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Revista Científica da FASETE 2018.2|......243
ENTRE A COMPLEXIDADE E A PERPLEXIDADE:
O DIREITO À DIFERENÇA E AO RECONHECIMENTO DO REFUGIADO
Débora Patricia Seger
Mestranda do PPGDireito da URI. Especialista em Direito do Trabalho e Processo Trabalhista pela
UNINTER. Bacharel em Direito pela URI, campus de Santo Ângelo/RS. Integrante do grupo de pesquisa
Minorias, movimentos sociais e políticas públicas.
Osmar Veronese
Doutor em Modernización de las Instituciones y Nuevas Perspectivas en Derechos Fundamentales, pela
Universidad de Valladolid/Espanha, Professor de Direito Constitucional da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI (Graduação e Mestrado/Doutorado), e da Faculdade Cnec
Santo Ângelo, Santo Ângelo/RS. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Estado, Constituição, Diferença:
olhar crítico sobre a diversidade no constitucionalismo” e Líder do Grupo de Pesquisa “Direitos de
Minorias, Movimentos Sociais e Políticas Públicas”, com registro no CNPQ, vinculado à linha de
pesquisa Direito e Multiculturalismo, do Mestrado/Doutorado em Direito da URI/Santo Ângelo/RS. Procurador da República. E-mail: osmarveronese@gmail.com
RESUMO
O artigo analisa a questão da mobilidade humana na época da complexidade,
enfocando principalmente os refugiados. Objetiva-se, com base na teoria do
reconhecimento, demonstrar que o atuar de muitos humanos, e até de Estados,
dificulta o efetivo reconhecimento da diversidade, em especial quando ela está
envolta em tragédia, bloqueando canais de amor, direito e solidariedade, além
de potencializar o surgimento de fundamentalismos aniquiladores do direito à
diferença.
Palavras-chave: Complexidade. Reconhecimento. Direito a diferença.
Refugiados.
ABSTRACT
In the present work, an attempt is made to analyze the current complexity of
the issue of human mobility, especially in a specific group, the refugees. The
problem developed focuses on the theory of recognition and on the current
attitudes of disrespect that break with the forms of recognition such as love,
law and solidarity, there being a current that at the same time has liberalisms
and deep fundamentalisms that do not allow the development of the right to
difference.
Keywords: Complexity. Recognition. Right to difference. Refugees.
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refugiado
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1 INTRODUÇÃO
As constantes notícias de xenofobias, de fechamento de portas para impedir o ingresso
de refugiados, produzem o questionamento: será que eles não são seres humanos? Será
que não têm direito à alimentação, ao trabalho, a viver sem medo de morrer a qualquer
instante? Não teriam direito de fugir? Ou de sonhar? Quem tem o direito de fechar as
portas de um país e dizer: podem morrer ai, que não queremos ajudá-los.
A humanidade sempre viveu e sempre viverá em mobilidade, inclusive com a chamada
mobilidade forçada, quando as circunstâncias de deixar o país tornam-se essenciais para
a sobrevivência. Um dos casos de mobilidade forçada que mais tem chamado a atenção
é o dos Sírios para países europeus, em especial a Itália, situação agravada pela política
italiana de não recebimento de refugiados em seus portos. Outro é o dos venezuelanos,
que ingressam e/ou transitam pelo território dos países latinos e brasileiro aos
milhares,16 expondo-se a humilhações semelhantes às vividas em tantos outros
movimentos migratórios.
O presente artigo busca demonstrar aspectos da complexidade e da relação de poderes
no contexto mundial em que acontecem as mobilidades humanas, indicando o
reconhecimento como forma de entender o outro e sublinhando formas de desrespeito
que são correntes, diminuindo o ser humano, em especial o refugiado.
Ao percorrer a metodologia dedutiva, a abordagem analítico-complexo-paradoxal,
empregando a técnica de pesquisa bibliográfica, visa indicar caminhos e descaminhos
dos refugiados na atual quadra da história, apontando para o reconhecimento à diferença
como uma tarefa difícil, mas necessária, para melhor navegar nas turbulências
hodiernas.
16 Até abril de 2018 ingressaram no Brasil 50 mil venezuelanos, isso é somente 2% dos 2,3 milhões que
deixaram a Venezuela, e em torno de 52% destes somente estão transitoriamente no Brasil, pois irão se
dirigir a outros países da América Latina (FÉLIX, 2018).
