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Diversidade étnico-racial como proposta curricular de Matemática:
desafios para a implementação em escolas indígenas e quilombolas
Autora: Andréia Lunkes Conrado1
GD n° 05 – História da Matemática e Cultura
Resumo: Este projeto de pesquisa insere-se no campo de estudos denominado Etnomatemática, caracterizado por
investigar as relações existentes entre cultura, matemática e educação matemática. Procura estabelecer aproximações
desta área com os debates atuais do campo do currículo, colocando o foco nas questões de raça e etnia. Deste modo,
a proposta de pesquisa visa compreender de que maneira as tensões entre igualdade e diferença são vivenciadas na
prática profissional de professores de matemática do ensino fundamental nas escolas indígenas e quilombolas. Para
isso, toma como referência o conceito de recontextualização, que envolve as reinterpretações pedagógicas sofridas
entre os discursos presentes nos documentos curriculares oficiais e sua implementação nas salas de aula. Trata-se de
uma pesquisa de doutorado, em estágio ainda inicial.
Palavras-chave: Etnomatemática, Educação Matemática, Currículo, Diversidade;
1. APRESENTAÇÃO
O presente projeto de pesquisa de doutorado tem como objetivo central investigar o
processo de recontextualização e reinterpretação pedagógica de discursos e propostas apresentadas
nos documentos curriculares oficiais, assim como os desafios de sua implementação no interior da
sala de aula de matemática, no contexto das escolas indígenas e quilombolas. Do ponto de vista
teórico, a pesquisa fundamenta-se pelos estudos desenvolvidos no campo da Etnomatemática
procurando aproximá-los e confrontá-los com os debates travados no campo do Currículo no
Brasil.
Tendo em vista tais objetivos, toma como objeto de análise as propostas curriculares
oficiais de municípios brasileiros com população negra e indígena, os projetos políticos-
pedagógicos de escolas indígenas ou quilombolas localizadas nestes municípios e as propostas de
ensino de professores de matemática destas escolas. Para isso, assume a visão de currículo
defendida por Sacristán, entendendo-o como um processo que envolve, desde a estrutura do
sistema de ensino, até as atividades de aprendizagem realizadas no interior da sala de aula,
inseridas num contexto externo maior de influências sociais, econômicas e culturais (SACRISTÁN
& GOMES 1998, p. 130). Assume também as discussões atuais das teorias pós-críticas do
currículo, dando foco para as questões de raça e etnia, além de considerar reflexões traduzidas pela
1 Faculdade de Educação da USP; e-mail: andreialconrado@gmail.com; Orientadora: Cláudia Valentina Galian
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tensão entre igualdade e diferença, e entre conhecimento e poder, presentes na produção das
políticas curriculares (SILVA, 2007 e CANDAU, 2011).
Procura-se, deste modo, analisar como se dá o processo de recontextualização e
reinterpretação de saberes e propostas, reveladas pelos discursos oficiais dos documentos e
diretrizes curriculares nacionais, na sala de aula de matemática, num contexto de valorização da
diversidade cultural. Para isso, fundamenta-se nos conceitos de recontextualização e hibridismo
tratados de forma associada por Lopes em suas pesquisas2 sobre a política curricular.
Tal estudo visa contribuir para o aprimoramento desses dois campos de pesquisa –
currículo e etnomatemática – bem como, refletir sobre os desafios e avanços presentes na
implementação das políticas educacionais nacionais voltadas para a diversidade, em especial no
núcleo das relações étnico-raciais, tendo como foco a produção e implementação do currículo de
matemática.
Nessa perspectiva, busca responder a seguinte pergunta: De que modo e em que medida
é possível compreender os aspectos que caracterizam o uso e a implementação de propostas
curriculares oficiais, com ênfase na diversidade cultural, no ensino de matemática de escolas
indígenas e quilombolas?
