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Conselho Consultivo Berthold Ölze – Universität Passau Cássio Fernandes – UFJF Durval Muniz – UFRN Estevão Martins – UnB Jörn Rüsen – Kulturwissenschaftliches Institut - Essen José Carlos Reis – UFMG Oliver Kozlarek – Universidade de Morelia Pedro Caldas – UFU René Gertz – UFRGS Valdei Araújo – UFOP Sérgio da Mata – UFOP Prof. Dr. Jurandir Malerba – PUC-RS
Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Oiti Berbet Júnior
Prof. Dr. Cristiano de Alencar Arraes Prof. Dr. Luis Sérgio Duarte da Silva
Diretoria
Daniele Maia Tiago Flávio Silva de Oliveira Frederick Gomes Alves
Kaio Bruno Alves Rabelo Makchwell Coimbra Narcizo
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 1, agosto/ 2009 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Apresentação
A Revista de Teoria da História representa um esforço, tanto de discentes
quanto por parte dos docentes, de transmissão do conhecimento histórico na área
de teoria da história. Após cerca de três anos de gestação da idéia de se construir
um espaço que veicule a produção acadêmica em Teoria da História, que permita o
debate entre seus profissionais e que ao mesmo tempo fomente a pesquisa,
finalmente dá-se a luz a este espaço incorporado na Revista de Teoria da História.
Inúmeras são as dificuldades inerentes a tal empresa – a criação de uma
revista –, dificuldades estas potencializadas quando se trata de um campo de
pesquisa marginalizado, dentro de uma área, as ciências humanas, também pouco
valorizada. O esforço torna-se ainda mais dispendioso quando se trata de levar a
cabo tal tarefa em um país que pouco investe em ciências que não geram uma
intervenção técnico-instrumental em sua realidade social. Todavia, isto não
significa que os historiadores devam desistir de seu ofício.
A problemática intensifica-se quando se toca na temática: Teoria da
História; como diz Estevão de Rezende (UnB), em sua grande maioria, aqueles que
se dedicam à disciplina histórica, não encontram funcionalidade em Teoria da
História, entendendo-a como uma atividade ociosa e de mera especulação. Uma vez
mais, esta revista exprime a tentativa de aproximar a Teoria da História dos
historiadores, e mostrar que a reflexão acerca do que fazem os historiadores
quando fazem história, seja aqui em Goiás como em qualquer outro local, é de
fundamental importância para o progresso cognitivo da ciência histórica e sua
aproximação à realidade social.
Não obstante, diante de tantos problemas a Revista de Teoria da História
ganhou força graças ao apoio de inúmeros colaboradores, entre os quais temos o
prazer de agradecer: a Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás na
pessoa de Leandro Mendes Rocha; à ANPUH Nacional pelo apoio na divulgação; ao
DCE-UFG. Gostaríamos de agradecer em especial à revista Temporalidades por nos
municiar do conhecimento necessário à estruturação de um periódico, pelo tempo
e atenção desinteressadamente a nós dedicados. Não podemos deixar passar em
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branco o fundamental auxílio daquela que executou a construção da página da
revista: Juliana.
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SUMÁRIO
2 Apresentação
5 A filosofia da história de Walter Benjamin. Josias José Freires Jr. 19 O conceito de vivência em Wilhelm Dilthey: a fulgura da historicidade
da existência. Rodrigo Fernandes da Silva 32 Leituras do historicismo antes e depois do Holocausto: Rüsen e
Benjamin. Prof. Luiz Sérgio Duarte da Silva 43 A história e a escrita da história: Uma análise sobre o papel que a
narrativa exerceu no debate sobre o conhecimento histórico. Makchwell Coimbra Narcizo
66 Jürgen Habermas e a modernidade: desdobramentos preliminares para uma filosofia da história.
Gustavo Lourenço de Carvalho 78 Da autenticidade à historicidade.
Kaio Bruno Alves Rabelo 100 Normas Editoriais.
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 1, agosto/ 2009 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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A Filosofia da História de Walter Benjamin.
Mestrando Josias José Freire Jr. Universidade Federal de Goiás.
E-mail: freire.josias@gmail.com RESUMO
Neste texto esboçaremos alguns idéias acerca das relações entre reflexões sobre a história e sobre a linguagem. A partir do comentário de algumas idéias do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) pontuaremos a possibilidade de incrementar as reflexões sobre a história a partir da problematização de suas idéias. Por elaborar um conceito de típico de linguagem, como medium produtor, limite e possibilidade do conhecimento, o filósofo articulou tal conceito prenhe de atualizações frente às demandas contemporâneas. Ao apresentarmos o conceito de história de W. Benjamin a partir de suas idéias acerca da linguagem trazemos o tema da linguagem à teoria da história, visando discussões sobre caráter lingüístico, tanto do objeto da história quanto do conhecimento histórico. PALAVRAS-CHAVE: História, filosofia, linguagem.
ABSTRACT This paper aim is to sketch some indicators about the relationship between reflections on the history and the language. From the comments of some ideas of German philosopher Walter Benjamin (1892-1940) appears us the opportunity to enhance the reflections on the history from the questioning of his ideas. To draw up a typical concept of language,medium producers, possibility of knowledge, the philosopher articulated this concept laden with the demands facing contemporary updates. To present the concept of history of W. Benjamin from his ideas about language to bring the issue of language to theory of history, to discussions on linguistic character of both the object of history as history knowledge. KEYWORDS: history, philosophy, language.
“Um problema central do materialismo histórico a ser finalmente considerado: será que a compreensão marxista da história tem que ser necessariamente adquirida ao preço da visibilidade da história? Ou: de que maneira seria possível conciliar um incremento da visibilidade com a realização do método marxista? [...]”.
Walter Benjamin (BENJAMIN, 2006, p. 503).
“O curso da história como se apresenta sob o conceito de catástrofe não pode dar ao pensador mais ocupação que o caleidoscópio nas mãos de uma criança, para a qual, a cada giro, toda ordenação sucumbe ante uma nova ordem. [...] – O caleidoscópio deve ser destroçado”.
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Walter Benjamin, (BENJAMIN, 1989, p. 154).
Neste texto apresentarei algumas idéias do filósofo alemão Walter Benjamin
(1882-1940) com o objetivo de atualizar algumas categorias de seu pensamento e
aproximá-las de reflexões na área da teoria da história.
Primeiro farei algumas considerações sobre a teoria da história, para em
seguida explicitar algumas idéias de Walter Benjamin a partir de alguns de seus
leitores para que então possamos trabalhar sobre algumas categorias das reflexões
benjaminianas, atualizando-as para a teoria da história contemporânea.
A teoria da história é a reflexão acerca dos limites e possibilidades do
pensamento histórico. As reflexões dentro do campo de teoria da história são
marcadas pelas discussões acerca do estatuto do conhecimento histórico, seu grau
de cientificidade, suas possibilidades e limites na tarefa de conhecer o passado.
Para tanto, reconhecemos a tarefa da teoria da história como auto-reflexão
necessária e permanente:
“Auto-reflexão, como retorno ao processo cognitivo de um sujeito cognoscente que se reconhece reflexivamente nos objetos de seu conhecimento [...]” (RÜSEN, 2001, p. 26).
Esta auto-reflexão tem por objetivo apresentar os elementos que determinam o
conhecimento histórico, as categorias que balizam o saber histórico, ao mesmo
tempo que possibilita a reflexão crítica sobre as possibilidades e os limites da
produção historiográfica (RÜSEN, 2001, p. 29).
No livro Razão Histórica (RÜSEN, 2001), precisamente no Apêndice à edição
brasileira (RÜSEN, 2001, p. 149), o teórico da história J. Rüsen faz algumas
considerações sobre a constituição narrativa do sentido histórico1, evidenciando
algumas características do conhecimento histórico e a idéia da narrativa como uma
racionalidade típica da constituição histórica de sentido (RÜSEN, 2001, p. 153). A
idéia principal do teórico alemão é que a narrativa histórica, por suas
características peculiares enquanto elemento de constituição de sentido, apresenta
uma forma de racionalidade específica. J. Rüsen enfatiza um das grandes questões
1 Isto é, a forma com que a narrativa acerca do passado – resultado da produção do conhecimento histórico – nos remete à nossa própria condição histórica, figurando como elemento constituído de sentido, orientação existencial no tempo.
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que a ciência da histórica enfrenta nas últimas décadas: a ‘fragilidade’ do
paradigma científico oriundo das experiências catastróficas do século XX coloca na
berlinda a idéia da história científico-positivista, como fora concebida no século
XIX:
“Na medida em que o progresso apareça como catastrófico em si, a racionalidade do pensamento histórico explicitada por paradigmas sucumbe à crítica radical.” (RÜSEN, 2001, p. 167).
Frente à crítica radical, aparece como tarefa fundamental da teoria da história, o
trabalho crítico na direção de incorporar e responder as demandas dessa crítica,
em direção a um conhecimento histórico sustentado por uma teoria apta a tais
questionamentos. Outra das tarefas da teoria da história é, pois mapear as
“composições” críticas radicais que desqualificam o discurso histórico a ponto de
comprometer a as perspectivas orientadoras das ações das mudanças produzidas
pela história como ciência. O que está em jogo é a tensão entre as críticas radicais e
a necessidade de reorganizar teoricamente o conhecimento histórico, o adaptando
ao paradigma contemporâneo, consciente da crise do legado moderno.
As conseqüências políticas de uma desqualificação do discurso histórico
seriam desastrosas; de acordo com o teórico alemão, devemos opor as reflexões
sobre as possibilidades – e os limites – da razão contra tal desqualificação (RÜSEN,
2001, p. 167).
Reconhecendo tais desafios para a teoria da história nos propomos buscar,
no pensamento de Walter Benjamin1 a possibilidade de apresentar à
problematização crítica a constituição histórica de sentido pela via da teoria da
história presente no pensamento do filósofo, mesmo que tal via seja a via negativa2
da constituição de sentido (RÜSEN, 2001, p. 172).
Para tal empreita propomos fazer algumas considerações sobre o
pensamento de Benjamin a partir de alguns de seus leitores para posteriormente
1 Está explícito no Apêndice da obra de J. Rüsen em questão, a influência das idéias de W. Benjamin quanto a necessidade de incorporar reflexões sobre as experiências catastróficas da modernidade na história (cf. nota 31 do Apêndice, p. 171) 2 A idéia de uma reflexão sobre a constituição de sentido via negativa, está de acordo as propostas da filosofia da história de Walter Benjamin, tanto no que se refere à sua tarefa política, explícitas nas teses “Sobre o Conceito de História” (BENJAMIN, 1994, p. 222), quando à teoria do conhecimento benjaminiana, exposta ao longo de toda sua obra, especialmente no livro sobre o drama barroco alemão (BENJAMIN, 1894, p. 69).
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apresentarmos algumas considerações nossas. Aqui especificamente trabalharei
com as idéias de Walter Benjamin acerca de sua teoria do conhecimento. As
reflexões que apresentamos são partes de um projeto que desenvolvemos a cerca
de três anos, que tem como objetivo ‘atualizar’ o pensamento de Benjamin para
teoria da história.
Em seu livro Alegorias da Dialética (MURICY, 1998), Kátia Muricy apresenta
a teoria do conhecimento de Benjamin (no capítulo intitulado ‘O Ser das Idéias’
(MURICY, 1998) explícita nos conceitos benjaminianos de Apresentação
(Darstellung) e Origem (Ursprung). Partindo das reflexões precedentes sobre as
propostas benjaminianas de ‘expansão’ do conceito de experiência kantiano e
sobre considerações acerca da teoria da linguagem de Walter Benjamin, Muricy
mostra o trabalho de superação da filosofia do sujeito a partir da ruptura entre
verdade e conhecimento onde a verdade – verdade é exposição – é a essência
comunicada pela linguagem – nesta concepção mística da linguagem se apresenta
uma crítica radical do conceito instrumental da linguagem, que vê na língua,
apenas um meio de comunicação. Da idéia emerge – pela apresentação – o mundo
empírico re-historicizado (na idéia), através dos fragmentos dos fenômenos,
mediados pelos conceitos e expostos no Ser das idéias.
Assim é reconhecido um co-pertencimento entre o conteúdo de verdade –
pela via da crítica – e o conteúdo material – o substrato empírico. O mundo
empírico é encontrado pelo empirismo radical – imersão no mundo dos fatos
(MURICY, 1998: 41). Esse retorno da linguagem à história (MURICY, 1998, p. 41) é
o reconhecimento da categoria de origem não como temporalidade, mas como
descontinuidade do tempo, como quebra do continuum, como petrificação da
história. Ainda:
“Apresentar as idéias é estabelecer relações intensivas, é interpretar. Interpretação ou apresentar idéias diz respeito a uma historicidade específica onde, fora do encadeamento causal e dos procedimentos conceituais abstratos, procura-se uma outra articulação entre o devir do sensível e a permanência do inteligível, entre o particular e o universal” (MURICY, 1998, p. 41).
Nessa mesma direção estão algumas idéias do crítico Stèphane Moses,
expostas no seu texto Ideas, Names, Star: On Walter Benjamin’s Metaphors of Origin
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(MOSES, 1993). O conceito de origem (Ursprung) é desdobrado a partir de seu
significado dual, de restauração da revelação – o originário – e o significado da
incompletude da natureza dessa restauração. Essa ambivalência perfaz tanto a
categoria de origem, como a idéia de retorno e redescobrimento da verdade. A
imersão no conteúdo material e a exposição do conteúdo de verdade, a anamnesis
como retorno primeiro a verdade não-histórica, mas imanente à história (não
submetida ao mundo histórico, mas presente nele), exibe o tripé da teoria do
conhecimento de Benjamin com as idéias da Apresentação da verdade, a idéia de
Origem e sua concepção da Linguagem. Essa tensão aparece no ensaio de Benjamin
sobre Goethe (Wahlverwandtschaften) com a tensão entre a ética além do mundo
histórico e a finitude mítica. Para o autor a alusão à metáfora das estrelas – ao fim
do ensaio sobre a Wahlverwandtschaften –, das constelações do livro sobre o
drama barroco alemão e dos textos sobre Baudelaire evidenciam a recorrência – e
a articulação temática – deste tema no pensamento de Benjamin.
A professora Jeanne-Marie Gagnebin apresenta em dois textos alguns
aspectos da teoria do conhecimento de Benjamin também pelas idéias da
Darstellung e de Origem. Gagnebin no livro História e narração em Walter Benjamin
(GAGNEBIN, 1994) articula a teoria da narrativa na obra de Benjamin, mostrando
de que maneira o autor alemão, em seu projeto de renovação e expansão do
conceito de experiência organiza suas idéias ao redor do conceito de narração
(GAGNEBIN, 1994). O trabalho da memória, a salvação do esquecido e a
constituição de sentido na modernidade são partes do trabalho da narrativa
autêntica, do narrador alegórico que narra para “[...] uma reabilitação da história,
da temporalidade e da morte na descrição da linguagem humana” (GAGNEBIN,
1994, p. 35) se mantendo assim consciente de suas possibilidades e de seus limites.
Também ressalta algumas características da teoria do conhecimento de
Walter Benjamin o professor Márcio Seligmann-Silva, que trabalha em seu livro Ler
o livro do mundo (SELIGMANN-SILVA, 1999) a teoria do conhecimento a partir do
estudo da filosofia romântica e da análise da influência desse pensamento na teoria
da linguagem benjaminiana e conseqüentemente, sua teoria do conhecimento.
Seligmann-Silva mapeia o pensamento dos primeiros românticos e evidencia as
correspondências deste pensamento na obra benjaminiana.
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O projeto de revisão crítica da Aufklärung é levado a termo pelo trabalho de
criação de uma nova filosofia, onde os conceitos de Crítica e, fundamentalmente,
Reflexão possibilitam a construção de um novo horizonte para as reflexões
filosóficas. Seligmann-Silva mostra de que maneira muitas idéias filosóficas dos
românticos de Jena – principalmente F. Schlegel e Novalis – contribuíram para a
constituição do pensamento de Benjamin como, por exemplo, as idéias do mundo
tomado como linguagem (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 394), o conceito de
natureza e o deslocamento do idealismo transcendental de Kant para um idealismo
absoluto (no caso dos românticos), com a idéia de que
“O Absoluto, na medida que ele está/é [...] espalhado na superfície do mundo, ele também se encontra no tempo. O mundo empírico torna-se o médium-de-reflexão através do qual pode conectar o eterno e o material [...]” (SELIGMANN-SILVA, 1999: 46). E ainda: “[...] Benjamin estava preocupado em [...] desvendar o elemento espacial que envolve e detém o tempo.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 394).
O limiar da filosofia benjaminiana do tempo (Seligmann-Silva reconhece
mais que uma ‘filosofia da história’, uma “filosofia do tempo”, que é a condição de
possibilidade do conhecimento, pela e na linguagem) é então sua teoria da
linguagem.
Sérgio Paulo Rouanet, um dos primeiros leitores de W. Benjamin no Brasil,
em sua Apresentação do livro sobre o drama barroco alemão, apresenta de forma
extremamente didática as principais categoria do pensamento de Benjamin.
Mostra de que maneira o conceito de Representação [agora, geralmente traduzido
como ‘Apresentação’ – Darstellung] ocupa um lugar centra no pensamento de
Benjamin. Em sua apresentação, Rouanet trabalha minuciosamente no sentido de
explanar os principais conceitos benjaminianos, dando um grande suporte teórico
e conceitual para o trabalho com o filósofo alemão.
Olgária Matos trabalha em seu texto Benjamin e Kant: O Iluminismo
Visionário (MATOS, 1993) a importância do pensamento kantiano na obra de
Benjamin e, o trabalho constante desse no sentido de, a partir de Kant, investigar e
campos da experiências humanas desprezados por Kant. (MATOS, 1993, p. 137).
Essa expansão do conceito de experiência (MATOS, 1993: 137) pela imersão em
um conceito de tempo que
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“[...] motivado pelo [conceito de verdade imóvel] kantiano oscila entre o mito [...] que a obra designa como passado, e a redenção que se apresenta como futuro [...].” (MATOS, 1993, p. 138)
desestabiliza as noções de universalização, pela operação que tem por ferramenta
a alegoria, tendo por tarefa visar a apresentação do tempo – pelo reconhecimento
do que nele há de irrepresentável (MATOS, 1993, p. 150), diluindo a verticalidade
na relação entre sujeito e objeto.
Aqui se conjuga a temática da temporalização das imagens do passado, da
tensão entre o saber (humano, lingüístico e, por conseguinte precário) e o inefável
(a coisa-em-si, o conhecimento do Absoluto, signo da ausência).
Encontramos outras importantes considerações para a compreensão da
teoria do conhecimento de Benjamin na obra do professor Willi Bolle, que foi o
responsável pelo trabalho de edição e tradução da obra Passagens (BENJAMIN,
2006) para a língua portuguesa. Responsável por grandes trabalhos voltados aos
estudos urbanos e literários, W. Bolle talvez hoje seja um dos mais importantes e
respeitados leitores de Benjamin no Brasil. Tanto em sua Obra Fisiognomia da
Metrópole Moderna (BOLLE, 2000), quando em seu posfácio à obra Passagens, Bolle
defende a relação imprescindível entre a teoria do conhecimento e a filosofia da
linguagem, e sua filosofia da história.
Para Willi Bolle a obra de Benjamin se apresenta como teoria e
historiografia de sua proposta de escrita da história. A idéia de ‘história’ de
Benjamin é então o ‘clímax’ de seu pensamento, sua teoria do conhecimento sua
‘origem’ (benjaminiana).
No posfácio à obra Passagens (BOLLE, 2006), Willi Bolle apresenta essa
obra como revolução historiográfica de Benjamin, manifestação máxima de sua
filosofia: a tensão apresentada pela escrita entre o conhecimento – fragmento,
temporalidade e ausência – e o que ele visa pelo trabalho crítico relacional – o
Absoluto intangível. A escrita benjaminiana é o alvo de Willi Bolle em seus
trabalhos.
O conceito de Benjamin de escrita espacial, não-narrável, deve ser colocado
em tensão com a produção historiográfica visada por ele: a construção de uma
historiografia do século XIX, à contrapelo, visando sempre o despertar. Willi Bolle
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ainda neste posfácio apresenta diversas possibilidades de produção do
conhecimento histórico a partir da proposta de Benjamin: ‘história topográfica’,
‘política’, ‘econômica’, ‘da técnica’, ‘social’, antropológica’; ‘história da arte e da
mídia’, ‘dos livros’, da percepção’ e finalmente ‘teoria da história’.
“A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e as formas primitivas do conhecimento, às quais a literatura sempre esteve ligada, em virtude de sua qualidade mítica e mágica. Por meio de imagens – no limiar entre a consciência e o inconsciente é possível ler a mentalidade de uma época”. (BOLLE, 2000, p. 43).
Na citação acima, Willi Bolle a teoria da escrita imagética (o conhecimento
relacional, por imagens do que escapa) de Benjamin e sua proposta de
conhecimento histórico.
Flávio René Kothe talvez tenha sido um dos primeiros grandes leitores de
Walter Benjamin no Brasil, ao lado de Carlos N. Coutinho, José Guilherme Merquior
e Leandro Konder. Em duas de suas mais conhecidas obras, Para ler Benjamin
(KOTHE, 1976) e Benjamin & Adorno: confrontos (KOTHE, 1978), Kothe trabalha as
principais temáticas do pensamento benjaminiano de forma didática e accessível; e
as tensões, aproximações e afastamentos dos pensamentos de Walter Benjamin e
Theodor Adorno, respectivamente. Os trabalhos de Flávio René Kothe são
imprescindíveis para reflexões acerca da politização do pensamento benjaminiano.
Devido à importância do ensaio “A arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
(traduzido em 1968, quando se lia pouco a obra de Walter Benjamin, inclusive na
Europa) na recepção da obra de Benjamin no Brasil, Kothe se debruça,
principalmente, sobre as discussões ao redor dos conceitos de ‘Aura’, de
‘experiência’ e das questões políticas vinculadas à arte de vanguarda e a
apropriação benjaminiana desse ‘político’. Não que Kothe não conhecesse naquele
momento os outros textos de Benjamin – ele cita constantemente as principais
obras, muitas ainda hoje não traduzidas –, mas devido ao contexto de recepção tais
questões, existia uma maior recorrência no debate teórico e político brasileiro.
Para Kothe “A aura é, portanto, a categoria central de toda produção de Walter
Benjamin” (KOTHE, 1976, p. 41).
Preferimos – depois de vários anos da publicação dos textos de F. R. Kothe –
não eleger um centro para a filosofia benjaminiana, uma filosofia que se insurge
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contra os centros em favor dos extremos, do fragmento e do ruinoso.
Reconhecemos a importância da teoria da aura de Benjamin, mas percebemos que
ela está em relação com os outros temas, ao redor da negatividade (benjaminiana)
inerente à linguagem, (im)possibilidade e limite do conhecimento. Isto foi
reconhecido também por Kothe em outra parte de sua obra: “[...] a forma é a própria possibilidade do conhecimento: a priori absoluto, centro vivo da reflexão a constituir sempre novos centros de reflexão. No processo crítico, a obra se mostra como algo especialmente dinâmico: estrutura em constante estado de desestruturação e reestruturação.” (KOTHE, 1976, p. 23).
