Post on 09-Jan-2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS REGIONAL CATALÃO
UNIDADE ACADÊMICA ESPECIAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
JOZIMAR LUCIOVANIO BERNARDO
DIMENSÃO MÁGICO-RELIGIOSA DA PALAVRA EM TEXTOS ORAIS SOBRE O
CATOLICISMO POPULAR NA COMUNIDADE SÃO DOMINGOS, CATALÃO-GO
CATALÃO-GO
2015
JOZIMAR LUCIOVANIO BERNARDO
DIMENSÃO MÁGICO-RELIGIOSA DA PALAVRA EM TEXTOS ORAIS SOBRE O
CATOLICISMO POPULAR NA COMUNIDADE SÃO DOMINGOS, CATALÃO-GO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem - nível Mestrado - da Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de concentração: Linguagem, Cultura e Identidade. Linha de Pesquisa: Língua, Linguagens e Cultura. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena de Paula
CATALÃO-GO
2015
Dedico este trabalho à vida,
às nossas vidas marcadas pelo encontro, pelo encontro de nossas vidas.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela dádiva da vida, das nossas vidas.
À minha professora e orientadora, Dra. Maria Helena de Paula, por quem tenho apreço
e admiração. A ela, minha infinita gratidão por todo suporte, dedicação, incentivo e amizade;
pela vasta bibliografia indicada e disponibilizada; pelos valiosos ensinamentos e pelo tempo
concedido para as orientações e revisões dos nossos textos, por dias e noites adentro.
Aos senhores e senhoras, cujas memórias orais ecoam pelo trabalho, pelas cordiais
recepções e por todas as contribuições, sem as quais esse trabalho não teria vindo a lume.
Aos meus pais, Iolanda e Wanio, minha imensa gratidão por todo amor, compreensão
e apoio incondicionais.
À minha irmã, Amanda, e às minhas amigas, Rayne e Maiune, pelas partilhas diárias;
pela amizade e companhia desde sempre.
Aos professores das bancas examinadoras da qualificação e da defesa final, Dra.
Vanessa Regina Duarte Xavier, Dra. Maria Cândida Trindade Costa de Seabra e Dr. Jadir de
Morais Pessoa, pelos importantes subsídios ao aprimoramento da dissertação.
Aos professores da Unidade Acadêmica Especial de Geografia da Regional Catalão,
Dra. Estevane de Paula Pontes Mendes e Dr. Idelvone Mendes Ferreira, pelas inestimáveis
colaborações desde a graduação.
Ao corpo docente do Programa de Mestrado em Estudo da Linguagem e à toda equipe
da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da Regional Catalão/UFG.
Aos companheiros de pesquisa do Laboratório de Estudos do Léxico, Filologia e
Sociolinguística (LALEFIL) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História do
Português (GEPHPOR).
A todos os colegas do Núcleo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (NEPSA).
Ao Diego, pela elaboração do mapa da comunidade São Domingos, Catalão-GO.
À Universidade Federal de Goiás (UFG), por me oportunizar ascender mais esse
degrau da minha trajetória acadêmica.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo
amparo financeiro, essencial para a realização de todas as etapas do estudo.
A todos que, direta ou indiretamente, acreditaram e mim e me ajudaram a tornar cada
dia em uma nova conquista.
Antes do nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.
(Adélia Prado)
RESUMO
Este estudo propôs compreender, em textos orais de natureza religiosa da comunidade São Domingos, em Catalão-GO, a dimensão mágico-religiosa da palavra que, na visão dos sujeitos da pesquisa, tem o poder de interferir no curso dos acontecimentos. O material de estudo se compôs de cinco episódios narrativos, com seis pessoas, moradores ou ex-moradores da comunidade, em uma pesquisa qualitativa, de caráter misto, que envolveu estudos em gabinete/laboratório e em campo. Partimos da hipótese de que eventos linguísticos eivados de religiosidade popular, especialmente o catolicismo, apresentariam uma dimensão mágico-religiosa cujos elementos, externos à linguagem e resultantes de acordos estabelecidos pela comunidade falante ao longo do tempo, poderiam dar, ou não, o sentido pragmático às palavras ou construções linguísticas, dotadas de poder conforme o contexto em que se realizam. As gravações, transcrições, inventário e análise de dados, em perspectiva lexicultural (PESSOA, 2005; PINTO CORREIA, 2013; DURANTI, 2000, entre outros), revelaram que o universo extralinguístico dos sujeitos em estudo – as circunstâncias, as convenções sociais e os fatos históricos e culturais – que circunscrevem os textos religiosos no seu cotidiano participa da construção dos sentidos atribuídos aos signos linguísticos da esfera da mundividência do catolicismo popular. Por fim, o estudo corroborou a tese de que a língua é intrinsecamente relacionada à cultura de um povo, especialmente na sua configuração léxica, onde os traços culturais de um povo melhor se evidenciam (BIDERMAN, 1998; SOUZA, 2014). Nesse contexto, a palavra, enquanto elemento fundamental das práticas analisadas nesse estudo, é concebida como elemento da sabedoria do homem que, compreendida como ação e meio de comunicação, adquire o poder de intervir sobre o mundo, assumindo uma dimensão mágico-religiosa. Palavras-chave: Palavra. Catolicismo popular. Cultura. Dimensão mágico-religiosa.
ABSTRACT
This study aimed to understand in oral texts of a religious nature, of the São Domingos community in Catalão-GO, the magical-religious dimension of the words, which, in the view of subjects of research, has the power to influence the course of events. The material of study were composed by five narrative episodes, with six people, dwellers or former residents of the community, in a qualitative study of mixed character, which involved studies in office/laboratory and field. We assumed that the permeated linguistic events of popular religion, especially catholicism, would present a magical-religious dimension whose the elements external to language and resulting from agreements concluded by speaking community over time, could give, or not, the pragmatic meaning of the words or language constructions, with their power according to the context in which they perform. The recordings, transcripts, inventory and analysis of data, in lexicultural perspective (PESSOA, 2005; PINTO CORREIA, 2013; DURANTI, 2000 among others), revealed that the extra-linguistic universe of the subjects under study - the circumstances, the social conventions and the historical and cultural facts - that circumscribe the religious texts in their daily lives, participates in the construction of the meanings attributed to linguistic signs of field of the worldview of popular catholicism. Finally, the study corroborated the thesis that language is intrinsically related to the culture of a people, especially in its lexical configuration, where the cultural traits of a people are better evidenced (BIDERMAN, 1998; SOUZA, 2014). In this context, the words, as a key element of the practices analyzed in this study, is considered as a element of wisdom of human that, understood as action and medium of communication, acquires the power to act in the world, taking a magic-religious dimension. Keywords: Words. Popular catholicism. Culture. Magical-religious dimension.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
I NO ENCALÇO DOS FALARES: RECORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS ..... 13
1.1 Do locus da pesquisa: Goiás, Catalão e São Domingos ............................................. 13
1.2 Dos sujeitos da pesquisa ............................................................................................... 18
1.2.1 Investigando fontes orais: delineamentos metodológicos ........................................ 18
1.2.2 Delimitação do corpus e formalização da pesquisa ................................................ 19
1.2.3 Procedimentos de composição do corpus ................................................................ 21
1.3 Da língua em sua via oral ............................................................................................. 27
1.3.1 Do oral ao escrito: a transcrição do corpus ............................................................ 32
1.4 Critérios de classificação das composições do corpus ................................................ 37
II MÁGICO-RELIGIOSO NO CATOLICISMO POPULAR ........................................... 41
2.1 Reflexões sobre cultura ................................................................................................ 41
2.2 Cultura popular ............................................................................................................ 46
2.3 Catolicismo popular ...................................................................................................... 52
2.3.1 Aspectos históricos ................................................................................................... 53
2.3.2 Circunstâncias da constituição do catolicismo popular no Brasil .......................... 56
2.3.3 Características gerais do catolicismo popular brasileiro ....................................... 61
2.4 Magia e religião e nomenclaturas correlatas .............................................................. 65
III DIMENSÃO MÁGICO-RELIGIOSA DA PALAVRA .............................................. 72
3.1 Memória, língua e cultura ............................................................................................... 72
3.1.1 Batismo ..................................................................................................................... 80
3.1.2 Rituais relacionados à chuva ................................................................................... 87
3.1.3 Benzeções e outras composições .............................................................................. 95
3.1.4 Dias santos ............................................................................................................. 105
3.1.5 Quaresma ............................................................................................................... 108
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 117
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 119
APÊNDICE - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .................... 127
ANEXO - PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP ..................................................... 131
9
INTRODUÇÃO
“No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia; as trevas
cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse: ‘Que exista a luz!’
E a luz começou a existir” (Bíblia, Gênesis, 1, 1-3). Nessa passagem bíblica, é perceptível um
poder de criação acionado pela palavra: Deus disse, isto é, expôs seu poder de criação mediante
as palavras. Assim como a luz passou a existir, o firmamento, as extensões de terra, os mares,
as plantas, as estrelas, e tudo mais que compõe o cosmos tiveram suas existências seladas pela
intervenção da palavra pronunciada pela divindade suprema.
Os dizeres acima prestam à reflexão acerca do tema desenvolvido neste estudo, que
propõe compreender a dimensão mágico-religiosa da palavra em textos orais sobre a
religiosidade popular na comunidade rural São Domingos, em Catalão-GO, numa perspectiva
da inconteste relação entre linguagem e cultura.
O presente estudo possui pertinência ao projeto de pesquisa “Léxico do português:
conhecimento e ensino”, coordenado pela professora Dra. Maria Helena de Paula, e apoia-se
nos estudos da linguagem, uma vez que é por meio das palavras que a realidade, em todos os
seus aspectos, é significada e nomeada. Dessa maneira, a linguagem verbal revela todo o
universo nomeado e dotado de sentidos. Assim, a partir dos dados extraídos do corpus de textos
orais sobre a religiosidade popular na comunidade rural São Domingos, em Catalão-GO,
pretendemos compreender a dimensão mágico-religiosa da palavra que se supõe interferir no
curso dos acontecimentos por intermédio da realização linguística oral dos sujeitos.
Esta proposição advém da ideia do meio rural como palco de manifestações de
caráter popular que expressam muito do modo como o indivíduo vê, sente e significa a
realidade. Nesse sentido, a fé, assentada na religiosidade, reproduz um conjunto de costumes
notáveis, especialmente, na cultura rural, como “guardar os dias santos”, invocar santos a partir
de seus nomes ou por dizeres específicos, recorrer aos rituais de benzedores e benzedeiras para
a cura de algum mal etc. Assim, o perfil dos narradores da pesquisa compreende sujeitos
reconhecidos, no seio da comunidade, como conhecedores e atores destas e de outras práticas.
Entendemos que tais práticas não são meros acontecimentos do cotidiano rural, mas
que integram a lógica da vida das pessoas e estão associadas ao vivido do grupo, inseridas em
suas relações socioculturais. Nesse contexto, enquanto expressões do catolicismo popular
correntes, sobretudo, no meio rural, destacamos as práticas de benzer/ser bento, batismo, rituais
relacionados à chuva, dias santos, Quaresma, preceitos, invocações aos santos. Os dados
10
inventariados dos textos orais referentes a práticas como estas, obtidos a partir da transcrição
do corpus, compõem o nosso material de estudo.
A opção pelo discurso cultural-religioso advém, a princípio, do interesse em estudar
a cultura e a língua dos falantes rurais no município de Catalão-GO, especificamente da
comunidade rural São Domingos. O estímulo por esta pesquisa surgiu durante a disciplina da
graduação no Curso de Letras, habilitação em Português e Inglês, da UFG/Regional Catalão,
“Tópicos em análise linguística”, ministrada pela Prof.ª Dra. Maria Helena de Paula.
Posteriormente, sob a orientação da docente supracitada, desenvolvemos o trabalho de
conclusão de curso intitulado “Cultura rural e religiosidade popular: um estudo da força
pragmática da palavra na comunidade São Domingos, Catalão-GO”. Devido às exigências do
Comitê de Ética, para um aluno da graduação, este trabalho de TCC não pôde se assentar em
registros gravados das falas dos sujeitos.
Ademais, a motivação para pesquisar o discurso cultural-religioso no meio rural
resultou do fato de pertencermos a esse mundo, no qual vivemos durante muitos anos e
possuímos laços de parentesco e amizade, participamos dos eventos religiosos ali realizados e
mantemos um saber adquirido nas nossas vivências com as pessoas mais velhas do lugar.
Assim, a pesquisa é uma oportunidade de conhecer mais aprofundadamente a cultura da qual
também somos atores – agora, com pesquisa de campo direta.
Somam-se a isso os trabalhos realizados durante o período de iniciação científica
PIBIC/CNPq (2009-2010; 2010-2011) e PIVIC (2011-2012), sob a orientação da Prof.ª Dra.
Estevane de Paula Pontes Mendes, do Departamento de Geografia-UFG/Regional Catalão. Na
oportunidade, tivemos acesso a estudos sobre agricultura familiar, cultura rural e religiosidade
que, desde então, despertaram o interesse por aspectos atinentes ao ethos rural.
Outrossim, para os Estudos da Linguagem, a importância do assunto se instaura
porque à linguagem se relacionam as práticas culturais presentes nas memórias de pessoas, no
caso de nosso estudo, as mais velhas do meio rural. A importância reside, pois, na possibilidade
de se reconhecerem nesse discurso cultural traços da mundividência da religiosidade popular a
partir da força pragmática da palavra, da sua dimensão mágico-religiosa, ou seja, a acreditada
capacidade de certas palavras, ditas em determinadas circunstâncias, intervirem de modo
prático na realidade, conforme a(s) intenção(ões) e ações de quem as produz. Em relação a isso,
conjecturamos que, no uso da linguagem nas práticas do catolicismo popular abrangidas nessa
pesquisa, a palavra ganha essa dimensão, esse valor que conjuga magia e religião.
Percebe-se que não há preocupação e/ou ambiente propício para as gerações mais
novas acessarem e conhecerem elementos culturais da religiosidade popular nas vivências
11
rurais, que tendem a desaparecer se não forem aprendidos. Assim, ao tratar dessas práticas e
registrá-las, elas se conservarão para futuros interesses em conhecê-las a partir da memória
guardada e divulgada na publicação de trabalhos. Além disso, o estudo é subsídio ao nosso
aperfeiçoamento em pesquisas na área de discurso cultural, bem como forma um corpus
relevante para o estudo da língua portuguesa falada em Goiás.
Finalmente, esta pesquisa acrescenta-se a tantas outras que se incumbem do estudo
da linguagem e da sua inter-relação com a cultura. Por isso, esperamos que o estudo produza
informações importantes sobre cultura popular, religiosidade popular e estudo da linguagem,
de forma que contribua para o desenvolvimento científico na grande área de Letras, bem como
para o registro das informações e dos resultados obtidos de suas análises, além de ser um
registro gravado das memórias religiosas dos sujeitos; a transcrição poderá minimizar o risco
de se perderem (ou se modificarem) ao longo dos anos, posto que se transmitem por meio da
oralidade, que é fugidia por natureza.
A pesquisa tem caráter qualitativo-interpretativo e caracteriza-se como mista, pois
parte de estudos teóricos e, concomitantemente, procede-se à pesquisa e gravação das falas dos
indivíduos que melhor se inscreveram nas pretensões do trabalho.
Organizamos nosso estudo de modo a dar cabo do que propusemos. No primeiro
capítulo, “No encalço dos falares: recortes teórico-metodológicos”, descrevemos os
procedimentos metodológicos da pesquisa. Partimos, assim, dos aspectos históricos acerca do
locus da pesquisa, apresentamos os sujeitos cujas falas revelam as memórias orais que
estudamos e, no fim da seção, explanamos os procedimentos empregados na construção e
transcrição do corpus de análise. Abordamos, também, o método de análise do material.
No segundo capítulo, intitulado “Mágico-religioso no catolicismo popular”,
apresentamos reflexões sobre cultura e cultura popular; tecemos considerações sobre a história
da constituição do catolicismo popular no Brasil; elencamos as circunstâncias desta constituição
e expomos traços relativos a esta forma de culto circunscrita às práticas canônicas e
institucionais mais rígidas. Na última seção deste capítulo, tratamos especificamente da
nomenclatura que abarca o campo da magia e da religião e, nesse processo, acrescentamos
exemplos extraídos do corpus.
No terceiro capítulo, com título de “Dimensão mágico-religiosa da palavra”
desenvolvemos a análise dos dados extraídos do corpus, relacionando-os a teorias que versam
acerca da inter-relação língua, cultura e memória, apoiando-nos em autores que desenvolvem
estudos sobre a dimensão mágico-religiosa ou pragmática da palavra, tais como Gusdorf (1977)
e Biderman (1998).
12
Constam ainda, como anexos, o Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em
Pesquisa aprovando nosso estudo e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que
fora apresentado aos senhores e senhoras.
13
I NO ENCALÇO DOS FALARES: RECORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS
[...] pa podê# o[u] benzê o[u] pidi a Deus, nóis tem que tê a ação né, o# sê assim a# o jeit' assim, um moral, um jeito pa podê falá cum Deus, né?
(N1F63i).
Consideramos que, no âmbito científico, o conhecimento consistente advém da
investigação aliada ao despojamento da subjetividade e calcada, sobretudo, em um método e
em um objeto de estudo. Assim, temos convicção de que o conhecimento construído
cientificamente deve ultrapassar a experiência circunstancial, ou seja, ir além do fato em si, do
fenômeno isolado e do senso-comum (RAMPAZZO, 2002). É nesse sentido que visamos à
investigação científica de aspectos geralmente associados ao campo das crenças populares, mas
que apresentam condições de ser analisados pela interdependência entre língua e cultura.
Entretanto, temos ciência de que não podemos negar a validade do que propõe o conhecimento
popular, prático que é para orientar os indivíduos na solução dos seus enfrentamentos diários,
mesmo que sujeito a erros e equívocos (COELHO, 2006).
Para o desenvolvimento da pesquisa científica, é fundamental um método que
assegure este processo de forma clara e objetiva. Por método, do grego meta (caminho) + ódos
(mais direto), compreende-se “[...] um conjunto de procedimentos sistematicamente organizado
que visa um resultado mais rápido (não perder tempo em vias paralelas e adjacentes), mais
seguro (porque já conhecido) e mais válido (posto que diminua a margem de erros)” (COELHO,
2006, p. 43). Para Santos (2004), este é o atalho facilitador do processo investigativo científico,
cuja produção de conhecimentos é o resultado mais importante.
Sob esta perspectiva, esta seção trata da metodologia da pesquisa, do estudo do
método, isto é, das suas etapas e dos procedimentos que foram empregados no estudo. Para
tanto, partimos da contextualização histórica acerca do locus da pesquisa, de modo a localizá-
lo dentro de um contexto maior; em seguida, apresentamos os sujeitos cujas falas investigamos.
No final da seção, descrevemos os procedimentos de composição e transcrição do corpus.
1.1 Do locus da pesquisa: Goiás, Catalão e São Domingos
A comunidade São Domingos, que integra a zona rural do município de Catalão-
GO, é dotada de traços socioculturais pertinentes ao desenvolvimento deste estudo, por haver
ali pessoas que ainda mantêm crenças e práticas culturais-religiosas condizentes ao nosso
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objetivo, como benzedeira e rezadores de terço, bem como pessoas conhecedoras destas e de
outras práticas em que a palavra se apresenta como elemento imprescindível.
Distando-se a 30 quilômetros da sede municipal, a comunidade São Domingos se
localiza na parte nordeste do município de Catalão-GO e possui duas vias de acesso: a GO-210,
que liga Catalão ao município de Davinópolis-GO, e a BR-050, que liga Catalão a Brasília-DF.
É popularmente dividida em São Domingos I (comunidade de cima) e II (comunidade de baixo),
sendo a área de concentração selecionada para a pesquisa o nucleamento do Centro Comunitário
São Sebastião, da comunidade São Domingos I (VENÂNCIO, 2008) (Ver destaque no Mapa 1).
Mapa 1 - Localização da Comunidade São Domingos, município de Catalão-GO.
Antes de apresentar a comunidade especificamente, trazemos um pouco da história
que a cerca e antecede, partindo de um contexto maior, para compreender as transformações
operadas sob os diversos aspectos. Assim, nos é facultado ter uma ideia mais precisa dos
antecedentes do grupo investigado e das culturas que herdaram.
Goiás insere-se no processo de ocupação do território que já ocorria desde meados
do século XVI, movido das Capitanias litorâneas para o interior. O território goiano surge no
cenário colonial mais precisamente no século XVII, quando expedições exploratórias, sob
15
mando e patrocínio da Coroa, adentravam o sertão do Brasil Central em busca de riquezas,
especialmente de jazidas auríferas, e de índios para escravização, vez que na região costeira
estes estavam rarefeitos. Tal processo desembocou da descoberta e extração de ouro nas Minas
(atual estado de Minas Gerais) e se esparramou para as regiões doravante delimitadas Goiás,
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, não necessariamente nessa ordem (PALACÍN, 1972).
Em seus trajetos, os grupos desbravadores fixaram povoados, posteriormente
elevados a diversas categorias, conforme se desenvolviam, até se consolidarem como cidades.
Durante esse percurso, a rarefação do ouro e a consequente decadência1 da atividade mineradora
fizeram com que as aglomerações urbanas, outrora inchadas por razão da mineração, perdessem
habitantes para atividades agropastoris. Promovia-se, assim, já no século XVIII, a migração
para outras Capitanias ou para zonas devolutas, como assegura Palacín (1972, p. 156): “A nova
configuração que adquire a Capitania com a decadência é a ruralização da vida: de uma
população radicada, quase exclusivamente, em centros urbanos – por pequenas que essas
povoações fossem – passa-se a uma dispersão atomizada da população pelos campos”.
Assim, Gomez (1994) informa que a ocupação do campo também significou o
surgimento de núcleos urbanos para atender às necessidades da população que se estabelecia.
Nesse momento, mais precisamente nas últimas décadas do século XVIII, atividades agrícolas
e pecuárias ganhavam impulso na economia, para provimento do mercado inter-regional, e aos
núcleos urbanos se reservavam as funções religiosas, sociais e administrativas mais elementares
(GOMEZ, 1994; MENDES, 2005). A esse respeito, Mendes (2005, p. 137) registra que:
A decadência do ciclo da mineração desencadeou fluxos e refluxos de correntes migratórias e de capital em escravos. O campo começa a ser povoado e as vilas despovoadas, sugerindo uma herança do sistema mercantil colonial, em que a decadência do sistema mercantil possibilitou o surgimento de uma nova economia agropecuária.
Segundo afirma a autora, esta mudança de economia mineradora para a
agropecuária figura a inclusão de Goiás no sistema capitalista que se desenvolvia. Assim, deu-
se um processo de interiorização por concessão de propriedades e, também, por posse. A
legitimação desta escapava ao controle da Coroa e a legalização das terras apossadas era feita
1 A tese da decadência foi contestada por Chaul (1997), mas no nosso trabalho optamos por adotar as ideias de
Gomez (1994), sem nos atermos à discussão empreendida pelo discpíulo ao seu mestre. Interessa-nos, sobremaneira, apresentar a ruralização como característica de Goiás pós-mineração.
16
a partir de “brechas2” na legislação, resultando em grande concentração fundiária e capital.
Vale destacar, ainda, o declínio econômico em Minas Gerais e no Nordeste do país,
paragens de volumosa expansão demográfica e ocupação antiga, que “fomentou contínuos
deslocamentos populacionais para o Centro-Oeste, contribuindo para a ampliação do sistema
econômico agrícola, pecuarista e comercial, desde o começo do século XIX.” (MENDES, 2005,
p. 139).
Nesse processo histórico, cumpre citar a política coronelística nos diversos âmbitos
do poder, que representou obstrução ao progresso do estado de Goiás; a substituição do trabalho
escravo por trabalho livre; a expansão da malha ferroviária, no início do século XX, que
conectou Goiás a Minas Gerais, a São Paulo e, por conseguinte, ao circuito do mercado
brasileiro; e a instalação de infraestrutura em transporte, com a construção de Goiânia-GO
(1933) e Brasília-DF (iniciada em 1956).
Nesse percurso, brevemente apresentado, Goiás veio se consolidando e, por meio
de uma nova concentração de terras, dessa vez sob domínio de grupos empresariais cuja
produção está voltada ao cultivo de grãos para exportação, desencadeou-se “[...] um processo
crescente de exploração dos recursos naturais e humanos e, ainda, contribuindo para a expulsão
do homem da terra e, assim, eliminando as condições para a produção familiar tradicional.”
(MENDES, 2005, p. 143).
Segundo Gomez (1994, p. 21), a origem de várias cidades goianas fundadas no
século XIX, se dá na época do “[...] segundo povoamento de Goiás, de características
diametralmente opostas ao primeiro povoamento, o da mineração”. No que tange à história de
Catalão, constante no legado bibliográfico de memorialistas catalanos como Cornélio Ramos
(1984) e Maria das Dores Campos (1979; 1985), buscamos informações na obra de Gomez
(1994), segundo o qual a história deste município tem princípio no processo de entradas e
bandeiras pelo interior central do Brasil.
O autor diz que, durante a passagem da bandeira de Bartolomeu Bueno Filho pela
região, fixou-se, em 1722, um ponto de pouso, cuja função era dar apoio e provisões aos
expedicionários que por ali passassem. Além disso, o ponto servia como referência nas idas e
voltas de São Paulo ao interior goiano. Nesse ponto de pouso, junto a outros integrantes da
bandeira de Bartolomeu Filho, estacionou um espanhol apelidado por Catalão, daí o suposto
motivo nomeador da futura cidade que ali se desenvolvera.
2 Para a problematização do que Mendes (2007, p. 90) chama de “brechas” na legislação, aconselhamos a leitura
de “Estrutura fundiária em Goiás: consolidação e mudanças, 1850-1910” (LUZ, 1993), cuja abordagem não é nosso foco principal neste estudo.
17
Consoante o crescimento da população, a integração de propriedades, o
estabelecimento de residências e casas comerciais e outros fatores, o ponto de pouso tornou-se
arraial em 1820; em 1833, passou à condição de freguesia; em 1834, instalou-se a vila; passou
a sediar a Comarca do Rio Paranaíba em 1850 e, finalmente, em 1859, foi elevada à categoria
de cidade. Vale citar que, em 1832, Catalão foi consagrada capela curada (capela com sacerdote
permanente) e, em 1835, freguesia de natureza colativa (com vigário permanente e paróquia
estabelecida), por razão da sua desvinculação do município de Santa Cruz (GOMEZ, 1994).
Evidentemente, muitas outras transformações ocorreram no decurso da conjuntura
do capital industrial e outras estratégias econômicas, sociais e políticas. É sabido que, no
decorrer da história, sucederam-se a desvalorização do trabalho e das atividades produtivas
familiares rurais, o decorrente o êxodo rural, o desenvolvimento urbano, os avanços
tecnológicos nos mais diversos âmbitos da sociedade, os problemas ambientais e numerosos
outros sintomas contemporâneos. Todavia, não nos ateremos a estes pormenores esquivantes
ao caráter conciso desta seção, justificado na natureza do estudo, embora cientes da notável
importância que têm.
Ainda que, em linhas gerais, possamos nos embasar no panorama histórico
anteriormente elaborado, a escassez de registros documentados acerca da constituição das
comunidades rurais no município de Catalão e das áreas circunvizinhas se apresenta como um
obstáculo para a contextualização histórica do lugar, da ocupação dessa parte das áreas do
Cerrado goiano e da organização das famílias que ali se instalaram e se desenvolveram.
De modo a minorar esse hiato histórico, recorremos a estudos acadêmicos já
realizados sobre essas comunidades rurais, como o fez Mendes (2005), e, especificamente, na
comunidade São Domingos, Venâncio (2008). Estes trabalhos valeram-se de entrevistas e
outros registros orais e, por intermédio da memória dos habitantes mais antigos, constam
informações sucintas sobre o início do povoamento e a origem das primeiras famílias.
Mendes (2005, p. 9) pesquisou as comunidades rurais Mata Preta, Ribeirão e Morro
Agudo/Cisterna, todas inscritas no município de Catalão. Seu principal intuito foi “[...]
compreender e analisar o contexto em que surgiram e desenvolveram os pequenos produtores
na sociedade brasileira e suas possibilidades de reprodução na atual conjuntura,
particularmente, no município de Catalão [...]”. Segundo a autora (2005, p. 157), a chegada da
população sucedeu-se por volta do final do século XIX, “com a vinda dos primeiros colonos de
origem portuguesa que iniciaram a ocupação das atuais comunidades rurais do município”. Em
sua maioria portuguesas e mineiras, as famílias “[...] vieram em busca de terras de boa qualidade
e com preço acessível.” (MENDES, 2005, p. 172).
18
Venâncio (2008, p. 11), cujo trabalho teve o propósito de “[...] compreender a
importância política, econômica e cultural da agricultura familiar na comunidade rural São
Domingos em Catalão-GO a partir da leitura do território”, informa que muitos moradores
partiram de comunidades vizinhas e se instalaram na região de São Domingos. Baseado nos
depoimentos de três moradores mais antigos, o autor indica que a partir das famílias “Rabelo e
Borges”, “Neiva” e “Mesquita”, “[...] inicia-se o processo de territorialização na comunidade.”
(VENÂNCIO, 2008, p. 115).
Diante das informações dispostas, os sujeitos da pesquisa ingressam, como veremos
adiante, nessas duas condições – moradores do lugar desde que nasceram e moradores de outras
comunidades que se mudaram para a de São Domingos há anos. Um dos narradores nasceu em
uma comunidade vizinha (comunidade Sucupira) e se instalou na de São Domingos
posteriormente; os outros cinco – incluindo o casal e filha – são nascidos na comunidade e têm,
assim, suas propriedades como heranças deixadas pelos pais. Adiante, apresentamos estes
sujeitos e uma síntese das visitas.
1.2 Dos sujeitos da pesquisa
1.2.1 Investigando fontes orais: delineamentos metodológicos
Focados no estudo das fontes orais, nesta subseção, traçamos os procedimentos
metodológicos para a delimitação, a composição e a transcrição do corpus. Trabalhar com essa
modalidade da língua pode requerer um percurso que passe pela verificação da pertinência do
material a ser coletado, pela formalização do estudo, garantindo-lhe integridade ética (no caso
de pesquisas que ainda não disponham de material já constituído), até o inventário dos dados,
o qual tem na transcrição da língua oral a chave para observação mais aguda e manejo do texto,
de acordo com o propósito investigativo.
O pesquisador que se dispõe a estudar fontes orais deve ater-se a alguns fatores que
irão garantir a exequibilidade da pesquisa e, logo, a composição de um corpus pertinente aos
aspectos linguísticos que se objetiva descrever e analisar. Dito assim, concordamos com Paula
(2010, p. 29) que “[...] os estudos linguísticos reclamam para si a necessidade de preocupação
com o material da pesquisa, que há de trazer o fato efetivamente registrado, não
necessariamente o que o pesquisador deseja ou espera encontrar.” Com base nisso, as nossas
19
conversas se orientaram sem a necessidade de um roteiro pré-estruturado3, porque foi o
andamento dos diálogos que direcionou o material a ser gravado. Desse modo, para evitar
narrativas livres e desvios das temáticas que propomos tratar, as perguntas foram sobre as
crenças dos sujeitos, os santos de devoção, os expedientes de fé, as manifestações e rituais que
conhecem e/ou de que participam, entre vários outros assuntos que envolvem religiosidade.
Nesse sentido, é prudente fazer uma pré-análise acurada do locus, ou dos loci, a
partir do(s) qual(is) o estudioso da língua pretende compor seu material de pesquisa, de forma
a verificar se os traços culturais dos falantes e o possível material a ser coletado estão de acordo
com o propósito do pesquisador. Isso realizamos em momentos anteriores, nas nossas vivências
na comunidade e noutros trabalhos outrora realizados, tendo-a como campo de pesquisa. O
caminho inverso, ou seja, planejar a pesquisa com base no material linguístico-cultural que um
indivíduo, ou um grupo de indivíduos, apresenta, pode salvaguardar o pesquisador do risco de
não-coincidência do material esperado (PAULA, 2010a).
Inferimos, sumariamente, que importa ao pesquisador, com base nas hipóteses da
sua pesquisa: a) delimitar uma área de pesquisa – por exemplo, se o objetivo é obter textos orais
sobre a linguagem inerente às crenças e práticas do catolicismo popular, o pesquisador tem que
delimitar uma área onde esses elementos façam parte da cultura; b) definir o perfil dos
narradores – retomando o exemplo anterior, cabe questionar quais falantes (idade, sexo,
religião, ofício etc.) revelarão, em suas produções orais, a linguagem e as informações relativas
aos assuntos-alvo e c) fazer visita prévia à área de pesquisa delimitada, para verificar os dois
itens anteriores – trata-se, também, de um momento para estabelecer contato para convívio com
os pretensos sujeitos, ou com as pessoas que podem facilitar este acesso.
Assim posto, descrevemos adiante os procedimentos dos quais lançamos mão na
pesquisa das fontes orais.
1.2.2 Delimitação do corpus e formalização da pesquisa
O convívio com os indivíduos, para o registro dos textos orais, é fulcral para o nosso
estudo. Entendemos, pois, que o empírico se reporta à experiência, a tudo que existe e pode ser
reconhecido por meio desta, e não por meras idealizações e possibilidades (RUDIO, 2007). Dessa
3 Cabe explicar que por roteiro pré-estruturado compreendemos um conjunto de perguntas a ser seguido durante o
diálogo. No caso das nossas visitas, já íamos com algumas perguntas direcionadas, todavia sem estabelecer determinada ordem e ter a obrigação de contemplar todas, porque, conforme o desenrolar da conversa, surgiam outros questionamentos pertinentes ao momento narrativo.
20
forma, os textos orais obtidos nas gravações compõem o material pelo qual acessamos as
experiências religiosas dos sujeitos, o que não poderíamos fazer por outras fontes, pois estas
experiências não estão encerradas em documentos, em livros etc., e sim no narrar daqueles que
as mantêm vivas na memória e/ou ativas no quotidiano.
Concordamos com Machado (2002, p. 341) que “[...] para compreensão das
representações mentais, da forma como o imaginário popular e a memória coletiva são
construídas, não poderemos deixar de assinalar a importância das entrevistas orais e das histórias
de vida [...]”. Então, assentados no material gravado e transcrito, descrevemos e interpretamos a
realidade que se mostra em cada trecho narrativo, de modo a dar consistência às discussões que
convergem ao objetivo geral da pesquisa.
A etapa de formalização do estudo no Comitê de Ética em Pesquisa (COeP) da UFG
consistiu em obter autorização para o registro das falas (gravações de áudio e fotografias que
não identifiquem os sujeitos), observando a preservação da identidade dos sujeitos e dos seus
dados pessoais. Nesse processo, elaboramos o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”
(TCLE), a partir do qual explicamos em pormenores as informações acerca da pesquisa, as suas
etapas, os direitos dos sujeitos e solicitamos autorização para gravação e a assinatura do termo.
Conforme elucida Paula (2010, p. 32), “os comitês de ética entendem que se os textos orais
dizem respeito à vida ou às experiências dos falantes podem significar risco à sua vida. Por isso,
carecem de autorização daqueles cujas falas serão gravadas ou de seus responsáveis”. No caso
de pesquisas que se valem de fontes públicas, isto é, disponibilizadas publicamente, tais como
programas de televisão e rádio, Paula (2010a) ressalta que o acesso, na maior parte das vezes,
não carece de autorização. Importa destacar que a essência desta informação se aplica tanto às
fontes orais quanto às escritas.
