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AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO
LUDMILA CERQUEIRA CORREIA
Joo Pessoa - PB 2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
PS-GRADUAO EM CINCIAS JURDICAS REA DE CONCENTRAO EM DIREITOS HUMANOS
LUDMILA CERQUEIRA CORREIA
AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Jurdicas da Universidade Federal da Paraba, rea de concentrao em Direitos Humanos, na linha de pesquisa excluso social, polticas pblicas e direitos humanos, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre.
Orientadora: Dra. Monique Guimares Cittadino. Co-orientadora: Dra. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima.
Joo Pessoa - PB 2007
C824a Correia, Ludmila Cerqueira.
Avanos e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito / Ludmila Cerqueira Correia. Joo Pessoa, 2007.
174 p.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Paraba, Programa de Ps-Graduao em Cincias Jurdicas, Concentrao em Direitos Humanos.
Orientadora: Dra. Monique Guimares Cittadino Co-orientadora: Dra. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
1. Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico 2. Sade Mental 3. Reforma Psiquitrica 4. Direitos humanos
CDU - 342.7
LUDMILA CERQUEIRA CORREIA
AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO
Data da defesa: 23 de novembro de 2007.
Componentes da Banca Examinadora:
________________________________________________________________
Professora Doutora Monique Guimares Cittadino (Orientadora)
________________________________________________________________
Professora Doutora Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima (Co-orientadora)
________________________________________________________________
Professora Doutora Sueli Gandolfi Dallari (Avaliadora Externa - USP)
________________________________________________________________
Professor Doutor Jos Ernesto Pimentel Filho (PPGCJ/UFPB)
________________________________________________________________
Professora Doutora Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva (CCS/UFPB)
Joo Pessoa - PB 2007
A todas as pessoas que ainda acreditam
que um outro mundo possvel.
A Eduardo Arajo, pela poesia da vida
e pela incansvel luta pelos direitos humanos.
AGRADECIMENTOS
Depois de tantas madrugadas, conversas, canes, dvidas, reflexes, poesias, pensamentos,
devaneios, inquietudes, emoes e trocas, tenho a sensao de que este trabalho no termina
aqui. A caminhada foi longa, mas o caminho no era deserto. Nesta trajetria, contei com
pessoas valiosas, s quais agradeo com todo o meu amor.
s irms que ganhei durante o Mestrado e levo no meu corao, Sara e Ciani, por tudo.
Ao ncleo duro dos direitos humanos, Cristina e Ricardo, vocs so especiais.
A Fredys Sorto, pelo exemplo de vida e dedicao docncia.
A Maria e a Carlos, funcionrios do PPGCJ/UFPB, pela enorme ateno e cuidado.
A Edda Fontes, pelo acolhimento e pela amizade construda.
Aos alunos e alunas da turma de Servio Social da UFPB com a qual realizei o estgio
docncia, pela confiana e por confirmar que ensinando se aprende todo dia.
Ao Programa ALFA, na pessoa do Professor Emilio Santoro, pelo conhecimento
compartilhado e pela orientao durante a minha pesquisa na Itlia.
Ao Dr. Franco Scarpa e s demais pessoas que me receberam para realizar a pesquisa no
Manicmio Judicirio de Montelupo Fiorentino na Itlia, pelos textos, vivncias e idias
compartilhadas.
Ao Dr. Paolo Tranchina pela disponibilidade e dilogos sobre a Reforma Psiquitrica.
minha famlia italiana, Sonia, Carlo e Fabio, pela solidariedade e pelo amor incondicional.
A Marcus Vinicius, pelo carinho e amizade de sempre, e a Thiago Pithon pela amizade
iniciada com o fio da internet e consolidada pelas idias, inquietudes e carinhos partilhados.
direo e aos funcionrios do HCT-BA por possibilitar a pesquisa de campo deste trabalho.
s amigas e aos amigos que compreenderam a minha ausncia nesse perodo e me deram
fora para continuar.
A Monique Cittadino, que topou o desafio da orientao deste trabalho.
A Isabel e Vaninha, por compartilhar saberes, vontades e sonhos.
minha me e ao meu pai, pelo apoio, pela fora e pelo amor inesgotveis.
A todas as pessoas loucas, pela poesia que impulsiona e descreve nossas vidas.
Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e,
assim descobrindo-se, com eles sofrem,
mas, sobretudo, com eles lutam.
Paulo Freire
RESUMO
O presente trabalho analisa os avanos e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito internadas em Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP). Procedeu-se a uma reviso terica sobre a constituio da instituio manicomial judiciria, destacando o conceito de periculosidade social que ainda fundamenta o modelo assistencial asilar/segregacionista para o tratamento dessas pessoas. Discutem-se os dispositivos da legislao penal brasileira referentes s pessoas com transtornos mentais que cometem delito, salientando a criao e a consolidao da medida de segurana, alm de abordar a questo da sade no HCTP e a reafirmao desse modelo de separao e excluso. A concepo contempornea dos direitos humanos foi tomada como referncia, observando a condio de sujeitos de direitos desse grupo vulnervel. Realiza-se, ainda, reviso bibliogrfica na rea de direitos humanos e sade mental tendo como parmetro os instrumentos internacionais e nacionais de proteo de direitos humanos, com destaque para aqueles especficos das pessoas com deficincia e das pessoas com transtornos mentais. Enfatiza-se o Movimento da Reforma Psiquitrica, que tem subsidiado propostas de reorientao do modelo assistencial hegemnico em sade mental, e a Poltica Nacional de Sade Mental. Discutem-se as possibilidades de mudana no modelo de ateno sade mental das pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil a partir dos princpios da Reforma Psiquitrica e da Lei n 10.216/2001. A anlise da implementao da garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito realizou-se mediante a estratgia de pesquisa de estudo de caso do Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia (HCT-BA). Procedeu-se a uma coleta de dados relativos ao HCT-BA e a anlise dos dados orientada pelos princpios da pesquisa qualitativa. Verificou-se que, embora tenham sido efetuadas algumas mudanas no HCT-BA, a instituio tem preservado o seu carter asilar/carcerrio, evidenciando uma tradio fundada na negao dos direitos humanos dos internos. Apresentam-se, ainda, as experincias j iniciadas no Brasil visando reorientar o modelo de ateno sade mental dos loucos infratores. O avano normativo no consolida, de per si, a materializao das recentes conquistas advindas a partir da Reforma Psiquitrica, particularmente quanto ao segmento das pessoas com transtorno mental autoras de delito.
Palavras-chave: Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico. Sade Mental. Reforma Psiquitrica. Direitos Humanos.
ABSTRACT
The present work analyses the advances and setbacks in the assurance of human rights of those who are criminally insane, hospitalised in Custody and Psychiatric Treatment Hospitals (CPTH). Theoretical revision was held on the constitution of the asylum institution, emphasising the concept of social dangerouness, which still supports the segregationalist asylum assistance model. Discussions are held about topics on the Brazilian penal system related to the criminally insane, emphasising the creation and consolidation of precautionary action, besides approaching the matter of healthcare at CPTH and the reaffirmation of this segregationalist, excluding model. The contemporaneous concept of human rights was taken as a reference, taking into consideration the condition of subjects of rights of this vulnerable group. There is still a bibliographical revision on the field of Human Rights and Mental Health, having as a parameter the international and national instruments of protection to the human rights, emphasising those specific of the handicapped or mentally insane. Emphasis is given to the Psychiatric Reform Movement, which has supported proposals of reorientation of the hegemonic assistance model in Mental Health, and the national policies on it. The possibilities of changes in the model of attention and Mental Health of those criminally insane in Brazil, following the principal of the psychiatrist reform and the Law n 10.216/2001. The analysis of the implementation of the assurance of human rights for the criminally insane was
analized through a case study at Custody and Treatment Hospital of Bahia. There was data collection related to HCT-BA and the analysis of data orientated by the principles of qualitative research. It was verified that, although some changes had been made at the hospital, the institution has preserved its asylum characteristics, making clear a tradition based on the negation of human rights of those hospitalized. Finally, experiments previously started in Brazil are presented, aiming to reorient the model of attention to the criminally insane. The improvement of the legislation, per se, does not guarantee the materialization of recent strides gained through the Psychiatric Reform, particularly in relation to criminals with mental disorders.
