogo e biólogo evolucionário Neil Shubin110
. Já a condição de
interdependência pode ser facilmente percebida se levamos atenção ao efeito da
alimentação sobre nosso corpo ou se acompanhamos o crescimento de um bebê
que nasce com o cérebro em formação e cuja evolução depende das interações
com o mundo111
.
Ampliar o conhecimento sobre o corpo próprio e, assim, sobre as relações
que ele integra é algo certamente favorecido pelas arquiteturas digitais reticulares.
Basta ver a grande quantidade de referências sobre atividades corporais de
perspectiva somática e de realização coletiva, desde as tradições orientais, como a
Yoga e o Tai Chi, até técnicas contemporâneas como o método Feldenkrais e o
BMC112
. Todas essas vertentes de abordagem somática do corpo representam, a
seu modo, o potencial de ampliação da percepção do mundo:
110
Os argumentos de Shubin fazem parte do livro The Universe Within: Discovering the Common History of Rocks, Planets, and People
(2013), mas aqui é destacada fala do autor em apresentação para a organização RSA (Royal Society for the Encouragement of Arts,
Manufactures and Commerce). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=vfp4Ci1b0TI. Acessado em 16 ago. 2013. 111
Esses e outros exemplos podem ser visitados na série de vídeos “Body Story” que explora alguns aspectos da complexidade reticular do
corpo e sua interdependência com o mundo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eILheSPdleY. Acessado em 16 ago. 2013. 112
Como referência, temos tanto o número de resultados de busca para esse tipo de atividade – por exemplo, a busca conjunta dos termos
Yoga e Brasil gera mais de 24 milhões de resultados no Google, e para Tai Chi, mais de 84 milhões, em acesso de 16/08/2013. Outra referência é a grande variedade de vídeos sobre técnicas contemporâneas. No YouTube é possível encontrar vídeos tanto sobre a vida e obra
de Moshe Feldenkrais, formulador do método de educação somática que leva seu sobrenome, como detalhamentos de aulas e discussões
sobre a técnica. Um exemplo é o próprio canal do Feldenkrais Institute. Disponível em: http://www.youtube.com/user/BodyMindCentering?feature=watch. Acessado em 16 ago. 2013. O mesmo vale para o BMC (Body and Mind
Century), com diversas entrevistas da idealizadora do trabalho, Bonnie Bainbridge Cohen, e aulas detalhadas sobre a técnica. Em destaque, o
canal oficial do BMC. Diponível em: http://www.youtube.com/user/BodyMindCentering?feature=watch. Acessado em 16 ago. 2013.
79
“Ao acordar, ao sensibilizar uma dada articulação, adquiro mais um
ponto de equilíbrio em meu corpo, e isso acaba agindo sobre todo o
resto, inclusive sobre coisas que aparentemente nada têm que ver com
músculos e articulações, como a atividade intelectual.” (VIANNA,
2005:99)
O “olhar de dentro” nos ensina que existe um universo vasto resguardado,
mas não isolado, pela superfície mais visual do corpo físico, fruto da complexa
rede que nos constitui.
O melhor caminho para perceber esse universo é a vivência de
experiências corporais que aguçam a propriocepção sensível do corpo. Mas num
estudo como esse podemos recorrer à arte para tentar esclarecer melhor do que
estamos tratando.
Um primeiro exemplo seria da exposição “Body Worlds” (mundos do
corpo), que circula por diversos países desde 2004, mostrando corpos reais por
dentro e por fora, e os efeitos dos diferentes estilos de vida sobre eles. As imagens
das estruturas internas do corpo, em diferentes camadas, nos remetem a refletir e
sentir nosso próprio corpo, trazendo novas percepções sobre ele e dos efeitos de
nossos hábitos. A percepção do corpo como uma janela para nossos modos de
habitar é, em parte, a ideia por trás dessa exposição113
.
