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CRIMINOLOGIA FORENSE

Material elaborado e publicado pela professora

Priscila Formigheri Feldens.(direitos autorais

reservados)

1-ESCOLAS CRIMINOLÓGICAS

Aproximadamente até fim do século XVIII, as escolas penais da época lutavam para

alcançar melhores definições sobre o crime e o criminoso. Entretanto, a partir do maior

desenvolvimento científico que começou a ocorrer nesse período, principalmente na

Psicologia e na Sociologia, o homem passou a ser o foco dos estudos, sendo possível a

análise dos vários tipos de comportamentos humanos, entre eles o delitivo.

A partir disso, começaram a surgir Escolas Criminológicas, tendo como objeto o

delinqüente, encontrando neste as respostas sobre a origem do crime, a maneira de

combatê-lo e de preveni-lo.

Todavia, conforme a evolução dos tempos, todas as Escolas criadas usaram a

interdisciplinariedade para realizarem seus estudos. Desse modo, ciências como a Biologia,

Psicologia, Sociologia, Psiquiatria, entre outras, foram a base de análises criminológicas e,

a assim com o auxílio de estatísticas e observações, ajudaram a definir o método de

pesquisa de cada período.

Dessa maneira, constatou-se que o delito em si não deve ser o principal centro de

questionamentos, sendo dada igual importância ao delinqüente gerador de tal crime, para

então se concluir a medida ideal que deve ser-lhe aplicada, impedindo ele e outros agentes

delitivos de cometerem os mesmo atos.

Consonante a isso, Vitorino declara que a criminologia não é uma ciência jurídica,

mas pré-jurídica porque contribui para a criação da norma legal mais apropriada ao

direito penal, no seu papel de melhor punir o criminoso1.

1 BRANCO Vitorino Prata Castelo.Curso Completo de Criminologia da Sociedade Brasileira de Direito Criminal.São Paulo: Editora; Sugestões Literárias S/A, 1975. P.26.

2.1.1- Escola Clássica

A Escola Clássica, também chamada primeira escola, que surgiu inspirada pelo

Iluminismo italiano do século XVIII, se apoiava em determinados princípios, os quais, Álvaro

Mayrink da Costa condensa:

a)_ O delito é um ente jurídico;b) A ciência do Direito Penal é uma ordem de razões emanadas da lei moral e jurídica;c) A tutela jurídica é o fundamento legítimo de repressão e seu fim;d) a qualidade e quantidade de pena, que é repressiva, devem ser proporcionadas ao dano que se ocasionou com o delito ou perigo ao direito;e) a responsabilidade criminal se baseia na imputabilidade moral, desde que não exista agressão ao direito, se não procede de vontade livre e consciente;f) o livre arbítrio não se discute, é aceito como dogma, pois ele a ciência penal careceria de base.2

2 COSTA, Álvaro Mayrink da. Criminologia. Rio de Janeiro: Editor Rio, 1980.Vol.um p 190 e 191.

De acordo com João Farias Júnior esses princípios vindicativos, taliônicos e religiosos,

foram sedimentadores das bases penais e da justiça punitiva, aflitiva, retributiva, comutativa,

intimidativa e expiatória, tendo como fundamento o livre arbitrismo3. Em relação a esse último

não é possível qualquer análise comparativa dos criminosos como também não considera fatores

biológicos e sociológicos.

Um dos maiores pensadores desta escola foi Marquês de Beccaria, o qual em 1763

escreveu o livro “Dos Delitos e das Penas” no qual criticou o sistema penal da época, se

insurgindo contra aberrações teóricas e abusos dos juízes, denunciando as torturas, os suplícios,

os julgamentos secretos e a desproporcionalidade das penas, colaborando dessa forma para uma

futura reforma daquele sistema.

Beccaria, seguindo o contratualismo de Rousseau, sustentava que o sujeito que comete

crime rompe com o pacto social. Defendeu os direitos de primeira geração (individuais) e a

intervenção mínima do Estado. Seu pensamento colaborou para formação de vários princípios

básicos do Direito, como por exemplo: o princípio da legalidade, aduzindo que (...) apenas as

leis podem indicar as penas de cada delito (...)4; o princípio da igualdade afirmando que as

vantagens da sociedade devem ser distribuídas eqüitativamente entre todos os seus membros5; o 3 JÚNIOR João Farias. Manual de Criminologia. Curitiba: editora Educa, 1990. p. 7.

3

4 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2003. P.205 Ibidem, p.15. 6 Ibidem, p.62.7 MARQUES. José Frederico.Tratado de Direito Penal. Campinas: Ed. Bookseller, 1997.Vol.1. p.108

princípio da proporcionalidade, argumentando que (...) sendo a perda da liberdade uma pena em

si, esta apenas deve preceder a condenação na exata medida em que a necessidade o exige6.

Ademais, não se pode deixar de falar de outros pensadores como Lombroso, Ferri e Garófalo,

que se destacaram através de uma criminologia positivista, a qual estabelece, amparada por

outras ciências como a psiquiatria, psicologia, antropologia, estatística e sociologia, que se pode

a considerar o determinismo do comportamento humano, analisando fatores exógenos (externos)

ou endógenos (internos) que o causam, e o meio em que surgiu.