Para essa pesquisa, de natureza linguístico antropológica, consideramos que a
amostra fosse composta por pessoas mais velhas, visto que possuem maior vivência com as
práticas que intentamos estudar. Basicamente, os requisitos que nortearam a escolha das pessoas
para a realização das gravações de fala são:
Ser católico, não necessariamente praticante, mas que conheça e acredite nas práticas e
princípios dessa religião, especialmente, em suas expressões populares;
Ser antigo morador ou ter vivido por um longo tempo na comunidade São Domingos;
Ter tido experiência nas principais manifestações de religiosidade popular presentes na
comunidade;
Estar bem informado sobre a comunidade;
21
A princípio, a intenção foi fazer gravação com um só sujeito em cada visita.
Todavia, no desenrolar das primeiras gravações, percebemos que as interferências de outras
pessoas presentes seriam pertinentes aos assuntos tratados, pois
complementavam/acrescentavam dados relevantes para a pesquisa. Diante disso, decidimos por
realizar a última gravação com uma família (pai, mãe e filha), de modo a experimentar essa
interação entre os narradores.
Concluídos os procedimentos supracitados, partimos para a realização das
gravações de fala.
1.2.3 Procedimentos de composição do corpus
Nesse momento, previamente, observamos alguns cuidados básicos, a saber: a) o
domínio do equipamento de gravação, a fim de evitar que problemas técnicos a inviabilizassem
e b) uso de um gravador de boa qualidade, que tornou a gravação mais nítida e focada na voz
do interlocutor, de modo a facilitar o processo de transcrição. Durante as nossas visitas, nos
valemos de um aparelho gravador da marca Panasonic, modelo RR-US511, de uso dos
pesquisadores do Laboratório de Estudos do Léxico, Filologia e Sociolinguística (Lalefil) /
UFG-Regional Catalão.
A gravação de fala propicia uma inventariação fidedigna do universo sócio-
linguístico-cultural reproduzido em sua real perspectiva de mundo. Ao procedê-la, se o
pesquisador pretende registrar uma fala espontânea e menos cuidada, é necessário estabelecer
um diálogo descontraído e manter o interlocutor o mais confortável possível, de maneira a
interferir minimamente na conversa, cabendo ao pesquisador orientá-la, “puxando” os assuntos
que lhe interessam tratar.
Na ocasião das visitas, fizemos, também, anotações com observações, como as
reações adversas, os gestos, as expressões faciais, enfim, elementos não-verbais que não são
registrados nas gravações, mas que podem, de certa forma, contribuir para a análise e
interpretação dos dados.
Ao término de cada visita, resguardamos o material gravado por meio do
armazenamento de cópias de segurança em locais restritos e protegidos do acesso por terceiros,
uma vez que ali constam informações pessoais a serem mantidas em sigilo, bem como para não
corrermos o risco de alguma pane corromper o arquivo e causar sua perda.
Todas as visitas foram previamente agendadas via telefone. O contato com os
sujeitos não se fez dificultoso, pois fomos sempre acompanhados pela nossa mãe, cuja
22
convivência na comunidade é de longa data e remonta a relações de vizinhança e parentesco
desde outras gerações. Ademais, observamos que o gravador de áudio pareceu não ser estorvo
durante os diálogos. Convém esclarecer que, das seis pessoas pesquisadas, três, em ocasiões
anteriores, já haviam sido entrevistados por acadêmicos de outras áreas de estudo, o que, por
certo, colaborou para a fluidez das narrativas.
Vivemos desde o nascimento até os 22 anos na comunidade investigada, mantendo
estreitas relações com as pessoas visitadas, mas a presença da nossa mãe foi imprescindível
para deixar o ambiente mais familiar e facultar a espontaneidade das conversas. Outro fator de
notável importância foi a presença da orientadora da pesquisa durante a primeira visita. Sua
experiência adquirida nos trabalhos com fontes orais, inclusive com sujeitos da região de
Catalão4, permitiu ao pesquisador, “entrevistador de primeira viagem”, uma observação valiosa
do modo como se dá direção à conversa, “puxar” os assuntos, aprofundar em certos fatos para
a obtenção de detalhes importantes, entre muitos outros aspectos fundamentais para o bom
andamento dos diálogos.
Para referenciar os sujeitos da pesquisa, de maneira a agir eticamente e, assim,
manter sob sigilo a sua identificação, criamos os seguintes códigos identificadores: N de
narrador, seguido do numeral cardinal indicador da ordem das visitas, M ou F para indicar o
sexo, seguido de numerais cardinais correspondentes à idade do sujeito na ocasião da visita e,
em caso de visitas realizadas em mais de um dia, na mesma casa, consta o número romano (i,
ii) indicando a ordem temporal da visita. Para identificar a gravação com a família, composta
por três pessoas, distinguimos cada um utilizando os códigos acima acrescidos da letra f
minúscula após a idade. Assim, temos:
N1F63i – narradora número um (N1F), sessenta e três anos de idade (63), primeiro dia de
visita (i), realizada no dia 12 de novembro de 2013, à mesa da cozinha de sua residência
na área urbana de Catalão-GO.
À tardezinha, numa terça-feira, partimos para a casa desta senhora, onde estavam
ela e o marido a nos receberem gentilmente. Depois dos cumprimentos e outras conversas,
explicamos o motivo da nossa presença e iniciamos a gravação. A maior parte do tempo, a
orientadora desta pesquisa deu norte ao diálogo. Por ser a primeira visita, sem roteiro pré-
estruturado, o papel e a companhia da professora orientadora foram essenciais para o bom
4 Ver tese de Paula (2007).
23
proveito das ulteriores, uma vez que assistir e participar vis-à-vis da prática facilitou bastante o
nosso exercício como aluno pesquisador.
Diferentemente das visitas realizadas na zona rural, notam-se nas transcrições dessa
conversa algumas interferências de chamadas de interfone e telefone celular que, às vezes, nos
impeliram a pausar o gravador e interromper o diálogo, embora a narradora, sempre que pôde,
tenha pedido a alguém presente para atender aos chamados. Essas interferências são
corriqueiras no ambiente urbano, em função de diversos fatores, como a proximidade das casas,
a tecnologia acessível. Todavia, convém assinalar que isso não atrapalhou o desenrolar de
memórias da narradora, do seu antigo e recente passado no mundo rural e do forte vínculo que
ainda mantém com as coisas “lá da roça”.
A senhora N1F63I nasceu na fazenda São Domingos, “de parto normal, cum
partera, lá na, lá na fazenda mesm', né?” e relata que viveu lá toda sua vida no lugar onde,
depois de casada, criou todos os seus filhos. Ela disse que já havia sete anos que se mudara da
fazenda para a cidade de Catalão, onde atualmente vive com o marido, mas que nem por isso
deixara as suas coisas “lá da roça”: “Gos[to] de torrar meu café, gos[to] de... fazê meus biscoit',
meus doce [...] Do jei'# do jeitim que a gente, que a gen' 'custumô, né? É ... os remédim casero,
eu gos[to] de fazê, sabe? [...] Ou mesmo uma binzição, né?”. Relata, convicta, que procura
preservar os costumes de antigamente, do tempo dos avós dela, algo que julga ser muito
importante para a sua vida.
Entre os muitos conhecimentos que tem sobre as manifestações culturais religiosas,
destacamos seu dom de benzer. Este ofício, transmitido por gerações, foi aprendido,
primeiramente, ao observar sua avó benzendo o irmão para curar quebranto: “Eu escutano ela
falá, né? E eu era muit# bem novinha, acho que eu tinh'uns cinco ano pur'aí. Aí eu aprindi, né?”.
Depois, quando percebeu que as pessoas passaram a ter fé nas suas benzeções, ela se dedicou a
outras rezas (para cobreiro, erisipela, mal-olhado) e aprendeu a fazer remédios caseiros para
tratamento e cura de diversos males. Tais ofícios e saberes a fazem ser, até hoje, frequentemente
procurada para proceder às suas benzeções.
Na exemplificação de algumas rezas e rituais, assim como em muitos outros dados
oferecidos, encontramos um rico material para alimentar as discussões propostas nessa
pesquisa, visto que a palavra se mostrou elemento basilar para tais procedimentos. Adiante, na
análise, apresentamos tais minudências.
Ao fim da visita, presenciamos a chegada de pessoas à casa da narradora, pois
haveria ali, naquele dia, a reza do terço. Assim, ficou combinado de voltarmos em outro
24
momento, o mais breve possível, para conhecer seu altar doméstico e conversar sobre plantas
medicinais e outros assuntos relacionados.
N1F63ii – narradora número um (N1F), segundo dia de visita (ii), realizada em 22 de
novembro de 2013, à mesa da área dos fundos de sua residência, na área urbana de
Catalão-GO.
Neste segundo dia, retornamos à casa da senhora N1F63ii para tratar sobre plantas
medicinais, remédios caseiros e um pouco mais sobre benzeção. Após um tempo de conversa
acerca dos remédios caseiros, “chazinhos”, benzeções etc., a senhora N1F63ii nos conduziu a
um altar no corredor da sua casa, no qual ela mostrou uma infinidade de imagens de santos,
explicou os prodígios conferidos a cada um e apresentou outros tantos objetos sagrados, como
ramos e velas, usados em rituais de abrandamento de chuvas fortes, e presentes trazidos por
parentes e amigos de diversos lugares do Brasil e do mundo, como um terço de Jerusalém.
N2M82 – narrador número dois (N2M), oitenta e dois anos de idade, visita realizada no
dia 29 de janeiro de 2014, à mesa da área dos fundos de sua residência na comunidade
rural São Domingos, município de Catalão-GO.
O senhor N2M82 nos recebeu junto à sua esposa numa manhãzinha de quarta-feira.
Da cozinha, após o café da manhã, eles nos guiaram para a mesa da área contígua à cozinha,
por acharem o espaço mais acomodado. Ali, depois de explicado minuciosamente o porquê da
ocasião e tomada a autorização, começamos a conversa.
Ao ser perguntado sobre a infância, ele responde que, na verdade, não a teve, pois
quando criança trabalhara para ajudar o pai nas atividades da fazenda. Nascido na região
conhecida como Sucupira, “pertim de Catalão ali”, aos dezesseis anos, mais ou menos, ele ficou
órfão de mãe junto aos seus cinco irmãos e seis irmãs. Assim, ele fala da educação rígida que
teve, das muitas dificuldades que enfrentara no passado, das épocas em que trabalhou de
candeeiro, fabricava barracão e rodas de fiar, consertava espingardas, cortava cabelo, afinava
sanfonas, entre outros ofícios. Casou-se aos vinte cinco anos e, após dez anos, enviuvou-se.
Depois, contraiu matrimônio novamente, pois precisava de uma companheira, esposa, mulher
para “cuidá dos menino”.
Disse que seu pai e sua mãe eram muito católicos, por isso desde criança ele se
reconhece dentro dessa religião: “Nasci dento dento da relijão, né?”. Entre outros assuntos, o
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senhor narra seu passado, citando alguns preceitos da Quaresma: “Num podia xingá, num podia
[as]subiá, num podia fazê nada, né? [...] diz que tinha lobisome, né, mula-sem-cabeça, né?”.
Fala dos santos de sua devoção, do batismo na fogueira, dos velórios de antigamente e de
quando levou os filhos pequenos em benzedeiras. Relembra a manifestação conhecida como
“encomendação das almas”, a “mesa dos inocentes”, que sua avó realizava, os terços, as
novenas e as ocasiões em que a mãe saía junto às vizinhas para “[a]guá a cruiz, né, e lá punh'as
pedra lá, rezava terço pa chovê, né?”.
Ademais, o narrador fala acerca de fatos curiosos, como o ritual para retirar piolhos
do paiol, que segundo ele, também serve para retirar “lagarto nu a roça”. Refere-se ao poder da
mente: “a nossa mente el[a] é muito importante nóis sabeno usá ela, né? Com a# com a força
divina, né, [por]que nóis sem a força divina, né# nóis tem que dá graças a Deus”; à força da
palavra: “Pruque ua palavra machuca, né?”; refere-se, ainda, a uma oração ao Arcanjo Gabriel
para abrandandamento de “chuva braba”.
N3M79 – narrador número três (N3M), setenta e nove anos de idade, visita realizada no
dia 11 de março de 2014, à mesa da cozinha de sua residência na comunidade rural São
Domingos, município de Catalão-GO.
Na manhã de uma terça-feira, o senhor N3M79 nos recebeu em sua casa, na fazenda
onde vive sozinho – a mulher falecera há alguns anos e os filhos se mudaram para a cidade
desde jovens. Nascido na comunidade, relata que cresceu dentro da religião católica e sempre
a teve muito presente na sua vida: “desde piquenim a minha mãe m'insinava as orações, né, não
deitava se num rezasse de jeito# não dormia se num rezasse.” Fala da sua primeira comunhão,
aos nove anos de idade, dos vários cursilhos e de outros eventos da Igreja dos quais participou.
Contou que é vicentino5 desde 1973: “eu sô vicentino, também é um trabalho munto bom puque
ajudá o otro, né?”.
O narrador é rezador de terços, assim como era seu avô. Sabe dos terços para
diversos santos, como São Sebastião, Santo Antônio, Nossa Senhora da Abadia e São João e
fazia questão de demonstrar algumas partes desses terços, inclusive trechos em latinório: “A
ladainha, é, tem vint'e tantos verso: <<équele eleizone, quedist'eleizone, quele eleizone,
quedist'eleizon' de nós>>”.
5 “relativo a ou membro da congregação fundada por São Vicente de Paulo, ou a alguma outra com ela relacionada”
(HOUAISS; VILLAR, 2009).
26
O narrador fala da “encomendação de almas”; de algumas atribuições dadas a santos
específicos, relacionando-as à vida do santo na Terra; dos votos que se fazem aos santos; das
orações de proteção; dos batizados em casa; dos detalhes da organização e objetivo das novenas
em louvor aos santos; da “Folia de São Sebastião”, que anualmente visita a comunidade, entre
outros assuntos atinentes à religiosidade. Ele conta causos de assombração e relata, também,
algumas histórias curiosas de benzeções, conquanto ponha em dúvida a eficácia de alguns
casos, e afirma que qualquer um pode benzer: “eu acho que num tem benzedô milhor do que
'ocêis, 'cê benzê sua mãe, ela te benzê, né? ”.
No início da conversa, o senhor pediu um tempo e foi até outro cômodo próximo à
cozinha em que estávamos para buscar algo que só foi revelado no final, tratava-se de uma
antiga carteira de couro, na qual guardava documentos dos pais, uma caderneta de anotações,
que pertencia a seu avô, em que constam registros de gastos e empréstimos de dinheiro, vendas
de gado, entre outros objetos que, entusiasmado, ele nos mostrava e, ao mesmo tempo, narrava
as lembranças evocadas.
Essa visita, assim como as demais, compõe um material importante para nossa
análise. Temos, aqui, textos de rezas de terços, de cantos “benditos”, explicações de como eram
procedidos e, ainda, o uso incomum da reza do Credo, que, segundo o entrevistado, rezada de
trás para frente é usada para “tirar quarqué ma[l]# coisera, né”, entre outros elementos que
explicitaremos, detalhadamente, no último capítulo.
N4F78f, N5M80f e N6F56f – narradora número 4 (N4F), 78 anos de idade; narrador
número 5 (N5M), 80 anos e narradora número 6 (N6F), 56 anos. Gravação realizada dia
20 de novembro de 2014, à mesa da cozinha da residência dos pais na área urbana de
Catalão-GO.
Fomos recebidos pelos narradores na tarde de uma quinta-feira e realizamos os
procedimentos comuns de apresentação da pesquisa e pedido de consentimento. Num primeiro
momento, estava combinado que a gravação seria apenas com o casal, que se mudara da
comunidade São Domingos para a cidade de Catalão-GO em 2003. Porém, no momento da
conversa, a filha do casal estava presente e participou da gravação. Percebemos que a interação
entre os três e nós e nossa mãe foi de uma espontaneidade muito grande, como se estivéssemos
numa visita corriqueira, sem o uso de um gravador. Decidimos, então, considerar, na
composição do corpus, a participação da filha, que atualmente vive com o seu esposo na
comunidade São Domingos.
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O casal nasceu e viveu a maior parte da vida na comunidade São Domingos, onde criou
os filhos até eles se casarem. Tanto a senhora N4F78f quanto o senhor N5M80f estão entre os
principais rezadores de terço cantado na comunidade ao lado de outras pessoas como o narrador
N3M79, sendo bastante solicitados, principalmente, nas situações de novena: “Nóir rezava
novena pu toda banda, na bera do São Marco, Corgo Fundo. Eu# nóir rezava a novena a seca
intera, trêis mêis, assim ó, terminav' a novena cume# Antes de terminá uma, cumeçava ota”
(N5M80f).
Contaram-nos nostálgicos da época que eram encomendadores de alma na comunidade
São Domingos. Assim, descreveram a manifestação com detalhes, entoaram o cântico que
usavam durante a procissão para alertar as pessoas que eles visitavam: “Rez' assim: <<[a]lerta,
alerta pecadores, óia lá que Deur não dorme, alerta6>>” (N5M80f); e a outra parte para pedir
as orações para as almas dos parentes: “Depoir falava assim, pidia os Pai-Nosso, né: <<reza lá
um Pai-Nosso pas arma de seus parente, reza>>” (N5M80f).
Entre os vários assuntos tratados durante a gravação, conversamos sobre dias santos,
benzeções, santos de devoção, batizado em casa, batizado na fogueira, preceitos quaresmais,
plantas medicinais etc. Nesse contexto, os narradores fizeram relatos de histórias de
assombrações e juraram já tê-las visto a olho nu; recordaram histórias de pessoas que foram
benzidas e que foram curadas, por exemplo, de ofensa de cobra; inclusive eles mesmos têm o
costume de recorrer a benzeções quando precisam. Falaram sobre práticas para pedir chuva,
como o “aguar a cruz”, e de um cântico usado para a mesma finalidade. Sabem, ainda, um
esconjuro para abrandar a chuva forte.
Sumariamente, descrevemos cada uma das visitas para as gravações de fala. Na
próxima seção, abordamos alguns aspectos da língua oral e os procedimentos para sua
transcrição.
1.3 Da língua em sua via oral
Tendo em vista que o desiderato da pesquisa se baseia no estudo da língua em sua
via oral, é sensato trazer à baila alguns postulados teóricos que cercam tal conceito. Partimos,
a princípio, da teoria da linguística estrutural de Saussure (1995), que define o signo linguístico
como a união interdependente de duas facetas, o significante (imagem acústica) e o significado
(conceito). Destarte, concordamos que a língua pode ser concebida como um sistema de signos
6 A partir da palavra "óia" a esposa acompanha o marido no canto.
28
linguísticos (léxico) e suas possibilidades combinatórias (gramática) disponíveis aos falantes
de uma sociedade e existente, em completude, na memória coletiva (COELHO, 2006).
Nessa linha de pensamento, há de se destacar com maior rigor a dicotomia
saussureana, langue/parole. A língua (langue) corresponde ao sistema de signos, é o produto
social da linguagem e, ao mesmo tempo, um acervo de signos configurados convencionalmente
(SAUSSURE, 1995), a partir das necessidades dos indivíduos no processo de cognição do
universo e para efeito da comunicação, ou seja, para o exercício da faculdade da linguagem,
mediante a qual o homem representa o mundo e é representado.
A fala (parole) é a atividade do falante, isto é, a concretização da língua pelo
indivíduo, num ato único, a partir da organização dos signos linguísticos disponíveis
(COELHO, 2006). Vista por uma perspectiva mais ampla, a fala é o componente individual da
linguagem, portanto é concreta, é a realização e a atualização da língua para efeito da
comunicação. Aproveitamos o momento para reiterar que são as falas, reprodutoras das
memórias dos narradores e das representações do universo no qual se veem representados, os
elementos capitais nos quais a pesquisa se apoia na composição do corpus de investigação.
Assim, ao entendermos que os signos linguísticos e as suas possibilidades
combinatórias estão armazenados na memória coletiva dos falantes da língua, num plano
abstrato, e que a realização desse sistema se dá concreta e individualmente por meio da fala,
inferimos que a língua está completa na massa, na coletividade, e não no indivíduo. Outrossim,
é a fala um dos meios principais por intermédio do qual se revelam as memórias narradas acerca
da vivência das pessoas, dos saberes adquiridos, de todo o mundo que as cerca e lhes faz sentido.
Salientamos que a dicotomia língua/fala não significa a bipartição, mas a oposição
dialética em que ambas se definem por oposição, uma vez são aspectos imbricados.
Consideramos, como Coelho (1977, 47-48), que:
Tais aspectos se acham relacionados por uma interdependência necessária. Assim é que não existe língua sem fala, nem esta sem aquela. Para que o indivíduo possa falar, necessariamente deverá ter interiorizado (aprendido) uma língua determinada, e, para interiorizá-la (aprendê-la), necessariamente só o fará através das atividades da fala [...].
Com base nos escritos do autor supradito (2006; 1977), inserimos nesse conjunto
teórico a noção de norma, apresentada por Coseriu e citada por Coelho (2006). Ao discorrer
sobre este assunto, Coelho (1977) acrescenta a coercitividade própria da normatização social.
Trata-se da força que a sociedade exerce sobre o indivíduo para que o código linguístico
permaneça imutável. Entretanto, Coelho (1977, p. 49) ressalta que o falante não permanece
29
passivo diante disso, pois, “[...] por mais coerciva que seja a sociedade, impondo um
comportamento padrão aos seus membros, o indivíduo é sujeito dentro dela, isto é, é nela
atuante.”
Devem-se levar em conta, então, a criatividade do falante, a aceitação no grupo
linguístico em que se insere e a identificação com os comportamentos (linguísticos) desse
grupo, ou seja, com o modo, ou modos possíveis e válidos, de falarem a mesma língua
(COELHO, 2006; 1977). Portanto, por norma entende-se o comportamento linguístico
consensualmente aceito numa comunidade, demarcado por fatores sociais, históricos,
geográficos e culturais. Daí decorrem as variedades sociais (diastráticas) e geográficas
(diatópicas) de uma língua, a qual subexiste a essas variedades (COELHO, 1977). Salientamos
que na transcrição do corpus nos preocupamos em preservar a variedade da língua falada pelos
sujeitos pesquisados, de modo a permitir ao leitor uma leitura mais aproximada possível dos
falares da comunidade que registramos.
Coelho (2006, p. 89) compreende que uma língua, além da totalidade do que é
armazenado na memória coletiva (memória psíquica), também se constitui “[...] do que se
encontra, por outros meios, à disposição deles [dos falantes], memória gráfica e acústica.”
Baseado nisso, o autor apresenta que, afora a dicotomia saussuriana, língua e fala, e a norma
proposta por Coseriu, convém considerar a competência linguística7. De modo genérico, esta é
a soma do que cada pessoa sabe e utiliza de maneira intuitiva, visto que consideramos que um
falante sozinho não registra a língua em totalidade, e sim parte do que aprende, retém, domina
e utiliza do sistema linguístico (léxico e gramática) à sua disposição (COELHO, 2006).
Destarte, as informações verbais registradas da nossa pesquisa são recortes da
competência linguística de cada senhor ou senhora, dos aprendizados nas suas convivências, do
uso intuitivo da língua para expressar esses saberes armazenados, sobretudo, na memória
individual que, por sua vez, se interliga a uma memória coletiva. Com efeito, percebemos
confluências, muitas vezes, nas narrativas das pessoas, compartilhantes de uma vivência em
comum, de um espaço em comum, enfim, de uma cultura e de uma língua em comum.
Por conseguinte, o autor demonstra que a competência linguística pode ser oral e/ou
escrita, sendo a primeira anterior à segunda, posto que um indivíduo desenvolve a sua
competência oral na convivência com os outros falantes da mesma língua e, num momento
posterior, sobretudo no âmbito escolar, forma a sua competência escrita (COELHO, 2006). A
fala se mostra anterior à escrita, também, numa perspectiva histórica, pois, conforme observa
7 Coelho (2006, p. 90) explica que o conceito competência linguística “[...] foi aproveitado de Chomsky (1975),
mas não totalmente coincidente com o elaborado pelo lingüista norte americano.”
30
Lyons (1982, p. 25, grifo do autor), quando aborda língua e fala, “a prioridade histórica da
fala sobre a escrita admite pouca margem de dúvida. Não se sabe de nenhuma sociedade
humana que exista, ou que tenha existido, em qualquer época, privada da capacidade da fala.”
Ressalva-se, contudo, que não se deve confundir a competência linguística de um indivíduo
com a perspectiva histórica de anterioridade da fala em relação à escrita, tendo em vista que
esta perspectiva envolve processos diacrônicos, ou seja, dá-se na história de uma língua por
ação da coletividade falante.
Faz-se oportuno, assim, tecer algumas considerações acerca da fala e da escrita,
respectivamente, do texto oral e do texto escrito. Importa compreender, de antemão, que ambas
constituem duas modalidades de um mesmo sistema linguístico verbal, e não duas línguas
separadas. Paula (2010, p. 30), ao apresentar questões referentes às fontes para pesquisas
linguísticas do português do Brasil, endossa essa ideia quando diz que as fontes para tais estudos
“[...] estão na linguagem verbal, na modalidade escrita ou na oral, e que não há duas línguas,
uma para cada modalidade: oral e escrito são os modos como se manifesta uma determinada
língua.”
Para Lyons (1982, p. 24, grifo do autor), esta é uma propriedade importantíssima,
ou seja, o fato de a língua ser “[...] independente do meio em que os sinais lingüísticos se
realizam, diremos que a língua tem a propriedade de passar por uma transferência de meio.”
Com base nisso, o autor, referindo-se aos estudiosos que tomam a língua oral como mais básica
que a escrita, questiona a ideia de supremacia da variedade padrão da língua. Como indício
desse equívoco, Lyons (1982) sublinha a dificuldade que os linguistas encontram para
convencer os leigos de que uma variedade não-padrão, assim como a variedade padrão (mais
próxima à escrita), tem regularidade e sistematicidade, isto é, possui um conjunto de regras de
correção imanentes no uso de seus falantes nativos.
Outro aspecto importante e evidente no ato comunicativo, visto que falamos de
transferência de meio, são as ideias de canal e meio/médium. A princípio, Coelho (1977, p. 29)
compreende por canal “[...] certos aparelhos ou dispositivos que permitem ao remetente
construir suas mensagens e ao destinatários recebê-las [...]”. Por exemplo, o aparelho fonador,
do qual se vale o remetente para produção da mensagem, e o aparelho auditivo, usado para
captação da mensagem pelo destinatário. O canal é responsável pelo contato entre os sujeitos
da comunicação. Mais adiante, Coelho (1977) ressalva que canal também pode ser
compreendido como a substância que possibilita a concretização da mensagem e permite o
contato material entre remetente e destinatário. Ademais, a substância é determinada
essencialmente pelo canal que se utiliza, isto é, são aspectos constitutivos da língua.
31
Coelho (1977) acrescenta que a substância é chamada de medium, ou meio,
porquanto medeia os sujeitos da comunicação, concretizando a mensagem e permitindo o
contato entre o remetente e o destinatário. Enfim, podemos construir mensagens valendo-nos
da substância sonora, como também da substância escrita, afirma o autor. Nesse caso,
considerando o processo biológico, no ato dos diálogos, as mensagens comunicadas em
meio/substância sonoro, do qual nos valemos nesse estudo, se construíram por meio dos
aparelhos sonoro e auditivo. Na intenção de ratificar essa ideia, mencionamos Lyons (1982, p.
30, grifos do autor), segundo o qual:
As noções de meio e canal são, evidentemente, intrinsecamente ligadas, na medida em que as propriedades do meio derivam das propriedades do canal normal de transmissão. Contudo, é importante distinguir as duas noções no que diz respeito à língua. Tanto a língua escrita como a falada podem ser transmitidas por uma série de canais. Ao usarmos o termo “meio”, ao invés de “canal”, não estamos atentando para a transmissão de sinais propriamente dita, em determinadas ocasiões, mas para as diferenças funcionais e estruturais sistemáticas entre o que é caracteristicamente escrito e o que é caracteristicamente falado.
Vale abrir um parêntese para justificar que, nessas linhas, estamos tratando
especificamente da linguagem verbal, ou seja, da comunicação por intermédio de um sistema
de signos linguísticos, haja vista que, no plano da linguagem não-verbal, outros meios, como
gestos e imagens, também podem participar do ato comunicativo. Isso notamos, por exemplo,
durante a transcrição do corpus, quando fazemos comentários entre parênteses para, também,
indicar aspectos extralinguísticos importantes para a compreensão do texto transcrito.
Em síntese, compreender esse sistema complexo que é a língua, a fim de apresentar
uma delimitação (ou uma associação) mais precisa entre língua escrita e língua oral, foi o
propósito dessa subseção. Nesse sentido, partimos da noção dicotômica langue/parole,
inserimos o conceito de norma, falamos brevemente da competência linguística,
desmembrando-a em competência escrita e competência oral e completamos com os conceitos
intrínsecos de canal e meio, dos quais depreendemos que a mensagem verbal, construída pelo
indivíduo, com base no seu repertório linguístico, em qualquer variedade linguística, pode se
concretizar tanto na substância oral como na substância escrita, a depender fundamentalmente
dos canais pelos quais é construída.
Assim, conclamamos os dizeres de Paula (2010a) para reafirmar que as fontes
escritas ou orais, disponíveis aos estudos da linguagem, são duas modalidades de uma mesma
língua, por conseguinte, duas formas de realização de um mesmo sistema linguístico.
32
1.3.1 Do oral ao escrito: a transcrição do corpus
Nesta subseção, tratamos de uma etapa fulcral do estudo de fontes orais, a
transcrição do corpus. Anteriormente, quando falamos de língua oral e de língua escrita,
abordamos, com base em Lyons (1982), que a língua tem a propriedade de transferência de
meio. Dito de outra forma, a língua tem condições de passar da modalidade oral para a
modalidade escrita e vice-versa. Nesse ensejo, compete-nos tecer algumas considerações
referentes a essa possibilidade.
Primeiramente, esta transferência não se faz de modo simples e automático. A título
de exemplo, podemos ler em voz alta ou decorar e falar um trecho de um texto escrito e
conceber, equivocadamente, que esta produção oralizada configura um texto oral. A situação
acima caracteriza uma escrita oralizada, e não um texto oral propriamente dito. De forma
invertida, se tomarmos um trecho de uma conversa espontaneamente construída e o
transferirmos para a escrita, reorganizando-o e restituindo-o conforme as regras gramaticais que
a variedade padrão da língua prescreve, de modo algum obteremos um texto caracteristicamente
oral, pois o que procedemos, nesse intento, foi uma transformação corretiva da modalidade oral
para a escrita.
Dessa forma, recuperando Lyons (1982, p. 30), ratificamos que há “[...] diferenças
funcionais e estruturais sistemáticas entre o que é caracteristicamente escrito e o que é
caracteristicamente falado.” De maneira a complementar esta assertiva, Paula (2010a, p. 31)
acresce mais aspectos a serem considerados no processo de edição de fontes escritas e orais.
Para a autora,
[...] não apagar a sócio-história manifestada na fonte é mais uma questão a ser considerada na pesquisa, pois não se pode ler e editar, em um manuscrito, por exemplo, um diacrítico, um grafema, uma palavra ou uma expressão, equivocadamente, ou ainda ouvir e editar um texto oral como não fora dito, preenchendo hesitações e pausas [...].
A língua, em sua modalidade oral, apresenta traços que lhe são característicos e que
precisam ser observados na transcrição para a modalidade escrita. Além disso, há que se
considerar, nas construções linguísticas orais, os chamados elementos paralinguísticos.
Conforme Trask (2006, p. 223), em seu dicionário de linguagem e linguística, paralinguísticos
são “os aspectos não-linguísticos do falar [...] [que] veiculam informações sobre nosso estado
de espírito e nossa disposição de momento: se estamos irritados, alegres, nervosos, excitados,
impacientes, cansados e assim por diante.” Estes elementos (gestos, meneios faciais, hesitações,
33
traços prosódicos etc.) funcionam como mecanismos não-verbais característicos da língua oral
e que em nossa pesquisa foram informados com inserção entre parêntese e em itálico.
Evidenciamos, assim, que o texto oral não se constitui somente por signos
linguísticos organizados sistematicamente a partir de um conjunto de possibilidades
combinatórias, porquanto lance mão desses recursos paralinguísticos. Dessa maneira,
compreendemos que a realização fônica, malgrado seja imprescindível para tal, não configura
sozinha o texto oral (MARCUSCHI, 2002). Não nos aprofundaremos em discussões sobre o
maior ou menor grau de formalidade de alguns gêneros da língua nas modalidades escrita e
oral, uma vez que esses aspectos não são, nessa ocasião, essenciais ao nosso propósito.
Até então, inferimos que a língua escrita não é a simples transcrição da modalidade
oral, posto que esta se vale de outros mecanismos, afora os linguísticos, para a eficácia do ato
comunicativo. Podemos, a partir dessa conjectura, concluir que ambas têm seus modos
característicos de promover a comunicação. Por exemplo, enquanto a oral se utiliza de
hesitações, pausas e outros recursos prosódicos, a escrita se vale de outros mecanismos
tradicionais, como os sinais de pontuação e diacríticos, para atingir os mesmos efeitos de
marcação prosódica, conquanto tais recursos não sejam totalmente correspondentes.
Decorrem desses aspectos apresentados os empecilhos com os quais o estudioso das
fontes orais pode se deparar no momento de transcrever seu material oral, pois, conforme Paula
(2010a, p. 36) esta é uma etapa “[...] que se caracteriza de modo tão diverso quanto são diversos
os enfoques e interesses da pesquisa.” Nesse sentido, compartilhamos da observação de Ramilo
e Freitas (2001, p. 1), quando destacam que “[...] neste tipo de trabalho aparentemente
mecânico, quanto maior for o número de lições resolvidas, maior será o sucesso (ou a ilusão de
sucesso) do transcritor.”
Outrossim, somos cientes de que, malgrado vários estudos de fontes orais já tenham
sido desenvolvidos, não há ainda um conjunto de procedimentos de composição de corpus que
seja geral (PAULA, 2010a). Ramilo e Freitas (2001) falam de alguns problemas imanentes à
prática da transcrição e de métodos diversos para ultrapassá-los. Nesse feito, os autores ilustram
uma extensa variedade de procedimentos usados na Europa e no Brasil por diferentes sistemas
de transcrição, entre eles o “Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana” Culta (NURC8),
expondo as vantagens e desvantagens decorrentes de cada um. Entrementes, para a variedade
da língua que estudamos, as normas de transcrição empregadas no NURC não são compatíveis,
8 O NURC é um projeto implantado no Brasil, desde 1969, com o objetivo de descrever os padrões de uso da língua
falada urbana culta de cinco capitais brasileiras: Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
34
isto é, não atendem às necessidades que os falares vulgarmente denominados “populares”
demandam durante o processo de transferência do oral para o escrito.