Key words: Custody and Psychiatric Treatment Hospitals, Mental Health, Psychiatric Reform, Human Rights.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CF Constituio Federal
CFM Conselho Federal de Medicina
CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade
CP Cdigo Penal
CPP Cdigo de Processo Penal
DAP Departamento de Assuntos Penais
DEPEN Departamento Penitencirio Nacional
DUDH Declarao Universal dos Direitos Humanos
HCT-BA Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia
HCTP Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico
INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social
LBHM Liga Brasileira de Higiene Mental
LEP Lei de Execuo Penal
LOS Lei Orgnica da Sade
MJ Ministrio da Justia
MPE-BA Ministrio Pblico do Estado da Bahia
MTSM Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental
OEA Organizao dos Estados Americanos
OMS Organizao Mundial da Sade
ONU Organizao das Naes Unidas
OPAS Organizao Pan-Americana da Sade
PAILI Programa de Ateno Integral ao Louco Infrator
PAI-PJ Programa de Ateno Integral ao Paciente Judicirio
PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos
PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
PNDH II Programa Nacional de Direitos Humanos II
PSF Programa Sade da Famlia
SAP Superintendncia de Assuntos Penais
SCNES Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade
SEDES Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate Pobreza
SESAB Secretaria da Sade do Estado da Bahia
SJCDH Secretaria da Justia, Cidadania e Direitos Humanos
SRT Servio Residencial Teraputico
SUS Sistema nico de Sade
TAC Termo de Ajustamento de Conduta
VEPMA Vara de Execues Penais e Medidas Alternativas
SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................... 14
CAPTULO I Criao do manicmio judicirio no Brasil ........................................... 19
1. Manicmio: que lugar esse? ............................................................................................ 19 1.1. Breve histrico da assistncia psiquitrica brasileira ...................................................... 26 2. A necessidade de um manicmio judicirio ................................................................... 35 2.1. Manicmio judicirio no Brasil ...................................................................................... 39 2.2. Periculosidade social e loucos criminosos ...................................................................... 44
CAPTULO II Direito X Sade no manicmio judicirio ............................................ 52
1. Cdigos penais de 1830, 1890 e 1940 ................................................................................ 52 1.1. Instituio da medida de segurana ................................................................................ 56 2. Reforma penal de 1984 ...................................................................................................... 63 2.1. Medida de segurana: tratamento? .................................................................................. 67 3. Sade no manicmio judicirio .......................................................................................... 71 3.1. Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico: reafirmao do modelo hospitalocntrico de separao e excluso .............................................................................. 76
CAPTULO III Direitos humanos e loucos infratores .................................................. 81
1. Concepo contempornea dos direitos humanos ............................................................. 81 1.1. Direitos humanos e grupos vulnerveis .......................................................................... 83
2. Instrumentos internacionais e nacionais de proteo e defesa dos direitos humanos dos loucos infratores ............................................................................................... 89 2.1. Normativa internacional .................................................................................................. 91 2.2. Constituio Federal e normativa brasileira .................................................................... 97 2.2.1. Reforma Psiquitrica e Poltica Nacional de Sade Mental ...................................... 103
CAPTULO IV O lugar dos direitos humanos num manicmio judicirio .............. 112
1. Reforma Psiquitrica: reflexos no manicmio judicirio? ............................................... 112 2. Acesso aos direitos humanos dos internos no Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia: estudo de caso .................................................................................. 115 2.1. Estratgia e tcnicas da pesquisa .................................................................................. 116 2.2. Contextualizao do Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia .............................. 119 2.3. Mudanas e permanncias no Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia ................ 128 3. Garantindo os direitos humanos dos loucos infratores: um caso contra-hegemnico ..... 152
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 156
REFERNCIAS ................................................................................................................. 161
14
INTRODUO
A cultura existente no imaginrio da sociedade e no modelo assistencial
asilar/carcerrio para o tratamento das pessoas com transtornos mentais no tem assimilado,
ao longo do tempo, os princpios dos direitos humanos: universalidade, indivisibilidade,
interdependncia e inter-relao. A prpria expresso impressa no denominativo comum
relativamente aos internos configura a natureza desta excluso: loucos, independentemente de
serem autores de delito ou no. Esta cultura evidencia a presena de um paradigma fundado
na negao dos direitos humanos dos pacientes psiquitricos.
No Brasil, o debate sobre sade mental e direitos humanos se ampliou na dcada de
1970, a partir do Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental, que passou a denunciar as
violaes de direitos civis e o modelo privatizante e hospitalocntrico adotado pelo Estado e a
elaborar propostas visando uma transformao da assistncia psiquitrica. Foi a partir desse
Movimento, que fundou a luta antimanicomial e originou o Movimento pela Reforma
Psiquitrica, que se iniciou a crtica, no Brasil, da psiquiatria como prtica de controle e
reproduo das desigualdades sociais, e o debate acerca da necessidade da
desinstitucionalizao.
Ao estudar a histria da sade mental no Brasil e no mundo, verifica-se a criao do
manicmio como uma resposta social loucura (BASAGLIA, 1985; PESSOTTI, 1996;
COSTA, 2003; FOUCAULT, 2004a). O manicmio se constitui como lugar da separao e
segregao, configurando-se como uma instituio total destinada s pessoas excludas da
sociedade (DE LEONARDIS, 1988; GOFFMAN, 2003). Desde a sua origem, tal instituio
objeto de denncias sobre as condies das pessoas ali internadas. Nessas denncias, tambm
consta a situao dos manicmios judicirios.
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O manicmio judicirio o lugar institucional destinado s pessoas com transtornos
mentais autoras de delito. No Brasil, tal instituio existe desde 1923, e, com a Reforma Penal
de 1984, passou a ser denominada Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP),
integrando o sistema penitencirio. Embora seja um hospital, est vinculado s Secretarias
Estaduais que administram o sistema prisional, e no s Secretarias Estaduais de Sade.
A manuteno do modelo hegemnico de ateno psiquitrica aos loucos infratores
tem favorecido uma assistncia custodial, impossibilitando mudanas que venham a integrar a
pessoa sua comunidade e, especialmente, o respeito aos direitos individuais previstos pela
Constituio de 1988. Ainda hoje so constantes a falta de tratamento adequado; o excessivo
uso de medicamentos; condies sanitrias precrias; maus-tratos; insalubridade; uso de
quartos fortes ou quartos individuais1; falta de acesso justia; reduzido nmero de
profissionais e despreparo dos existentes; ausncia de mecanismos que preservem o vnculo
com os familiares. Tais violaes demonstram o comprometimento dessa instituio com um
modelo ultrapassado, que toma o sujeito como objeto da sua ao e no garante os seus
direitos.
A inexistncia de uma poltica nacional para a reorientao do modelo de ateno nos
HCTP, a falta de projetos estaduais para a reinsero social assistida das pessoas ali
internadas e a ausncia de um vnculo desta instituio com o Sistema nico de Sade (SUS),
tm mantido a pessoa com transtorno mental autora de delito margem das mudanas que
vm sendo efetuadas no mbito do modelo de ateno sade mental no Brasil a partir da Lei
n 10.216/2001.
1 Os quartos individuais tm cerca de 10 metros quadrados; no tm cama; num dos cantos, h uma latrina
daquele tipo em que a pessoa se agacha para usar; e o paciente fica completamente nu. Funcionam de forma parecida com as celas solitrias dos presdios convencionais, para onde so enviadas as pessoas presas que apresentam mau comportamento. Nos hospitais psiquitricos comuns, sempre foram usados como castigo. No Brasil, eles foram formalmente banidos atravs da Portaria n 224/92 do Ministrio da Sade, porm, ainda so encontrados em algumas instituies psiquitricas, como os Manicmios Judicirios.
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As pessoas com transtorno mental autoras de delito, na sua maioria, ainda so
assistidas sob a noo da periculosidade social, constituindo-se alvo de uma dupla
estigmatizao: loucas e criminosas. Esse tratamento, que no prev qualquer insero nos
servios de referncia do SUS, configura-se como um dos elementos constituintes das
violaes dos direitos humanos dessas pessoas.
Ao longo do sculo XX e no incio do sculo XXI, diversos documentos internacionais
na rea da sade passaram a estabelecer as conexes entre o direito sade, os direitos
humanos e os direitos das pessoas com transtornos mentais (OMS, 2005). Alm disso, devem-
se ressaltar os instrumentos nacionais, como a Constituio Federal de 1988 e a legislao
sobre sade mental, incluindo-se as portarias e resolues que tratam dessa matria.
A articulao entre sade mental e direitos humanos interessa sociedade, aos
profissionais, aos usurios dos servios e s respectivas famlias. J no se justifica a
dicotomia do binmio indivduo-sociedade, pois a discusso sobre a dignidade da pessoa,
independentemente de ser paciente ou autora de delitos, plasma contedos das cincias da
sade, das cincias jurdicas e das cincias sociais.
Este trabalho objetiva, portanto, analisar os avanos e impasses na garantia dos
direitos humanos das pessoas internadas nos HCTP, examinando o conjunto de normas e as
tendncias de mudana legislativa, na conjuntura internacional e brasileira, para, a seguir,
discutir as peculiaridades, impasses e perspectivas na garantia dos direitos das pessoas com
transtornos mentais autoras de delito. Ressalte-se que na delimitao do presente estudo,
considera-se a relao entre a concepo contempornea dos direitos humanos e a garantia
dos direitos desse grupo vulnervel.
O trabalho dividido em quatro captulos. No primeiro, apresenta um histrico da
instituio manicomial e da assistncia psiquitrica brasileira. Aborda-se a origem do
tratamento dispensado s pessoas com transtornos mentais, bem como a constituio do saber
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mdico psiquitrico e a sua imposio como modelo de assistncia sade mental. Em
seguida, desenvolve uma breve anlise histrica da instituio manicomial judiciria desde a
sua criao at os dias atuais, destacando o carter ambguo de sua constituio: hospital e
priso.
No segundo captulo, discutem-se os dispositivos da legislao penal referentes s
pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil os Cdigos Penais de 1830,
1890 e 1940; a Lei n 7.209 de 11 de julho de 1984 alm do Cdigo de Processo Penal e da
Lei de Execuo Penal, salientando a criao e a consolidao da medida de segurana e o
conceito de periculosidade, alm de abordar a questo da sade no HCTP.
O terceiro captulo refere-se ao tema dos direitos humanos e sua concepo
contempornea, identificando as pessoas com transtornos mentais autoras de delito como
integrantes dos chamados grupos vulnerveis, ressaltando a sua condio de sujeitos de
direitos. A partir desse cenrio se passa a estudar a normativa internacional e o ordenamento
jurdico interno de proteo e defesa dos direitos humanos, especialmente os instrumentos
voltados s pessoas com transtornos mentais, enfatizando a Constituio Federal de 1988 e a
legislao sobre sade mental, com destaque para a Lei n 10.216/2001, tendo em vista que se
constituem ferramenta eficaz para promover o acesso aos servios de ateno em sade
mental, alm de promover e proteger os direitos humanos das pessoas com transtornos
mentais autoras de delito.
O quarto e ltimo captulo discute os reflexos da Reforma Psiquitrica no HCTP,
abordando as possibilidades de mudana no modelo de ateno sade mental das pessoas
com transtornos mentais autoras de delito no Brasil a partir dos princpios da Reforma
Psiquitrica e da Lei n 10.216/2001. Analisam-se os avanos e impasses na garantia dos
direitos dessas pessoas a partir de um estudo de caso realizado no Hospital de Custdia e
Tratamento da Bahia (HCT-BA), procurando identificar se as prticas institucionais ali
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exercidas assimilaram os princpios da Reforma Psiquitrica ou ainda favorecem uma
assistncia custodial, dificultando ou impossibilitando o acesso daquelas pessoas aos direitos
humanos. So apresentadas a estratgia e as tcnicas da pesquisa, a contextualizao dessa
instituio manicomial judiciria bem como os dados coletados no HCT-BA, na Vara de
Execues Penais e Medidas Alternativas, na Secretaria da Justia, Cidadania e Direitos
Humanos e na Secretaria da Sade do Estado da Bahia, bem como a anlise desses dados.
Apresenta, ainda, as experincias pioneiras no Brasil visando reorientar o modelo de ateno
sade das pessoas com transtorno mental autoras de delito.