Outro exemplo contundente das potencialidades do corpo próprio é dado
pela musicista Evelyn Glennie114
. Surda desde os oito anos, ela se tornou uma das
maiores percursionistas da história da música erudita ao desenvolver a escuta por
todo o corpo e não centrada na audição pelos ouvidos.
O exemplo de Glennie nos mostra que uma perspectiva reticular do corpo
incrementa tanto a percepção de si como o próprio resultado de nossas ações no
mundo. O caso de Glennie é também uma referência para entender como o corpo
dá contornos à relação com a tecnologia. Ela explica como desenvolve uma
relação sensível com os instrumentos que toca e que busca uma empunhadura leve
113
A percepção do corpo como uma janela para nossos modos de habitar é, em parte, a ideia por trás da exposição Body Worlds, que circula
mundo afora desde 2004, mostrando corpos reais por dentro e por fora, e os efeitos dos diferentes estilos de vida sobre eles. Disponível em:
http://www.bodyworlds.com/en.html. Acessado em 16 ago. 2013. 114
Ver apresentação em vídeo para o projeto TED Talks “Evelyn Glennie: How to truly listen”, onde ela faz menção também a discussões
sobre a audição pelo corpo todo, que traz na autobiografia Good Vibrations. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=IU3V6zNER4g&list=PLtFZr15XMrnsnMBeOn3zKa5mRkGZBmvPF&index=5. Acessado em: 18 ago.
2013.
80
das baquetas, mesmo quando procura soar forte um instrumento, pois ao segurá-
las com leveza evita um estresse do impacto da batida sobre os braços e faz o som
reverberar melhor. Mas, principalmente, essa forma de contato a faz se sentir mais
integrada com as baquetas, ao passo que segurando-as com força sente-se
desconectada do instrumento.
Uma excelente alegoria para pensarmos a relação com as redes digitais:
apropriar-se delas negligenciando o corpo próprio limita seu poder de
reverberação, pode gerar impactos a esse corpo e causa uma desconexão, em
comparação à conexão que ocorre quando o corpo se torna suporte para as redes e
não apenas um agente operador.
Finalmente, Glennie mostra como uma relação da rede corpórea com uma
tecnologia pede a integração dos sentidos ao máximo – ela, por exemplo, toca
seus instrumentos descalça para melhor sentir as vibrações dos sons. Se
pensarmos que a sociabilidade reticular do habitar atópico emerge de um corpo
que habita de modo reticular, então a sensorialidade que apoia esse habitar deve
encarnar a natureza da rede, não focando especificamente em um sentido
específico, mas procurando engajar diferentes sentidos de modo integrado.
Esse é o corpo capaz de abolir fronteiras e trazer aos sentidos e aos atos a
percepção de que existimos por conexões dinâmicas, noção condizente com um
planeta que pede ser reconhecido como a rede de redes habitada pelos seres
humanos.
E certamente, esse corpo permeável capaz de repensar a relação com o
mundo, se mantém aberto à relação com as arquiteturas digitais reticulares, que
criam oportunidades tanto para que ele se revisite como para compartilhar seus
aprendizados115
, estendendo o corpo em uma dimensão transorgânica de sua
experiência.
Um exemplo interessante é da disseminação da arte digital contemporânea,
que tem sido bastante focada nas interações com o corpo – um sintoma da
afinidade entre o reticular do corpo e das tecnologias, entre o presencial e o
115
Como no caso de Bonnie Cohen ao citar alguns dos aprendizados de sua formação em técnicas orientais como a yoga e o tai chi chuan,
que alimentaram a técnica Body and Mind Centering elaborada por ela: http://www.youtube.com/watch?v=LtJbxQj82Zg. Acessado em 16
ago. 2013.