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2 COMPLEXIDADE E PODER
A humanidade se encontra em um estágio de pós-modernidade, ou melhor de
complexidade17, consoante ensina Edgar Morin. Essa teoria parte da ideia de incertezas,
de uma mistura entre ordem e desordem, indeterminações, fenômenos aleatórios, uma
teoria que trabalha com o princípio das black box (caixas-pretas), com a complexidade
organizacional e lógica. A partir dela é possível aceitar imprecisões dos fenômenos e
conceitos, visto que estes nunca se fecham completamente, pois sempre estaremos em
movimento, em modificação, em metamorfose (MORIN, 2007, p. 35– 43).
Para Morin vive-se em um período de paradigma entre o sujeito (desconhecido pelo fato
de ser indeterminado, nada existe sem ele mas tudo o exclui) e objeto (conhecível,
determinável, isolável e manipulável, é a verdade objetiva “tudo para a ciência”), mas
um não exclui o outro, ao contrário são constitutivos, cada um abrindo uma brecha ao
outro (MORIN, 2007, p. 35–43).
Na mesma fenda, Zygmunt Bauman defende a existência de uma modernidade líquida,
o líquido não mantém a sua forma com facilidade, não fixa o espaço nem prende o
tempo, quase impossível de ser contido, com sua extraordinária mobilidade (BAUMAN,
2001, p. 8–9).
Já Touraine entende que já não estamos mais em um mundo social, que estão
desaparecendo as sociedades como um sistema integrado e com definições gerais,
quando a sociedade passa de ‘não social’ para categorias culturais. Segundo o autor,
vive-se um período de alteração de paradigmas, pelo qual se transita de “uma linguagem
social sobre a vida coletiva a uma linguagem cultural” (TOURAINE, 2011, p. 10 – 12).
Ainda de acordo com o referido pensador, o “indivíduo não passa então de uma tela
sobre a qual se projetam desejos, necessidades, mundos imaginários fabricados pelas
novas indústrias da comunicação”, época a demonstrar a fragilidade e a fragmentação
do ser contemporâneo, inserto em uma multiplicidade de realidades, alienado a uma
cultura de massa dirigida pelos meios de comunicação (TOURAINE, 2011, p. 119 –
120).
17 Teoria que jamais será fechada, pois a complexidade engloba exatamente a impossibilidade de
uma conclusão definitiva.
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Na mesma toada, Touraine assevera que o mundo se encontra-se na era do individuo, do
ator voltado a si mesmo (TOURAINE, 2011, p. 120). No entanto, os humanos não
vivem sozinhos, as condições de vida de uns dependem dos outros, ou seja, precisa-se
do outro, o individuo precisa tornar-se sujeito e isso só é possível quando perceber o
outro, quando reconhecer a alteridade no outro, passando a se olhar (ser olhado!) através
do outro e de suas diferenças (TOURAINE, 2009, p. 191).
A definição do sujeito moderno é uma tarefa extremamente árdua, não bastando a
sinalização de que as identidades eram unificadas e coerentes e, na modernidade,
tornaram-se totalmente deslocadas, descentradas ou fragmentadas (HALL, 2006, p. 8 e
24). Embora muitas teorias auxiliem na compreensão de vários elementos componentes
desse ser de muitas faces, que transita entre o local e o global, nenhuma delas dá conta
do desafio de descrever as teias de articulações culturais que compõe o humano do
nosso tempo.
Segundo Touraine:
[...] Falar do outro é uma maneira indireta de dizer que o sujeito não pode ser alcançado
diretamente em mim e que é olhando através do outro que eu percebo a presença ou
ausência, em mim, de um sujeito que não é facilmente perceptível num mundo fabricado
pelos poderosos (TOURAINE, 2009, p. 191).
Nesse contexto, só surge o sujeito18 de Touraine quando este reconhece o outro com as
suas diferenças, trata-se não de um tolerar, mas sim de reconhecer. Nas sociedades
contemporâneas de direitos culturais faz-se ainda mais necessário, visto toda a
problemática envolvendo as minorias, sendo absolutamente imprescindível que a
maioria passe a reconhecer os direitos da minoria, e a minoria também reconheça os
direitos da maioria (TOURAINE, 2009, p. 201-202), pois, caso mantenha-se uma
simples situação de tolerância, esta pode romper-se a qualquer instante e deflagrar
catástrofes humanas, em nome de uma falta de compreensão, de uma falsa alteridade e
de um não-reconhecimento do outro.
18 Para Touraine todos são individuo. Cada individuo tem e é um “desejo de ser” (que será o sujeito) ator
ou atriz. Para chegar a ser é preciso um processo emancipatório de resistência e criação: aquela, contra
as duas forças organizadas que matam o sujeito, pois criam nele o desejo da organização não de si
próprio, a saber: sistemas de mercado e fundamentalismos; e a criação, com os processos de
subjetivação, autonomização e individuação, como um processo do ser humano entrar em si.