José Frederico Marques sintetiza os princípios básicos da escola positiva: método positivo;

responsabilidade social; o crime, como fenômeno natural e social; a pena como meio social 7.

Nesse sentido analisam-se os trabalho de César lombroso, desenvolvidos como médico

penitenciário, nas áreas de antropologia e evolução humana buscaram estabelecer um perfil das

pessoas que poderiam cometer delitos. Assim, escreveu o livro “L’uomo Delinqüente” em 1876,

expondo que o homem criminoso e nato, com epilepsia e outras anomalias, é idêntico ao louco

moral. Classificava-o como nato, louco, por paixão ou de ocasião.

Lombroso sustentava que era mister estudar o delinqüente e não o delito sendo que,

apesar de levantar fatores biológicos e antropológicos que influenciavam nas condutas ilícitas,

6

7

também admitia a influência social sobre o criminoso que era considerado uma sub- espécie do

homem.

Nessa linha de raciocínio Molina argumenta

A contribuição principal de Lombroso para a Criminologia não reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do “delinqüente nato”) ou em sua teoria criminológica, senão no método que utilizou em suas investigações: o método empírico. Sua teoria do “delinqüente nato” foi formulada com base nos resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil análises de delinqüentes vivos, e o atavismo que, conforme seu ponto de vista caracteriza o tipo criminoso – ao que parece – contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões européias. 8

8 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flávio Gomes; Plabos.Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002. p.191.

Como seguidor de Lombroso, Enrico Ferri com uma teoria sociológica, e não

exclusivamente biológica ou antropológica apresentou fatores criminógenos definidos como

antropológicos, físicos e sociais.

João Farias Júnior acrescenta

No antropológico ele colocava os biológicos ou inerentes à estrutura do homem criminoso, distinguindo três subclasses: A constituição orgânica, a constituição psíquica e os caracteres pessoais.Na constituição orgânica entrava as anomalias do crânio, de cérebro, das vísceras, da sensibilidade reflexa e de todos os caracteres somáticos em geral. Na constituição psíquica incluíam-se as anomalias da inteligência, do sentimento e do senso moral. Nos caracteres pessoais, entravam as condições biológicas, ou biossociais, como a raça, idade, estado civil, a profissão, o domicílio, a classe social, a instrução a educação.Os fatores sociais compreendiam a densidade da população, a opinião pública, os costumes, a religião, condições da família, regime educativo, produção industrial, alcoolismo, as condições econômicas e políticas, a administração pública, a justiça, a polícia e, em geral a organização legislativa civil e penal. 9

Neste sentido, as causas descritas acima determinam o delito, não consideram o livre-

arbitrismo do homem e sua capacidade de escolher entre o bem e o mal.

9 JÚNIOR. João Farias. Op.cit. p 15.

Dessa forma, Molina define que

Ferri é justamente conhecido por sua equilibrada teoria da criminalidade (equilibrada apesar do seu particular ênfase sociológico), por seu programa ambiciosa político criminal (substitutivos penais) e por sua tipologia criminal, assumida pela Scuola Positiva. Ferri censurou os “clássicos” porque renunciaram a uma teoria sobre a gênese da criminalidade, conformando-se a partir da constatação fática desta, uma vez ocorrida. Propugnava, em seu lugar, por um estudo “etiológico” do crime, orientando à busca científica de suas “causas”. 10

Garófalo como um positivista moderado, não deixou de considerar os estudos de Ferri e

Lombroso, entretanto, diferentemente destes, não fixou suas pesquisas somente sobre o

delinqüente, e sim sobre o crime em si.

10 MOLINA, Antônio Garcia. Luiz Flávio Gomes; Plabos. Op cit, p.195.

Assim, é defendido por Pablos de Molina que Por isso, ele pretendeu criar uma

categoria, exclusiva da Criminologia, que permitisse segundo seu juízo, delimitar

autonomamente o seu objeto, mais além da exclusiva referência ao sujeito ou as definições

legais. Referida categoria consiste no “delito natural”, com o qual se distingue uma série de

condutas nocivas per se, (...).11

Ainda, sobre o pensamento de Pablos

A explicação da criminalidade dada por Garófalo, por sua vez, tem sem nenhuma dúvida conotações lombrosianas, por mais que conceda alguma importância (escassa) aos fatores sociais e que exija contemplação do fato e não somente das características do seu autor. Nega certamente, a possibilidade de demonstrar a existência de um tipo criminoso de base antropológica. Mas reconhece o significado e a relevância de determinados dados anatômicos (o tamanho excessivo das mandíbulas ou o superior desenvolvimento da região occipital em relação a frontal), ainda que diminua ou inclusive negue a interpretação lombrosiana dos estigmas. O característico da teoria de Garófalo é a fundamentação do comportamento e do tipo criminoso em uma suposta anomalia (não patológica) psíquica ou moral. Trata-se de um déficit na esfera moral da personalidade do indivíduo, de base orgânica, endógena, de uma mutação psíquica (porém não de uma enfermidade mental), transmissível por via hereditária e com conotações atávicas e degenerativas.12

Garófalo previu quatro tipos de delinqüentes, o assassino criminoso violento, ladrão ou

lascivo. Através de uma filosofia do Castigo para Garófalo, a pena deve estar em função das

características concretas de cada delinqüente, sem que sejam válidos outros critérios

convencionais como o da retribuição ou expiação, a correção ou inclusive a prevenção.