Aqui Kothe expõe, implicitamente, importante considerações sobre a teoria
do conhecimento de Walter Benjamin.
Antes de passar à parte final deste trabalho farei algumas considerações
sobre minha leitura da teoria do conhecimento de Walter Benjamin. Para tais
reflexões me baseio nas considerações do próprio Benjamin expostas em, talvez,
seu mais importante trabalho teórico, o livro Origem do Drama Barroco Alemão
(BENJAMIN, 1984).
As tentativas da filosofia sistemática de conhecer a verdade, para Benjamin,
se mostram fracassadas por não respeitarem a essência fugidia da verdade. Em sua
leitura da Doutrina das Idéias de Platão, Benjamin desenvolveu sua teoria do
conhecimento de maneira à não violentar a natureza da verdade, sua essência
incomensurável.
Para abordar a teoria benjaminiana do conhecimento dividirei as idéias
apresentadas no livro sobre o Barroco a partir de dois pontos. Este recorte
sistemático é sem dúvida bem esquemático frente à complexidade do pensamento
em questão. Mas é minha alternativa de inserção em um debate – a teoria da
alegoria e sua vinculação à filosofia da história – da maneira menos arbitrária
possível.
A teoria das idéias de Benjamin se organiza de maneira a romper com a
idéia sistemática de conhecimento, que o vinculava facilmente à verdade e tornava
o inapreensível, o incognoscível banal. O projeto benjaminiano é um projeto de
expansão e potenciamento do saber e da razão, reconhecendo suas
impossibilidades, mas explorando também suas potencialidades, em uma direção
visionária.
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O conceito, na teoria do conhecimento de Benjamin, tem primeiramente
duas funções1: a salvação dos fenômenos nas idéias e a apresentação (Darstellung)
dessas. O fenômeno em sua forma empírica, nas abordagens filosóficas
sistemáticas, matemáticas, é visado como universal de forma esquemática e
superficial, por métodos unilaterais, como a busca de leis e regularidades. Para
Walter Benjamin, os fenômenos só podem ser compreendidos quando seus
extremos são primeiramente percebidos e isolados. Este é o primeiro momento da
tarefa filosófica, seguindo os desvios benjaminianos. A valorização dos extremos é
a estratégia para, já de antemão, livrar o trabalho da busca de homogeneidades das
‘deduções intermináveis’, tão caras à filosofia da Razão instrumental.
Depois de reunidos, os extremos devem ser desvinculados de seus
contextos, quebrados para, a partir desta fragmentação, o trabalho conceitual
começar. Desarticulados de uma ordem sistemática os fenômenos podem ser
trabalhados à maneira do ensaísta da escolástica ou do sábio dos talmudes. Da
mesma forma os fenômenos devem ser recolhidos e justapostos como mosaico:
“Tanto o mosaico como a contemplação justapõe elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta com mais força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade.” (BENJAMIN, 1984, p. 51).
Esta justaposição, o agrupamento e a apresentação dos fenômenos é tarefa
dos conceitos, mediadores e ordenadores da relação fenômeno – idéias e
conhecimento – verdade (BENJAMIN, 1984, p. 58).
Subordinados aos conceitos, fenômenos são diluídos nos elementos que os
constitui (BENJAMIN, 1984, p. 56). Após a tarefa crítica destrutiva dos fenômenos
pelos conceitos, aqueles devem ser reunidos – salvos – livres da unidade falsa, e
levados à luz das idéias, onde estarão seguros (MACHADO, 2004, p. 62).
A segunda tarefa dos conceitos é a apresentação das idéias. É pelos
conceitos, enquanto mediadores, que os fenômenos podem ser salvos para o Ser
das idéias. Apresentadas como mosaico, as idéias escapam da filosofia sistemática
e protegem os fenômenos enquanto heterogeneidade: os extremos. Os extremos
aqui representam, na história, o que fora até então excluído dos discursos oficiais e 1 Seguimos a proposta de Francisco de Ambrosis P. Machado (Machado, 2004, p. 59-66) por sua objetividade.
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das grandes narrativas. Importante é também perceber que o pensamento de
Benjamin, de maneira visionária, também se insurge contra o discurso histórico
que omite os escombros que crescem até o céu, aqui incluímos tanto os discursos da
história universal quanto a despolitização levada à cabo por algumas correntes
mais.
Creio ser possível amarrar algumas reflexões e tecer algumas conclusões.
Como fica evidente nas considerações expostas sobre a teoria do conhecimento
elaborada por Walter Benjamin a importância de sua filosofia da história, baseadas
em uma filosofia do tempo e uma filosofia da diferença.
É a inalienável presença dos interesses no corpus historiográfico que
impossibilita a extrema radicalização dos pós-modernos por alguns autores. A
operação de mapear e desvencilhar-se das relações de forças implícitas no
discurso históricas, efetuadas por alguns autores, quando radicalizada, evidencia
as relações de força presentes em todas as operações do conhecimento humano.
Tal percepção não é nova, ou, pelo menos, um pouco anterior à moda pós-
moderna. O reconhecimento destes “não-sentidos” para a história há algum tempo
vem sendo discutido como possibilidade de inserção do trágico na história (DIEHL,
2002, p. 45-82).
O pensamento de Benjamin sobre a história possibilita a (re)inserção da
linguagem na produção do conhecimento histórico e, conseqüentemente uma
outra inserção do tempo na história, um outro tempo, isto representa entre outras
coisas o reconhecimento da precariedade e das limitações do conhecimento.
Importante é perceber que mesmo em favor de uma filosofia do tempo, uma
filosofia da história do fragmentário, do fugidio e do malogro, o pensamento de
Benjamin está vinculado a uma metanarrativa: a construção de uma filosofia da
história que permita reconhecer a precariedade do tempo e a apropriação de
categorias como a de progresso pelo modo de produção do capital, alienando a
história de um conceito de tempo que permita a construção de uma idéia de justiça
intratemporal. O ‘iluminismo visionário’ de Benjamin é construído sobre uma
proposta de revisão da Aufklärung para reconstruir, à luz do século XX (a era das
catástrofes), um conceito de razão que não seja instrumento da técnica niveladora
das diferenças, ‘mercantilizadora’ do saber, devoradora da natureza (e do outro
que faz parte deste território, natural, do não-eu).
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Tal reabilitação do tempo se dá como observamos nos últimos textos de
Walter Benjamin através da destruição do conceito de tempo e de história
construído ideologicamente em favor dos ‘vencedores’. A proposta revolucionária
de Walter Benjamin consiste em levar a cabo a tarefa da crítica atual (atual, pois
ainda incompleta) das estruturas da sociedade, desvencilhando-se das
fantasmagorias míticas da cultura e do conhecimento que corroboram e sustentam
de recíproca, se determinando mutuamente, as estruturas políticas e econômicas
do tempo dos tempos do capitalismo tardio.
As categorias da negatividade repatriadas à história evidenciam no conceito
de história benjaminiano a possibilidade da
“[...] significação do passado tornado presente como história tem de ser incondicionalmente preservada – e de maneira que o sentido do tempo, como fator de orientação da vida humana prática [...] vá além dos limites da experiência, possa mesmo contrapor-se à experiência histórica e se torne plausível. ‘Sentido’ [recebe] a marca empírica e lógica da ausência e da falta, sem tornar-se, contudo, um mero ‘vazio” (RÜSEN, 2001, p. 172).
Se a tarefa da teoria da história é pensar os limites e possibilidades da
história, como a serva que leva à frente a luz, é obrigação daquele que se propõe a
essa tarefa aproximar as discussões da filosofia às da teoria da história, para que
seja levada em frente a empreita da qual fomos encarregados.
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O Conceito de Vivência em Wilhelm Dilthey: a fulgura da historicidade da existência
Mestrando Rodrigo Fernandes da Silva Universidade nacional de Brasília
E-mail: rodrigothp@gmail.com
RESUMO
Este artigo concentra-se em dois momentos que embora tratados inicialmente de forma separada, devem ser vistos posteriormente juntos, por estarem intrinsecamente relacionadas na obra de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Trata-se dos elementos que constituem o conceito diltheyano de estrutura da consciência e sua filosofia da compreensão. Estes dois pólos de sua filosofia da história são o vértice da historicidade da existência humana como vista por Dilthey e formam a base de sua epistemologia das Geisteswissenschaften.
PALVRAS-CHAVE: Geisteswissenschaften; vivência; estrutura da consciência;
historicidade
ABSTRACT
This article concentrates at two moments that though were treated initially as a separate form, they must be seen subsequently joined, since they are intrinsically connected in the work of Wilhelm Dilthey (1833-1911). Treat itself of the elements that constitute the diltheyan concept of structure of the conscience and his philosophy of the understanding. These two poles of his philosophy of the history are the apex of the historicity of the human existence like seen by Dilthey and form the base of his epistemology of the Geisteswissenschaften.
KEYWORDS: Geisteswissenschaften; existence; structures of the conscience;
historicity
Este trabalho se concentra no pensamento diltheyano buscando
compreender o caminho traçado por Dilthey com o fim de erigir o conceito de uma
crítica da razão histórica a partir da análise dos elementos que constituem a
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tessitura de seu pensamento1. Sua fundamentação epistemológica das
Geisteswissenschaften, de um lado, sobre uma psicologia descritiva2, de outro, sobre
uma filosofia da compreensão. Dizendo, no entanto, que estes dois aspectos são, na
verdade, dois pêndulos de um mesmo esforço (AMARAL, 1987, p.5).
O alvo do esforço intelectual de Dilthey era fundamentar o conjunto de
ciências que tinham como objeto o mundo humano, denominado por ele como
“ciências do espírito” (Geisteswissenschaften) (AMARAL, 1987, p.5). Estabelecendo
o que Reis chama de “epistemologia da diferença”, tornando claros seus próprios
métodos de análise do real (REIS, 2003, p.93) 3.
Para isso, os conceitos de vivência e estrutura da consciência serão
abordados em seus aspectos gerais. Colocando antes o âmbito amplo no qual estes
conceitos se localizam, a saber, a fundamentação psicológica. Este é um movimento
que foca compreender Dilthey naqueles pontos estruturais de sua
1 É inevitável, à medida que se intensifica o contato com os textos de Dilthey, perceber que um trabalho de iniciação científica pode pretender apenas lançar um olhar de familiarização. Quando se acompanha a evolução de seu pensamento, percebe-se que aquele que deseja compreender Dilthey (para usar um termo central em seu pensamento) significa acompanhá-lo fazendo o mesmo caminho que ele fez. Na prática isso implica em uma leitura atenta de gigantes como Kant, Schleiermacher e Husserl. Portanto, de inicio sabemos não ser possível cumprir tal tarefa. Lendo textos com uma distância de dez ou mais anos (pode-se colocar como extremidades o texto de 1883 e os textos posteriores a 1900) evidencia-se a precisão conceitual que Dilthey atinge nestes últimos. Infere-se que esta precisão é fruto do contato de anos com os autores citados e muitos outros que permanecem ilhas ignotas a boa parte dos estudiosos brasileiros, tais como Brentano, Fechner, Helmholtz. Particularmente, este trabalho encaixa-se na categoria de História das Idéias, assim, cada um destes autores citados constituem-se em fontes fundamentais para a compreensão do empreendimento filosófico e histórico de Dilthey. De forma que a ausência de leitura destas fontes torna-se o limite intransponível de uma monografia, deixando para projetos futuros a possibilidade de um trabalho verdadeiramente exaustivo. Assim, este trabalho irá apenas se aproximar dos conceitos gerais da obra diltheyana para poder atingir uma maturidade compreensiva acerca do projeto de uma crítica da razão histórica. 2 Cabe esclarecer que, estudar os elementos da psicologia diltheyana neste trabalho não significa estabelecer uma relação dela com o desenvolvimento de outras vertentes como a psicanálise, por exemplo. Este é um trabalho de História da Idéias que, sobretudo deseja conhecer a filosofia da compreensão diltheyana, o que está intrinsecamente ligado ao problema da estrutura da consciência em Dilthey, ou seja, em sua “psicologia descritiva e analítica”. Cabe uma nota que expresse as próprias condições do trabalho, ou seja, dizer que ele se limita a historicizar a obra diltheyana para não incorrer numa anacronia ao dizer da possibilidade dos conceitos psicológicos diltheyanos estarem obsoletos e, portanto não seria relevante estudá-los. Essa seria uma tarefa da psicologia em geral ou da psicanálise em particular. O que interessa aqui é conhecer o que distingue as Geisteswissenschaften das Naturwissenschaften, a saber, o conhecimento compreensivo, hermenêutico. Mas para isso Dilthey deve ser lido em seu todo e com a maior precisão possível. Pois se trata de um pensamento que se aninha na profundidade da mente de um erudito e lírico historiador e filosofo da cultura alemão. 3 Cf. hODGES, H.A. The Philosophy of Wilhelm Dilthey. p.XV.
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Lebensphilosophie. Um caminho que torna possível chegar ao problema central
deste trabalho, a saber, o que é uma vida com estrutura auto-compreensiva? Antes,
porém, é preciso recorrer às questões assentes à psicologia, pois em outras
palavras a filosofia da história diltheyana pode ser “resumida” na tríade Erlebnis-
Ausdruck-Verstehen (DILTHEY, 1968, p.131), vivência, expressão e compreensão
respectivamente. De forma que este texto se limitará ao primeiro termo,
apontando alguns elementos que demonstrem como do primeiro termo, Dilthey
caminha em direção aos outros dois, fundamentando sua filosofia da
compreensão1.
Três textos serão fundamentais para este propósito, o texto de 1883,
Einleitung in die Geisteswissenschaften, Ideen Über eine Beschreibende und
Zergliedernde Psychologie de 1894 e Der Aufbau der Geschichtlichen Welt in den
Geisteswissenschaften2. Quanto ao texto Ideen Über eine Beschreibende und
Zergliedernde Psychologie, considerado juntamente com o texto Contribuições para
o Estudo da Individualidade de 1895 (este último não analisado aqui) afirma
Amaral: “Essas duas obras são consideradas pelos especialistas como pertencentes
à última fase do esforço do autor em direção ao cumprimento da programação de
sua Crítica da Razão Histórica proposta já no primeiro volume da Introdução às
Ciências do Espírito” (AMARAL, 1987, p.13).
Para se falar sobre o conceito de vivência em Dilthey, começa-se por sua
psicologia, a saber, a proposta de uma “psicologia descritiva e analítica” entendida
por ele como:
... A exposição das partes e conexões que se apresentam uniformemente em toda vida psíquica humana desenvolvida, enlaçados em uma única
1 A ênfase sobre o primeiro elemento, a saber, a “vivência’ diz respeito ao fato de que este texto é parte de um trabalho monográfico ainda em execução. Neste último, os capítulos pretenderão estabelecer com maior riqueza de detalhes a relação entre os três termos, para viabilizar uma visão mais ampla da crítica da razão histórica diltheyana. 2 Recorro aqui às traduções de Eugênio Ímaz para o espanhol, traduzidos como Introduccion a las Ciencias del Espiritu, Ideas Acerca de uma Psicologia Descriptiva y Analítica (Um dos capítulos do livro Psicologia y Teoria del Conocimiento) e El Mundo Histórico respectivamente e publicados pela Fondo de Cultura Economica. Embora quanto ao último me reporte em alguns momentos ao texto em alemão, que se encontra nas Gesammelte Schriften, vol. VII. Assim, mesmo que as citações das páginas estejam ambas em numeração arábica, as edições poderão ser distinguidas por suas datas, a tradução de 1944 (tendo como base as edições alemãs de 1923, 1927, 1931) e o texto alemão por mim usado de 1968 editado por Bernhard Groethuysen.
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conexão, que não é inferida ou interpolada pelo pensamento1, mas, sim, simplesmente vivida. Esta psicologia consiste, portanto, na descrição e análise de uma conexão que se nos dá sempre de modo originário, como a vida mesma.... Tem por objeto as regularidades na conexão da vida psíquica desenvolvida (DILTHEY, 1945, p.204).
Este trecho – como poderá ser visto no todo deste trabalho – constitui-se no
ponto nodal de toda a obra de fundamentação diltheyana das
Geisteswissenschaften, pois a unidade da estrutura psíquica é posta como postulado
de uma fundamentação epistemológica (DILTHEY, 1945, p.203-205). A ordem do
pensamento diltheyano neste caso é de que uma fundamentação epistemológica
precisa haver-se com proposições universalmente válidas, e tais proposições
podem ser buscadas na estrutura da “vida anímica” ou “nos “fatos da consciência”.
A vida mesma oferece ao observador a possibilidade de colher desta “experiência
vivida” as regularidades que demonstram as relações entre sujeito e dados ou
objetos percebidos na experiência sensível (DILTHEY, 1945, p.205). Teoria do
conhecimento e fundamentação psicológica se ligam pela necessidade das
Geisteswissenschaften possuírem uma base na autognosi (DILTHEY, 1944, p. 104),
ou seja, a possibilidade de acessar aquilo que é objetivado pela vida através da
estrutura da consciência, relacionando-se às “exigências da consciência crítica”
(DILTHEY, 1949, p.117-120).
Este aspecto do pensamento diltheyano é observado por Gadamer no curso
de construção por Dilthey de uma “filosofia da filosofia”. A auto-reflexão (dentro da
fundamentação gnosiológica proposta por Dilthey) toma a vida como “dado
originário” a partir do qual toda reflexão histórica se funda. A filosofia se torna em
1 Ao falar de uma “não interpolação do pensamento” Dilthey se refere à construção de hipóteses com base nas Naturwissenschaften como o faz segundo ele uma “psicologia explicativa”. A impossibilidade de se ler os autores com os quais Dilthey dialoga torna difícil para neste trabalho monográfico me ater aos detalhes do que Dilthey diz sobre a psicologia explicativa. No texto em que ele trata deste tema, muito do que é falado parte do princípio de que o leitor está familiarizado com o tema, ou seja, seus leitores contemporâneos conscientes da literatura sobre psicologia compreendida entre a primeira metade do século XVIII e início do século XX (Dilthey morre em 1911). Assim, me deterei estritamente sobre a psicologia descritiva e analítica, a respeito da qual Dilthey tece comentários suficientes, embora um trabalho comparado sobre as teorias modernas da psicologia seria bastante instrutivo, mas este não é o objetivo aqui. Cito apenas um trecho de Amaral: “De fato, como vimos, reconhecer a necessidade de fundamentar filosoficamente as ciências do espírito significa, para o autor, fundamentar a possibilidade de um conhecimento das unidades vitais psicofísicas, assim como estabelecer os limites de semelhante conhecimento. Ora, a psicologia explicativa ou construtiva é, para Dilthey, o resultado mais direto da transposição dos métodos científicos naturais para a psicologia.” Cf. AMARAL, Mª. Nazaré de Camargo Pacheco. Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia. p.15.
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filosofia da filosofia porque em um estágio anterior ao trabalho das
Geisteswissenschaften há uma auto-reflexão sobre as relações do sujeito com os
fenômenos que o cerca (GADAMER, 2003, p.318-9).
Aqui cabe dizer que, embora Dilthey faça estudos biográficos nos quais suas
concepções psicológicas e epistemológicas sejam explicitadas, no entanto, nos
textos aqui abordados o conceito de “sujeitos lógicos” e “homem típico” é que
forma a base para a idéia de vivência1. Ainda que Dilthey enfatize que se trata das
conexões psíquicas mesmas no estudo das Geisteswissenschaften, é, entretanto,
necessário como recurso de abstração erigir um conceito que sintetize aquilo que
se compreende como conteúdo da consciência no âmbito da existência do
indivíduo real: “Não acredito que possa objetar-se nada ao fato de que
destaquemos em relação ao homem, mediante abstração, esta conexão de
vivências dentro do curso de uma vida, e que se a converta, como “o psíquico”, em
sujeito lógico de juízos e explicações teóricas”2 Estes “sujeitos lógicos” ou “homem
típico” são na verdade um recurso de abstração operado pelas ciências do espírito
na construção e prática de seus métodos próprios. Recurso já apontado por Dilthey
na Introduccion a las Ciências del Espiritu, como sendo um tipo específico de
“enunciado”, um “elemento teórico” (DILTHEY, 1949, p.35). Tem como objetivo
lançar os fundamentos de uma epistemologia fundamentada em proposições de
valor universais.
Sobre este ponto Gadamer demonstra certo ceticismo em relação ao conceito
abstrato de “sujeitos lógicos”, muito embora não teça maiores comentários acerca
de seu ceticismo no que se refere ao que ele chama de uma “aporia” (GADAMER,
2003, p.302). Refere-se ao contrário, ao fato de Dilthey recorrer a Husserl e sua
“teoria da intencionalidade da consciência”. Pois segundo Gadamer, este recurso
1 No caso do termo “sujeitos lógicos” foi possível averiguar que Ímaz fez uma tradução literal do termo alemão “logischen Subjekt”. Cf. Aufbau der Geschichitlichen Welt in den Geisteswissenchaften. p.80. Já no caso do termo “homem típico” disponho apenas do texto em espanhol. A relação entre os termos é feita a partir do contexto em que os mesmos se encontram nas respectivas obras. 2 DILTHEY, Wilhelm. El Mundo Histórico. p.101. Cf. DILTHEY. Wilhelm. Psicologia y Teoria del Conocimiento. p.204. No caso do termo “sujeitos lógicos” foi possível averiguar que Ímaz fez uma tradução literal do termo alemão “logischen Subjekt”. Cf. Aufbau der Geschichitlichen Welt in den Geisteswissenchaften. p.80. Já no caso do termo “homem típico” disponho apenas do texto em espanhol. A relação entre os termos é feita a partir do contexto em que os mesmo se encontram nas respectivas obras.
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tomado de empréstimo a Husserl ajudava Dilthey no ponto que poderia amarrar
sua concepção de um acesso aos nexos individuais e posteriormente, a junção
desta concepção com a possibilidade de uma compreensão do mundo histórico.
Uma vez que, a idéia de “sujeitos lógicos” tem como objetivo estabelecer
regularidades na experiência humana tornando-as recursos para a compreensão
da existência em termos de parte-todo. A questão posta por Gadamer é de que o
problema da história não é a possibilidade de acesso aos nexos da consciência
individual, mas “como podem ser conhecidos também aqueles nexos que nenhum
indivíduo viveu como tal” (GADAMER, 2003, p.303). Assim, Husserl torna-se o
fundamento em Dilthey, pois:
... a nova clareza metodológica que ganhou apoiando-se em Husserl é o fato de que ele acaba integrando às Investigações Lógicas de Husserl o conceito de significado que emerge do nexo de atuação. Nesse sentido, o conceito diltheyano do caráter estrutural da vida da alma corresponde à teoria da intencionalidade da consciência, uma vez que essa não descreve fenomenologicamente apenas um fato psicológico mas uma determinação essencial da consciência. Toda consciência é consciência de algo. O para que (Wozu) dessa intencionalidade, o objeto intencional, não é para Husserl um componente psíquico real mas uma unidade ideal, o que é visado (Gemeintes) como tal. Nesse sentido, Husserl tinha defendido na primeira investigação lógica o conceito de um significado ideal-unitário frente aos preconceitos do psicologismo lógico. Para Dilthey, essa indicação teve uma importância decisiva, pois só a partir da análise de Husserl é que ele definiu verdadeiramente o que distingue a ‘estrutura’ do nexo causal (GADAMER, 2003, p.304).