(TOURAINE, 2004)
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Sobre as características da modernidade, Foucault fala não em uma teoria do poder, mas
sim neste como uma realidade, não havendo uma forma de poder, mas inúmeras, pois
ele não é um objeto natural, “é uma prática social e, como tal, constituída
historicamente”, a partir dessa compreensão que o autor realiza a genealogia19 do poder
(FOUCAULT, 1979, p. 10).
A partir dessa genealogia percebe-se que já não há mais, necessariamente, sintonia entre
Estado e Poder, na medida que este se apresenta com formas distintas, é exercido por
instituições não pertencentes a Estados, como uma mecânica do poder que passa a
estender-se por toda a sociedade, em níveis macro e micro, com regionalismos e
técnicas de dominação. Em sintonia com Carrithers, apoiado em Godelier, “Los seres
humanos, a diferencia de otros animales sociales, no sólo viven en sociedad, sino que
crean la sociedad para vivir” (CARRITHERS, 2010, p. 14).
Assim, o micropoder ou subpoder é aquele que intervém materialmente nos corpos, com
a alteração da realidade mais concreta dos indivíduos, que não está acima no corpo
social, mas em seu nível, alterando, interferindo e penetrando na vida cotidiana. Para
tanto a microfísica do poder, desenvolvida por Foucault, explana sobre procedimentos
técnicos de controle detalhado do corpo, como as atitudes, os gestos. hábitos, discursos.
Nesse entendimento, há um deslocamento do poder no espaço, passando para pontos
diferentes da rede social, integrados ou não com o Estado (FOUCAULT, 1979, p. 12).
Dessa forma, para Foucault, o poder passa a se ter uma independência das periferias
para com o centro, assim, o Estado não sendo mais um instrumento específico e único
de poder, perpetua de certa forma a rede de poderes, pois mesmo se o Estado
desaparecer as redes continuarão, pois já estão capilarmente entranhadas em todos os
níveis da sociedade, sem limites, sem fronteiras, alcançando e controlando a todos,
como uma máquina disseminada por toda a estrutura social, uma estrutura que agrega
luta e resistência moveis e transitórias, uma rede de resistência (FOUCAULT, 1979, p.
13-14).
As várias faces do poder, positivo e negativo, repressivo mas também incentivador, com
objetivos econômicos e políticos, que busca o controle dos corpos e da vida,
19 Estudo com o objetivo de estabelecer a origem.
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aproveitando as potencialidades individuais, tornando-as força de trabalho, com
utilidade econômica, e ao mesmo tempo diminui a capacidade de revolta, de resistência,
torna adestrados, dóceis politicamente. Nesse sentido, tomado como uma docilidade-
utilidade, aponta em direção a uma sociedade industrial e capitalista (FOUCAULT,
1979, p. 16-17).
Vários autores agregam elementos na busca de definições do atual momento histórico,
como Hobsbawn que fala na “era dos extremos”, Castells, Haas e Muller, mencionam a
“era da migração”, ou ainda Vertovec sublinha uma “superdiversidade”, tendo em vista
esse incremento exacerbado de diferenças que, para Santos e Lucas, não se trata
propriamente de algo novo, mas que nos últimos tempos ocorreu uma
exponencialização da visibilidade das diferenças, descortinada, também, pelo caráter
liberal assumido pelas narrativas (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 29–30).
Assim, tendo presente que o multiculturalismo assumiu uma grande importância no
debate global, com uma “teorização libertária calcada sobre a ideia de diferença”
(SANTOS; LUCAS, 2015, p. 30), busca-se enfatizar o ideal de reconhecimento, bem
como as lutas realizadas pelas minorias, tomadas como grupos vulneráveis no contexto
em que vivem, a fim de conseguirem romper ou ao menos amenizar os efeitos perversos
da cultura homogeneizadora.
3 O RECONHECIMENTO COMO SENSIBILIDADE NO OUTRO
A fim de tecer considerações sobre a problemática do reconhecimento ou ao atual não-
reconhecimento, inicia-se com um olhar sobre um tema que seguidamente embala
debates mundo afora, ou seja, a questão das minorias, ora tomadas como ameaças as
ideias, tidas por perturbadoras, hereges e até mesmo “diabos”, conforme a desenvolve
Galeano.