2. JUSTIFICATIVAS
Nossa proposta de pesquisa se justifica a partir de alguns dilemas práticos, presentes no
processo de construção da política educacional nacional, por nós vivenciados como pesquisadora
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP/MEC3, e pelo aprofundamento
de estudos acadêmicos no campo do currículo. Tal reflexão também inclui estudos e experiências
produzidas no/com o Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática – GEPEm da FE/USP,
sobre a temática das relações étnico-raciais na educação matemática.
2.1 Das tensões entre igualdade e diferença no debate da política educacional nacional
Ainda que seja verdadeiro afirmar sobre os distanciamentos existentes entre a realidade da
escola e os discursos oficiais da política educacional nacional, não é possível negar que o cotidiano
2 Segundo Lopes, a associação ente os conceitos de recontextualização e hibridismo tem se revelado produtiva para
as pesquisas por ela produzidas sobre as políticas de currículo. Tais conceitos são ancorados nas teorias apresentadas
por Stephen J. Ball e Basil Bernstein.
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escolar revele, de algum modo, aproximações com os pressupostos e propostas apresentadas por
essas políticas.
Este jogo de influências da política educacional nas práticas escolares tem sido objeto de
análise de algumas pesquisas e seus resultados indicam a existência de uma tensão marcada pelos
traços de padronização e controle das políticas de avaliação, e pela defesa da diversidade e da
autonomia das políticas de currículo. Sobre as influências destas políticas no cotidiano da escola,
vale destacar o ponto de vista de Eyng, apresentado a seguir.
Os modos como a convivência escolar é percebida e normatizada no cotidiano escolar revelam
traços dos pressupostos advindos de políticas educacionais, fortemente influenciadas pelas relações
de poder e interesses econômicos. A influência de tais relações, intensificadas no contexto
contemporâneo, via processos avaliativos seletivos e regulatórios, atua nas políticas e práticas
curriculares. Constata-se que enquanto as políticas curriculares adotam como princípio a
diversidade, as políticas e práticas de avaliação estão marcadas pelos traços da padronização.
Assim, cabe analisarmos as percepções de professores e estudantes num contexto marcado pelas
tensões produzidas no jogo de influências e interesses que confluem na definição das políticas
educacionais de currículo e avaliação, definindo modos de convivência escolar. (EYNG et alli
2013, p.773 )
Neste cenário, a política de avaliação tem sido bastante problematizada por pesquisadores.
De um lado, há críticas em relação a sua centralidade e sua forte influência para o currículo e o
cotidiano das escolas (SOUZA 2003; FREITAS, 2012; BONAMINO e SOUZA, 2012;). Nesta
perspectiva, questionam o uso que tem sido feito dos resultados e os efeitos que os modelos
meritocráticos têm produzido no interior da escola, tais como: o estreitamento curricular, a
competição entre profissionais, o foco na preparação para os testes, a tendência a fraudes e o
aumento da segregação no interior da escola e no território. (FREITAS, 2005; FERNANDES e
FREITAS, 2007; BONAMINO e SOUZA, 2012). De outro lado, há argumentos formulados em
favor das avaliações de sistema, por seu potencial para subsidiar gestores e professores na melhoria
da qualidade da educação, bem como para o aprimoramento das políticas públicas (BAUER, 2010;
2012) ALAVARSE e MORAES, 2011; HORTA NETO, 2010, 2013). Nesta perspectiva, a
padronização, é vista como condição para certas análises comparativas e definem critérios comuns
que permitem analisar as condições aprendizagem de certos saberes, assumidos como “básicos” a
todo concluinte da educação básica no Brasil.
