Post on 08-Nov-2018
DAS PALAVRAS POR DIZER AO ASSUJEITAMENTO SEM AS PALAVRAS? COM-PARTILHA-ANDO AGÊNCIAS COM ALGUNS JOVENS KAIOWÁ DE
PANAMBIZINHO/MS Simone Becker (UFGD/CNPq)1
simonebk@yahoo.com.br Esmael Alves de Oliveira (FCH/UFGD)2
esmael_oliveira@live.com
Resumo: O presente ensaio intenta disparar reflexões sobre o modo como discursos e práticas de assujeitamentos são constituídos, reiterados e transgredidos em torno de e por grupos minoritários, no caso específico por agentes Kaiowá de Panambi/Mato Grosso do Sul. Ao enunciarmos de que se trata de um “ensaio”, o que se busca é com-partilhar no sentido mais foucaultiano atribuído ao “ensaiar-se”, algumas das impressões mais plurais e críticas possíveis dos resultados até então “pinçados” dos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos junto aos Kaiowá da TI de Panambizinho/MS. Mais especificamente, nossos dados/enunciados emergem de nossas imersões junto à escola indígena – Pa´i Chiquito, Dourados/MS e de nossas múltiplas interlocuções lá estabelecidas. Para além do flanar de maneira mais rizomática possível pelo espaço, buscamos há alguns meses interagir especialmente com os jovens (em detrimento das categorias “criança e/ou adolescente”) Kaiowá de duas "turmas regulares" – 8º e 9º anos. A escolha pelas interlocuções com os jovens se deu estrategicamente, face ao fato de sobre eles repousarem o peso, por vezes, estigmatizante das faltas, dos excessos, isto é, da transgressão ao estabelecido, porque outsiders. Aliás, se educar vem de educere e esse se liga ao “conduzir para fora”, Foucault já nos inspira há tempos a perceber o quanto ela, a Escola, caminha de mãos dadas com as grades prisionais de outras instituições, incluindo a Prisão. Ao invés de colocar para fora, ela aprisiona os sentidos que podem e devem ser plurais no processo educacional que alia sabor a saber – sapere e sapore. Com os indígenas Kaiowá percepções outras na relação com os Karaí (os não indígenas) nos permitem perceber sentidos mais plurais quanto à maneira como eles produzem o espaço da escola e vice-versa. Assim, essas percepções, vivências, experiências e trocas com os jovens Kaiowá nos possibilitam pensar sobre a importância de se criar estratégias que permitam outras dinâmicas de ensino-aprendizagem e, deste modo, nos questionarmos sobre os processos de institucionalização que produzem violências, subalternidades e invisibilidades. Não haveria outras maneiras de produzirmos nossa existência humana e social para além do modelo que a escola ocidental historicamente nos impõe? Formas outras de rechearmos o conteúdo da formatação que as escolas nos impõem. Há outras maneiras de nos produzirmos e de nos colocarmos nas mais múltiplas relações sociais.
Palavras-chave: Antropologia, Psicanálise, Guarani-Kaiowá
1 Doutora em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente associada I da Universidade Federal da Grande Dourados (FADIR-PPGANT-PPGS) e bolsista de produtividade CNPq. 2 Doutor em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Algumas das (conscientes) inquietações aqui apresentadas foram suscitadas a partir
da leitura da obra “Palavras para nascer” (SZEJER, 1999), mas também por conta de nosso
diálogo, dos a(u)tores que assinam, com jovens indígenas Kaiowá da Terra Indígena (TI) de
Panambizinho, localizada a aproximadamente 20km de Dourados-MS, no distrito de
Panambi. Esse é um dos poucos lugares legitimados pelo papel da lei brasileira como sendo
dos indígenas, no estado de Mato Grosso do Sul (ANDRADE e BECKER, 2013), em meio a
um contexto onde pre-vale-ce a soja e o capital do agronegócio (BECKER, OLIVEIRA,
MARTINS, 2016; BECKER, OLIVEIRA, CAMPOS, 2016).