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CAPTULO I Criao do manicmio judicirio no Brasil
1. Manicmio: que lugar esse?
A palavra manicmio deriva do grego: mana significa loucura e komin quer
dizer curar. Portanto, a partir do seu significado, se infere que o manicmio seja um instituto
destinado ao tratamento das pessoas com transtornos mentais. O termo se refere aos dois tipos
de hospital psiquitrico, a instituio destinada cura de tais pessoas, e aquele que h
algum tempo se definia como manicmio judicirio, hoje denominado Hospital de Custdia e
Tratamento Psiquitrico, voltado para as pessoas com transtornos mentais que cometeram
delito.
Nos sculos XVI e XVII, para o acolhimento dos loucos existiam os Hospitais e as
Santas Casas de Misericrdia. Estas instituies configuravam-se como espaos de
acolhimento piedoso, nos quais os religiosos recebiam os excludos, doentes, ladres,
prostitutas, loucos e miserveis para dar-lhes algum conforto e, de certo modo, diminuir seu
sofrimento (AMARANTE, 1998; FOUCAULT, 1984, 2004a). Assim, o hospcio tinha uma
funo caracterstica de hospedaria, representando o espao de recolhimento de todas
aquelas pessoas que simbolizavam ameaa lei e ordem social. Conforme afirma Barros
(1994b, p. 29), a excluso dos loucos estava vinculada a uma situao de precariedade
comum a outras formas de misria, de pobreza e de dificuldade econmica.
Durante a Idade Mdia, o enclausuramento no possui uma finalidade vinculada
medicalizao, existindo apenas uma prtica de proteo e guarda (AMARANTE, 1998). O
significado de tal prtica se referia a uma excluso genrica e no a uma segregao
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institucionalizada. E, somente no sculo XVIII, o internamento comea a ter caractersticas
mdicas e teraputicas (FOUCAULT, 2004c, 2004b).
Naquele perodo histrico, alm das medidas legislativas de represso, foram criadas
as casas de correo e de trabalho e os hospitais gerais, que eram destinados a retirar das
cidades os mendigos e anti-sociais em geral, a oferecer trabalho para os desocupados, punir
a ociosidade e reeducar a partir de uma instruo religiosa e moral. Os loucos e os demais
deserdados, confinados nos pores das Santas Casas e nos hospitais gerais, sofriam diversos
tipos de punio e tortura (RESENDE, 2001).
Porm, no final do sculo XVIII, com os princpios da Revoluo Francesa e a
declarao dos direitos do homem nos Estados Unidos, aumentam as denncias contra as
internaes arbitrrias dos doentes mentais e seu confinamento junto com as demais pessoas
marginalizadas socialmente, e contra as torturas perpetradas, disfaradas ou no sob a forma
de tratamentos mdicos, de que eram vtimas como destaca Resende (2001, p. 25). Assim, se
inicia um movimento de reforma em pases como a Frana, Inglaterra e Estados Unidos, que
culminou com a criao do manicmio: este espao seria destinado para os loucos, que, ento,
seriam separados das outras pessoas que eram encontradas nos asilos e receberiam cuidado
psiquitrico sistemtico.
O manicmio surge no final do sculo XVIII como local para ser tratada a loucura,
com ocultamento e excluso, com vistas a uma cura, de acordo com a ordem fundada pelo
mdico francs Philippe Pinel, a qual representa o marco inaugural da fundao da chamada
Medicina Mental ou Psiquiatria. Ele criou o primeiro mtodo teraputico para a loucura na
modernidade, denominado Tratamento Moral, baseado em confinamentos, sangrias e
purgativos, e, finalmente, consagrou o hospital psiquitrico como o lugar social dos loucos
(FOUCAULT, 2004b; COSTA, 2003; RESENDE, 2001). O referido mtodo consistia em
usar do rigor cientfico e da insuspeio moral do mdico para convencer o louco a voltar
21
sanidade mental, buscando analisar e classificar seus sintomas (BIRMAN, 1978; PESSOTTI,
1996; COHEN, 2006b).
De acordo com Castel (1978), o mtodo criado por Pinel estabelecia a doena como
problema de ordem moral. Pinel acreditava que o isolamento dos alienados era essencial
para observar a sucesso de sintomas e descrev-los, e organizava o espao asilar a partir dos
diversos tipos de alienados existentes com esse objetivo. O princpio do isolamento
constituia-se como recurso necessrio para retirar o alienado do meio confuso e
desordenado e inclu-lo em uma instituio disciplinar regida por normas, regulamentos, e
diversos mecanismos de gesto da vida cotidiana que reordenariam o mundo interno daquele
sujeito e o resgatariam para a razo (PELBART, 1989). Assim, transformava o hospital em
instituio mdica, e no mais filantrpica, para que o discurso e prticas mdicos se
apropriassem da loucura.
O internamento no manicmio, diferentemente daquele feito nas Casas de Correo,
adquire status mdico e tal instituio se torna lugar de cura: seu objetivo vai alm da
conteno, e no o faz introduzindo a cincia mdica, mas atravs de uma nova forma
institucional que une as funes controversas de proteo da sociedade do perigo e tratamento
curativo das doenas psquicas. O espao que era somente o emblema da separao social se
transforma em um terreno em que o mdico e o doente troquem suas diferentes linguagens.
Neste momento, o internamento adquire credibilidade mdica e se torna o destino da loucura,
isolando aquilo que ela representa: perigo social e doena mental.
Segundo Resende (2001), esse representou o ponto de partida da assistncia
psiquitrica de massa e, para alguns autores nacionais (UCHA, 1981; COSTA, 1989), seus
princpios teriam inspirado o pensamento dos alienistas brasileiros e moldado a organizao
da assistncia ao doente mental no Brasil. Ele acrescenta ainda que enquanto alguns autores
consideram tal movimento uma revoluo no tratamento aos loucos, outros afirmam que os
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reformadores do sculo XVIII nada mais teriam promovido seno a substituio da violncia
franca pela violncia velada da ameaa e das privaes. (RESENDE, 2001, p. 26). Nesse
sentido, Amarante (1998, p. 25-6) afirma: o gesto de Pinel ao liberar os loucos das correntes
no possibilita a inscrio destes em um espao de liberdade, mas, ao contrrio, funda a
cincia que os classifica e acorrenta como objeto de saberes/discursos/prticas atualizados na
instituio da doena mental. Na verdade, mesmo com a instituio da funo mdica, na
maior parte das instituies manicomiais, as condies de vida das pessoas ali internadas
ainda eram deplorveis (PESSOTTI, 1996).
Diferentemente dos asilos (instituies com mera funo de abrigo ou recolhimento) e
dos hospcios (espaos ou edifcios, administrados como partes dos hospitais gerais
destinados exclusivamente aos alienados), os manicmios caracterizavam-se por acolher
apenas doentes mentais e dar-lhes tratamento mdico sistemtico e especializado. Conforme
Pessotti (1996, p. 152), tais instituies j existiam antes do sculo XIX, embora sua funo
hospitalar ou mdica fosse, ento, reduzida a bem pouco, visto que a figura do mdico
especialista em tratar loucos, o alienista ou o freniatra, surgiria apenas no sculo XIX.
Assim, o nome manicomio designa o hospital psiquitrico, porque antes da reforma
implementada por Pinel, a administrao dos hospcios estava muito longe de qualquer
projeto psiquitrico (PESSOTTI, 1996, p. 153).
Para Silva Filho (2001, p. 91), a positividade do alienismo constituiu-se praticamente
em responder a uma demanda social e poltica que objetivava controlar, sem arbtrio, a
desordem social configurada no personagem do louco. Ainda segundo esse autor (2001, p.
91),
o alienismo instaura uma nova relao da sociedade com o louco: a relao de tutela, que se constitui numa dominao/subordinao regulamentada, cuja violncia legitimada com base na competncia do tutor versus a incapacidade do tutelado, categorizado como ser incapaz de intercmbios racionais, isento de responsabilidade e, portanto, digno de assistncia.
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A transformao do hospital numa instituio medicalizada a partir da ao
sistemtica e dominante da disciplina, da organizao e esquadrinhamento mdicos
constatada por Foucault (2004a), que descreve o perodo da grande internao, momento
em que a loucura transformou-se em questo social, passando a ser regulada e contida numa
instituio. No se tratava de um reconhecimento positivo da loucura, nem de um tratamento
mais humano dos alienados, mas de uma meticulosa operao na qual confluem pela primeira
vez o pensamento mdico e a prtica do internamento (FOUCAULT, 2006).
O hospital pineliano era caracterizado pela excluso e pelos maus-tratos das pessoas
ali internadas, acarretando, assim, muitas crticas das pessoas que defendiam formas no
violentas no trato com os loucos. Neste sentido, Costa (2003, p. 147) afirma que a crescente
contestao quela instituio alm de levar a criao de novos espaos fora dos limites das
cidades, onde o internado dispusesse de melhores condies de habitabilidade, tambm deu
origem busca de outras concepes que pudessem trazer maior clareza sobre a natureza
humana e sua subjetividade.
Com as crticas ao modelo pineliano, se consolida um primeiro modelo de reforma:
a colnia de alienados, que tinha como objetivo reformular o carter fechado do asilo
pineliano, trabalhando com as portas abertas, estabelecendo, assim, um regime de no
restrio ou maior liberdade. Porm, segundo Amarante (1998, p. 27), o modelo das colnias
serviu, na prtica, para ampliar a importncia social e poltica da psiquiatria, e neutralizar
parte das crticas feitas ao hospcio tradicional, concluindo que, com o passar dos anos,
apesar do seu princpio de liberdade e de reforma da instituio asilar clssica, as colnias no
se diferenciam dos asilos pinelianos.
De acordo com Pessotti (1996, p. 9), o manicmio foi o ncleo gerador da psiquiatria
como especialidade mdica, devendo a interveno teraputica restituir o equilbrio rompido
24
pela doena mental. E a partir da segunda metade do sculo XIX, nas palavras de Amarante
(1998, p. 26), a psiquiatria passa a ser um imperativo de ordenao dos sujeitos.