Importante citar neste ponto as próprias palavras de Dilthey no texto El
Mundo Histórico, onde ele menciona explicitamente a Husserl, numa mescla de
suas próprias palavras e as de Husserl.
A “captação significativa”, que se levanta sobre a intuitiva, se funda também na vivência ou na intuição. Se trata de um sistema de relações entre expressões. Entendemos por “expressão” toda “oração ou parte dela, ao mesmo tempo a todo signo essencialmente do mesmo gênero”. (Husserl, Logische Untersuchungen, II, p.30). E estas expressões se distinguem de signos de outro gênero pelo fato de que “significam” algo. ...Na medida em que a expressão, como vimos, se refere a algo objetivo, mira também algo. Na medida em que se preenche uma intuição ou vivência atual ou rememorada, a relação entre o nome e o nomeado se verifica um “cumprimento de significado”, e o fenômeno da expressão e a referência da mesma a uma objetividade mirada não compõem uma mera existência ou concorrência mas sim uma unidade interna... Constitui uma unidade estrutural (DILTHEY, 1944, p.45).
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Conclui-se que o conceito de “sujeitos lógicos” liga a experiência de caráter
universal por meio do conceito de significado da ação. Toda ação estabelece uma
relação entre consciência e fenômeno dado à consciência. Assim, os “sujeitos
lógicos” como recurso abstracional media a relação parte-todo pelo caráter de
dotação de significado da realidade elaborado por todo e qualquer indivíduo.
Amaral se refere ao “homem típico” estabelecido por Dilthey da seguinte
maneira:
É como se Dilthey estivesse nos convidando a formar a imagem de uma movimento pendular capaz de nos levar a compreender os casos singulares e concretos, nos fazendo retroagir as suas raízes mais profundas, presas à natureza comum de toda vida psíquica e, vice-versa, nos permitisse apreender as regularidades e uniformidades do nexo psíquico, a partir de uma ligação viva com uma multiplicidade de casos particulares. Ora, esse ritmo parte-todo, todo-parte, tão bem descrito por Dilthey, constitui o cerne regulador das funções da psicologia que, enquanto ciência fundamentadora, deverá impô-lo ao sistema conjunto das ciências do espírito (AMARAL, 1987, p.18).
Outro ponto importante para se compreender o conceito de vivência em
Dilthey, é localização do ponto tornado referência para as partes constitutivas do
conceito. Neste caso, o termo Lebensbezug1 (referência vital) é o ponto a partir de
onde o indivíduo na totalidade de sua existência (Dasein)2 relaciona-se com o
mundo naquilo que Dilthey se refere como um processo de “captação objetiva”, ou
seja, o movimento de captação dos objetos (fenômenos) pelo indivíduo. As
Geisteswissenschaften têm como objeto o próprio mundo humano, portanto, seus
métodos devem ser desenvolvidos a partir das determinações deste objeto. Assim,
Dilthey elabora um conceito que trate das unidades vitais, ou seja, a totalidade de
uma vivência, um indivíduo (GADAMER, 2003, p.301). Para compreender o
indivíduo é mister acessar os conteúdos e as relações entre conteúdos presentes
na consciência. Tais conteúdos sofrem alterações por causa da pluralidade de
1 Eugênio Imáz aponta para o problema de tradução deste termo, que traduzido literalmente ficaria sem sentido, e que numa tradução mais idiomática, deixaria de ser um substantivo e se tornaria uma locução do tipo “referente à vida”, assim, a opção melhor no contexto da obra diltheyana seria “referências vitais” que é também a opção de Ímaz. Cf. Imáz, Eugênio. El Mundo Histórico. p.154. E ainda, Aufbau der Geschichitlichen Welt in den Geisteswissenchaften. p.131. Para as possíveis traduções no alemão corrente cf. o dicionário Langenscheidt – Taschenwörtebuch Portugiesisch. 2 Dilthey no texto Aufbau der Geschichitlichen Welt in den Geisteswissenchaften já usa este termo que depois será usado por Heidegger em sua filosofia do ser.
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relações do indivíduo com o mundo externo. Estes são passiveis de serem
acessados porque os mesmos se objetificam:
A vida não se nos dá de modo imediato, mas sim é esclarecida mediante a objetivação do pensamento. Para que a captação objetiva da vida não se converta em duvidosa pelo fato de que é elaborada pelas atividades do pensamento, é mister mostrar a validade objetiva do pensar. Pode-se analisar o pensamento e sua lógica. Não se trata de sua gêneses, de sua história, mas, sim, da presença de atividades que o enlaça com a percepção: se trata de uma fundamentação. Existem no pensamento conteúdos que nos conduzem a outros conteúdos e deste modo pode demonstrar-se que se fundam na percepção e na vivência (DILTHEY, 1949, p.XIX).
A vida mesma é o objeto das Geisteswissenschaften, portanto, “ao abordar este
grande fato, que para nós não é apenas o ponto de partida das ciências do espírito,
mas, sim, também da filosofia, temos que ir além da elaboração científica1 deste
fato e captar o fato mesmo em seu estado bruto” (DILTHEY, 1968, p. 131).
A “referencia vital” abre caminho para a formação do conceito de vivência,
pois ela é o locus a partir do qual o indivíduo percebe e se modifica por meio das
pressões que o mundo externo exerce sobre ele. É a partir dela que o indivíduo
sente toda força de seus sentimentos oriundos de sua percepção dos fenômenos.
Ao mesmo tempo é a partir dela que ele age sobre este mundo vivido
fenomenicamente. E deste conjunto de relações é que se podem apreender as
mudanças internas no âmbito da consciência. Bem como as regularidades a partir
das quais se pode conduzir a abstrações com vistas à fundamentação metodológica
das Geisteswissenschaften.
Não existem homens nem coisas que sejam apenas objeto para mim e que não impliquem pressão ou estímulo, meta de um esforço ou vinculação da vontade, importância, exigência de precaução e aproximação íntima ou resistência, distância e estranheza. A referência
1 hinter die wissenschaftlichen Bearbeitung... zurückzugehen não deve ser entendido como se Dilthey prescindisse ao trabalho de fundação dos métodos das ciências do espírito. “A vida em seu estado bruto” (die Tatsache selbst in ihrem Rohzustande...) está no contexto sobre a “captação de objetos” onde Dilthey fala sobre a “Leistung primär”, a atividade primaria da consciência, conceito fundamental para a filosofia da compreensão que trata de um estágio primeiro desta, não necessariamente executado reflexivamente. E de um segundo momento, que são os diskursiven Denken (pensamentos discursivos), ambos se relacionam por meio de uma synthetischer Operation. Ou seja, operações de síntese feita pela consciência que relaciona os dois estágios da mesma, a partir dos quais se formam juízos sobre a realidade vivida e estabelecimento de fins para a conduta. Assim, o que Dilthey deseja enfatizar é uma abordagem da vida (neste contexto, através do estudo da consciência) em seus elementos constitutivos brutos.
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vital esteja ela relacionada pontual ou como algo duradouro, converte a estes homens e a estes objetos, com respeito a mim, em portadores de felicidade, alargadores de minha existência, potenciadores de minha força, ou restringem o campo de atuação de minha existência, exercem uma pressão sobre mim, diminuem minha força. (DILTHEY, 1944, p. 154).1
Assim, vivência e estrutura da consciência são conceitos interdependentes.
Eles expressam os aspectos constitutivos da psicologia diltheyana que intenta
abarcar o todo da experiência vivida por meio do acesso aos conteúdos desta
experiência no âmbito da consciência. O valor científico das Geisteswissenschaften
implica em demonstrar a viabilidade de se acessar tais conteúdos, como valores
objetivados. E é precisamente aqui que se coloca o conceito de historicidade.
Esses valores objetivados em Dilthey não podem ser equacionados com o
espírito absoluto hegeliano, porque em Dilthey eles só existem na pura faticidade
histórica. Há na obra diltheyana um movimento circular; valores-indivíduo-
sociedade/socieadade-indivíduo-valores, ou parte-todo, todo-parte, de forma que
não há nada além dos limites do mundo histórico. Trata-se de abstrações efetuadas
no âmbito das vivências no presente que operam um retorno existencial às fontes
históricas com o fim de determinar o que delas se oferece como subsídios para a
permanência do indivíduo, abrindo um mundo de esperanças em direção ao futuro.
Aqui há, sobretudo, o evocar do passado por meio de um dos elementos do
conceito de vivência, a saber, a vivência recordada, a rememoração. Uma atitude
cognitiva que busca nas experiências vividas do passado um sentido na constante
orientação no tempo. Um ato cognitivo que liga vivência rememorada com vivência
do presente. Trata-se de ligar aos objetos dados à percepção no presente a partir
de outras percepções que ao serem congregadas dão a visão de um todo de sentido
da existência (DILTHEY, 1944, p. 54).
A busca de Dilthey por uma universalidade está fundamentada em um
conceito de essência humana, mas esta objetivação do espírito não se define
apenas numa noção de infinitude, o que realmente interessa é a reciprocidade das
1 Para a tradução deste texto me utilizei tanto da tradução de Ímaz quanto do texto alemão, pois a tradução do texto em espanhol literalmente para o português soava muito estranho.
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relações humanas, que claro, está calcada numa essência (não necessariamente
definível, mas intuída) universal. No entanto, não tem nenhum valor fora do que
realmente importa; conhecer em um grau mais profundo o que é finito! Numa frase
bastante interessante afirma Dilthey: “já que o resultado final do desenvolvimento
da humanidade somente pode ser possuído na vivência e não numa contemplação
ociosa” (DILTHEY, 1949, p. 105). Em outras palavras isso quer dizer levar o projeto
de historicidade ao seu termo. Ater-se à compreensão do mundo humano.
O interesse de Dilthey é compreender o espírito – na verdade, a vida – no
realizado (o passado) e no que se realiza (o presente). A filosofia da história, ou
Lebensphilosophie diltheyana não pode ser entendida se se separar a
fundamentação psicológica que se interessa pela individualidade de uma vivência
fazendo o caminho inverso; da ação (motivada por fins) até os nexos últimos
encontrados na consciência. Mas isto (o próprio Dilthey reconhece) produz apenas
resultados parciais. Em seguida é necessário expandir a análise para o âmbito das
relações sociais, porque nelas é possível perceber tanto a liberdade do indivíduo,
quanto aquilo que sobrepõem o individual, dando vida a valores sociais mais
amplos e partilháveis. Isso ocorre porque, por um lado o indivíduo nasce numa
tessitura social posta, mas por outro ele se relaciona com ela hora aquiescendo
hora discordando, o que gera a constante equação liberdade-resistência.
Assim, se forma o que Dilthey chama de teatro da história, ou seja, a
existência numa relação entre parte (indivíduo) e todo (sociedade). Ambos só
existem espaço-temporalmente e só podem ser compreendidos historicamente
(AMARAL, 1987, p.40-48). Usando os termos de Ortega y Gasset:
O homem... não tem uma natureza, mas sim, história. Seu ser e inumerável e multiforme: em cada tempo, em cada lugar, é outro. Ver isto submergir-se neste caleidoscópio do mundo histórico, descrever figuras incontavelmente, atendendo precisamente ao que cada um tem de peculiar, de indócil, arisco, de específico e exclusivo, esta é a tarefa da escola histórica (ORTEGA Y GASSET, 1961, p.151).
Gadamer indaga se Dilthey conseguira passar da fundamentação de uma
psicologia individual para uma hermenêutica histórica e parece injustificável
afirmar negativamente como ele o faz, pois Dilthey mesmo que coloque em alto
grau a biografia individual – mormente no campo “livre” da estética – fazendo
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estudos de personalidades como Goethe, Hölderlin, Schiller, entre outros, e ainda
as duas biografias sobre Schleiermacher e Hegel. Entretanto isso não implica em
uma unilateralidade pela via da psicologia individual, pois em última instância o
valor do estudo destas personalidades é ao fim poder recompor em um todo a
tessitura espiritual de um povo a partir da compreensão das forças históricas de
uma época que se explicitam de forma intensa nestas personalidades. No limite,
importa compreender o todo por suas partes. Compreender as forças históricas
que se objetivam no devir do mundo histórico. Todavia, Dilthey permanece
consciente da existência das organizações externas da sociedade que também
condicionam estas vivências particulares.
Assim, trata-se de um método analítico a separação entre o todo psicofísico, a
estrutura da consciência, e por fim a unidade de uma vivência e as organizações
externas da sociedade. Opera-se este procedimento analítico e de decomposição,
apenas para se compreender o todo. O desejo é de compreender decompondo e
recompondo.
Para particularizar o conceito de vivência, em termos de compreensão do
mesmo, ele pode ser visto a partir da primeira parte do texto Psicologia y Teoria del
Conocimiento, onde Dilthey lança os subconceitos que agregados abarcarão a
realidade existencial total em forma de conceito filosófico. Em um primeiro
momento, Dilthey se queda às abstrações primeiras que subsidiarão uma
abstração posterior acerca da capacidade imaginativa e, consequentemente
criativa dos poetas. Sua meta é, com isso, abstrair as leis que darão forma ao
conceito diltheyano de universalidade. Recorrendo aos momentos produtivos
destes poetas para conhecer as forças que dão forma e condicionam uma época.
Apresentar o pensamento diltheyano neste caso exige um ato de bipartição,
com fins de análise, mas terminando por serem re-agregados para formar-se uma
visão ampla dos problemas que Dilthey discute. Trata-se de bipartir (algo que o
próprio Dilthey o faz) o conceito de indivíduo e o de sociedade a partir da
historicidade da vida psíquica. A circularidade deste ato de bipartir e
posteriormente refundir é inegável, no entanto esta circularidade é antes uma
postura metódica, analítica, que busca abstrair o real indivisível de forma a
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fragmentá-lo em unidades de compreensão. Por um lado, o indivíduo poder ser
acessado em sua intima individualidade. Dilthey, tratando contextualmente da vida
dos poetas e suas obras, primeiro inquire: “Podemos conhecer de que forma os
processos fundados na natureza humana e que atuam, portanto, em todas as
partes, podem produzir estes diversos grupos de poesia, separados por povos e
épocas?” E responde: “Neste ponto, nos encontramos ante a questão mais profunda
das ciências do espírito: a historicidade da vida psíquica, que se manifesta em todo
sistema cultural produzido pela humanidade. De que forma a identidade de nosso
ser humano que se manifesta em uniformidades, se enlaça com sua variabilidade,
com seu ser histórico?” (DILTHEY, 1945, p.07). Este elemento conceitual em
Dilthey, é tanto fundamental, quanto indicador da vinculação dele com a Escola
Histórica Alemã, consequentemente, com o historicismo que esta torna uma
vertente específica no âmbito de outras concepções que também nomeadas de
historicismo, divergem, entretanto, em questões epistemológicas capitais; o
historicismo de orientação positivista, por exemplo.
A historicidade da vida psíquica é que fundamenta tanto a psicologia
diltheyana, como sua hermenêutica filosófica. A compreensão é possível tanto pelo
acesso às estruturas conscientes do indivíduo, quanto aos nexos psíquicos que
ordenam a sociedade. Nexos estes vistos como centros organizadores das relações
sociais, tanto relações de influência sobre ela, quanto de dependência da mesma
(DILTHEY, 1945, p.42). Trata-se neste momento de uma fundamentação
psicológica das Geisteswissenschaften.
A partir do que foi dito, o título anunciado, “ciência e lírica: conhecimento nas
Geisteswissenschaften” significa que o pensamento diltheyano torna o
conhecimento nas ciências do espírito um conhecimento que tanto tem objetivos
de ser fundamentado cientificamente, ou seja, com o estabelecimento de um
conjunto de proposições metódicas e epistemológicas universais. Quanto à
fundamentação de um conhecimento que se funda numa percepção dos conteúdos
sensíveis da vida em seu estado bruto, em suas manifestações cotidianas. Na
sensibilidade pura das relações intersubjetivas, e ao mesmo tempo nas relações
com a natureza. Relações que doam um significado a cada objeto da percepção.
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Referências Bibliográficas
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Leituras do historicismo antes e depois do Holocausto: Rüsen e Benjamin
Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva
Universidade Federal de Goiás E-mail: duarte@fchf.ufg.br
RESUMO
Trata-se de caracterizar duas visões sobre o historicismo, a partir do ponto de
vista anterior e posterior ao Holocausto, e suas respectivas posições dentro do
âmbito de atualização do historicismo.
PALAVRAS-CHAVE: Historicismo; Rüsen; Benjamin.
ABSTRACT
Treat-it of characterize two prospects about historicism, from of point of wiew
before and after to holocaust, and ist perspectivs within the scope of updating
historicism.
KEYWORDS: Historicism; Rüsen; Benjamin.
São três os pressupostos do historicismo: em primeiro lugar, a afirmação da
História como realidade imanente (uma ontologia realista da qual deriva uma
teoria da verdade como correspondência e o entendimento do processo histórico
como realidade estruturada e dependente de uma concepção de tempo linear,
segundo uma direção ou sentido racional). Em segundo lugar, a aceitação da
premissa da conhecibilidade desta realidade, sustentada pela racionalidade dos
fenômenos culturais, de sua tendência imanente ao progresso, aperfeiçoamento ou
aprendizado, característicos da espécie humana. Em terceiro lugar, a aceitação da
historicidade como marca do mundo dos homens (a consciência histórica
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iluminista, e o historicismo é um desdobramento do iluminismo, é produtora e
produto de uma concepção da especificidade e autonomia da experiência humana).
Da relação destes pressupostos com a filosofia da história que os sustenta,
da atualidade dela no que diz respeito à historia, considerada como corpo
disciplinar ou forma do pensamento moderna do pensamento histórico é que trata
este texto. A estratégia de composição do texto é a da consideração e crítica das
leituras produzidas por dois expoentes das ciências da cultura neste século
(Benjamin e Rüsen) sobre o historicismo. A tática de exposição é a redução:
apropriada para as ocasiões nas quais um aluno tenta estabelecer diálogo com seus
mestres e tem o objetivo de contornar a pretensão dos neófitos (causada por
ingenuidade ou má fé) de solucionar definitivamente questões já tantas vezes
debatidas.
Inicio com duas citações (com o objetivo de expor os limites da questão).
Primeiro, Nietzsche:
“...nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que
faz da felicidade, sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do
instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se
sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca
saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros
felizes.” (Nietzsche, 1983, p. 58)
Agora, Croce:
“Historicismo (a ciência da história) na acepção científica do termo, é a afirmação de que a vida e a realidade são história e nada mais que história. Correlativa desta afirmação é a negação da teoria que considera a realidade dividida em super-história e história, em um mundo de idéias ou de valores, e um baixo mundo que os reflete, ou os refletiu até aqui, de modo fugaz e imperfeito, ao que será conveniente ultrapassar de uma vez, fazendo com que à história imperfeita ou à história simplesmente suceda uma realidade racional e perfeita.” (Croce, 1992, p. 53)
À denúncia do felisteísmo estéril e paralisante contrapõe-se a identificação
da filosofia com a história. Duas soluções enganosas: pela via da eliminação da
tensão entre realidade e representação inflaciona-se o sujeito (enfatizando suas
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estratégias e interesses de significação) ou o objeto (hipostasiando-se a própria
idéia de história).
A minha hipótese é a de que Benjamin e Rüsen são exemplos de reação às
tendências extremistas do historicismo. O primeiro reage à substancialização
determinista da idéia de história e o segundo ao reducionismo esteticista das
correntes atuais do pós-modernismo. Tais posições encontram sua atualidade no
esforço de fundamentação e sistematização que marca o projeto das ciências da
cultura.
Benjamin parte da seguinte pergunta: como se poderá ligar o acontecido
com o presente? Nas “ Teses sobre a filosofia da história” , o presente deve assumir
sua carência e reconhecer no passado a mesa condição. Existe um acordo secreto
entre todas as gerações. Aqueles que vivem no presente foram esperados pelos
homens do passado. A felicidade, uma sua imagem, é o que os unifica. A existência
de todos eles (os homens) está marcada por essa busca. Só a partir de coisas como
o ar que respiramos e as mulheres que podiam Ter se entregado a nós (tese 2) é
que poderemos perceber a idéia de felicidade como salvação. O anão (teologia
como “apokatástase” , salvação de todas as coisas) ajuda o boneco (o materialismo
histórico de Benjamin) a vencer. Assumir todo o passado não distinguindo entre
pequenos e grandes acontecimentos. Premido pelo desejo de denúncia da
simultaneidade ideal (o conjunto dos fatos do passado) que retira à relação do
presente com o futuro toda e qualquer relevância para compreender o passado.
Benjamin dirige-se contra o social-evolucionismo da concepção histórico
materialista da história: o conceito de progresso inexorável é dependente de um
conceito de tempo homogêneo e vazio.
Uma história dos detritos (o que foi abandonado) e dos detalhes (o que é
tão próximo que é esquecido). Enxergar a história como luta classes, para
Benjamin, é não permitir que o vencedor se instale completamente (tese 6). Uma
história dos detritos (o que foi abandonado) e dos detalhes (o que é tão próximo
que é esquecido). Afinidade metodológica insuspeita com o historicismo. Basta
lembrar as “delicadas indicações” e os “enredos e renovadas inflexões dos
processos” (Meinecke, 1943, p. 499) que expressam a precisão e agudeza de
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observação de Ranke: o historiador que melhor expressou o projeto que dirige o
pensamento histórico moderno. A crítica do moralismo anacronista, através de
uma concepção ética da tarefa do historiador como portador do “espírito livre” e
que procede com “simpatia universal” e se submete apenas ao tribunal superior da
“ história do mundo”. O historiador contribui para o ideal (oriundo do domínio do
pensamento) de que é justo e certo que todas as barreiras sejam varridas.