Dualidade – capital e agronegócio - que faz sentido para os sentidos ríspidos do des-
respeito em relação a sujeitos que não vivem suas experimentações do que é o viver sob os
mesmos reg®amentos. Eis as ameaças de entrar no tato do contato com outros possíveis e
onde as reações violentas são (re)produzidas com rispidez. Por mais que os verbos sejam em
si mesmos agentes e então sujeitos/performativos (inspirados tanto em Zélia Duncan quanto
em Judith Butler), trazendo em si fluxos de contradições. Eis o verbo-ação-movimento
“reg®ar”. Quais são os múltiplos sentidos que tal palavra oferta aos nossos sentidos?
Ao anunciarmos que regaremos algo, a vida que banhamos/molhamos/irrigamos
florescendo à nossa mente fantasiosa são as das flores e afins, com o “r” cravado no meio de
regar, tão arranhado nos exercícios de experimentação das falações de letras, sílabas e
palavras, sinalizando para a existência de regras misturadas aos regares, nem sempre áridas
e/ou impostas. O desafio parece-nos morar na capacidade de potencializarmos as interações
entre os agentes da gente, em detrimento da reprodução de representações. Como bem coloca
Viveiros de Castro, em Metafísicas canibais (2015, p.111-112):
o conhecer não é mais um modo de representar o desconhecido, mas de interagir com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar , de refletir ou de comunicar (D&G, 1991). A tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o diverso sob a representação, passando a ser a de “multiplicar o número de agências que povoam o mundo (Latour 1996a). Os harmônicos deleuzianos são audíveis. Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia. Multiculturalismo.
Nossas interações em du(et)o pelo enlace entre nós com os jovens de Panambizinho
foram disparadas com um projeto de extensão coordenado por uma das pessoas a(u)toras. Os
contrapelos em forma de chamamentos por parte da comunidade de Panambizinho para que lá
estejamos-sendo têm nos (en)levado para o espaço da escola, Pa’i Chiquito.
Desde o primeiro dia de trabalho de campo conjunto, um das inquietações suscitada e
com-partilhada por Esmael foi: em que medida a estrutura da escola, apesar de se localizar
dentro de uma comunidade indígena e ter como perspectiva pedagógica uma prática
“intercultural”, pouco se coadunava com o contexto de onde estava situada e também em
relação ao público atendido: crianças e jovens indígenas. Para Esmael (Oliveira) foi
emblemático tanto a estrutura da escola, quanto algumas mensagens fixadas em algumas
salas, como também a própria forma de organização da sala de aula e das formas de relação
estabelecidas entre professores e alunos/as.
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Impressões que por imagens imprimem também os agenciamentos desses a-gentes3
sobre o famigerado modelo prisional da escola não indígena, considerando as regências do
3 Usamos essa decupagem da palavra agente/a-gente para sublinhar a concomitância de multiplicidade de sentidos dessa combinação. “Gente” é usado para referenciarmos pessoas (nos incluindo) que fazem parte de um mesmo grupo relacional, com modos de ser-estar-fazer similares. Ao mesmo tempo, “agente” é o sujeito-verbo que dá vida à ação, e que no coletivo da gente capilariza rizomaticamente os movimentos de propagação dos ditos e dos feitos. Algo que tende a ofertar ao termo sujeito e assujeitamento maior pluralização dos sentidos para além das relações de dominação, onde a re-elação de se faz a partir do reencontro com o sublime do agente
maestro Michel Foucault. Orquestrações tecidas especialmente em Vigiar e Punir
(FOUCAULT, 1983), Em Defesa da Sociedade (FOUCAULT, 2010) e em a Microfísica do
Poder (FOUCAULT, 2001). A partir das três obras, observamos o modo como o Estado
(re)produz dispositivos que atravessam a vida no que há de mais biológico na e da sua
construção para potencializar separação assimétrica de corpos merecedores de dignidade. As
vidas dos indígenas tendem a serem mais precarizadas em termos, por exemplo, de acesso a
direitos e a espaços por parte do Estado (BUTLER, 2015) do que outras. Como nos co-move
Butler em “quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, em um dos itens nomeado
como “apreender a vida”, a despensadora das ontologias principiológicas, para re-pensarmo-
nos na interação com esses jovens indígenas:
Se queremos ampliar as reivindicações sociais e políticas sobre os direitos à proteção e o exercício do direito à sobrevivência e à prosperidade, temos antes que nos apoiar em uma nova ontologia corporal que implique repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social (BUTLER, 2015, p.15).