Esta problematização em relação à política de avaliação influencia, e é influenciado, por
outros conflitos similares presentes na política de currículo, revelados pela tensão entre a igualdade
e diferença (CANDAU 2011, p.14), ou diversidade e homogeneização (SILVA 2011, P. 85)
especialmente compreendidas numa perspectiva cultural. Nesse sentido, vale destacar a visão de
política curricular afirmada por Lopes,
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Toda política curricular é, assim, uma política de constituição do conhecimento escolar: um
conhecimento construído simultaneamente para a escola (em ações externas à escola) e pela escola (em
suas práticas institucionais cotidianas). Ao mesmo tempo, toda política curricular é uma política cultural,
pois o currículo é fruto de uma seleção da cultura e é um campo conflituoso de produção de cultura, de
embate entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e construir o mundo. (Lopes
2004, p. 111)
Desse modo, ao assumir o currículo como produto da uma seleção da cultura, é possível
reconhecer que muitos saberes e conhecimentos, específicos de certos grupos, têm sido ocultados
das propostas curriculares e das salas de aula, e da sala de aula de matemática em particular. Com
isso, muitos movimentos sociais brasileiros, de caráter identitários, têm reivindicado a afirmação
de suas diferenças culturais na política educacional, no sentido de garantir uma educação para os
direitos humanos. (CANDAU, 2011).
2.2 A diversidade como proposta curricular de matemática
Passadas quase duas décadas da produção dos parâmetros curriculares no Brasil, muitos
estudos têm sido produzidos com o objetivo de avaliar estas propostas e as perspectivas teórico-
metodológicas por elas assumidas, tanto para a educação de modo geral, quanto para as disciplinas
escolares em particular. Tomamos como referência para este projeto as análises produzidas no
campo da política curricular, em geral, (LOPES, 2006; GATTI, BARRRETO e ANDRE, 2011;
BARRETO, 1995, 2013) e no campo do currículo de matemática, em particular (GODOY e
SANTOS, 2012; SANTOS 2008; PIRES, 2008).
Tais análises nos permitem afirmar que, embora as propostas curriculares nacionais tenham
surgido sem o caráter de obrigatoriedade, elas serviram como referência comum para o
desenvolvimento de inúmeras propostas curriculares de estados e municípios, documentos que
exercem, em maior ou menor grau, influências no trabalho desenvolvido pelas escolas. Neste
aspecto, vale destacar o estudo organizado por Sampaio, desenvolvido por solicitação do MEC em
2010, no qual foram analisadas 60 propostas curriculares de ensino fundamental e médio. A autora
conclui que:
Quanto à fundamentação das propostas, é central a concordância com as indicações legais e com
as perspectivas teóricas presentes nas orientações oficiais centrais, principalmente a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Brasil, 1996), as diretrizes e os parâmetros curriculares
nacionais, os fundamentos da psicologia da aprendizagem na perspectiva do construtivismo.
(SAMPAIO 2010, p. 2)
Neste sentido, Barreto afirma sobre a relevância de estudos sobre as propostas curriculares,
na medida em que estes textos produzem discursos que têm sido considerados como “verdades”,
oficializando saberes e legitimando posturas (BARRETO, 1998 p.7). No campo da educação
matemática, alguns autores também têm apresentado críticas ao modo como estes parâmetros têm
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sido assumidos de “forma dogmática”, como “textos sagrados” (KILPATRICK e SILVER 2004,
p. 84). Neste sentido, Kilpatrick afirma que um dos principais desafios dos educadores
matemáticos, para as próximas décadas, é fomentar uma tradição de reflexão crítica sobre o seu
próprio trabalho. Para o autor:
“Esta forma de ver a reflexão conduz-nos a um desafio final para a próxima década, neste caso para
o NCTM como organização profissional: fomentar a utilização dos seus princípios e normas, não
apenas como soluções propostas, mas também como instrumentos para uma melhor compreensão
da natureza dos problemas e desafios. (...) Recomendações sobre o ensino e a aprendizagem têm
de ser tomadas como necessariamente indeterminadas e requerendo interpretação” (KILPATRICK
e SILVER 2004, p. 84-85).