81
virtual. Festivais mundo afora como o Plaception116
e o File117
reúnem obras que
propõem experiências geradoras de novas percepções e de um novo imaginário
sobre o corpo próprio, pela assimilação de som, imagens, realidade aumentada,
animações. Para citar apenas um, destaca-se a obra Nigredo, de Marco
Donnarumma118
, que capta os sons de baixa frequência produzidos pelo coração,
pelos músculos e pelo corrente sanguínea dos visitantes, os amplia e retroalimenta
no sistema sensório da pessoa que interage com a obra como novos estímulos
auditivos, visuais e físicos, causando mudanças internas no corpo daquela pessoa,
como o movimento dos órgãos e o comportamento dos nervos ópticos, bem como
mudanças na percepção da imagem própria e do corpo físico como um todo.
Vemos assim que o corpo é actante fundamental para as redes que rejeitam
qualquer bloqueio de acesso ao mundo. Ele próprio se apresenta como fluxo
informativo acessível por todos, basta voltarmos nossa atenção para ele. Nesse
sentido, está ao alcance das redes chamar a atenção para o acesso a este universo
íntimo e fractal, nas mais diversas realidades. Reside aí outro componente
fundamental da sustentabilidade: a mobilização para a mudança.
Muitos são os exemplos de como o corpo é convidado, a partir das redes, a
atuar com outros corpos na mudança de realidades: o projeto Good Gym, que
conecta corredores a missões pela comunidade na Inglaterra119
; os coletivos de
contato-improvisação120
no Brasil que fazem da dança uma experiência de
negociação e prática política121
; os grupos de capoeira espalhados pelo mundo que
compartilham trajetórias sociais históricas e ensinamentos de técnica e da cultura
da capoeira (Marchesi, 2012); e trabalhos que unem dança e educação somática e
se tornam catalizadores de mudanças, como no caso a seguir:
“A modificação do imaginário deve ocorrer na forma de uma
experiência coletiva, numa relação de troca com o grupo, numa sala
de aula, por exemplo. O aluno se desenvolve observando o outro,
116
Trata-se de uma iniciativa que investiga e reúne obras de uma grande variedade de artistas que transformam o espaço em uma experiência
tangível ao modificar ou ampliar os sentidos do corpo humano. Disponível em: https://vimeo.com/62768878. Acessado em 16 ago. 2013. 117
Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (File). Disponível em:
http://filefestival.org/site_2007/pagina_conteudo_livre.asp?a1=308&a2=308&id=2. Acessado em 20 ago. 2013. 118
Cf. Vídeo em https://vimeo.com/69743476. Acessado em 16 ago. 2013. 119
Ivo Gormely idealizou o projeto Good Gym buscando modificar o fato de que desenhamos as facilidades da vida contemporânea
excluindo a atividade física e vivemos excluindo as relações comunitárias. Mais informações em http://www.goodgym.org/how_it_works.
Acessado em 16 ago. 2013. 120
Estilo de dança contemporânea fundamentado em técnicas de propriocepção, de relações de contato físico entre os participantes e de
interação entre os diversos elementos presentes durante a performance de improvisação 121
Mais sobre esse argumento no vídeo “Uma revolução silenciosa – a prática do contato improvisação”. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=t4srxcjPgkE. Acessado em 01 ago. 2013.
82
testemunhando a ação do colega. Por meio de estímulos trazidos pelo
professor e pelos companheiros, as trocas começam a ocorrer,
desencadeando uma rede de mútuas influências benéficas. A
imaginação, materializada em modos diversos de expressão, passa a
não mais se contentar com o programa de TV desprovido de ideias,
com o texto mal elaborado, com a música fácil.” (BERTAZZO, 2004,
p. 31)
Processos de mudança como o mencionado acima demandam tempo e o
corpo nos ensina até mesmo a reconhecer e desfrutar das dinâmicas e dos tempos
dos processos envolvidos nas mudanças, algo fundamental para trilhar a
sustentabilidade em época de banda larga e conexões velozes. Apoiar-se nos
ensinamentos do corpo sobre o tempo e os processos é valioso também para
refletir sobre um fenômeno tão recente quanto o habitar atópico, seja para
entender como suas características se configuram, para encarar impactos positivos
e negativos das tecnologias, seja para lidar com a eventual ilusão de que a
dimensão transorgânica do corpo aniquila seu caráter orgânico.