Santos e Lucas, apoiados no pensamento de Galeano, sobre os demônios, indicam o
imenso significado trazido pela modernidade, deslizando de um Deus personalizado
medieval para Deusas da Razão, da Igualdade, da Liberdade, bem como a substituindo o
conhecido Diabo por novos Diabos, o Diabo-Irracionalidade, o Diabo-Outro, o Diabo-
Diferente, o Diabo-Minoria. Embora reconhecendo essas mudanças, convém advertir
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que nem os grandes acontecimentos modernos, com planejamentos para a humanidade,
conseguiram alterar esse aspecto, ainda sendo constituídos como projetos totalizantes
que reprimem os opositores, de igualdades homogenizadas que sufocam a liberdade
individual (SANTOS; LUCAS. 2015, p. 17-23).
Sobre a temática, até mesmo as constituições, com seus textos modernos e com o olhar
social e democrático, acolhedoras de ideias de pacto social de autores como Kant,
Hobbes, ou Rousseau, ao abarcarem “a ideia moderna de pacto social majoritário
constitucionalizado” acabaram justificando a atuação de sistemas políticos e jurídicos
realizadores de inúmeras perseguições e segregações contra minorias. Atualmente,
entretanto, estão em curso alguns câmbios importantes, com vários acordos sociais
constitucionalizados nos últimos 50 anos mostrando simpatia a ideias diabólicas, ou
seja, há um “afrouxamento de limites impostos às minorias pelas maiorias [...] uma
potencialidade terapêutica contra possíveis abusos de uma maioria constante
endeusificada” (SANTOS; LUCAS. 2015, p. 24-25).
Nesse novo contexto, abre-se espaço para o multiculturalismo, com o respeito à
diferença como pilar conceitual fundamental. A questão da diferença é um
acontecimento social que indica fatos “concretos baseados numa razão prática de
libertação de ferrolhos repressivos impostos por culturas/narrativas/formações
discursivas hegemônicas invisibilizadoras de singularidades”. Também é necessário a
institucionalização no âmbito da política e do judiciário dos direitos a diferença, para
que assim seja definitivamente possível garantir a liberdade identitária tanto individual
quanto coletiva, das culturas, das etnias, dos grupos hipossuficientes que, apesar dos
avanços, ainda encontram-se fixos, imobilizados, bloqueados num estado de dominação
(SANTOS; LUCAS. 2015, p. 31).
As novas mobilizações de grupos sociais [...] gravitam na órbita do reconhecimento político
dos direitos de diferentes grupos com interesses completamente distintos, que muitas vezes
se distanciam do problema do reconhecimento da identidade cultural. [...] Nesse sentido, é
importante que despertemos para a relevância de diferentes motivos que geram situações de
desarranjos críticos na vida de povos e pessoas, pelo não reconhecimento do ‘outro’, a
ponto de gerarem estados de reação e resposta, tanto no campo social, quanto no teórico
institucional (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 31-32).
Em relação ao reconhecimento, Axel Honneth aduz que o tema perpassa a construção
social da identidade, de uma forma individual/pessoal e coletiva, a partir de lutas. Com
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o objetivo de analisar os conflitos sociais oriundos de desrespeito social, de ataques às
identidades, tanto individuais quanto coletivas, as quais são capazes de impulsionar
ações que procurem o restabelecimento de relações mútuas de reconhecimento ou que
sejam desenvolvidas em um nível evoluído, pois só desta forma “é possível ver nas
diversas lutas por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos
sociais” (HONNETH, 2007, p. 18).
Como base da teoria do reconhecimento, Honneth usa a ideia de reificação, na qual
define que o ser humano da atualidade reifica o outro, ou seja, vive em situação que
limita o agir social, pois as relações estão coisificadas, os atuais sujeitos possuem pouca
participação ativa nas ações comunitárias, são meros observadores, com relação de
sujeito-objeto, com qualidade de “coisa”. Uma humanidade envolta em um pensamento
ultracapitalista, com práticas e hábitos que tornam o ser humano incapaz de reconhecer-
se humanamente (HONNETH, 2007, p. 23 – 83).
Segundo o autor, a vida humana verdadeira, sem a reificação, seria como uma unidade
orgânica, cooperativa e participativa, com o cuidado como relação intersubjetiva dos
sujeitos, com as atitudes de reconhecimento como formas elementares de confirmação
da intersubjetividade (HONNETH, 2007, p. 83 – 105).