Apesar de reconhecermos esta evidente padronização de propostas curriculares locais, em
relação à reprodução de fundamentos das propostas oficiais nacionais, também é preciso
considerar alguns estudos que evidenciam também uma busca permanente de escolas, municípios
e estados por formas inovadoras e diferenciadas no trabalho com as disciplinas. De acordo com
Sampaio,
Cabe ressaltar ainda que, nas propostas que se destacam por elaborações diferenciadas, é
indiscutível o ganho na fundamentação das disciplinas e o esforço de considerar a especificidade
regional e local. Em direções diferentes, há certas propostas que expressam principalmente o
aprofundamento do referencial, com detalhamento rigoroso, e outras que se destacam pela análise
pormenorizada de suas características regionais e da heterogeneidade de suas escolas, como norte
para quaisquer de suas proposições. Ainda que referenciadas nos PCN, resultam diferentes, sendo
justificadas por sua perspectiva de formação e por seu modo de entender o atendimento às
necessidades de sua rede de escolas. (Sampaio, 2010 p. 5)
Diante das justificativas, este estudo espera contribuir com o campo do currículo em suas
análises sobre os currículos prescritos e praticados, construindo avanços no sentido indicado por
Godoy e Santos,
Encontramos, nas palavras de Pires, uma possibilidade de investigação mais teórica a respeito do
currículo de Matemática da Educação Básica. Uma proposta que privilegie menos os currículos
prescritos e praticados e mais os princípios e as dimensões que norteiam a organização do currículo de
Matemática escolar; que favoreça as emergências discursivas que são possíveis a partir da articulação
entre o saber escolar matemático, a cultura e algumas ideias do campo do currículo, tais como poder,
resistência e política. (GODOY E SANTOS 2012, p. 255)
3. UMA PROPOSTA DE PESQUISA
Dado o considerado em relação às políticas curriculares e as tensões entre igualdade e
diferença, e seus desdobramentos para o currículo de matemática, a proposta de pesquisa aqui
delineada busca analisar um conjunto de dez propostas curriculares de ensino fundamental
de municípios brasileiros, reconhecidas pelo tratamento dado à temática da diversidade
cultural em sua elaboração. De modo complementar, espera-se investigar um conjunto de
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quatro escolas indígenas e/ou quilombolas desses municípios, selecionadas a partir do modo
como usam e implementam tais orientações curriculares, assumindo seus pressupostos.
Tal proposta de estudo toma como referência e ponto de partida, os estudos desenvolvidos
por Barreto (1995) e Sampaio (2010) nos quais foram analisadas propostas curriculares de ensino
fundamental e de ensino médio, desenvolvidas por Estados e Municípios brasileiros. Os dois
estudos revelam momentos históricos diferentes, um anterior e outro posterior, à elaboração dos
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs produzidos na década de 90.
A pesquisa de Barreto analisou as propostas de ensino fundamental dos Estados e de alguns
Municípios das capitais em relação aos seguintes aspectos: estrutura básica das propostas; processo
de produção; pressupostos e traços dominantes; flexibilização e integração dos conteúdos; a
ordenação dos tempos escolares (BARRETO 1995). O estudo de Sampaio, desenvolvido por
solicitação do Ministério da Educação, selecionou 60 propostas de ensino médio e fundamental e
procurou analisar “tendências, regularidades e singularidades” encontradas nestas propostas
(SAMPAIO, 2010, p. 1). Foram privilegiados na análise os seguintes aspectos: “as orientações
curriculares, seus objetivos, sua fundamentação e organização prevista para o ensino e para o
currículo, as orientações metodológicas e a avaliação”.
A partir da pergunta central da pesquisa, de início apresentada, espera-se analisar o modo
como as tensões entre igualdade e diferença são vivenciadas na prática profissional de professores
de matemática destas escolas. De modo a compreender em que medida se afastam ou se
aproximam das propostas curriculares oficiais de seus municípios e dos pressupostos defendidos
nos documentos produzidos pela escola, tais como projetos político pedagógicos, planos de ensino
ou propostas de avaliação.