Para melhor compreensão dessa ideia, podemos pensar nos movimentos de
contração e expansão do corpo, como na inspiração e na expiração, na sístole e
diástole do coração, e nos movimentos de recolhimento e extensão de tronco e
membros122
. Fractais do próprio movimento de contração e expansão da matéria
no universo, essas dinâmicas nos lembram que o esvaziamento é condição para o
preenchimento, que esses processos acontecem ao longo do tempo e que não
existem irreversibilidades, nem perenidades. Se a impermanência123
é uma
característica da sociedade hoje, como nos lembra Favoreto (2006), devemos
atentar para o fato de que todo o movimento vem de uma situação de desequilíbrio
e que todo equilíbrio é cheio de movimento, de energia, de impermanência.
Completamos essa reflexão com as palavras de Klauss Vianna:
“Resumido em compressão e expansão, o movimento humano tanto é
reflexo do interior do homem quanto tradução do mundo exterior.
122
Pegando como exemplo a respiração, uma série de benefícios capazes de modificar nossa relação com o mundo podem ser mencionados,
entre eles a relativização das preocupações, angústias e certezas e uma atitude mais aberta a novas perspectivas, como mostra a reportagem “Aula de Yoga ensina a equilibrar o corpo e a mente”, da TV Globo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=HDfCIE0zQjQ.
Acessado em 16 ago. 2013. 123
O argumento é trazido por Favoreto (2006, p. 7), em citação que faz de Zygmunt Bauman, ao refletir sobre os desafios que os artistas de
dança encontram para manterem uma frequência para o exercício cênico, o trabalho de pesquisa, a relação direta com o público: “Tudo está
agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário. E, por isso que
sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham
tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘auto-evidentes’.” (BAUMAN, Z. A sociedade líquida. Caderno Mais!, Folha de
São Paulo, entrevista, 19 dez. 2003.)
83
Tudo que acontece no universo acontece comigo, e com cada célula
do meu corpo. A espiral crescente, o universo, tem um ponto de
partida em cada um de nós , e é do nosso interior, da nossa
concepção de tempo e espaço, que estabelecemos uma troca com o
exterior, uma relação com a vida.” (VIANNA, 2005, p.101-103)
O corpo nos oferece subsídios até para compreender a necessidade de
novas perspectivas, que não as fundamentadas puramente na razão e originadas do
pensamento linear:
“A razão impõe a reta como caminho mais curto entre dois pontos,
mas nos esquecemos de que ela é tensa e dificilmente será harmônica,
no caso da musculatura humana. Quando o homem escolhe os
movimentos retilíneos e conduz seus músculos a um objetivo
predeterminado, anula a intuição, sobrepõe a racionalidade ao
instinto. Isso não aconteceria se fizesse a opção pela curva ou espiral,
na qual encontraria maior prazer em cada etapa do aprendizado, com
gradual aprofundamento e expansão da consciência.” (VIANNA,
2005, p.103)
Essa observação que se refere à experiência da dança contemporânea - mas
é igualmente verdadeira para a capoeira, por exemplo - nos ajuda a perceber que
dentre os ensinamentos da nossa carne entrelaçada com o mundo a partir de um
trabalho corporal está o de dar espaço para novas perspectivas do pensamento
humano, do próprio estar no mundo:
“Corpo e mente, corpo e pensamento, corpo e imagem constituem
obstáculos para as narrativas da ciência. Ao priorizarem as relações
sociais como foco analítico, as ditas humanidades esquecem-se de que
sentidos, sentimentos, imagens corporais integram e delimitam o
mundo da vida. Creditada ao paradigma cartesiano, essa dualidade
impede que uma hominescência124
– um diferencial da hominização –
seja posta em prática nos dias atuais.” (CARVALHO, 2008, p. 27)
No contexto da sustentabilidade, um exemplo de nova perspectiva para o
pensamento é da história ambiental, tal qual apresentado por Pádua (2010), que
propõe a reflexão sobre uma história não da humanidade, mas da biosfera, da qual
o homem é parte. Vale destacar aqui mais um fenômeno recursivo (Morin, 1994)
– tão recorrentes no habitar atópico -, onde o corpo é capaz de alimentar novas
124
Conceito de Michel Serres.