Na esteira dessa discussão, Paula (2010a, p. 36) reforça que “provavelmente
foneticistas e fonólogos consigam normatizar uma chave de transcrição que atenda às suas
demandas, mas que podem não ser relevantes para os estudos do léxico, da sintaxe, da
morfologia, do discurso.” Entende-se, então, que os procedimentos de transcrição empregados
na pesquisa A podem não ser úteis à pesquisa B, a qual carece de procedimentos específicos
que também podem não ser pertinentes à pesquisa A e assim por diante.
Dito assim, a composição de uma chave de transcrição, com normas bem definidas,
tem por essência a sua pertinência às pretensões da pesquisa, ou seja, os seus interesses, os
aspectos linguísticos e não linguísticos que a análise proposta requer que estejam explícitos na
transcrição. Em síntese, nesse intento de aproximação da fala, o guia de todo o processo de
transposição do meio oral para o escrito é o conjunto de normas engendrado e/ou
complementado pelo pesquisador, com base no enfoque do seu estudo.
Para trabalhar com o nosso corpus, buscamos amparo na chave de transcrição
utilizada por Paula (2007), quando da transcrição do material oral gravado na sua pesquisa, por
admitirmos a sua adequação às necessidades da nossa pesquisa, a qual também se debruça sobre
falares que, ante às prescrições dos gramáticos, destoam da variedade padrão da língua
portuguesa. A esta chave, adicionamos outros itens que julgamos pertinentes às particularidades
do nosso material. Consentimos, no entanto, que a transposição do material gravado para o
escrito “[...] não atende à associação perfeita do que se ouve no registro escrito nem acreditamos
haver uma transcrição que dê conta de resgatar todas as nuanças da oralidade porque esta se
circunscreve a exterioridades à língua que a escrita não alcança em seus limites gráficos”
(PAULA, 2007, p. 41).
De maneira a facilitar o procedimento de transcrição, nos valemos do Express
Scribe Transcription Software v 5.639, em sua versão gratuita. Este programa comporta funções
para controle da velocidade, do volume, de pausas e do retorno ou avanço do áudio; permite
digitar o texto das transcrições no próprio espaço da interface do software; possui salvamento
automático, gerenciamento de arquivos, entre muitas outras funções eficazes para o processo
de transcrição de áudios.
Desta feita, elencamos, abaixo, a chave de transcrição com as normas específicas
que orientaram essa transferência da matéria oral para o suporte escrito, a partir das normas
9 O Express Scribe é um produto da NHC Software projetado para ajudar na transcrição de gravações de áudio.
Está disponível na internet, em versões gratuita e paga, pelo link: <http://www.nch.com.au/scribe/>.
35
estabelecidas por Paula (2007), afora as de número 5, 6, 9 e 10, acrescidas por nós na presente
pesquisa. Os exemplos foram colhidos do nosso corpus.
1. (comentário): usamos texto em itálico entre parênteses para indicar comentários externos à
fala do narrador ou para completar informações, de modo a auxiliar o entendimento do ato
comunicativo. Exemplo: “Aí sai, aí logo logo o povo: ou vem cá, vem tomá café. (risos)“ .
(N3M79).
2. [palavra(s) completa(s)]: indica supressão de palavra(s) completa(s) que pode(m) ser
recuperada(s) no contexto. Exemplo: “Reza, assim, só quan[do] tá velano o corpo, aí reza o
terço só, né, a reza do terço, aí [é o terço] qu'e[le]s reza, mair [na hora do enterro] não#
Nossa# nosso ritmo é assim lá, né?”. (N1F63i).
3. [parte de palavra]: indica sílabas e/ou fonemas suprimidos na fala, mas que devem ser
explicitados para permitir a compreensão e, do mesmo modo, evitar a confusão com outras
formas transcritas. Exemplo: “Agora, quan[do] num tem, 'cê põe assim, o[u] incima duma
telha, um lugar que seca, né?” (N1F63I).
4. utilizamos a inserção de apóstrofo, normalmente, no início ou no fim de palavras, para
indicar supressão de parte da palavra que não compromete o entendimento. Exemplo: “só
que na sumana qu'eu casei a muié 'dueceu” (N2M82).
5. trechos de diálogos diretos: apresentamos textos em itálico para indicar trechos de discursos
diretos inseridos pelo sujeito no fluxo narrativo. Exemplo: “Eu lembro direitim d'eu deitado
na cama lá e 'té na# ela chegava: rezá meu fii, reza, tem que rezá, faiz nome do pai” (N3M79).
Ou “hora que termina o batizado aí 'ocê já pode dá os parabéns cumpade, comade.”
(N1F63I).
6. <<trechos cantados>>: apresentamos textos em itálico e entre aspas francesas para indicar
trechos de cantos. Exemplo: “O o terço São Sebastião 'cê tem que fazê trêis parte: <<Amado
Jesus, José, Joaquim, Ana Maria, eu vós dô o meu coração e al'ma minha>>” (N3M79).
7. (...) indica supressão proposital de trechos ou palavras que não interessam aos excertos sob
análise, bem como para omissão de nomes e outras informações dos narradores, que, de
acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa, devem ser resguardados. Exemplo: “Morav'
num ranchim lá, er' o (...) qu'era o pai dele, esse era o benzedô, o véi.” (N3M79).
8. ... indica pausas, características do fluxo narrativo. Exemplo: “Então a gente fica pensan'
assim, hoje... ah parece que tá mudano tudo” (N2M82).
9. # indica interrupções, quebras na fala, que podem ocorrer no interior ou no fim de palavras,
para fins de correção, inserção de informações acessórias no fluxo narrativo, entre outras
36
funções. Exemplo: “E aquilo depois, quand'é à noite fai[z]# mata galinha, faiz faiz janta,
armoço lá pa meia-noite, né (risos)” (N2M82).
10. /.../ indica trechos e palavras incompreensíveis, geralmente, em razão de interferências de
sons externos à fala do narrador ou de outras vozes simultâneas. Exemplo: “Vi coisa que
valeu a pena. Ieu, né# eu fui nua ocasião num lugá qu'eu no# notei que teve u a mudança nas
pessoa, /.../ a benzeção, né?” (N3M79).
Além dos recursos listados para marcar perdas e acréscimos em posições inicial,
medial e final das palavras, há ocorrências em que mantivemos a pronúncia na transcrição
gráfica, uma vez que isso não prejudica o entendimento do leitor, como se pode ver nos
exemplos: memo, vizim, pezim, nóis, travêiz, inda, pió, mió, tava, tá, né, pruque. Também
preservamos a pronúncia de rotacismos, monotongações, alçamentos, despalatizações:
quarqué, contô, aconticido, rezô, chegô, falá (PAULA, 2007).
Registramos os casos de /l/ como consoante no final de sílaba, inserindo um
apóstrofo logo após a ocorrência, por ser uma realização peculiar dos narradores mais velhos
da região estudada, como nas palavras: mal'oiado, al'ma, vol'ta, paiol', curral', mil'. As
variações o e e, em finais de palavras átonas, não foram marcadas como u e i, respectivamente,
pois na região estudada esta troca é comum entre a maioria dos falantes do português, em
quaisquer níveis sociais e etários. Além disso, mantivemos a ordem dos elementos nos
enunciados e a supressão de conectivos tal qual se registra nas narrativas (PAULA, 2007).
Convém ressaltar, também, que o fato de sermos, além de a pessoa que gravou, a
que procedeu à transcrição já nos conduz a uma pré-análise do material, isto é, à primeira
reflexão acerca do corpus de análise.
Com o material transcrito e revisado, foi possível inventariar os dados do corpus
que serviram de base para a análise. Deste material, selecionamos as ocorrências lexicais e
outras construções linguísticas que representam linguisticamente as práticas religiosas do grupo
e são coerentes à perspectiva mágico-religiosa da palavra, que norteia toda a pesquisa. É preciso
considerar que podemos encontrar essa dimensão não apenas em unidades léxicas, mas em
textos mais longos, por ser necessário considerar o todo para abarcar o significado completo
que tais ocorrências possuem.
Posto assim, a caminho do objetivo da pesquisa, partimos do estudo das práticas de
religiosidade popular e do linguístico presente nessas práticas, sublinhando sua dimensão
mágico-religiosa, para, depois, organizar um conjunto de unidades léxicas que reflitam, em suas
37
significações, a estrutura básica de cada um dos tópicos analisados: batismo, rituais
relacionados à chuva, benzeções, dias santos e Quaresma.
Para compreender melhor o que estamos denominando de construções linguísticas
mais complexas, descrevemos, a seguir, os critérios de classificação dos gêneros das
composições da literatura oral popular registradas no corpus.
1.4 Critérios de classificação das composições do corpus
No nosso corpus constatamos diferentes ocorrências de composições orais com
características peculiares. Durante as referências a estas composições ao longo do nosso estudo,
pareceu-nos necessário classificá-las de acordo com seu gênero. No encalço de teorias que nos
auxiliassem nesse sentido, encontramos o Arquivo Digital de Literatura Oral Tradicional
(ADLOT), realizado por pesquisadores de Portugal.
O ADLOT constitui uma base de dados disponível online. Este arquivo, cujas
atividades foram concluídas em setembro de 2013, é resultado da execução do projeto de
pesquisa submetido pelo grupo de investigadores do Centro de Tradições Populares
Portuguesas “Prof. Manuel Viegas Guerreiro” (CTPP) – unidade de investigação da Faculdade
de Letras, Universidade de Lisboa (FLUL), e da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT)
de Portugal.
O site do ADLOT disponibiliza um vasto acervo de composições transcritas (cerca de
15.000) da Literatura Oral Tradicional Portuguesa. Tratam-se de versões dos distintos modos
(lírico, narrativo-dramático, dramático e “práticas”) e gêneros (orações paralelas, rezas,
cantigas, benzeduras, adivinhas, lendas, contos, diálogos etc.) sistematizadas, identificadas e
classificadas a partir das recolhas feitas por coletores (investigadores, professores e alunos) em
várias regiões de Portugal.
O corpus do arquivo é fruto das atividades práticas da disciplina10 e dos seminários de
mestrado e doutorado de Literatura Oral e Tradicional (LOT) na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Em razão da enorme quantidade de composições que abarcaria,
considerando que o trabalho coletor ocorreu de 1976 a 2007, os responsáveis pelo ADLOT
decidiram se concentrar no recorte entre 2002 e 2007, os últimos anos da existência ativa da
disciplina e dos seminários.
10 A Literatura Oral Tradicional (LOT) foi institucionalmente designada como área de investigação nas
universidades portuguesas após 25 de abril de 1974, quando das reformas do Ensino Superior (PINTO CORREIA, 2013a).
38
Sendo assim, em face desse trabalho realizado e consolidado por investigadores da
literatura oral popular, optamos por adotar a sua classificação de gêneros para nos referirmos
às composições identificadas no nosso corpus, expressões da literatura oral tradicional da região
investigada. Antes disso, convém apresentar alguns conceitos básicos relacionados ao âmbito
da Literatura Oral Tradicional.
Pinto Correia (2013b) assevera que, embora se contrarie o uso da palavra “literatura”
(derivada do latim littera, letra escrita) para uma expressão que é “oral”, seu emprego no sentido
mais lato de “conjunto de práticas linguístico-literárias” foi gradativamente admitido nos
domínios acadêmico e científico. Para Pinto Correia (2013b, p. 1, grifo do autor), “‘oral’
significa que se privilegia a sua transmissão pela oralidade, pela voz e não pela escrita, embora
esta seja necessária no registo das composições ditas / ouvidas de boca a ouvido e vice-versa.”
Segundo esse autor, o termo “tradicional” assinala a produção linguístico-literária
(benzeduras, orações, cantigas, responsos etc.), transmitida pela memória sem compromisso
com a autoria primária, “atravessando épocas, continuando-se e efectivando-se pela
performance ao vivo, nas diferentes situações sócio-culturais das comunidades” (PINTO
CORREIA, 2013b, p. 1).
Nesse processo de longa elaboração é que se dá a natureza vária das composições orais,
evidenciando o que Pinto Correia (2013b, p. 1-2) chama de produtransmissão:
[...] isto é, no processo realizado ao longo do tempo, os agentes da transmissão vão moldando com diferentes, por vezes acentuadas, outras mínimas propostas de alteração da expressão e do conteúdo que podem ter a ver com adaptações ao contexto de vária natureza (social, geográfico, moral) ou mesmo a pormenores diferentes da intriga narrativa ou a entendimento erróneo de elementos da expressão ouvida; no entanto, os principais garantes da temática e da estrutura permanecem, garantindo a identificação da composição, apesar da sua variação.
Dessa maneira, como principais características das composições da LOT, o autor
elenca: a) oralidade; b) variação; c) anonimato de produção; d) natureza coletiva; e) estruturas
simples e tipificadas; f) expressão simples; g) presença de “expressões formulísticas” ou
“estruturas formulísticas”; h) economia e elementaridade do universo semântico; i) densidade
simbólica e j) confluência, nas performances, de várias práticas discursivas (linguísticas,
gestuais, musicais etc.) (PINTO CORREIA, 2013b).
Para a classificação das composições de caráter prático utilitário registradas no nosso
corpus, nos interessa parte dos gêneros que se inscrevem no modo lírico (L), conforme
39
esquematizamos a seguir. Dentro do Modo Lírico (L) se encontram os gêneros prático-
utilitários (L1), que, por sua vez, abarcam os gêneros de intenção mágica e religiosa (L1a).
No quadro abaixo, descrevemos cada um dos gêneros de intenção mágica e religiosa
(L1a), segundo a classificação empregada no ADLOT:
Quadro 1 - Classificação dos gêneros da LOT, adaptado de Morão e Pinto Correia (2013).
L1a1 - Oração L1a2 - Oração paralela L1a3 - Cântico L1a4 - Ensalmo L1a5 - Responso L1a6 - Exorcismo / Esconjuro L1a7 - Reza L1a8 - Benzedura L1a9 - Cantiga de embalar / ninar / de berço
Org.: o autor.
Para compreensão do gênero “oração”, optamos por adotar o conceito exposto por
Gomes (2009). Esta autora, após buscar definições em uma extensa lista de estudiosos de
diversos campos do saber, conclui que:
Parece claro que a oração se distingue dos outros tipos de composição mágico-religiosa pelo seu tipo de linguagem e pelo modo de comunicação com o divino que se lhe atribui. O discurso da oração pode ser definido como uma fórmula dirigida a uma entidade soberana de modo contemplativo. E o seu uso serve para proteção geral, como guia e demonstração de religiosidade, [...] o seu propósito circula por pedidos ou rogos para proteção em ocasiões diferentes, sem que contudo assuma o caráter prático-mágico de um ensalmo, uma benzedura ou um esconjuro (GOMES, 2009, p. 19).
Assim, a autora explica que o termo “oração” pode ser empregado para “reza” em
sentido mais genérico, enquanto que, em sentido mais estrito, se distinguem. Morão e Pinto
Correia (2013, p. 3, grifos dos autores) definem o gênero “reza” como “[...] composições para
curar, proteger, prevenir ou afastar qualquer mal ou malefício, sem menção ao gesto de benzer,
mas podendo ser acompanhadas de actos como ‘cortar’, ‘talhar’ ou ‘coser’.” O gênero
“benzedura”, segundo os autores, abarca “[...] composições que mencionam o acto de benzer
ou o sugerem, mencionando gestos executados ‘em cruz’ (‘cortar’, ‘talhar’), quer tenham uma
intenção curativa quer de bênção propriamente dita” (MORÃO; PINTO CORREIA, 2013, p. 4,
grifos dos autores).
L
L1
L1a
40
Para Gomes (2009), outro traço distintivo da oração é o não ter um intermediário
(benzedor, rezador) entre o sujeito que busca contatar uma entidade e quem a contata, sendo
este o próprio intermediário. Por exemplo, para uma benzedura, sempre há um mediador que
diz ou apenas mentaliza o texto intercedendo por uma pessoa. As orações do Pai-Nosso e da
Ave-Maria, em ocasiões quotidianas, já não requerem esse mediador podendo serem ditas ou
apenas mentalizadas pelo crente no intento de rogar para si mesmo.
Cabe ressalvar que a oração popular não se diferenciará completamente da oração
oficial, uma vez que esta distinção é dada, mormente, mediante o seu meio de transmissão e
difusão, bem como em função da oração popular não possuir condutores, como os eclesiásticos,
para as orações ditas oficiais, e os mediadores populares, para as benzeduras, por exemplo.
Aqui, se encaixa o conceito do gênero “oração paralela”, definido por Morão e Pinto Correia
(2013, p. 2) como uma “oração relacionada com uma congênere da Igreja Institucional”.
Quanto aos gêneros “ensalmo”, “responso” e “exorcismo/esconjuro”, trataremos de
seus traços peculiares conjuntamente às suas transcrições na análise do corpus. Assim como
nas benzeduras, “[...] nestas composições, com suas estruturas e registos linguísticos muito
próprios (invocações, séries enumerativas, esboços narrativos), pretendem os seus utentes
actuar sobre a realidade, com base no poder da palavra” (PINTO CORREIA, 1993, p. 66).
Não almejamos, nesse intento de classificação, encerrar cada composição destacada
do nosso corpus em um gênero único, dando-o como absoluto. O que tencionamos é, sim,
aproximar os seus conteúdos e estruturas a esses gêneros sistematizados pelos investigadores
do ADLOT, de modo que essa orientação básica nos preserve de fazer denominações
imprecisas, hesitantes e, por vezes, infundadas.
41
II MÁGICO-RELIGIOSO NO CATOLICISMO POPULAR
Eu lembro direitim d'eu deitado na cama lá e 'té na# ela chegava: rezá meu fii, reza, tem que rezá, faiz nome do pai.
(N3M79).
O propósito de compreender a dimensão mágico-religiosa da palavra em textos
orais de natureza religiosa na comunidade rural São Domingos, Catalão-GO, exige que
adotemos a cultura nas discussões, haja vista que estamos lidando diretamente com realizações
culturais elaboradas e reelaboradas, encerradas na memória e/ou vivificadas no quotidiano, a
partir de saberes aprendidos e transmitidos desde tempos imemoriais.
Partimos da ideia de que o estudo das representações de um grupo social, nas suas
relações, possibilita abranger a lógica das suas inter-relações socioculturais, sobretudo porque
primamos pelo reconhecimento do sujeito como construtor cultural a partir do seu espaço de
vida, na convivência com a sua gente. Nesse sentido, tratar de práticas religiosas relativamente
independentes dos dogmas e preceitos canônicos é, pois, adentrar o âmbito da cultura popular.
Diante disso, é pertinente tecer algumas considerações sobre estas práticas.
De antemão, urge entender o que vem a ser cultura. Considerado que “definir”
significa demarcar limites, isto é, encerrar uma ideia dentro de um conceito, priorizamos uma
análise da cultura que apresente sentidos e perspectivas assumidas por estudiosos de variados
campos do saber. Assim, a discussão se torna mais fecunda, pois expõe coerentemente a
importância de relacionar o assunto da pesquisa às ideias de cultura, de modo que saibamos
mais precisamente de qual cultura, ou culturas, estamos dizendo.
Finalmente, não é intuito dessa seção fazer uma discussão exaustiva acerca dos
conceitos de cultura, a ponto de esgotar as teorias que a tomam como objeto, e sim inscrevê-la
em nosso estudo, a fim de assinalar sua importância para compreensão de maneiras de ser, de
viver, de curar, de rezar, de louvar um deus, de se comunicar e de se relacionar com os outros
sujeitos, sejam terrenos ou extraterrenos.
2.1 Reflexões sobre cultura
Composta por sentidos diversos e versada por um vasto rol de teóricos, a
conceituação de cultura se revela controversa, complexa e, não raro, difícil nos inúmeros
campos do saber. Em face disso, neste trabalho procuramos interpretar a cultura no contexto
em que ela se faz enquanto cultura, posto que “construída socialmente no quotidiano das
42
relações humanas demanda que seja definida no seio das relações sociais e históricas que a
amparam e por ela são caracterizadas” (PAULA, 2007, p. 74).
Nestes termos, alcançamos a compreensão do relativismo cultural. Para Marconi e
Presotto (2009, p. 17), “a relatividade cultural ensina que uma cultura deve ser compreendida e
avaliada dentro dos seus próprios moldes e padrões, mesmo que estes pareçam estranhos e
exóticos”. Quer dizer, cada cultura deve ser compreendida dentro do seu contexto, da sua
realidade, sem julgamentos de valores, isto é, devem-se evitar formas de etnocentrismo, que
geram exclusão. Assim, “toda atitude etnocêntrica precisa ser condenada e rejeitada porque fere
o princípio da igual dignidade de todos os seres humanos e de todos os povos.” (OLIVEIRA,
2010, p. 83).
Ao tratar da cultura por diferentes pontos de vista, Schelling (1990, p. 21, grifo da
autora) recomenda que para “[...] discutir a natureza da cultura é necessário começar pela
gênese do termo ‘cultura’, pela qual ela se constituiu como um tipo de fato específico”. De
modo a cumprir tal recomendação, apresentamos que cultura deriva do verbo latino colo
(cultivar, instruir) e do substantivo cultus (cultivo, instrução) (REZENDE; BIANCHET, 2014).
Portanto, etimologicamente, a palavra cultura carrega o sentido de cultivar a terra para que
produza frutos, assim como designa o acervo de conhecimento intelectual e artístico adquirido
pelo ser humano, que seria capaz de torná-lo “culto”.
Neste sentido, remontamos ao Iluminismo, no século XVIII, quando cultura e
civilização se coincidiam para denotar o ideal humanista do progresso coletivo que, calcado no
poder da razão, arrebataria a humanidade da ignorância e da irracionalidade (SCHELLING,
1990, p. 22). Daí advêm as noções de povos civilizados (cultivados/cultos) e povos selvagens
(não cultivados/incultos).
Diante dessas acepções, reiteramos Marconi e Presotto (2009) e compartilhamos a
opção de não empregar as palavras culto e inculto, enquanto juízos de valor, tendo em vista que
uma cultura não deve ser considerada superior ou inferior a outra: “elas apenas são diferentes
em nível de tecnologia ou integração de seus elementos. Todas as sociedades – rurais e urbanas,
simples ou complexas – possuem cultura.” (MARCONI; PRESOTTO, 2009, p. 21).
Oliveira (2010), nessa perspectiva, defende que a etimologia da palavra cultura no
sentido de trabalhar a terra para que produza frutos possibilita uma visão mais ampla, ao passo
que a sua acepção de desenvolvimento intelectual remete ao senso comum, sob o qual as
palavras culto e inculto, quando associadas à cultura letrada em status superior às demais
culturas, podem exprimir preconceito e discriminação.
43
Laraia (1995, p. 25), ao traçar os antecedentes históricos e o desenvolvimento do
conceito de cultura, apresenta o termo alemão kultur – “utilizado para simbolizar todos os
aspectos espirituais de uma comunidade” – e o francês civilisation – referente às “realizações
materiais de um povo”. Ambas as acepções eram vigentes em fins do século XVIII e início do
seguinte. Segundo o autor, mais tarde esses termos foram sintetizados e formalizados por Tylor
(1871) a partir da palavra inglesa culture que tomada “[...] em seu amplo sentido etnográfico é
este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”
(TYLOR, 1871 apud LARAIA, 1995, p. 25).
Laraia (1995) completa que, desta forma, Tylor abarcava, numa única palavra, o
total de possibilidades de realização humana, além de extenuar o determinismo biológico no
aprendizado da cultura, posto que não é um processo de aquisição inata, isto é, não depende da
transmissão genética. Desta feita, dá-se início ao distanciamento entre natural e cultural. Sob
este viés, Laraia (1995, p. 24) conclui que:
As diferenças existentes entre os homens [...] não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com as suas próprias limitações, um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura.
Para tratar sobre cultura, trazemos à baila Brandão (2009), em investigação das
diferentes dimensões da cultura, das controvérsias que ela abarca e da(s) cultura(s) popular(es)
como derivação igualmente controvertida. Explana este autor que a cultura pode ser pensada
em duas dimensões: uma pragmática e material, na qual “[...] a cultura realiza e representa o
processo e os produtos do trabalho dos seres humanos [...]” a partir de práticas baseadas em
saberes diversos; e uma dimensão mais imaterial, em que a cultura acontece “[...] na tessitura
de sensações, saberes, sentidos, significados, sensibilidades e sociabilidades com que pessoas
e grupos de pessoas atribuem socialmente palavras e ideias, visões e versões partilhadas ao que
vivem, criam e fazem [...]” (BRANDÃO, 2009, p. 717), na partilha coletiva de universos
simbólicos que elas criam e nos/dos quais vivem.
Assim, Brandão (2009), baseado em Karl Marx, exprime que a diferença entre os
animais e os humanos, ambos seres naturais, é que os primeiros habitam o ambiente de maneira
natural, instintiva, ao passo que os segundos o fazem de modo pensado, isto é, fundamentam-
44
se em conhecimentos e técnicas para construção de seu mundo de vivência, logo, isto é
culturalmente realizado.
Parafraseando Brandão (2009) e a título de ilustração, uma casinha de terra
construída pelo pássaro joão-de-barro, assim como uma caixa de marimbondo, são produtos
espontâneos da natureza. Uma casa de cômodos projetados de acordo com as necessidades de
seus moradores, por sua vez, é produto cultural, fundado em saberes, em que o fazer se
caracteriza entre humanos, para humanos e sobre os humanos.
Nesse sentido, nos reportamos a Geertz (1989) ao falar da cultura e sua análise
enquanto teias de significados nas quais os próprios autores-atores se enredam. Nos dizeres
deste autor, não é adequado concebê-la apenas como um conjunto de padrões concretos de
comportamento – costumes, hábitos, tradições etc. – mas também como um agregado de
mecanismos de controle – planos, regras, receitas, preceitos, princípios etc. – que coordena o
comportamento e do qual o ser humano depende para se auto-orientar na sucessão dos
acontecimentos (GEERTZ, 1989). Nestes termos, Brandão (2009, p. 717, grifo do autor)
reforça:
Somos seres simbólicos criadores de teias, tramas, redes e sistemas de regras de relações, de códigos de conduta, de gramáticas de relacionamentos, assim como de contos, cantos, mitos, poemas, idéias, ideologias, visões de mundo, religiões. Palavras e partilhas com o que continuamente estamos nos dizendo de quem somos e de quem são os outros que não são “nós”.
Por esta via, Brandão (2009, p. 718) verifica que a cultura está na (e é a) apropriação
e transformação do mundo natural em mundo humano, bem como na própria criação do ser –
passagem de organismo biológico para ser social – e na criação de “[...] nossos próprios mundos
e ao dotá-los e a nós próprios – nossos diversos seres, nossas múltiplas vidas e nossos infinitos
destinos – de algum sentido”. Dito assim, as práticas de religiosidade que investigamos nessa
pesquisa existem culturalmente porque fazem sentido aos seus autores-atores. São formas de
lidar com o divino, com o sobrenatural, que, de algum modo, se introduzem no quotidiano das
pessoas, seja porque reproduzem um aprendizado espontâneo, seja porque há uma demanda
destas práticas culturais-religiosas.
Posto isso, Brandão (2009) ressalta que as culturas, múltiplas que são, para serem
compreendidas profundamente, precisam ser abrangidas de dentro para fora. Enquanto seres
envolvidos em símbolos, significados e aprendizados, os humanos são uma espécie que, embora
equipados com corpos biopsicologicamente iguais, não produzem um modo de vida único, nem
modos de ser idênticos, mas numerosas formas de ser, viver, falar, cultuar.
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Vale salientar que as práticas culturais que estudamos na comunidade São
Domingos não são necessariamente as mesmas existentes em quaisquer outros recintos rurais,
simplesmente por serem rurais, uma vez que o ambiente não é fator predeterminante, porque
pode ser moldado pelos sujeitos. Além de que, pelas circunstâncias contemporâneas,
especialmente na região foco da pesquisa, é arriscado considerar um espaço como
genuinamente rural ou urbano, devido a possíveis interpenetrabilidades. Pensando assim,
preferimos adotar a ideia do continuum, ou seja, a inexistência de uma fronteira precisamente
traçada entre rural e urbano, de modo que o rural pode, em maior e menor grau, se entremear
no urbano e vice-versa.
Ressalvamos que não queremos, com esta ideia do continuum, fomentar a ideia do
rural como atraso e do urbano como evolução do rural. O que se tenciona é suprimir a visão
dicotômica da separação entre dois âmbitos distintos, uma vez que pensamos o rural e o urbano
como complementares e integrados e, ainda, como coloboradores entre ambos. São estes
aspectos que a ideia do continuum pressupõe.
Outrossim, o fato de as pessoas mais velhas possuírem determinados costumes e
saberes não significa que as gerações descendentes devam herdá-los e dar continuidade ao
legado cultural exatamente como lhes foi transmitido. Mais que isso, cultura se aprende e se
transmite no processo de vivência partilhada, vista, sentida e atuada e, por isso, se refaz na
medida em que a sociedade também se reconfigura. Nesse sentido, concordamos com Marconi
e Presotto (2009, p. 30) que “toda sociedade engloba um conjunto de conhecimentos, crenças,
valores e normas de comportamento que, embora seja uma herança acumulada do passado,
continuamente, a cada geração, vai-se aperfeiçoando”.
No que tange ao meio rural, contexto em que foram colhidos os dados da pesquisa,
vale acrescentar que, na qualidade de lugar de vida onde se reproduzem as relações humanas e
dos sujeitos com a natureza, é também a realidade em que as manifestações culturais, entre elas
as práticas religiosas, populares e oficiais, ganham sentido, são significadas, aprendidas,
transmitidas e reconfiguradas. A esse respeito, concordamos com Mendes (2008, p. 140) ao dizer
que:
O lugar é um produto das relações humanas e entre o ser humano e a natureza, construído por relações sociais que se realizam no plano vivido, o que garante a construção de uma rede de significados e sentidos que são produzidos pela história e pela cultura de uma dada sociedade, constituindo identidade, uma vez que é nesse espaço que o homem se reconhece porque é o lugar da vida.
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Ante as reflexões desenvolvidas, sobretudo os fundamentos de Laraia (1995),
Geertz (1989) e Brandão (2009), inferimos que a cultura pode ser interpretada nos atos de
apropriar, transformar e dar sentido ao mundo natural, tornando-o humano, cultural e social.
Nesse mundo transformado, os humanos se orientam a partir de mecanismos de controle
compartilhados, os quais têm importância na coordenação e sucessão dos acontecimentos da
vida para a sobrevivência. Nesse processo, todos os elementos da cultura são continuamente
(re)significados, pois estão em constante mudança e movimento para atender, dentre muitos
fatores, às novas necessidades mais complexas, quando as básicas já foram solucionadas.
Tecidas essas considerações acerca da cultura, em seu amplo sentido, na subseção
seguinte continuamos a discussão no intento de embasar o que se entende por cultura popular,
a partir da noção de multiplicidade cultural.
2.2 Cultura popular
Para abordar a cultura popular, a princípio, julgamos fulcral trazer à baila Bosi
(1987, p. 7, grifos do autor), em seu artigo que trata da pluralidade da cultura. Conforme o
autor,
não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter plural é um passo decisivo para compreendê-la como um “efeito de sentido”, resultado de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.
Conforme o autor, a cultura brasileira é consequência de um processo que envolve
miscigenações, imbricações, contatos e oposições desde os primórdios da humanidade – pois
já havia grupos humanos no território brasileiro antes mesmo da colonização – e nos mais
variados espaços do planeta. Por exemplo, as imigrações e as migrações internas ocorridas, e
ainda correntes, em terras brasileiras, assim como o contemporâneo fenômeno da globalização,
manifestam-se numa extensa gama de crenças, costumes, raças, variedades linguísticas, estilos
musicais, entre outras expressões que dão ao Brasil, há muito tempo, o status de país
multicultural.
Fica explícito, assim, o caráter plural da cultura que se apresenta numa complexa
totalidade de múltiplas culturas. Complexa e plural, sim, mas não em situação caótica, adverte
Bosi (1987). Enfim, em consonância com Schelling (1990), trata-se de um fenômeno supra-
individual, no qual a cultura se aprende, se adquire, se partilha e se reinventa, pois no tempo e
47
no espaço as práticas culturais de um povo, grupo ou comunidade não se mantêm estáticas; ao
contrário disso, reconfiguram-se consoante as circunstâncias, os contatos, os conflitos e as
demandas de cada época e contexto. Nessa perspectiva, Oliveira (2011?, p. 2) defende que
[...] a cultura pode ser definida como algo adquirido, aprendido e também acumulativo, resultante da experiência de várias gerações. Porém, enquanto aprendiz o ser humano pode sempre criar, inventar, mudar. Ele não é um simples receptor, mas também um criador de cultura. Por isso a cultura está sempre em processo de mudança.
Nas circunstâncias em que o Brasil era/é caracterizado por longas distâncias entre
os centros urbanos e as regiões interioranas, os populares que comandam ritos e os que realizam
curas, membros da comunidade, na ausência de padres e de médicos, eram/são quem assumia
os encargos das práticas litúrgicas locais, realizavam/realizam terços e rituais de cura
(benzeções), entre outros ritos. Afinal, alguém precisava/precisa suprir tais necessidades.
Caracterizava-se, assim, o catolicismo popular, uma religiosidade arraigada ao
culto aos santos e santas, que se voltava às necessidades práticas da vida daquela época e que
se estende até hodiernamente e é baseada, em diferentes graus, nesses moldes. Contudo, a
situação que se apresenta hoje se difere da supracitada, visto que as características
socioespaciais demudaram, o acesso aos médicos está facilitado e há sacerdotes da Igreja
católica, e das outras religiões, em praticamente todo o território, urbano e rural. Por este e
outros fatores, a quantidade e a demanda de rezadores, curadores, benzedores, entre outros
oficiantes populares, minguaram. Todavia, isso não significa que estas práticas estão se
tornando totalmente extintas, mas que têm sido recriadas por pessoas que se preocupam em
aprendê-las e ensiná-las e em lugares nos quais ainda são demandadas.
Convém dar o exemplo da benzedeira N1F63I, sujeito da pesquisa. Quando morava
na “roça11”, ela tinha o costume de colocar os talos de mamona, usados na benzeção para
cobreiro, para secar em cima do seu “fogão caipira”, porém, depois de se mudar para a cidade,
passou a colocá-los sobre uma telha ou em outro lugar onde haja calor para secá-los. Quer dizer,
o fato de ela não mais ter o fogão de lenha à sua disposição não a impede, no caso da benzeção
para cobreiro, de buscar outros meios para cumprir as etapas desse ritual. A esse respeito, Paula
(2007, p. 86) também observa:
11 Tomamos “roça” na concepção defendida por Paula (2005) quando discute sobre a dinâmica dos sentidos desta
palavra tomando como material narrativas orais contemporâneas e um manuscrito badeirante do século XVIII, a saber: espaço de plantio de subsistência, que se opõe a lavoura, fazenda e cidade.
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As doenças que hoje conhecem e enfrentam não são tratadas apenas com emplastos, chás e garrafadas ou benzeções. Há os remédios de farmácia ou doados por planos assistenciais dos governos. As roupas grossas e pesadas tecidas do algodão que plantavam tornaram-se raridades ante à facilidade de deslocamento à cidade e à condição para comprar peças industrialmente tecidas. Muitas ferramentas de trabalho deram lugar a máquinas porque não há mais o trabalho a ser realizado com elas: não há mais profissão de carreiro e candeeiro, nem a de tropeiro. Há, em seu lugar, o tratorista e o motorista de caminhão boiadeiro, profissionais que trabalham sozinhos, isolados da coletividade que lhes assegurava aquela pertença cultural.