Sempre houve lutas e existem lembranças destas lutas. Lembranças
análogas às que nos ocorrem nos instantes de perigo (nos quais os aspectos mais
contundentes de nossa vida são repassados). Se não forem reconhecidas e
recolhidas se perderão para sempre. Com elas irá aquilo que as sustentava como
ações no passado: a esperança. A proposta procedural da construção de imagens
dialéticas responde à demanda de história como síntese das dimensões (passado,
presente e futuro) do tempo. A imagem possui a forma de uma constelação. A
unidade cujo sentido é dado pela descontinuidade. O todo que só pode ser lido
construtivamente. A unidade de passado, o momento-imagem, é escrita que exige
leitura. Tornar legível uma época é pura crítica interiorizada nesse tempo (aqui
mais um índice da herança hermenêutica de Benjamin). Cada momento passado
possui seu agora capaz de reconhecê-lo. Acontece que se não houver atenção e
disposição isso será perdido e a verdade não romperá essa prisão, o agora da
reconhecibilidade. Benjamin é devedor do ideal de verdade histórica. Para precisá-
lo recorro a Cassirer:
“...a história busca um 'antropoformismo objetivo'. Dando-nos a conhecer o polimorfismo da existência humana, ela nos liberta das aberrações e preconceitos de um momento especial e singular. É esse enriquecimento do eu, do nosso ego que conhece e sente, e não o seu apagamento, que é a meta do conhecimento histórico”.( Cassirer, 1994. p.3)
O agora da reconhecibilidade é o momento em que aquilo que foi (por
exemplo, a escrita) se encontra com o agora (a leitura). Esse momento é perigoso
porque exige crítica (comentário) que se mal feita, coloca a perder todo o
empreendimento iniciado na escrita. A história é interpretação e como tal, depende
do instantâneo da decifração. A modernidade é o tempo que tornou possível este
tipo de leitura. Só o “angelus novus” possui o olhar capaz de perceber a catástrofe
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(os eventos). Os bens culturais são escombros: ruínas do esforço dos gênios e da
corvéia anônima dos seus contemporâneos (tese 7). Esse olhar é o olhar de uma
nova percepção: a percepção do choque. As imagens em movimento constante
substituem o pensamento e impõem uma atenção redobrada, sensibilizada pelo
trauma. O padrão moderno da percepção é resultado da adequação e exercício de
um tipo de visão do fugidio, do disperso, do excêntrico. A contemplação não é mais
possível no tempo da reprodutibilidade técnica. A decadência da aura (aura existe
quando há distância ritual que concede capacidade de réplica do olhar às coisas
sagradas) é o correlato da distração (evento marcante da forma da obra de arte
contemporânea por excelência, o cinema). Adaptada a percepção o presente pode
ser palco de uma reauratização profana (ou teórica). As coisas podem ser de novo
capazes de responder ao olhar: a inacessibilidade (as imagens de culto estão
essencialmente distanciadas) é substituída pela contemplação teórica, o mais
próximo torna-se passível de teoria. Análise dos espaços imagéticos e
procedimentos cujo modelo são a técnica cinematográfica e a leitura (colagem,
montagem, câmera lenta, congelamento, aproximação, distanciamento, cortes,
truques, efeitos, tomadas interiores, avanço, retorno, apressamento, alegoria,
cópia, choque). Análise e comentário: o universal no particular. Objetos
naturalizados levados ao discurso por meio da interpretação crítica. O mundo
como texto e o texto do mundo nos seus índices e ruínas.
Para Benjamin, a escrita é trabalho que incorpora valor a seu objeto. O
relampaguear do pensamento, o intervalo da reflexão esta distanciado da forma
escrita da expressão: “conhecimento só há apenas em um relâmpago. O texto é um
trovão que demoradamente se dá”. O trabalho da escrita tem de caracterizar e
preservar a parte essencial da reflexão: só ela nos possibilita abandonar os hábitos
de pensamento do positivismo e suas marcas indeléveis, a ideologia do progresso,
a confiança nas massas e a submissão à aparelhos (tese 10). Mas é nos momentos
em que enrola-se nas malhas do profano (o abandono da curiosidade sem medo da
magia, a base da ciência) que a razão mais ilusoriamente se enfraquece. Ao invés
de “tornar transitáveis todos os terrenos, limpando-os dos arbustos da demência e
do mito” , ela se perde no auto-elogio. Em uma carta escrita a Horkheimer, escrita
em fevereiro de 1940, Benjamin refere-se às suas teses sobre a filosofia da história
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e a intenção, nelas embutida de estabelecer uma cisão irremediável entre nossa
maneira de ver e as sobrevivências do positivismo que, na minha opinião,
demarcam tão profundamente mesmo aqueles conceitos de história que, eles
mesmos, nos são mais próximos e familiares” 1982:1181). Não se pode passar
despercebido, o positivismo vive em nós, aqueles que se proclamam seus inimigos.
As leis da experiência foram alteradas na época da decadência da aura (seu critério
é a dispersão e não o recolhimento). Observação casual, envolvida no ritmo da
massa e absorvida em seu fluxo (ao contrário da atenção concentrada) Recepção
tátil e hábito versus contemplação. Para Benjamin, um princípio construtivo deve
interferir no fluxo infernal e conscientemente transmitir-lhe aquilo que o
pensamento já possui: choque. Dessa forma, uma determinada constelação pode
ser apreendida como mônada. Benjamin adapta o conceito de Leibnitz: de unidade
de natureza transforma-se em unidade de história. Passado como mônada é sinal
de imobilização messiânica dos acontecimentos. Oportunidade de concretizar
como leitura o agora da reconhecibilidade, libertando o passado recalcado e o
próprio leitor.
Benjamin pode ser lido não só como filósofo da história, mas também como
um seu teórico. Além de um esforço por evidenciar os aspectos éticos (a função
terapêutica da memória), produziu uma teoria da escrita da história (seu modelo é
a constelação), uma metodologia (imersão no objeto ou a hermenêutica dos
espaços imagéticos), uma teoria (construtividade alegórica assumidamente
arbitrária) e uma epistemologia (a recusa do positivismo). Esse projeto de
sistematização dos elementos e critérios a partir dos quais um conhecimento
válido sobre o passado pode ser produzido, encontramos também na obra de Jörn
Rüsen.
Para Rüsen, o historicismo constitui-se em matriz disciplinar do estudo do
passado enquanto atividade científica. Distingue-se pela reivindicação de uma
forma da interpretação específica para o tratamento dos fenômenos culturais. Seu
fundamento é a defesa da aliança entre os métodos analítico e compreensivo: a
interpretação do sentido da ação é possibilitada pela reconstituição das conexões
racionalmente compreensíveis da motivação. A produção de um método crítico de
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pesquisa das fontes (heurística, crítica e hermenêutica) é a primeira forma de
expressão tanto da modernização do pensamento histórico (através de sua
disciplinarização) quanto do aparecimento de um renovado conceito de cultura. Á
noção de patrimônio cultivado e acessível, condição de exercício da humanidade,
junta-se a noção de que esta expressa-se através de múltiplas e infinitas
manifestações, cada uma constituindo-se em especificidade irredutível. A
abordagem centrada no tema disciplinar tem, para Rüsen, o sentido de reconstruir
as condições da racionalização do pensamento histórico. A teoria da história tem
como principal objetivo a fundamentação teórico-metodológica disciplinar.
O projeto de Rüsen é produzir uma história das práticas do estudo do
passado, dos sistemas filosóficos de seu entendimento e dos métodos de
tratamento de seus índices. Isso é feito de um ponto de vista que encara a história
como uma das ciências da cultura, dirigida então, pela reflexão sobre seus
fundamentos e funções. É esse o sentido profundo de uma nova didática da
história, entendida como disciplina científica que investiga, a partir de interesses
práticos na objetividade, possibilidade e necessidade de processos de aprendizado,
entendidos como formativos e auto-formativos e ocorrendo na e através da
história. São suas as tarefas de pesquisa (descritivo-empírica) e regulamentação
(didático-normativa) da consciência histórica, pensada como fator essencial da
auto-identidade humana e pressuposto necessário de uma práxis social verdadeira
(Bergman, 1985: 207). Essa abordagem possui claras conseqüências políticas (a
história assume papel central na produção do sujeito da modernidade quando a
consciência histórica é reconhecida como a marca do desencantamento), éticas (a
afirmação da especificidade e da diferença encontram apoio na idéia de
continuidade formativa e identificativa) e teóricas (reforço do projeto kantiano de
fundamentação do conhecimento a partir do esclarecimento das suas condições).
A primeira conseqüência desta história da ciência da história produzida por
Rüsen é mostrar que mesmo tendo os historiadores avançado sobre as disciplinas
vizinhas (em busca de conceitos) tal movimento apenas compensa uma antiga
dívida de método. Noções como as de compreensão e interesse individualizador
ou idiográfico representam um dos limites dentro do quais o projeto das ciências
da cultura está sendo implementado. A proximidade com a coisa (como
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desvendamento do acontecimento, matéria prima do problema ou controle
empírico contra monismos e determinismos) é o pressuposto de uma abordagem
comparativa, tipológica e compreensiva. A história do historicismo de Rüsen
mostrou que a concepção de que as ações e as paixões humanas passadas devem
ser apresentadas como formação cultural contínua da espécie humana tal
concepção deve manter sua ligação com o presente (seu desenvolvimento ou
desdobramento) e com o futuro (assumindo sua dimensão prática: a idéia de
abertura e construtividade do futuro).
A novidade da matriz de análise historiográfica produzida por Rüsen é
tripla. Em primeiro lugar, a proposição do caráter ambíguo da herança da cultura
ocidental. Incorpora-se a genealogia desmascaradora da consciência histórica
produzida pelos pós estruturalistas mas critica sua tendência radicalizadora.
Consciência histórica é apenas possibilidade: não é um dado é uma conquista. Seu
momento é criado pelo processo de a autonomização das esferas de valor. O
mesmo que criou a ameaça de perda de sentido pela supervalorização do espaço
da instrumentalidade sistêmica, destruidor da reflexão e decisão sobre fins. Há
aqui uma teoria da modernidade como desafio. Através da reconstituição de seus
fundamentos (mas aberta à reflexão sobre o que lhe foi emprestado), a história
poderá avançar no esforço de discussão empiricamente controlada das
interpretações conceitualmente guiadas da experiência humana. O historicismo é
referência histórica e teórica obrigatória na reconstituição do processo de
intelectualização que produziu a forma de conhecimento válido do nosso tempo.
Além de renovar essa tradição oferecendo parâmetros alternativos para o estudo
das coisas humanas. De maneira que a defesa da racionalidade das regras de
pesquisa (o método histórico) e de construção hipotética (produzida pela agilidade
e rigor no trabalho de articulação conceitual) não se enxergue como suficiente. Ela
necessita ser ampliada na direção das técnicas retóricas, literárias, narrativas,
numa palavra, poéticas, presentes na historiografia. Não pode também esquecer
os aspectos éticos (a função do pensamento histórico) e epistemológicos (a defesa
da especificidade metodológica, advinda da diferença essencial de objeto, das
ciências da cultura). Esta preocupação sistematizadora é a segunda inovação da
abordagem de Rüsen.
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Fazer filosofia da história hoje, para Rüsen, é produzir esclarecimento
(através de um esforço de fundamentação) sobre as várias dimensões do
pensamento histórico moderno (para isso serve a defesa da herança disciplinar).
Isto implica a defesa da utopia. A marca das filosofias da história pode ser
recuperada em um outro sentido. As utopias pressupõem a irrealidade das atuais
condições de ação como condições para que seus esboços de uma ordem
necessária da vida humana (é por isso que caracterizam-se por localizar um
sentido para a história) possa ter grandeza eficaz no quadro de orientação da
praxis atual. A plausibilidade das utopias, afirma Rüsen, advém de suas noções e
medos exaltados sobre o que deve ou pode ser. Falam de seu tratamento
(apaziguamento ou libertação) mas para tal necessitam empobrecer (e aí reside o
perigo totalitário) ou enriquecer a realidade. A anulação da experiência possui, no
entanto uma face positiva: cria uma instância de comparação (a experiência
enriquecida), estimula o desenvolvimento. A utopia orienta as noções da
existência humana e de seu mundo para além do que empiricamente é o caso. A
consciência utópica precisa ser criticada. No caso do pós-estruturalismo: a
redescoberta de que todo produto de cultura pode ser visto como discurso social e
de que todo fenômeno social é um processo de produção de sentido, relacionado à
outros processos e seus usuários não anula o princípio hermenêutico de que não
existe um lugar a partir do qual se possa desvendar todas as estratégias da
interpretação. A interpretação da interpretação também se produz
contextualmente: o círculo hermenêutico é irrecusável. Exatamente porque tem
uma função indispensável na articulação consciente das noções condutoras de
ação sobre as relações humanas desejáveis é que a utopia da perfeição
interpretativa tem lugar. Mas ela deve ser temperada com o reforço do projeto de
reflexão sobre as categorias que dirigem a produção do conhecimento (este é o
sentido do projeto de fundamentação das ciências da cultura) e a infinita análise
(produtora de interpretações que, explicitando seus critérios, tornem-se mais que
verossímeis, partilháveis) de tais contextos de produção.
A existência dos discursos sociais não anula a existência de contextos de
comunicação. Parece-me que Benjamin e Rüsen tem muito com que contribuir para
um balanço da herança e atualidade do tratamento científico da experiência
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humana e sobre os variados sentidos que a experiência desse projeto
(especialmente em suas dimensões ética e didática) produziu.
A matriz do conhecimento histórico aplicada como modelo de análise
historiográfica no texto que se segue é um exemplo do que podemos produzir com
uma abordagem sistemática dos produtos historiográficos. A obra de Palacin é
referência para a historiografia goiana e ainda terá seu valor reconhecido fora dos
limites do estado. A dimensão ética não exclui o cuidado metodológico. O
refinamento teórico exige a reflexão sobre os fundamentos e estratégias: texto
envolvente, cruzamento de referências e rigor na construção dos objetos são
exigências complementares do trabalho do historiador. Com Palacim aprendemos
a fazer história em Goiás, com Rüsen entendemos que essa atividade tem que
satisfazer as mesmas exigências que são a ela dirigidas em qualquer outro lugar.
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Referências bibliográficas
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Cassirer, E. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 1994. P.3
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A História e a escrita da História: Uma análise sobre o papel que a narrativa exerceu no debate sobre o
conhecimento histórico
Makchwell Coimbra Narcizo Universidade Federal de Goiás
Bolsista PIBIC E-mail: Makch01@hotmail.com
Si fingat, peccat in historiam; sin non fingat, peccat in poesin.
Aquele que inventa peca contra a história; aquele que não
inventa peca contra a poesia. (J.C. Alsted)1.
RESUMO
A reflexão sobre os limites e possibilidades da História, em sua tarefa de apreensão de fenômenos ocorridos no passado, passaram por importantes transformações no decorrer do século XX, estando no centro do debate nas últimas quatro décadas, em especial no que diz respeito de a narrativa ser uma ferramenta eficaz nesse intuito. No presente trabalho é analisada a repercussão que a problemática da narrativa teve dentro da comunidade dos historiadores, essa análise é feita em artigos publicados na revista “History and Theory: Studies in the Philosophy of History” no período compreendido entre 1987 e 1996.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa; História; Ficção
ABSTRACT
The debate on the limits and possibilities of history, in its task of seizing the phenomena occurred in the past, gone through important transformations throughout the 20th century, being in the centre of debate over the last decades, in special in what concerns narrative as an efficient tool to this purpose.In the present work is analyzed the impact that the narrative problem has represented within the community of historians. This analysis is done using articles published by the journal “History and Theory: Studies in the Philosophy of History” in the period comprehended between 1987 and 1996.
KEYWORDS: Narrative; History; Fiction.
1 ALSTED, J.C. Citado Por KOSELLECK, Reinhart. In: Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. P. 247.
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Considerações iniciais
Ao iniciarmos uma discussão acerca da narrativa e o conhecimento
histórico é necessário que se leve em consideração alguns aspectos, tais como: a
problemática da narrativa estar intimamente ligado à questão da cientificidade do
conhecimento histórico, toda sua luta para adequar-se a postulados científicos
externos, trazendo consigo questões como: explicação x compreensão, lógica x
retórica, sentido x referência, apreensão x representação, ou seja, a História ser
capaz (ou não) de referir-se o passado. Esses aspectos são levantados por
considerá-los importante na busca de uma compreensão das transformações no
discurso referente à narrativa.
O presente trabalho será dividido em duas partes, sendo que, em um
primeiro momento será levantado o histórico da questão da narrativa dentro da
disciplina histórica, no qual destacaremos as principais transformações que esse
passou. Em um segundo momento será analisado a repercussão que o tema teve
dentro da comunidade dos historiadores, essa análise será feita em artigos
publicados na revista “History and Theory: Studies in the Philosophy of History” no
período compreendido entre 1987 e 19961, considerando que, no âmbito da teoria
da história, para se inserir no debate acerca da narrativa tem-se que publicar ou ao
menos ler um artigo da referida revista.
1. História e narrativa
A reflexão sobre os limites e possibilidades da história em sua tarefa de
apreensão de fenômenos ocorridos no passado, passaram por importantes
transformações no decorrer do século XX, nesse momento daremos relevância as
que estão intimamente ligados a narrativa, ou seja, as indagações e contribuições
provenientes da reflexão em torno da ciência histórica e a narrativa.
1 Essa delimitação é feita porque o presente trabalho é parte de um projeto maior, intitulado: “História e Narrativa: Uma análise da revista History and Theory (1976-1996)”, o qual fora dividido em duas partes, um compreendendo o período de 1976 à 1986 e outro o período de 1987 à 1996, período que é separado ao presente trabalho.
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1.1 O eclipse da narrativa
Reconstruir os laços da história enquanto disciplina do conhecimento com a
narrativa é trazer a luz a intencionalidade do pensamento histórico, o que
obviamente causa desconforto a alguns, o que faz com que o debate acerca desses
laços se arraste por mais de quatro décadas, estendendo-se até nossos dias.
É necessário considerarmos que há uma persistência na tradição da
narrativa histórica, sendo a narrativa, presente na tentativa de orientação do
homem ocidental frente ao tempo, o que podemos notar na seguinte citação:
Os historiadores sempre contam estórias. De Túcidides a Gibbon e a Macaulay, a composição da narrativa em prosa vívida e elegante sempre foi tida como sua maior ambição. Considerava-se a história um ramo da retórica. Nos últimos cinqüenta anos, entretanto, essa função de contar estórias adquiriu má fama entre os que se viam como a vanguarda da profissão, os praticantes da chamada ‘nova história’ do período após a Segunda Guerra Mundial. (...) Contudo, atualmente detecto sinais de uma corrente subterrânea, que arrasta muitos dos proeminentes ‘novos historiadores’ de volta a alguma forma narrativa. (STONE, 1989, p. 8). (Tradução do autor).
A intenção aqui não é utilizar as palavras de Lawrence Stone para
resumirmos a trajetória do discurso historiográfico desde seus primórdios no
Ocidente, mas sim, destacarmos a presença da narrativa no fazer histórico desde o
princípio, o que nos permite chamarmos de “eclipse” da narrativa, o fato do
modelo narrativo de composição historiográfica ter sido suplantado por outro,
concebido como uma história científica, entendendo como eclipse e não como uma
extinção.
Veremos, portanto, em que resultou a contraposição da racionalidade
metódica à qualidade estética da história (RÜSEN, 2001, p. 150), em outras
palavras, como se deu o “eclipse” da narrativa.
1.1.1 A complexidade da relação
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A tradição francesa de historiografia, digo, a Escola dos Annales ou
movimento dos Annales como preferem alguns, apesar das divergências
metodológicas internas (BURKE, 1990, p. 93-107), trazem consigo um ponto de
união: a rejeição a narrativa.
De um modo geral a historiografia francesa faz com que haja um
deslocamento no objeto da História, como podemos notar nas palavras de Ricoeur:
Com a historiografia francesa, o eclipse da narrativa procede principalmente no deslocamento do objeto da história, que não é mais o indivíduo-agente, mas o fato social total. Com o positivismo lógico, o eclipse da narrativa procede, antes, do corte epistemológico entre explicação histórica e compreensão narrativa. (RICOEUR, 1994, p. 138).
Esse deslocamento deu-se de forma gradativa, sendo assim, analisaremos
alguns nomes que contribuíram para essa mudança.
Com Raymond Aron, veio a crítica a asserção ao caráter absoluto do
acontecimento histórico, ou seja, o acontecimento como aquilo que realmente
aconteceu, como era amplamente aceito. Para Aron, não se podia ter qualquer
ilusão retrospectiva ao fato histórico, pois para o autor o passado como
efetivamente aconteceu está fora do alcance do historiador, o autor ressalta a
impossibilidade de revivermos o passado. Com Aron começa a evidenciar-se o que
pode ser entendido como um eclipse do acontecimento.
Braudel ao recusar uma história dos acontecimentos traz consigo uma
recusa à narrativa, pois, para ele uma história factual só pode ser uma história
narrativa, para uma melhor compreensão dessa recusa dos acontecimentos, é
necessário que levarmos em consideração que para o autor de “O Mediterrâneo e o
Mundo Mediterrâneo na Idade de Philip II” o indivíduo é o portador final da
mudança histórica, sendo assim, as mudanças mais significativas são as mudanças
pontuais, pois são essas que afetam a vida dos indivíduos.
Qual é a resposta de Braudel as contradições apontadas por ele? Uma
sobreposição de durações. Como poderemos notar a seguir:
É nesse contexto crítico que nasceu conceito de ‘longo prazo’ oposto ao de acontecimento, entendido no sentido de ‘prazo breve’... ‘A história
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mais superficial é a história na dimensão do indivíduo, a história factual é a história com oscilações breves, rápidas, nervosas; é a mais rica em humanidade, mas a mais perigosa. Sob essa história desenrola-se uma lentamente ritmada’ e seu ‘longo prazo’: é a história social, a dos grupos e das tendências profundas. Esse longo prazo é o economista que ensina ao historiador, mas o longo prazo é também o tempo das instituições políticas e das mentalidades. Enfim, mais profundamente escondida, reina uma ‘história quase imóvel, a do homem e suas relações com o meio que o cerca’; para essa história é preciso falar de um tempo geográfico. (RICOEUR, 1994, p. 149).
A idéia de que os acontecimentos e os indivíduos devem ser superados será
o ponto forte dos Annales. Braudel ao crer em uma história lenta das civilizações
defende uma história com varias velocidades e conseqüentemente com várias
durações. Os membros da Escola após Braudel foram profundamente influenciados
pelo “longo prazo”.
Discorremos acerca da luta da historiografia francesa contra uma história
factual para demonstramos conseqüentemente, uma rejeição a uma maneira
diretamente narrativa de escrita da história.
Um ponto importante a ser destacado é que com as novas perspectivas de
análise da história houve uma aproximação da História com disciplinas vizinhas,
tais como: a Geografia, a Economia, a História Quantitativa e a Antropologia.
1.1.2 O eclipse da compreensão
De igual importância para um estudo acerca da problemática que envolve a
narrativa e o conhecimento histórico é o ataque contra a compreensão, promovido
pelos partidários do modelo nomológico, que tem a mesma importância do ataque
contra o acontecimento entre os historiadores do “longo “prazo”.
A questão da compreensão está intimamente ligada ao problema dos
estatutos científicos aos quais a História deveria adequar-se, pois, traz a
preocupação de uma normatização da explicação em História. Entretanto, a
disciplina histórica ainda não é uma ciência plenamente desenvolvida, os
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pressupostos gerais que fundamentam sua ambição de explicar não têm a
regularidade exigida para que essa seja considerada uma ciência plena.
Para Hempel, a História oferece apenas um “esboço de explicação”. Para o
referido autor a História teria como objetivo explicar o destino da humanidade, o
chamado “fim da história”, isso deveria ser feito por intermédio de “leis gerais”,
sendo essas leis de cunho determinista, com seus padrões metodológicos oriundos
das “ciências da natureza”. Podemos notar que para Hempel a História deveria
adequar-se a essas chamadas “ciências da natureza”.