11 Ibidem,p.198.12 Ibidem, p.199.

Descartou, pois, a idéia de proporção como medida da pena, do mesmo modo que descartou a

idéia de responsabilidade moral e liberdade humana como fundamento daquela.13

3.2-Escola Científica

Com o passar dos anos, com os conflitos existentes entre escolas, a biologia, a psicologia

e sociologia passaram a dar novos rumos aos estudos criminológicos.

As teorias biológicas diferenciavam o homem delinqüente do não-delinqüente.

Procuravam encontrar no organismo do criminoso o motivo que lhe diferencia dos demais seres

humanos e lhe influência na prática de delitos. Sobre tais conclusões foram realizados estudos

sobre endocrinologia, anatomia, genética, morfologia e patologia.

Dessa forma, se destacaram vários investigadores da Biologia criminal, como Bertillon

nos estudos de antropometria; Goring na antropologia; Krestschermer, Sheldon e Cortés na

biotipologia; Zayed, Sttaford e Yendall com a neurofisiologia; Jeffery na sociobiologia e

bioquímica.14

Pablos de Molina também afirmou que

13 Ibidem, p.200.

14 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002.

As orientações biológicas têm por base um nível muito elevado de empirismo, que constitui um déficit inevitável em muitas construções sociológicas e psicológicas. Sem embargos o potencial de abstração das mesmas é mais reduzido que naquelas. Possuem uma inquestionável vocação clínica e terapêutica, que se sobrepõe sobre projeções do saber científico.15

Com a Psicologia Criminal se estudou o estado mental gerador da conduta delitiva, como

também a gênese, desenvolvimento e variáveis da mesma.

Filippo Gramatica declara que o elemento psicológico de antissociabilidade deve ser

objeto de exames rigorosamente científicos, tais que permitam uma noção rigorosa de fatores do

comportamento criminoso.16

Os maiores colaboradores da Psicologia Criminal foram Wundt, Kohlbert, Piaget, Levin

entre outros.17

15 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flávio Gomes; Plabos. Op. Cit. P.217

16 GRAMATICA, Filippo. Apud, JÚNIOR, João Farias. Manual de Criminologia. Curitiba: editora Educa, 1990.p.24.17 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002.18 BRANCO Vitorino Prata Castelo. Criminologia. São Paulo: Ed. Sugestões Literárias S/A p.143.19 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002.

Nesse mesmo âmbito, a Psiquiatria, através da análise de enfermidades patológicas do

homem, serviu de orientação para verificar a relação daquelas com os atos criminosos.

Na opinião de Vitorino

A psiquiatria explica que não são apenas os doentes mentais que cometem crimes, mas que boa parte dos mesmos é cometida por homens que sofrem anormalidade psíquica. De qualquer forma é grande a contribuição trazida pela psiquiatria, parte da medicina que se ocupa das doenças mentais, ao desenvolvimento da criminologia, porque os crimes, em sua imensa maioria, são praticados por indivíduos insanos, incapazes de raciocínio normal.18

Feldman, Enseck, kraeplin, Glaser entre outros foram grandes pesquisadores dessa área.19

A Psicanálise, ciência que se aprofundou no inconsciente dos indivíduos, analisa

anomalias de fundo nervoso, as quais podem colaborar para a ocorrência de delitos.

1

1

Sigmund Freud foi um dos maiores estudiosos nesse âmbito. Suas obras e de seus

seguidores tratam de crimes e criminosos, procurando dar uma interpretação para o

comportamento criminoso, fixando preceitos relativos à terapia.20

Alexander Reik, Archorn, entre vários outros também se dedicaram a estudos da

Psicanálise. Além disso, posteriormente, Adler, Jung e Fromm aprofundaram análises sobre essa

ciência.21.

20 JÚNIOR, João Farias. Op.cit. p. 25.21 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 200222 CALON, Eugênio Cuello. Apud, JÚNIOR João Farias. Manual de Criminologia. Curitiba: Editora Educa, 1990. p.21. 23 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Op.cit., p.337.

A Sociologia Criminal, definida por Eugênio Cuello Calon, é o conjunto de estudos

relativos ao delito como fenômeno social. Acrescenta que os mais destacados estudiosos da

Sociologia Criminal foram Ferri, da Itália, Gabriel Tarde da França, e Liszt da Alemanha.22

Essa linha de estudiosos considera o delito um fenômeno social e seletivo, com relação

direta a determinadas circunstâncias da vida em sociedade.