A imagem-movimento-da-pintura na parede abre alas à escola Pa´i Chiquito e nos re-
mete a como os saberes dos meses que encadeiam e enlaçam a passagem do ano-calendário-
judaico-cristão para os Kaiowá se de-cantam pelo sabores-sentidos das cores engendrando
novas tessituras significativas que subvertem a lógica eurocêntrica e apontam para a quebra da
hegemonia do discurso logocêntrico homogeneizador historicamente constituído. Ali os
meses não apenas passam a ser enunciados a partir da língua nativa guarani, mas
principalmente evocam ciclos da vida que permitem uma compreensão de sentidos outros que
não aqueles da temporalidade ocidental (Fabian, 2013). Tempos e cores que se replicam nas
frutas ainda por eles comidas-colhidas, e no círculo virtuoso nietzschiano de como dentro da
prisão-escola eles se reinventam e a reinventam.
Acompanhemos alguns desses sentidos por eles atribuídos aos seus sentidos
propulsores de ações e agenciamentos no espaço em tela.
no e como coletivo (ver VIVEIROS DE CASTRO, 2016 para os sentidos potencializados nos sentidos dos direitos coletivos envolvendo indígenas).
Com relação às mensagens castradoras havia muitas com conteúdo enunciando
interdições: “não se pode usar o computador da secretaria para trabalhos pessoais”, “não se
pode colocar os capacetes de motocicletas em cima dos assentos existentes na secretaria”,
“não se pode isso”, “não se pode aquilo”...Muitos “nãos”, muitos “não pode”.
Muitas palavras interditas, mal-ditas. Se levarmos em conta, como afirma Myriam
Szejer (1999) que o sujeito da psicanálise é o sujeito da linguagem, fica4 a pergunta: mas
quem tem o direito de ser sujeito? Se a linguagem nos torna sujeitos, não existem processos
político-sociais, e não apenas psíquicos, que negam o acesso à linguagem? À fala? À
capacidade de ser, de tornar-se sujeito? Num contexto do “não pode”, “não faça”, “não é
permitido”, de uma permanente interdição, negação do outro, não há espaço para a existência,
ou pelo menos não a existência autônoma. Não se daria aí a emergência de regime de verdade
que busca produzir um su-jeito sem palavras? Haveria um sujeito sem palavras, já que nos
instituímos e somos instituídos pelas palavras5?
Durante o trabalho de campo, acima relatado ou atado em relatos, ocorreram duas
situações que consideramos paradigmáticas: uma delas referente a uma fala feita pelas
crianças indígenas durante uma atividade de desenho que realizávamos e outra diretamente
relacionada ao comportamento dos mesmos durante o intervalo para o lanche – sob os
disparos indeléveis da sineta do “recreio” (re-creio onde eles não só creem como operam uma
forma lúdica de circular correndo e muito pelo espaço de fora da escola). Logo que
começamos o trabalho, em um clima bem descontraído, as crianças e jovens estavam bem à
vontade com nossa presença.