Apreendemos que é complexo conceituar cultura e, igualmente, abranger um
significado de cultura popular não é tarefa simples. Em sentido estrito, “popular” se reporta
instantaneamente ao “povo”, ou seja, ao grupo de pessoas das classes menos favorecidas,
conquanto o vocábulo “povo” possa ser concebido, em sentido mais amplo, como um conjunto
de indivíduos que partilham da mesma língua, da mesma história, dos hábitos, das tradições,
dos costumes, dos interesses etc. (HOUAISS; VILLAR, 2009), sem que necessariamente se
estabeleçam limites entre as classes sociais. Nesse ponto, inicia a problemática da delimitação
do que é popular em distinção a outras culturas. Decerto, tal imprecisão já ofereça uma pista de
quão instável é o terreno de ideias acerca da cultura popular.
A princípio, como visto, a palavra sugere tudo aquilo que vem do povo e que se
diferencia em relação a outros tipos de cultura (cultura de massa, cultura erudita12). Todavia, o
seu sentido vai além dessa primeira acepção. De acordo com Caldas (1986, p. 69), além de ser
aquela cultura produzida pelo povo e para o povo, é uma manifestação que se distingue da que
a classe dominante produz, realiza-se no exterior dos universos acadêmicos e científicos e,
sendo assim, é produzida de modo espontâneo e sem lugar específico, “nas ruas, no trabalho,
no lazer, nos bares, dentro de casa, no clube, no campo de futebol, na praça pública, na igreja”.
Outra característica considerada importante pelo autor é que, na cultura popular,
habitualmente, as produções são anônimas, ou seja, de domínio público. Ora, uma produção da
cultura erudita, por exemplo uma sinfonia de Mozart, uma pintura de Rembrandt, um postulado
saussureano, dificilmente não terão seus autores identificados. As rezas usadas nas benzeções,
cânticos e conjurações registrados no corpus da nossa pesquisa, assim como outras produções
linguísticas inscritas nas memórias dos senhores e senhoras visitados, ao contrário daquelas,
12 “Originalmente, ela é empregada para destacar os méritos das pessoas da classe dominante que conheciam em
profundidade a chamada ‘alta cultura’, ou seja, a cultura científica, arte musical, pictórica, literária, cênica, enfim, todas as formas de manifestação cultural produzidas e consumidas pelas classes dominantes” (CALDAS, 1986, p. 65).
49
não têm um autor específico, são produtos, muitas vezes, da coletividade e podem remontar a
épocas imemoriais.
Machado (2002, p. 335) compreende cultura popular como “[...] todas aquelas
práticas e representações culturais vivenciadas no cotidiano de atores sociais específicos,
distantes do racionalismo científico, como forma de recriação do universo: crenças, hábitos,
costumes, conhecimento”. Posto assim, as práticas católicas populares em estudo são
representações culturais do quotidiano dos seus atores-autores – benzedores, rezadores,
devotos, puxadores de terço – enfim, dos homens e das mulheres que creem, partilham, atuam
e recriam tais práticas integradas ou de alguma forma ligadas ao universo rural. Essas ações e
representações se expressam por diversas vias: pela fé, pela cultura, pela linguagem, e atuam
como formas de resistência grupal e/ou reforço da cultura (DUARTE, 2008).
Em alusão ao excerto de Machado (2002) supracitado, Paula (2007) ressalva que
antes é preciso considerar as formas de acesso ao racionalismo científico. A autora explica e
exemplifica que os sujeitos podem ter conhecimento da existência de práticas consideradas
eruditas e, inclusive, conviver com elas, entretanto podem não ser partícipes diretos e nem
saberem de seu funcionamento. Então, o fator acesso é mais acentuado do que a distância
propriamente dita. Logo, Paula (2007, p. 76) conclui que “na dinâmica da vida social, contudo,
elas se interpenetram e se reelaboram e, por isto, é sempre um risco precisar limites entre o que
é popular e o que é erudito”.
Ante estas considerações, evocamos Burke (2010), em suas discussões acerca dos
hibridismos culturais, para abordar a ideia do continuum, cuja essência se aplica aos estudos
culturais nos mais diversos âmbitos do saber. Nos dizeres do autor, “não existe uma fronteira
cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um continuum cultural.” (BURKE,
2003, p. 14). Esta assertiva nos chama a atenção para o fato de que ao nos colocarmos diante
de duas ou mais tendências culturais que, em primeira instância, se diferenciam, não podemos
tomá-las como partes plenamente dissociadas. A respeito disso, Brandão (2009, p. 725, grifo
do autor) também verifica:
As igrejas de Minas Gerais e da Bahia, por exemplo, foram construídas por pedreiros e arquitetos negros e/ou mestiços. Quase toda a nossa música sacra “erudita”, dentro e fora do barroco mineiro, pertence a autores mestiços, entre eles o padre José Maurício e Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, antes da Abolição. Assim também a escultura e a arte de arquiteto do Aleijadinho, a literatura de Machado de Assis e a poesia de Cruz e Souza.
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Nessa perspectiva, percebemos que as culturas se imbricam e, nesse processo,
tendem a dissolver a precisão fronteiriça que se quer estabelecer entre elas (PAULA, 2007).
Para citar mais exemplos: a cultura erudita pode adotar temas como a vida dos sertanejos,
incluindo a indumentária, a maneira de falar etc. e representá-la em uma obra literária ou exibi-
la em um teatro; a cultura de massa, por seu turno, pode se utilizar de expressões populares,
como as Congadas, e apresentá-las fora do seu contexto comum, espetacularizando-as
(PAULA, 2010b).
Desse modo, quando se fala em cultura popular, cultura erudita e cultura de massa
é possível evidenciar aspectos que as distinguem, todavia isso não é feito com exatidão, por ser
movediço o terreno onde humanamente/culturalmente se (re)produzem e se partilham saberes
e produtos culturais. Pensamos, como Machado (2002, p. 337), “[...] ser mais importante dizer
que elas são apenas diferentes no que se refere ao conteúdo e à forma de representação de uma
dada realidade social, sem, no entanto, estarem desvinculadas uma da outra [...].” Dessa
maneira, a autora frisa que essas denominações – popular, erudito, de massa – são meros rótulos
quantificadores e qualificadores das formas de expressões, sem aprofundamento nas suas
essências.
No âmbito do catolicismo popular, as expressões culturais figuram, muitas vezes,
funcionalidades imediatas para atender às demandas quotidianas. Por exemplo, a recorrência a
benzedores/benzedeiras para cura e/ou tratamento de moléstias caracteriza-se mais pela
necessidade do que por escolha, pois, para as pessoas que vivem na zona rural distantes das
sedes municipais, esses recursos se apresentam mais imediatamente que um profissional
médico ou uma farmácia. Ademais, as práticas de benzer e ser bento/benzido afiguram-se como
“diferentes maneiras de atualizar a memória desse ato e a visão do mundo que o sustenta e o
produz. E de produzir, na singularidade de cada ato, as diferentes falas sociais” (OLIVEIRA,
1985, p. 15).
Hoje, porém, é comum a presença de benzedores/benzedeiras também em espaços
urbanos. Dessa maneira acentuamos que o fundamento da cultura popular “é o retorno de
situações e atos que a memória grupal reforça, atribuindo-lhes valor” (BOSI, 1987, p. 11).
Nestes termos, a cultura popular possibilita reaver a identidade e um reconhecimento de si
mesmo na coletividade e, assim, concordamos com Machado (2002), quando teoriza que “as
práticas culturais só existem na medida em que têm um significado real para aqueles que a
vivenciam. Daí que a cultura é o que permanece, mas também o que se inventa”. Nesse sentido,
concordamos com Albuquerque Júnior (2007, p. 3) ao dizer que “as tradições são sempre
51
invenções feitas por grupos humanos numa determinada época, não há algo tradicional desde
sempre e nada do que é tradicional está isento de modificação, de transformação”.
Abarcando estas reflexões acerca da cultura popular, trazemos as contribuições de
Monteiro e Dias (2010, p. 352, destaque dos autores), em abordagem dos temas da música
popular brasileira. Segundo os autores:
Em cada canto, dança e folguedo brasileiro, podemos detectar, entrelaçados, um feixe desses motivos [sistemas simbólicos, significados sociais etc.], como se olhássemos bem de perto para padrões multicores de um tecido e procurássemos acompanhar cada um dos fios que compõem a trama, agrupando-os segundo sua textura ou coloração. Essas diferentes linhas temáticas, os fios da trama das expressões artísticas e religiosas do povo brasileiro, são fiadas na memória coletiva dos povos que aqui confrontam. São tecidas nos teares da história da nacionalidade sob o signo do conflito entre os grupos identitários étnicos e sociais, de modo a preservar traços “originais” como forma de resistência ou, em momentos de negociação e aproximação, gerar formas culturais caracterizadas pela hibridação, transitando muitas vezes na ambiguidade entre resistência e aceitação de um padrão cultural dominante. O dinamismo desses arranjos nos leva a especular sobre a formação ou constituição dessas práticas artísticas, bem como sobre sua circulação, procurando compreender que processos foram esses que permitiram a difusão dessas características e similaridades em um país de dimensões continentais.
Nesse conjunto, ressaltamos as práticas do catolicismo popular como expressões da
sabedoria popular nas quais transparecem maneiras de viver e experimentar o quotidiano e,
ainda, que permitem verificar crenças, valores e convicções pessoais. Entendemos que em
cultura, mesmo com a capacidade de resistir, nada está definitivamente fechado, porquanto a
cultura é um saber e não uma técnica, sobretudo, por requisitar uma vivência, o ver para
aprender.
Na cultura popular, os sujeitos atuam ativamente na criação, reprodução e
manutenção das práticas, as quais “[...] representam a dinâmica do continuum: são aqueles
saberes, crenças e modos de viver, falar, sentir e curar que permanecem, mas também que se
alteram no cotidiano” (PAULA, 2007, p. 88). É válido acrescentar, também, que para os grupos
populares o retorno às suas raízes, reelaborando-as e repetindo-as é qualidade necessária para
sua existência cultural (DUARTE, 2008). É nesses moldes, basicamente, que as práticas
culturais que procuramos conhecer mais profundamente nessa pesquisa vieram se
(re)constituindo, amparadas, principalmente, pela memória oral.
52
2.3 Catolicismo popular
A princípio, por ser um assunto amplo e versado sob diversas perspectivas e em
vários campos do conhecimento, importa explicar que não é da nossa alçada esgotar as
discussões e linhas de pensamento acerca do catolicismo popular, nem apresentar um conceito
que o defina. Nesta seção, temos por desígnio promover um preâmbulo histórico que possibilite
visualizar as circunstâncias sociais, políticas e culturais em meio às quais o catolicismo popular
brasileiro se constituiu e se preservou, sobremaneira, nas áreas rurais.
Posteriormente, apresentamos algumas características comuns a essa religiosidade
popular, de modo a inscrevê-la na nossa pesquisa. Outrossim, convém esclarecer que, neste
estudo, empregamos religiosidade popular e catolicismo popular como sinônimas, uma vez que
não abarcamos outra(s) religiosidade(s) populare(s) além da católica.
Em segundo lugar, justificamos a tessitura desses parágrafos apoiados na ideia de
que, nos textos orais investigados, as manifestações e práticas religiosas são,
predominantemente, expressões culturais da religiosidade popular. Nesse sentido, posto que o
foco da pesquisa incide sobre o estudo da língua em sua inter-relação com a cultura, não
aprofundamos demasiado em discussões voltadas para outras dimensões, como a sociológica,
a teológica, a filosófica, conquanto saibamos que a transdisciplinaridade é fundamental para
apreensão total das manifestações religiosas.
Desse modo, reiteramos a desincumbência de delinear os numerosos olhares
teóricos sobre o catolicismo popular, tanto sincrônica quanto diacronicamente, bem como
abranger as suas múltiplas modalidades13. Por ora, ter consciência da sua configuração, da sua
lógica e das suas especificidades se faz suficiente.
Desta feita, julgamos importante lançar olhares sobre textos que se ocupam da
formação do catolicismo popular brasileiro. Diz-se brasileiro porque se difere, em
determinadas categorias e circunstâncias, do europeu, ainda que dele tenha se derivado. Trata-
se de um catolicismo caracterizado pela pluralidade de manifestações, formado sobre uma
base compósita, sobretudo pela fusão dos elementos índio, negro e branco, com a
preponderância deste último (LANTERNARI, 1974), e que se desdobra em variados matizes.
13 Para se ter noção da numerosa tipologia que alguns estudiosos defendem, citamos um quadro de Queiroz (1965),
em que arrola as seguintes denominações: a) catolicismo oficial; b) catolicismo popular, c) catolicismo cultural, d) catolicismo reunido ao espiritismo, e) catolicismo com crenças e magias indígenas, f) catolicismo associado aos cultos africanos e g) catolicismo em sincretismo com o espiritismo e os cultos africanos.
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Nesse ensejo, focalizamos o catolicismo popular também conhecido como rústico,
porquanto visualizamos que as práticas religiosas identificadas nas narrativas dos sujeitos que
vivem ou viveram na Comunidade São Domingos, Catalão-GO, contenham, notadamente,
traços, heranças do catolicismo popular português.
É importante, ainda, ressalvar que esta comunidade mantém vínculos com a
paróquia Nossa Senhora Mãe de Deus, fixada na sede do município, de onde provêm os
sacerdotes, ministros e outros representantes da hierarquia eclesiástica para a realização das
missas, dentre outros eventos do calendário litúrgico oficial. De tal maneira, catolicismo
popular e catolicismo oficial não se antagonizam e, decerto, para os crentes partícipes,
formam um único catolicismo, em que a fé e as obrigações com Deus e com os santos estão
acima de qualquer distinção entre oficial e popular.
Na sequência, dispomos brevemente aspectos da formação do catolicismo no
Brasil, antes de caracterizarmos, especificamente, o(s) catolicismo(s) popular(es).
2.3.1 Aspectos históricos
Hoornaert (1978, p. 13) traz importantes considerações a respeito da formação do
catolicismo brasileiro, remontando ao Brasil colônia, quando, segundo afirma, o catolicismo
era religião obrigatória, uma vez que “era praticamente impossível viver integrado no Brasil
sem seguir ou pelo menos respeitar a religião católica”. Refere o autor que a obrigatoriedade
se dava, também, por causa do medo imposto pela Inquisição.
Embora o Brasil, ao contrário das outras nações latino-americanas, não tenha
possuído um tribunal do Santo Ofício, os acusados de promover práticas antagônicas ao que
preconizava a Santa Madre Igreja Católica eram encaminhados ao tribunal de Lisboa para
serem condenados. Essa “fiscalização” da vida quotidiana e dos costumes na Colônia ocorria
por meio de visitas do Santo Ofício, nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Bahia e em
Pernambuco.
Por outro lado, toda essa hegemonia católica se mostrava secundária em face do
acordo do Padroado régio, formalizado e firmado entre o Trono de Portugal e o papado, em
período até mesmo anterior ao apossamento do Novo Mundo. Sobre este acordo, Cancian
(2011, p. 14) diz que “[...] o Estado colonizador garantia a implantação e expansão da fé cristã
em todos os domínios e territórios conquistados; em troca, a igreja Católica Romana concedeu
a Coroa prerrogativas de controle sobre as igrejas e ordens católicas sediadas nos territórios
coloniais”.
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Portanto, a disseminação das monarquias ibéricas pelo além-mar se sustentava
nesse acordo, que garantia a propagação do catolicismo e, concomitantemente, firmava a
soberania da Coroa nas deliberações eclesiásticas nos territórios conquistados.
Malgrado o regime do Padroado ter sofrido mudanças no decorrer da era colonial,
imperava a autoridade legal do Estado, que nomeava o clero e atuava nas bases materiais da
Igreja por meio da administração dos dízimos e de subsídios para criação e manutenção de
igrejas, paróquias, escolas etc. (CANCIAN, 2011).
Nessa perspectiva, Azzi (2005) acrescenta que durante os três primeiros séculos da
colonização vigorou o modelo de Igreja-Cristandade, no qual o Trono lusitano era tido como
uma criação divina, cabendo-lhe, portanto, a função de difundir a fé católica. Conforme o autor,
“a idéia de cristandade vem de uma concepção da Idade Média, e cujas origens remontavam ao
século IV, quando Constantino assumira o governo do Império Romano, e se constituiu como
um defensor e promotor da religião cristã” (AZZI, 2005, p. 15).
Hoornaert (1978) observa que a Inquisição, além de pretender manter a
homogeneidade católica na luta contra as classes consideradas “pagãs”, possuía interesses
econômicos. Nos idos dos oitocentos, impregnado pela efervescência dos movimentos
comerciais na Colônia, o tribunal inquisitório começou a deportar para a metrópole os
brasileiros ricos chamados “cristãos-novos14” e a confiscar seus bens.
Ademais, por detrás da repressão religiosa, também atuava a exploração econômica
praticada pela Coroa portuguesa: “a inquisição era expressão do colonialismo: ela estava ao
lado do rei e da igreja estabelecida, contra os que negociavam livremente e independentemente,
deixando de constituir – desta maneira – fonte de renda para a coroa portuguesa”
(HOORNAERT, 1978, p. 19).
Convém notar que a repressão religiosa, por meio da Inquisição, se faz visível
também em muitos nomes de teatros, restaurantes, hotéis, cinemas, entre outras casas
comerciais que possuem nomes religiosos. O autor supracitado explana que, sob a invocação
de um santo, esta era uma forma de proteger o estabelecimento e de se evadir às desconfianças
dos representantes do Santo Ofício. Enfim, “todos tinham que ser ‘muito católicos’ para garantir
a sua posição na sociedade e não cair na suspeita de ‘heresia’” (HOORNAERT, 1978, p. 16,
grifos do autor).
14 “descendentes de judeus, assim chamados em oposição aos ‘cristãos-velhos’ que descendiam de antigas famílias
católicas” (HOORNAERT, 1978, p. 14). Explica o autor que, em 1536, à época do reinado de Dom João III, a inquisição em Portugal fez com que um grande número desses “cristãos-novos” se evadissem para a América, a Ásia e a África.
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Outro fator que Hoornaert (1978) acentua como determinante dessa situação
repressiva é a falta de livros e de universidades. A primeira imprensa fundada no Brasil,
especificamente no Rio de Janeiro, data do ano de 1808, com a vinda de Dom João VI. Nos
dizeres do autor, essa situação privava o povo da reflexão e a falta de espírito crítico formava
uma religião desprovida de fundamentos bíblicos e distanciada da teologia.
O quadro exposto acima começa a mudar a partir da segunda metade do século
XVIII, por influência de Sebastião Carvalho de Mello, o Marquês de Pombal, um iluminista
que, influenciado pelo movimento, encarou o catolicismo de maneira diferenciada daquela
constituída outrora (HOORNAERT, 1978). A fim de aplacar o interesse do rei José I em
fortificar o absolutismo, o Estado português, conduzido por Pombal (ministro de 1750 a 1777),
eliminou os poderes intermediários que exerciam ações na sociedade, mormente o papado e a
Igreja nacional, cortando relações com o Vaticano e afastando as ordens jesuíticas em Portugal
e nas colônias.
Não obstante as relações entre o papado e o Trono lusitano terem sido restauradas
em 1770, a política posta a cabo por Pombal não retrocedeu, permanecendo, então, o poder da
Coroa sobre o da Igreja e, consequentemente, enfraquecendo o catolicismo nas colônias
(CANCIAN, 2011).
Dos fatos históricos, vale citar, também, a separação do Estado da Igreja, a partir
da Proclamação da República, em 1899, e a completa desvinculação em 1891, que tornou laico
o Estado brasileiro, bem como as intensas mudanças operadas no catolicismo, a partir de 1960,
que impulsionaram as igrejas católicas a se aproximarem das classes populares e engajarem-se
em programas ativistas sociopolíticos. Durante a ditadura militar, estas reformas e ações sociais
foram repreendidas, gerando conflitos entre a instituição eclesiástica e o Estado militarizado
(CANCIAN, 2011).
De modo a não adentrar demasiado a história do catolicismo no Brasil, agora,
importa assinalar a época condizente a meados do século XVIII, quando alguns pensadores
lusitanos, como Antônio N. Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha, fundamentados em ideais
iluministas que lançavam luz sobre certas formas de catolicismo consideradas “patológicas”,
“[...] já tinham percebido que há diversas maneiras de ser católico, de viver uma religião, e que
uma religião pode ser instrumento de opressão como era caso da religião que sustentava a
inquisição” (HOORNAERT, 1978, p. 21).
Ser católico, portanto, apresenta distintas dimensões a depender da cultura, do
lugar, das condições sociais e políticas em que o repositório católico de preceitos, orações,
rituais etc. se concentra enquanto referência para interpretação e (re)elaboração das crenças e
56
práticas religiosas. Nesse contexto, pensamos como Hoornaert (1978, p. 24) que o catolicismo,
mais que uma instituição tipicamente cristã hierarquizada nas pessoas do papa, do episcopado,
dos sacerdotes em geral, sediada nas casas paroquiais e fundada em dogmas, “[...] não é só
instituição, ele é também expressão de vida e de sentimentos.” Por esta via, conduzimo-nos ao
esboço das circunstâncias constitutivas do catolicismo popular no Brasil.
2.3.2 Circunstâncias da constituição do catolicismo popular no Brasil
Queiroz (1968) resume que a coexistência de, no mínimo, dois catolicismos, o
oficial e o popular, é antiga no Brasil. No período colonial, conforme Bastide, citado por
Queiroz (1968, p. 104), são identificáveis “[...] o catolicismo doméstico dos primeiros
colonos, dos chefes de família, e o catolicismo mais Romano, mais universalista, das ordens
religiosas e principalmente dos jesuítas”. A autora destaca que essa é uma dualidade universal
e, portanto, não se restringe ao Brasil, pois, segundo afirma, constata-se em todos os países
um contraste entre as necessidades religiosas da massa popular, espontaneamente inclinadas
à conservação de tradições religiosas antigas, e uma hierarquia sacerdotal estruturada e
sustentada por dogmatismos mais ou menos rigorosos.
Conquanto outras religiões tenham sido implantadas no Brasil, o cenário
visualizado na subseção precedente oferece uma percepção do pioneirismo católico que se
fez arraigado à história do Brasil e, por conseguinte, à cultura de muitos povos brasileiros.
Do mesmo modo, os fatos históricos apontam caminhos para compreendermos em que
circunstâncias se estabeleceram o catolicismo popular e suas expressões culturais,
proeminentemente nos recintos rurais.
Nesse sentido, Cancian (2011) fala da debilidade organizacional do catolicismo à
época da colonização, por volta de 1750, quando, na vastidão do território colonizado, havia
apenas oito dioceses e com estruturas bastante deficientes. Igualmente, as paróquias eram
escassas e não existiam instituições clericais adequadas à formação de novos padres.
Abstraímos dessas informações que a infraestrutura precária e a imensidão do
território conquistado dificultavam demasiadamente o controle absoluto sobre as diversas
formas religiosas que adentravam o território, bem como sobre as que nele já se encontravam.
Em consonância com a situação supradita, Hoornaert (1978) descreve que a
propagação do catolicismo pelo Brasil se deu mormente por leigos, por pessoas desvinculadas
da instituição eclesiástica, cujos representantes se concentravam majoritariamente no litoral,
em mosteiros, conventos, seminários, palácios e colégios, e raramente se deslocavam para o
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interior. Dessa maneira, “os portugueses povoadores e desbravadores do sertão, assim como
os índios mansos e os africanos escravizados, e mesmo os quilombolas eram os principais
propagadores do catolicismo no interior” (HOORNAERT, 1978, p. 118).
O autor julga que, a partir do século XVI, apesar de muitos indivíduos terem se
sujeitado de corpo e alma à religião católica e aos dominadores portugueses, muitos outros
submetiam-se apenas de corpo, enquanto a “alma” resistia por meio da transformação dos
símbolos do catolicismo. Isso se fazia como forma de manter a dignidade, ou seja, a religião
se tornara uma alternativa perante a situação opressiva que se lhes apresentava. Concernente
a isso, Hoornaert (1978, p. 120, grifos do autor) acrescenta:
É bem conhecida a afirmação que, para o índio, havia três “saídas” diante da invasão portuguesa: a fuga, o suicídio ou a religião. A mesma afirmação vale para os africanos trazidos para cá. Ora, esta religião – a terceira “saída” – constituiu na realidade uma alternativa diante da total submissão. Desta maneira ela tornou-se o reduto da preservação da dignidade original [...].
Chega-se, inclusive, a comparar essa condição a um tipo de estoicismo, em virtude
da aceitação resignada dos mais pobres em face dos enfrentamentos que lhes interpunham, de
maneira a evitar a desordem e preservar a dignidade. A isto Hoornaert (1978, p. 104) alia a
complexidade inerente às culturas populares, as quais, defende o autor, não são meros reflexos
do sistema dominador, pois têm sua originalidade, uma vez que o povo pobre e oprimido tem
consciência da situação ambígua em que vive, entretanto esta percepção “[...] vive abafada
sob a ação de uma tradicional sabedoria de conformismo e paciência fatalista.”
Para ilustrar esta ideia, trazemos à baila Lentsman (1963, p. 59), em abordagem
das origens do Cristianismo, quando tece algumas palavras acerca da filosofia estoica de
Sêneca: “nos seus numerosos escritos filosóficos, enuncia êle a idéia de um Deus absoluto e
todo-poderoso, donde a necessidade da resignação ante os golpes do destino, uma vez que
tudo acontece segundo a vontade do Altíssimo”. Temos, pois, evidente um pensamento
fatalista frequente na linguagem das classes populares, quando se diz que os acontecimentos
no mundo terreno são predeterminados “lá em cima”, na esfera mística.
Merece atenção, também, a linguagem providencialista que Hoornaert (1978)
considera comum a muitos brasileiros, pobres e ricos, até a segunda metade do século XIX.
Por providencialismo o autor compreende a crença na atuação da divina providência na ação
dos seres humanos. Entre muitos exemplos de acontecimentos dessa natureza, o autor
menciona a crença de que a vitória sobre os índios em Igaraçu-PE, no dia 27 de setembro de
1530, não fora obra dos portugueses, e sim dos santos Cosme e Damião, celebrados no dito
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dia. Enfim, “a divina providência marcava os ritmos da vida, do ano, das guerras e das pazes,
das esperanças e das glórias. Ainda hoje o povo do interior fala em ‘mês de São João, de Santa
Ana, de Natal’” (HOORNAERT, 1978, p. 108, grifo do autor).
Conforme acima citado, o providencialismo, culturalmente, remonta à Idade
Média portuguesa. Tal fato, expõe Hoornaert (1978), chama a atenção de muitos historiadores
europeus em função da proximidade entre a cultura popular brasileira e a cultura medieval
europeia.
Não obstante a linguagem providencialista tenha sido suplantada a partir da
linguagem progressista adotada pela classe burguesa, principalmente nas cidades, quando da
supremacia da Inglaterra no período neocolonial, ela ainda hoje perdura em vários âmbitos
das classes populares como um modo de encarar a vida e torná-la inteligível. Nesse sentido,
ratificamos os dizeres Hoornaert (1978, p. 116, grifo do autor), ao observar que:
[...] os pobres no Brasil continuam a falar em Deus enquanto a propaganda oficial só fala em progresso. Todos quantos pretendem compreender com certa profundidade o catolicismo dos marginalizados no Brasil têm que transpor a barreira de linguagem que separa as duas culturas, e deixar de taxar simplesmente de “ignorantes” os que falam uma linguagem que lhes parece superada.
Dando prosseguimento à temática da formação do catolicismo popular no Brasil,
cabe dar relevo às palavras de Lanternari (1974), quando investiga as religiões dos oprimidos,
dos povos que vivem em condições coloniais e semicoloniais. Desse estudo, importa a parte
que se refere aos movimentos messiânicos na América, estritamente ao Brasil, na qual o autor
fala que a longinquidade das regiões progressistas, em relação às áreas interioranas, aliada à
inexistência de meios de comunicação, foi determinante na constituição de um catolicismo
nas localidades rurais, “[...] cujas características são a sistemática carência de sacerdotes no
local, e a difusão de práticas religiosas populares – novenas, procissões, curas, mágicas,
prodígios etc. – fortemente tingidas de paganismo [...]” (LANTERNARI, 1974, p. 206).
Em suma, nos primeiros séculos da história do Brasil, temos a seguinte situação:
um vasto território conquistado pela Coroa portuguesa; a aliança entre esta e o papado, a fim
de garantir a oficialização e a dilatação do catolicismo nas terras apossadas e, ao mesmo
tempo, manter a supremacia do Rei; a opressão da elite sobre os pobres, principalmente por
parte da Igreja, no intento de “catequizar” os “pagãos”; a concentração das sedes eclesiais no
litoral, em contraponto à escassa presença de representantes oficiais da Igreja nas áreas
interioranas; propagação da fé católica por povoadores e desbravadores não ligados à
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instituição eclesiástica; e uma diversificada presença étnica e cultural composta,
principalmente, por índios, escravos africanos e brancos oriundos das camadas sociais pobres
portuguesas.
Com base nesse esquema, conclamamos Hauck (1992, p. 112), quando sintetiza o
entrecruzamento cultural que deu origem ao catolicismo popular brasileiro, compreendido na
sua amplitude, em três pilares básicos: as crenças medievais, as indígenas e as africanas:
Muito rica em suas manifestações, a religião do povo brasileiro brotava de três raízes: a herança das crenças medievais em que o sagrado e o misterioso apareciam em todas as atividades do dia-a-dia e que recebeu farta contribuição das culturas indígenas e africana, criando uma prática religiosa que ocupava lugar de destaque na vida familiar e individual. Religiosidade que se transmitia em família, ou passava de pessoa a pessoa, numa troca de experiências do poder maravilhoso de certas orações, devoções e benzeções.
É importante considerar que a pluralidade religiosa não se torna um fato somente
a partir da colonização, quando o Brasil foi povoado por gentes de vários cantos do mundo,
haja vista que um rico patrimônio de credos indígenas já era realidade incontestável (MARIZ;
MACHADO, 1998). Afinal, o Brasil é muito mais antigo, isto é, há uma pré-história que
antecede o século XVI, o qual marca apenas o início da etapa da dominação portuguesa.
A população das áreas mais remotas e atrasadas, diante da necessidade de médicos
para curar as doenças e de sacerdotes para atender às demandas da alma, precisavam, de
algum modo, solucionar tais carências, e isso fizera ao seu modo, apoiada nos conhecimentos
que trouxe dos antecedentes e da cultura que lhe é pertença original, porém observando,
reinterpretando, internalizando e adaptando o sistema religioso que tinham como referência
naquelas circunstâncias: o catolicismo europeu. Nessa perspectiva, Brandão (1992, p. 101,
grifo do autor), ao trazer anotações antropológicas acerca do catolicismo popular, descreve
que:
[...] o povo da América Latina apropria-se culturalmente do que lhe foi dado como religião e criativamente a transforma, sem nunca deixá-la perder-se de seu sentido verdadeiramente religioso universal e original, para poder vivê-la, isto é, para tornar possível ser católico, incorporando uma religião à sua própria cultura.
Concluímos, até então, que, culturalmente, o catolicismo popular no Brasil
configurou-se a partir de três universos culturais principais, índios, negros e brancos. Todavia,
cabe explanar, mais detalhadamente, que essa elaboração não foi homogênea, vistas as
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circunstâncias peculiares às muitas regiões do país colonizado. Para tanto, nos reportamos a
Queiroz (1968), quando trata exatamente dos traços distintivos que tornam heterogênea tal
configuração.
Sobre o componente africano, a autora (1968 p. 106, grifo da autora) descreve que
a adaptação sincrética do catolicismo com os cultos afros é um fenômeno mais urbano, já que
nas áreas rurais o contexto social não era favorável: “com efeito, nas cidades era mais fácil
de se encontrarem e de se reunirem os escravos pertencentes a uma mesma ‘nação’, podendo
então refazer a estrutura sócio-econômica dos seus cultos”. No que diz respeito ao sincretismo
indígena, isto é, a associação de elementos das religiões aborígenes ao catolicismo, Queiroz
(1968) diz ser um fenômeno localizado em áreas geográficas mais restritas e com maior
profusão na região amazônica.
Acerca das predominantes contribuições dos colonos, Queiroz (1968) diz que o
catolicismo popular formulado no sertão brasileiro15 é muito mais análogo àquele migrado
pelos portugueses para a colônia: “ora, a maior parte dos elementos religiosos trazidos para o
Brasil fazia parte, já em Portugal, da religião popular, pois o campônio português, ao emigrar,
trazia consigo suas crenças” (QUEIROZ, 1968, p. 107). A isso, acrescenta que, com o passar
do tempo, a propagação do estilo de vida citadino fez com que esse catolicismo popular se
dividisse em dois: um catolicismo urbano e um catolicismo rústico. Em síntese, a autora
(1968, p. 107) diz que:
A transmigração da Família Real portuguêsa em 1808, a modernização urbana decorrente de sua instalação no Rio de Janeiro impeliu pela primeira vez a civilização rústica para o interior [...] foi ela aos poucos sendo expulsa das cidades maiores, em seguida das pequenas capitais provincianas, para finalmente se refugiar nos vilarejos e povoados. Hoje em dia, encontrâ-mo-la em grande parte do Norte, do Nordeste, do Centro-Oeste do País.
Dessa maneira, Queiroz (1968) demonstra que o catolicismo rústico brasileiro
surgiu essencialmente influenciado por dois fatores: o catolicismo popular português, que em
Portugal tinha e tem como sustentáculo o culto aos santos e a carência de sacerdotes. Brandão
(1992, p. 86) corrobora os dizeres da autora, quando afirma que “[...] chegam à América
Latina vários tipos próprios e apropriados de Catolicismo do povo, culturalmente muito
15 De modo geral, compreendemos os sertões como as regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Na definição
de Houaiss e Villar (2009), sob a rubrica regionalismo, sertão é “toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos”. O sertão a que nos referimos em nossa pesquisa condiz à área do cerrado goiano, especificamente ao sudeste do estado.
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diversos em certos aspectos, ainda que no seu todo vividos por pessoas e famílias das mesmas
classes e categorias sociais populares.”
Enfim, acreditamos, a priori, que o catolicismo popular que investigamos na
presente pesquisa, situado no interior de Goiás, se amolda a esse catolicismo que a autora
supracitada chama de rústico e cuja origem alude às crenças populares portuguesas. Isso
perceberemos com mais afinco no terceiro capítulo, em que faremos a descrição e análise dos
dados. Admitimos que, nessa esteira, a religiosidade se difundiu e se diversificou no Brasil
pelas mesmas trilhas que a língua portuguesa o fez, dado que, da cultura dos colonizadores
portugueses, a religião e a língua são dois magnos produtos humanos. Isso nos conduz às
palavras de Paula (2007):
Sem condições de precisar a influência ou herança de cada falar para o português em Goiás, convém dizer que muito do modo como se fala aqui também se encontra em terras de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (fugindo da fronteira), Minas e São Paulo. Não nos parece, pois, aconselhável dizer de um modo de falar de Goiás ou de uma língua goiana, de um dialeto goiano, mas de uma língua portuguesa com dada feição dialetal que se verifica também nos falantes goianos nativos (PAULA, 2007, p. 70).