Nasce a psiquiatria como saber cientfico, o psiquiatra como mdico especialista e o
manicmio como nica instituio destinada ao tratamento teraputico da doena mental
(DINCAO, 1992) e, contemporaneamente, como instrumento de defesa social do perigo que
a loucura traz consigo. A idia que resta confirmada a de que longe de ser uma instituio
que visa um tratamento das pessoas com transtornos mentais, o manicmio se valida a partir
dos efeitos de excluso que opera (AMARANTE, 1998).
As pessoas com transtornos mentais sempre foram aquelas excludas da sociedade e
constituam-se como o objeto da psiquiatria, no mesmo sentido em que a denominada
medicina mental vinha sendo desenvolvida no sculo XIX em toda a Europa (FOUCAULT,
2004a, 2006; MACHADO, et al, 1978). Conforme afirma Amarante (1998, p. 46) as prticas
psiquitricas pretendiam muito mais intervir/assistir ao paciente, feito objeto, do que interagir
com a existncia-sofrimento que se apresentava.
Ainda de acordo com Amarante (1998, p. 48),
Na realidade, o problema das instituies psiquitricas revelava uma questo das mais fundamentais: a impossibilidade, historicamente construda, de trato com a diferena e os diferentes. Em um universo das igualdades, os loucos e todas as maiorias feitas minorias ganham identidades redutoras da complexidade de suas existncias. Opera-se uma identificao entre diferena e excluso no contexto das liberdades formais e, no caso da loucura, o dispositivo mdico alia-se ao jurdico, a fim de basear leis e, assim, regulamentar e sancionar a tutela e a irresponsabilidade social.
Desde o primeiro instrumento normativo voltado ateno especfica ao louco, a lei
de 1838 na Frana, verifica-se a inteno de construir um status jurdico especfico para este
sujeito. Como afirma Castel (1978, p. 37-8), O equilbrio entre delitos e as sanes inscreve-
se em um sistema racional porque o criminoso responsvel por seus atos. O louco coloca um
problema diferente [...]. No poderia ser sancionado, mas deveria ser tratado.
25
A configurao e afirmao do manicmio como nico espao para acolher e tratar as
pessoas com transtornos mentais revela, ainda, o poder disciplinar exercido pela psiquiatria
sobre tais pessoas. Como esclarece Barros (1994b, p. 35), No final do processo encontramos
o louco, destinatrio das prticas e objeto da relao entre filantropia e medicina mental,
dotado do estatuto de alienado segundo um conjunto de cdigos tericos, mdicos e
burocrtico-administrativos. E, ainda, no manicmio sero aplicados, concretamente, aqueles
poderes institucionais voltados disciplina e ao controle social dos sujeitos perigosos: nos
futuros manicmios, os saberes no permanecero teorias abstratas, mas iro tornar-se
tcnicas aplicadas e real exerccio do poder disciplinar por parte da psiquiatria (FOUCAULT,
2006).
Naquela instituio, o sujeito no era considerado como um cidado, sendo apenas
mais um internado, e, logo diagnosticado, classificado e submetido ao controle e disciplina
determinados pelos mdicos e funcionrios que ali atuam. Ele vigiado constantemente,
devendo obedecer as normas impostas, sob pena de punio. Enfim, o manicmio ocupa a
vida da pessoa com transtorno mental em todos os seus nveis.
O manicmio configura-se como uma instituio total, segundo Goffman (2003, p.
170-71), pois o internado vive todos os aspectos de sua vida no edifcio do hospital, em
ntima companhia com outras pessoas igualmente separadas do mundo mais amplo. Nas
instituies com este perfil as sociedades contemporneas preservam suas pretenses de
controle e de dominao.
De acordo com Basaglia (1985), algumas instituies da sociedade como a famlia, a
escola, a universidade, a fbrica e o hospital, so caracterizadas por uma ntida diviso de
funes, atravs da diviso do trabalho, que classifica os que tm poder e os que no tm. Tais
instituies podem ser definidas como instituies da violncia, tendo em vista a relao de
opresso e a situao de excluso ali existentes.
26
O isolamento evidenciou ainda mais o processo de objetificao do sujeito internado,
despersonalizando-o e tornando-o uma pessoa sem vontades nem estmulos. Nesse sentido, ao
longo da trajetria da institucionalizao da loucura, verificam-se as contradies das prticas
mdicas e a ineficcia daquele modelo teraputico, centrado no hospital psiquitrico,
organismo de tratamento (FOUCAULT, 2002b, p. 266) .
1.1. Breve histrico da assistncia psiquitrica brasileira
Conforme j evidenciado, a Psiquiatria surge no sculo XIX, estabelecendo o hospital
psiquitrico como seu espao principal, o qual comea a surgir nas principais cidades
brasileiras a partir de 1852. Assim, o modelo manicomial foi adotado no Brasil como forma
de assistncia psiquitrica s pessoas com transtorno mental.
Seguindo a tendncia das teorias desenvolvidas na Europa, a assistncia psiquitrica
no Brasil esteve sempre de acordo com a manuteno da ordem social (MACHADO, et al,
1978) e com o desenvolvimento de uma psiquiatria que toma o sujeito como objeto do saber
psiquitrico (BASAGLIA, 1985; PELBART, 1990; COSTA, 1990; FOUCAULT, 2004a).
Nas palavras de Figueiredo (1988, p. 124), do final do sculo XIX at o final dos anos 20 do
sculo passado, a loucura no Brasil vai sendo incorporada pelo saber psiquitrico e o grande
hospcio inaugurado como sede deste saber.
No incio do sculo XIX, os ditos loucos eram encontrados em todos os lugares: nas
ruas, nas prises e nas chamadas casas de correo, em asilos de mendigos e, ainda, nos
pores das Santas Casas de Misericrdia (AMARANTE, 1994). Nessa poca, era muito difcil
encontrar um louco sendo tratado em enfermarias ou hospitais. Ressalte-se que as Santas
27
Casas de Misericrdia somente passam a cuidar das pessoas com transtornos mentais,
destinando-lhe locais especficos dentro da sua estrutura, por volta do final do sculo XVIII e
incio do sculo XIX (RIBEIRO, 1999), dando-lhes um tratamento diferenciado das demais
pessoas ali hospedadas, mas, ainda, de cunho caritativo. Como descreve Resende (2001, p.
35), eram amontoadas em pores sem assistncia mdica, entregues a guardas e carcereiros,
seus delrios e agitaes reprimidos por espancamentos ou conteno em troncos,
condenando-os literalmente morte por maus-tratos fsicos, desnutrio e doenas
infecciosas.
Sobre a origem dessas pessoas, Amarante (1994, p. 75) afirma:
As esparsas referncias que se pode encontrar demonstram que podem ser encontradas preferentemente dentre os miserveis, os marginais, os pobres e toda a sorte de prias, so ainda trabalhadores, camponeses, desempregados, ndios, negros, degenerados, perigosos em geral para a ordem pblica, retirantes que, de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo que se convenciona englobar sobre o ttulo de doena mental.
O nmero de loucos recolhidos nas Santas Casas no era grande, e, por isso, tambm
eram encontrados nas prises, ao lado de criminosos, condenados ou no (RESENDE, 2001).
Ademais, naquelas instituies no havia qualquer atendimento mdico-hospitalar. Observa-
se, assim, que at o sculo XIX, inexistia uma estruturao, organizao ou disposio para
cuidar das pessoas com transtornos mentais como indivduos que necessitavam de cuidados
especiais (RIBEIRO, 1999).
Sem muita diferena dos tempos atuais, a sociedade do sculo XIX via no louco uma
ameaa segurana pblica, sendo o recolhimento aos asilos a nica maneira de lidar com a
pessoa com transtorno mental. Essa atitude dirigida aos loucos, autorizada e legitimada pelo
Estado por meio de textos legais editados pelo Imperador, tinha o objetivo de oferecer
proteo sociedade, enquanto mantinha tais pessoas reclusas. O Estado imperial que deveria
acolher, proteger e tratar aquelas pessoas, adotava como nica medida a recluso.
28
A crescente presso da populao para o recolhimento dos alienados inoportunos a
um lugar de isolamento e o questionamento de alguns mdicos e intelectuais frente s
condies subumanas das instituies asilares fizeram com que o Estado Imperial
determinasse a construo de um lugar especfico com o objetivo de trat-los. Conforme
aponta Resende (2001, p. 38-9), se verificavam trs objetivos contraditrios: uma indicao
prioritariamente social, a remoo e excluso do elemento perturbador, visando a preservao
dos bens e da segurana dos cidados, e no outro extremo, uma indicao clnica, a inteno
de cur-los.
Neste contexto de ameaa ordem e paz social, surgem as primeiras instituies
psiquitricas no Brasil. Assim, foi criado o Hospcio Dom Pedro II, inaugurado em 05 de
dezembro de 1852, na cidade do Rio de Janeiro, mais tarde denominado Hospcio Nacional de
Alienados (COSTA, 1980; UCHA, 1981). De forma gradativa, este modelo assistencial se
desenvolveu e se ampliou em todo o territrio nacional, consolidando e reproduzindo no solo
brasileiro o hospital psiquitrico europeu como o espao socialmente legitimado para a
loucura (FIGUEIREDO, 1988).
Acerca da legislao sobre assistncia psiquitrica e direitos das pessoas com
transtornos mentais, pode-se afirmar que o seu conjunto comea com o decreto imperial de 18
de julho de 1841, que funda a psiquiatria institucional e estatal no pas, indo at o Decreto n
24.559, de 3 de julho de 1934, sendo que nesse intervalo, foram elaborados 16 decretos
referentes a tais pessoas (DELGADO, 1992).
O incio da assistncia psiquitrica pblica no Brasil data da segunda metade do sculo
XIX. Os primeiros hospitais so criados no pas, especificamente, para abrigar loucos sobre o
nascimento da psiquiatria, como corpo de saber mdico especializado. De acordo com
Resende (2001, p. 56), psiquiatria cabia simplesmente recolher e excluir as sobras humanas
que cada organizao social, de cada momento histrico, tinha produzido.