4 De tudo como escreve de-clamando Carlos Drummond de Andrade, em Resíduo, “fica sempre um pouco de tudo”. 5 Vem à mente a instigante fala de Joziléia Jagso Inácio Jacodsen em duas mesas-redondas na semana de antropologia da UFPR, ocorrida em setembro último. Ao tocar na questão da permanência e ingresso dos indígenas nas pós-graduações stricto sensu Brasil, ainda não afora, ela mencionou o quanto o aparelho do Estado brasileiro é perverso. Isto porque exigiu do índio ao longo do processo de integração – ou genocídio escancarado como projeto político – apre(e)nder e manejar o idioma português e não falando sua língua nativa. A antropologia explorará o quanto falar de etnicidade é falar de linguagem (CUNHA, 2009), e então das fronteiras sempre fluidas entre o “eu” e o “outro” que nas sociedades indígenas em regra se dá condicionado à relação. Mas mais do que isto, o quanto quem detém o poder pode re-produzir vida mais precária (BUTLER, 2003) ainda a partir da negação de uso da linguagem falada, como no caso dos indígenas. Afinal como nos acalenta Walter Benjamin, não há produção do humano se não há (re)produção de memória (1987).
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As crianças brincavam o tempo inteiro e, nesse aspecto, é possível observar que a
jocosidade como um elemento constantemente presente do processo de interação. Tal
comportamento não está livre de tensionamentos, principalmente com relação aos professores
não indígenas. Há certa exigência de que as crianças e jovens mantenham uma seriedade.
Como esquecer o formalismo cartesiano que se apresenta em nossas escolas, e quiçá a
indígena não esteja ilesa?
Certamente uma transposição de um modelo que se não impede de todo a fala, a
engessa, a normatiza e, por que não dizer, a medicaliza à medida que normaliza – evocamos
Georges Canguilhem, um dos mestres de Foucault e outros dos rebeldes franceses, que em O
Normal e o Patológico sinaliza que o normal é aquele capaz de produzir norma, algo que num
dado contexto o patológico não o é (ainda). Em relação a esse ponto, alguns comentários
chamaram muito nossa atenção: quando os indígenas eram interpelados pela professora a se
“comportarem” e prestarem atenção no que estávamos falando, eles, em tom de “brincadeira”
começaram a acusar uns aos outros de não ter tomado o medicamento. Isso não passou
despercebido por nós. Naquele mesmo momento tentamos instigá-los a falar mais e, no
entanto, não entraram em mais detalhes.
Na semana seguinte durante outra atividade, voltaram a mencionar a tal falta de
“tomar o comprimido” para aqueles que estavam na agitação dando vida à sala de aula tão
prisional em suas carteiras que lá não são do modelo militar da continência. Se não, vejamos,
dois modelos bem distintos em proposta que recheiam salas escolares e universitárias. Em
comum, ambas tornam des-confortável a presença e a permanência no contexto que produz
com texto entre os diálogos permeados por silenciamentos entre as gentes-agentes que lá
disparam agenciamentos.
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Fizemos uma nova tentativa de tentar estimulá-los a falar mais sobre isso. Afinal o que
era o comprimido? Quem precisava tomar o comprimido? Por que tinham que tomar? Quem
orientava tal procedimento? A resposta foi imediata: era preciso tomar o medicamento para se
controlar. Há muitos relatos de medicalização dos indígenas na cidade de Dourados - embora
até o momento não haja nenhuma pesquisa a esse respeito - e que geralmente são associados
à algumas situações de violência ou aos casos de suicídio. Em todos eles, a noção de que os
indígenas precisam ser contidos, estão desequilibrados, doentes, etc. Em todas essas
representações uma noção de patologização do sujeito que está à margem, com vidas
precarizadas pelo Estado e que trans-bordam as contenções das estruturas estatais. Cabe
compartilhar que há algumas pesquisas que suscitam justamente o crescente ato de
medicalização dos detentos do sistema carcerária brasileiro. O movimento talvez seja
potencializar os múltiplos sentidos dos agitos, dos gritos, do convite à decantação da
expressão LOU-CURA-ME, dessencializando a pulsão de morte contida nas seringas que
contêm os contidos remédios.