Diante desta pergunta é possível formular os seguintes objetivos, para a investigação:
Compreender o modo como os documentos curriculares oficiais de diferentes municípios
e escolas, indígenas e quilombolas, assumem as especificidades de sua cultura ou
reproduzem perspectivas gerais comuns, em relação ao ensino e aprendizagem da
matemática.
Identificar e analisar os desafios vivenciados pela escola indígena e quilombola na
implementação de suas propostas curriculares no contexto da sala de aula de matemática
do ensino fundamental.
Levantar subsídios para aprimorar o processo de construção e produção de propostas
curriculares de matemática com foco na diversidade cultural;
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Nossa pesquisa tem como objetivo específico investigar e compreender os desafios e
avanços presentes na implementação de currículos de matemática – que tomam como referência a
diversidade étnico-racial como proposta curricular, em escolas indígenas e quilombolas.
4. MÉTODO: UM CAMINHO PARA A PESQUISA
Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, que privilegia a análise documental e a
realização de entrevistas com agentes escolares em uma amostra intencional de escolas e
municípios, caracterizados pela forma como assumem a diversidade étnico-racial em suas
propostas curriculares.
São previstas as seguintes fases para o desenvolvimento da pesquisa:
1ª fase: Levantamento de propostas curriculares, de ensino fundamental, de municípios com
presença de população negra ou indígena, que assumam uma perspectiva cultural do currículo.
2ª fase: Descrever e analisar os documentos oficiais de dez municípios selecionados tendo como
categoria principal de análise a inserção do currículo de matemática nesta proposta.
3ª fase: Identificar e selecionar quatro escolas indígenas e/ou quilombolas, localizadas nesses
municípios e, analisar documentos produzidos pela escola (projeto político pedagógico, planos de
ensino, propostas de avaliação) que possam revelar os modos como esta proposta se efetiva na sala
de aula de matemática.
4ª fase: Realizar visita a essas escolas selecionadas para coletar materiais que possam subsidiar
uma análise sobre a implementação e o uso destes documentos oficiais na sala de aula de
matemática. É previsto nesta etapa a realização de entrevistas com gestor(es) e professor(es) de
matemática, assim como o levantamento de materiais e/ou outras produções da escola.
5ª fase: Análise dos materiais coletados e consolidação dos resultados da pesquisa.
5. FUNDAMENTOS
De modo geral, estaremos em busca de respostas a nossa pergunta de pesquisa apoiada nos
estudos etnográficos desenvolvidos na linha de pesquisa em Etnomatemática – e, por isso, inserida
no campo de estudos em Educação Matemática – e sua interface com o campo do Currículo, em
especial, com as questões encaminhadas pelas teorias pós-críticas do currículo (SILVA, 2011).
Tomada essa perspectiva, assumimos a centralidade da análise textual e discursiva das
políticas de currículo, compreendendo-as como texto e discurso. De modo complementar,
entendemos a produção destas políticas como “uma produção de múltiplos contextos sempre
produzindo novos sentidos e significados para as decisões curriculares nas instituições escolares”
(LOPES, 2006, p. 39).
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Assim, consideramos também para esta análise a concepção defendida por Sacristán de
currículo como processo de interação entre contextos, entre sujeitos e entre o que está manifesto
ou o que está oculto. Neste sentido, o afirma o autor:
(...) o currículo é um âmbito de interação no qual se entrecruzam processo, agentes e âmbitos
diversos que, num verdadeiro e complexo processo social, dão significado prático e real ao mesmo.
Somente no marco de todas essas interações podemos chegar a captar seu valor real, daí que é
imprescindível um enfoque processual para entender a dinâmica que dá significado e valores a um
currículo concreto (...). (SACRISTÁN 1998, p. 129).