29
Todos os estabelecimentos criados no pas at o final do sculo XIX, com a finalidade
de internar os doentes mentais, ofereciam um tratamento que tinha como objetivo maior
afast-los da sociedade do que realmente trat-los e minorar seu sofrimento (RIBEIRO,
1999, p. 20). Mesmo com tais instituies, se verifica, como no perodo anterior aos
manicmios, a existncia de maus-tratos, espancamentos, falta de higiene, fome, resultante de
m ou ausncia de alimentao (RIBEIRO, 1999). Acerca da violncia e dos maus-tratos
perpetrados contra os pacientes, Figueiredo (1988, p. 125) cita as sesses de tortura com
banhos de choque trmico e a malarioterapia, consideradas prticas cientficas consagradas.
Segundo ele, o controle j era objeto implcito da instituio. Cabe salientar, ainda, que no
final do sculo XIX no Brasil, ainda no existia uma lei especfica de proteo s pessoas com
transtorno mental. Assim, conforme afirma Corra (1999, p. 94), elas eram encaminhadas s
casas de sade, aos hospcios e s prises sem nenhum preceito legal que disciplinasse o
referido ato de seqestro, a conservao, o respeito ao patrimnio dos doentes, dentro dos
princpios de direito e justia.
As internaes eram assunto de interesse pblico, permanecendo assim at o incio do
sculo XX, quando uma simples ordem policial era suficiente para autoriz-las
(FIGUEIREDO, 1988). O hospital psiquitrico no existia enquanto lugar de cura. Sobre a
sua real funo, ressalta Resende (2001, p. 39):
Remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir, tratar. O peso relativo de cada um desses verbos na ideologia da nascente instituio psiquitrica brasileira pendeu francamente para os dois primeiros da lista, os demais no entrando nem mesmo para legitim-los. A funo exclusivamente segregadora do hospital psiquitrico nos seus primeiros quarenta anos de existncia aparece, pois, na prtica, sem vus ou disfarces de qualquer natureza.
Ademais, alm da segregao, aquele estabelecimento exercia a funo de controle
social. De acordo com Figueiredo (1988, p. 119), o hospital ingressa no cenrio brasileiro, no
Segundo Reinado, para exercer esta funo numa sociedade em transformao e, portanto,
30
geradora de conflitos e contradies localizados no espao de luta das relaes capital-
trabalho.
Nesse histrico, merece destaque a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), que
foi criada em 1923, no perodo da chamada Repblica Velha, e tinha como objetivo melhorar
a assistncia psiquitrica e aperfeioar o cuidado aos loucos (COSTA, 1981; RIBEIRO,
1999). A Liga assimilou os ideais eugenistas, sendo influenciada, assim, pelos ideais nazi-
facistas que se fortaleciam na Europa. Analisando esse Movimento, Costa (1981, p. 52)
afirma que os programas eugnicos da LBHM eram a soluo psiquitrica encontrada pelos
psiquiatras para resolver os problemas culturais que eles enfrentavam enquanto cidados.
Ainda segundo esse autor, tal movimento alcanou uma profunda repercusso sobre a
intelectualidade brasileira das trs primeiras dcadas do sculo XX, que comeou, ento, a
preocupar-se com a constituio tnica do povo brasileiro (COSTA, 1981, p. 30-3). E de
acordo com Ribeiro (1999, p. 26), no se pode desvincular o pensamento psiquitrico desse
movimento da ideologia dominante na sociedade brasileira poca, porque a Liga no teria
encontrado espao para se difundir se no houvesse uma receptividade positiva por parte da
sociedade a ideais comuns aos existentes na Alemanha, que encantavam a elite dirigente no
Brasil. Porm, deve-se ressaltar que alguns psiquiatras de renome, poca, se posicionaram
contra a eugenia e a higiene social da raa, desenvolvendo atividades voltadas ao
aperfeioamento assistncia psiquitrica e humanizao do atendimento, com o
reconhecimento da Liga.
Uma outra experincia implementada no pas foram as colnias agrcolas, em
complemento aos hospitais tradicionais j existentes, as quais baseavam-se no trabalho, tendo
como objetivo devolver sociedade pessoas tratadas e curadas, aptas para o trabalho
(PORTOCARRERO, 2002). Apesar de se configurar como uma tentativa de soluo
teraputica, o hospital agrcola tinha a nica funo que j caracterizava a assistncia ao
31
alienado, no pas, desde a sua criao: a de excluir o doente de seu convvio social e, a
propsito de lhe proporcionar espao e liberdade, escond-lo dos olhos da sociedade
(RESENDE, 2001, p. 52).
Porm, mesmo com essa experincia e algumas tentativas isoladas de modificao no
atendimento, permanecia a assistncia asilar s pessoas com transtornos mentais. Como
afirma Costa (2003, p. 150),
apesar de frustrados os projetos de recuperao dos loucos por meio do internamento nos hospitais-colnia em face da impossibilidade de insero social dos seus egressos quando retornavam ao espao urbano , a Psiquiatria continuava se fortalecendo por meio da fabricao de sua prpria clientela. Apesar de ter surgido para resolver o problema da doena mental ela passa a fabricar mais e mais doentes, demandando pela criao de mais instituies e ampliao das existentes.
Os objetivos de excluir e segregar refletiam-se na legislao psiquitrica, como se
pode observar no Decreto n 24.559, de 3 de julho de 1934: Art. 9 - Sempre que, por
qualquer motivo, for inconveniente, a conservao do psicopata em domiclio, ser o mesmo
removido para estabelecimento psiquitrico. Tal norma previa, ainda, no seu artigo 11, que
alm do internamento a pedido dos familiares, os psicopatas poderiam ser internados por
ordem judicial ou requisio de autoridade policial (FIGUEIREDO, 1988; CINTRA JNIOR,
2003).
Nas dcadas de 40 e 50, a poltica de sade mental era voltada, principalmente, para o
atendimento em hospitais psiquitricos, com escassos servios em nvel extra-hospitalar
(RIBEIRO, 1999). Alm disso, desde meados da dcada de 50, os psiquiatras passaram a
fazer largo uso de drogas denominadas neurolpticos ou psicofrmacos. A introduo desses
medicamentos no tratamento s pessoas com transtornos mentais considerada um marco na
Psiquiatria. De acordo com Figueiredo (1988, p. 133),
a descoberta dos neurolpticos representou e representa um grande avano cientfico no tratamento das psicoses. Mas, por outro lado, estas drogas tambm facilitaram uma utilizao anticientfica, voltada para o controle do
32
paciente, o sossego do mdico, do hospcio, da famlia que rejeita e da sociedade que exclui.
Esta fase dos psicofrmacos teve forte adeso da psiquiatria brasileira. Nos hospitais
psiquitricos do pas, de forma geral, a adoo daquelas novas substncias farmacolgicas
serviu para reforar o controle exercido em nome do saber mdico, o qual demonstrava a
produo de um conhecimento psiquitrico vinculado s normas ditadas pelo sistema
(FIGUEIREDO, 1988; SILVA FILHO, 2001).
Autores como Resende (2001) descrevem a situao encontrada no fim da dcada de
50, destacando a superlotao, a deficincia de profissionais, os maus-tratos e as pssimas
condies de hotelaria, afirmando que a nica funo social da prtica psiquitrica a
excluso do louco.
Com as mudanas efetivadas na sociedade brasileira a partir do golpe militar de 1964,
a assistncia sade foi caracterizada por uma poltica de privatizao macia. No campo da
assistncia psiquitrica, fomentou-se o surgimento das clnicas de repouso, denominao
dada aos hospitais psiquitricos de ento, alm de mtodos de busca e internamento de
pessoas. Desse modo, passa a prosperar a recm-criada e rentvel indstria da loucura. Nos
anos seguintes, o nmero de hospitais psiquitricos e leitos contratados aumentou (COSTA,
2003).
Alm disso, com o desenvolvimento da industrializao no Brasil aps 1964 e com a
intensificao do modelo tecnocrata e capitalista de produo, adotado pela Ditadura Militar,
se favorece o crescimento de uma forte indstria farmacutica, que fomenta a necessidade de
um mercado interno compensador. Verifica-se que o sistema de assistncia mdica centrado
no hospital e o incentivo medicina curativa atendiam demanda da referida indstria
(RIBEIRO, 1999). Tal medicina hospitalocntrica lucrativa tambm se refletia no hospital
psiquitrico. Predominava o controle social e a lucratividade empresarial, e, segundo
33
Figueiredo (1988, p. 141), a psiquiatria e o Estado a apareceram associados na sustentao
desse binmio. Percebia-se o compromisso do Estado com os interesses dos grupos
econmicos dominantes, pois, naquele regime autoritrio, a assistncia mdica privada
contratada constitua-se mero instrumento de lucro, no apresentando nenhuma preocupao
para resolver os problemas de sade das pessoas (AMARANTE, 1998).
A rede privada tem seu pice no final da dcada de 60 e na dcada de 70. Durante todo
esse perodo, a poltica de sade mental no Brasil se apoiava em dois pilares: o Hospcio
Pblico e Privado, este ltimo bastante ampliado e altamente lucrativo, e os neurolpticos,
produo majoritria das multinacionais de medicamentos (FIGUEIREDO, 1988, p. 141).
Nesse sentido, o hospital psiquitrico privado era um dos mais cobiados investimentos
devido ao seu baixo custo operacional e poltica de repasse de recursos financeiros
promovida pelo Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (INAMPS).
Ressalte-se que durante as dcadas de 70/80 no Brasil, a assistncia psiquitrica ainda
era organizada em torno da soluo asilar, a qual, segundo Amarante (1998, p. 112-13),
[...] decorrente no apenas da natureza da funo social e poltica do asilo psiquitrico, como instrumento de segregao, negao e violncia, ou ainda do no compromisso real com a sade dos cidados (o que implica ausncia de necessidade de organizar formas de cuidado e ateno eficientes e teraputicos) mas, tambm, das condies administrativas. Torna-se mais fcil construir e administrar um pavilho como se fora um hospital, do que organizar e gerir trmites e procedimentos necessrios construo de um servio mais sofisticado ou diversificado.
Nessa perspectiva, Ribeiro (1999, p. 64-5) afirma que de 1970 a 1980 a poltica de
sade adotada reforava a privatizao do setor, a mercantilizao da Medicina e a
manuteno do modelo de hospitalizao, que, no caso da sade mental, tratava-se da
internao asilar. Tal modelo privatista trouxe srias conseqncias para o desenvolvimento e
o aperfeioamento do sistema de sade do pas, que, segundo esse autor encontra-se hoje
mergulhado no mais profundo caos no que diz respeito sade pblica em geral, ao
34
atendimento da populao nos hospitais e postos de sade, e assistncia psiquitrica em
particular.