Logo, não é seguro falar de um catolicismo popular de Goiás, mas de um
catolicismo popular, ou rústico, fugidio das fronteiras, dotado de muitas feições identificadas
também nos católicos goianos, bem como nos não-católicos que, de algum modo, podem se
valer e participar das práticas populares católicas em certos momentos da vida.
Estas foram as circunstâncias gerais em que surgiu e se preservou, no decorrer do
tempo, o catolicismo popular no Brasil, do qual resistem traços até atualmente nas áreas de
vida rural, quais sejam, nos lugares aquém da fronteira campo/cidade, como também noutros
onde o rural atravessa essa fronteira em menor ou maior grau. A seguir, tratamos mais
estritamente dos temas magia e religião e, a partir de informações constatadas no corpus,
antecipamos e apresentamos algumas práticas registradas.
2.3.3 Características gerais do catolicismo popular brasileiro
Em primeiro lugar, não é nosso propósito colocar o catolicismo popular em
contraponto ao catolicismo oficial (erudito, eclesiástico), haja vista que, como dito em
momento anterior, os narradores da nossa pesquisa compartilham de ambas as vertentes, de
tal modo que é comum frequentarem missas e receberem os sacramentos da liturgia oficial da
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Igreja e, sempre que necessário, recorrerem às bênçãos e práticas terapêuticas de
benzedores/benzedeiras, rezarem/cantaram terços em situações de festas populares etc. De tal
forma, preferimos compreender esses catolicismos como modos peculiares de se relacionar
com os seres divinos e vivenciar a religião, portanto, sem torná-los excludentes e
absolutamente contrários. Ratificamos, portanto, a ideia da pluralidade da cultura popular
associada a outras culturas na dinâmica de um continuum.
Nestes termos, torna-se pertinente considerar as práticas de rezar, benzer, curar,
festejar, entre outras, sem fechá-las rigorosamente numa modalidade católica específica e
intransponível, mas enxergá-las como elementos constituídos e comungados culturalmente e
que perpassam pelos diversos âmbitos da religião e dos estratos sociais. Sobre essa questão,
González (1992), em estudo do catolicismo popular, exprime que não há um desprezo pelos
sacramentos oficiais, e sim uma relativização, uma vez que destes é destituída a
imprescindibilidade, ou seja, não são vistos como obrigatórios, uma vez que podem ser
executados pelos próprios sujeitos da cultura popular. Na religiosidade popular, é válido,
então, acrescentar novos sentidos aos rituais oficiais no intento de torná-los mais funcionais
e apropriados.
Para Camargo (1979), em investigação das funções da Igreja Católica em processo
intencionado de mudança social, apesar da propagação de outras religiões, como o espiritismo
e o protestantismo, a predominância do catolicismo nas áreas rurais brasileiras é fator de
destaque para compreender a Igreja Católica na qualidade de instituição mais representativa
da religião nestas áreas.
Camargo (1979, p. 188) analisa que “em correlação com a escassez e, em muitos
casos, ausência de padres na área rural, toda a prática religiosa tende a dar ênfase a aspectos
não-sacramentais e liturgicamente menos significativos.” A partir disso, o autor destaca o
caráter santoral que muitos estudiosos de comunidade associam ao catolicismo popular e
completa que esse aspecto não é nem teocêntrico, nem cristocêntrico, porquanto se defina, de
fato, “pela predominância da devoção aos santos prediletos”. Ainda para este autor:
Um dos aspectos característicos das práticas religiosas e que reflete o alto nível de sacralidade da cultura local é a prática de rezas, promessas, bênçãos e procissões ligadas aos fenômenos da natureza e ao bom encaminhamento da agricultura e da pecuária. Procissões para pedir chuva (ad pluviam petendam), rezas pedindo proteção contra os raios e chuvas de pedra, além das bênçãos protetoras dos animais e das colheitas, expressam o nível tecnológico rudimentar, a dependência da natureza, e a correlata sacralidade da cultura, manifestada em termos da tradição católica.
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O autor aponta a existência de outras características comuns a esse catolicismo, a
saber: a) influência no lazer, ou seja, diversões e festas de caráter religioso-católico, como as
Folias do Divino Espírito Santo e outras grandes festas religiosas que constituem, ao mesmo
tempo, expressão religiosa, lazer e ocasião de inter-relação social; b) a liderança religiosa
concedida a “rezadores” e “rezadoras”, aos quais se incumbem, na ausência do padre, as
tarefas de “puxar” as rezas, entoar terços e “benditos” para doentes e mortos, encomendar as
almas, realizar batizados caseiros etc.; c) a demarcação de espaços sagrados e profanos, sendo
sacras as igrejas, as capelas, as cruzes nas estradas, os altares e oratórios domésticos (vide
foto 1) com suas imagens de santos variados, entre outros, e d) a sacralização do tempo, que
se evidencia no cumprimento do calendário litúrgico local, como a Semana Santa e os dias
dos santos importantes na comunidade, afetando os hábitos alimentares, o trabalho, enfim o
comportamento e a vida quotidiana das pessoas (CAMARGO, 1979).
Foto 1 - Altar doméstico.
Fonte: Pesquisa de campo (2014).
Além desses elementos, Camargo (1979) fala de uma dimensão mágica que
atravessa a vida rural, ainda que “os sentimentos religiosos persistentes não se deixam
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substituir pelo jogo das manipulações mágicas.” Dito de outro modo, esta dimensão que
permeia o catolicismo no meio rural se difere da magia, por exemplo, no contexto da bruxaria,
porquanto há uma fusão entre o sentimento religioso, que legitima e justifica a vida, e a função
prática da magia. Igualmente, os sujeitos se identificam como católicos e não como mágicos
ou outras denominações correlatas. Nesse sentido, a título de ilustração, Brandão (1992, p.
180) alude ao milagre como um fenômeno que diz respeito à “[...] ação divina e a ela
corresponde uma ação humana que pode ser chamada magia (num bom sentido da palavra);
são duas dimensões do maravilhoso.”
Podemos visualizar essa manifestação mágica, por exemplo, em muitos expedientes
terapêuticos que utilizam rezas, ervas e outros ingredientes, bem como em ações para garantir
a estabilidade das produções agrícolas e da pecuária, como as benzeções dos pastos, das
plantações, dos animais. Tais práticas mágico-religiosas, geralmente, são constituídas por
elementos da tradição católica e exercidas por especialistas denominados “benzedores” e
“curandeiros”, que se auto-afirmam católicos e cuja função é a de serem intermediários entre
os humanos e as entidades divinas (CAMARGO, 1979; ZALUAR, 1973).
Nesse sentido, “apesar dos protestos inócuos dos sacerdotes, há para a cultura
local uma continuidade do sobrenatural que se estende entre a religião e a magia, ambas
inspiradas no patrimônio do catolicismo tradicional português e entendidas como solidárias.”
(CAMARGO, 1979, p. 189). Ressaltamos que, na seção seguinte, magia e religião são
abordadas com maior atenção, de modo que o assunto se tornará mais bem apresentado.
Acreditamos que a incumbência de abordar os aspectos básicos do catolicismo
popular se assenta na sua importância para a compreensão da palavra como elemento capital
nos ritos, nas rezas, nas benzeções e em outras orações religiosas, especialmente, do caráter
mágico, prático e imediato impregnado nesses rituais. Assim, ratificamos a ideia de
religiosidade popular engendrada por Câmara Neto (2002, p. 2, grifo do autor), em cujo estudo
sobre o tema, o autor observa que:
[...] a religiosidade popular [...] não é corpo eclesial nem corpo doutrinário, configurando-se em uma religiosidade dotada de razoável independência da hierarquia eclesiástica – incluindo-se aí toda a documentação oficial da Igreja e todos os teólogos elaboradores da doutrina –, independência essa ao caráter sistemático do catolicismo oficial, materializada em uma explosão quase íntima ao “sagrado”, humanizando-o, sentindo-o próximo, testando-o e sentindo sua força por métodos criados, não pelo clero, mas pelos próprios devotos, métodos esses que são transmitidos, em sua grande totalidade, oralmente. Em suma, o vivido em oposição ao doutrinal.
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Desta feita, apreendemos que os exercícios do catolicismo popular estão, de fato,
muito próximos aos seus praticantes, ou seja, se fazem permeados pelo seu vivido, não como
doutrina, e sim como o sagrado humanizado e experienciado nos atos de benzer, de rezar, nas
trocas recíprocas que se dão entre humanos e santos, enfim, na sacralização da cultura.
Conjecturamos, a priori, que essas manifestações, representadas em variados e
criativos rituais, carecem da linguagem, da palavra dita no momento adequado e do modo como
deve ser pronunciada ou entoada, tanto para sua transferência quanto para sua eficácia.
Conduzimos, na sequência, uma abordagem mais atenta aos assuntos magia e religião e,
conforme se desenrola, acrescentamos exemplos retirados do corpus.
2.4 Magia e religião e nomenclaturas correlatas
De antemão, cumpre advertir que em momento algum se intenta julgar a eficácia ou
ineficácia das práticas mágico-religiosas. Em seu propósito, o estudo apreende estes aspectos para
tratar do seu caráter linguístico e cultural. Ainda que para isso necessitemos considerar o contexto
em que ocorrem, o extralinguístico, está fora de nossa alçada pôr em questão tais elementos.
Portanto, agimos de maneira neutra16 diante aos fatos, visto que o foco central da pesquisa são as
práticas culturais religiosas e, sobretudo, suas inerentes manifestações verbais orais.
Fundamentados em Marconi e Presotto (2009), cuja obra “Antropologia - uma
introdução” traz importantes contribuições acerca dos conceitos básicos da ciência
antropológica, apresentamos esta subseção a fim de tratar das frequentes nomenclaturas que os
temas religião e magia evocam, principalmente aquelas que julgamos ser de crucial emprego
no presente estudo, tais como crença e ritual.
Para as autoras, a religião se afigura como um aspecto universal da cultura que,
aliada à magia, tem atraído os olhares científicos desde o século XX. Em sentido amplo, a díade
religião e magia revela-se “por meio de cultos e rituais, públicos ou privados, [em que] os
homens tentam conquistar ou dominar, pela oração, oferendas, sacrifícios, cantos, danças etc.,
a área de seu universo não submetida à tecnologia.” (MARCONI, PRESOTTO, 2009, p. 151).
16 Acreditamos que a escolha por um tema e um objeto de pesquisa já está, por si, eivada de subjetividades, logo
nossa escolha por este estudo não é neutra. Porém, a abordagem científica das configurações linguísticas, dos arranjos verbais para dar cabo à dimensão mágica e religiosa nas narrativas ganham, no nosso estudo, abordagem científica que, pretendemos, esteja, ao máximo, desprovida de pessoalidade ou de julgamentos e opiniões particulares nas análises que empreendemos. O nosso foco são as realizaçoes linguísticas das senhoras e senhores, matizadas por um léxico que as caracteriza como significativas para apreender o mágico-religioso na comunidade São Domingos.
66
Marconi e Presotto (2009, p. 164) consideram que, conquanto possam se associar,
magia e religião não devem ser confundidas:
A religião implica a crença em seres espirituais, deuses, o sobrenatural, sendo a oração a técnica usada pelos adeptos para relacionar-se com eles. A atitude religiosa é de humildade, submissão, reverência e adoração. A magia não recorre aos seres espirituais. Vale-se de técnicas para controlar os poderes sobrenaturais.
Segundo Castiglioni (1993), em estudo dos instrumentos, fórmulas e rituais
mágicos das culturas mais antigas, a religião tem, pelo menos em parte, uma origem comum
com a magia; a diferença entre elas se mostra essencialmente nos seus meios. De acordo com
o autor, em consonância com Marconi e Presotto (2009), a religião não tende a dominar as
forças sobrenaturais, o que se faz é invocar o favor dos seres sobrenaturais por meio de súplicas
e orações, atos piedosos e vários outros meios, em que a vontade e a decisão consciente e
espontânea da divindade não podem ser impelidas de modo algum.
Castiglioni (1993) diz que, embora não seja fácil definir precisamente o significado
da magia, é possível afirmar que ela “[...] representa os esforços empregados durante um certo
estado de ânimo, permanente ou transitório, para lograr da realização de um desejo em um
mundo em que não existem fronteiras entre o real e o irreal”. Dessa forma, o autor comenta que
a magia não significa apenas um complexo de ações, quais sejam os rituais, mas também uma
união de ideias e representações com várias e amplas interferências.
A primeira distinção que as autoras fazem é entre crença (fé) e ritual (prática),
considerando-as como elementos inter-relacionados, ou seja, associados um ao outro. Assim,
nas palavras de Marconi e Presotto (2009, p. 151-152), temos:
a) crença ou fé: “consiste em um sentimento de respeito, submissão, reverência, confiança e até
de medo em relação ao sobrenatural17, ao desconhecido.” Trata-se de uma aceitação na qual o
crente reconhece, sem necessidade de provas tangíveis, a supremacia do sobrenatural. Podemos
destacar, na pesquisa, a crença nos santos católicos, como São Sebastião, Nossa Senhora da
Abadia, Santo Antônio, porquanto são reverenciados nos altares domésticos, em suas imagens
envoltas de velas e flores, respeitados em “dias santos” e para os quais antigamente, era costume
17 Cabe-nos, também, elucidar que por sobrenatural entendemos qualquer coisa que esteja em outra dimensão,
além das leis físicas e naturais, enfim “tudo aquilo que escapa aos sentidos do homem, que foge à compreensão humana, à observação e ao entendimento”. (MARCONI; PRESOTTO, 2009, p. 152). Exemplos de seres sobrenaturais: deuses, santos, anjos, demônios, fadas, Espírito Santo, espíritos, almas dos mortos (espectro) etc.
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“guardar o dia”, ou seja, suspender os afazeres domésticos menos essenciais, não ir para as
roças, enfim, não trabalhar nesse dia, em consideração ao santo comemorado. Ademais, havia
o temor de que algo de ruim aconteceria se esse costume fosse quebrado e, assim, o santo
desrespeitado. Daí se diz que “abusou do santo”, correndo o risco de algum castigo provir desta
atitude. São entidades, portanto, que os sujeitos temem e reconhecem como poderosas e, por
isso, depositam promessas, realizam-lhes festas, terços, novenas etc. a partir da fé, da crença.
b) ritual ou prática: “trata-se da manifestação dos sentimentos por um ou vários indivíduos, em
qualquer meio, através da ação.” Ainda “consiste em um tipo de atividade padronizada, em que
todos agem mais ou menos do mesmo modo, e que se volta para um ou vários deuses, para seres
espirituais ou forças sobrenaturais, com uma finalidade qualquer” A título de exemplo, no
contexto da pesquisa, assinalamos a prática da “encomendação das almas”. Nesse ritual, na
“Semana Santa” quaresmal, reúne-se um grupo de “rezadores” católicos que sai à noite a
peregrinar de casa em casa na comunidade, ou nas comunidades vizinhas. As famílias são
surpreendidas ao som de “caixas”, de “berra-bois”, de bagos de milhos jogados sobre o telhado
e, assim, “encomendam-se as almas” das pessoas falecidas, isto é, proferem-se rezas como o
“Pai-Nosso” e a “Ave-Maria”, e entoam-se cânticos “benditos” para pedir bom
encaminhamento para alma de algum morto da família em visitação. Temos, então, exemplo de
uma prática ou ritual grupal, voltada aos seres divinos católicos e na qual se tem a finalidade de
rogar pela salvação das almas, por meio das rezas e cantos proferidos durante a ação
peregrinatória, em que se misturam alguns instrumentos sonoros.
Por culto, as autoras (2009, p. 153) entendem “uma série de atos contidos na veneração
ou comunicação com os seres sobrenaturais. Consiste no conjunto de crenças, rituais e divindades,
associados a objetos, lugares específicos, oficiantes e crentes.” Nessa categoria, as autoras (2009,
p. 153) descrevem os objetos sagrados (objetos que fazem parte do culto) geralmente como imagens
– “representações de uma divindade, um espírito, um deus, através da cultura, da pintura, do
desenho etc.” –, objetos rituais, que “englobam tanto objetos de uso comum [...] quanto os
especialmente confeccionados para determinados rituais” e máscaras, para disfarçar a cabeça ou o
corpo todo, “simbolizam autoridade, prestígio ou têm efeitos medicinais”. Como objetos sagrados,
têm-se as imagens (esculturas, quadros, medalhas etc.) de santos, por exemplo. Referente aos
objetos rituais, destacamos a “palha benta” usada por alguns sujeitos em rituais de abrandamento
de chuvas fortes (ventania, relâmpagos etc.). Esta palha (geralmente, folhas de coqueiro ou palma
usadas nas procissões do “Domingo de Ramos”), é guardada, seca e queimada para evitar/parar os
efeitos perigosos da chuva. Citamos, ainda, como objetos rituais, as velas, os ramos usados pelos
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benzedores nas práticas de benzeções etc. Do item máscara, aludimos ao palhaço da “Folia de Reis”,
representante do rei Herodes (personagem de conduta contrária à dos foliões), que se disfarça com
uma máscara para simbolizar o não-cristão o que se diverge do grupo, “[...] depois da conversão, o
palhaço, já sem máscara, passa para o lado dos foliões [...] (BRANDÃO, 2004, p. 387).
No que diz respeito às formas de ritual, ou seja, “atos religiosos como rezar cantar,
dançar aos deuses, ofertar coisas, fazer sacrifícios”, Marconi e Presotto (2009, p. 154) destacam
três principais, quais sejam:
a) oração ou prece: “invocação oral dirigida a seres sobrenaturais, feita pelos adeptos do culto,
guiada ou não pelos oficiantes [...] é uma técnica básica de relacionamento com o sobrenatural;
atitude de subordinação.” Acrescenta-se que têm por finalidade louvar, pedir, suplicar,
agradecer ou propiciar. São faladas ou cantadas (ou apenas mentalizadas), em certos momentos
e lugares, e podem combinar-se a prostrações, a genuflexões, a danças e a outros tipos de
movimentos e posturas etc. Pode “ser simples ou elaborada, curta ou longa, casual ou
formalizada, específica ou geral”. Na linguagem dos sujeitos católicos pesquisados, a palavra
“reza” é mais usual e possui os mesmos sentidos supracitados. Rezam-se o Pai-Nosso, a Ave-
Maria, o Credo, a Salve-Rainha etc.
b) oferenda: basicamente, “consiste em ofertar alguma coisa aos seres sobrenaturais: fruto de
colheitas, parte da caça, da pesca ou da coleta; objetos de valor (jóias, armas, utensílios), flores,
comidas, bebidas etc.” Podemos destacar, nesse ínterim, a oferenda de uma “galinha preta” para
São Sebastião. Esta galinha, cuja vida tem de ser preservada até a morte espontânea, é oferecida
ao santo que, em contraprestação, protege o “terreiro”, os animais domésticos de doenças, como
a peste.
c) manifestações: “consistem em uma série de atos ou movimentos rítmicos (danças, mímicas,
dramatizações), procissões, geralmente acompanhadas de cantos e de música”. A dita
“encomendação de almas” a que se referiram três narradores encaixa-se como uma
manifestação na qual os rezadores saem em procissão, cantando, rezando, usando instrumentos
sonoros etc. No corpus, é citada também a “Folia de São Sebastião”, prática autônoma da igreja.
Conforme o narrador N3M79, esse grupo de foliões, devotos do santo, advém de uma
comunidade vizinha, da Fazenda Mata Preta. Embora não tenham sido dados muitos detalhes,
sabe-se que esta manifestação é realizada na véspera do dia de São Sebastião (20 de janeiro),
ápice da comemoração. Os integrantes do grupo de foliões percorrem as casas da região e das
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redondezas, levando a bandeira com a imagem do santo e entoando versos rimados e rezando
em intenção de pedir-lhe proteção da casa, dos pastos, do quintal, contra a fome, a peste e a
guerra, além de pedirem uma “prenda” em oferecimento ao santo (dinheiro, frango, leitão,
novilha, saco de arroz ou de feijão), a qual é empregada na realização da confraternização de
encerramento que, geralmente, acontece na casa do festeiro.
Entre os tipos básicos de rituais, Marconi e Presotto (2009, p. 155-156) sublinham:
a) propiciatório ou intensificação: súplica à benevolência dos seres sobrenaturais. Nesse ritual,
“realiza-se uma cerimônia no sentido de levar as forças sobrenaturais a atender às necessidades
de dada população, favorecendo o abastecimento vegetal e animal, principalmente às relacionadas
com a sobrevivência”. Podemos citar, nesta categoria, os rituais para pedir chuva, como “aguar
uma cruz”. Nesta prática, referida no corpus, costuma-se pegar pedras e água em riachos ou
córregos ou rios para colocar no pé de uma cruz (fincada em morros ou estradas ou porta de
igrejas etc.) e, enquanto se proferem rezas, agua-se a cruz com a intenção de propiciar chuvas na
região. Há, também, a realização de terços para pedir o sucesso da colheita, a defesa contra
doenças epidêmicas, como também para pedir chuvas etc.
b) de passagem ou de transição: realização de um agregado de rituais “por ocasião da passagem
de indivíduos de um estado social para outro, ou seja, quando ocorrem importantes
modificações no status social.” Entre os mais comuns, as autoras citam o nascimento, a
puberdade, o matrimônio e a morte, ressalta-se que variam muito de uma cultura para outra.
Aqui, evidenciamos, do corpus, alguns rituais relativos ao nascimento e à morte. Efetivado por
sujeitos comuns, o “batismo caseiro” é feito em casa tão logo a criança nasça, devido ao temor
de o bebê morrer “pagão”. Basicamente, o ritual é composto de rezas, entre elas o Pai-Nosso, a
Ave-Maria e o Credo, da “toalha branca e virgem” e do vasilhame de água, geralmente limpa
de nascente e abençoada no momento da prática, para despejar na cabeça da criança e fazer o
sinal-da-cruz. Ademais, o batizando tem direito a padrinho e madrinha, respeitados “toda a
vida” do mesmo modo que os padrinhos do ritual oficial também o são. Depois de assegurado
esse primeiro batismo, busca-se o “batismo no padre”, isto é, o sacramento dado pela figura do
sacerdote oficial. No âmbito da morte, os velórios são importantes rituais de passagem nos quais
se rezam terços “aos pés do caixão”. Na maioria das vezes, o morto era velado em casa e
enterrado em caixão fabricado por pessoas da própria comunidade. É notório um ritual de
passagem também no momento da morte, quando era costume colocar uma vela, ou um “tição”,
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nas mãos do recém-morto. Acredita-se, assim, propiciar uma “morte em claro”, iluminando-lhe
o caminho da passagem.
c) de iniciação: existem graus diversos de iniciação, que pode ser uma cerimônia efetuada por
ocasião de passagem da juventude para a vida adulta ou de ingresso num grupo religioso.
Assinalamos o “batizado caseiro” supradito também como um ritual de iniciação, pois o
batizando inicia sua vida religiosa, é o momento de transição de um ser considerado “pagão”
para um ser “sacramentado”, pertencente ao divino, quando deixa de ser mera criatura para ser
filho de Deus.
Acerca dos oficiantes, Marconi e Presotto (2009, p. 157) explicam que “os rituais,
os cultos, as cerimônias só podem ser realizados por determinadas pessoas: sacerdotes, reis
divinos, chefes religiosos, especialistas, oráculos”. Acrescentamos que rezadores e benzedores
do catolicismo popular também se encaixam nessas categorias, a exemplo da benzedeira e do
rezador de terços visitados durante a pesquisa, porquanto tomam os exercícios de curar, benzer,
pedir, agradecer etc. como funções que lhes cabem.
Referente à magia, Marconi e Presotto (2009, p. 162) descrevem-na como um “um
tipo de técnica para controlar a natureza, a fim de obter coisas ou precaver-se contra forças
misteriosas. É praticada por alguns indivíduos, com objetivo específico.” Nessa técnica, os
agentes (feiticeiros, magos, bruxos, curandeiros, benzedores/benzedeiras etc.) manipulam, por
meio de determinados rituais, as forças extranaturais, bem como se valem de “ações, objetos
mágicos e fórmulas verbais apropriadas (encantamentos), os quais tem poderes intrínsecos ou
estes lhes são atribuídos pelo mágico.”
Conforme as autoras, a magia pode ser usada para proteção de um indivíduo ou de
um grupo em diversas situações, assim como para várias outras finalidades, para praticar tanto
o mal quanto o bem. Entre os tipos mais comuns, Marconi e Presotto (2009, p. 163) dizem
existir três:
a) analógica ou imitativa (homeopática): “crença de que o semelhante produz o semelhante, ou
seja, de que um efeito se parece com a sua causa.” É a forma de magia feita a partir de fotos,
objetos ou outros materiais que se creem representar o ser sobre o qual se quer agir. Por exemplo,
o ritual vodu em que se acredita ser possível agir à distância sobre uma pessoa por meio de um
boneco que a represente, espetando-o com alfinetes, facas, espinhos, de maneira a representar no
boneco os efeitos que tais atos causariam na pessoa. No contexto do corpus, acentuamos o ritual
de benzeção para curar “cobreiro”. A benzedeira explica que pega talos de mamona (objetos
71
rituais) e, simultaneamente aos dizeres próprios para esse tipo de benzeção, ela os corta com uma
faca, geralmente em três partes, como se aqueles talos representassem o cobreiro (ou o animal
que se acredita tê-lo causado), assim se corta a “cabeça” e o “rabo” e, depois de terminado o ritual,
a benzedeira coloca a parte do meio (entre a cabeça e o rabo) para secar em algum lugar. Logo,
os talos são cortados e secos e, imitativamente, a doença também tem sua vitalidade cortada e
seca, sem a possibilidade de ser reiniciada, já que o seu meio estaria seco, sem vida.
b) contagiosa: “crença de que as coisas, uma vez em contato com alguém, continuarão atuando
entre si, mesmo distantes: dono e objeto permanecem unidos para sempre.” Nesse tipo de
magia, as ações benéficas ou maléficas atuadas sobre um objeto (roupas, cabelo, unha, sangue,
animais, plantas) atingem o seu possuidor.
c) simpática: “quando a magia é realizada no sentido mágico de exercer influência sobre uma
pessoa, valendo-se de seu poder.”
Notamos, nesta tríade, uma certa proximidade nos significados, capaz de causar
dúvidas quanto à função específica de cada tipo de magia, e até uma redundância na descrição
do terceiro item em relação aos demais. Diante disso, optamos por concordar com Frazer (1982,
p. 86), quando considera que “ambos os ramos da magia, o homeopático e o contagioso, podem
ser incluídos convencionalmente sob a denominação geral de magia simpática, já que ambos
supõem a possibilidade de interação entre coisas que estão distantes umas das outras [...]”.
Assim, o autor sintetiza: “a magia homeopática fundamenta-se na associação de idéias pela
similaridade, ao passo que a magia de contágio baseia-se na associação de idéias pela
contiguidade.” (FRAZER, 1982, p. 82).
Reafirmamos, a partir dessas considerações, o uso da expressão “mágico-religioso”
para tratar de práticas/rituais e crenças, e suas particularidades, inscritas no culto popular
católico, uma vez que podemos notar afinidades entre o que se compreende por práticas mágicas
e práticas religiosas. Nesse ensejo, abordamos, especialmente, a dimensão mágico-religiosa da
palavra, ou seja, uma dimensão que integra magia e religião.
72
III DIMENSÃO MÁGICO-RELIGIOSA DA PALAVRA
S'eu num pudé agradá, gravá também não, né?
Pruque ua palavra machuca, né? [N]ossa sinhora!
(N2M82).
Neste capítulo, desenvolvemos a análise dos dados extraídos do corpus,
relacionando-os a teorias que versam acerca da inter-relação língua, cultura e memória. Para
tanto, nos fundamentamos em Halbwachs (1990), Pollak (1992), Vilela (1994), Schinello
(2004), Paula (2007), entre outros autores.
Buscamos, ainda, nos apoiar em obras que desenvolvem estudos sobre a dimensão
mágico-religiosa, ou pragmática, da palavra, tais como Gusdorf (1977) e Biderman (1998).
Apresentamos, no decorrer da análise, organogramas que ilustram o tecido cultural
constituído pelas unidades léxicas que refletem a relação entre as práticas culturais estudadas,
bem como permitem uma melhor visualização da trama lexicultural em que cada ritual e seus
elementos constituintes se envolvem.
Entre as muitas opções que o corpus disponibiliza, delimitamos, para a presente
análise, os seguintes tópicos: batismo, rituais relacionados à chuva, benzeções, dias santos e
Quaresma.
3.1 Memória, língua e cultura
Os atos de narrar e ouvir histórias constituem uma tradição advinda de épocas
remotas e possuem suas origens quase sempre imprecisas. A título de exemplo, os contos de
fadas, que hoje (re)conhecemos em livros, em sites, em filmes etc., surgiram há milhares de
anos na tradição oral e, pela repetição mediante o expediente da memória, mantêm seus
enredos e temas conservados até atualmente, ainda que com variações.
Nesse sentido, a sabedoria popular vem se transmitindo, sobretudo, pela
oralidade, na qual se registram experiências de outras gerações, culturas. Assim, evidenciamos
o papel fundamental da memória desde os primórdios da humanidade, quando não existia a língua
escrita e, ainda, quando passou a existir, pois tinha seu acesso restrito a poucos.
Quando fomos a campo fazer as gravações, instantaneamente, recordamos alguns
anos atrás, quando nossos avós contavam causos dos “tempos de primeiro” e nos faziam ficar
imaginando como era aquele mundo que, às vezes, tocava os domínios do fantástico. Foi como
se viajássemos no tempo, lembrando de situações como as reuniões de parentes ou vizinhos, os
73
quais se punham a narrar experiências próprias ou de outros sujeitos. Histórias que, por vezes,
nos serviram de exemplo, de lição, de forma que aquelas narrativas, mesmo sem intenção
explícita, traziam ensinamentos em sua trama.
As conversas que tivemos com as pessoas mais velhas da comunidade São
Domingos despertaram em nossa memória fatos, pessoas, lugares que nos são comuns. Logo,
estávamos num ambiente social que também nos envolvia, seja por um laço de amizade, de
parentesco, de compadrio, de vizinhança, ou simplesmente por identidade com os assuntos
narrados, os quais foram, em maior parte, relacionados à vida no campo.
Considerando, então, que nosso estudo se debruça sobre a análise de fontes orais, é
imprescindível trazermos algumas considerações sobre memória, uma vez que o trabalho com
narrativas orais é um trabalho com memórias, também, orais.
Primeiramente, podemos entender a memória como uma capacidade cognitiva de
conservar informações em nosso cérebro. Isto, a princípio, pode se apresentar como um fenômeno
pessoal, individual. Entretanto, é preciso destacar que a memória também deve ser entendida “[...]
como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações,
mudanças constantes” (POLLAK, 1992, p. 201), ou seja, é um fenômeno social e mutável.
Para falar mais atentamente sobre memória coletiva, conclamamos Halbwachs
(1990), para quem a memória coletiva abarca as memórias individuais, todavia estas não se
confundem com aquela, uma vez que, ao se inserirem na memória coletiva, e quando isso
ocorrer, as memórias individuais passam a fazer parte de um conjunto que não mais configura
uma consciência pessoal.
Halbwachs (1990) ressalva que a memória individual “[...] não está inteiramente
isolada e fechada. Um homem, para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente
necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que
existem fora dele, e que são fixados pela sociedade” (HALBWACHS, 1990, p. 54). Assim,
entendemos que a memória, embora seja sempre construída pela coletividade de sujeitos, é,
também, sempre fruto de um indivíduo integrado a um grupo de referência.
Nesse ínterim, cabe evidenciar a importância do grupo de referência para que
imagens do passado se firmem em lembranças. Para Halbwachs (1990, p. 28), a ausência das
testemunhas com as quais tenhamos dividido um passado em comum e compartilhado uma
comunidade de pensamentos impossibilita que construamos a memória, pois dentro de um “[...]
conjunto de depoimentos exteriores a nós, é preciso trazer como que uma semente de
rememoração, para que ele se transforme em uma massa consistente de lembranças”.
74
Isso nos reporta a Pollak (1992), quando fala dos pontos de referência mediante os
quais a memória é construída, os acontecimentos, as pessoas/personagens e os lugares.
Depreendemos que as testemunhas do passado se fundem nos lugares e nos acontecimentos e é
esse conjunto que permite a atualização da identidade com a consciência grupal no passado.
Pollak (1992) considera esses três pontos de referência como os elementos constitutivos da
memória. Vale, portanto, trazer algumas notas desse autor sobre cada elemento.
O primeiro elemento inclui tanto os acontecimentos vividos integralmente quanto
os vividos “por tabela”, isto é, “[...] acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa se sente pertencer” (POLLAK, 1992, p. 2). O autor ressalta que a pessoa nem
sempre participa desses acontecimentos, mas estes tomam tamanha importância no imaginário
a ponto de não se conseguir distinguir se de fato participou ou não.
Em segundo lugar, a memória é constituída por pessoas, personagens, tanto as que
foram efetivamente encontradas durante a vida quanto as frequentadas indiretamente. Esses
personagens nem sempre fazem parte das relações da pessoa, mas, por seu relevo, podem se
tornar quase que familiares (POLLAK, 1992).
Por último, temos os lugares de memória, ou seja, vinculados a lembranças pessoais
ou grupais dos acontecimentos e/ou dos personagens que os frequentaram. Pollak (1992)
assevera que as lembranças ligadas aos lugares não têm, necessariamente, apoio cronológico,
quer dizer, tornaram-se significativas independentemente da data que aconteceram.
Quando Pollak (1992) fala de acontecimentos vividos, pessoal ou socialmente, por
personagens inscritos numa coletividade, direta ou indiretamente, e em lugares que ficam
marcados pela memória, todo esse entrelaçado de fatores evoca o sentimento de identidade,
posto que, ainda segundo o autor (1992, p. 5, grifo do autor):
[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
Compreendemos, dessa forma, que a memória, nesse processo histórico de
construção social e individual, relacionada ao sentimento de pertencimento a um grupo, é que
tem preservado os saberes antigos sobre as benzeções, as rezas, as orações, os procedimentos dos
rituais e seus objetos necessários etc. Estas informações, malgrado sejam de origens distantes no
tempo, vêm se reelaborando de acordo com as demandas de cada época e lugar, conforme
discutimos na seção sobre cultura popular.
75
As práticas culturais que analisamos nesse estudo nem sempre são sustentadas pelo
suporte escrito, por serem, em maior parte, transmitidas por via oral há diversas gerações. Ao
contrário da escrita, que documenta os conhecimentos, a oralidade se ampara na memória. A esta
chamamos de memória oral, porquanto o código escrito também é uma memória, como os
arquivos e as bibliotecas, todos patrimônios do conhecimento humano.
Para Paula (2007), “antes de serem oralizadas, as memórias dos que não detêm a
escrita se inscrevem como ato lingüístico e se organizam linguisticamente” (PAULA, 2007, p.
100). Nesse sentido, compartilhamos as palavras de Le Goff (1990, p. 426), quando cita Henri
Atlan (1972, p. 461) para demonstrar a relação entre linguagem e memória:
A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer nos outros quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória.