Pablos defende ainda que

Boa parte do êxito dos modelos sociológicos baseia-se na utilidade prática da informação que subministram para os efeitos políticos criminais. Pois somente estas teorias partem da premissa de que o crime é um fenômeno social muito seletivo, estreitamente unidos a certos processos, estruturas conflitos sociais, e tratam de isolar suas variáveis. 23

Dentro da Sociologia Criminal surgiram várias teorias, como por exemplo, as

Multifatorias em que Gleck, Healy, Elliot e outros questionavam a delinqüência juvenil; a teoria

“ecológica da escola de Chicago” a qual sociólogos como Park e Burges analisavam o

desenvolvimento urbano; teoria do processo social, que permitiu, a introdução do Labbeling

Aproch, por Sutherland, Hirshi e outros. 24

________________________________________________________________1.2 Ideologia da Defesa Social

2

2

24 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002.

O controle social, como mencionado, não fazia parte do universo de estudo da

Criminologia em sua gênese, posto que as Escolas Clássica e Positivista não tinham como

objeto central o fenômeno criminal a partir das reações sociais e do Direito Penal.

Buscavam, aquelas escolas a observação das causas determinantes do comportamento do

criminoso, sendo que, com os teóricos positivistas, esse estudo é ainda mais vinculado à

pessoa do criminoso através da concepção do mesmo como homem delinqüente.

A Ideologia da Defesa Social, segundo Baratta, surgiu durante a revolução

burguesa, sendo um legado da Escola Clássica à Escola Positivista. Em que pesem as

diferentes concepções que cada Escola possuía, essa Ideologia passou apenas por algumas

adaptações, pois, em ambas, observou-se a existência de uma ideologia de defesa social.1

Com efeito, a Escola Liberal Clássica nascida durante o Iluminismo caracterizou-se

por sua concepção do delito como um ente jurídico, uma violação à ordem jurídica e ao

contrato social que servia (segundo a filosofia política do liberalismo clássico) de base ao

Estado e ao Direito. A conduta criminosa derivava do livre arbítrio do indivíduo e o

criminoso era um homem normal (não patológico), igual aos demais membros da sociedade

e, portanto, era moralmente responsável por seus atos. Já o Direito Penal e a pena

constituíam-se em instrumentos de proteção da sociedade, sendo uma contramotivação em

face do crime. 2

Por sua vez, a Escola Positivista busca a explicação da conduta delituosa em dados

biológicos, psicológicos e sociológicos que afetariam o indivíduo criminoso. Para

Lombroso, precursor dessa Escola, o delito era um acontecimento natural determinado por

condições hereditárias, em que o delinqüente era identificado por caracteres de ordem

biológica, presentes desde o seu nascimento (criminoso nato). Posteriormente, Garófalo

enfatizou os fatores de ordem psicológica que também influenciariam o homem criminoso,

enquanto Ferri ressaltou os fatores sociológicos que cercam a vida do indivíduo. Assim,

Ferri ampliava, em uma completa e equilibrada síntese, o quadro dos fatores do delito,

dispondo-os em três classes: fatores antropológicos, fatores físicos e fatores sociais.3

1 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de: Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 41.2 Ibid., p. 31.3 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 39.

De acordo com Pablos de Molina,

[...] o positivismo concede prioridade ao estudo do delinqüente, que está acima do exame do próprio fato, razão pela qual ganha particular significação os estudos tipológicos e a própria concepção do criminoso como subtipo humano, diferente dos demais cidadãos honestos, constituindo esta diversidade a própria explicação da conduta delitiva.4

A partir da concepção positivista do delito e do criminoso, a pena passa a ser

entendida como um meio de defesa social e, além de meio repressivo, manifesta-se como

forma de ingerência na pessoa do delinqüente, a fim de promover sua cura e reeducação.5

Apesar de a Escola Clássica entender a pena como meio de proteção social através

da eliminação do perigo da impunidade (que acarretaria a reincidência e também o

cometimento de delitos por outras pessoas) e a Escola Positivista a conceber como meio

reeducativo do criminoso, em ambas as escolas está presente a necessidade de defesa da

sociedade diante da conduta criminosa. Isto é, defesa da ordem social mediante a

eliminação do mal que o crime representa.

Esse pensamento corresponde à Ideologia da Defesa Social que, segundo Baratta,

representa, ainda hoje, a ideologia dominante no campo do Direito Penal e também no

senso comum, cujo fundamento são os princípios que, em seguida, serão expostos. Através

do princípio da legitimidade, o Estado, como representante da sociedade (contrato social),

estaria legitimado a combater a criminalidade, de maneira tal que correspondesse à

verdadeira reação social contra o comportamento do criminoso que maculou as normas em

dada sociedade. A repressão da criminalidade por parte do Estado se daria, então, por meio

de órgãos oficiais. 6

4 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 190.5 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 39-40.6 Ibid., p. 42.

Enquanto isso, sob a égide do princípio do bem e do mal, tem-se que a sociedade

representaria o bem ao passo que o criminoso e o crime representariam o mal que atingiria

o sistema social. Por sua vez, o princípio de culpabilidade estabelece que o delito seria

contrário aos valores sociais e, por isso, representaria uma atitude interior reprovável.