Diante do modelo da psiquiatria hospitalocntrica, o louco apenas um doente sob os
seus cuidados, sem vontade, e, ainda, aquele lhe retira a qualidade de sujeito. Resta, apenas, o
cuidado com o controle da pessoa com transtorno mental, que deveria estar sempre sob
custdia de uma instituio submetida a um tratamento farmacolgico, reforando as
finalidades de excluso social e de cura trazidas pelo isolamento teraputico.
Somente a partir da dcada de 70, que grupos de profissionais, que atuavam nos
servios de ateno sade mental, comearam a questionar e a discutir a necessidade de
outras formas de tratamento s pessoas com transtorno mental, chamando a ateno para um
servio de sade mental baseado na integralidade de vrios fatores, conforme destaca Ribeiro
(1999, p. 81):
As aes em sade mental se inserem na poltica de sade, que por seu turno conseqncia das medidas scio-econmicas adotadas pelo governo. No se pode desvincular o processo de transformaes na sade do processo de evoluo e aperfeioamento que ocorre na sociedade, envolvendo relaes de ordem poltica, cultural, social, de trabalho, de educao, de qualidade de vida.
Atualmente, a instituio psiquitrica ainda permanece com a mesma estrutura de dois
sculos atrs, ao continuar excluindo, segregando e cronificando a pessoa com transtornos
mentais, majoritariamente das classes desfavorecidas (BASAGLIA, 1985; PESSOTTI, 1996;
SILVA, 2001). Trata-se de um mundo do qual faz parte contingente significativo de seres
humanos, confinados a uma existncia limitada, sem a observncia do seu contexto social,
acarretando, muitas vezes, a perda da sua identidade.
A cultura existente no imaginrio da sociedade e no modelo assistencial asilar para o
tratamento das pessoas com transtornos mentais, ainda hoje, de excluso, evidenciando a
presena de uma tradio fundada na negao dos direitos humanos dos pacientes
psiquitricos. As prticas exercidas nos hospitais psiquitricos brasileiros revelam a tendncia
35
de um tratamento que legitima a excluso destas pessoas (RESENDE, 2001; SILVA, 2001;
TUNDIS, 2001). Tais unidades de internao se configuram como espaos de segregao e
obscuridade (BASAGLIA, 1985; RESENDE, 2001).
Ademais, conforme afirma Amarante (1998, p. 24),
A caracterizao do louco, enquanto personagem representante de risco e periculosidade social, inaugura a institucionalizao da loucura pela medicina e a ordenao do espao hospitalar por esta categoria profissional. [...] A relao tutelar para com o louco torna-se um dos pilares constitutivos das prticas manicomiais e cartografa territrios de segregao, morte e ausncia de verdade.
Dentre as unidades hospitalares criadas com o cunho segregacionista encontram-se os
manicmios judicirios, hoje denominados Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico,
para as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos. A nfase desta instituio
hospitalar estava no processo de apartao social, descomprometida com o cuidado sade e
com a reinsero psicossocial.
2. A necessidade de um manicmio judicirio
O manicmio criminal nasce da fuso das duas clssicas instituies totais que a
sociedade moderna criou para castigar as formas mais graves de no adaptao s regras
sociais: a priso e o manicmio.
Na Europa, os manicmios criminais comeam a surgir na segunda metade do sculo
XIX. O termo manicmio judicirio, historicamente, vem depois do manicmio criminal,
e antes do atual hospital psiquitrico judicirio (MANACORDA, 1982, p. 8). No Brasil, o
manicmio judicirio passou a ser denominado Hospital de Custdia e Tratamento
36
Psiquitrico a partir da Reforma Penal de 1984, de acordo com a previso do Cdigo Penal
Brasileiro nos seus artigos 96 e 97 e na Lei de Execuo Penal no artigo 99.
A origem histrica do manicmio judicirio remonta Inglaterra do sculo XVIII,
quando uma pessoa tentou matar o Rei Jorge III, sendo declarada louca e por isso
irresponsvel pelo seu ato, e, em seguida, absolvida e internada numa seo especial do
manicmio de Bedlem (SIMONETTI, 2006). Assim, a primeira instituio a acolher loucos
criminosos foi o Asilo de Bedlem, na Inglaterra, onde em 1786 aberta uma seo especial,
que deu origem ao projeto do manicmio criminal como estabelecimento destinado
unicamente internao dos loucos criminosos. Outras sees para tais pessoas foram criadas
dentro dos numerosos asilos espalhados pelo pas.
O manicmio criminal nasce na Inglaterra com o nome de Criminal Lunatic Asylum, a
primeira instituio com a finalidade de custodiar as pessoas com transtorno mental que
tivessem cometido algum ato penalmente ilcito (SIMONETTI, 2006; COHEN, 2006a;
ANDRADE, 2004). E foi justamente a Inglaterra o primeiro pas a disciplinar com uma lei tal
matria, especificando minuciosamente as categorias de sujeitos que deveriam ser
destinatrias dos procedimentos de internao neste tipo de instituio (BORZACHIELLO,
1997). Ainda no sculo XVIII promulgada uma lei, chamada Insane offender's bill, a qual
previa que todos aqueles que tivessem cometido um delito em condies de alienao mental
seriam absolvidos e internados em um manicmio por tempo determinado pelo rei
(SIMONETTI, 2006).
Porm, de acordo com Simonetti (2006), a referida lei se revelou ineficaz e as
estruturas existentes se demonstraram inadequadas s necessidades teraputicas daqueles
sujeitos, e as dificuldades de gesto tornaram ainda mais desumanas as condies dos
internados. Para esta autora, o primeiro e verdadeiro Manicmio Criminal de Estado
institudo em 1857 na parquia de Sandhurst e em 1863 foi fundado o estabelecimento de
37
Broadmoor, situado na periferia de Londres, considerado sempre um exemplo pela eficincia
e funcionalidade, concebido como setor especial hospitalar. Nos anos seguintes, de acordo
com as normas denominadas "The Criminal Lunatic Act" de 1884 e "The Trial of Lunatic
Act" de 1885, se estabelece que em Broadmoor podiam ser internados no s aqueles que
tivessem cometido um crime em estado de loucura, mas tambm aqueles que enlouquecessem
durante o processo, a chamada supervenincia de alienao mental, e, por isso, se tornassem
incapazes de se submeter disciplina carcerria.
Com a diferena de quase um sculo da primeira experincia realizada na Inglaterra
voltada aos loucos criminosos, outros pases da Europa passam a adotar providncias no
mesmo sentido. Na Frana, em 1876, foi instituda uma seo para os loucos criminosos
dentro do manicmio de Bictre. Na Alemanha, no perodo de 1870 a 1875, espaos
especficos destinados quelas pessoas foram institudos nas Casas centrais de Bruchsal, Halle
e Amburgo. Na Itlia, o manicmio criminal nasce na segunda metade do sculo XIX,
atendendo a exigncia de criar uma estrutura apropriada para separar dos outros presos
aqueles enlouquecidos na priso (ADAMO, 1980). Assim, em 1876 inaugurada a Seo
para manacos junto Casa penal para invlidos de Aversa, com um ato meramente
administrativo (MANACORDA, 1982; GANDOLFI, 1988). Nos Estados Unidos, o primeiro
manicmio criminal foi criado em Auburn, no Estado de New York, no ano de 1855, seguido
de um outro no Estado de Massachussets em 1872, e outro institudo na prpria cidade de
New York em 1874. No Canad, em 1877, o Asilo de Rockwood passa a ser dependente das
prises de Kingston (BORZACHIELLO, 1997).
Analisando os pressupostos do manicmio criminal na Itlia, verifica-se que na
segunda metade do sculo XIX, duas Escolas travavam um grande debate acerca dos
conceitos de crime e de pena. De um lado, a Escola Clssica, cujo exponente mais clebre foi
Francesco Carrara, discutia a teoria geral do crime atribuindo pena a finalidade retributiva,
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ou seja, a pena tinha a finalidade de reparar o dano causado sociedade pela ao do ru.
Nesse caso, a pena seria aplicada de acordo com a gravidade do delito. A personalidade do
ru enquanto tal no era objeto de anlise pelos juristas desta Escola, que acreditavam no livre
arbtrio do homem. A Escola Positiva, por sua vez, baseada nos estudos de Cesare Lombroso,
apresentava, pela primeira vez, o problema da responsabilidade do sujeito que comete crime,
voltando os seus estudos pesquisa das causas da delinqncia. Os seus objetivos principais
eram o estudo da personalidade do ru, considerado nas suas anomalias biolgicas e
psquicas, e a criao de uma poltica criminal dirigida defesa social (BORZACHIELLO,
1997). Enfim, para a concepo positivista, a criminalidade a manifestao de uma
patologia individual, que s vezes pode ser atribuda a causas sociais (SANTORO, 2004).
Ademais, como esclarece Franco Scarpa (2007), os manicmios criminais foram
criados como lugar para exercitar a defesa social frente aos loucos que cometiam crimes e no
podiam ser encaminhados priso porque eram considerados sujeitos no conscientes e
insensveis ao regime punitivo carcerrio.
A instituio dos manicmios criminais representava a vitria da Escola Positiva sobre
a Escola Clssica, e teria significado a afirmao do conceito de delinqncia como doena e
da pena como cura. Para os antroplogos, mdicos e alienistas do fim do sculo XIX, o
criminoso era quase sempre um doente, e, como tal, era considerado objeto de custdia e cura,
e no de simples represso. Nesse sentido, se o crime era considerado uma doena, a cura
deveria ser confiada medicina. E vale registrar que em 1872, Lombroso publica a obra
Sullistituzione dei manicomi criminali in Italia, na qual sustenta a necessidade da
instituio dos manicmios criminais, indicando as categorias de pessoas que deveriam ser ali
internadas: sugeria o encaminhamento no s daquelas pessoas acometidas de enfermidade
mental durante a execuo da pena, mas tambm daquelas que fossem levadas ao
cometimento do delito por ter uma enfermidade habitual (GIORDANO, 2005, p. 305-6).