Neste sentido, o autor identifica cinco âmbitos que podem modelar o currículo, quais
sejam: o do contexto exterior de influências sociais, econômicas e culturais; o da estrutura dos
sistemas de ensino; o da organização e ambiente da escola; o do ambiente da sala de aula e o das
atividades de ensino-aprendizagem (SACRISTÁN 1998, p. 130). De modo similar, Stephen Ball,
outra referência que tomamos na pesquisa considera três contextos de produção das políticas
educacionais que revelam as “arenas de ação públicas e privadas” nas quais se constroem as
políticas:
a) contexto de influência, onde normalmente as definições políticas são iniciadas e os discursos
políticos são construídos; onde acontecem as disputas entre quem influencia a definição das
finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam nesse contexto as redes
sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das agências
multilaterais, dos governos de outros países cujas políticas são referência para o país em questão;
b) contexto de produção dos textos das definições políticas, o poder central propriamente dito, que
mantém uma associação estreita com o primeiro contexto; e c) contexto da prática, onde as
definições curriculares são recriadas e reinterpretadas. (BALL apud LOPES 2004, p.112):
5.1 – Recontextualização e Hibridismo nos discursos curriculares
A forma como a produção das políticas curriculares se dá pode ser melhor compreendida
se adotamos os conceitos de recontextualização e de hibridismo tomados como centrais para os
estudos no campo do currículo. Dentre muitos trabalhos, tomamos como referência para este
estudo as produções de LOPES (2004, 2005, 2006) e GALIAN (2009, 2011).
Para estas autoras, no processo de recontextualização, os textos oficiais são reinterpretados
e transformados desde o campo de produção até o campo prático da sala de aula. Neste processo,
novos textos são produzidos numa tentativa de adaptação a cada contexto. Nesta tentativa de
equacionar diferentes perspectivas e objetivos, os textos passam a revelar discursos híbridos,
carregados de ambiguidades, num processo denominado por Lopes de “bricolagem” que vai
revelando novos sentidos e significados aos fundamentos presentes no discurso oficial. Para Lopes,
são exemplos destes hibridismos:
Particularmente nas atuais políticas de currículo no Brasil, as mesclas entre construtivismo e
competências; currículo por competências, currículo interdisciplinar ou por temas transversais e
currículo disciplinar; valorização dos saberes populares, dos saberes cotidianos e dos saberes
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adequados à nova ordem mundial globalizada são exemplos de construções híbridas que não podem
ser entendidas pelo princípio da contradição. Não se trata de elementos contraditórios em que um
não existe sem o outro, tampouco podem ser explicados apenas por distinções e oposições. São
discursos ambíguos em que as marcas supostamente originais permanecem, mas são
simultaneamente apagadas pelas interconexões estabelecidas em uma bricolagem, visando sua
legitimação. Dessa forma, os múltiplos discursos das políticas assumem a marca da ambivalência,
pela qual há possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria (Lopes 2005,
p.57).
Ao tomar como fundamento para este estudo os conceitos de recontextualização e
hibridismo, as dimensões macro e micro do processo de criação e implementação do currículo e
os contextos de produção da política curricular, esperamos construir uma visão mais ampla sobre
as questões e tensões que envolvem a implementação de um currículo de matemática no interior
das escolas indígenas e quilombolas.
5.2 Contribuições da Etnomatemática para a educação das relações étnico-raciais
Os pressupostos aqui assumidos em direção a uma educação para a diversidade, têm sido
bastante discutidos na produção acadêmica no campo da Etnomatemática, e os resultados das
experiências concretas com pesquisadores, professores e comunidades, indicam muitas
contribuições para o processo de construção de uma política curricular nesta área.
Voltando-se para o interior das disciplinas escolares, em particular, no campo da Educação
Matemática, é possível reconhecer que a Etnomatemática, tem assumido um posicionamento em
favor de uma abordagem mais cultural e histórica no ensino de matemática, privilegiando a
diversidade cultural como eixo central para o trabalho escolar.