Após termos visto os ataques feitos a questão da compreensão em História,
fica claro as ressalvas e as restrições impostas pelos adeptos do modelo
nomológico e os conseqüentes limites impostos por esse modelo de História
“cientifizante” e sua contribuição ao enfraquecimento da categoria narrativa no
interior da ciência histórica.
1.2 O retorno da narrativa
A narrativa passa a ser tema central do debate em Teoria da História pelo
fato de ficar subentendido que essa não é capaz de satisfazer as exigências de
cientificidade postas pelo modelo nomológico de explicação. Foi justamente o fato
de as operações cognitivas básicas da História (conseqüentemente a própria
História) não se adequar as “leis gerais” de cunho determinista, que fez com que
especialistas da ciência histórica pudessem refletir acerca de certa especificidade
da História enquanto conhecimento.
É nesse contexto que nasce às chamadas teses “narrativistas”, teses que
retomam a reflexão sobre o papel da narrativa na possibilidade de apreensão do
passado pela História, fazendo com que a compreensão narrativa fosse
supervalorizada na medida em que a explicação histórica perdia sua importância.
Como se deu a ruptura entre um modelo de explicação exclusivo da História e os
modelos explicativos derivados das “ciências da natureza”?
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1.2.1 A ruptura
Para uma elucidação do esfacelamento do modelo nomológico (RICOEUR,
1994, p. 176) é necessário que levemos em consideração uma perda de força
gradual das filosofias da história de cunho teleológico. A recusa a essas filosofias da
história é totalmente compreensível na mediada em que, essas filosofias da
história com pretensões universais serviram de legitimação para ideologias de
cunho etnocêntrico, que muitas vezes praticaram uma assimilação não refletida
com padrões metodológicos baseados nas “ciências da natureza”, que tinham como
objetivo explicar o destino da humanidade, buscando o que seria “o fim da
história”.
A falência dessas filosofias da história de cunho teleológico baseadas nas
“ciências da natureza” foi um dos mecanismos que possibilitou que a ciência
histórica se libertasse dos padrões normativos das “ciências da natureza”, que
como ficara provado não levaria mais a humanidade ao ápice, ao “fim da história”,
não sendo mais o único padrão a ser seguido no fazer do conhecimento humano,
sendo agora até criticado.
Nessa crítica a subordinação da História as “ciências da natureza” dois
nomes merecem ser destacados, William Dray e Georg Henrik Von Wright.
William Dray aponta uma dispersão lógica da explicação em História,
abrindo caminho a reavaliação da compreensão narrativa, para Dray a lógica da
escolha prática é mais útil ao historiador que a lógica da dedução científica, com
isso o autor defende que a explicação por leis além de ser insuficiente, torna-se
desnecessária. Como então deve ser o explicar para o autor?
Para Dray a explicação deve ser feita através da análise causal, entretanto,
essa análise causal deve ser feita sem o caráter de lei, para isso é necessário que se
observe uma “lógica particular” de cada fato. Para o autor, explicar é mostrar que o
que foi feito era a coisa que era preciso se fazer, em vista das circunstâncias e das
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razões. Explicar, portanto, é, justificar, sendo esse justificar, explicar de que modo a
ação foi apropriada (RICOEUR, 1994, p. 186).
Georg Henrik Von Wright propõe uma explicação causal e uma interferência
teleológica no interior de um modelo “misto”, a explicação quase causal, destinada
a explicar o modo mais típico de explicação em ciências humanas e em História.
Para o autor há uma conexão íntima entre explicação causal e escolha racional. Von
Wright, tentando quebrar a dicotomia explicação–compreensão, atacava as
tentativas de explicar ações humanas recorrendo à idéia da causalidade em
sistemas fechados e propondo o “silogismo prático” como modelo alternativo às
explicações de tipo causalista. Sustentando que uma explicação teleológica da ação
é normalmente precedida pela compreensão intencionalística de alguns dados
comportamentais, Von Wright distinguia “camadas” ou níveis nesses atos de
compreensão. Em História, a explicação em um nível, freqüentemente prepara o
caminho para uma reinterpretação dos fatos em um novo nível, gerando uma
seqüência hierárquica de atos interpretativos captadores de significado,
denominada pelo autor: interpretação explicativa.
1.2.2 A narrativa como centro do debate
Como expresso antes, o princípio da narrativa passou a ganhar notoriedade
no debate teórico da História quando, fez-se necessário a reflexão acerca da
especificidade do pensamento histórico ao se tratar do padrão de racionalidade da
explicação científica.
Como as operações cognitivas básicas do pensamento histórico não se
adequaram a um modelo argumentativo com base em “leis gerais”, essa
especificidade da História aparecia então como uma lacuna, foi aí que a narrativa
pôde ser constituída como um modo de explicação, sendo Arthur Danto um de seus
pioneiros, nascendo assim o paradigma narrativista (RÜSEN. 2001, p. 153-154).
Se por um lado a aproximação entre História e narrativa e
conseqüentemente o modo de explicação via narrativa fora visto não apenas como
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uma possibilidade, mas também como algo positivo, por outro, para defensores do
modelo nomológico, a narrativa era um modo pobre demais para pretender
explicar, apontando assim uma ruptura epistemológica entre História e narrativa.
É justamente esse impasse, o de a narrativa ser ou não capaz de representar o
passado que vem orientando o debate teórico da História até nossos dias, a nossa
intenção, portanto, é saber se essa reconquista da narrativa justifica a esperança de
que a compreensão narrativa adquira valor de explicação, em especial na medida
em que a explicação em História deixa de ser medida pelo padrão do modelo
nomológico.
O problema chave na questão da narrativa está justamente na reflexão
acerca do papel dessa e sua relação com o “real”, ou seja, na vinculação entre
discurso (que são construções elaboradas pelo historiador) e o “real” (BERBERT
JÚNIOR, 2005, p. 14), como nos aponta Michel de Certeau:
A historiografia (quer dizer a “história” e “escrita” traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase oximoron – do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse [...]. (CERTEAU, 2000, p. 11).
Notamos no trecho citado uma relação conturbada entre o “real” e o
discurso, sendo que a linguagem usada pelo historiador já não é mais encarada
como um reflexo da realidade histórica. É nesse contexto que se estabelece uma
crise epistemológica, que faz com que Teoria da História se torne um campo de
disputa entre paradigmas opostos, o moderno e o “pós-moderno”, no qual a
reflexão acerca do papel da narrativa está no centro da disputa, já que cada parte
da disputa posiciona-se de formas distintas enquanto a produção de significado em
História, na qual enquanto no paradigma moderno a ênfase está nos aspectos
“gnosiológicos” no paradigma “pós-moderno” a ênfase está nos aspectos estéticos.
Para melhor elucidação vejamos a explicação de Berbert Júnior:
As distinções de ênfase indicam a defesa de perspectivas totalmente diferentes radicalmente diferentes: no primeiro caso, defende-se que a história científica produz significado através do conhecimento; no segundo, sustenta-se que a atribuição do significado é de
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responsabilidade do historiador, que é quem organiza a narrativa e impões sentido [...]. (BERBERT JÚNIOR, 2005, p. 14).
O que nos interessa aqui é justamente a questão da atribuição de sentido
defendida pelos partidários do narrativismo e os ataques proferidos pela crítica
anti-narrativista, que tem como o principal foco de sua crítica esses aspectos
estéticos da narrativa, que aproxima a narrativa histórica a certo gênero da ficção
literária.
Se esses aspectos estéticos aproximam a narrativa histórica da literatura,
para ser mais exato de uma ficção literária, o que é então essa ficcionalidade? E
como se dá a apreensão de sentido dos fatos ao texto histórico? No mais, o que
seria então um fato? Para uma melhor elucidação acerca dessas questões
buscamos auxilio em Jörn Rüsen:
Um fato é uma resposta à questão sobre “quando-onde o quê-como por quê?”. Um tal fato não possui sentido, significado ou significância especificamente históricos em si próprio. Ele se reveste desse sentido “histórico” apenas numa determinada relação temporal e semântica para com outros fatos. Essa relação é produzida pela interpretação histórica. De modo a tornar efetiva essa “historização” a interpretação histórica recorre a princípios de sentido, significado ou significância cujo estatuto ontológico é diferente do estatuto dos próprios fatos. Levando-se em conta a mera facticidade da informação das fontes, há ainda algo mais que apenas factual, na relação narrativa que qualifica os fatos como especificamente “históricos”. De modo a determinar essa diferença. Usa-se o termo “ficcionalidade”. Na medida em que a interpretação da uma forma narrativa à relação “histórica” entre fatos, o procedimento de interpretação está inteiramente relacionado à maneira de contar uma história (tell a story). O termo ficcionalidade “exprime” também essa situação. O processo instituidor de sentido da interpretação histórica aparece, sob o influxo desta categoria, como “um ato essencialmente poético”, do mesmo tipo de geração de sentido que se encontra na literatura e nas artes. (RÜSEN, 1996, p. 91-92).
É necessário ressaltar que Rüsen está fazendo uma leitura explicativa dos
narrativistas no trecho citado, pra ser mais exato de Hayden White em: “Meta
História: A imaginação histórica no século XIX” (WHITE, 1992).
A narrativa nesse caso é a operação mental que transforma a informação
das fontes em algo com sentido e significado, ocorre que no momento da atividade
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interpretativa promovida pelo historiador, ele é posto diante da necessidade de
adotar certos procedimentos estéticos relativos à forma da narrativa que está
escrevendo, isso consiste no que Hayden White chama de armação de uma intriga.
E é justamente isso que permite que o texto supere a mera crônica tornando-se
história propriamente dita: vejamos nas palavras do próprio Hayden White:
O modo como determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto dos acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, criadora de ficção. (WHITE, 1994, p. 102).
Rüsen chama atenção que com essa nova consciência das estratégias
lingüísticas na construção e constituição de sentido na História, faz com que os
historiadores voltem sua atenção para o ato de escrever história (RÜSEN, 1996, p.
93). O importante é que não apenas o conteúdo do texto de História é importante,
mas também a forma que ele é exposto ganha considerável importância, pode-se
falar em uma história “boa” ou “ruim” e não apenas em uma história verdadeira,
isso dependendo da exploração consciente (no caso bem feita) dos recursos
estilísticos. Ha uma mudança até mesmo na forma que se trata o “real”, pois, “O
‘real’ perde a qualidade de absoluto ontológico, (...) para encarar-se como parte
integrante do universo de sentidos instituído mediante diversas modalidades de
codificação” (LACERDA, 1994, p. 32), o “real” de fato, não é meramente o que é
visado no texto, mas a maneira pela qual o texto visa esse “real”, considerando a
estratégia de sua escrita.
Segundo White cada cultura dispõe de certos arquétipos disponíveis para a
tessitura de uma intriga, no caso do Ocidente são: a sátira, o romance, a tragédia e
a comédia, que tem há muito servido aos historiadores em sua busca de sentido
aos fatos trabalhados. Entretanto, é necessário ressaltar que a escolha desses
arquétipos na maioria das vezes não é feita de forma consciente, afinal não há uma
reflexão acerca de quais aspectos estéticos devem ser usados em sua narrativa,
pois a forma dessas narrativas muitas vezes é determinada mais por implicação
ideológica ou ética que por opções estéticas.
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Os teóricos narrativistas não defendem que não existam diferenças entre a
escrita ficcional e a escrita histórica, mas sim que ambas usam de artifícios
comuns, no decorrer de sua escrita. O que ocorre é como esses artifícios, atributos
performáticos comum tanto em uma obra ficcional quanto uma obra de História, é
objetivado no decorrer da construção do texto de formas diferentes, enquanto o
historiador se sente preso ao valor documental imputado à sua interpretação, o
que dá a esse um caráter de veracidade; o ficcionalista conta com uma liberdade
em relação a essa veracidade, sendo-lhe permitido criar situações e personagens
imaginários sem ter a necessidade de uma comprovação documental (não que não
o possa fazer). Apesar de historiadores e literatos usarem artifícios narrativos
comuns, existe a diferença de atitude frente a esses recursos. Segundo Paul Ricoeur
é justamente que distingue o historiador de um mero narrador, em que, o
historiador:
É por isso que o historiador não é um mero narrador: dá as razões por que considera tal fator, mais que tal outro, como causa suficiente de tal curso de acontecimentos. O poeta cria uma intriga que também se mantém em virtude de seu esqueleto causal. Mas este não constitui o objeto de uma argumentação. Nesse sentido Northop Frye tem razão: o poeta precede a partir da forma, o historiador em direção à forma. Um produz o outro argumenta. E argumenta porque sabe que se pode explicar de modo diverso. (RICOEUR, 1994, p. 266).
A História é regida por atributos, ou seja, convenções disciplinares
diferentes da literatura, já que o historiador tem como objetivo apresentar relatos
sobre eventos históricos, enquanto o literato preocupa-se em apresentar uma
narrativa verossímil algo que poderia ter ocorrido.
Conclusão (primeira parte)
Notamos no decorrer de nossa investigação acerca da problemática
envolvendo a narrativa e o conhecimento histórico, que esta está amplamente
ligada as incertezas do estatuto cognitivo da disciplina histórica, e as tentativas de
a História atingir o postulado de ciência, plena e autônoma.
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Concluímos que, os argumentos narrativistas, atacaram aqueles que
pretendem fazer História tentando a todo custo adequar seus estatutos na busca
de um prestígio de ciência, criticando essa tentativa de adequação a uma
racionalidade metódica de pesquisa científica, pois, com essa tentativa a Historia
perdeu seu poder de produção de sentido em relação ao passado. Por outro lado,
os narrativistas parecem depender excessivamente de procedimentos lingüísticos
básicos para a construção de sentido, no transformar as informações das fontes em
uma narrativa válida.
Como então escapar dessa ambivalência? Como os dois lados da disputa
articulam seus argumentos? Existe algum ponto de concordância entre os dois
lados do debate? Existe uma alternativa que privilegie a ambos? É em busca dessas
respostas que faremos uma análise de artigos publicados envolvendo o tema na
revista: “History and Theory: Studies in the Philosophy of History”, no período
compreendido entre 1987 e 1996 na segunda parte de nosso trabalho.
2. História e narrativa: análise da revista “History and Theory: Studies in the
Philosophy of History” 1987 a 1996
Ao analisar a revista “History and Theory: Studies in the Philosophy of
History” no período proposto algo nos vem à tona rapidamente, o debate é bem
mais amplo do que imaginávamos anteriormente, com isso, notamos que ao
aproximar escrita da história e escrita ficcional, forçando uma reflexão sobre a
capacidade de se apreender o passado faz com que se indague acerca da
possibilidade do trabalho do historiador e conseqüentemente sobre a necessidade
desse trabalho, nesse aspecto concordamos com Hans Kellner, vejamos o que ele
diz:
The debate is not really over narrative and "science." It is about power and legitimation within the profession, not how best to present or conduct research. (KELLNER, 1987, P. 13).
Cada historiador responde a esse problema de uma forma, buscando
argumentos para defender ou descartar a necessidade do historiador. Enquanto
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alguns como Matt Oja, John Pasmore e Andrew Norman acreditam que o eixo da
discussão seja a verdade em suas subseqüentes concepções, outros como Mark
Bevir, Jerzy Topolski e Phillip Stambovsky enfocam no que diz respeito à escrita da
História e a representabilidade do passado.
Mesmo enfocando aspectos diferentes os artigos publicados na revista no
período estudado entrecruzam-se constantemente, a verdade é que assim como
assegura Wulf Kansteiner (KANSTEINER, 1993, p. 278) o relativismo
epistemológico de Hayden White gera uma colapso na teoria e Filosofia da
História. Ao buscarmos os artigos na “History and Theory: Studies in the Philosophy
of History” no período referenciado percebemos a notável importância de Hayden
White para a discussão, afinal, dos 22 artigos analisados 16 citam o autor
diretamente e os outros fazem alusões indiretas a esse. Além de Kansteiner
(KANSTEINER, 1993, p. 273 – 295) que escreve um artigo para analisar o
pensamento whiteano. Ao falarmos dessa importância de White obviamente não
estamos dizendo que todos esses autores concordam com ele, mas que dialogam
com esse, uns de forma amena e outros rispidamente.
Com essa breve introdução podemos adentrar de fato nos principais
aspectos envolvendo a narrativa em História.
2.1 Semelhanças e diferenças entre a narrativa ficcional e histórica
As aproximações da narrativa histórica e narrativa ficcional, levantadas por
White já vinham causando certo desconforto na comunidade dos historiadores,
entretanto, torna-se mais inquietante com suas considerações acerca da
representabilidade histórica envolvendo o nazismo, assim defendido por
Kansteiner:
The narrative strategies which we employ to make sense of our past evolve independently of the established protocols for gaining and asserting historical facts. This circumstance applies to all historical representations but is most disturbing when considered in the context of the representation of Nazism. (KANSTEINER, 1993, 295).
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No que desenvolve a discussão sobre esse aspecto não é a aceitação ou a
recusa da proximidade da narrativa histórica e a narrativa ficcional, mas sim quais
os limites dessa semelhança, afinal, a questão das semelhanças entre ambas são tão
claras e para muitos chocantes, que acabamos por não buscar e conseqüentemente
vislumbrar as diferenças, o fato é que existe tanto semelhanças quanto diferenças
envolvendo as duas formas de narrativa. Não é pelo fato de se usar elementos
performáticos e estéticos em um texto que esse venha a ter um valor meramente
estético, como nos lembra Passmore (PASSMORE, 1987, p. 69) ao concordar que
um bom texto de História é sim literatura, mas nunca ficção.
No que diz respeito às semelhanças podemos destacar algumas, tais como: o
uso de estruturas discursivas semelhantes, isso torna-se compreensível na medida
em que consideramos que o Ocidente aprendeu a narrar sob certos tipos
discursivos, fazendo assim o uso desses tipos para qualquer intenção narrativa, o
problema é que, como ressalta Oja (OJA, 1988, p 111 – 124) aprendemos a fazer
distinção entre graus de verdade, que podemos ligar com o que levanta Passmore
(PASSMORE, 1987, p. 71), que crescemos em um mundo com verdades
hierarquizadas. O que tudo isso nos interessa aqui? É simples, existe sim
semelhança entre narrativa histórica e ficcional, o problema é que a narrativa
ficcional se distancia do crive da verdade científica, sendo vista por isso como um
defeito.
Para ressaltarmos as diferenças levantamos alguns argumentos, tais como:
o de Passmore de que o historiador tem a intenção de recontagem de um fato. Ou o
argumento de Jörn Rüsen (RÜSEN, 1987, p. 87 – 97), de que a narrativa histórica
tem a intenção de orientação do homem frente às dificuldades impostas pelo
tempo, sendo a morte a mais temível delas, nos impulsionando à frente, a um
futuro. Todos os que ressaltam a intenção de uma busca da verdade no que diz
respeito à narrativa histórica, o problema é que cada um tem uma concepção de
verdade própria, inclusive os que defendem que a narrativa histórica é a mesma
que a ficcional, transformando assim a História em um ramo da literatura, cabe
aqui o argumento de Cushing Strout (STROUT, 1992, p. 153 – 162) de que o
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historiador tem uma ânsia pela verdade, não nos cabe aqui discutir o que é
verdade para cada um dos autores, ou se a verdade existe ou não, nos
restringiremos na intencionalidade da busca de uma verdade, seja ela qual for.
A superprodução historiográfica levantada por Frank Ankersmit
(ANKERSMIT, 1988, p. 205 – 228) e ressaltada por Richard Vann (VANN, 1987, p. 1
– 14) e John Passmore, nos leva a uma questão, o problema em História agora não
é verificar se o fato é verdadeiro ou coerente, mas sim, notarmos os pontos de vista
diferentes em relação ao mesmo fato.
A questão é saber se é a narrativa que condiciona o fato ou se é o fato que
condiciona a narrativa, trazendo com isso conseqüentemente limites ao passado.
Na tentativa de aprofundarmos nessa questão notamos que autores como
Ankersmit defendem que o historiador assim como um artista representa o
passado, nesse caso através de seu texto, sendo esse condicionado por uma
substancia narrativa, devemos assim segundo o autor, dar mais atenção à forma do
que ao conteúdo.
What the historian does is essentially more than describing and interpreting the past. In many ways historiography is similar to art, and philosophy of history should therefore take to heart the lessons of aesthetics. […] (ANKERSMIT, 1988, p. 228).
Por outro lado historiadores como Bevir (BEVIR, 1992, p. 276 – 298)
defendem que uma boa história nada tem a ver com a forma com que ela é escrita,
destacando que não estamos presos em uma prisão lingüística, que padroniza e
condiciona os textos históricos, como podemos notar a seguir:
(…) More broadly, on my view the creative nature of the process of understanding means that we cannot specify in advance what evidence either historians in general or any particular historian will have to consider in order coming to understand a text correctly. We cannot lay down methodological requirements for good history. (BEVIR, 1992, p. 294).
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Notamos que o escrever em História tem sido um motivo de notáveis
controvérsias, entendemos que é sim necessário se estudar a lingüística para uma
melhor compreensão da elaboração do resultado final do trabalho do historiador
que é o texto histórico, entretanto, não acreditamos que esse trabalho esteja
condicionado meramente a isso.
2.2 Mapeando
No princípio desse trabalho nos propomos a mapear os possíveis lados da
discussão, tentando ressaltar uma “terceira via” para a mesma. Notamos no
decorrer de nossa análise dos artigos publicados na revista “History and Theory:
Studies in the Philosophy of History” no período proposto, que fazer esse
mapeamento não é tão fácil quanto imaginamos, pois, se de um lado encontramos
Ankersmit que propõe uma destruição do modelo de explicação moderno, por
outro temos Donald Mccloskey (MACCLOSKEY, 1991, p. 21 – 31) e George Reisch
(REISCH, 1991, p. 1 – 20) que propõem um revigoramento do modelo hempeliano
de explicação, esse é o ponto mais antitético contido no período estudado, tão
distantes que não existem citações ou considerações de um lado em relação ao
outro nos artigos averiguados.
No outro ponto podemos colocar todos os outros que fazem uma reflexão
mais apurada de ambos os lados, mesmo tencionando-se para um ou para outro.
Considerações finais
Kellner argumenta que toda essa problemática é boa para unir
historiadores de pontos de vista diferentes, de fato ele está certo, pois, é o que
ocorre em especial na revista “History and Theory: Studies in the Philosophy of
History” trazendo discussões sob orientações e pontos de vista diversos sobre um
mesmo tema, talvez não como acreditava Kellner para defender a profissão de
historiador afinal alguns estão discutindo justamente para destruí-la.
Revista de Teoria da História Ano 1, Número 1, agosto/ 2009 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Contudo, notamos sim a necessidade de darmos mais atenção à escrita da
História, não por considerá-la a única parte importante da História, como defende
Ankersmit, mas sim, por considerá-la importante, concordamos com Vann que traz
Louis Mink para a discussão argumentando que a discussão deve ser feita em
proximidade entre historiadores e críticos literários, o que segundo o autor não
ocorre ultimamente.