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Como afirma Peres (1997, p. 111),
os manicmios judicirios surgem no dispositivo psiquitrico compondo uma nova estratgia, que se fundamenta de forma explcita, no perigo que o louco representa. Com um lugar especfico para a loucura criminosa, fora da rede de assistncia psiquitrica, a medicina retira de seu campo aqueles que foram o argumento inicial para a sua afirmao.
Identicava-se no discurso mdico a necessidade de construir um espao especfico
para os loucos delinqentes, pois estes comprometiam o tratamento que era oferecido no asilo,
junto s demais pessoas ali recolhidas (MACHADO, et al, 1978). Assim, o manicmio
judicirio passava a figurar como mais uma instituio total, afastando loucura e
criminalidade, legitimando a insero da psiquiatria na esfera da cincia penal e consolidando
a presuno da periculosidade de tais pessoas.
2.1. Manicmio judicirio no Brasil
Os hospitais especficos para acolher os loucos infratores foram institudos no Brasil a
partir da segunda dcada do sculo XX com a denominao de manicmios judicirios. A sua
implementao foi precedida pela discusso acerca de qual seria o encaminhamento
institucional que deveriam ter pessoas que eram consideradas loucas e criminosas. Como
informa Carrara (1998), j em 1870, o ento diretor do Hospcio D. Pedro II, Dr. Moura e
Cmara, apontava a necessidade de separar os loucos agitados e perigosos, tendo em vista que
se constituam em um obstculo para a medicalizao completa do asilo, por exigirem prticas
violentas e repressivas. Acrescente-se que tal idia passa a ser defendida por Teixeira Brando
em 1896, diante de um caso envolvendo um provvel louco-criminoso, que o motiva a
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solicitar ao Ministro da Justia a construo de um Manicmio Criminal, porm, esta idia
no representava consenso em toda a classe mdica (CARRARA, 1997).
Para Juliano Moreira, diretor do Hospcio Nacional no ano de 1920, os criminosos
loucos no deveriam estar alojados naquela instituio, mas numa priso de carter especial,
priso e manicmio ao mesmo tempo (CARRARA, 1998, p. 193). Assim, a criao de um
manicmio judicirio no pas j vem marcada pelo carter de ambigidade: afinal, essa
instituio um hospital ou uma priso?
Carrara (1998, p. 28) destaca essa contradio acerca da fundao do manicmio
judicirio, afirmando que a instituio apresenta a ambivalncia como marca distintiva e a
ambigidade como espcie [...] de defeito constitucional (grifos do autor), e observa que
tal ambigidade uma caracterstica que perpassa toda a instituio manicomial judiciria: a
legislao que a sustenta, a identidade atribuda aos internos e aos profissionais que ali
trabalham. Desse modo, alm dos hospitais psiquitricos para pessoas com transtornos
mentais, comearam a funcionar no pas os espaos asilares para receber e tratar os ditos
loucos criminosos. Percebe-se, mais uma vez, a opo pela excluso: a partir do
estabelecimento da diferena entre loucos e loucos criminosos, o espao para estes ltimos
no pode ser mais o do Hospcio Nacional.
Configurava-se, assim, uma nova categoria, a dos loucos-criminosos, cujo destino
deveria estar absolutamente desvinculado do Hospcio Dom Pedro II. Iniciava a compreenso
a respeito da necessidade de construir uma nova instituio para recolhimento asilar deste
segmento populacional, no mesmo sentido daquela adotada pelos pases da Europa. Conforme
Carrara (1998, p. 148), a idia central de que loucos perigosos ou que estivessem
envolvidos com a justia ou polcia deveriam ser separados dos alienados comuns,
constituindo-se em objeto institucional distinto. Forjava-se, assim, a demanda por um
manicmio criminal. Esta nova instituio emergia, pois, correspondendo convergncia
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dos interesses da rea de sade e do mbito jurdico, atendendo necessidade de zelar pela
segurana da sociedade. A iniciativa, compatvel com o pensamento da poca e o poder-dever
do Estado, exclua a possibilidade de qualquer integrao sociofamiliar do denominado
louco-criminoso.
Antes da constituio desse novo espao, os loucos criminosos eram encaminhados s
Casas de Correo ou recolhidos pelos Asilos, onde passavam a ser mantidos em alas
especficas, destinadas aos loucos furiosos (JACOBINA, 1982). Ao descrever o que ocorria
nesse perodo, Peres (1997, p. 89) assevera que a existncia dos ditos loucos-criminosos
passa a representar um problema para a psiquiatria em formao. Se, por um lado, os
alienistas criticavam a presena dos loucos nas casas de correo, alguns recusavam a
presena dos loucos-criminosos nos asilos.
Nesse percurso, ressalte-se o Decreto n 1.132, de 22 de dezembro de 1903, o qual
trouxe a recomendao de que fossem criadas sees especiais para loucos infratores nos
manicmios estaduais (DELGADO, 1992). Tal Decreto estabeleceu normas para a internao
dos alienados, sendo que o seu artigo 10 previa: proibido manter alienados em cadeias
pblicas ou entre criminosos. E o artigo 11 deixava explcito que enquanto no possurem
os Estados manicmios criminais, os alienados delinqentes e os condenados alienados
somente podero permanecer em asilos pblicos nos pavilhes que especialmente se lhes
reservem. a partir desse Decreto que a construo de manicmios judicirios passa a ser
proposta oficial (CARRARA, 1998), devendo cada Estado reunir recursos para tal fim.
Ademais, essa idia reafirmada pelo Decreto n 5.148A, de 10 de janeiro de 1927, nos seus
artigos 7 e 8 (MATTOS, 1999). Aps tal Decreto, foi instalada no Hospcio Nacional de
Alienados uma enfermaria destinada internao dos alienados delinqentes e observao
dos acusados suspeitos de alienao mental. Assim surgia a Seo Lombroso, uma seo
especial de segurana que funcionava com inmeros problemas, tendo sido extinta com a
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criao do Manicmio Judicirio do Rio de Janeiro (DELGADO, 1992; PERES, 1997;
PIEDADE JNIOR, 2002).
O primeiro manicmio judicirio do Brasil e da Amrica Latina foi inaugurado na
cidade do Rio de Janeiro, no dia 30 de maio de 1921. Carrara (1998, p. 194) descreve a
cerimnia realizada afirmando que os discursos ali proferidos anunciavam muito mais que o
surgimento de mais uma outra instituio pblica, mas, principalmente, a emergncia de
uma forma inteiramente nova de interveno social, mais flexvel, mais globalizante, mais
autoritria. Em relao a este evento, conclui: Coroava-se ento um processo muito mais
amplo que, atingindo as prticas jurdico-penais como um todo, fez com que nossos tribunais,
como bem apontou Foucault, passassem, a partir de finais do sculo XIX, a no julgar mais
atos criminosos, mas a prpria alma do criminoso (CARRARA, 1998, p. 194).
Cabe acrescentar que neste ano foi promulgado o Decreto n. 14.831, de 25 de maio de
1921, que aprova o regulamento do manicmio judicirio, e, no seu artigo 1 dispunha: O Manicomio Judiciario uma dependencia da Assistencia a Alienados no Distrito Federal, destinada a internao: I Dos condenados que achando-se recolhidos s prises federais, apresentam syntomas de loucura. II Dos acusados que pela mesma razo devam ser submetidos a observao especial ou tratamento. III Dos delinqentes isentos de responsabilidades por motivo de afeco mental (cdigo penal, art. 29) quando a critrio do juiz assim o exija a segurana pblica.
Com a implementao do manicmio judicirio vislumbrava-se uma soluo de
interesse da sociedade cujo tecido fora agredido pelo delito da pessoa com transtorno mental.
Ao apresentar-se como instituio prisional, sustentava-se na premissa de que o indivduo,
ainda que com transtorno mental, deveria pagar pelo crime cometido. Enquanto instituio de
custdia, guardava uma natureza diferenciada, a de satisfazer as interpretaes patologizantes
e biodeterminantes do indivduo (CARRARA, 1998). O seu vnculo era com os servios de
assistncia a psicopatas, conforme se verifica no Decreto n. 20.155, de 29 de junho de 1931,
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que determinava que o manicmio judicirio ficava sob a jurisdio do Departamento
Nacional de Assistncia Pblica, revertendo o respectivo pessoal tcnico ao quadro de
Assistncia a Psicopatas.
O manicmio judicirio se caracterizava, portanto, como o lugar social especfico para
o encontro entre crime e loucura. Deste modo, esta instituio apresenta, desde a sua origem,
uma estrutura ambgua e contraditria. Enquanto instituio predominantemente custodial,
revela, com grades e intervenes psiquitricas, a dupla excluso que sofrem as pessoas com
transtorno mental autoras de delito.
Essa instituio manicomial criada em outros estados do pas ao longo do sculo
XX, como o de Barbacena, em Minas Gerais, no ano de 1929 (JACOBINA, 1982), e, em 31
de dezembro de 1933 inaugurado o manicmio judicirio de So Paulo, que levava o nome
de Franco da Rocha, um dos psiquiatras que fomentou um sistema de manicmios judicirios
para os loucos criminosos. Nesse sentido, o manicmio judicirio restrito s pessoas com
transtornos mentais que cometeram crime, no podendo atender a comunidade em geral,
como os demais hospitais psiquitricos. Geralmente, esta instituio manicomial judiciria
estar vinculada Secretaria da Justia e no da Sade como ocorre com aqueles:
deslocada da assistncia a alienados para fazer parte do sistema penitencirio.
Nesse novo espao assimilada a poltica segregacionista caracterstica das demais
instituies psiquitricas. Historicamente, o doente mental foi acorrentado, agredido,
amarrado e isolado por ser violento, imoral e inconseqente, porm, poucas vezes foi
considerado como uma pessoa humana igual s demais pessoas, estando privado de um
tratamento com dignidade, respeito e direitos iguais aos dos outros cidados. A assistncia
psiquitrica prestada pelo Estado no manicmio judicirio favorece uma assistncia custodial
que dificulta ou impossibilita a integrao dessa pessoa sociedade e o respeito aos seus
direitos individuais previstos na Constituio Brasileira.