Também com relação aos valores, o princípio do interesse social e do delito natural sustenta

que os delitos violariam bens fundamentais dos homens que vivem em sociedade. Por isso

seria comum e inerente a todos o interesse de combatê-los. 7

Com relação à aplicação do Direito Penal, o princípio da finalidade ou da prevenção

postula que a pena, além de ter caráter retributivo, teria ainda caráter preventivo, pois visa a

inibir o cometimento de outros delitos e, também, a ressocializar o criminoso. E, por fim, o

princípio da igualdade enfatiza que a lei deve ser igual para todos, e as sanções penais,

aplicadas de forma também igualitária a todos aqueles que, como componentes de uma

minoria desviante, cometerem delitos. 8

Andrade descreve a concepção que a Ideologia da Defesa Social possui ao referir

que

(...) a criminalidade constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais e contra a qual se deve dirigir uma adequada Defesa Social. O pressuposto, pois, é o de que a criminalidade é uma realidade intrínseca do comportamento (realidade ontológica) que é desviante em si (delitos naturais) e preexistente ao controle social e penal que reage contra ela especialmente através da instituição da prisão.9

Isso significa que a Ideologia da Defesa Social concebe a sociedade como algo que

deveria ser perfeito, o que somente seria possível a partir da erradicação da criminalidade e

do próprio criminoso. Tal erradicação poderia ser efetivada através da imposição por parte

do Estado de uma sanção penal que, além de retribuir ao condenado o mal que causou à 7 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 42-43.8 Ibid., p. 42.9 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Apud CARVALHO, Salo de. A política criminal das drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização. Rio de Janeiro: Luam, 1996. p. 133.

sociedade, também o ressocializasse, obstaculizando o cometimento de outros delitos. E

mais, a pena teria ainda a função de inibir outras pessoas do cometimento de crimes,

considerando que temeriam receber o mesmo tratamento (sanção) previsto em lei.

Dessa forma, essa é a ideologia que legitima e instrumentaliza o Direito Penal

brasileiro e, em especial, o sistema punitivo estatal. Nas palavras de Carvalho,

A estrutura principiológica da ideologia da Defesa Social permitiria, assim, função legitimadora do establishment. Legitimaria o Sistema Penal – racionalizado pelo discurso oficial das instituições – induzindo o consenso no qual o Estado, através do legislativo, tutelaria bens jurídicos universais e monolíticos, compartilhados por toda a sociedade de determinado local, em determinada época; e instrumentalizaria os aparelhos repressivos, determinando atuação letal que visa a manutenção da estrutura hierarquizada e seletiva, a partir da atuação do modelo repressivo.10

A partir da análise dos princípios referidos, principalmente do princípio da

finalidade, pode-se inferir a origem e fundamento da teoria da prevenção especial da pena.

Isto porque, na teoria da prevenção especial os esforços inibidores e ressocializadores são

dirigidos à pessoa do apenado, no intuito de evitar que o mesmo volte a delinqüir após o

cumprimento da pena, ou seja, com o objetivo de obstar a reincidência criminal11 e assim

proteger a sociedade.

De acordo com Bitencourt, a teoria da prevenção especial procura evitar a prática

do delito, mas, ao contrário da prevenção geral, dirige-se exclusivamente ao delinqüente

em particular, objetivando que não volte a delinqüir.12

10 CARVALHO, Salo de. A política criminal das drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização. Rio de Janeiro: Luam, 1996. p. 137.11 A lei penal brasileira, no artigo 63 do Código Penal, entende que se verifica a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. BRASIL. Código Penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Sobre esse assunto, ver capítulo 2.12 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 129.

A partir da breve exposição das idéias da teoria da prevenção especial, percebe-se

que a mesma está intimamente ligada aos postulados que servem de base à Escola

Positivista, considerando sua correspondência com os princípios da Ideologia da Defesa

Social. Este fato é explicado por meio da análise do contexto histórico que cercou as idéias

de prevenção especial.

A teoria em comento surgiu durante a crise do Estado liberal e estabilização do

modelo capitalista. Nesta época, o homem era visto como força de trabalho, de modo que

qualquer desvio de sua função produtiva poderia ser interpretado como violação à

organização social. Nesse sentido, o delinqüente foi concebido como um ser patológico que

deveria ser tratado ou extirpado da sociedade que estava a ameaçar. Assim, não bastavam

mais os fundamentos de retribuição ou de intimidação geral. Tornou-se necessário, dessa

maneira, que a pena se prestasse a defender a nova ordem social do perigo que os

insatisfeitos representavam, exercendo um controle social através da intervenção estatal na

pessoa do indivíduo, com vistas a sua ressocialização ou neutralização.13

Dessa forma, as proposições da prevenção especial devem-se aos teóricos

positivistas que ao selecionarem como objetos de estudo o homem criminoso e o delito

(entendido como ente natural), desenvolveram a idéia de periculosidade do delinqüente e,

como conseqüência, suscitaram a necessidade de tratamento ou, quando este não fosse

possível, neutralização. Ou seja, para estes teóricos, se o homem era perigoso para a

sociedade, era necessário agir sobre a sua pessoa, seja para modificá-lo e melhorá-lo para

posteriormente voltar ao convívio social, seja para segregá-lo quando esta modificação se

mostrasse irrealizável. Nesse sentido, segundo Sica

Por influência direta da Escola Positiva de Ferri, Lombroso e Garófalo, que inovou ao aliar antropologia e Direito Penal, preocupando-se mais com o homem do que com o fato criminoso em si, desenvolveram-se as idéias de tratamento e neutralização do condenado por meio da pena, aperfeiçoando a teoria da prevenção especial.14

13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. p.130-132.14 SICA, Leonardo. Op. cit., p. 59.