Uma breve digressão às contações de Hestórias de uma das a(u)toras, talvez valha à
pena, com a reprodução da ligação entre elx, Simone Becker e sua avó Alzira Becker6, em
meio às tessituras dos trilhares-com-partilhares do que há de fatal ou de fado, no amor-
amizade mediadas pelas cartas de tarot ofertas por Alzira à Simone:
Aliás, outra pessoa e segunda história importante na minha trajetória – porque ligada às curas pela palavra, foi a minha avó paterna, Alzira, que em “seu ser sendo” de alemã com o seu respectivo dialeto, manuseando comedidamente o português, colocava o tarot tanto para ela mesma –subvertendo as regras das tarólogas, quanto para outros da família. Ao ler as cartas para mim, fazia questão de enfatizar a beleza da carta do “louco” com toda a sua simbologia atrelada à criatividade e nunca ao sentido negativo e patológico do termo. Afinal, ela me mostrava esta imagem e interpretava dizendo que o louco é o andarilho que anda pelas ruas, pelas cidades, pelos espaços levando consigo uma trouxinha do que é indispensável enquanto bagagem para a viagem...em especial, ela remarcava a necessidade de ser louca em situações de conflitos que nos acompanham vida afora, ou seja, perante o inevitável que são as situações conflitantes de nossa vida, me incitava a deixar o lugar acomodado que eu me encontrava em situações de conflito para que eu tentasse enxergar por outros vieses o evento que deixaria de ser o mesmo se eu mudasse o lócus do meu olhar e/ou da minha escuta. Assim, tal como Foucault inspirado em Nietzsche fará na história da loucura, minha avó, Alzira com o tarot seu, cigano/Marselha, desde cedo mostrou-me o quanto ser louca é ser fora de série. Incitava-me a ser sempre fora de série, fora do comum, ser louca para lidar,
6 Trecho da palestra de Simone Becker no espaço Ágora realizada em março de 2016, e intitulada: Flanando por alguns ditos e escritos de Michel Foucault: do “normal” ao “patológico” lembrando da (lou)cura.
sobretudo, com as situações de conflito que recheiam o nosso bem-viver. Não por acaso, a carta do louco é a única sem numeração no tarot (nos que há, ele tem o número 0)...percebam se no sistema capitalista a maioria da normalidade é passível de ser formatada apertando e rosqueando e desparafusando parafusos – no sistema em série fordista, tapados com uma viseira, ser louco é sair deste comum...pois a norma, como encanta Manoel de Barros, deveria ser sempre desfazer a norma...
Eis a belezura da lou-cura:
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A segunda situação que muito nos chamou a atenção foi no momento do recreio
(intervalo para o lanche das crianças). Ao toque da sineta, as crianças e jovens saíram em
disparada para o pátio. Ali se mantiveram apenas até o momento em que comiam o lanche que
era distribuído para eles. Comendo muito apressadamente, o ato seguinte foi o de sair dos
limites do espaço da escola. A criançada parecia outra fora dos “muros” - contenções da
escola. Nada se comparava ao comportamento reprimido visto em sala de aula. Um imenso
contraste entre uma vida que pulsa (fora) e uma “morte” que tenta se estabelecer nos corpos
docilizados pelo sistema de ensino (dentro).
Quando sabor e saber deixam-voltam a rimar. Certamente não podemos ignorar as
resistências (re-existências) que se operam no interior do sistema (as brincadeiras jocosas, a
fala em guarani, a corrida para fora do espaço escolar, o adormecer em meio às falações
disciplinadoras nas aulas), mas é visível que é fora da estrutura institucional que a “fala”
emerge, as palavras se tornam bem-ditas, o corpo se rizomativa e o amor fati se estabelece. O
amor fati à la Nietzsche acaba por ser a capacidade de nós, animais humanos, nos deixarmos
impactar (pacto interno) pelos sentidos dos acontecimentos cotidianos que nos afetam nos
sentires.