Portanto, podemos considerar que os sentidos dados aos signos linguísticos se
constroem e se reconstroem à medida que os saberes passam de geração à geração, mediante a
memória e a linguagem. Assim, valores simbólicos são vinculados a estes signos conforme as
demandas socioculturais que implicam demandas linguísticas. Segundo Bourdieu (1998, p. 24):
Todo ato de fala e, de um modo geral, toda ação é uma conjuntura, um encontro de séries causais independentes: de um lado as disposições, socialmente modeladas, do habitus linguístico, que implicam uma certa propensão a falar e a dizer coisas determinadas (interesse expressivo), definida ao mesmo tempo como capacidade lingüística de engendramento infinito de discursos gramaticalmente conformes e como capacidade social que permite usar adequadamente essa competência numa situação determinada [...].
Ademais, para Schinelo (2004, p. 137), a memória alimenta a comunidade,
mantendo íntegra sua cultura, por exemplo, quando a memória coletiva se apresenta “[...] como
ritual, como o vivido, o performativo”. A autora dá como exemplo disso os rituais de batismo.
Podemos citar, ainda, os rituais propiciatórios, para rogar a Deus por chuva por meio de rezas
e objetos rituais, entre outros registrados no nosso corpus. Estas são práticas coletivas, fazem
sentido ao grupo e por ele são lembradas quando surge a demanda.
Nessa lógica da linguagem como memória, valores simbólicos e tecido de cultura,
Pires Ferreira (1994/95, p. 117, grifo da autora), em seu estudo sobre cultura e memória, afirma
que a cultura é um feixe de sistemas semióticos (linguagens) formalizados historicamente e
76
que, ainda, “[...] é informação, codificação, transmissão, memória, e conclui, de forma a não
deixar lapsos: somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio
da memória [...]”. Pires Ferreira (1994/95) completa que a comunicação com outrem só
acontece se houver um grau de memória comum.
De acordo com Schinelo (2004, p. 132, grifo da autora), em sua abordagem das
concepções de memória sob o ângulo da oralidade, “navegar pelo oceano da memória é
mergulhar nas águas profundas e não transparentes dos consensos ou desacordos sobre o
termo”. Desse modo, o tema memória se apresenta como um campo movediço que mantém
perspectivas variadas e afirmações que mudam conforme mudam as relações entre sujeito,
linguagem e história.
Pensando nas considerações que tecemos sobre a memória, nesse intento de
mergulho nas suas águas profundas e turvas, inferimos que Schinelo (2004, p. 133) corrobora
Halbwachs (1990) e Pollak (1992) ao dizer que,
Considerando todo sujeito constituinte e constituído na linguagem e considerando a linguagem em sua natureza dialógica, podemos afirmar que a memória, mesmo sendo individual, insere-se numa coletividade, ou seja, faz parte de uma teia de sentidos formada a partir de outros sentidos anteriormente construídos. Assim, toda memória individual traz consigo reflexos da coletividade.
Compreendemos a inter-relação entre língua, cultura e memória como basilar ao
nosso propósito de pesquisa. Nos registros escritos do corpus, resultante das memórias
oralizadas durante as gravações, está impresso muito da cultura do grupo em estudo. Por
conseguinte, esses textos não constituem apenas estruturas linguísticas organizadas na
comunicação, mas, também, uma forma de acesso à vida sociocultural dos narradores e dos
outros sujeitos que integram esse universo em comum, compondo a memória coletiva à qual se
incorpora cada sujeito com a sua memória.
É importante salientar que investigamos a linguagem não apenas como dicotomia
língua e fala, mas dentro de um contexto cultural específico, qual seja o âmbito da religiosidade,
que se interliga a muitos outros aspectos da convivência humana, como as relações de parentesco,
de compadrio e de vizinhança, estabelecidas na comunidade, como também a práticas comuns do
dia a dia, ou seja, ao fazer coletivo que se estampa na linguagem: o plantar, o colher, o comer, o
jejuar, o trabalhar, o divertir, o curar, enfim, ao todo da vida e ao longo da vida.
Ademais, estudamos uma religiosidade que se faz predominante no meio rural, na
cultura da “roça”. Os sujeitos que visitamos no meio urbano, onde vivem há mais de sete anos,
77
também o confirmam em suas falas, cujas memórias ecoam continuamente referências ao rural.
Sobre este aspecto, recorremos a Pessoa (2005, p. 52), quando traz considerações acerca do
tema cultura popular, para ressaltar que:
[...] esta referência ao rural ocasiona uma relação direta dos homens e mulheres com os momentos radicais da vida - nascimento, crescimento e morte das plantas e animais - tornando-lhes afeitos à transcendentalidade. Isso quer dizer que as pessoas que têm e que tiveram experiência ou pelo menos influência dos costumes rurais, em geral orientam-se por uma forte ligação religiosa com o todo da vida. [...] A religiosidade é interligada ao todo da vida, está ligada com todas as outras dimensões.
É o que procuramos demonstrar nesse estudo, que todas as dimensões da vida do
homem e mulher do campo estão eivadas de religiosidade e, assim sendo, esta não poderia
deixar de se revelar vigorosamente na língua, a partir da qual os sujeitos elaboram sua
compreensão do mundo e se comunicam com os humanos e, ainda, com extra-humanos. Logo,
esses sujeitos, mediante a cultura da qual são atores, exprimem nos seus falares, nas suas
palavras, em distintos momentos, uma dimensão religiosa; mais que isso, mágico-religiosa.
Para isso, nos baseamos em Câmara Jr (1955), quando considera a língua e a cultura
conjugadas e interdependentes. Tal relação se mostra nesse estudo sobre o catolicismo popular,
mormente, enquanto cultura religiosa na qual os sujeitos costumam, em diversas situações, se
valer de fórmulas verbais (orações, cânticos, benzeções etc.) de acreditado caráter prático e
validador. Nesse contexto, a cultura também se revela linguisticamente e tem a língua como
seu instrumento fundamental, tanto para a ação quanto para a sua transmissão.
Assim, a língua, mediadora entre o sujeito e o mundo que o envolve, reflete os
aspectos da sua vida em seus diversos âmbitos, afinal, “sabemos que a língua está intimamente
relacionada com a cultura de um povo e por meio dela que todo o conhecimento, valores e crenças
adquiridas ao longo do tempo são transmitidos de geração a geração” (SOUZA, 2008, p. 13).
Desta feita, apreendemos que a compreensão da cultura é fundamental ao estudo da
linguagem, pois, conforme explica Chauí (2006, p. 156), “há um vai-e-vem contínuo entre as
palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e
a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros”.
Destarte, os textos orais utilizados nas benzeções, por exemplo, possuem caráter mágico-
religioso na situação em que são proferidos, isto é, não são simplesmente estruturas linguísticas,
78
mas são verbalizados18 e investidos de poder a partir de intenções motivadas pela cultura que
alicerça a fé de quem benze e de quem é bento/benzido. É a palavra da situação, conforme
explica Gusdorf (1977).
Dessas considerações, de modo geral, apreendemos a transcendência da
comunicação no campo da religiosidade popular, dada a maior proximidade entre humanos
mortais e entidades transcendentes, que permite uma interação que se desdobra entre a magia e
a religião e que pode ser notada, por exemplo, numa troca de favores entre um homem e seu
santo de devoção, como nas promessas, no respeito às entidades, pautado no temor de que
transgredir as normas é risco de castigo etc. Tudo isso se revela, acontece e se transmite
linguisticamente, pois é a língua o capital instrumento a partir do qual um grupo representa seu
mundo, manifesta e compartilha suas experiências e conhecimentos.
Há, na língua, elementos que são formais; contudo, há outros mais que interpretam
(e se interpenetram) as relações sociais e as práticas culturais que nela se fazem registrar, em
todos os níveis, tais que: o fonético/fonológico, o morfológico, o sintático, o estilístico, o
semântico. Não se nega, porém, ser o nível dos arranjos lexicais o que melhor mostra a língua
a serviço da cultura e por ela sendo servida (PAULA, 2010c). Neste sentido, o nosso estudo
prima pelo nível lexical dos textos orais gravados por entendermos que, conforme Biderman
(1998, p. 91), “[...] o léxico de uma língua constitui uma forma de registrar o conhecimento do
universo.”
O léxico é o aspecto mais dinâmico de uma língua e, constituindo o seu inventário
total das palavras (VILELA, 1994), forma o “patrimônio vocabular de uma dada comunidade
lingüística ao longo de sua história” (BIDERMAN, 2001, p. 14). Em estudo da lexicologia e da
semântica do português, Vilela (1994, p. 6) destaca que “o léxico é a parte de uma língua que
primeiramente configura a realidade extralinguística e arquiva o saber linguístico duma
comunidade”.
Vilela (1994, p. 10-11) explica que a Lexicologia estuda todos os aspectos das
palavras de uma língua e que tem como objeto “o relacionamento do léxico com os restantes
subsistemas da língua, incidindo sobretudo na análise da estrutura interna do léxico, nas suas
relações e inter-relações”. Os aspectos culturais impressos no léxico dos textos orais dos
sujeitos do estudo conduzem à compreensão da dimensão mágico-religiosa da palavra, pois “é
por meio do léxico que os traços culturais de um povo mais se evidenciam” (SOUZA, 2008, p.
13). Assim, corroboramos Duranti (2000), quando aborda questões relacionadas ao campo da
18 Esclarecemos que verbalizado é o oral, o escrito e, inclusive, o mentalizado. Consideramos, portanto, que fazer
orações mentalmente, por exemplo, também é verbalizar.
79
Antropologia Linguística, que a linguagem não deve ser compreendida somente como um modo
de pensamento, mas, acima de tudo, como uma prática cultural, isto é, “[...] como um modo de
ação que pressupõe a ambos, e, ao mesmo tempo, gera novas formas de estar no mundo.”
(DURANTI, 2000, p. 19, tradução nossa).
Abbade (2011, p. 1332), em estudo da teoria dos campos lexicais, expressa que
a língua de um povo é um de seus mais fortes retratos culturais. Essa língua é organizada por palavras que se organizam em frases para formar o discurso19. Cada palavra selecionada nesse processo acusa as características sociais, econômicas, etárias, culturais... de quem a profere.
A partir dessa compreensão, buscamos no corpus unidades léxicas que revelem por
meio da sua significação contextual aspectos da cultura religiosa na comunidade São
Domingos. Assim, a partir da descrição linguístico-cultural, tentamos construir um retrato da
religiosidade popular nessa comunidade. Diante do objetivo desse estudo, que é compreender
a dimensão-mágico religiosa da palavra nos textos orais, consideramos, também, construções
linguísticas mais complexas, como as composições (benzeções, orações, esconjuros etc.) que
compõem os rituais.
De acordo com Abbade (2011), a organização da língua ocorre a partir da
articulação de palavras para produzir o discurso que, na sua face religiosa, como é o nosso
corpus, constituído por falas que, embora individuais, são, também expressões do social20,
evidenciam o seu caráter pragmático. Para dar cabo ao propósito, a princípio, descrevemos a
prática cultural e, em seguida, abordamos as expressões que lhe dão funcionalidade e, por assim
ser, adquirem valor mágico-religioso.
Dentre as expressões que o corpus nos apresenta, tratamos, a seguir, daquelas
definidas para análise nesse trabalho. Para a tessitura destes parágrafos, partimos do pressuposto
de que “a ‘palavra’ assume [...] nos mitos de cada cultura uma força transcendental; nela deitam
raízes os entes e os acontecimentos. Por ser mágica, cabalística, sagrada, a ‘palavra’ tende a
constituir uma realidade dotada de poder” (BIDERMAN, 1998, p. 81, grifos da autora).
19 O termo discurso é aqui utilizado em sentido lato, como um dos subsistemas da língua. 20 Por exemplo, referências aos mesmos fatos, práticas, pessoas etc.
80
3.1.1 Batismo
Um dos rituais citados por todos os narradores foi o batismo. Conforme preconiza
o Cristianismo, este é o sacramento que “lava” o ser do pecado original e, assim, lhe confere o
caráter de cristão. Sobre essa prática no campo da religiosidade popular, vale dizer que:
O batismo se conservou porque se adaptou às necessidades locais, prescindindo do padre. Determinando a Igreja que qualquer pessoa pode batizar uma criança que esteja a morrer, e dada a elevadíssima mortalidade infantil nos meios rurais tradicionais, ficou o padrinho investido de tais deveres; tornou-se hábito batizar ele o afilhado o mais depressa possível a fim de que, se algo ameaçar a saúde deste, não parta pagão para a vida melhor (QUEIROZ, 1973, p. 91).
Nas narrativas do corpus, corroboramos a autora:
É, e[le]s fala qu'é pagão, né? É ua criança pagão ainda, né? (N1F63I).
[...] ó, o minino tá morre num morre, tem que sê batizado, né? Aí eu mais ua
ota irmã da mulher pegô e batizô o minino, e ele sob[re]viveu, tá [a]í até hoje, né, né? É sim, né? [En]tão e[le]s falava que o# a a# minino num podia morrê pagão, né? (N2M82). [...] É. Tava pagão, né, aí batizô, intão ela já é# fazia parte com a a justiça divina, já num era pagão mair, né, né? (N2M82). O primero é. Batizava cum dois, trêis dia, um batizado im casa, né, as pessoa tinha tinha medo, né de 'contecê ua pió, né, e criança morrê sem batizá, né,
[en]tão fazia ele im casa, mais primero, né, só pa dipois batizá, mesma# na igreja, né? (N3M79). É, primero batizava im casa, né? Daí, pa depois batizá na igreja. Esses mes# meus minino tudo tá batizado im casa primero, pa depois i[r] na igreja. Puque às veiz demorava i[r] na igreja, né, aí batizava im casa [...] (N4F78f).
Apreendemos que o fato de as pessoas não investidas da autoridade do padre
realizarem esse ritual sacramental de passagem – de pagão para cristão – surge das dificuldades
que se impunham outrora, quando a assistência religiosa por parte da Igreja Católica era escassa,
fator dificultado pela distância entre as áreas rurais e os centros urbanos, onde se concentravam
as paróquias. A esse respeito, a narradora N4F78f, que atualmente vive na cidade, responde da
seguinte forma ao marido N5M80f, quando ele questiona por que não se levava a criança
diretamente à igreja para ser batizada:
81
É puque naquele tempo era custoso pa vim na igreja, né? [...] Uai, nem tinha carro, vinha sempre# vinh[a] era de cavalo. (N4F78f).
Diante desse quadro, as pessoas tinham autoridade para batizar um recém-nascido
e, assim, garantir-lhe, segundo sua crença, a sua “parte com a justiça divina” para que, no caso
de “acontecer o pior”, não morresse pagão.
Essa prática popular, no entanto, não vai de encontro às regras eclesiásticas
católicas. No Brasil, a menção mais antiga que se tem do batismo está nas “Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia”, aprovadas em 1707 durante um Sínodo Diocesano
ocorrido na Bahia. As constituições (1853, p. 12), em seu artigo 33, fazem saber que:
Consiste este Sacramento na externa ablução do corpo feita com agoa natural, e com as palavras, que Christo nosso Senhor instituio por sua fórma. A materia deste Sacramento é a agoa natural, ou elementar, por cuja razão as outras agoas artificiaes não são materia capaz, para com ellas se fazer o Baptismo. A fórma são as palavras, ou em Latim: Ego te baptizo in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti; ou em vulgar: Eu te baptizo em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo. O Ministro é o Parocho, a quem de officio compete baptizar a seus freguezes. Porêm em caso de necessidade qualquer pessoa, ainda que seja mulher, ou infiel, póde validamente administrar este Sacramento, com tanto, que não falte alguma das cousas essenciaes, e tenhão intenção de fazer, o que faz a Igreja Catholica.
Embora possua valor sacramental, como fica explícito no final da citação acima,
para os sujeitos pesquisados, o batismo em casa não anula a necessidade do sacramento
considerado oficial, o batismo no padre/na igreja:
[...] meus filho são todo batizado em casa primero, depoir no padre e depoir na foguera de São João Batista, né? Antão fomo' todos assim. (N1F63i).
Sobre o procedimento do batismo em casa, especificamente, evidenciamos os
seguintes trechos das narrativas:
Agora, im casa é a mesma coisa, 'cê batiza do mesm# 'cê pega trêis folha de laranja põe num prato d'água, né, e aí 'ocê batiza. Aí 'cê põe o o padrim mais a madrinha. O padrim de representá que segura a criança, né? E fa# aí 'cê reza o Pai-Nosso cua Ave-Maria, a Salve Rainha, o Cre'im Deus Pai e todos fala a
mesma coisa, né, do mes[mo] jeit' que o padre fala a gente fa[la]: eu te batizo, né, [fala] o nome da criança, [e diz] im nome do pai, do filho e do espírito santo, né? (N1F63i).
82
[...] os pessoal usava trazê ua tualha que nunca fo[i] usada, mai' num pricisa
disso, mais era custume, né achava que o cert' era esse, trazia ua ua vela
também, né, e rezá ali e falá essas mesma palavra que usa no batirmo, né: eu te batizo em nome do Pai, do Filho e Ispírito Santo, né? Tinha a# o padrim e a madrinha e a# e a de de representá também, representá pegav' a criança, né, ficav' co' criança na mão e os padrim ia batizá [...] Isso. A água vinha na vasi[lh]a 'li, né, e a toalha pa tirá# lim# inxugá a criança ca 'quela toalha, cumo diz, benta qu' [el]es falav, que nunca foi usada, né, er' assim. (N3M79). É. O batism' é [as]sim, primero 'ocê pegava nu a água, né, e 'ocê binzia a água
com Pai-Nosso, Ave-Maria. E 'ocê rezava o Crédio21, né, aí falav'assim: cumo a gente crê que o Ispírito Santo ixiste, né, e vai lavá todos pecado dessa criança nesse moment' agora, né? É. Intão, eu batizava com o ramim fazeno a cruiz na testa dele com os poder do Pai e Fii e do Ispí[r]ito Santo, né? E tinha mais oração ca gente rezava, né? [...] É. E nóir rezava a Sal've-Rainha, né? (N2M82).
De acordo com essas imagens fixadas nas memórias dos narradores, a prática possui
basicamente a seguinte estrutura: geralmente, é realizada na casa dos pais da criança: “as pessoa
mes[mo], né, 'cê vai batizá im casa 'cê chega lá 'cê mesmo dava jeito as p# as pai já tava lá t'
isperano, já arrumav' a criancinha, be[m] limpinha com# né, com aquela ropinha tal, né? Iss'aí
é batizá im casa” (N3M79).
Convidam-se os padrinhos (não foi dito se deve ser obrigatoriamente um casal) e
uma madrinha de representar. Usualmente, colocam-se três folhas de laranja (ou outro raminho
verde) em um prato de água (de preferência água corrente, retirada de um rego ou outro curso
de água) e abençoa-se essa água com as orações do Pai-Nosso e da Ave-Maria. A madrinha de
representar segura a criança enquanto os padrinhos, o prato de água e a vela. Todos os presentes
fazem as orações (Credo, Salve Rainha) e, depois, o padrinho ou a madrinha mergulha a folha
na água benta e deita pingos na testa da criança, fazendo o sinal da cruz e dizendo a fórmula
trinitária batismal: eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Em seguida, a
madrinha ou o padrinho enxuga a testa da criança com a toalha branca (virgem) e recebem os
cumprimentos dos pais e dos demais participantes.
As variações entre os relatos são comuns. Por exemplo, as palavras “e vai lavá todos
pecado dessa criança nesse moment' agora” (N2M82) foram ditas apenas por um narrador
como parte do ritual. Alguns, talvez, pelo longo tempo que não fazem ou participam do batismo
em casa, tenham se esquecido de algum objeto ritual ou de uma ou outra parte que compõe a
cerimônia. O fato de ser uma prática transmitida oralmente e aprendida na vivência e na
reprodução do ato, como ocorre com a maioria das práticas culturais populares, aumenta a
21 Credo.
83
possibilidade de sofrer variações, em razão de a oralidade ser menos rígida e conservadora que
os registros escritos.
Contudo, constatamos uma fixidez no que se refere aos dizeres:
[...] e todos fala a mesma coisa, né, do mes[mo] jeit' que o padre fala a gente fa[la]: eu te batizo, né, [fala] o nome da criança, [e diz] im nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. (N1F63i). [...] e rezá ali e falá essas mesma palavra que usa no batirmo, né: eu te batizo em nome do Pai, do Filho e Ispírito Santo. (N3M79). Intão, eu batizava com o ramim fazeno a cruiz na testa dele com os poder do Pai e Fii e do Ispí[r]ito Santo, né? (N2M82). É. Reza o Pai-Nosso cu a Armaria. É isso. Fala: te batizo em nome do Pai, do
Filo e do Espírito Santo. (N4F78f).
De acordo com o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (2005, p. 86, grifo
no original), “[...] em caso de necessidade, qualquer um pode batizar, desde que tenha intenção
de fazer o que faz a Igreja. Derrama água sobre a cabeça do candidato e pronuncia a fórmula
trinitária batismal: ‘Eu te batizo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’”. Considerando
essa regra da doutrina da Igreja Católica, inferimos que a conservação dessa fórmula no batismo
em casa pode se dar justamente em função da prescrição presente na doutrina católica desde
séculos passados.
Em seu procedimento, o batismo na fogueira pouco se difere do batismo em casa.
A diferença entre este e aquele é “só poque não tem a foguera. Mai[s] [têm] o prato d'água, a a
a vela. Mema coisa” (N4F78f). É realizado na oportunidade das festas juninas, especialmente
no dia de São João:
Antão, é é do mermo# é do mesmo jeito, né? E na foguera 'cê reza im trêis parte da foguera de São# de São João Batista, né? É, aí é o mes[mo] [ritual] 'cê reza e fala pu nene # no final 'cê fala, né? (N1F63i).
Não, 'joelh' im volta da foguera sabe e reza, a pessoa# o o afilhado tá 'li, à[s] veiz até grandão já, tá 'jueiado do lado, né, a gente reza as orações só e pronto [...] (N3M79). N4F78f - É. Aí vai nos canto da foguera. Im cada canto# N6F56f - É ua folha.
N4F78f - É ua fôia, benze a testa ca água e fala, igual' eu falei.
84
Segundo os narradores, o batismo na fogueira acontece posteriormente aos batismos
em casa e no padre. Por isso, não há uma idade definida para receber esse sacramento. Na
comunidade São Domingos, de acordo com os sujeitos da pesquisa, a prática é assim: os
padrinhos e o batizando vão em três partes (cantos) da fogueira e, em cada uma, um dos
padrinhos mergulha a folha na água benta por meio das orações e faz o sinal da cruz na testa do
afilhado dizendo a mesma fórmula trinitária batismal pronunciada nos outros batismos.
Se a função do batismo em casa é assegurar a salvação da alma do recém-nascido,
o batismo no padre oficializa o sacramento. O batismo na fogueira, por sua vez, possui uma
função mais social (isso não significa que os demais não a possuam) de estreitamento de laços
entre os sujeitos da comunidade. Assim, o compadrio de fogueira exerce o papel de anular
distâncias sociais e, logo, promover a integração do grupo, não importando fatores como idade,
cor, parentesco e posição social (QUEIROZ, 1976). Ademais, os padrinhos são legítimas
testemunhas do sacramento, no qual firmam o compromisso de auxiliar na educação do(a)
afilhado(da) mediante o exemplo da boa conduta cristã e, no caso de a criança ficar órfã, fazer
as vezes dos pais.
Sobre esse aspecto, os narradores disseram que:
[...] hora que termina o batizado aí 'ocê já pode dá os parabéns cumpade, comade. É cumpade /.../ [a] gente respeita como cumpade mes[mo] /.../ e[le]s tudo, toda vida, sabe? É assim. Dá presente. É o mesmo afilhado pra nóis, né? (N1F63i). Mema coisa. É sim. Compade sim. Considerado mema coisa. (N2M82). Ieu mes[mo] tem afilhada que me respeita ma[is]# às às veize mais do que esse de de de de batism' mesmo de verdade. 'té a fia do cumpade (...). Aond' eu tô, ela vai aond' eu tô lá, na hora mesmo (N3M79).
Assim, concordamos com Queiroz (1973, p. 91) que “o batismo constitui em todo
o Brasil a base de um conjunto de relações sociais fundamentais – as relações de compadrio”.
Estas relações reforçam a união social na ligação entre indivíduos: padrinho, madrinha,
afilhado(a), compadre e comadre.
No âmbito do batismo, foi possível distinguir três itens léxicos principais que
nomeiam práticas realizadas em momentos distintos, respectivamente: “batismo em casa”,
“batismo no padre” ou “batismo na igreja” e “batismo na fogueira”. No batismo em casa,
elencamos “toalha virgem” ou “toalha branca”, “prato de água”, “vela” e “folha” ou “ramo”,
como as unidades que nomeiam os objetos rituais; o “Pai-Nosso”, a “Ave-Maria”, a “Salve-
Rainha” e o “Credo” ou “Creio em Deus Pai” como as orações proferidas no ritual; “padrinho”,
85
“madrinha”, “madrinha de representar”, “compadre”, “comadre” e “afilhado”, como atores
diretos do ritual sacramental. Assim, organizamos o organograma abaixo:
Organograma 1 – Batismo em casa.
Org.: o autor.
O “batizado no padre” foi mencionado sem entrar em detalhes do modo como é
procedido, haja vista que a intenção maior dos narradores era informar sobre sua necessidade
após o batizado em casa, como forma de oficializar o sacramento do batismo junto à Igreja. No
“batismo na fogueira”, repetem-se os mesmos itens, exceptuando-se a toalha branca/virgem e
acrescentando-se o objeto ritual “fogueira de São João Batista”, assim denominada por ser um
elemento comum do terço de São João Batista, geralmente, realizado às vésperas ou no dia
desse santo, 24 de junho. Poderíamos elencar outros elementos que compõem esses batismos,
entretanto, resolvemos nos limitar aos mais característicos do ritual.
Desse conjunto de unidades léxicas que retratam a prática dos batismos na
comunidade São Domingos, é oportuno aclarar o que é a “madrinha de representar”. De acordo
com as informações do corpus, essa pessoa é a mulher que segura e apresenta a criança, no caso
de ser um bebê, para os padrinhos, enquanto estes aparam os objetos, como a vela e o prato de
água, e dão seguimento ao ritual. A esse respeito, esses narradores explicam que:
Batismo em casa
Objetos rituais
Toalha branca/virgem
Prato com água
Folhas ou ramos
Velas
Orações
Pai-Nosso
Ave-Maria
Salve-Rainha
Credo / Creio em Deus Pai
Partícipes diretos
Batizando
Afilhado(a)
Padrinho
Compadre
Madrinha
comadre
Madrinha de representar
comadre
86
Tinha a# o padrim e a madrinha e a# e a de de representá22 também, representá pegav' a criança, né, ficav' co' criança na mão e os padrim ia batizá. (N3M79). Sempre a madrinha de representá que segura e depois que ela dá pu padrim re# eu insino dimais pu povo, né, puque e[le]s num sabe mair batizá im# nas foguera, né, im casa assim, né? E eu sei. (N1F63i).
Na entrada “madrinha”, Houaiss e Villar (2009) definem assim a locução
“madrinha de apresentação”, cujo sentido coincide, em alguns pontos, com o de “madrinha de
representar”: “1 mulher que carrega no colo a criança a ser batizada, para entregá-la à madrinha
2 B mulher que representa um dos padrinhos na cerimônia do batismo, quando este não pode
comparecer”.
A primeira acepção confirma o sentido apresentado no contexto do corpus. A
segunda, por sua vez, se desloca do sentido que registramos, pois a madrinha de representação
não está no lugar de outro, não está substituindo um dos padrinhos, ela faz parte do conjunto e
é tão importante quanto os demais partícipes do ritual.
A qualidade de “representar”, verbo usado pelos narradores no lugar de apresentar,
pode estar associada ao lado prático-utilitário do batismo. No batismo em casa e no batismo na
fogueira, a madrinha de representação também desempenha o papel dos padrinhos, ou seja, os
representa naquele instante em que estão exercendo/executando outros procedimentos do ritual.
Dessa forma, presumimos que não é a falta da madrinha ou do padrinho que vai tornar
necessária a presença da madrinha de representar, mas o seu suporte no momento do batismo.
Além disso, esse papel está relacionado ao que a madrinha de apresentação (ou consagração)
exerce no batismo na igreja, no qual ela apresenta a criança a Deus e, no final do batismo, a
consagra à Virgem Maria, na oração de consagração. Nesse caso, sua presença é opcional.
Descritas as variantes da prática batismal, constantes no corpus, partimos para a
análise do que julgamos crucial para validar o sacramento, o verbo. No conjunto de
performances, objetos carregados de simbologias e atores do ritual, enfatizamos os textos
proferidos, especialmente a fórmula trinitária batismal. As orações católicas são de praxe, Pai-
Nosso, Ave-Maria, Salve-Rainha e o Credo, e valem, como vimos, para abençoar a água do
batismo, como também para consagrar todo o ritual em si.
O apogeu do ritual, no entanto, é o momento da pronúncia da fórmula trinitária
batismal “Eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, que sela o ato e confere
ao batizando sua “parte com a providência divina”, deixando ele de estar, então, no paganismo.
22 Os excertos sublinhados nas narrativas citadas ao longo deste estudo são assim destacados por nós para chamar
a atenção do leitor a um aspecto ora em discussão no texto e que o trecho sublinhado exemplifica.
87
Possuem a mesma função as palavras ditas no batismo em casa descrito pelo narrador N2M82:
“e vai lavá todos pecado dessa criança nesse moment' agora”. Aqui, podemos dizer que há
uma forma de intensificar o ato, oralizando, em tom de decreto, que a partir daquele momento
o batizando está limpo de todos os seus pecados.
Nesse sentido, Gusdorf (1977, p. 127, grifos do autor) considera que “[...] a palavra
em seu mais alto grau de eficácia, toma a significação de um juramento, ou ainda de um
sacramento, palavra em ato, palavra que é uma ação sagrada”. É, portanto, esse alto grau de
eficácia, que a fórmula trinitária batismal e outras palavras exercem no batismo, é o verbo
adquirindo, no contexto do ritual, a ação de tornar sagrado o que era profano.
Percebemos, nessas práticas, a cultura popular como uma reinvenção, posto que o
batismo na fogueira e o batismo em casa são os modos com que as pessoas reproduziram a
prática oficial da Igreja, em uma determinada época do passado. Vemos claramente uma
adaptação quando os sujeitos usam água na testa do batizando em lugar dos Santos Óleos usados
pelo padre, só para citar um exemplo.
Na sequência das verbalizações, apresentamos os rituais relacionados à chuva, para
propiciá-la ou para abrandá-la.
3.1.2 Rituais relacionados à chuva
Em nosso corpus, encontramos um rico conjunto de rituais relativos à chuva, tanto
para pedi-la quanto para aplacar seus efeitos negativos. Na região que estudamos, a reza do
terço23 é uma prática comum para rogar por chuvas. Geralmente, fazem-se novenas nas casas
das pessoas da comunidade, cada dia em uma residência. Nessa ocasião, essa é a intenção
primeira da realização da reza do terço, cujas intenções secundárias podem ser várias. Além do
terço, entre outros rituais para pedir chuva subsequentes, destacamos o costume de “aguar a
cruz”.
De acordo com os registros do corpus, nesse ritual, as pessoas peregrinam levando
pedras e vasilhames de água até uma cruz (fincada em morros, em beiras de estradas, na frente
de igrejas etc.) e, enquanto se proferem rezas (podendo ser o terço), aguam a cruz e colocam
pedras na sua base com a intenção de propiciar chuvas na região e, assim, evitar os transtornos
das estiagens prolongadas. A seguir, apresentamos trechos das narrativas que abordam esse
ritual:
23 “a terça parte do rosário, composta de cinco dezenas de contas, para a reza da ave-maria, intercaladas por cinco
contas, correspondentes ao padre-nosso” (HOUAISS; VILLAR, 2009).
88
[...] a gente via [que] ua roça tava morreno, 'cê fazia ar novena pa chovê, 'cê
rezava, 'cê levava água na cruiz, levava pedra, punha lá nas cruiz, aguá, eu já [a]guei muita cruiz, levava os mininim, né? (N1F63i). Agoá a cruiz, levá pedra pra lá, levá a#, né. É. Tem isso mesmo, né, tinha tinha isso hoje num tá teno mair não. [...] nóis reza um Pai-Nosso, ua Armaria em
intenção de vim chuva pra nóis tal tal, né? (N3M79). Eu lemb[r]o da minha mãe, ela pegá# chamava as vizinha dela, as amiga dela e elas punha pedra na cabeça, levava água na cabeça pa [a]guá u a cruiz dum
caboco que[ele]s tinha matado lá na istrada real', lá im cima, e[le]s ia lá [a]goá a cruiz, né, e lá punh' as pedra lá, rezava terço pa chovê, né? Teve u a veiz
qu'é[la]s chegaro lá moiadinha, eu falei: não, é pruque ia chovê memo. [Elas falaram]: não, é puque nóir rezô. (risos). [...] [Elas] chegô moiadinha memo, choveu memo, viu (risos). É, antigamente o pessoal parece [que] tinha mais fé, né? (N2M82).
O ritual se dá em forma de oração (Pai-Nosso, Ave-Maria, terço) falada em intenção
de propiciar chuvas na região. Os seus agentes são pessoas que possuem fé na sua validade.
Geralmente, é um ato coletivo que reúne pais e filhos, avós e netos, vizinhos etc. Os objetos
rituais utilizados são a água, que simboliza a fonte de vida; as pedras, que, segundo Chevalier
e Gheerbrant (1986), também se associam à água24; e a cruz, símbolo da religião cristã e lugar
do ritual.
Observamos que no “aguar a cruz” têm-se as palavras combinadas aos atos práticos.
Nessa situação, as orações, isto é, as palavras, revestem-se de poder propiciatório, como
fórmulas de acesso à esfera extra-humana, isto é, ao que se crê estar acima do mundo dos
mortais. Nesse contexto, os sujeitos valem-se de ideias socialmente partilhadas, transmitidas há
gerações pela memória e pela oralidade e arraigadas à sua cultura, para alcançar um objetivo:
chuvas para garantir a sobrevivência vegetal e animal.
Ao perguntarmos à entrevistada N1F63i para qual santo se reza para chover, ela
responde:
É Santa Maria Madalena. É. Esse é cantado, né?: <<Santa Maria Madalena, pede a Deus que chova na terra, dai a chuva que nos móia, dai o pão que nos criô, Sinhor Deus misericórdia, miserêcordiai Sinhô, Sinhor Deus misericórdia, miserêcordiai Sinhô>>. A voiz já falha, já sai# a idade já tá meia# (risos). (N1F63i).
24 “Eu vou esperar você junto à rocha de Horeb. Você baterá na rocha, e dela sairá água para o povo beber. Moisés
assim fez na presença dos anciãos de Israel” (Bíblia, Êxodo, 17, 6).
89
Quando falamos sobre esse assunto durante a conversa com a senhora N4F78f, ela
logo se lembrou do cântico a Santa Maria Madalena:
Eu rezava ua: <<Santa Madalena que pede a Deus que chuva na terra, manda
chuva que o chão móia, dê o pão que nóis consome, que nóis samos pecador, Sinhor Deur, misericórdi[a]>>25. Essa era a reza que nóir rezava. (N4F78f).