84
práticas e reflexões e as novas formas de pensar e habitar também reverberam no
corpo:
“Se você chega ao ponto de integrar-se ao ritmo do universo, seu
mundo e seus limites também vão se alargando e sua musculatura se
alongando, ao contrário do que acontece no cotidiano comum, em que
as pessoas, pela repetição do dia-a-dia, reduzem gradativamente sua
vida, atrofiando os músculos.” (VIANNA, 2005, p. 103)
Assim, o quiasma do corpo com o mundo (Merleau-Ponty, 1968) tem no
corpo próprio seu indicador histórico e ontológico. O saber que emana desse
corpo é substrato para a germinação das mudanças em valores, estilos de vida e
estrutura social necessários ao florescimento de uma sociedade sustentável, que
cultiva de fato a Quadratura (Heidegger, 1954).
Algo que remete a uma espiritualidade no sentido de homens dignos de
deuses que dançam (Nietzsche, 1999), como nos permite compreender Garaudy
quando trata da dança de Shiva125
:
“(...) de início a dança é a imagem do jogo rítmico, fonte de todo o
movimento do ser; em seguida, libera o homem ilimitado da ilusão de
ser um indivíduo aprisionado nas fronteiras de sua pele; seu corpo e
seu ser são o universo inteiro finalmente, o “lugar” da dança, o
centro do universo, está no coração de todos os homens. (...) A dança
é então um modo total de viver o mundo; é, a um só tempo,
conhecimento, arte e religião. (...) Ela nos revela que o sagrado é
também carnal e que o corpo pode ensinar o que um espírito que se
quer desencarnado não conhece: a beleza e a grandeza do ato quando
o homem não está separado de si mesmo, mas inteiramente presente
no que faz.” (GARAUDY, 1980, p. 15-16)
125
O relato sobre a dança da divindade hindu associada à transformação é trazida por Garaudy a partir de relato do filósofo e historiador
indiano Ananda Coomaraswamy.
85
6. Considerações finais
A sociabilidade conectiva e colaborativa condicionada pelas tecnologias digitais
reticulares é o meio no qual a sustentabilidade encontra as condições para contaminar e
transformar as características da vida humana que não são mais condizentes com os limites do
planeta e nem da própria sociedade.
Essa cumplicidade entre uma forma atópica de habitar e modos sustentáveis de
desenvolvimento, orientado à ideia de prosperidade desatrelada do crescimento, encontra no
corpo um ingrediente de intensificação das transformações que apoiam a sustentabilidade.
Falamos aqui na mudança de sensorialidade estimulada pelas tecnologias digitais
reticulares, que ajuda a abolir as fronteiras do conhecimento outrora indutoras da concepção
da vida humana separada e independente da natureza que provê as condições para seu
sustento. Falamos também do entrelaçamento com o mundo reticular que frutifica uma nova
forma de habitar, de cultivar a Quadratura, condicionando dinâmicas sociais de conectividade,
integração, colaboração e transparência. Dinâmicas capazes de modificar os fluxos
comunicativos de modo tão intenso que podem dar novo sentido à democracia e à
possibilidade do cidadão interferir, a partir das redes, nos rumos da vida da sociedade, sem a
intermediação obrigatória de instituições que atuam pela lógica dos interesses dissociados do
coletivo, do crescimento sem limites e do consumo.
Assim, o corpo que se comunica em rede, que percebe o mundo por suas conexões e
não por suas segmentações, que entende a importância dos fluxos que garantem a perpetuação
das condições de sustento da vida, é o mesmo que passa a estar no mundo como um actante
que cultiva relações conectivas, que dá passagem para e participa dos fluxos informativos
evidentes nas redes digitais, na sociabilidade presencial reticular, nos ciclos e processos da
natureza, nas potencialidades de florescimento humano.