Palavras que também se costuram tecendo tessituras imagéticas. Se o simbólico nos
institui, em especial, para interagirmos nos enlaçando ao outro que de nós diverge, por mais
projeções que produzamos, esse simbólico não se faz apenas pela falação atada aos signos
grafados ou gravados das letras – do alfabeto. Faz-se por silêncios (“repare bem no que não
digo” leminskeando), por imagens, por gestos, enfim, por colocar nas relações estabelecidas a
expressão de nossas posições de sujeitos no mundo. E então, des-pensemos o processo de
educação, porque algumas de nossas tantas tocas-prosas prenhes de significados se deu
quando em roda estávamos em meio à contação de Hestórias. Numa delas, um dos jovens nos
alertou que as estórias sobre o lobisomen – (identificado com o cunhado-estrangeiro-aliado7),
eram lendas e não histórias. Afinal, era assim que a professora tinha “ensinado”. Num
contexto que tende a constituir corpos docilizados a passagem da negação da palavra à
“fabulação” do imaginário e práticas sociais remete à produção e naturalização de um sujeito
assujeitado. Em cena formas sutis de violência que negam a alteridade ao Outro-mesmo.
7 Claude Lévi-Strauss considerado o antropólogo do século a partir da teoria da aliança, inspirado no dom maussiano, sugere que as sociedades são instituídas pela troca de mulheres, não significada como objeto-coisa, mas agente que é tanto agenciada quanto se agencia no flanar por entre diferentes famílias, tendo o casamento selado uma em comum. Ao invés de guerrear, estabelece-se a paz por intermédio do casamento.
Educar' vem do latim educare, por sua vez ligado a educere, verbo composto do
prefixo ex (fora) + ducere (conduzir, levar), significando 'conduzir para fora', ou seja, preparar
o indivíduo para o mundo. Um indivíduo relacional, produzido na unicidade da troca entre
dois diferentes, correspondendo à fórmula n-1 deleuze-guattariana. O que seria essa fórmula?
“O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída: escrever a n-1” (FOUCAULT, 2013, s/p).
A proposta da multiplicidade faz enlace como se rizoma8 fosse com as noções de
Nietzsche ligadas ao colocar em perspectiva, pluralizando os sentidos experimentados na
interação dos contatos com os agentes e os seus agenciamentos espraiados no papel (adentro e
afora). Nesse sentido, como se Gregório de Matos fossem, os jovens da Pa´i Chiquito
subvertem o modelo domesticador de corpos e dilacerador de sabores nos saberes que é o
panóptico escolar. Subversão que se dá com eles não escondendo quando dormem, dis-
persam, riem, sorriem...
8 Como raiz de bulbos que não detém uma entrada e uma saída, posto que se impõe como agenciamentos que se espraiem solo adentro-afora-transbordando sua própria estrutura-forma
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Descolada da estrutura física, prédio da Escola, há um espaço outro ao seu lado que
imprime à roda, sob as coberturas de palhas, uma dinâmica outra da tentativa de resgatar o
sabor do saber. Isto porque mescla tipos de mesas-cadeiras menos ofensivos e impostores de
imposições próprios do modelo militar, como adiante retomamos. No círculo a palavra tende a
circular e enfim, possibilidades de expressões e interações menos corriqueiras na cadência da
constância da disciplina ditando os exames escolares.
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Rememoremos num movimento de amenizar a pobreza de nossos replicares de
experimentações da vida vivida vívida, que a palavra saber rima etimologicamente com a
sabor. Dito de maneira menos hermética e mais poética, ambas in-corporam origens de
sentidos similares. Segundo o "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa" de José Pedro
Machado, a palavra saber vem do latim 'sapere', que significa «ter gosto; exalar um cheiro, um
odor; perceber pelo sentido do gosto; fig., ter inteligência, juízo; conhecer alguma coisa,
conhecer, compreender, saber". A palavra sabor, segundo o mesmo dicionário, deriva do latim
'sapore-', que quer dizer "gosto, o sabor característico de uma coisa, em sentidos próprios e
figurado; no pl., coisas de bom gosto; odor, perfume; gosto, acção de provar; (...)."