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2.2. Periculosidade social e loucos criminosos
O conceito de periculosidade foi, por muito tempo, o grande parmetro de avaliao
da necessidade da interveno psiquitrica e, ainda hoje, tem sido objeto de muitos debates
nas reas mdica e jurdica, constituindo-se relevante desde o sculo XIX, quando surge, no
campo da chamada Medicina mental, a noo de loucura-criminosa para reafirmar a
estratgia alienista (BIRMAN, 1978). Julga-se no mais o ato praticado, mas a
personalidade da pessoa (QUINET, 2001), inserindo-a em uma das categorias criadas pelo
positivismo penal para prever sua conduta futura. O objetivo da aplicao do direito penal
para esses sujeitos a preveno de crimes futuros (MANTOVANI, 2005) e no mais a
punio de um crime cometido. Assim, a periculosidade torna-se o fundamento do direito de
prevenir.
Na base do conceito de periculosidade social esto a defesa social e a funo
preventiva da lei (BONAZZI, 1975). A remoo e excluso das pessoas com transtornos
mentais autoras de delito, alm de visar a preservao dos bens e da segurana dos cidados e
a inteno de cur-las, apresentava um novo objetivo, o de prevenir o cometimento de novos
crimes.
Segundo Foucault (2003a, p. 85):
[...] a grande noo da criminologia e da penalidade em fins do sculo XIX foi a escandalosa noo, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noo de periculosidade significa que o indivduo deve ser considerado pela sociedade ao nvel de suas virtualidades e no ao nvel de seus atos; no ao nvel das infraes efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam.
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A periculosidade acaba projetando-se na vida futura da pessoa com trantorno mental
que cometeu um crime, configurando-se um procedimento de alta especializao e
sutilssimas incertezas (DELGADO, 1992, p. 33). A classificao de determinadas pessoas
como perigosas objetiva, dentre outras coisas, restringir-lhes a conduta e torn-las previsveis.
Destacando a natureza reducionista da compreenso do ser humano, quando se elege a
periculosidade como a nica expresso possvel do sujeito, Barros (1994a) afirma a
inobservncia do equacionamento de suas necessidades. Este reducionismo compromete o
cuidado integral sade da pessoa com transtorno mental e a garantia dos seus respectivos
direitos.
Alm disso, percebe-se que a origem da periculosidade se encontra no mtodo
escolhido pela psiquiatria, ao tomar a pessoa com transtorno mental como objeto e tentar
trat-la apartada da sociedade. Conforme afirma Amarante (1998, p. 46),
O paradigma psiquitrico clssico transforma loucura em doena e produz uma demanda social por tratamento e assistncia, distanciando o louco do espao social e transformando a loucura em objeto do qual o sujeito precisa distanciar-se para produzir saber e discurso. A ligao intrnseca entre sociedade e loucura/sujeito que enlouquece artificialmente separada e adjetivada com qualidades morais de periculosidade e marginalidade.
Pode-se afirmar que principalmente atravs da criao da figura do indivduo
perigoso que a psiquiatria, sobretudo aquela positivista, legitima a sua competncia em tal
interveno e demonstra a sua tendncia em tornar-se um sistema de disciplina e de controle
organizado. E, assim, o conceito de defesa social introduzido e elaborado pela Escola
Positiva e pelos estudos da antropologia criminal.
A periculosidade aparece como elemento jurdico no Cdigo Penal de 1890. No seu
artigo 29, o procedimento definido como uma medida preventiva. Verifica-se a influncia da
antropologia criminal e da Escola Penal Positiva, fundadas por Cesare Lombroso, que
colocava a periculosidade como elemento principal para definir a pena e para a preveno
criminal (CARRARA, 1998). A idia central era de que os loucos criminosos, os
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inimputveis, eram os mais perigosos, e, nesse sentido, o grau de periculosidade do agente
deveria ser levado em considerao para determinar a imputabilidade penal.
As idias de Lombroso eram baseadas nos postulados positivistas do biodeterminismo
e da existncia de leis universais de causalidade (CARRARA, 1998; HARRIS, 1993). Ao
formular a doutrina do criminoso nato, Lombroso, alm de descrever as suas anomalias
morfolgicas, anatmicas, configuradoras do tipo criminal, sofreu muita influncia dos
psiquiatras da poca que descreviam o tipo do louco moral, que apresentava insensibilidade
moral e afetiva (ALVES, 1998). De acordo com essa teoria, os loucos so perigosos porque as
suas aes evidenciam uma pr-determinao a cometer atos criminosos. O crime entendido
como um produto da ao de fatores endgenos e exgenos sobre a vontade, e para o mesmo
no seriam mais necessrias medidas aflitivas, mas profilticas ou de defesa proporcionais
ao perigo representado pelo sujeito (PERES, 2002, p. 345).
Segundo a Escola Positiva do Direito Penal, a pena perderia seu carter punitivo,
passando a ser uma medida de defesa social e de preveno criminal, indeterminada em sua
durao. A pena deveria poder ser determinada com base na periculosidade do sujeito, a qual
seria avaliada atravs do exame de sua personalidade. Os juristas da Escola Clssica
rejeitaram tais idias por se mostrarem incompatveis com o direito de punir, tendo em vista
que eram contrrias doutrina do livre arbtrio. Ademais, para eles a idia de uma pena
indeterminada poderia ensejar arbitrariedades por parte do Poder Judicirio. Porm, apesar de
tais crticas, com relao aos loucos criminosos e aos semi-responsveis, aquelas idias
positivistas foram aplicadas atravs da medida de segurana, permitindo o controle dos seus
atos pelo Direito Penal.
A ao preventiva do Estado passa a ser fundamentada pela noo da periculosidade
social, a qual, associada ao conceito de doena mental propiciou uma sobreposio entre
punio e tratamento, uma quase identidade do gesto que pune e aquele que trata (BARROS,
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1994a). Como afirma Foucault (2004a, p. 137), loucura e crime no se excluem, mas no se
confundem num conceito indistinto; implicam-se um ao outro no interior de uma conscincia
que ser tratada, com a mesma racionalidade, conforme as circunstncias o determinem, com
a priso ou com o hospital.
Configura-se uma interao entre as reas distintas que sustentam o conceito de
periculosidade, a qual explicada por Barros (1994b, p. 38):
O encontro singular entre os aparatos da administrao pblica e da justia, e os aparatos da cincia e da medicina, fez com que o conceito de periculosidade social se tornasse o principal atributo da loucura, seja por parte do Estado (construo de manicmios, legislaes), da psiquiatria (justificativa da internao, pesquisas cientficas sobre causas e mtodos), ou ainda, por parte da justia (escola do direito positivo, imputabilidade e inimputabilidade, necessidade de defesa social, desenvolvimento das medidas de segurana).
Nesse sentido, De Leonardis (1988, p. 51) afirma que o diagnstico de
periculosidade, e, portanto, a competncia psiquitrica na matria, condio crucial de
desenvolvimento do sistema do direito penal moderno. A psiquiatria continua exercendo o seu
papel, a ela atribudo desde o final do sculo XVIII, de normalizadora da sociedade
(FOUCAULT, 2002a; 2004b), na qual cuida da conservao da sade fsica e mental das
pessoas servindo-se de providncias penais e administrativas. E o direito penal, assim, passa a
servir-se do embasamento cientfico da medicina mental para determinar a periculosidade
atravs do exame psiquitrico, que, segundo Foucault (2002a, p. 29; 2003b), serve alterao
do duro ofcio de punir para o belo ofcio de curar.
Ao abordar esse aspecto na sua obra Os Anormais, Foucault (2002a, p. 31) esclarece:
a sano penal dever ter doravante por objeto, no um sujeito de direito tido como responsvel, mas um elemento correlativo de uma tcnica que consiste em pr de lado os indivduos perigosos, em cuidar dos que so sensveis sano penal, para cur-los ou readapt-los. Em outras palavras, uma tcnica de normalizao que doravante ter de se ocupar do indivduo delinqente. Foi essa substituio do indivduo juridicamente responsvel pelo elemento correlativo de uma tcnica de normalizao, foi essa tranformao que o exame psiquitrico, entre vrios outros procedimentos, conseguiu constituir.
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importante, ainda, trazer a anlise de Basaglia (1982, p. 448) sobre a periculosidade
social na fronteira entre psiquiatria e justia: O conceito de periculosidade representa, assim, ao mesmo tempo, a razo da sano jurdica e a grande categoria diagnstica da qual sucessivamente se separam e se diferenciam as outras. Tanto verdade que seu proliferar e variar no determinaram, at a primeira fase de crise das velhas legislaes, qualquer significativa variao nem nas tcnicas de tratamento, nem na gesto dos lugares de tratamento.
Com o Cdigo Penal de 1940, a periculosidade, definida como a probabilidade de
delinqir, passa a ser o fundamento da medida de segurana. Portanto, o conceito da
periculosidade presumida justificou a criao e a manuteno do instituto da medida de
segurana como forma de proteger a sociedade daquele que perigoso a priori. E de acordo
com o Cdigo Penal (artigo 97, 1), a avaliao da periculosidade social deve ser feita por
um perito mdico. Porm, importante notar que as origens etiolgicas do conceito de estado
perigoso so mais de ordem jurdica que mdica, embora o seu diagnstico seja realizado pela
medicina e no pela Justia.
Carvalho Netto (2005, p. 25) afirma que A Lei denuncia assim a noo mesma de
periculosidade como conceito opervel juridicamente, pois a exigncia de um atestado de que
qualquer um de ns jamais representar risco para a sociedade absurda. Para este autor, o
risco inerente sociedade, sendo possvel buscar o seu controle, mas no a sua eliminao.
Vale salientar que o referido Cdigo Penal adotou o sistema enumerativo, segundo o
qual a periculosidade no reconhecida de forma geral, sendo caracterstica apenas de certos
grupos de delinqentes, dentre os quais se encontram as pessoas com transtornos mentais. E
alm de constar no Cdigo Penal, a norma da periculosidade social est insculpida nos artigos
175 a 177 da Lei de Execuo Penal, os quais estabelecem as regras para a realizao do
exame de verificao da cessao da periculosidade.
Cohen (2006a, p. 124) explica que a periculosidade no est vinculada ao ato em si,
mas sim falta de compreenso do indivduo que vai infringir uma proibio legal ou sua
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incapacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento. Ainda segundo esse autor,
o vnculo entre a doena mental e a periculosidade surgiu num perodo de obscurantismo da
sociedade, qua