A busca de reconhecimento como sensibilidade no outro passa pela resposta ao
questionamento de Canclini: “Quiénes somos?”. Segundo o autor, é difícil encontrar um
termo unificador, pois nem a pele, nem a linguagem, nem o território, nem a religião
servem para identificar-se em conjunto. Os setores mais abertos às relativizações que a
história apresenta, conjugam a ideia de que as relações sociais comunitárias são
influenciadas pela colonização e pela modernização, “así como a los procesos
hibridadores por la interacción com otras culturas, que ocurren em las migraciones, el
consumo de bienes industrializados y la adopción voluntaria de formas de producir que
atenúan sus diferencias tradicionales” (CANCLINI, 2006, p. 47-48).
Honneth tem como autores base de sua teoria do reconhecimento, o pensamento de
Habermas, Hegel e Mead, em relação aos quais realiza interrogações e atualizações,
fundado na teoria crítica desenvolvida junto à Escola de Frankfurt, acreditando que os
pensamentos de Hegel (quanto a formação prática da identidade humana e a necessidade
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de experiências com reconhecimento intersubjetivo) e os de Mead (quanto a psicologia
social) possam conduzir ao caminho de uma teoria social com teor normativo e com o
objetivo de “esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões
normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco”
(HONNETH, 2007, p. 155).
Destarte, o primeiro princípio apresentado é que a vida social e sua reprodução só
acontecem pela presença de um imperativo de reconhecimento recíproco, tendo em vista
que é só dessa forma que será possível a autorrelação entre sujeitos, a interação, a
concepção do outro como destinatário social. Mas Honneth alerta, que precisa haver um
elemento dinâmico, não um elemento imperativo, pois para ele são as lutas moralmente
motivadas que modificarão o social (HONNETH, 2007, p. 156–158).
Por fim, como formas de reconhecimento Honneth, elenca três tipos: o amor, o direito e
a solidariedade. Primeiramente o amor, este como o que existe entre poucas pessoas,
como entre amigos, pais e filhos, parceiros... etc, pois as relações amorosas de
reconhecimento são o caminho para uma autorrelação, ou seja, “que os sujeitos
alcançam mutuamente uma confiança elementar em si mesmos” (HONNETH, 2007, p.
159-177), sendo assim
“ela precede [...] toda outra forma de reconhecimento recíproco: aquela camada
fundamental de uma segurança emotiva não apenas na experiência, mas também na
manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada pela experiência
intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as
outras atitudes de autorrespeito” (HONNETH, 2007, p. 177).
Assim, essa é uma dimensão emotiva, necessária para as autorrealizações pessoais, a
partir da confiança em si mesmo, adquirida pelas experiências de amor com o outro, que
conduzirá ao autorrespeito e ao reconhecimento.
A segunda forma de reconhecimento apresentada é a relação jurídica, o direito, que com
seu caráter público possibilita o portador do direito individual realizar uma atividade
legitima e aguardar o respeito de todos e a visibilidade de sua ação para com o parceiro
de interação,
[...] pois, com a atividade facultativa de reclamar direitos, é dado ao indivíduo um meio
de expressão simbólica, cuja efetividade social pode demonstrar-lhe reiteradamente que
ele encontra reconhecimento universal como pessoa moralmente imputável. [...] então se
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poderá tirar a conclusão de que um sujeito é capaz de se considerar, na experiência do
reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros de
sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação
discursiva da vontade” (HONNETH, 2007, p. 197).
Por conseguinte, o autorrespeito é essa perspectiva de referir-se a si de uma forma
positiva. De acordo com Honneth, isso só ocorre com a percepção do negativo
primeiramente, pois só a falta de respeito, ou melhor, experiências de desrespeito, de
reconhecimento denegado comparadas empiricamente trarão a possibilidade de
verificação do autorrespeito (HONNETH, 2007, p. 197 – 198).
A última forma de reconhecimento elencada pelo autor é a solidariedade, ligada com as
relações sociais de estima para com o outro, num sentido de reciprocidade, de
considerar as particularidades e simetrias do outro e de si próprio como importantes
para o comum, experiência esta que não conhece o desrespeito (HONNETH, 2007, p.
210-211). Essas formas de reconhecimento são as que efetivamente podem movimentar-
se como conflito social, pois estão na esfera do jurídico-moral, ou seja, nessas
dimensões que ocorrem as tensões e os desrespeitos.
Nessa senda, Schaper sublinha que essa ideia de reconhecimento pode ser a real solução
para a aceitação da diferença entre os sujeitos, visto que ela vai além da tolerância,
possibilitando a alteridade, ou seja, assumir a consciência da diferença, um espaço de
convivência democrática, de crescimento e enriquecimento das subjetividades. O
reconhecimento não enseja compartilhamento, mas não gera violência, não se define no
dualismo exclusão/inclusão (SCHAPER, 2014, p. 45 – 48).