Concordamos com o pensamento defendido por Oja, o qual podemos ver a
seguir:
(…) I am operating under the assumption that there is no absolute qualitative difference between narrative history and narrative fiction. That is, I suggest that the two should be thought of not as qualitatively distinct genres but as opposite ends of a-single continuum or spectrum. […] (OJA, 1988, p. 112).
Acreditamos na inexistência de uma diferença qualitativa entre narrativa
ficcional e narrativa histórica, porque cada uma tem um propósito diferente. Sendo
ambas fundamentais para a orientação humana frente às dificuldades impostas
pelo tempo.
Vimos que a discussão é ampla, necessária, acalorada, bem fundamentada e
principalmente, ainda está longe de se esgotar, até por isso destacamos a
necessidade de se estudar toda a discussão para uma melhor compreensão do
ofício do historiador.
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Jürgen Habermas e a Modernidade: desdobramentos preliminares para uma filosofia da história.
Gustavo Lourenço de Carvalho Universidade Federal de Goiás
E-mail: gustavuslourenco@gmail.com
RESUMO
Este artigo visa localizar a teoria da modernidade de Jürgen Habermas. E pela tese central do autor sobre a colonização do mundo da vida formar o espaço de surgimento do problema da exigência de um moderno conteúdo normativo, e este relacionado com uma imagem do tempo como fundação a uma filosofia da história.
PALAVRAS-CHAVE: modernidade; mundo da vida; sistema; Jürgen Habermas.
ABSTRACT
This article aims the Habermas´ theory of the modernity. And through author’s central thesis about colonization of the life’s world to shape the space to emergency of the requirement of a modern normative content, and this connected with a image of the time as foundation to a philosophy of history.
KEYWORDS: modernity; life’s world; system; Jürgen Habermas.
A tese central de Habermas em seu Discurso Filosófico da Modernidade
coloca sua posição no debate entre modernidade e pós-modernidade. Tal tese diz
que Habermas, além de querer revitalizar e completar o projeto inacabado da
modernidade pela via da razão comunicativa, como saída para um paradigma da
filosofia do sujeito esgotada, ele quer mapear e atacar os discursos críticos da
modernidade, que em alguns caminhos leva à pós-modernidade conservadora e
irracional. Ele mostra quanto as tentativas de se afastar das produções da
modernidade, como por exemplo, o potencial comunicativo do mundo da vida e a
filosofia do sujeito, são fracassadas. A pós-modernidade não conseguiu se esquivar
da modernidade, ela é ainda moderna.
Essa conclusão leva a um embricamento confuso entre modernidade e pós-
modernidade que coloca esses dois termos em um mesmo nível aparente, sendo
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pós-modernidade crítica como a modernidade que é autocrítica da modernidade, e
assim revê seu projeto; e pós-modernidade conservadora como a crítica irracional
que pensa ter se afastado de forma legítima da modernidade. Esse diagnóstico
permite que S. P. Rouanet conclua os debates da modernidade entre Habermas e
Foucault dizendo ser perfeitamente possível um Foucault moderno e um
Habermas pós-moderno (ROUANET, 1987, p. 190). Apesar desta afirmação soar
estranha, a crítica da modernidade é o ponto comum, que Habermas contrabalança
pela continuidade do projeto iluminista. Desse modo, pode-se desfazer essa
confusão e mostrar a amplitude da teoria da ação comunicativa que tem como
missão a retomada crítica, reconstrutiva, sem auto-elogios para continuar o
projeto inacabado da modernidade, ainda que tal teoria totalizante esbarre em
conteúdos utópicos – como citam alguns críticos – e nas dificuldades normativas
nas esferas da política e do direito de se implementar esse projeto.
Essa posição apontada nessa tese marca uma posição política. Funda-se na
vertente da social-democracia reformista alemã que se opõe contra o
encaminhamento socialista do leninismo até o stalinismo e sua formação societária
moderna semelhante a do capitalismo, pois segundo nosso autor, ambas formações
societárias, socialismo e capitalismo, têm a mesma raiz de racionalização
societária. Só diferem na organização estatal e econômica (HABERMAS, 1981 c,
p.474). Também marca oposição contra a latência do mercado e o enxugamento
das funções estatais neoliberais, sendo que o Estado poderia ter maior atuação
como provedor da organização cultural pública contra o soterramento das
reservas culturais do mundo da vida – como constituinte de uma comunidade
(Gemeinschaft), no sentido da tradição filosófica alemã, no lugar de uma simples
sociedade (Gesellschaft). E ainda em termos reservadamente políticos, o projeto
inacabado da modernidade – que Rouanet chama por perspectiva neomoderna
(ROUANET, 1987, p. 26) – é implacavelmente crítico contra os fascismos, como
efeito perverso último da dialética do esclarecimento; e aceita críticas da
democracia, como a de Carl Schmitt, porém sem abandoná-la.
Entretanto, após delinear a tese e a posição de Habermas no debate entre
modernidade e pós-modernidade e suas implicações no debate paralelo
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estritamente político passo à formação da teoria da modernidade em etapas: os
processos de racionalização do mundo moderno ocidental; uma teoria da
sociedade; a ação comunicativa; e uma conclusão para uma filosofia da história
habermasiana.
OS PROCESSOS DE RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO OCIDENTAL MODERNO
Suas conclusões sobre os processos de racionalização são em torno de
releituras da obra de Weber. Entretanto sua releitura sobre a modernidade em
Weber começa com o distanciamento das releituras sobre Weber dos seus mestres
Luckács, Adorno e Horkheimer. De Luckács ele nega a teoria da consciência de
classe, que mesmo mesclando a economia-política marxiana e teoria da
modernização weberiana, continua a tese que relega à classe burguesa nenhuma
consciência histórica e o descrédito às instituições burguesas. Quanto aos autores
da dialética do esclarecimento, que já divergem do posicionamento de Luckács,
esses substituem a teoria da consciência de classe pela teoria da cultura de massas.
O problema para Habermas é o fundamento exclusivo que é adotado para a
constituição das massas: a racionalidade instrumental. Sem abarcar nenhuma
outra racionalidade como a comunicativa, Habermas não pode aceitar esse destino
invariável da filosofia da história contida na dialética do esclarecimento.
Habermas aceita as teses weberianas de formação do mundo moderno
ocidental que se divide em dois processos: de um lado a racionalização das visões
de mundo, que se afasta dos contextos religiosos e metafísicos gerando o
desencantamento de mundo. Nessa perspectiva surgem as esferas axiológicas
(Weltsphären), ou esferas autônomas de valores, sendo uma cognitiva
possibilitando o surgimento das ciências, outra da moral referente ao
universalismo ético e os sistemas jurídicos, e a terceira, a esfera expressiva da arte
de vanguarda; E por outro lado, a racionalização societal que tem sua gênese numa
formação trimembre que engloba o surgimento da empresa capitalista e a
sustentação do mercado formando a economia, a administração estatal pelo Estado
moderno e a estabilização normativa desse sistema pelo direito formal.
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Porém, Habermas faz suas objeções quando nesses processos de
racionalização a burocratização, imanente ao processo de racionalização societal, é
analisada por Weber. Para Habermas, a análise weberiana é confusa em um ponto.
Quando totaliza a burocratização, pela via da razão instrumental, tanto na
modernidade social como na modernidade cultural, visto que essas duas
modernidades formadas por processos de racionalização diversos têm seus
funcionamentos internos autônomos e também diversos. A modernidade social do
sistema é regida pela dinâmica de desenvolvimento, enquanto a modernidade
cultural do mundo da vida é regida pela lógica de desenvolvimento. Então para
Habermas, a burocratização a qual Weber analisou brilhantemente é imanente ao
processo de racionalização societal que visa pela dinâmica de desenvolvimento
gerir a reprodução material do sistema organizado pelo Estado e pela economia, e
por mais que ocorra ampliação autônoma da modernidade social que bane para as
margens do sistema os valores de um mundo desencantando, a burocratização não
pode ser imanente à modernidade cultural – essa é a tese da colonização sistêmica
do mundo da vida (Lebensweltkolonisierung). Assim, temos uma duplicação do
conceito de sociedade. Ainda que relevante seja a crescente burocratização,
Habermas propõe uma análise dos processos de racionalização também dual,
respeitando os dois níveis de sociedade e seus princípios de desenvolvimento.
Então sua analítica se divide em: análise funcional e análise estrutural. Esta
constante divisão de Habermas é fundamentada por sua teoria da sociedade, já
antecipada em alguns conceitos, como sistema e mundo da vida, gera a tese de
colonização sistêmica do mundo da vida central para sua teoria da modernidade e
o espaço que potencializa a ação comunicativa no âmbito da modernidade cultural.
TEORIA DA SOCIEDADE
Como já citado acima, para Habermas, a sociedade é dividida em Sistema e
mundo da vida, seguindo a dualidade dos processos de racionalização.
Sistema é o espaço da sociedade que proporcionou a racionalização societal
que em sua formação na entre economia, Estado moderno e direito positivo
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determina um tipo de ação racional instrumental com respeito a fins
(Zweckrationalität), É reino da técnica, da burocracia, dos medias do dinheiro e do
poder regendo a relações humanas. Esse é o espaço exclusivo que Habermas
admite para a teoria do poder de Foucault, sendo uma teoria do poder apoiada na
arqueologia do saber e na historiografia genealógica. Assim pode-se marcar a
posição categórica de Habermas contra a teoria do poder de Foucault: a teoria do
poder foucaultiana não pode ser ampliada a todas as esferas da vida, salvo que ela
entra no mundo da vida por um tipo de ação estratégica na comunicação regida
pelas pretensões de poder (Machtsansprüche), ou vontade de poder (Wille zur
Macht), substituindo as pretensões de validade (Geltungsansprüche). Para
Habermas, o rompimento dos limites desse lugar reservado para a teoria do poder
de Foucault se enreda num espaço aporético, que segundo o autor alemão,
Foucault nunca conseguiu se livrar.
Enquanto isso, o mundo da vida é o espaço onde foram liberadas as esferas
axiológicas com seus funcionamentos internos. É o espaço da interação mediada
lingüisticamente para o entendimento intersubjetivo orientado por pretensões de
validade referentes às esferas axiológicas. A sustentação dessa ação comunicativa é
feita pela teoria dos atos de fala (Sprechakte), que garante, pela estrutura dos
pronomes pessoais o descentramento da subjetividade sobrecarregada na filosofia
da consciência, o retorno ao sujeito pela via dialógica e a estrutura paralela do
naturalismo que une os processos de aprendizagem empíricos ao mundo da
linguagem. Os atos de fala são corporificados em enunciados que portam
proposições, intenção e pretensões de validades. Entre proposição e intenção há a
articulação entre significante e significado, e nessa relação são expressas
pretensões de validades que são articuladas por argumentos que formam discurso.
As pretensões de validade podem ser: de verdade para a formação de discursos
teóricos referentes ao mundo objetivo; de justeza nas formações normativas para
discursos práticos; e de veracidade nas articulações subjetivas de formações
estético-expressivas.
Deste modo, o mundo da vida é o mundo ontológico do pano de fundo do
conhecimento não-tematizado que passa para o conhecimento tematizado pela via
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de uma passagem da interação para a compreensão, onde são postas em circulação
as pretensões de validade. Propriamente enquanto formação societária, essa
estruturação do mundo da vida, partindo da liberação das esferas axiológicas na
modernidade, configura a sociedade enquanto cultura, sociedade e personalidade.
Cultura é a reserva semântica de saber acumulado pela tradição que permite a
reprodução cultural variando o conteúdo e sua qualidade enquanto nível de
continuidade ou ruptura com a tradição; sociedade é a formação dos grupos sociais
por solidariedades adquiridas que permitem novos desdobramentos de integração
social; e personalidade é a formação de identidades partindo da socialização,
harmonizando formas de vidas individuais e coletivas.
Esse conceito de sociedade aponta para além da mera articulação de
relações socais interpessoais, mas também coloca o conceito de sociedade na
reserva de estruturas da linguagem e sua reprodução simbólica acompanhada pela
consciência de tempo moderna. E para completar essa idéia, há os dois princípios
de organização das sociedades da teoria evolutiva de Habermas, que é anterior à
teoria da ação comunicativa, esses princípios se fazem presentes desde tempos
primitivos até a modernidade. Diferenciando em nível de complexidade esses
princípios são: o trabalho e a interação.
Se observarmos bem, veremos que a luta de Habermas para a
fundamentação da comunicação na retomada do projeto iluminista da
modernidade tem seu espaço vital exclusivamente no mundo da vida. Logo,
compreendemos essa categoria central que é o mundo da vida na reabilitação de
um novo conceito de razão plena e unificada do iluminismo. E não como um
contra-poder que ataca sua parte ambivalente, que é o Sistema, o mundo da
racionalidade instrumental – racionalidade problemática, pois é a via expressa da
reificação da natureza, do outro e da subjetividade. O mundo da vida como reino da
interação tem o potencial de se reconectar ao sistema, pois a racionalidade com
respeito a fins é, e sempre foi, fundamental e indispensável à evolução das
sociedades. Mas essa racionalidade tem que ter seu espaço limitado para não
colonizar o mundo da vida que originalmente resguarda o elemento diferencial e
essencial da constituição do ser humano: o potencial de uso simbólico e interativo
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imanentes à linguagem. Habermas sempre se mostrou obstinado contra as teses de
críticos que impõem um diagnóstico malogrado de impossibilidades
comunicativas, de perdas de sentido (Sinnverlust) e liberdade (Freiheitverlust) em
um mundo moderno desencantado e burocratizado nas sociedades
contemporâneas.
Habermas, com a duplicação da sociedade em sistema e mundo da vida
pôde conceber processos de racionalidade diferentes formando a modernidade
social e cultural em acordo com princípios organizacionais também diferentes,
podendo perceber com clareza a colonização do mundo da vida pelo sistema. E
com essa tese poderosa pôde reclamar a razão comunicativa com a comprovação
da liberação da razão comunicativa, num certo momento de juventude, no sistema
filosófico de Hegel (o primeiro filósofo que concebeu a modernidade como
problema de legitimação), e ainda conta com comprovação histórica da realização
empírica da ação comunicativa na esfera pública burguesa européia no século XIX.
Assim nosso autor pode responder dialeticamente que, se alguns sentidos
universais se foram com a fragmentação das imagens religiosas de mundo, foi
também proporcionado o sentido do entendimento comunicativo antes preso
àquelas imagens, e se o espírito nos tempos modernos foi aprisionado ele também
se libertou em saberes, normas e artes autônomas entregues à própria
humanidade como única mediação.
E se a razão rasamente pode ser entendida como a capacidade humana de
diferenciar reestruturando a relação entre o todo e as partes, somada à força
simbólica e de integração social, com esses elementos Habermas pode conduzir
complexamente a razão comunicativa para superar o limite da última fronteira,
que é o outro, reabilitando a utopia – diga-se de passagem, fundamental para
Habermas – da comunidade moderna, racional e democrática.
A Ação Comunicativa
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Ao invés de versar sobre o conceito de razão comunicativa, melhor é explanar o
conceito de ação comunicativa (Kommunicativen Handelns). Pois, ação
comunicativa engloba um novo conceito de razão, o da razão comunicativa, que
efetua a mudança de paradigma na filosofia do sujeito e uma teoria da ação social,
que na leitura da teoria dos atos de falas de Austin e Searle cria os usos
lingüísticos. E ainda, esse complexo emaranhado do conceito de ação comunicativa
é incrementado por uma filosofia da práxis, surgida a partir de uma crítica à
filosofia da práxis de origem marxista. Os interesses desse projeto remetem ao
esclarecimento do iluminismo, entretanto não pelo o elogio das luzes e nem clamor
à maioridade pela razão, mas é pela tese que me parece mais central para o
conceito de modernidade de Habermas, que é a Colonização do mundo da vida
pelos imperativos sistêmicos. Esse conceito dualista, fielmente dialético, mostra o
malogro futuro da monstruosidade da autonomia de uma modernidade sistêmica,
mas sem fatalismo. Apesar de todo pessimismo intelectual, mostra que a
comunicação não está totalmente extinta, pois seria o fim último pela destruição da
vida ou a transcendência milagrosa de um mundo do entendimento mútuo pleno.
A razão comunicativa não é corrosiva em relação ao conceito de razão do sujeito
objetivador, autoconsciente e plenamente expressivo. Entretanto, não ignora uma
tradição crítica desse sujeito privilegiado da filosofia da consciência, originária da
modernidade filosófica. Tradição crítica que se intensificou com a virada lingüística
na filosofia ocidental. Na epistemologia as descobertas das estruturas da
linguagem intrínsecas às estruturas cognitivas do olhar objetivante vislumbram
que o sujeito cognoscente está preso a estruturas lingüísticas e que seu
entendimento monológico não é a estrutura única da razão humana. A dialética do
esclarecimento revê as teses sobre o progresso técnico e sobre o desenvolvimento
das forças produtivas, desvelando a técnica e a ciência como ideologias. As técnicas
a serviço da indústria, o conhecimento objetificante, somadas ao diagnóstico da
crescente da burocratização e à unidimensão do trabalho morto enquanto força de
trabalho explorada, são totalizadas em teorias da reificação, da exploração e do
controle das massas, desembocando, do potencial revolucionário, em uma filosofia
da história escatológica, que tem como única saída sacrificial virar o
esclarecimento contra si mesmo. E ainda o recurso à genealogia tenta desvelar a
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vontade poder ocultada como um outro da razão, retornando à origem da tragédia
filosófica ou mapeando as tecnologias de poder e disciplinamento, aliadas ao
desmascaramento das ciências humanas. A crítica da razão pela corrosão da
metafísica temporalmente expõe a angústia do esquecimento do ser, e ainda
revestida em crítica da proeminência do fenômeno da voz sustentador do princípio
unificador, ordenador e mediador entre o sensível e o inteligível, ou seja, o Logus
que marginaliza a diferença e a temporalidade radicalmente internalizadas na
escritura. Não devemos ainda esquecer da condução da heteronomia pelo erotismo
contra as forças homogeneizadoras suplantadas pela economia geral, antecedida
pela descoberta expedicionária da psicanálise no reino do inconsciente, até então
estranho à razão.
Mesmo com essas descrições genéricas de críticas à modernidade, que
figuram como uma reprodução dos interlocutores do autor do discurso filosófico
da modernidade, Habermas, antes de inserir sua contribuição crítica e
solucionadora para a modernidade com sua ação comunicativa e com o apelo da
filosofia da práxis adverte que antes de qualquer intenção solucionadora que
atenda as patologias da modernidade devemos retornar com muita atenção ao
primeiro filósofo que concebeu conceitualmente a consciência dos novos tempos
como problema de autolegitimação da modernidade, ou seja, Hegel. Nesse espaço
vazio entre a consciência presente da modernidade e a crise e necessidade de
autolegitimação dessa ruptura de épocas históricas que, para Hegel, deve atuar a
filosofia. Então Hegel como filósofo moderno cria um sistema que atua nesse
espaço indeterminado dos fragmentos da modernidade e pensa a autolegitimação
da modernidade pela história, pelo estado, pelo direito, pela estética, pela
economia-política, até à religião. Habermas segue boa parte dessa contribuição
inexorável de Hegel, sempre com o eixo central de sua ação comunicativa passando
por outra contribuição inexorável, a da filosofia da práxis fundamentada no
materialismo histórico, reabilitado epistemologicamente para o paradigma da
filosofia da linguagem como processos de aprendizagem extraídos de
contingências de um desenvolvimento histórico-natural de formas de vidas
socioculturais, e também na instituição imaginária que rearticula simbolicamente
esses mesmos processos de aprendizagem do materialismo histórico.
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Logo, como filosofia da práxis, Habermas reclama um conteúdo normativo
extraído da própria modernidade historicamente entregue a si mesma. Ainda que
deslocando a modernidade para um novo paradigma da filosofia, o dialógico da
razão comunicativa, Habermas parte do princípio vertebral da modernidade: o
sujeito epistemológico e sua individualidade. Porém, como princípio universal, a
comunicação é conduzida a um lugar central no novo paradigma da filosofia, e o Eu
da filosofia da consciência só é reabilitado com o retorno de uma socialização
iniciada pelo entendimento intersubjetivo da comunicação. Só assim o princípio da
individualidade e o sujeito objetivante são reapropriados sem os excluir. Sendo
assim, o conteúdo normativo da modernidade e para a modernidade é reclamado
em três níveis: o primeiro nível da reprodução simbólica, que a partir de conteúdos
semânticos restabelece ou restaura variavelmente as conexões históricas entre
tradição e tempos modernos, e não podem fazê-la sem recurso ao passado; o
segundo a da integração social que por meio de usos lingüísticos estabelece
solidariedades e forma grupos sociais; e o terceiro nível é o da socialização, pois
integração e diferenciação estão em relação dialética, logo da relação com outros
pode-se sedimentar identidades pessoais. E para tal normatividade, a ação
comunicativa deve atuar impedindo o que genericamente pode ser chamado de Eu
não esteja destinado à solidão, à pura reação do inconsciente e ao austero poder do
Eu na racionalidade instrumental que conduz a irracionalidade – a negação das
margens do outro da razão –, a reificação e a destruição. Com a descrição acima
dos níveis do conteúdo normativo da modernidade, a mudança de paradigma da
filosofia, a inserção da filosofia da práxis revisada e o dever terapêutico, humanista
e solidário da ação comunicativa enquanto partes da solução para a modernidade
aberta teorizada, é coerente ao conceito de modernidade dividida em processos de
racionalização e teoria da sociedade, Deste modo, fechamos um ciclo: a conexão
entre conceito de modernidade e projetos restauradores para a modernidade
inacabada só é possível pelo diagnóstico da colonização do mundo da vida pelos
imperativos sistêmicos, que aponta para a necessidade de revitalizar o mundo da
vida para legitimar a modernidade ainda em crise.
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Conclusão
Parece clara a tentativa de Habermas para a modernidade de um equilíbrio
delicado, a qual não me surge outra palavra senão reconciliação. É como aparar as
arestas sem recorrer a um excesso de qualquer noção extemporânea que ao
mesmo tempo não fere a autenticidade moderna. E efetuado esse equilíbrio
delicado para a história, é pensar dialeticamente, porém, sem o recurso de uma
filosofia da história programática de destinos apocalípticos, de escatologias, de
consumação metafísica, mas uma filosofia da história que pesa as contingências do
novo, do impensado, do erro, do outro, realizadas no universal do potencial
comunicativo. E se o equilíbrio delicado da reconciliação é dialético, é também
mediado pela normatividade, que une ruptura e continuidades hegemônicas e
homogeneizadoras das metanarrativas históricas. A ruptura da consciência
moderna do tempo não deve ser um desmembramento, mas a totalização da
dialética da razão no exercício de abertura contínua, que cria recomeços históricos.
E assim, Habermas diz:
“A atualidade, enquanto renovação continuada, pereniza a ruptura com o passado... O pensamento político contaminado pela atualidade do espírito do tempo, e desejoso de enfrentar a pressão dos problemas da atualidade, é carregado de energias utópicas – porém, esse excedente de expectativas deve ser controlado pelo contrapeso conservador de experiências históricas” (HABERMAS, 2003, p. 9-10).