Dentre os três pensadores positivistas mencionados, Ferri destaca-se por suas

proposições acerca da periculosidade que o homem criminoso pode apresentar e pelas

idéias de reeducação e neutralização desenvolvidas com base neste critério de

periculosidade.

De acordo com Bissoli Filho, Ferri entende que

[...] não só para cada delinqüente descoberto e condenado, mas também para a opinião pública, a influência inibitória da pena está na concreta aplicação, isto é, na prevenção especial e, complementa, a pena individualmente aplicada não pode ter senão uma destas finalidades: 1) tornar inócuo o delinqüente incorrigível e incurável; 2) reeducá-lo, se emendável e curável, para a vida social. Se os fins da prevenção de novos delitos forem alcançados através da primeira proposição, estamos diante da prevenção especial negativa; se for através da segunda, estamos diante da prevenção especial positiva.15

Posteriormente, as idéias de Ferri foram aperfeiçoadas por outros teóricos. As

palavras corrigir, ressocializar e inocuizar traduzem as idéias de um dos principais

defensores da função preventiva-especial da pena: Von Liszt, cujo pensamento indica que a

pena mede-se com critérios preventivo-especiais, segundo os quais a aplicação da pena

obedece a uma idéia de ressocialização e reeducação do delinqüente, à intimidação

daqueles que não necessitem ressocializar-se e também neutralizar os incorrigíveis.16

Na opinião de Boschi, o aprimoramento das idéias prevencionistas deve-se a Von

Liszt

15 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998. p. 147.16 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. p. 129.

[...] porque foi este, em 1822, na famosa Conferência de Marburgo, antes mencionada, quem explicitou pioneiramente a finalidade do direito penal de, com a pena, não simplesmente retribuir o fato passado, mas, isto sim, por meio dela, prevenir novos delitos, corrigindo, consoante classificação que faz dos criminosos, o corrigível, intimidando o intimidável e, finalmente, neutralizando ou tornando inofensivos, mediante a pena de privação de liberdade, os que não são corrigíveis nem intimidáveis. Sem o dizer, Von Liszt, com sua classificação, terminou por delinear o que mais tarde acabou se consolidando como a função preventiva especial da pena.17

Desde o pensamento de Ferri até Von Liszt infere-se que a prevenção especial pode

ser subdividida em positiva e negativa. A primeira diz respeito aos esforços empreendidos à

ressocialização do delinqüente. Já a prevenção especial negativa refere-se à neutralização

do apenado correspondente a sua total retirada do convívio social, efetuado quando a

tentativa de ressocialização restar inexitosa.

Em outras palavras, a prevenção especial tem como objetivo central evitar a

reincidência. Assim, não se admite mais que a pena tenha um sentido apenas retributivo,

mas esta adquire um viés utilitarista na medida em que visa evitar ou atenuar a

probabilidade de reincidência demonstrada pelo autor em face do delito cometido.18A

teoria da prevenção especial positiva, então, propõe o melhoramento pessoal do apenado

que se pretende levar a efeito através de medidas como ressocialização, reinserção,

reeducação, etc., chamadas de ideologias re.

Esta é a lição de Zaffaroni et alli, ao referiram que

No plano teórico este discurso parte do pressuposto de que a pena é um bem para quem sofre, de caráter moral ou psicofísico. Em qualquer um dos casos oculta a natureza dolorosa da pena e chega mesmo a negar-lhe o próprio nome, substituído por sanções ou

17 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 113.18 DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 228-229.

medidas. Se a pena é um bem para o condenado, sua medida será aquela necessária para realizar a ideologia re que for sustentada, e não precisará de outro limite. O delito seria somente um sintoma de inferioridade que mostraria ao estado a necessidade de aplicar o benéfico remédio social da pena. Se o delito é apenas um sintoma, a ideologia re deve postular que, a partir desse sintoma, o estado perscrute toda a personalidade do infrator, porque a inferioridade o afeta em sua totalidade. Por isso, tais ideologias não podem reconhecer maiores limites na intervenção punitiva: o estado, conhecedor do que é benéfico, deve modificar o ser da pessoa e impor-lhe seu modelo de humano. [...] 19

Nessa linha de raciocínio, o objetivo da pena, segundo a teoria da prevenção

especial, concentra-se na inibição da reincidência através da ressocialização (em sentido

amplo) do apenado. Segundo Zaffaroni et alli, uma vez adotada a prevenção especial

positiva, ao países latino-americanos não poderiam aplicar a pena privativa de liberdade,

pois se considerada a situação carcerária nesses países, o objetivo da tese prevencionista

jamais poderia ser alcançado, de modo que tal fundamento da pena somente pode ser

entendido como instrumento de retórica.20 A ressocialização, como ideal da teoria

preventiva-especial, também aparece no sistema penal brasileiro como objetivo da Lei de

Execuções Penais. Devido a este fato, os problemas que a busca do tratamento

ressocializador faz emergir no campo doutrinário serão expostos com mais atenção em item

próprio.