Em sintonia com Honneth, os modos de reconhecimento podem ser: a dedicação
emotiva, entendidas como as relações primárias de amor e amizade, com natureza de
carência e afetividade, possuindo como autorrelação prática a autoconfiança e como
formas de desrespeito os maus-tratos e violações, sendo a integridade física o
componente ameaçado da personalidade; o respeito cognitivo, são as relações jurídicas,
o direito, com a dimensão de personalidade na imputabilidade moral, com o potencial
evolutivo de generalização e materialização, a qual possui como autorrelação prática o
autorrespeito e como formas de desrespeito a privação de direitos e a exclusão, sendo a
integridade social o componente da personalidade ameaçado; por fim, o estima social
como modo de reconhecimento é a forma de comunidade de valores, ou seja, a
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solidariedade, que tem como dimensões da personalidade as capacidades e
propriedades, com potencial evolutivo de individualização e igualização, possuindo
como autorrelação prática a autoestima e como formas de desrespeito a degradação e a
ofensa, sendo a “honra” e a dignidade os componentes da personalidade ameaçados
(HONNETH, 2007, p. 211).
Portanto, a identidade pessoal é muitas vezes objeto de desrespeito, e para Honneth,
poderá acontecer de três formas, pela violação, pela privação de direitos e pela
degradação das formas de reconhecimento elencadas acima. Cada uma delas pode
abranger ou tocar o sujeito de uma maneira, com profundidades e intensidades distintas
na psique, pois entende-se que a denegação do reconhecimento ou a sua privação são a
realização do desrespeito, sendo possível até mesmo uma privação do reconhecimento
de pretensões identitárias.
Em cada uma destas dimensões ou esferas, o indivíduo desenvolve uma relação positiva
consigo mesmo (autoconfiança, autorrespeito e autoestima) que, uma vez violada,
desencadeia formas correspondentes de desrespeito social (maus-tratos e violação, privação
de direitos e exclusão, degradação e ofensas), desaguando nas lutas sociais e nos conflitos
políticos (SCHAPER, 2014, p. 48).
A partir desse sentido o autor questiona quanto as experiências de desrespeito estão
vinculadas nas relações afetivas dos sujeitos ao ponto de poderem ser uma alavanca
para a luta pelo reconhecimento. E nesse plano, que se desenvolve na forma de
afetividade ou de amor, ocorre uns dos maiores graus de humilhação, que são os maus-
tratos ou violações, pois acabam por ferir de forma prolongada a autoconfiança que foi
apreendida pelo amor, mas que é nas formas do direito e da solidariedade que elas
constituem-se com um processo de mudança histórica, pois o ser humano não reage de
forma neutra às ofensas sociais, “os padrões normativos de reconhecimento recíproco
têm uma certa possibilidade de realização no interior do mundo da vida social em
geral”, ou seja, ações negativas, desrespeitos, podem a qualquer momento, por atacar a
intersubjetividade, serem o motivo para uma resistência política, em razão da injustiça e
da privação do reconhecimento (HONNETH, 2007, p. 214–224).
Acredita-se que a partir das formas apresentadas por Honneth quanto ao
reconhecimento e as formas de desrespeitos, ocorrem as lutas, possibilitando uma
mudança muito além de social, da estrutura que a sociedade é composta, uma mudança
cultural, produzindo um pensar diverso, de reconhecimento, imprescindível quando o
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outro é o refugiado. Não há dúvida do desrespeito à que são vítimas, inclusive no Brasil,
razão pela qual urge aprofundar o debate sobre meios de inclusão.
4 O DIREITO À DIFERENÇA E AO RECONHECIMENTO
O mundo contemporâneo potencializa a ideia de grandes narrativas sobre o sujeito e de
uma identidade totalizante. No entanto, vive-se com identidades múltiplas, confusas e
voláteis, onde sujeitos atomizados desejam e buscam afirmar a sua diferença e assim vê-
la reconhecida (JULIOS-CAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2016, p. 163–164).
No tocante ao respeito e a aceitação das diferenças, verifica-se que ainda há uma falta
de compreensão, sendo “difícil a tarefa de (con)vivermos uns com os outros sem exigir
do outro que seja igual a mim”, e a mobilidade e a “transversalidade cultural”
pressionam o humano que passou a buscar seus referenciais na universalidade da norma
jurídica, não mais na tradição moral convencional (BERTASO; HAMEL, 2016, p. 16–
17).