Constatamos uma similaridade entre as letras desses dois cânticos, o que reforça a
ideia de que a memória oral é caracterizada por variação nos conteúdos, conquanto se mantenha
um fio condutor em comum. Outra diferença que notamos no cantar dessas composições está
na sua entoação. Esta se distingue a ponto de, numa audição menos meticulosa, se conceber que
são dois cânticos dessemelhantes.
No que tange ao fato de ser Maria Madalena a santa a quem se recorre no rogar
desses cânticos, apresentamos a interpretação subsequente. Embora haja controvérsias,
conjectura-se que a mulher que lavou os pés de Cristo e os enxugou com seus cabelos, durante
uma refeição na casa de um fariseu, seja Maria Madalena. Segundo o evangelista Lucas:
Apareceu então certa mulher, conhecida na cidade como pecadora. Ela, sabendo que Jesus estava à mesa na casa do fariseu, levou um frasco de alabastro com perfume. A mulher se colocou por trás, chorando aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés. Em seguida, os enxugava com os cabelos, cobria-os de beijos, e os ungia com perfume. (Bíblia, Lucas, 7, 37-38).
Não fica evidente quem é a mulher cujos pecados foram perdoados por Jesus.
Jacopo de Varazze (1229-1298), em a “Legenda áurea: vida de santos”, no capítulo dedicado a
Santa Maria Madalena, diz que “ela chama-se ‘mar-amargo’ por ter optado pela ótima via da
penitência, por ter derramado tantas lágrimas com as quais lavou os pés do Senhor” (DE
VARAZZE, 2003, p. 543, grifo do autor). Considerando que seja esta a hipótese mais difundida,
podemos identificar, simbolicamente, o chover no derramar das lágrimas, bem como remeter
esta passagem ao ritual de “aguar a cruz”, de modo que a cruz representa o Cristo e os
discípulos, os que levam água e pedras. Assim, o ato de regar os pés da cruz encena o lavar dos
pés de Jesus. Logo, do mesmo modo que a pecadora e discípula Maria Madalena foi perdoada,
os que repetem/encenam seu ato também creem que o erão, porque demonstraram amor. Essa
repetição do ato, conforme foi interpretada, recapitula a teoria de Frazer (1982) sobre a magia
analógica ou imitativa, isto é, a ideia de que semelhante produz semelhante.
25 A partir da primeira palavra chuva, o esposo da senhora entrevistada a acompanha no canto.
90
No cântico fica explícito o reconhecimento dos pecados: [...] que nóis samos
pecador [...] (N4F78f); e o rogar pela chuva, que molha o chão para que se produza o pão de
cada dia, seguidos do clamor por piedade para que se destitua o castigo que a falta de chuvas
pode ocasionar. Enfim, o “aguar a cruz”, pelo viés dessa interpretação dos cânticos a Santa
Maria Madalena, é um ato de penitência no qual pode ser identificada a representação da via-
sacra, na qual o peso das pedras e da água é o peso da cruz que Jesus carregou até o monte
Calvário, onde fora crucificado.
Assim como existem estes rituais para rogar por chuva, há outros que servem para
abrandar os ventos fortes e os raios, comuns em épocas chuvosas. A exemplo, destacamos do
corpus esse trecho:
É. Igual, chuva braba, né, chuva braba, essa é... [...] Virge Barba' se vistiu e se calçou, pegô o seu caminho, caminhou, encontrou com São Jorge, São Jorge perguntou: ‒ onde vai Barba' Virge? ‒ Vô no céu pedir a Deus que livra nóis de raio, curisco e tempestade braba. ‒ Volta pa tráis, Barba' Virge, chuva braba vai pus monte onde num tem pão e nem vin[ho], nem vê criança chorá, nem galo cantá, nem boi berrá. Nas hora de Deus, para sempre. Amém. (N1F63i).
Temos nessa composição, classificada no gênero exorcismo ou esconjuro26, as
figuras de Santa Bárbara e São Jorge. Constatamos em acervos da literatura oral que esse
esconjuro possui inúmeras versões, dentre elas destacamos esta que integra o acervo da
ADLOT:
Santa Bárbara e São Jerónimo se levantaram, Seus pezinhos direito calçaram. Jesus cristo os encontrou E lhes perguntou: - Onde vais Bárbara e Jerónimo? Eles Lhe responderam: - Vamos além espalhar esta trovoada Que no céu está armada E Jesus lhes disse: - Vai! Espalha lá para bem longe, Onde não haja eira nem beira, Nem raminho de oliveira, Nem ganipinho de lã, Nem menino a amamentar, Nem bafo de gente cristã. (ARQUIVO..., 2013).
26 “[...] composições que se destinam a afastar qualquer mal ou malefício, geralmente fazendo-o recair em outro
local” (MORÃO; PINTO CORREIA, 2013, p. 3).
91
O esconjuro acima foi colhido em 2002 na Freguesia de Louriçal, em Portugal. Sua
informante, como é referida no site do Arquivo, tinha 68 anos. É evidente a semelhança entre a
estrutura e o conteúdo das duas composições. Na primeira, um personagem se encontra com
um segundo, na segunda, dois se encontram com um terceiro. Em ambas, há a pergunta “aonde
vai [...]?”, a resposta dizendo que se vai ao céu/além abrandar a tempestade e, em seguida, a
parte em que São Jorge, na versão do nosso corpus, e Jesus, na versão portuguesa, empregam
palavras que sugerem a ideia de afastamento, ou seja, determinam que os raios e trovoadas
sejam levados para uma área distante, onde não causem malefícios a alguém. Dessa forma,
identificamos um recurso metonímico em que o sentido das palavras representa o deslocar dos
raios, ventos e trovoadas para um lugar remoto, onde não há humanos, nem animais.
São, por assim dizer, formas convergentes, versões de uma composição primordial
e exemplos nítidos do que apresentamos sobre a memória oral, que se reinventa ultrapassando
o tempo e o espaço a partir da sua divulgação oral por personagens envolvidos em lugares e
acontecimentos. Enfim, são saberes de ontem que, hoje, ainda se presentificam no vivido de
senhoras e senhores, como traços culturais de um grupo social que aprendeu e se identificou
com tais práticas, tornando-as memórias vivas.
Com igual finalidade dos esconjuros supracitados, podemos destacar a seguinte
oração:
Não, eu faço igual' o Cristo feiz, né, o Cristo feiz, né, o Cristo# deu tempestad', tava quereno derrobá tudo, ele falô assim# mandô o vent' acabá, né? [En]tão eu falo co'ele, primer'eu falo: ó, Anjo Gabriel', o seu maió comunicadô, fala ca mi# minha mãe Aparecida p[ara] ela falá com Cristo pa ele fazê cum o v# com o vent'aqui cumo ele fei[z] no mar lá, carmô o vento do mar. [En]tão aqui tá ventano muito, fala pra ele pa carma o vento aqui também. Né? O anjo Gabriel' é comunicadô, né? Ele comunicô ca Nos[sa] Sinhora da Aparicida qu'ela ia# né, pegá o f# filho de Deus, né? [En]tão a gen[te] tem que mexê co'ele primero, né, pa depois mexê c'os oto (risos). Aí é fatal, né, aí 'caba memo. (N2M82).
Logo, reconhecemos que esta composição alude à passagem bíblica na qual Jesus
acalma uma tempestade no mar:
E eis que houve grande agitação no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, estava dormindo. Os discípulos se aproximaram e o acordaram, dizendo: “Senhor, salva-nos, porque estamos afundando!” Jesus respondeu: “Por que vocês têm medo, homens de pouca fé?” E, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar, e tudo ficou calmo. Os homens ficaram admirados e disseram: “Quem é esse homem, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Bíblia, Mateus, 8, 24-27).
92
Podemos conjecturar que invoca-se o Arcanjo Gabriel por ser ele o anjo que
comunicou à Maria que ela ficaria grávida do Espírito Santo. No trecho do corpus, o narrador
explica que é preciso primeiro comunicar com o anjo para que ele fale com Nossa Senhora
Aparecida27 e esta rogue ao Cristo para que acalme a ventania. Temos explícito, aqui, o
princípio da magia analógica ou imitativa teorizada por Frazer (1982). Esta se dá no momento
em que o sujeito se vale da oração para invocar por analogia, mesmo que inconsciente disso,
aquela passagem bíblica e, assim, supor que esteja gerando a igualdade de efeitos, isto é, que
Cristo pare a tempestade.
Além desses rituais, registramos ainda outras práticas, como usar “palha benta” para
acalmar o vento: “Intão, 'cê põe aquela paia benta no lugá que tá ventan', né, ajuda muito”
(N2M82). O narrador conta, ainda, que sua mãe queimava restos dos atilhos de alho, a palha,
para apaziguar “chuvas bravas”:
A minha mãe pegava assim, ela# [por]que antigamente chova# chovia memo, chuva braba, era vento, ped[r]a, istalo memo, o trem era pa [ar]rancá pica-pau do oco, né? E aí, antão, minha mãe pegava aqueles 'queles resto de ai, né, tirava as cabeça [as]sim e pegava e punha no fogo, né? (N2M82).
As chamadas “palhas bentas” são, via de regra, os ramos (folhas de palmeiras ou
outros ramos diversos) carregados pelas pessoas durante as procissões do Domingo de Ramos28,
os quais são empregados com o mesmo propósito:
É, Domingo de Ramos. Aí eu guard' ele, né, [por]que el[e] é bom contra chuva braba. Mais eu gost' de guardá, né? [...] É, quando chove, aí 'cê basta 'cê pô ele pu lado que a chuva eim vem, aquele vento, sabe? (erguer o ramo para o lado do qual a chuva vem). Ele (o vento) para rapidim, a chu[va] a chuva braba, sabe? (N1F63ii).
Velas especiais, assim como a palha benta e a palha de alho, possuem igual função:
“essa [a]qui é a vela lá da Nos'Sinhora da Aparicida, né, quando chove também eu gost' de
acendê ela. Acendo só na época da# [as]sim, quando tá ua chuva braba, né?” (N1F63ii). Na
descrição desses rituais específicos envolvendo palha, vela e ramo (vide fotos 2 e 3) não foi
informado se se faziam acompanhados de alguma composição oral.
27 Um dos muitos títulos atribuídos à Virgem Maria, a mãe de Jesus. 28 É celebrado no último domingo antes da Páscoa. É assim denominado porque, segundo a Bíblia, as pessoas
cortaram ramos de árvores e folhas de palmeiras para cobrir o caminho por onde Jesus passou montado num jumento durante sua entrada em Jerusalém.
93
Foto 2 - Vela. Foto 3 - Ramo.
Fonte: Pesquisa de campo (2014). Fonte: Pesquisa de campo (2014).
A partir dessas considerações, verificamos que, de modo geral, as práticas relativas
à chuva se dividem em dois grupos. No primeiro, “pedir chuva”, incluem-se o “aguar a cruz”,
ritual no qual são empregadas as orações do “Pai-Nosso”, da “Ave-Maria” ou a reza do “terço”.
Os seus objetos rituais são a “água”, as “pedras” e a “cruz”. Podemos relacionar, também, o
cântico à “Santa Maria Madalena”, que pode ser entoado tanto no ritual do “aguar a cruz”
quanto em situações outras do dia a dia.
No segundo grupo, “acalmar a chuva”, registramos o esconjuro de “Santa Bárbara”,
a oração do “Arcanjo Gabriel” e os objetos rituais “palha benta” ou “ramo”, “resto de alho” e
“vela”. Assim, podemos esquematizar os seguintes organogramas:
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Organograma 2 - Pedir chuva.
Org.: o autor.
Organograma 3 – Acalmar a chuva.
Org.: o autor.
Em face da necessidade de meios que garantam, entre outras coisas, o sucesso da
colheita e, assim, o provimento da família e dos animais, identificamos que essas práticas do
catolicismo popular são fundadas na linguagem que, nessa dimensão, segundo Gusdorf (1977,
p. 19-18), “é uma realidade eminente, pela virtude da qual é possível ao homem reafirmar o
gesto denominador em conjunto com o gesto de Deus e de captar para seu proveito os poderes
que ela exerce.”
No próximo tópico, abordamos as benzeções e outras composições correlatas.
Pedir chuva
Aguar a cruz
Objetos rituais
Água
Pedras
Cruz
Orações
Pai-Nosso
Ave-Maria
Terço
Cântico
Santa Maria Madalena
Acalmar chuva
Objetos rituais para
parar o vento
Palha benta
Domingo de Ramos
Réstia de alho Vela
Oração para acalmar o
vento
Arcanjo Gabriel
Comunicador
Nossa Senhora
Aparecida
Intercessora
Cristo
Executor
Esconjuro para afastar chuva brava
Santa Bárbara
São Jorge
95
3.1.3 Benzeções e outras composições
Marcas notórias da tradição oral popular são as benzeções, composições, de modo
geral, aliadas a alguma prática concreta (gestos, por exemplo) e que incluem uma diversidade
de objetos rituais. A intenção mais recorrente dessas práticas é curativa, para curar cobreiro,
erisipela, espinhela caída, quebrante, vento-virado, tirar mal-olhado etc.
Oliveira (1985), em seu estudo que aborda as benzeções, salienta que o benzer, em
amplo sentido, não é exclusividade dos benzedores e benzedeiras, por ser uma prática comum
no cotidiano em várias ocasiões, como ao adentrar santuários, ao passar à frente de cemitérios,
ao iniciar uma partida de jogo, ao lidar/deparar com o desconhecido que causa medo etc. São,
destarte, situações em que é comum ver pessoas, consoante a religião a que pertencem, fazerem
o gesto do sinal da cruz, por exemplo, e/ou dizerem palavras específicas para se benzerem ou
benzerem a outro(s). Oliveira (1985, p. 10), com enfoque no meio rural, ressalta:
Como uma extensão da solidariedade vivida pelos camponeses, na roça qualquer pessoa mais velha benze a mais moça. Qualquer profissional de sagrado, seja padre, capelão, rezador e rezadeira de terços, de ladainhas ou de outros tipos de rezas, benzedeiras e até parteiras, todos benzem. Porque são, de um modo ou de outro, também reconhecidos como alguém que possa benzer.
É o caso de uma das narradoras visitadas para composição do corpus dessa
pesquisa. Tal qual sua avó e sua mãe foram, de antanho, reconhecidas como pessoas que podiam
benzer, ela, ao herdar esse ofício, obteve igual reconhecimento. Para Castiglioni (1993, p. 38),
as pessoas tidas como detentoras de dons sobrenaturais possuem, de diferentes formas e
motivos, qualidades que provocam fascinação e ânimo em razão da “[...] força de sugestão e a
facilidade de arrebatar a outros indivíduos ou grupos com sua palavra ou com sua ação, com a
vontade expressa no gesto, no discurso, no ritmo e no exemplo.” Sublinhamos, nesse ensejo, a
perspectiva da benzedeira N1F63i. Para ela, tanto a fé de quem a procura quanto a sua forma
de falar com Deus e a sua moral na comunidade são fundamentais para o exercício da benzeção:
[En]tão eu falo, talveiz, seja a fé que era tanto que curava também, [por]qu' eu acho que nóis, também, pa podê# o[u] benzê o[u] pidi a Deus, nóis tem que tê a ação, né, o# sê assim a# o jeit' assim, um moral, um jeito pa podê falá cum Deus, né? (N1F63ii).
Compreendemos as benzeções como expedientes reconfigurados numa base
católica, na qual os benzedores e benzedeiras valem-se de orações oficiais e composições
96
populares, recorrem a santos e outras entidades divinas ou naturais (sol, lua etc.) e associam
gestos, objetos e remédios naturais. Tais práticas de cunho popular, comuns no cotidiano,
revelam os recursos de que muitas pessoas dispunham antigamente, quando o acesso limitado
ao saber medicinal erudito e as dificuldades de locomoção até os centros urbanos eram mais
acentuados, como verificamos nesse excerto:
É um tii[o] meu, que foi ofindido de cascavelo. Naquele tempo num tinha carro pa vim no médico, num tinha recurso. Aí, e[le]s arranjaro ele, e ele foi lá e benzeu. Sarô. Ele tava lá, rolano na cama, igual' o cascavelo. Ele era rapaizim novo. (N4F78f).
Entendemos que essas dificuldades ainda são, em menor amplitude, realidade
hodiernamente e, mesmo que tivessem sido totalmente sanadas, isso não significaria o fim de
práticas populares como as benzeções, uma vez que as práticas podem ser ressemantizadas, isto
é, adquirirem novos sentidos.
Ressaltando o linguístico nos rituais de benzeção, entre os exemplos que a
benzedeira descreveu, extraímos essa benzeção para “guiar o caminho” de uma pessoa:
Bamo29 supô, p[r]icisa benzê o Jozimar pa Deus guiá o caminho dele pa frente, né? Aí fala [as]sim: Jozimar, Deus é o sol, Deus é a lua, Deus é o clar' do dia. Assim cum'essas trêis coisa são verdade, Deus que te cura de quebrante, inveja, mal'oiado e todas infermidade. (N1F63i).
Em seguida, ela explica que deve-se falar “[...] trêis veiz, reza um Pai-nosso cua Ave-
maria... e oferece, né, pa São Sebastião, São Lazo30, e os santo que 'ocê tivé mais vocação.” Não
foram obtidas mais informações se é empregado algum ramo ou outro objeto ritual nessa benzeção.
É possível que seja, mas, no desenrolar da conversa, a senhora pode ter se esquecido de o
mencionar.
Na composição acima, é possível visualizar um jogo de palavras
caracteristicamente mágico. Parte-se de três afirmações seguidas da locução “assim como”, que
dá ideia de igualdade, e finaliza com uma espécie de súplica para que Deus cure a pessoa
daqueles males.
É aparente, então, o princípio da similaridade, ou magia imitativa (FRAZER, 1982),
no qual semelhante gera semelhante. Logo, partindo desse princípio, as três ditas verdades, se
29 Vamos. 30 São Lázaro.
97
tomadas como inquestionáveis para os que têm fé, sugeririam o efeito de que a cura dos males
citados se tornasse similarmente verdadeira, real.
Ademais, as palavras são direcionadas à pessoa benzida, diferentemente de outras
composições rogatórias, como as orações, que se valem de um intermediador transcendente
para alcançar o objetivo do ato. É o que nos explicam Morão e Pinto Correia (2013, p. 4, grifo
dos autores), quando dizem que as benzeções “[...] geralmente não solicitam mediação de outras
entidades (ex.: ‘eu te corto...’), mas podem fazer invocações a entidades sagradas ou naturais
ou estabelecer associação com elas.” Então, nesse contexto, as palavras se apresentam como o
próprio poder curativo, ainda que seja um ser divino o seu executor.
Quando usadas, por exemplo, para pedir a um anjo que se comunique com um
santo, para que este rogue a Deus alguma graça, as palavras possuem uma função mais
comunicativa do que efetiva sobre a intenção de quem profere. Aqui se mostra uma acentuada
característica da religiosidade popular que, outrora, bebeu da fonte das religiões primitivas,
entre as quais há as que tinham por deuses os astros, como o sol e a lua.
Desse quadro, podemos esquematizar o seguinte organograma de unidades léxicas:
Organograma 4 – Benzeção.
Org.: o autor.
Benzeção
Guiar caminho para frente
Males curados
quebrante
inveja
mal-olhado
todas as enfermidades
Orações
Pai-Nosso
Ave-Maria
Oferecimento
São Sebastião
São Lázaro
98
Para curar cobreiro31, a narradora ensina que:
E o cobrero é cortá, [por]que aí 'cê vai cortá, portanto a binzição fala: que corte cobrero brabo, né, e fala: assi[m] mesmo eu corto a cabeça e o rabo, aí 'cê corta na# aqui (faz gestos com as mãos para demonstrar o corte do talo da mamona), agora esse meizim32 'cê vai pô pa secá, da da da folha da# do talo da mamona, é, do talim da mamona, qu' 'cê vai cortá, né? (N1F63i).
Para jeito33,
[...] a gen[te]# 'cê põe na agulha e custura, né, aí fala: que cose# é... dex'eu vê, é, dex'eu lembrá a binzição direitim é é ne[rvo]# é: que cose# é: nervo torto, osso quebrado, nervo torto# não, cumé que é?: carne quebrada, nervo torto, osso rendido e tá doeno dimais (ruído do interfone) assim mesmo eu coso, né? Aí fai[z]# cosê é custurá. É: osso quebrado, o[sso]# nã[o], carne quebrado, nervo tosto# torto, osso rindido e tá doeno dimais. Aí é o caso d'ocê dá os ponto, uns trêis, quato ponto na# no# na linha, sabe? [...] fala trêis veiz e reza, né, co Pai-Nosso, co Ave-Maria, pra São Lazo. (N1F63i).
Nesses exemplos, enfatizamos as ações de “cortar” e “costurar/coser”, porquanto a
benzedeira tenha salientado que “é é cortá, né? É igual' o...'cê 'cê fô fazê de jeito, né? Jeito 'cê
fala é custurá” (N1F63i).
Na benzeção para cobreiro, percebemos que a benzedeira utiliza algo para cortar os
talos de mamona, supomos que seja com faca ou tesoura. Portanto, além das palavras proferidas,
é necessária uma ação concreta que simbolize o procedimento da cura da doença, pois se na
composição é empregada a unidade léxica “cortar o cobreiro”, nada mais apropriado que
simular esta ação cujo acreditado resultado é a eliminação da força vital que mantém a doença,
“cortando-a em pedaços”.
Há, ainda, aqueles que, em certos casos, se valem somente das palavras,
prescindindo de gestos e objetos rituais: “E[le]s só mandava jugá um ramim benzido den[tro]
d'água, na água corrente, né? Maise, igual' o (...), benzeu cum nada não, foi só nas palavra
mes[mo]” (N5M80f).
Constatamos, assim, que a palavra é imprescindível nos rituais de benzeção. Vale
ressalvar, contudo, que nos referimos à verbalização tanto oral quanto mentalmente, visto que
há benzedores que “benzem calados”: “pessoa que benze é caladim, né? O[u] senão e[le]s fala
baxim, né?” (N6F56f).
31 “[...] uma irritação cutânea atribuída à passagem de aranha, lagarta ou qualquer animal peçonhento, sobre a pele”
(ORTENCIO, 1997, p. 154). 32 Variação do diminutivo de meio. 33 “[...] torcedura em músculo ou tendão, devida a movimento em falso; torção” (HOUAISS, 2009).
99
Essas duas benzeções revelam, em seu conteúdo, um caráter metonímico que
transfere para o texto oral a capacidade de relacionar objetivamente o problema à sua solução
por meio da reprodução descritiva desse processo. Exemplo disso é o trecho “[...] assi[m]
mesmo eu corto a cabeça e o rabo [...]”, a partir do qual compreendemos que ao “cortar”, isto
é, ao separar as partes do cobreiro, ele perde sua “vitalidade”, como ocorreria se tal separação
fosse realizada no animal (lagartixa, cobra etc.) causador da doença, ele morreria.
Fenômeno semelhante pode ser observado na benzeção para jeito, porém, em vez
de “cortar” é “costurar”, pois a intenção nesse ritual é curar a torcedura de um músculo ou
tendão – “carne quebrada”, “nervo torto”, ou a luxação de um osso – “osso quebrado”, “osso
rendido34”. Logo, o uso da agulha e da linha representam, no gesto de costurar, o processo de
junção das partes “quebradas”.
Mais uma vez, identificamos o princípio da magia imitativa versada por Frazer
(1982). De maneira a tornar mais nítido este conceito, citamos um exemplo do autor: “[...]
quando um índio cora do México quer matar alguém, faz uma imagem dessa pessoa com barro
cozido, com pedaços de pano, etc, e, em seguida, murmurando encantamentos, espeta a cabeça
ou a barriga da estatueta para que a vítima sofra” (FRAZER, 1982, p. 88).
Esquematizando as unidades léxicas no organograma, temos:
Organograma 5 – Benzeções.
Org.: o autor.
34 Rendido: “infrm. que tem hérnia” (HOUAISS; VILLAR, 2009).
Benzeções
Cobreiro
Objetos rituais
Talo de mamona
Faca ou tesoura
Cortar o cobreiro
Jeito
Objetos rituais
Linha Agulha
Costurar/
coser
Carne quebrada
Nervo torto
Osso rendido
Orações
Pai-Nosso
Ave-Maria
Oferecimento
São Lázaro
100
Além das tipicamente populares composições das benzeções, temos o uso da oração
do Creio em Deus Pai, ou Credo, em situações como esta relatada pelo narrador N3M79:
[...] teve ua vez que eu eu tinha feito um paiol' lá, quando eu cumecei a vida
lá, eu fiço um paiol' de bambu, tudo, suai35 de bambu, parede de bambu, e teia de paia de barguaçu, né? E ua galinha chocô lá, e eu mais a muié num
percebeu, e deu pioi dimais, e aí... num dava nem jei[to] de entrá no paiol', aí falei: ah, pa muié. Eu falei: vô passá a mão canhota naque[le]s pioi, né? E fiço lá no poder divino, me deu aquela força assim qu'eu fiço a minhas oração lá e depois eu fiquei com remorso, o curral' ficô branquim assim, foi [as]sim pareceno que tinha posto um lençol' assim no curral', num ficô um pioi. E eu perdi a força (risos). Foi, cum coir que 'quele lençol' foi andano assim, era pioi assim ó pu pu curral' afora assim, [por]que o paiol' era assim pru baxo do curral', intão foi lev[ando]# 'quele# 'quela luizi, num ficô um, sumiu tudo [...]. Jozimar - Mas, o senhor fez uma oração? Eu fiço oração. Jozimar - O senhor lembra da oração? É. Eu lembro da oração assim, eu rezei o Creio em Deus Pai no canto de cá, né, no canto de cá, né, e no canto de cá, trêis canto. Jozimar - Três cantos. É. Rezei o Creio em Deus Pai, pidi o Divino Ispíito Santo pa dá força pa retirá aquela coisa, né? [...] Intão, is[so] aí é quarqué quarqué coisa, se a pessoa tivé fé [...] Lagarto, essas cois', pur'ixemp[lo], lagarto nua roça, né, 'cê ritira des[se]
tipo, né?
Nesse contexto, uma oração oficial do catolicismo, rezada três vezes e em três
cantos, atua como um esconjuro, pois se destina a afastar um malefício, no caso, os piolhos.
Outro uso incomum do Credo pode ser constatado na narrativa sobre um senhor que viu e foi
atacado por uma suposta assombração:
Quando foi lá pas deiz hora tava só eu e o cumpa[de] (...) aqui. Aí bateu lá fora lá, de noite já, bem deiz hora da (ele bate palmas) [as]sim, ó, parece que foi assim. Falei: uai, parece que tem minino bateno pal'ma lá, né, puque o o o o o o eco, né, é, aí cheguei lá tá o (...) lá im cima a cavalo lá# a é# éguinha tremeno (imita o som de animal cansado), eu falei: uai, cumpa[de] (...), tem um bobo aqui ó, (risos) tem um bobo aqui, vem cá. Ele# cumpa[de] (...) nada, er' (...) né, n'era cumpade# nói' foi lá puxô ele saiu durim de lá c'as perna durinha, num mudava nem passo, ai nói' 'rastô ele pois na cama 'li, ó. Aí ele ringino dente sabe, [a]quilo tudo inrolado, aí eu pensei: uai, tem que fazê ua
oração p'esse cara. Intão, e[le]s falava que rezasse o credo de# da# tráis pa frente diz que tira quarqué ma[l]# coisera, né, eu pensei: ah, vô pegá o catici[s]mo e rezá. Aí eu rezei ele de tráis pa f# até terminá na# cumo cumeçasse, né, e nói' largô ele foi deitá, eu vim durmi cá pra dento, cumpa[de] (...) vei p'esse oto quarto daqui e ele ficô no quartim da sala, que é ali, ó, ringino os dente a noit' intera [...] ele contô o que que foi, hora qu'ele tava chegano nesse nesse piqui lá tinh' u a porterinha véia de vara na frente e diz
35 Soalho.
101
ele que viu um mulequinho zóiudo passano na frent' dele, um preto, e ele mandô a éguinha im cima e e# esse trem pulô na garupa dele e pregô nele o braço e foi no chão, os dois, diz ele que dava murro assim e passava de val a mão no no rumo da cara dele e ele tomano só pancada e apanhô dimair da conta. Ele# acho qu' inventá esse trem ele num ia não, ele chegô duro aí a noit' intera passano mal', né? (N3M79).
Novamente, a oração é empregada como um esconjuro para afastar “quarqué mal,
coisera”, isto é, retirar males. A chave para esse ritual é recitar o “Creio em Deus Pai”
começando do fim para o início. Para tanto, como o senhor não sabia o fazer de cor, ele se valeu
de um catecismo no qual a oração estava escrita. O Credo às avessas fica assim:
Amém. Eterna vida na carne da Ressureição na pecados dos remissão na Santos dos Comunhão na Católica Igreja Santa na Santo Espírito no creio mortos e os vivos os julgar a vir de há donde Poderoso todo Padre Deus de direita à sentado está céus aos subiu dia terceiro ao ressuscitou mortos dos mansão à desceu sepultado e morto crucificado foi Pilatos Pôncio sob padeceu Maria Virgem de nasceu Santo Espírito do poder pelo concebido foi que Senhor Nosso filho único seu Cristo Jesus em e terra da e céu do Criador Poderoso todo Padre Deus em creio.
Quando questionada se conhecia alguma benzeção para recuperar uma plantação
que estivesse passando por problemas, como a falta de água ou o ataque de pragas, a benzedeira
N1F63i responde: “é, tem tem as reza. Eu num sei as oração, [por]que é# tinha gente que binzia,
igual, lagarto, essas coisa que# va'imbora, num fica ua, né? Mais eu num sei a binzição”.
Podemos dizer que as “rezas” às quais a benzedeira se refere sejam esconjuros como esses que
acabamos de descrever. O mesmo tipo de ritual se aplica quando a intenção é, por exemplo,
retirar cobras de uma propriedade: “E o que binzia cobra, que chamav' as cobra tudo na portera
e as cobra juntô tudo” (N4F78f).
Assim, temos:
102
Organograma 6 – Esconjuro.
Org.: o autor.
Entre muitos outros registros interessantes sobre benzeção, impera que
destaquemos mais um no qual a força da palavra se mostra bastante nítida. Vejamos esse trecho
da conversa entre pesquisador e vários narradores:
N4F78f - A a (...) era piquena e nóis ta[va]# eu com e[la]s lá im casa, né? E ela# de manhã ela tava cum pão cum café. E o (...) da (...) [...] passô lá, né, ele trabaiava la no fundo, lá na olaria. N5M80f - Brincano co' ela eu acho. N4F78f - Ele brincano com ela, né? E[le] falô assim: me dá um pedaço de pão. Ela brin# minino 'cê sabe, né? Falô: não, num dô não, e cumeno o pão. Ele virô assim: ei[ta], mais 'cê é danada, 'cê é ridica, hein?. N5M80f: Falô assim: minina ridica (imitando voz mais grave). N4F78f - E oiô ela co oi rúim, né: 'cê é ridica. Menina, a menina adueceu na hora [...] Aí seu pai (dirige-se à filha que estava participando da conversa) tava pa roça. Mandei chamá ele, né, p' ele vim. /.../ Armaria, da# a (...) deu febre, mair na hora, dua hora pa ota, ua febre dar mais braba. Aí, num tinha
condição fácil naquele tempo, né, e nisso o (...) chegô, aí ele chegô e falô: não, /.../ levá ela na cidade não. Benzeu. Minina, ele falô: sei até quem pôis mal'oiado nela. Era o (...). N5M80f: Benzeu, cabô. N4F78f - Benzeu, o minino sarô. E se num benze, nossa sinhora! S' ele num chega lá na hora, vinha pa cidade, e[le]s num sabia o que que era. N5M80f - Num foi pu mardade dele, né? N4F78f - Uai, não. Num sei. É puque já tem a# né? Foi# e[le]s fala que é minino que batiza sem benzê.
Podemos abstrair desse excerto narrativo que o mal-olhado que os pais acreditam ter
sido lançado sobre a filha é atribuído à soma de dois fatores: o fato de o homem, mesmo que em
tom de brincadeira, ter proferido as palavras “'cê é danada, 'cê é ridica, ein?” e “minina ridica”
à criança, após lhe ser negado o pedaço de pão e, ainda, a suposição de que tal homem tenha esse
Esconjuro
Creio em Deus Pai / Credo
Em três cantos
Tirar piolhos do paiol / tirar lagarto de plantações etc.
Credo às avessas
Tirar qualquer "coisera"
103
“olho ruim” porque foi “batizado sem benzer” e, por isso, tenha capacidade de pôr mal-olhado
mesmo sem intenção de fazê-lo. Podemos compreender o “batizar sem benzer” como se o
batizando passasse pelo ritual do batismo, mas, por algum motivo, não tenha recebido o
sacramento.
Essa trama nos remete a outro narrador que nos falou de um intrigante “golpe” que
alguns se utilizam para, na ocasião de um batismo, adquirir poderes:
Muitas pessoas mau também, atravéis da maldade existe essas coisa, né, né? Intão, é, tinha muitas pessoa que nem batizado num era, né sô, né? Otas pessoa assim pa dá o gorpe no oto, pu ixemp[l]o assim, é, ocê tem um filho e 'ocê pega me chama pra batizá seu filho, e eu vô mato um lobo e pego o lobo do do# zói do lobo e põe no no bolso. Aí chega lá, vô batizá seu# batizá seu fii, mais tô batizan' é o olho. [En]tão 'cê fica pagão, e com aquele olho eu faço malandrage, eu f[aço]# né, eu faço muntas art[e] ca'quele oi36 de lobo, né? (N2M82).
Essa suposição que o narrador criou de que o padrinho mal intencionado arranca os
olhos de um lobo e os “batiza” no lugar de batizar a criança serve de exemplo de uma pessoa que
foi “batizada sem benzer”. Assim, o narrador explica que esta pessoa não “tá saben' de nada.
Antão, 'cê fica pagão [...] e 'ocê ficô pagão, 'cê tá pu conta de quê? Conta do mal', né [...]”. É nesse
sentido que o homem, de “olhar ruim” colocou mal-olhado na filha dos narradores N5M80f e
N4F78f, possa ter sido vítima de um batismo sem sacramento, porém não necessariamente da
forma como o narrador N2M82 descreveu. Então, por ter ficado pagão, carrega consigo a
possibilidade de provocar males involuntariamente. Em síntese, podemos visualizar assim:
Organograma 7 – Batizado sem benzer.
Org.: o autor.
36 Olho.
Batizado sem benzer
Pagão
Olhar ruim
Mal-olhado
104
Cabe-nos, ainda, citar a associação de benzeções ao uso das plantas medicinais. A
narradora N1F63i diz que sua mãe, que também era benzedeira, sempre benzia os chás para dá-
los aos filhos:
[I]gual, remédi', todo remédi' qu'ela dava pra gente, ela gostava de falá, né? É: toma este chazim, né, é...é, Deus, nosso sinhô, Nos[sa] Sinhora da Guias, Nos[sa] Sinhora da 'Badia, Sant' Helena que põe vertude nesse remédi'. Eu 'inda falo pu meus minino: ó, mini[no]s, 'cêis intrega [e dizem]: tamo37, minino, bebe o reméd', fa[lo]: meus fii não é assim, faiz igual' a vovó fazia”, né? Que era a vó de[le]s, né? El[a] é dest' jeito. E um chazim era bom, a gente chegav' cum minino duente, né, minina, ela dava. 'Que[le]s chazim p[a]rece que valia pena, nossa sinhor'. (N1F63i).