É nesse sentido que a carne do corpo reticular, em quiasma com a carne do mundo
reticular, revela uma dimensão espontânea de engajamento na sustentabilidade.
O corpo da sensorialidade conectiva torna-se mais sensível ao próprio universo em
rede que o constitui e que o conecta ao universo reticular que ele habita e do qual é fractal.
Lançar a atenção e a propriocepção para nossa condição fractal é intensificar o
processo de transformação ao qual a sociedade se vê impelida pela crise ecossistêmica e das
86
desigualdades sociais que caracterizam o mundo nesse início de século. Estamos tratando aqui
da sabedoria do corpo, das dimensões que ele revela sobre nosso estar no mundo, sobre a
contemplação de uma poesia que reside o “corpo mínimo” de modo similar à poesia do
“corpo imenso”, sobre dimensões de entrelaçamento com o mundo que vão além do consumo
e da acumulação material e dizem respeito a cultivar conexões tão vitais quanto a simbiose
entre os fluxos sanguíneos, a expansão e a contração da respiração, as habilidades cinéticas
que nos mantêm saudáveis e capazes de seguir adiante.
As conexões no universo corporal são tão vastas quanto a infinitude do cosmos e
lançar-se aos saberes que resguardam é reparar o equívoco de séculos de separação cartesiana
de “nós” com nossos corpos. A sensorialidade conectiva avessa às segmentações constitui a
ponte para reconhecer e aprender com o saber encarnado em nós mesmos, latente de um
movimento genuíno de autoconhecimento por técnicas corporais de propriocepção e de
mergulho interno capazes de edificar transformações tão complexas quanto as necessárias
para a perpetuação da espécie humana nesse momento de sua história na Terra altamente
gerador de entropia.
Falamos, portanto, de um fenômeno recursivo, em que transformações de percepção e
sensorialidade alimentam e são alimentadas pelas dinâmicas das tecnologias digitais
reticulares; e estimulam e são estimuladas por uma nova sociabilidade mais permeável aos
fluxos conectivos entre os seres humanos, a natureza e as tecnologias.
Processo esse que acontece pela conjunção entre a dinâmica espontânea e
engendradora da sustentabilidade do corpo no habitar atópico e o potencial de uma intenção,
uma atenção deliberada para esse corpo, que é capaz de indicar, intuir e incutir
transformações mais ousadas do que permitiria isoladamente a razão, fontes para novos
equilíbrios dinâmicos de nossas relações com a natureza, com as tecnologias e com os outros
seres humanos.
O saber do corpo é aquele que facilita a um só tempo conectar a noção de
espiritualidade a uma nova perspectiva científica, como da Economia Ecológica, de
interdependência e coevolução da economia, dos ecossistemas, dos seres humanos.
Após séculos de dominação do corpo por uma sensorialidade associada a tecnologias
frontais, indutoras de estímulos restritos, afastada da natureza e tão indiferente a ela que
parecia natural o ato de dominá-la, fragmentá-la e negligenciar suas conexões - do mesmo
modo como faziam a ciência e as instituições em relação ao próprio corpo -, estamos a
87
desenvolver uma forma de habitar que cultiva o reticular, ligada a uma percepção que busca
as conexões, e a um corpo que concebe estar entrelaçado ao mundo. É uma oportunidade
preciosa na história humana. Aproveitar as emanações espontâneas dessa forma de habitar
para modificar as relações com a natureza e a sociedade, que parecem estar num estado limite,
é cultivar céu, terra, deuses e mortais. Buscar intencionalmente o corpo como guia nesse
processo é deixar-se levar pelo mateiro que revela os caminhos da floresta densa, o grafiteiro
que encontra as brechas na cidade e a reinventa para o espanto e encantamento de todos, o
hacker que afrouxa os nós da rede para deixar liberta sua magia conectiva e recriadora.
88
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