Para Bertaso e Hamel o reconhecimento é ir “além de um ato de indulgência ou da
capacidade de aceitar comportamentos diferentes dos estabelecidos em um determinado
meio social”, é ter uma atitude social de reconhecimento em todas os momentos da vida
cotidiana, em um contexto de sociedade complexa e multicultural (BERTASO;
HAMEL, 2016, p. 96).
Assim, a fórmula para frear a invisibilidade do outro, que avançou devido ao crescente
do individualismo, é realizar uma “articulação entre tolerância, cidadania,
reconhecimento e solidariedade social” para, desse modo, por meio de uma
sensibilidade, buscar uma cidadania translocal e solidária para as resoluções dos
diversos problemas do mundo complexo (BERTASO; HAMEL, 2016, p. 98).
Nesse processo vê-se a produção de indivíduos mais flexíveis, mais expressivos, mas
também mais narcísicos (JULIOS-CAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2016, p. 163),
sinalizando, por vezes, que as preocupações com o outro parecem irrelevantes, pois não
se quer renunciar ou abdicar de desejos em função ou para os outros.
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A complexidade da vida social hodierna, congregadora de todos os elementos elencados
acima, impacta negativamente a vida dos refugiados, produzindo a minimização da sua
cultura no novo país, o desrespeito, a negação do direito à diferença e o não-
reconhecimento.
Sobre o tema, consoante ensina Laraia,
O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a
propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal
tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela
ocorrência de numerosos conflitos sociais. [...] A dicotomia "nós e os outros" expressa em
níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a
forma de parentes e não-parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem um
tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano extragrupal resulta nas
manifestações nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto
fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos
a estranheza, em relação aos estrangeiros. A chegada de um estranho em determinadas
comunidades pode ser considerada como a quebra da ordem social ou sobrenatural
(LARAIA, 2001, p. 28).
Nesse contexto, é comum ocorrer o não-reconhecimento, tanto mundo afora, como em
solo pátrio. Uma das consequências do etnocentrismo é a apatia, que floresce na cultura
oprimida, produzindo a descrença em sua sociedade e se deixando invadir pela maior ou
mais forte (LARAIA, 2001, p. 39-40).
É nessa imposição cultural que ocorrem os desrespeitos para com o outro, denegando
reconhecimentos, privando os refugiados do direito de migrar, de poder fugir,
degradando a sua condição. São essas as situações que ocorrem em vários países, com o
fechamento das portas da Itália20, a decisão de um juiz federal de suspender a entrada
dos venezuelanos no Brasil21, bem como as atitudes violentas de ataques de brasileiros
contra as famílias, as quais buscam abrigo, ajuda, alimento e dignidade no país
vizinho22.
20 Diversos meios de comunicação noticiaram o descaso e indiferença quanto ao povo Sírio. (EL PAÌS,
2018), sem ainda mencionar aqui as políticas migratórias nos EUA com o governo Trump. 21 Nesta decisão, o juiz age de oficio, de forma extra petita, pois a ação movida pelo Ministério Público
Federal, Advocacia-Geral da União e Ministério dos Direitos Humanos buscava melhorar as condições
e assegurar mais diretos aos venezuelanos, que vinham sendo negados pelo Estado, tendo em vista um
Decreto Estadual, 25.681, do Estado de Roraima que estabelecia restrições e limitações aos
venezuelanos até mesmo em serviços básicos como saúde, além de alegar insegurança devido ao grande
fluxo de venezuelanos (PEDUZZI, 2018). 22 Os tidos como “brasileiros” imbuídos de individualismo forçam através da violência física e psíquica o
retorno de famílias inteiras ao abismo da fome, da violência do governo, por alegações descabidas e
ridículas para contra um povo que só quer buscar viver (FÉLIX; COSTA, 2018).
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As notícias de agressão e discriminação, de brasileiros contra refugiados venezuelanos,
estão cada vez mais frequentes, segundo a Organização Internacional para Migração
(OIM), a qual indica que 38% já sofreram algum tipo de violência, sendo 81% violência
verbal, 16% violência física e 2% violência sexual23 (PASSARINHO, 2018).
A atual mobilidade traz consigo, muito além de um simples dinamismo nas migrações,
questões como a xenofobia, o tráfico de pessoas e o desrespeito dos direitos do
migrante, seja ele legal ou ilegal, refugiado ou não. Para tanto é de suma importância
que essa nova questão local-global venha composta de reconhecimento quanto à
alteridade e os direitos humanos, a tolerância e a não resistência são essenciais para que
não haja o desenvolvimento de conflitos de grandes proporções (JULIO-
CAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2015, p. 54).