Por sua vez, a prevenção especial negativa postula a neutralização do perigo que o

delinqüente representa a fim evitar novas lesões ao corpo social. Essa neutralização é

efetivada através da pena, que, apesar de ser um mal para o indivíduo, é um benefício para

a sociedade. Tal fim, de regra, não aparece como exclusivo, mas sim subsidiário, sendo

manejado quando a prevenção especial positiva não obtiver êxito.21

Nesta vertente, mais que na prevenção geral, a ideologia de defesa social

transparece, considerando que

19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1. p. 126-127.20 Ibid., p. 126.21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Op. cit., p. 127.

A defesa social é comum a todos os discursos legitimantes, mas se expressa mais cruamente nesta perspectiva, porque tem a peculiaridade de expô-la de modo mais grosseiro, ainda que também mais coerente: como não é possível esgrimir uma defesa diante de uma ação que ainda não se iniciou e não se sabe se se iniciará, a forma adequada para explicá-la é através da metáfora do organismo social. Por outro lado, quando se objetou que a pena não beneficia a todos, senão à minoria que detêm o poder, ao invés de negá-lo respondeu-se simplesmente que a pena sempre beneficia a uns poucos.22

Com efeito, as teorias da prevenção especial têm com principal característica a

defesa da sociedade perante o criminoso, exatamente como prescrevem os princípios do

bem e do mal e da prevenção, conformadores da Ideologia da Defesa Social. Entretanto,

esta finalidade aparece em segundo plano, escondida pelas finalidades de melhoramento do

indivíduo mediante a imposição da pena, divulgada como um benefício para o condenado e

para o grupo social.

Por fim, mostra-se importante ainda diferenciar a Ideologia da Defesa Social dos

movimentos da Defesa Social e Nova (ou Novíssima) Defesa Social. O primeiro deles

surgiu na Itália, por volta de 1889, tendo como precursor Filippo Gramática. Seu principal

postulado girava em torno da idéia de um novo Direito de defesa social, que substituísse o

Direito Penal, e que buscasse a educação e o tratamento do ser anti-social. Por sua vez, a

Nova Defesa Social, defendida por Marc Ancel, surge após a 2° Guerra Mundial e postula a

defesa da sociedade através da reeducação ou da ressocialização do delinqüente. Entretanto,

as idéias de Ancel são menos radicais que as de seu precursor Gramática.23

Em que pesem as diferenças existentes, constata-se que a Ideologia da Defesa Social

instrumentaliza os movimentos acima indicados, por trabalharem sobre os mesmos

22 Ibid., p. 128.23 PIERANGELI, José Henrique (Coord.); IPIÑA, Antonio Beristain; DEL OLMO, Rosa. Direito criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 170-171.

princípios. Especialmente, a Nova Defesa Social, que aparece como movimento catalizador

e publicizador dos princípios da ideologia da Defesa Social.24

Diante do exposto, observa-se que os postulados da Ideologia da Defesa Social,

formulados a partir das idéias dos pensadores das Escolas Clássica e Positiva, servem de

fundamento para a utilização do Direito Penal como meio de aplicação de sanções aos

chamados desviantes. Esquece-se, portanto, de que a origem do Direito Penal revela seu

caráter de sistema de garantias do indivíduo em face do exercício do ius puniendi do

Estado.

1.3 Teorias Sociológicas Americanas

A idéia de que o delito constitui uma realidade ontológica - natural e pré-constituída

– conforme os fundamentos da Ideologia da Defesa Social, continua até os dias de hoje

dominando o pensamento nas ciências penais. Entretanto, torna-se necessário destacar o

surgimento de diversas teorias questionando os princípios que conformam o pensamento

referido. Desse modo, a abordagem dessas teorias é de grande importância, tendo em vista

que cada qual opera uma desconstrução dos princípios da Ideologia da Defesa Social, a

qual, como mencionado, fundamenta e legitima a aplicação das sanções penais.25

Ocorreu, durante o século XX, uma espécie de deslocamento dos estudos

criminológicos do continente europeu para o norte-americano, especialmente na área da

Sociologia Criminal. É neste contexto que surgem as Teorias Sociológicas Americanas,

dentre as quais está o Labelling Approach, refutando os princípios formadores da Ideologia

da Defesa Social.26

24 CARVALHO, Salo de. A política criminal das drogas no Brasil. p. 142-143.25 Antes da exposição dos postulados de algumas das teorias sociológicas, cabe salientar que, devido à sumariedade que a natureza deste trabalho impõe, o estudo não abordará as diferenças entre as vertentes doutrinárias que cuidam das teorias, sendo atento aos aspectos em que cada teoria contrapõe os princípios da Ideologia da Defesa Social.26 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 199-200.