Citação não tão original vista a ligação com a tradição pensamento alemão,
mas seu retoque de originalidade se deve a sua teoria da modernidade e sua
epistemologia, relevantes no contexto dos debates contemporâneos.
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Referências Bibliográficas
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Da autenticidade à historicidade
Kaio Bruno Alves Rabelo Universidade Federal de Goiás
E-mail: kaiomoikano@yahoo.com.br
Resumo
Este trabalho pergunta pela relação entre o conceito de historicidade (Geschichtlichkeit) e de autenticidade (Eigentlichkeit) na obra mestra de Martin Heidegger, Ser e Tempo. PALAVRAS-CHAVE: Heidegger, Ser e Tempo, Historicidade, Autenticidade
Abstract
This work questions about de relation between the concept of historicity (Geschichtlichkeit) and authenticity (Eigentlichkeit) in Martin Heidegger’s master work, Being and Time. KEYWORDS: Heidegger, Being and Time, Historicity, Authenticity
Pretendemos aqui relacionar o conceito de historicidade em Ser e Tempo a
um problema interpretativo da obra. Trata-se do tema da autenticidade
(Eigentlichkeit) 1. Bem entendido, este conceito em nada pretende a apresentação
de um modo reto e correto de vida, embora seja, sim, uma tentativa de articular
compreensão filosófica e existência fáctica. Deparamo-nos com uma analítica
existencial; todos os conceitos ali apresentados estão a caminho de uma construção
que se quer transcendental ao mesmo tempo em que não pretende perder de vista
a existência daquele que filosofa. Neste sentido, a obra buscará existenciais para
caracterizar a historicidade, e estes existenciais serão corretamente entendidos
apenas se tomarmos em conta seu caráter de indicadores formais. No forte sentido
do verbo indicar (anzeigen): a facticidade, precisamente por seu caráter temporal,
não pode ser apreendida por conceitos que fixem conteúdos universalizantes,
senão que aquilo que nela se mostra deve ser indicado na forma, no modo, em que
1 Para uma breve discussão desta tradução, ver o tópico “Autenticidade”.
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se mostra. Mais interessante que um conteúdo é, assim, um como. Cabe aqui
lembrar: o conceito de existência é, ele próprio, um indicador formal, não é o quê
somos, mas como somos (ESCUDERO, 2004; REIS, 2001; STREETER, 1997).
Nosso objetivo é salientar um aspecto do conceito heideggeriano de
historicidade. Ou, mais precisamente, deste conceito tal Ser e Tempo o apresenta.
Seja como for que o problema da historicidade seja colocado, sempre se
perguntará, de algum modo, sobre a relação entre o indivíduo e um contexto mais
amplo – identificado como sociedade, cultura, povo, nação, humanidade, etc. – e
entre o indivíduo e outros indivíduos – relações inter-pessoais. É essencial tentar
entender os caminhos apontados pela obra para estes problemas. Para Heidegger,
se o homem é um ente que é-no-mundo, este mundo é, igualmente, um mundo
compartilhado com outros humanos. Dito de outra forma: o mundo é radicalmente
social1; mas esta sociabilidade será pensada a partir do indivíduo, do Dasein2,
ganhando o status de estrutura ontológica deste mesmo ente, de existencial.
Perguntar “como o indivíduo se sociabiliza?” em Heidegger só pode assumir
a forma: quais as estruturas ontológicas que permitem a um indivíduo encontrar
outro humano? Em que horizonte este encontro ocorre? Como é possível ao Dasein
encontrar outro humano enquanto Dasein? O “enquanto” sinala que este encontro,
como qualquer outro encontro com entes, é compreensivo. Só encontro uma
caneta enquanto instrumento-de-escrever, isto é, enquanto manual (zuhandenes).
Este é o modo de compreensão do ser que já possuo quando me relaciono com um
ente. Relacionar-se com outros humanos quer dizer, então, compreendê-los
enquanto humanos. Como isto é possível? Esta a direção em que Ser e Tempo
coloca a questão.
Ser-com e coexistência
Nos parágrafos que dedica ao conceito de significância, o conceito de
mundanidade é tematizado apenas a partir dos entes intramundanos, que se 1 “O mundo do Dasein é mundo compartilhado (Mitwelt). O ser-em é ser-com (Mitsein) os outros. O ser-em-si intramundano destes outros é coexistência (Mitdasein)” (ST: p. 170). 2 “The prime object of analysis in Being and Time, and in many of the lecture series preceding this book, is the life, or existence, of an individual human being. Correspondingly, the sociality Heidegger examines in these works is the sociality of an individual life. More strongly: sociality is treated only as a feature of individual life” (SCHATZKI, 2005: p.233).
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apresentam sob a forma do manual. Isto não esgota, Heidegger logo nos mostra, o
fenômeno da mundanidade e nem o da cotidianidade. Se o mundo da ocupação foi
caracterizado como circundante, este mundo, com justiça, é um mundo público:
In the work under concern as well as in the material being employed and the hand tool being used, there are others, for whom the work is, by whom the tool in its turn is produced, there with [the craftsman]. In the world of concern, others are encountered; and the encountering is being-there-with, not a being-on-hand (HCT: p.237).
De que modo os outros humanos primeiro se apresentam ao Dasein na
cotidianidade? Se por um lado a ocupação foi caracterizada como engajamento
atemático naquilo que fazemos, por outro já toda ocupação revela uma referência
constitutiva a outros humanos: “The tool I am using is bought by someone, the book
is a gift from…, the umbrella is forgotten by someone” (HCT: p.239). Esta referência
tem um caráter ontológico próprio. Ela não é acrescentada por mim através de
uma reflexão sobre a proveniência de um objeto. Trata-se do ser-com: “As being-in-
the-world, Dasein is at the same time being with one another – more rigorously,
‘being-with’”. (HCT: p. 238). O ser-com se diferencia da manualidade: este ente que
vem agora ao encontro no mundo circundante se mostra como algo de
radicalmente diferente de qualquer objeto do qual me ocupo, se mostra como um
também Dasein, que coexiste (Mitdasein) no mundo comigo, isto é, que “vem ao
encontro em sua coexistência no mundo” (ST: p. 171).
Ser-no-mundo, neste mundo compartilhado, é mais precisamente
enunciado, então, como ser-no-mundo-com-os-outros. Este “com” tem, assim como
o “em”, um sentido ontológico próprio. Ele não quer constatar que junto a mim
ocorrem outros Dasein, como se a presença corporal de alguém fosse o que
constitui o ser-com. A solidão não é aplacada pela presença de dezenas de pessoas
ao meu redor, também a completa ausência dos outros não faz com que o Dasein
deixe de ser-com, pois “... o estar-só do Dasein é ser-com no mundo. Somente num
ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar” (ST: p.172). Como estrutura
ontológica do Dasein, o ser-com, co-originário ao ser-no-mundo, é condição de
possibilidade para qualquer encontro com outro, enquanto coexistente. A
preocupação de Heidegger aqui é similar àquela que envolvia a enunciação do
conceito de mundo: assim como não há primeiro um sujeito isolado que então se
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coloca em relação com o mundo, também não um sujeito encerrado em sua
interioridade que então se coloca em relação com os outros. Pelo contrário,
enquanto me relaciono com o meu mundo, me relaciono comigo mesmo e com os
outros, “simultaneamente”, co-originariamente. O que ainda não diz
tematicamente, pois este encontro com os outros na cotidianidade apresenta os
mesmos modos de “deficiência e indiferença” que “caracterizam o conviver
cotidiano e mediano”:
Estes modos de ser ostentam, uma vez mais, o caráter de não-surpresa (Unauffälligkeit) e de obviedade (Selbstverständlichkeit) que é tão próprio à cotidiana coexistência intramundana dos outros como do estar à mão do útil de que nos ocupamos diariamente (ST: p.173).
A relação do Dasein com os outros apresenta características próprias, que
não se deixam apreender pelo modo de relação com os manuais, a ocupação
(Besorgen), isto é, dos outros “não é possível ‘ocupar-se’”, muito antes a relação com
o outro é solicitude (Fürsorge) (ST: p.173). Solicitude diz formalmente o direcionar-
se do Dasein aos outros:
Heidegger reserves the expression Fürsorge for any mode of comportment (Verhalten) toward others, from getting out of someone’s way on the street and a studied indifference to compatriots, to the “extreme possibilities” of taking over someone else’s performance of what they are doing and of awakening someone to the possibility of existence (SCHATZKI, 2005: p. 235).
A solicitude é um existencial, uma estrutura ontológica, que apresenta
múltiplas possibilidades existenciárias, ônticas, que Heidegger não aprofunda uma
vez que seu objetivo no parágrafo 26 é, em demonstrando o ser-com e a
coexistência como estruturas ontológicas, apresentar o mundo como mundo
compartilhado. Trata-se de perceber que a significância, a mundanidade do
mundo, precisamente pela abertura aos outros “se consolida como tal no existencial
ser-em-função-de” (ST: p.175). Isto pode soar terrivelmente abstrato, mas é de uma
concreção incisiva: se me significo significando o mundo, e o mundo é mundo
compartilhado, então na compreensão do meu próprio ser “já subsiste uma
compreensão dos outros”. Ainda mais profundo: se a cotidianidade apresenta de
início os entes sob modos deficientes e indiferentes da ocupação, e se “o outro se
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descobre, assim, antes de tudo, na solicitude das ocupações”, então a necessidade de
“conhecer o outro”, ultrapassando esta indiferença, apresenta quase uma coerção
ontológica: a mesma coerção que caracteriza a necessidade de compreender-se da
existência.
Assim, no entanto, ainda não chegamos à resposta pelo quem da existência
cotidiana. Mas já conseguimos colocar de modo mais preciso a pergunta. Uma vez
que ser-no-mundo é ser-com, o Dasein já sempre encontra entes que possuem o
mesmo modo de ser, e que como ele coexistem no mundo; assim “na medida em
que o Dasein é, ele possui o modo de ser da convivência” (ST: p.178). Convivendo em
um mundo partilhado o Dasein e os coexistentes encontram-se, uns aos outros e a
si mesmos, a partir das ocupações do mundo circundante: “Empenhando-se no
mundo das ocupações, ou seja, também no ser-com os outros, o Dasein também é o
que ele próprio não é. Quem é, pois, que assume o ser enquanto convivência
cotidiana?” (idem). O parágrafo 27 se dedica a responder esta pergunta.
O Impessoal (Das Man)
Na convivência cotidiana encontramos os outros naquilo de que se ocupam,
“eles são o que empreendem”. Nesta ocupação em que sempre se “faz” algo dos
outros, Heidegger nos diz, “a convivência é inquietada pelo cuidado em estabelecer
[um] intervalo” (idem), uma diferença, em relação aos outros. Este cuidado em se
diferenciar, em se distanciar, chama-se espaçamento (Abständigkeit). Aqui o Dasein
entrega suas possibilidades de ser à determinação do outros, está “sob a tutela dos
outros”. Mas estes outros não são ninguém determinado: “O quem não é este ou
aquele, nem o próprio do impessoal, nem alguns e muito menos a soma de todos. O
“quem” é o neutro, o impessoal“ (ST: p. 179).
Este é um conceito muito importante, cuja centralidade não podemos passar
por cima. Ser-no-mundo é ser-com os outros, coexistindo em um mundo
compartilhado, onde entregamo-nos à determinação dos outros. Estes outros,
enquanto impessoal, são o que todos já somos, enquanto retiramos do impessoal
nossas possibilidades de ser, mas que, ao mesmo tempo, ninguém pode ser, pois
não podemos renunciar em absoluto ao fato de sermos. Na cotidianidade nossas
possibilidades de ser são determinadas pelo impessoal, ao qual não podemos
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renunciar, ao qual não podemos fugir. Esta é uma esfera quase normativa, no
sentido de que prescreve o certo, o belo, o normal, etc. O impessoal não pode
perecer, não pode aprofundar, não pode duvidar, ele é o que se deve ser e é assim
que instaura sua ditadura.
O espaçamento, junto à medianidade e ao nivelamento, constituem o modo
de ser do impessoal que Heidegger chama de publicidade (öffentlichkeit) e que
revelam, por toda parte, uma tendência ao conformismo, à quietude, ao sossego,
tornando o desconhecido de muito o mais célebre para então jogá-lo ao
esquecimento do que é comum. O impessoal, além do mais, retira-nos o peso da
existência, por nos oferecer já como dada a decisão correta e o caminho normal a
seguir.
O impessoal responde à pergunta por quem é o Dasein cotidiano: “Todo
mundo é outro e ninguém é si próprio. O impessoal, que responde à pergunta quem
do Dasein cotidiano, é ninguém, a quem o Dasein já se entregou na convivência de
um com o outro” (ST: p. 181).
Na viva descrição do que constitui o conformismo do impessoal, muitas
interpretações, a nosso ver, se perdem, errando o alvo, por não conseguirem
perceber seu lugar estratégico na analítica existencial. O tom marcadamente
negativo que anuncia e descreve o conceito de impessoal é interrompido quando
se trata de mostrar este lugar: “O impessoal é um existencial e, enquanto fenômeno
originário pertence à constituição positiva do Dasein” (ST: p. 182). Ele marca uma
espécie de lócus em que a convivência partilha previamente os significados, de
onde o Dasein retira as possibilidades de compreensão de si e dos outros e onde
ele vive cotidianamente: “The common world, which is there primarily and into
which every maturing Dasein first grows, as the public world governs every
interpretation of the world and of Dasein” (HCT: p. 246). Mesmo com as
insuficiências, ele é um fenômeno positivo, na medida em que é o médium em que a
compreensão mútua é possibilitada. A publicidade do impessoal só faz sentido se
lembramos que, em sentido rigorosamente ontológico, não há o “meu” mundo que
se trataria então de por em relação com o “do” outro, “world is always given as the
common world” (HCT: p. 246):
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It is not the case that on the one hand there are first individual subjects which at any given time have their own world; and that the task would them arise of putting together, by virtue of the individuals and of agreeing how one would have a common world. This is how philosophers imagine things when they ask about the constitution of the intersubjective world (idem).
Mas e a autenticidade? Não é justamente a impessoalidade a marca do
Dasein inautêntico, daquele que entrega suas possibilidades à égide do impessoal?
Aqui há que se perceber a ambivalência do conceito de impessoal. Se, por um lado,
ele apresenta o caráter positivo de médium do mundo compartilhado, por outro,
ele é a pedra angular da existência inautêntica, que se mostra como próprio-
impessoal. Portanto, com Guignon (1985), precisamos distinguir entre impessoal
(das Man) e próprio-impessoal (das Man-selbst). O texto de Heidegger aponta, de
fato, neste sentido: “O próprio do Dasein cotidiano é o próprio-impessoal que
distinguimos do si mesmo em sua propriedade, ou seja, do si mesmo apreendido
como próprio1” (ST: p.182). Distinguindo entre o impessoal e o próprio-impessoal
nós abrimos uma possibilidade para não identificar, pura e simplesmente,
inautenticidade e impessoalidade, evitando assim a recorrência a um tipo de
solipsismo, expresso na visão de que a convivência com os outros está marcada
pela inautenticidade, radicalmente oposta à autenticidade, que surgiria da decisão
autônoma de um indivíduo. Haveria, assim, uma terceira possibilidade, neutra, que
se identificaria com o modo de ser cotidiano: “Sendo porém sempre meu, o poder-
ser é livre para a propriedade2 e a impropriedade ou ainda para um modo de
indiferença” (ST II: p.11).
Sobre este ponto, é preciso admitir, não há acordo. Dispomos de
interpretações divergentes, sustentadas por alguma evidência textual, ou por
argumentos de coerência com o restante da obra. Estas divergências são geradas
por ambigüidades do próprio texto de Ser e Tempo, que não procuraremos
apaziguar3. Mas como é urgente escolher, explicitaremos os termos de nossa
escolha por uma breve exposição, sem maiores ambições críticas, de algumas das
posições.
1 „Das Selbst des alltäglichen Daseins ist das Man-selbst, das wir von dem eigentlichen, das heißt eigens ergriffenen Selbst unterscheiden“ (SZ: p. 129). 2 Eigentlich: Utilizaremos, de forma indistinta, as duas traduções possíveis, autenticidade e propriedade. 3 Guignon, 1985: p. 328. Boedeker, 2002: p.64.
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Uma das possíveis interpretações, podemos encontrar na obra de Steiner
(1978), As idéias de Heidegger. Ali o autor identifica impessoalidade e
inautenticidade, e os insere na história do conceito de alienação, tornando a
posição heideggeriana um diagnóstico da sociedade contemporânea:
O diagnóstico de Heidegger relaciona-se, é certo, com a percepção de Engels da desumanização do indivíduo numa sociedade de massa, e com as análises da anomia de Durkheim, as quais, por seu turno, apontam ambas para os conceitos de alienação de Rousseau e Hegel (STEINER, 1978: p.81).
Na pertença do impessoal à estrutura ontológica do Dasein, Steiner vê uma
“concepção de ‘positividade’ da alienação” (idem: p. 84), pois “deve haver
inautenticidade (...) para que Dasein, ao tomar consciência de sua perda do eu, possa
esforçar-se por retornar ao ser autêntico” (idem: p.85). Sob esta interpretação a
alienação, sinônimo de inautenticidade, seria rompida pela conquista do meu eu
possibilitada pela angústia, em que somos dispostos pela descoberta da própria
morte.
Três razões nos levaram a não concluir pela interpretação de Steiner. A
primeira, a identificação pura e simples de impessoalidade e inautenticidade-
alienação e, uma vez que o impessoal é o “quem” da convivência cotidiana,
cotidianidade. O que conduz a posições estranhas: queria Heidegger dizer que
quando manuseio um martelo sou inautêntico, alheio a mim mesmo, alienado? Ou,
muito antes, que, sendo o martelo feito para “qualquer um”, quando martelo sou eu
mesmo este “qualquer um”, martelando tanto melhor quanto proceder como se
deve? E para martelar como se deve não preciso previamente ter aprendido como
“qualquer um” martela? E de onde aprendo senão desta dimensão partilhada do
mundo?
A segunda, mesmo que a descrição da impessoalidade lembre muito do que
já a tradição apresenta sob a expressão alienação, e que, de fato, o próprio-
impessoal seja um não ser a partir de si (portanto alheio a si, o que justifica as
aparições em Ser e Tempo da palavra Entfremdung, SZ: 178, 180, 254), Heidegger
não apresentou a inautenticidade como constituindo uma teoria da alienação. A
posição de Steiner não está tão interessada em saber o porquê do filósofo assim
proceder, ela, muito antes já afirmou que é assim mesmo que ele tenha dito o
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contrário. E de fato, Steiner segue sua análise comparando e diferenciando
Heidegger ao existencialismo de Camus, de Sartre, de Marcuse, etc., mas nenhuma
vez sequer coloca a pergunta sobre até que ponto Ser e Tempo é esclarecido ou
obscurecido por tais comparações. Até que ponto ali se tratava de realizar um
“diagnóstico” da sociedade contemporânea? Esta é a pergunta central. No interesse
de caracterizar o impessoal como a apresentação deste diagnóstico
frequentemente se perde seu lugar na analítica. E quando Heidegger em 1949
alertava, na Carta Sobre o Humanismo1, para tal fato, entende-se isto como uma
“mudança de posição” 2 do filósofo.
Terceira, a pergunta “natural” que segue à apresentação do homem alienado
é: como superar esta alienação? Que em Ser e Tempo “equivaleria” a uma
recuperação de si; o que, desde este ponto de vista, conduziria ao conceito de
angústia e a uma conclusão: a auto-afirmação do indivíduo perante a morte ou, em
outras palavras, a um indivíduo que rompe – pelo menos parcialmente –,
exclusivamente a partir de si, a alienação. O que passamos de lado é que a
possibilidade assumida pelo Dasein na autenticidade é a mesma possibilidade em
que ele antes já se encontrava, apenas encarada de uma forma diferente. Se não há
superação da impessoalidade não é porque Heidegger encontra uma “positividade
da alienação”, mas porque ela é uma estrutura ontológica constitutiva do Dasein. E
como estrutura ontológica de um ente que é caracterizado por possibilidades, ela
oferece ao Dasein diferentes possibilidades de ser. Dentre elas as duas mais
radicais: autenticidade e inautenticidade. E estas possibilidades provêm
primeiramente do mesmo lugar, da impessoalidade, da esfera intersubjetiva em
que o mundo é compartilhado. É o que a próxima posição pretende acentuar.
Através de uma aproximação entre as filosofias de Heidegger e
Wittgenstein, Dreyfus (2002) apresenta o conceito de impessoal como uma esfera
intersubjetiva e normativa que é fonte de significação: “De modo que para
Heidegger e Wittgenstein, a origem da inteligibilidade do mundo são as práticas 1 “Aquilo que se diz em Ser e Tempo (1927), §§ 27 e 35, sobre o “impessoal” não quer fornecer, de maneira alguma, apenas uma contribuição incidental para a Sociologia. Tampouco o impessoal significa apenas a figura oposta, compreendida de modo ético-existencialista, ao ser-si-mesmo da pessoa” (SH: p.151). 2 A propósito da Carta Sobre o Humanismo, Steiner comenta: “Heidegger está cônscio da extravagância de sua própria fraseologia e argumentação, do grau em que o seu discurso se distancia não só da metafísica tradicional e da retórica existencialista-humanista, mas até do método largamente diagnóstico de Sein und Zeit” (STEINER, 1978: p. 109, grifos meus).
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públicas medianas, as únicas mediante as quais se pode chegar a uma compreensão”
(idem: p.121). Esta normatividade é condição de possibilidade para que haja
mundo enquanto trama de significações, intersubjetivamente constituídas, com as
quais estamos familiarizados:
O constante controle que exerce o impessoal sobre cada Dasein possibilita um todo referencial coerente, os em-função-de-si compartilhados e assim, finalmente a significação e a inteligibilidade (idem: p.125).
Esta interpretação tem o mérito de corrigir visões como as de Steiner, que
tendem a perder, através de uma autenticidade solipsista, a dimensão
compartilhada do mundo. De fato, se sei martelar como se deve é porque
previamente aprendi a martelar. E este aprender tem origem na dimensão
intersubjetiva do impessoal: mesmo que nunca tenha visto alguém martelando,
basta olhar para um martelo e um prego diante da necessidade de fixar algo na
parede que “descubro” como foram feitos um para o outro. E já neste “ter sido
feito” comparece a dimensão normativa. Dreyfus restaura um caráter positivo das
normas em Ser e Tempo: elas sustêm a organização significativo-intersubjetiva do
mundo. Partilhamos desta visão do autor.
Pode-se acusá-lo de aproximar excessivamente Heidegger de Wittgenstein e
de simplesmente desconsiderar certos aspectos de Ser e Tempo, por exemplo, o
fato de privilegiar a primeira seção em detrimento da segunda. Estamos cientes
disto. Concordamos com o autor até o limite em que afirma o impessoal como uma
estrutura fundamental do mundo, que o caracteriza como compartilhado, mas
discordamos quando ele afirma que ele é a origem da significação. Partilhamos
neste ponto a visão de Keller e Weberman1 (1998):
The everydayness of das Man and language are partial sources of intelligibility but only insofar as they are comprehended within the greater unitary structure of care and temporality. Care and temporality constitute the foundational underpinnings for disclosure and the intelligibility of “that wherein Dasein dwells” (idem: p. 383).