Nesse sentido, é pertinente frisar que
[...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante
para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da
mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre
povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro
do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar
serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir (LARAIA, 2001, p. 52).
Evidente que nem tudo é discriminação e resistência em relação aos refugidos,
encontram-se vários organismos sociais, como instituições e ONG’s defensoras dos
direitos humanos. No Brasil, consegue-se um avanço, de certa forma, com a nova Lei de
Migrações, de número 13.445, de 24 de maio de 2017, a qual em seu art. 3º repudia e
defende uma prevenção contra atitudes xenofóbicas, racistas ou discriminatórias, com
acolhida humanitária, igualdade de tratamento, inclusão social, acesso igualitário,
repudio quanto a práticas de expulsão ou deportação coletivas. Ela reporta-se, também,
à Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, que o Brasil é signatário.
(BRASIL, 2017).
Sobre a temática, o Brasil editou decreto criando o Comitê Federal de Assistência
Emergencial para o acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em
decorrência dos fluxos migratórios provocados por crises humanitárias, com caráter
23 Os dados levantados foram antes das atitudes expulsionistas dos brasileiros contra os venezuelanos,
acima mencionada.
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permanente de prestação de serviço público relevante, com a competência de articular
ações para assistência emergencial com os governos estaduais, municipais e federal
(BRASIL, 2018).
Assim, a partir dos últimos acontecimentos, muito além de legislações perfeitas,
precisa-se trabalhar as questões de reconhecimento, de sensibilidade, de alteridade com
o povo, buscar uma legislação com esses signos é um dos caminhos, mas não o único.
Necessita-se flexibilizar traços de colonialismos e eurocentrismo da população, arrancar
o véu que esconde a multiculturalidade e a miscigenação pátrias, interrogando o
discurso de que acolhemos bem o estrangeiro. Na verdade, há muita narrativa falsa, pois
o multiculturalismo, tomado no sentido de respeito à diferença, não é amplamente aceito
nem pela população, nem pela legislação, ainda carregados de preconceitos para com o
diferente.
Faz-se necessário a compreensão que todos somos migrantes, pois os processos
migratórios são constitutivos da história da humanidade. Precisa-se superar os processos
contraditórios que apresentam, de um lado, cada vez mais liberdade de circulação de
mercadorias e de informação, e, de outro, cada vez mais resistência em relação à
circulação dos humanos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos referenciais expostos identifica-se que o atual período histórico, nominado
como pós-modernidade, modernidade líquida, era da complexidade, entre outros, abarca
imensas dificuldades de convivência com o outro, especialmente com o outro refugiado,
mesmo sendo os processos migratórios formadores da história da humanidade.
Nenhuma teoria consegue descrever em minúcias a complexidade da vida sujeito do
nosso tempo. Isso não impede que, assistindo as mobilidades forçadas, os desastres
humanitários, com massificação de vítimas, expressemos nossa perplexidade, deixemos
assentado o entendimento de que, o respeito às diferenças pode significar “fazer a
diferença” em relação aos refugiados.
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As sociedades dispostas a se reinventar possuem no horizonte o grande desafio de, não
só realizar os ajustes legislativos, mas sim culturais. Nessa fenda se encaixa a teoria do
reconhecimento, sendo fundamental para uma vida digna e plena que todos possam
perpassar pelas formas de reconhecimento, sendo elas o amor, o direito e a
solidariedade.
O amor, a sensibilidade e a alteridade poderão evitar o desrespeito, a degradação e a
violação de direitos, mas é na realização destes que ocorrerão as mudanças sociais. A
história mostra que, após guerras devastadoras, os países e regiões do mundo
impactados se reinventam juridicamente, na tentativa de não repetir os erros, o que,
guardadas as proporções, também ocorre diante de outras situações de desrespeito, as
quais potencializam a luta pelo reconhecimento.
Entende-se que somente através do reconhecimento e da não reificação é possível
compreender o outro, conviver com o outro, em um processo de trocas, aprendizagem e
respeito. Ser diferente, compreender sem o dualismo certo/errado, inclusão/exclusão, é
de suma importância para possibilitar o reconhecimento do outro.
Impõe-se uma reinvenção cultural, a retomada do respeito, da sensibilidade individual e
social, compreendendo que os refugiados estão em situação de perigo, possuindo o
direito de fugir, de migrar. A qualquer momento os acolhedores poderão ser os
acolhidos, pois nenhuma sociedade/país está livre de catástrofes humanitárias e
migrações forçadas. Somos frutos da mobilidade, extinguir a hipocrisia e espraiar
reconhecimento é um ato de humanidade, de compreender-se, de entender a própria
história.
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