Imagem-em-ação 7
Esse cenário acima narrado, nos ajuda a pensar em que medida há um contexto de
medicalização do corpo, do sujeito. Medicalização essa entendida no sentido amplo. Pensada
a partir da perspectiva foucaultiana, poderíamos até dizer que há uma tentativa de docilização
dos corpos constituída a partir de um aparato biopolítico. Saber-poder, que opera endógena e
exogenamente, ou seja, no interior dos corpos e consciências, por meio da medicalização em
si, mas também nos comportamentos e subjetividades, através de um aparato
institucionalizante (escola, hospital/posto de saúde, etc).
Para Eduardo Sá (2008) a escola não tem sido uma amiga para as crianças. Além
disso, segundo ele, na sociedade contemporânea o trabalho tem assumido o protagonismo e os
vínculos têm se precarizado. Não poderíamos dizer, a partir disso, que numa sociedade
marcadamente virtualizada, individualista e medicalizante, como a atual, há uma intensa
criação e proliferação de subjetividades assujeitadas? Mecanismos mais sutis e eficazes,
sobretudo por seu caráter de dissimulação ao apontar para práticas ditas “inclusivas” mas que
no fim geram exclusão. Se em algum momento de nossa história a criança já foi um adulto em
miniatura (ARIÈS, 1981), hoje ela é uma objeto manipulável aos desejos de adultos, desejos
que as tornam praticamente um robô. E isso vem atrelado não apenas à criação de novos
comportamentos, desejos, expectativas, enfim, subjetividades, mas também da produção de
novas patologias: Transtorno do Déficit de Atenção (TDA), Transtorno do déficit de Atenção
com Hiperatividade (TDAH), Anorexia, Bulimia, Stress, dentre outras. Mas afinal, são
“crianças doentes” ou adultos adoecedores? Qual tem o papel da escola nesse processo? Há
um protagonismo da autonomia ou da medicalização-docilização do sujeito?
Enfim, esses e outros dilemas nos apontam para a necessidade de uma reflexão sobre
o lugar da infância – sem infantes no sentido literal - e juventude no mundo contemporâneo
no campo das ciências humanas e da saúde, mas também nos interpelam a pensarmos nos
desafios de um fazer antro-poético (e não lógico) diante dessas novas subjetividades que tem
engendrado formas perversas de assujeitamentos desses sujeitos. Quais estratégias de
resistência para o enfrentamento dos dispositivos que buscam negar a fala, o direito ao tornar-
se sujeito? Nesse cenário, os indígenas têm muito a nos ensinar sobre o bem viver, sobre o
Teko Porã. Mas estamos dispostos a dar-lhes a fala? Ou mesmo a escutá-los? Eis o desafio...
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. BECKER, Simone; OLIVEIRA, Esmael Alves de; CAMPOS, Marcelo da Silveira. “Onde fala a bala, cala a fala”. Disponível em: http://brasildebate.com.br/guarani-kaiowa-onde-fala-a-bala-cala-a-fala/. Acesso em:jul2016. BECKER, Simone; OLIVEIRA, Esmael Alves de; MARTINS, Cátia Paranhos. “Onde fala a bala, cala a fala”: resistências às políticas da bancada da bala, do Boi e da Bíblia em MS. Disponível em: http://encenasaudemental.net/post-destaque/onde-fala-a-bala-cala-a-fala-resistencias-as-politicas-da-bancada-da-bala-do-boi-e-da-biblia-em-ms/. Acesso em:jul2016. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização, 2003. BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”. RJ: Civilização Brasileira, 2015. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac& Naify, 2009. FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis/RJ: VOZES, 1983.
FOUCAULT, Michel. MICROFÍSICA DO PODER. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FOUCAULT, Michel. O CORPO UTÓPICO, AS HETEROTOPIAS. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
SZEJER, Myriam. Palavras para nascer: A escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
SÁ, Eduardo. Textos com Educação. Coimbra: Edições Almeida, 2008.