Esta centralidade do conceito de impessoal é patente no fato de que ele é
um existencial, não podendo ser, portanto “superado”: “O ser do que é próprio não
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repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele é uma
modificação existenciária do impessoal como existencial constitutivo” (ST: p. 183). O
que justifica, assim, na formulação de Boedecker (2002) a distinção entre
impessoal – estrutura ontológica – e próprio-impessoal – possibilidade de ser; e
ainda a afirmação da cotidianidade como uma possibilidade neutra, nem autêntica,
nem inautêntica. Todavia isto pede uma discussão do conceito de autenticidade.
Avancemos.
Autenticidade
É preciso começar aqui com uma breve discussão da tradução da palavra
alemã eigentlich (muito próxima da palavra inglesa actually), propriamente, de
fato, que deriva de eigen, próprio, específico. Eigentlichkeit então, em uma tradução
mais ponderada, não significaria autenticidade, mas propriedade (assim como
traduz a edição brasileira). A expressão alemã, que corresponderia corretamente a
“autenticidade”, seria “echtheit”. Heidegger não utiliza as duas palavras como
sinônimos1, mas, ao contrário de “eigentlichkeit”, “echtheit” não recebeu um
tratamento conceitual aprofundado em Ser e Tempo (e na verdade aparece bem
poucas vezes na obra). Aquilo que é “eigentlich” do Dasein é aquilo que é próprio
dele, aquilo que se refere a ele de modo radicalmente singular, ao seu ser enquanto
“eu sou” (enquanto existência em 1ª pessoa). Há uma ambigüidade na palavra
alemã, como na palavra portuguesa (propriedade) que Heidegger quer evitar: um
Dasein não eigentlich seria um não propriamente (não de fato, not actually) Dasein.
Escolhemos traduzir por autenticidade, que tem sido mais usual, e que nos
parece oferecer possibilidades positivas2, mas não desconsideramos a outra
tradução, que frequentemente também usamos. A palavra autenticidade é de um
tom bem mais exortativo que propriedade. Ela já se insere em uma dicotomia, o
1„Das eigentliche ebensowohl wie das uneigentliche Verstehen können wiederum echt oder unecht sein” ( SZ: p. 146). A compreensão própria do mesmo modo que a imprópria podem ser autêntica ou inautênticas (ST: p. 202). 2 Particularmente pela sua etimologia. Autêntico vem do grego auto (si mesmo) + hentes (aquele que faz), isto é, aquele que age a partir de si mesmo. “Hence eigentlich, when used as a technical term, is close to 'authentic', which comes from the Greek autos, 'self, etc' and originally meant 'done by one's own hand', hence 'reliably guaranteed'” (INWOOD: p.23).
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genuíno e o falso, e captura aí nossos ouvidos. Que se evite esta captura, mas não
qualquer exortação. Admitimos francamente: é muito difícil não ver na
autenticidade algo de positivo e na inautenticidade algo de negativo. A primeira é
sem dúvida um senso de responsabilidade em relação à própria vida, por oposição
à segunda, a uma perda de si mesmo na impessoalidade. Não obstante, o filósofo
defende que os achados da investigação são neutros e nós não consideramos isto
uma mera “retórica de defesa”; muito pelo contrário, consideramos esta
neutralidade justificada ao nível de uma ontologia da existência, tal ele a entende.
Mas como assim? Positivo, negativo e, ainda assim, neutro? Primeiro vejamos o que
significa, de um ponto de vista ontológico, autenticidade.
Autenticidade e inautenticidade são duas possibilidades da existência, as
duas mais radicais. Elas estão fundadas em uma estrutura ontológica (em um
modo de ser): no fato do Dasein ser sempre e a cada vez este ente que eu mesmo
sou; isto que Heidegger tenta reunir em uma palavra: Jemeinigkeit. Sendo sempre
si mesmo o Dasein tem a possibilidade de assumir-se em suas possibilidades ou de
entregar sua compreensão aos “outros”. O que está em jogo aqui é uma diferença
abismal entre a primeira pessoa e a segunda e terceira pessoas:
Authentic modes of existence, in this strictly formal sense, are those in which Dasein stands in a directly first-person relation to itself, in contrast to the second- and third-person relations in which it stands to others, and which it can adopt with respect to itself, at least up to a point (CARMAN, 2005: p.285).
Uma existência autêntica em sentido rigorosamente ontológico não define
um quid para o existir, mas um como. Em outras palavras, não determina esta ou
aquela possibilidade, mas, antes, como é a relação do Dasein consigo mesmo uma
vez que ele esteja em qualquer possibilidade. Age nesta determinação a diferença
entre ente e ser, a diferença ontológica, que na trama da existência configura-se
como a diferença entre o existenciário e o existencial. Como possibilidade a
autenticidade já sempre se apresenta concretamente; não é uma possibilidade
vazia e formal, mas uma possibilidade que circunscreve o real da existência. A
autenticidade implica, do mesmo modo que qualquer possibilidade de existir, a
facticidade; mas não implica esta ou aquela facticidade determinada. É neste
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horizonte que o conceito de autenticidade é neutro, que não implica uma
valoração.
O conceito de morte delineia bem o significado do “eu sou” heideggeriano.
Todo o esforço em demonstrar a impossibilidade de experienciar a minha morte na
morte dos outros coloca em destaque a característica essencial da morte: ela é a
iminente, irrevogável e irrenunciável possibilidade da existência. Uma
possibilidade sui generis, pois não é um poder-ser, mas um poder-não-ser. Perante
a morte a existência revela seu caráter singular e único, na sua irrevogável
imposição sobre nós ela nos individualiza: assim como ninguém pode morrer a
minha morte por mim, ninguém pode viver a minha vida por mim. Esta capacidade
que a morte tem de desvelar a existência é o que será aproveitado por Heidegger
através da angústia – o sentimento (stimmung) que marca nossa relação com ela.
A angústia abre ao Dasein o fato de seu estar-lançado. Enquanto o medo é
medo de alguma coisa a angústia é angústia por “nada”. Nesta indeterminabilidade
da angústia, nesta sua carência de um “objeto” no qual se realizar, é o próprio ser-
no-mundo o que se mostra, o que nos angustia. Em outras palavras, é o nosso
próprio ser: o fato de já-sermos e de termos-que-ser. A angústia abre ao Dasein a
situação. Um conceito tão profundo quanto difícil de precisar. A situação é tudo o
que já somos, ao que estamos entregues, o que empreendemos, o que nos
condiciona, o que escolhemos, o que escolheram por nós, não uma efetividade
insuperável, mas possibilidades coercitivas, possibilidades em que já estamos
situados e para as quais não podemos simplesmente passar ao lado. Enquanto sou
nesta ou naquela possibilidade, por exemplo, a de estudante de história, sou o
fundamento da negação de todas as outras possibilidades, por exemplo, a de ser
estudante de medicina. A situação mostra ao Dasein que ele é o fundamento de
uma negação, que ele é um fundamento negativo: isto o que Heidegger tenta
apreender através do existencial schuld, culpa, débito. Negando todas as demais
possibilidades de ser o Dasein está em débito consigo mesmo.
Por que deve ser assim? Afinal, sempre há a possibilidade de que eu chegue
à conclusão de que história não é bem o que eu queria e de que medicina é uma
ciência muito mais interessante. Eu poderia então, depois de considerar e transpor
os obstáculos inerentes à minha decisão, mudar de curso. Mas eu poderia fazer isto
indefinidamente? Evidente que não. E não apenas pelas dificuldades próprias a
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uma vida de estudante prolongada por inúmeras mudanças de curso, mas,
principalmente, porque eu morro. Porque meu tempo está contado e se esgotando,
porque sou finito, porque minha mortalidade é o que constitui minha condição de
humano. Há uma relação entre aquilo que se mostra na situação e a minha finitude.
É por isto que a decisão, como a escolha da situação, pedirá a antecipação, como
projetar-se certo na finitude. A decisão é escolha da escolha, escolha do fato de que
já sou e de que tenho que ser, de que tenho que “fazer” algo de mim mesmo e, com
isto, a decisão também é cisão com o próprio-impessoal, no sentido de que
ninguém pode escolher por mim, sou eu mesmo quem tenho “que me virar”. Esta
decisão que coloca o Dasein em sua autenticidade é sempre tomada sob a luz do
reconhecimento da finitude: é decisão antecipadora. Autenticidade, assim, é o
escolher-se que se projeta, certo e angustiado, na possibilidade insuperável da
morte.
Ser e Tempo persegue do princípio ao fim de suas páginas realizar uma
investigação acerca do sentido do ser. De acordo com a elaboração da pergunta ela
só poderia ser respondida com uma prévia investigação sobre o modo de ser
daquele ente que nós mesmos somos, do ente que compreende ser. O projeto de
uma ontologia requer uma analítica existencial. Mas como? Como acessar este
ente? Segundo que fio condutor? Dois pontos aqui se destacam: 1) para realizar
uma pergunta pelo ser preciso já ter uma prévia compreensão do que significa ser:
ela está disponível no Dasein; 2) não se buscará uma compreensão do ser nesta ou
naquela concepção de ser, mas começar-se-á por perguntar como o Dasein
primeiro e na maioria das vezes compreende o ser: a investigação se orienta pela
cotidianidade. Esta não é de modo algum neutra. Já ela está afetada por concepções
colocadas à disposição pela tradição. Não obstante, Heidegger acredita ser possível
realizar uma hermenêutica do cotidiano, interpretando os significados profundos
que tal modo de ser esconde. Neste ponto a investigação já mostra seu caráter
circular: “Heidegger’s solution to this problem [a circularidade] is to begin with our
vague average understanding of being and use it as a ‘preliminary’ and ‘tentative’
horizon of understanding for inquiring into the Being of Dasein” (GUIGNON, 1985:
p.325). A partir deste primeiro horizonte interpretativo será possível, e necessário,
revisar o que foi achado, conquistando então um novo horizonte, e assim
sucessivamente. Mas como colocar um ponto final? “What is required, then, is some
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criterion that will determine when we have arrived at the ultimate horizon for
understanding the meaning of Being” (idem: p.326).
Para esclarecermos isto que Guignon chamou de “função metodológica” da
autenticidade voltemo-nos a duas perguntas que aparecem logo no início da
segunda seção de Ser e Tempo:
“Será que devemos considerar a caracterização ontológica do Dasein enquanto cuidado como uma interpretação originária desse ente? Sob que parâmetro se deve avaliar a analítica existencial do Dasein no tocante à sua originariedade e não-originariedade?” (STII: p.10). E uma vez que toda interpretação que se pretenda originária deve “levar todo o ente tematizado à sua posição prévia”, Heidegger acrescenta que “a análise existencial do Dasein, até aqui realizada, não pode pretender originariedade. Na posição prévia sempre se encontrou apenas o ser impróprio do Dasein como o que não é total”. (STII p.12).
Em outras palavras: o horizonte conquistado pela primeira seção é
insuficiente. A interpretação deve ser repetida, aprofundada, ela precisa conquistar
um novo horizonte. Aquele em que o modo de ser do ente investigado seja trazido
à luz em sua totalidade e originariedade. E tal momento será conquistado
precisamente através da autenticidade: “Graças à demonstração de um poder-ser-
todo em sentido próprio (eigentlichen Ganzseinkönnens) do Dasein, a analítica
existencial se assegura da constituição ontológica originária do Dasein” (STII p.13).
Quando da discussão do conceito de impessoal nós já afirmamos que em
nossa visão impessoalidade e cotidianidade, embora profundamente relacionadas,
não podem ser simplesmente identificadas à inautenticidade. Apontamos, no
interesse de corroborar nossa visão, a distinção entre impessoal e próprio-
impessoal, além da situação ontológico-existencial do impessoal. A afirmação de
que o conceito heideggeriano de autenticidade repousa numa espécie de
solipsismo (ou decisionismo, ou voluntarismo), em que um Dasein autônomo
afirma sua identidade perante uma impessoalidade (todos “os outros”) corruptora,
no fundo, repousa sobre uma tal identificação. Se há qualquer espécie de
solipsismo em Ser e Tempo, a nossa opinião é de que ele é um solipsismo
“positivo”, ou pelo menos inegável e insuperável: o solipsismo de nossa própria
morte, que nos individualiza e singulariza, que nos requisita em sua iminência. No
entanto, não podemos esquecer que na compreensão de nós mesmos, das
possibilidades em que vivemos, não pode haver solipsismo, pois elas são
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determinadas por uma teia de relações (significância) relacionalmente
constituídas: o papel do professor que implica o do aluno, o de pai que implica o de
filho, o de vendedor que implica o de comprador. Para Heidegger, já sempre
quando respondemos à pergunta “quem sou?”, o fazemos através de situarmo-nos
nesta teia significativa (no mundo). A diferença entre a autenticidade e a
inautenticidade está em como encaramos esta situação. Não chegamos com isto a
uma insuperabilidade do impessoal de funestas conseqüências para a
investigação?
For if all possibilities of understanding are drawn from the Anyone (das Man), and if the Anyone’s understanding of what it is to be is shot through with misinterpretations and misunderstandings, then there appears to be no way in which becoming authentic can provide us with a deeper grasp of the meaning of being (GUIGNON, 1985: p.334).
Aqui a historicidade aparece propriamente como problema em Ser e
Tempo. Perceba-se desde já sua íntima conexão com o restante da obra e sua
coerência ao redor da pergunta central pelo sentido do ser. Ela é de um peso
significativo intenso: deve mostrar que a autenticidade é capaz de prover uma
visão da totalidade do Dasein que, sem poder superar em definitivo os
encobrimentos provenientes do impessoal, pode, no entanto, encontrar suas
fontes. A historicidade deve conduzir Ser e Tempo ao seu final.
Os existenciais da historicidade: repetição e destino
No quinto capítulo da segunda seção de Ser e Tempo Heidegger discute a
historicidade como um modo de ser do Dasein, como um existencial. Se o Dasein é o
ente que se estende entre nascimento e morte, então ele só será corretamente
apreendido, em sua totalidade, quando se caracterizá-lo a partir desta dupla
relação com seus fins (nascimento e morte) e com o “entre”. O acontecer específico
da existência como o “algo” entre nascimento e morte é o que Heidegger chama
primordialmente de historicidade:
Chamamos de acontecer do Dasein a movimentação específica do se estender na extensão... Liberar a estrutura do acontecer e suas condições existenciais e temporais de possibilidade significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade (ST II: p. 179).
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Como é possível que, no interior deste acontecer, se mantenha algo
constante, o próprio Dasein, em meio a tantas mudanças? Como é possível que
mantenha uma identidade? Ontem tinha 5 anos de idade, era assim, hoje tem 30, é
de outro modo, amanhã terá 50, novamente diferente e, não obstante, é o mesmo.
Como isto é possível? Implicitamente, diz-nos Heidegger, entende-se o Dasein
como uma coisa jogada no tempo e que sofre tais e tais mudanças. Como só é
propriamente real o presente, aquilo que está “de fato” aí, surge o problema de
saber como o que não mais é real e o que ainda não é pode constituir e interferir no
que é. Como uma coisa que se constitui por um não mais ser (meu passado) e ainda
não ser (meu futuro) pode ser real aqui e agora? Qual identidade a sustém?
Heidegger ataca tais problemas em seu ponto de partida: 1) pensa-se o tempo
como uma coleção de átomos de agora que, então, trata-se de colocar em relação,
de “juntar” em uma unidade maior e 2) pensa-se a história como um assunto de um
agora que já não mais está disponível, que já pertence ao passado (e que talvez
influa no presente). Mas e um monumento que pertence ao passado e, não
obstante, está aí, diante de nossos olhos. O que constitui o seu caráter de histórico?
As “antiguidades” conservadas no museu, os utensílios domésticos, por exemplo, pertencem a um “tempo passado” e se encontram também simplesmente dadas no “presente. Se este instrumento ainda não passou em que medida ele é histórico? (STII: p. 185).
A pergunta é: o que “passou” em tal instrumento que faz com que agora,
mesmo diante dos nossos olhos, ela já seja histórico? Seria o fato de não mais ser
empregado na sua destinação original? Certamente que não, pois uma taça de
cristal que passa em uma família de geração em geração e é utilizada em datas
comemorativas não deixa de ser histórica. Pense-se, por exemplo, nas casas-
históricas da Cidade de Goiás: “patrimônios históricos” e, ainda assim, “casas”.
O que então “passou”? Nada mais que o mundo, no seio do qual, pertencendo a um nexo instrumental, vinham ao encontro da mão e eram utilizados por um Dasein no mundo de suas ocupações. O mundo não é mais. O intramundano daquele mundo já não é mais simplesmente dado (idem).
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Se o pertencimento ao mundo é o que constitui a historicidade do
instrumento e mundo é um existencial, então é o Dasein o primordialmente
histórico. No entanto, o passar deste ente não pode ser pensado do mesmo modo
que o manual ou que o ente simplesmente dado. Razão pela qual Heidegger
utilizará gewesenheit e não vergangenheit para nomear este “ter sido” do Dasein1.
Neste sentido, é a constituição temporal-ecstática do Dasein, sua temporalidade,
que deve fornecer a base para a compreensão da historicidade. Isto não é mais que
dizer: apenas porque é temporal o Dasein é histórico. Deve-se reconduzir o
problema da historicidade à estrutura do cuidado, o que significa elaborar este
problema de acordo com a possibilidade da autenticidade. E, na verdade, é o
próprio conceito de autenticidade o que agora ganhará uma reformulação.
Heidegger nos disse: a decisão antecipadora coloca o Dasein diante da
possibilidade de ser autêntico. Ela garante a possibilidade desta autenticidade. No
entanto a possibilidade que escolho é retirada do mesmo lugar em que eu já antes
me encontrava: da impessoalidade. Não há rompimento com o impessoal, mas com
o próprio-impessoal – com o si-mesmo inautêntico. Se elas são retiradas do
impessoal, a forma com que eu as encaro, no entanto, foi transformada: “A decisão
em que o Dasein volta para si mesmo abre cada uma das possibilidades factuais de
existir propriamente a partir da herança que ele, enquanto lançado, assume” (STII:
p. 189). As possibilidades são assumidas como herança:
In other words, the facts of social, cultural and personal history that make up an individual’s present situation constitute an inheritance which she must grasp if she is to project a future to herself; and part of that inheritance is a matrix of possible ways of living, the menu of existentiell possibilities from which she must choose (MULHALL, 2005: p.186).
O conceito de herança nos remete ao de destino. A possibilidade
autenticamente escolhida na decisão alcançada perante a antecipação da morte é a
assunção das possibilidades herdadas na forma de um destino: “Este termo designa
1 Vergangenheit é a tradução exata de passado, vem de vergehen que significa passar. Gewesenheit, no entanto, deriva do particípio do verbo ser (sein – gewesen). Gewesenheit diz um não simplesmente passar (no sentido de acabar e terminar), mas ter sido. “But what is past is sometimes over and done with: saying someone or something 'is history' can mean that it lives on in the present, but it can mean, especially if it is 'ancient history', that it is dead and gone. So Heidegger coins another word, using the perfect participle of sein ('to be'), gewesen, '(having) been': (die) Gewesen-heit, '(having) beenness, living past'” (INWOOD: p. 154).
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o acontecer originário do Dasein, que reside na decisão própria, onde ele, livre para a
morte, se transmite a si mesmo numa possibilidade herdade mas, igualmente,
escolhida” ST: p. 190). E como o mundo é sempre mundo compartilhado, o destino
será, da mesma forma, partilhado com outros na forma de um envio comum. Neste
sentido Heidegger refere-se ao conceito de geração para caracterizar o acontecer
autêntico de um povo, de uma comunidade. Parece-nos claro que o acontecer
histórico resta caracterizado a partir da idéia de tradição e que esta joga um papel
fundamental na decisão antecipadora do Dasein. Mas a tradição é ambivalente, ela
esconde suas raízes, suas fontes, ela vela tanto quanto desvela: a investigação
ontológica será, portanto, destruição. A historicidade é, assim, chamada a
confirmar a possibilidade de autenticidade: “As authentically historical, Dasein
exists as “fate”: in its resolute, “simplified” projection onto death, it takes over the
most basic possibilities it has inherited from history and appropriates as its own”
(GUIGNON, 1985: p. 337). Mas então toda autêntica compreensão do Dasein é
apenas possível contra o solo de uma tradição herdada. O que ainda não diz uma
compreensão da herança enquanto histórica, isto é, não diz apreensão explícita
através de uma crítica histórica.
But when authentic Dasein does have an explicit understanding of its basic possibilities as historical, then authentically takes the form of a ‘retrieval’ or ‘repetition’ (Wiederholung) of the possibilities that have come before (GUIGNON, 1985: p. 337).
Repetição como retomada do possível é a explícita instauração de uma
relação autêntica e histórica, por isto existencial, com o passado. Não se trata ainda
de uma ciência, mas de um pensamento histórico decidido. O que Heidegger está a
nos dizer é que possibilidade é aquilo que concerne primordialmente a qualquer
pensamento histórico – seja ele o do historiador, o do filósofo, o do revolucionário,
ou o do tradicionalista. Se a repetição é a explícita requisição para que o passado se
mostre (e isto como retomada das possibilidades da tradição como minhas
próprias possibilidades), esta retomada tem um sentido, frisemos, existencial.
Considerações Finais
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Dizer que a historicidade é originariamente existencial não é apenas
salientar o fato de que somos históricos, mas que a ciência surge a partir de um
contexto de interesse vital do historiador pelo passado. Sem tal interesse o
passado restaria morto, apenas tema de curiosidade. Dizer que a história surge do
ser-para-a-morte é dizer que ela surge da mais inquietante pergunta: o que somos?
Voltamo-nos ao passado porque ficamos em dúvida do que somos, porque somos
constantemente esta dúvida. E precisamos dela fazer algo, pois existimos, temos
que ser. Método, conceitos e critérios de verdade são temas que surgem a partir de
uma forma nova de se relacionar com a historicidade, a partir da tematização
científica.
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Revista de Teoria da História Ano 1, Número 1, agosto/ 2009 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892
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Normas editoriais
1. Páginas: margem superior 2,5 cm; esquerda 3 cm; inferior 2,5 cm; direita 3 cm (margem normal)
2. Fonte Cambria; 3. Título: fonte 16; centralizado em negrito. 4. Titulação, nome, instituição e e-mail para contato, alinhado à direita, fonte
12. 5. Resumo e abstract: espaçamento simples. 6. Palavras-chave: máximo de 5. 7. Citação direta no corpo do texto tamanho 10, espaçamento simples, com
recuo de 4 cm. Para notas de rodapé, tamanho 10, espaçamento simples. 8. Corpo do texto, fonte 12, espaçamento 1,5 entre linhas. 9. As citações e indicações de fonte devem constar no corpo do texto, com
nome do autor, ano e página da obra referida (AUTOR, 2009, p. 17). 10. Referências bibliográficas.