Desde 2005, em nossa dissertação de mestrado sobre as pesquisas acadêmicas nesta área,
reconhecemos a etnomatemática como um fértil campo de estudos, ao revelar elementos que
reforçam a tese do conhecimento matemático como produção cultural, situada historicamente no
interior de cada comunidade, povo e contexto. Também reconhecemos, naquele momento, a
importância de tais reflexões para uma educação matemática mais inclusiva, indicando caminhos
e possibilidades para o seu uso na sala de aula de matemática, no sentido de garantir uma
aprendizagem mais significativa e uma educação mais transformadora (CONRADO 2005, p. 114).
Ao privilegiar cada vez mais o foco no contexto escolar, a etnomatemática tem tomado
algumas posições na tensão entre igualdade e diferença, e desse modo, tem avançado em propostas
e práticas, construídas em meio a muitos debates e desafios. Tais desafios podem ser
exemplificados na análise de MONTEIRO E NACARATO apresentada a seguir.
Pesquisas no campo da Educação Matemática e, em especial, da Etnomatemática (KNIJNIK, 2002;
MONTEIRO, 2002; SCHMITZ, 2002, dentre outras) indicam possibilidades de interação entre os
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saberes cotidiano e escolar que diferem da proposta nos documentos. Dentre elas, destacamos aqui
a de coexistência desses dois saberes, numa perspectiva de interação dialógica que enfatiza a
diversidade de abordagens de um determinado problema como elemento constitutivo do que
entende por Matemática sem sobreposição de saberes; ao invés disso, aborda-a (considera-a) numa
perspectiva de reconhecimento e valorização das multiplicidades de saberes e fazeres presentes em
diferentes práticas sociais – consideração segundo a qual o saber escolar não se configura apenas
como fruto de uma transposição de saberes científicos, mas também como um saber construído pela
prática escolar. Dessa forma, a prática pedagógica escolar se constituiria numa prática de denúncia
e inclusão de saberes subjugados e excluídos. (MONTEIRO e NACARATO 2005, p. 176).
Embora se reconheça o crescimento das pesquisas em etnomatemática que privilegiem esta
dimensão educacional, no sentido escolar, tais estudos ainda são considerados insuficientes e
alguns estudiosos tem colocado este tema em debate, como apresenta Domite:
De fato, a etnomatemática tem sido, por um lado, muito bem sucedida ao desenvolver-se em
educação como um modo de explicitar/legitimar as relações quantitativas e espaciais implícitas
no saber-fazer de um grupo, de modo a revelar – da técnica ao significado - as diferenças, de um
grupo social/étnico para outro, no que se refere às relações matemáticas2. De outro lado, mesmo
que para D’Ambrósio (1990), a grande preocupação do ponto de vista da educação, assim como o
passo essencial para a difusão da etnomatemática está em levá-la para a sala de aula, é possível
afirmar que ainda está engatinhando o movimento no sentido da etnomatemática como prática
pedagógica. E por quê? O que se passa na dinâmica de operacionalização do âmbito escolar que
possa dificultar a incorporação dos propósitos da etnomatemática? (DOMITE, p. 85)
Em relação ao tema das relações étnico-raciais e a construção de escolas específicas de
grupos culturalmente distintos, tem sido frequente e crescente o número de teses e dissertações na
área, em especial em relação a educação escolar indígena. Neste caso, destacamos aqui os trabalhos
acadêmicos de MACHADO (2006) e FERREIRA (2005), produzidos pelo Grupo de Estudos e
Pesquisas em Etnomatemática – GEPEm, orientados por Domite assim como as experiências
realizadas na formação do professor indígena do Estado de São Paulo. No que se refere à
questão mais específica sobre a cultura negra e o tema da africanidade, o GEPEm tem se destacado
pelos recentes estudos que tem produzido nesta área, dentre os quais podemos citar SILVA (2008)
e SANTOS (2009).
Concluímos assim, reafirmando nossa fundamentação neste campo de estudos,
reconhecendo ainda suas limitações e lacunas, com o desejo que este projeto possa contribuir com
os desafios aqui apresentados, em especial o da construção das escolas indígenas e quilombolas.
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