Assim, esse ritual se apresenta como um procedimento para, mediante a fórmula
religiosa, potencializar o efeito dos chás, sacralizando-os. A senhora reforça que para a
funcionalidade dessa prática é importante que seja feita com fé, sendo dispensável até o uso de
plantas no chá: “É é cuns38 fé, né? Até um um chá cua, cua água 'té que# 'cê, 'cê vê e[la] falava:
Deus, nosso sinhô, Nos[sa] Sinhora da Guia, Sinhora da 'Badia, Sant' Helena que põe vertude
desse remédi”. Nesse contexto, a verbalização oral da oração se reveste de poder para invocar
os seres divinos para que coloquem “virtude” no remédio, isto é, dotem-no da propriedade de
fazer o bem.
Do quadro descrito, abstraímos o seguinte esquema:
Organograma 8 – Benzeção.
Org.: o autor.
Na seção subsequente, tratamos dos dias santos.
37 Do verbo tomar. 38 Com.
Benzeção Benzer chá Pôr virtude Seres rogados
Deus nosso Senhor
Nossa Senhora da Guia
Nossa Senhora da Abadia
Santa Helena
105
3.1.4 Dias santos
Os dias santos, como o próprio nome designa, são as datas em que se celebram os
santos mais devotados de uma comunidade, tendo em vista que, no calendário católico, há
santos celebrados todos os dias do ano. Na comunidade São Domingos, é notória a devoção a
São Sebastião, bem como a outros santos como os que a narradora N1F63i cita nesse excerto:
Guardava, guardava to[do] dia#. Ixe, né, chegav' 'cê# hoje em dia 'cê num acha jeito, sabe? Pur'ixemp[l]o, falá assim: vô passeá puque hoj' é dia santo, né? E de primero não, 'cê saía, era São João, Sant' Antõe, São Pedro, né? É, 'inda tinha os os dia santo de Nossa Sinhora, qu' eles são muitos dia santo, Anunciação de Nossa Sinhora, Purificação de Nossa Sinhora, né, São José, Sinhor São Bento. [En]tão eu sei o dia de[le]s tudo, né? Antão# e de primero o povo saía passiano [por]que todo mundo tava guardano dia o santo, né.
Portanto, são ocasiões em que algumas pessoas possuem/possuíam o costume de
“guardar o dia santo”, isto é, um dia de repouso em que se evita trabalhar. No relato acima, há
uma ideia de que “de primeiro” as pessoas guardavam mais os dias santos e que, hoje, quase
não há mais o respeito a esse preceito religioso. Os narradores N5M80f e N4F78f fazem
observação semelhante:
N4F78f - Pois é. Hoj' im dia, né, ninguém nem alembra desses# desses dia santo que# é# igual' antigamente. N5M80f - Agora, hoje# Hoje quair num tem. N4F78f - Alembra mair não, cabô. [...] N4F78f - Intão, uai. Uai, lá na roça nóis sabia de tudo. Agora, hoj' im dia, quand' é# (...) chega, fala: mãe, hoje dia santo, falo: (...) do céu. Aqui, parece que leva [as]sim, ó.
Na data da gravação, estes narradores informaram que havia onze anos que se
mudaram da comunidade São Domingos para a área urbana de Catalão-GO. Isso dá a entender
que a vida corriqueira da cidade não é um terreno profícuo para a manutenção dessa prática
que, na “roça”, de acordo com os narradores, é observada com mais frequência.
Vinculada ao calendário hagiológico há a crença de que não se deve cometer
“abusos”, ou seja, não fazer pouco caso do poder desses seres divinos. Nesse contexto, os
castigos são, geralmente, relacionados à atribuição dada ao santo. Por exemplo, São Bento é
popularmente considerado o protetor contra as cobras, então, se no dia da sua celebração alguém
cometer abusos, poderá ficar sujeito à “ofensa” de cobra. Vejamos, abaixo, quando a narradora
106
conta que nesse dia santo as pessoas não trabalhavam porque era época das colheitas de arroz,
o que aumentava o risco de se deparar com cobras embrenhadas entre as fileiras do arrozal:
Dia vinte e um de março é dia de Senhor São Bento, é o protetor das [contra as] cobra, né? Então o povo# esse dia santo muita gente que trabalhava dia de dia santo e[le]s num gostava de trabalhá, pruque er' o dia da# é e[le]s que culhia arroiz, né, [en]tão é a época de tá colheno arroiz. Então e[le]s não trabalhava, de jeito ninhum, né? (N1F63i).
Há outro aspecto interessante a ser observado. O dia de São Bento, segundo a
narradora N1F63i, é 21 de março. Contudo, há calendários hagiológicos que consideram o dia
11 de julho como o dia desse santo. A explicação para tal discrepância está no fato de que
alguns mosteiros e regiões na Itália tinham o costume mais antigo, possivelmente do século
VIII, de celebrar esse santo no dia 11 de julho. Mais tardiamente, a igreja introduziu o dia 21
de março no calendário litúrgico, por ser esta a real data da morte de São Bento, ou o seu trânsito
ao céu. Esta data foi preservada até a reforma de Paulo VI, em 1969, que resgatou o dia da
celebração mais antiga, 11 de julho (BRODBECK, 2012).
Retomando a questão do “abuso”, Zaluar (1980, p. 166), quando estuda o milagre
e o castigo divino no catolicismo popular, observa que “o infortúnio presente de alguém era
sempre remetido a uma falta contra os santos no passado: falta de respeito, esquecimento ou
quebra de promessas ou, pior ainda, omissão ou escárnio pelas coisas do santo.” É justamente
sobre isso que estamos a discorrer, do não-seguimento dos compromissos com os santos.
Impera, nesse contexto, conclamar Tedesco (1999, p. 77), em suas pesquisas concernentes à
terra, ao trabalho e à família dos colonos no sul do Brasil, para sublinhar que:
Os santos fazem parte do cotidiano não só religioso, estando também ligados à morte, às plantações, às curas, aos castigos, às benesses, à vida afetiva e social; enfim, marcam presença no vivido do colono e da comunidade social, bem como repercutem na normatividade familiar.
Constatamos que entre os narradores da nossa pesquisa verifica-se a mesma lógica.
Tomamos um trecho que trata de um castigo dado em função da oralização de palavras de
“abuso” contra Santa Bárbara. Vejamos o seguinte excerto da conversa com a narradora
N1F63i:
Assim, eu hoje até# do trabalhá eu num abuso não, abusá eu num gos[to] de de nada, né? Mais eu pens' [as]sim, 'cê [es]tan' trabalhano cum fé em Deus, então 'cê num precisa de de abusá, mais sabê o dia que é os dia santo eu sei todos, né?
107
E eu acho também assim, s'ocê# eu chego, você tá trabalhano, eu num falo: gente é dia santo, 'cê num faiz isso hoje não, pruque se e[u]# na manera qu'eu falo s[e]# eu sei de vários é é...coisa que aconteceu, castigo da pessoa falá. Isso foi aconticido da nossa fazenda lá, do# da# do meu bisavô. Antão s[e]# eu acho [as]sim, num fala não, dexa caladim, né? Pruque sinão é#, igual, a mulher chegô falô assim: mais 'cê tá trabalhano hoje? Dia de santa Barba39, lá ele# Deus que me perdoa, né? Ele pegô e diss'assim, falô: quê que tem Barba cu[m] meu carrero, meu boi? Num foi nada não, dia quato de dezembro, dia de santa Bárbara. Antão, ela pegô é# lá armô ua nuvinha e dessa nuve' vei um raio matô
ua junta do# de boi, do carro-de-boi, né? Pur'is[so] qu'eu falo, eu acho assim, tá
trabalhano dexa quetim trabalhano, né, pruque se eu fa[lar]# na medida qu'eu falá, é, a pessoa [também] vai falá é onde vem /.../ o castigo, né?
Inferimos que a morte dos bois atingidos pelo raio foi o castigo dado ao dono deles,
por ter menosprezado o dia de Santa Bárbara. Todavia, está evidente que não foi somente o fato
de ele ter trabalhado nesse dia, e sim por ter oralizado, em resposta à outra pessoa que o
questionou, o nome da santa em forma de “abuso”, isto é, desrespeitosamente. Do trecho “quê
que tem Barba cu[m] meu carrero, meu boi?”, extraímos algumas premissas para a forma de
castigo dada. Primeiramente, Santa Bárbara é considerada a protetora contra perigos
provenientes de tempestade, então, tem-se a causa mortis justificada. Em segundo lugar, os bois
da junta sofreram o ataque justamente porque foram depreciadamente confrontados à santa.
É explícito, então, que as palavras ditas têm total relação com a consequência do
ato. A constatação desse valor mágico-religioso é notória, ainda, quando a narradora pausa o
fluxo narrativo para pedir perdão a Deus por ter que dizer aquelas palavras. Quer dizer, mesmo
narrando um fato acontecido com outra pessoa, o fato de ter que repetir as palavras “de abuso”
para com a santa traduz, também, um risco de acionar as possíveis consequências. Assim, o dito
“Deus que me perdoa” tem a função de neutralizar a reação, ou seja, também é pragmático.
Nesse ensejo, Gusdorf (1977, p. 18) acrescenta que “os deuses mesmos são submetidos ao poder
daqueles que o invocam por seu nome. O uso simples, impensado de uma palavra pode trazer
consequências desastrosas.”
Podemos organizar assim o organograma de unidades léxicas relacionadas aos dias
santos:
39 Santa Bárbara.
108
Organograma 9 – Dia santo.
Org.: o autor.
No último tópico, falamos sobre as práticas relacionadas ao período quaresmal.
3.1.5 Quaresma
Passado o festivo carnaval, logo após a Quarta-feira de Cinzas, dia de o padre deitar
cinza em sinal de cruz na testa dos fiéis que vão à igreja, é chegada a Quaresma, período de
quarenta dias que é/era tido como um tempo de recolhimento para muitos católicos, praticantes
ou não.
Entre os seus principais preceitos está o de não comer carne vermelha, substituindo-
a, principalmente, por peixes. Há, também, pessoas que fazem promessas de se abster de algum
outro alimento ou atividade durante os quarenta dias, como forma de penitência. Além disso,
as pessoas evitam sair às áreas externas da casa em horas impróprias, especialmente à noite, por
acreditar-se que nessa época as “coisas ruins” estão à solta. Vejamos esse relato da narradora
N6F56f:
Nóis tava casado de poco# uma Semana Santa - e[le]s fala, né, dia de gente num saí de noite, andá de cavalo, né? - nóis lá ia da celebração do centro lá pa minha sogra, eu mai[s] o (...) num cavalo, eu na garupa, e a cumade (...) n'oto. Aí, bem assim na subida /.../ tinha um capitão assim, tinh' um gái assim, ó, mei[o] tombado, hora que nóis passô lá de baxo desse capitão, mair deu ua
chicotada na garupa do cavalo que nóis tava, cavalo deu [a]quele pulo na frente assim, ó, deu um grito, nóis oiô pa tráis e a gaia do pau tava balançano.
Dia santo
Guardar o dia santo
São Bento (protetor
contra cobras)
Abuso
Trabalhar
Castigo
Ofensa de cobra
Santa Bárbara (protetora
contra raios)
Abuso
Desrespeitar a santa
Castigo
Ser atingido por raio
109
Assim, nas gravações, ouvimos histórias de “assombração”, “mula-sem-cabeça” e
“lobisomem”. É quando se fala em Quaresma, principalmente, que esses seres são evocados,
como exemplos de entidades misteriosas que, na existência contemporânea, já não são mais tão
temidas como outrora.
Nesse sentido, imprime-se nas narrativas a opinião de que, hodiernamente, os
preceitos quaresmais não são mais tão seguidos à risca conforme eram antigamente, pelo menos
na comunidade estudada. O narrador N2M82 conta que:
Mais a gente acha assim que hoje# a fé do pessoal' hoje é mais poca que antigamente, né? [Por]que antigamente nóis ia pra Sumana Santa, nóis ia pra pra igreja fazê vigília, né, intão aquilo tinha a turma, ficava ua hora e depois
ota# a turma saía, chegava a ota, até o dia amaincê, né? Então, no sáb[ad]o da aleluia tinha a missa nove hora, o padre deitava no chão, agachava no chão, e quand' ele levantava aí já cumeçava a fazê o corete, cantá, né, que na Semana Santa os padre# o os santo tava de luto, aí quando era no sáb[ad]o e[le]s já tirava, cumeçava a cantá e ia tirano os luto dos santo, né?
Entendemos que o costume de cobrir as imagens de santos, como conta o narrador,
é uma forma de levar a atenção dos fiéis especialmente ao Cristo, pois é o tempo de refletir
sobre a sua morte e ressureição. Então, nessa ocasião, os santos ficam enlutados pelo sofrimento
de Jesus e, assim, permanecem em segundo plano. Dessa forma, percebemos no catolicismo
popular uma união entre as normas da Igreja, como esta que acabamos de falar, e outros tipos
de preceitos:
[...] naque[le]# antigamente o o pessoal' assim tinha aquela cisma, aquela coisa, né? Quand' entrava o coresma é mema cois' de fecha num quarto ali e pronto, né? Num podia xingá, num podia [as]subiá, num podia fazê nada, né? Intão# diz que tinha lobisome, né, mula-sem-cabeça, né? Antigamen' tinha essas coisa tudo (N1F63i).
A tendência do fim desses costumes é, por assim dizer, o mesmo fenômeno
observado na seção sobre os dias santos. Contudo, embora muitas dessas práticas tenham
deixado de acontecer na comunidade São Domingos, na memória oral dos narradores ainda
reverberam as suas lembranças, que passaremos a abordar adiante.
Uma manifestação que não ocorre mais na dita comunidade é a “Encomendação de
almas” ou “Recomendação de almas”. Não obtivemos informações acerca do motivo do fim
dessa tradição, mas supomos que tenha sido pela falta de pessoas que se dispusessem a tomar
frente e organizar um grupo de encomendadores ou mesmo a falta destes para compor a
procissão.
110
Essa prática acontecia na Semana Santa, a última da Quaresma, que começa no
Domingo de Ramos e vai até o Domingo de Páscoa. Segundo a senhora N1F63i, o ritual é uma
manifestação lúgubre na qual os rezadores saem em procissão usando instrumentos sonoros,
cantando e rezando pelas almas dos mortos:
É, a minha mãe já, já já rezô, nóis tamém já participamo ua veiz. É assim, 'cê#
da hora qu' 'cê tá durmino, eles chega rezano, aí e[le]s tem um tal de berra-boi, é...e[les]# aí eles bate aquil' e urra, sabe? E então, é um f# acho que fei[to] de cuia, parece que é, e e[le]s joga muito milho na casa e aí 'cê fica caladim, né? E eles sai pidin', né, reza lá um Pai-Nosso pa alma da# de fulan', né? Pur'ixemp[l]o, igual, lá e[le]s pediu pa alma do meu pai, [ele] já tinha murrido, né? Antão, aí 'cê reza, aí e[le]s para um poquim até 'ocê rezá aquele Pai-Nosso. É ua coisa assim que até de fazê medo porque é de noi[te]# é depoir da meia-
noite. Antão, [as]sim depois que todo mundo tá dormino 'cê já acorda com o milho im cima da casa, 'quele barulho, né, barulho mer[mo], e do berra-boi tocano também, né? Aí 'ocê# e[le]s pega e reza, né, reza lá um Pai-Nosso pa alma de fula[no]# do do (...), que era meu tii. Aí 'cê rezava até e[le]s terminá [...] (N1F63i).
Evidenciamos que trata-se de uma manifestação tétrica, “de fazer medo”, que
acontece depois da meia-noite, quando as pessoas já se recolheram para dormir. Assim, estas
são despertadas com o alvejar de bagos de milho sobre o telhado e com o barulho de
instrumentos artesanais, como o berra-boi, para que ouçam o rogo dos encomendadores e rezem
em intenção das almas dos mortos. Nos excertos narrativos seguintes, podemos obter mais
detalhes acerca do ritual:
N4F78f - É, uai, era ép[oc]a incumendá as arma, né? N5M80f - Incumendava as arma. [...] N4F78f - Ixe# i[xe] ó. N5M80f - I[xe], nóis ia dimais. N4F78f - [A]cumpanhava direto. [...] N5M80f - Era se# seis dia. Num lemb[r]o, mais era seis dia. N4F78f - Trêir dia. N5M80f - Trêis dia. 'Cê saía nas casa, tinha ua#
N4F78f - Quarta, quinta e sexta [...]. É bunito, triste, a reza, né? N5M80f - Rez' assim: <<[a]lerta, alerta pecadores, óia lá que Deur não dorme, alerta>> (a partir da palavra "óia" a esposa acompanha o marido no canto). N4F78f - Era bunito dimair. Quando a gente acordava, e[le]s rezano na porta. N5M80f - Depoir falava assim, pidia os Pai-Nosso, né: <<reza lá um Pai-Nosso pas arma de seus parente, reza>> (a partir da palavra "pas", a esposa, em baixo tom, acompanha o marido no canto). Aí, os que tava de dento num podia cunversá nem nada, nem abri a porta. N4F78f - Tinha que rezá lá dento, caladim.
111
N5M80f - Aí e[le]s rezava caladim lá, né, a hora que terminava a reza, e[le]s# uns saía e chamava pra dento, otos# mair num era de regra não, entrá pra dento não, né? N4F78f - (expressa que não) Saía caladim, todo mundo correno. [...] N5M80f - Aí, saía dua casa ia pra otra.
O encomendar das almas é prática bastante antiga, que remonta à Idade Média. Para
Morais Filho (2002, p. 192), em sua obra sobre as festas e tradições populares no Brasil, “a
idéia que os cristãos da Idade Média faziam do Inferno era a mesma que tinham do Purgatório,
notando-se, porém, que neste último, as penas deixavam de ser eternas para serem por tempo
limitado”. Daí a inspiração que provavelmente deu gênese a rituais como a encomendação das
almas.
Passareli (2007, p. 1), em estudo sobre essa manifestação popular, sublinha que o
objetivo do ritual é aliviar as penas das almas dos mortos, alimentando-as com orações:
Consiste tal grupo, de herança ibérica, num conjunto piedoso de devotos que a altas horas da noite, sai pelas ruas no período da quaresma, entoando cânticos lúgubres em louvor às almas, rogando rezas em seu sufrágio e exortando os fiéis pecadores a corrigirem seus erros, sob a pena de serem condenados ao inferno.
Nos dizeres desse autor, a “Encomendação de almas” no Centro-Oeste do Brasil é
rara, sendo mencionados, em Goiás, apenas os municípios de Arraias, Trindade e Hidrolândia.
Em nosso estudo, pudemos constatar que na zona rural de Catalão-GO a manifestação era uma
expressiva prática cultural popular na comunidade São Domingos e, segundo as narradoras
N4F78f e N1F63i, permanece atualmente ativa na comunidade da Mata Preta, região vizinha:
É, lá [na comunidade São Domingos] tinha. Os mata preta faiz isso até hoje. (N4F78f). Eu já participei ua veiz, essa veiz qu'e[le]s tivero lá im casa, [por]que lá inda
tem, na Mata Preta e[le]s recumenda arma, né, ainda. (N1F63i)
Tomando como foco a composição usada nesse ritual, além dos cânticos já
constantes nas citações do corpus acima, extraímos mais esses trechos:
Só 'ocê# eu lembro bem qu'ela é cantada, né?: <<reza lá um Pai-Nosso e também ua Ave-Maria pa alma do (...)>>. Aí 'cê re[za]# aí e[le]s cala pr'ocê
rezá, e dá tempo do'cê rezá um Pai-Nosso cu a Armaria. Aí e[le]s fala dinov',
e[le]s cantapp dinov'. É trir[te] dimair, é muito, assim, é# (N1F63i)
112
Uai, es[sa] assim, se reún' os rezadô e ispera o pessoal durmi primero, depois 'cê chega na casa de[le]s, né, aí 'cê chega cumeça, acorda e[le]s cum berra-boi, é, matraca. (Imita o som do berra-boi) berra-boi, (imita o som da matraca) é a matraca, né? E 'ocê ca# aí 'cê canta: <<alerta alerta, pecadô, óia lá que Deus não dorme, alerta>>, aí 'cê percebe que'[le]s alertaro, que'[el]s acordô, aí cê vai pidi os Pai# as orações: <<reza lá um Pai-Nosso junto cua 've-Maria,
reza>>. Aí 'cê via lá Pai-Nosso tá tá tá tá tá tá tá tá 'té terminá, aí cê of[erecer]# vai pidi pra quem... e dipois na hora de i[r] imbora 'cê reza o bendito: <<bendito, louvado seja, bendito louvado seja, da# do santíssimo e do redentrô, dizeno que para sempre, dizeno que para sempr', para sempr' amém Jesus>> Aí sai, aí logo logo o povo: ou vem cá, vem tomá café. (risos). Nóis cumeçô c'uas deiz pessoa, cum seis dia tinha mai[s] de cinquenta atráis de
nóis, todo mundo vai atráis, né? (N3M79).
De acordo com as informações do corpus, as composições empregadas na
encomendação de almas são as orações do Pai-nosso e da Ave-Maria, rezadas pelos receptores
do grupo de encomendadores, e os cânticos que estes entoam em frente das casas visitadas,
pedindo para que os receptores se alertem (acordem) e rezem as orações supracitadas.
Acerca dos objetos rituais citados, assim como os bagos de milhos lançados sobre
os telhados, a função dos instrumentos, o berra-boi e a matraca, é a de despertar as pessoas do
sono ou, ainda, afugentar os maus espíritos. Para matraca, encontramos no Michaelis (2000) a
definição mais próxima ao contexto do corpus: um “instrumento formado de tábuas ou argolas
móveis que se agitam para fazer barulho e se usam em vez da campainha nas festas da Semana
Santa”. Para melhor visualização, vejamos a imagem abaixo:
Foto 4 - Matraca.
Fonte: <http://bit.ly/17Gyy2e>.
113
O berra-boi é outro instrumento citado pelos narradores como um dos objetos rituais
usados na encomendação das almas: “É, berra-boi 'cê furav' ua tabinha fininha, [a]marrav' um
cordão nela e tocav' ela [as]sim correno (imita o som do berra-boi)” (N5M80f). De acordo com
a definição do Michaelis (2000), o berra-boi, também conhecido por zunidor, é uma
pequena lâmina de madeira, amarrada na ponta de um cordel, que se faz girar segurando a outra ponta deste, e que, então, fendendo o ar, produz um som que se assemelha ao berro de um boi. É usado em algumas regiões do Centro e do Sul do Brasil, por ocasião da semana santa no cerimonial da encomendação das almas; zunidor.
Foto 5 - Berra-boi.
Fonte: <http://bit.ly/1wzC58N>.
A unidade léxica “berra-boi” nos chama a refletir mais atentamente sobre a relação
entre língua e cultura. Ora, numa cultura marcadamente rural, em que as pessoas estão
estreitamente vinculadas à lida com os animais, principalmente bovinos, suínos, equinos,
galináceos etc., é fácil visualizar que a motivação maior para o nome desse instrumento está no
seu som, que imita o berro de um boi, então, naturalmente, foi nomeado de “berra-boi”. Nesse
sentido, Oliveira e Isquerdo (1998, p. 7), parafraseando Vilela (1994), salientam que o léxico
“[...] representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse
nível da língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de
uma comunidade [...]”. Temos, então, que essa unidade léxica carrega e deixa transparecer
marcas da cultura de seus falantes, pessoas que vivem ou viveram a maior parte da vida na
“roça”.
114
Vale, ainda, trazer mais algumas informações concernentes à sua simbologia. De
acordo com o “Dicionário de Símbolos” de Lexicon (1990, p. 211), o zunidor – berra-boi no
léxico dos narradores – é um:
instrumento cerimonial utilizado somente por homens, sobretudo na Austrália, na África, entre indígenas e esquimós (sua visão é quase sempre proibida às mulheres); é uma tábua volteada com um buraco em uma das extremidades por onde passa um barbante, com que se gira o zunidor e se produz o som vibrante, interpretado geralmente como a voz dos espíritos, a voz do trovão ou da força viril circundante. É usado em ritos de chuva e da fertilidade. Na Grécia, o zunidor está ainda associado a orgias sexuais.
Percebemos que é um objeto cujo uso remonta a culturas bastante antigas, sendo,
portanto, um artefato pagão aos olhos da Igreja. Vemos, assim, uma forte evidência do caráter
popular dessa religiosidade, uma ressignificação de um objeto ritual que passou a fazer parte
de uma manifestação de identidade católica, mas popular.
Além da encomendação de almas, verificamos outro costume peculiar:
E aí quand'era na Sexta-fera da Paxão, o qu'eu achava importante é isso, o o tanto que 'quelas muié tinha fé lá, que o Cristo tava lá, ela chegava chorano cum coisa que era o fii dela que tinha morrido naquela hora, midino ele com a fita, né, o tamain, pegava aquela fita e guardava ca 'quela fé bruta, pra curá quarqué coisa [...]. Ela mi[dia]# a fita ela midia o tamain dele a fita, né, e guardava aquela fita, quan[do] sintisse sintisse sintisse ua dor, ela firvria
aquela fita e tomava a água, pronto, 'cabô, num tinha mair dore, né? Mais é o que, é a fé viva, né? (N2M82).
Vemos que à fita usada para medir a imagem do Cristo em exposição na igreja são
dadas propriedades terapêuticas, de maneira que o chá dessa fita tenha o poder de acabar com
dores. Trata-se de outro traço do catolicismo popular, o de dar a imagens, ícones de ídolos, mais
que uma simples representação de um santo ou deus – é acreditar e agir como se aquela imagem
significasse o próprio ser representado. É comum ver em visitas a imagens, como a imagem de
Nossa Senhora da Lapa na cidade de Vazante-MG, os crentes tocarem a imagem ou as fitas presas
ao altar na crença de que poderão, assim, num contato tão próximo, receber as graças desejadas.
No contexto em análise, podemos interpretar que o contato da fita com a imagem, no
momento da medição, fosse capaz de lhe transmitir o poder de curar, de acabar com as dores,
assim como se encerraram as dores de Jesus depois de sua morte na Sexta-feira da Paixão, dia em
que os cristãos lembram a crucificação, morte e sepultamento de Jesus. Isso nos remete à magia
115
de contágio, isto é, à ideia de que as coisas que estiveram em contato continuam a agir umas sobre
as outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico (FRAZER, 1982, p. 83).
Convém apresentar, ainda, outro aspecto que nos reporta ao conceito de
carnavalização de Bakhtin (1996) em sua obra “A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rebelais”. Em breve elucidação, explicamos que a
carnavalização é entendida por Bakhtin (1996) na cultura popular como um tipo de
emancipação, uma reconfiguração alegórica da vida cotidiana. No contexto do livro, cujo
intento é compreender a influência da cultura popular na obra do escritor renascentista François
Rabelais, Bakhtin demonstra a carnavalização na oposição entre o tom cômico na vida medieval
e o tom sério da ordem e ideologia da Igreja e do Estado feudal. Segundo o autor:
[...] a cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e ainda durante o Renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma data própria: os dias de festa e de feira. Essa praça entregue à festa, já o dissemos várias vezes, constituía um segundo mundo especial no interior do mundo oficial da Idade Média. (BAKHTIN, 1996, p. 133)
Portanto, para Bakhtin (1996) esse espaço público é onde se convergiam tudo que
não era oficial, ou seja, é um espaço de “exterritorialidade” do mundo da ordem oficial. Nesse
sentido, no excerto subsequente, apreendemos uma transição de um tempo de reclusão, de
preceitos, para um tempo de festa, de “fazê o que quisé”:
É, ficava tudo tampado de preto, né? E aí cumeçava a cantá tirano# semana santa num cantava, num tinha coral não. É, aí quando cumeçava a a# quando o padre levantava já cumeçava o corale e começava a tirá os os luto dos santo, né? [...] E aí tava livre, todo mundo, pronto, pudia fazê o quisé, bebê cachaça, pintá o caneco e tudo, né? [...] Aí quando era mei' dia (tosse), aí meu pai falava assim que interrô o Cristo, [in]tão 'cabô, todo mundo tá livre, aí nóis ia limpá fejão, mei' dia pa tar[de] (risos). Aí quand'era no sáb[ad]o nóis ia pras# pra Catalão [as]sisti a missa, quand'era nove hora tamém todo mundo tá liv[re] né, fazê o que quisé, bebê cachaça, cumê farofa, pintá o caneco (risos), né? (N2M82).
Então, esse tempo, depois de “enterrar o Cristo”, na Sexta-feira da Paixão, pode ser
comparado à praça pública medieval da qual Bakhtin (1996) fala, pois transcende-se de um
estágio de ordem, baseada na doutrina da Igreja, para outro impregnado de uma sensação de
liberdade para beber, para comer, para “pintar o caneco”40, ou seja, para os prazeres da vida.
Isso é carnavalizar. Tal característica pode ser notada, ainda, na linguagem, porque na Quarema
40 No dicionário Aurélio, Ferreira (2004) remete a locução “pintar o caneco” à outra, “pintar o sete”. Esta é definida
por Ferreira (2004) como “1. Praticar travessuras, diabruras, ou desatinos, desregramento; deitar e rolar”.
116
“num podia xingá” (N1F63i). Quer dizer, as palavras de baixo calão também eram/são evitadas
por estarem culturalmente eivadas de uma carga pecaminosa. Vejamos o organograma abaixo:
Organograma 10 – Quaresma.
Org.: o autor.
O que pretendemos, nesta seção, foi apresentar as expressões que, no cenário das
práticas de catolicismo popular na comunidade em estudo, dão o matiz e a funcionalidade
mágico-religiosa a invocações, rezas, benzeções, esconjuros dentre outras realizações
linguísticas, para os senhores e senhoras que narraram a nós suas experiências de fé e devoção,
aprendidas no seio da vivência em grupo (familiar ou comunidade), por meio da oralidade.
Quaresma
Preceitos
Não comer carnes vermelhas
Não xingar
Não assoviar
Colocar santos de luto
Fazer vigília
Entidades misteriosas
Assombrações
Mula-sem-cabeça
Lobisomem
Manifestações
Semana Santa
Encomendação de almas
Encomendadores
cântico de alerta e petição
Objetos rituais
Berra-boi
Matraca
Bagos de milho
Receptores da procissão
Pai-Nosso
Ave-Maria
Sexta-feira da Paixão
Enterrar o Cristo Ferver fita
Chá para curar dores
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando compreendemos a palavra em sua dimensão mágico-religiosa,
apercebemos um rico conjunto de práticas culturais e as muitas reminiscências que, lavradas no
texto oral, deixam transparecer referências a saberes, crenças e devoções de muito antes, de
épocas cuja datação não se pode precisar.
No decorrer do trabalho, a palavra, conforme denominamos o linguístico inerente
às práticas de religiosidade popular estudadas, revelou sua face mágico-religiosa no contexto
dos rituais, nos quais a língua é o principal canal para acesso ao que se crê estar além do humano
e suas limitações, o extra-humano.
Identificamos esse extra-humano nas figuras dos santos e santas, anjos, em Cristo
e em Deus. Assim, a fé, isto é, acreditar na existência desses seres, é um fator importante para
o uso das palavras com a intenção de alcançar determinado fim. Assim, compreendemos a
conjugação das representações de atos concretos e das composições orais, como forma de elevar
súplicas à acreditada esfera sobrenatural. Nesse sentido, evidenciamos a dimensão mágico-
religiosa da palavra, visto que esse acesso do ser humano aos seus acreditados seres dotados de
poder é realizado, sobretudo, mediante palavras ditas e/ou mentalizadas. Logo, a linguagem
humana é, também, uma abertura do ser à sua transcendência.
Todavia, a fé não se resume aos seres extra-humanos, pois se revela também no
acreditar no poder das palavras. Por exemplo, nos textos das benzeções para curar “cobreiro” e
“jeito”, o uso destas unidades léxicas é determinante, uma vez que representam a ação que se
almeja proceder: “cortar o cobreiro” é destituir-lhe de vitalidade, “costurar carne quebrada” é
restituir o músculo ao seu estado saudável. Outrossim, há palavras que podem gerar efeitos pelo
simples fato de serem oralizadas, como um “abuso” para com um santo - oralizar palavras de
menosprezo - e fazer xingamentos na Quaresma.
Constatamos a força da palavra, ainda, na manipulação do texto, como no “Credo
às avessas”, no qual o ato de dizê-lo “de trás para frente” é a chave para que manifeste seu poder
de afastar os males.
As palavras são usadas, também, para reproduzir ações que, outrora, acredita-se
terem surtido determinados efeitos. Assim, na oração ao Arcanjo Gabriel para abrandar uma
tempestade, a reprodução das passagens bíblicas que se referem, ao mesmo tempo, ao Arcanjo
Gabriel comunicando com Maria e ao Cristo acalmando uma tempestade no mar, se apresenta
como modo de alcançar esse objetivo mediante a similaridade das situações.
118
O entoar dos cânticos a Santa Maria Madalena para pedir chuva registrados no
corpus, embora possuam similaridades no conteúdo e na estrutura textual, demonstra que numa
mesma comunidade as práticas podem não ser todas iguais, o que salienta o seu caráter
dinâmico, próprio das culturas populares, que se reinventam para permanecer.
Aplicar a classificação de gêneros da LOT em nosso estudo despertou-nos para a
percepção de permanências de características nos textos orais que os diferem a partir da
intenção do seu uso, das situações de uso, das entidades a que são dirigidas e, ainda, das suas
minudências textuais (séries enumerativas, esboços narrativos). Assim, constatamos os gêneros
orais “esconjuro”, “oração”, “benzeção” e “cântico” que, acreditamos, são pertinentes à
comunidade em estudo, no enfoque que adotamos para enveredar pelo seu religioso popular.
Entendemos, ainda, que, ao abordar a cultura e a língua, estamos permanentemente
operando com a memória dos falantes, conhecendo suas experiências e saberes, dado que a
língua e a cultura, embora não paralelamente, se fazem e se refazem a partir das memórias
individuais e da memória coletiva dos sujeitos.
Nosso estudo não apenas quis compreender a pragmática mágico-religiosa da
palavra em contextos de catolicismo popular na comunidade São Domingos. Ao trazer este
objeto para o campo dos estudos linguísticos, em perspectiva cultural, acreditamos ter,
sobretudo, concedido um olhar multidisciplinar, possível porque assim a linguagem o é. Nas
suas multifacetas, este objeto poliédrico que é a língua com que se costuram culturas e tecem
memórias, o religioso foi considerado como uma possibilidade de se pensar a relação dos
senhores e das senhoras com a palavra e, sobremaneira, como pode ser uma visada para se
construir (e compreender) a história de seu lugar, de suas pertenças, de suas raízes.
Quando nos propusemos observar criticamente o terreno do sagrado de populações
rurais marcadas por uma religiosidade reinventada a partir daquela estabelecida pelo
catolicismo oficial, à medida que adentramos o mundo marcado pelas tradições, costumes e
valores enraizados nas relações que os homens e as mulheres estabelecem entre si dentro da
comunidade, o compreendemos através de sua mundividência, mesmo que não tenhamos
alcançado a plenitude desse baú de saberes, coletivamente construído e à disposição de quem
o deseja aprender.
119
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APÊNDICE - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
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ANEXO - PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
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