A mudança de pensamento referida teve início com as Teorias Psicanalíticas que,

apesar de antecederem o surgimento do conjunto das Teorias Sociológicas, permitem

questionar o princípio da culpabilidade e relativizar a validade do princípio da legitimidade.

Os postulados das Teorias Psicanalíticas foram elaborados por volta das décadas de 20 e 30

e caracterizam-se pela inclusão da sociedade na análise explicativa das causas e funções do

crime e da pena. Dentre os pensadores que se destacam pelo desenvolvimento dessas

teorias, encontram-se Freud e Tilman Moser.27

De acordo com Pablos de Molina, Freud tenta formular uma explicação psicanalítica

do delito a partir do confronto entre os instintos de vida e de morte (confronto voltado à

destruição que seria implementada pelo delito) que o homem possui. Também tem lugar na

explicação de Freud o desenvolvimento do instinto sexual e o complexo de Édipo, pois,

segundo o neurologista e psiquiatra, esse complexo de culpa não seria posterior ao delito,

mas sim, anterior e determinante da conduta delitiva. Da mesma forma, a formação da

personalidade pelo Ego, Id e Superego, bem como o desequilíbrio que essas três esferas

podem acarretar no subconsciente (como por exemplo a neurose), é utilizada para explicar

o comportamento do delinqüente.28

Segundo Baratta, Freud explicava a conduta delituosa a partir de seus estudos sobre

as neuroses e considerava que a necessidade de punição deriva da identidade entre os

instintos do delinqüente e os instintos da sociedade em geral. Sob essa perspectiva, o

delinqüente acabaria por realizar instintos que o restante das pessoas mantêm reprimidos e

essas, por sua vez, tendo o desejo de imitar a conduta do delinqüente, punem-no com a

finalidade (consciente e/ou inconsciente) de inibir a própria conduta delitiva através do

sofrimento que a pena representa. Assim, a reação punitiva pressupõe, portanto, a

presença, nos membros do grupo, de impulsos idênticos aos proibidos.29 Neste contexto,

ocorre a negação do princípio da culpabilidade.

27 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 49.28 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 255-256.29 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 51.

Da mesma forma, a partir das pesquisas psicanalíticas desenvolvidas após Freud, o

princípio da legitimidade passou também a ser questionado. Assim,

O princípio da legitimidade resulta controvertido pelas teorias psicoanalíticas da criminalidade e do Direito Penal, pois os mecanismos psicossociais da pena por elas ressaltados, como por exemplo, a projeção do mal e da culpa no “bode expiatório”, substituem as funções preventivas e éticas nas quais se baseia a ideologia penal tradicional.30

Nessa mesma linha de pensamento, Baratta menciona que as teorias psicanalíticas

[...] colocam em dúvida também o princípio da legitimidade e, com isto, a legitimação mesma do direito penal. A função psicossocial que atribuem à reação punitiva permite interpretar como mistificação racionalizante as pretensas funções preventivas, defensivas e éticas sobre as quais se baseia a ideologia da defesa social (princípio da legitimidade) e em geral toda ideologia penal. Segundo as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso não tem a função de eliminar ou circunscrever a criminalidade, mas corresponde a mecanismos psicológicos em face dos quais o desvio criminalizado aparece como necessário e ineliminável da sociedade.31

A relativização dos fundamentos da culpabilidade como reprovação de uma atitude

interior do criminoso que fere os valores comuns aos demais membros da sociedade, bem

como a negação da legitimidade da reação penal, tem como conseqüência lógica o

questionamento sobre as reais funções da pena.

A partir da mencionada teoria “do delito por sentimento de culpa”, elaborada por

Freud, Reik desenvolve uma crítica sobre as teorias retributiva e preventiva da pena. Nas

30 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 201.31 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 50.

palavras do Baratta: a) a pena serve à satisfação da necessidade inconsciente de punição

que impele a uma ação proibida; b) a pena satisfaz também a necessidade de punição da

sociedade, através de sua inconsciente identificação com o delinqüente. Por isso, a teoria

retributiva da pena teria uma função de autopunição inconsciente, enquanto a teoria

preventiva cumpre o papel de enfatizar a necessidade da pena, tanto no que tange ao autor

do delito (prevenção especial), como no que diz respeito à sociedade (prevenção geral).32

Nesse sentido, ressaltam-se as contribuições das Teorias Psicanalíticas para a

análise crítica acerca da delimitação da legitimidade do Estado, especialmente quanto ao

sancionamento de determinadas condutas. Isso porque, ao se admitir que todos possuem

instintos que impulsionam à prática de condutas delituosas e que a culpa por esses impulsos

é projetada naquele que leva a efeito tais condutas (figura do bode expiatório), a

culpabilidade desse indivíduo é atenuada, considerando que seus impulsos são semelhantes

aos dos demais membros da organização social, apenas não foram devidamente

controlados. Por conseqüência, o Estado, como representante dos indivíduos, não possuiria

legitimidade para punir uma conduta que qualquer membro do grupo poderia cometer,

principalmente se essa pena consistir em um mecanismo de punição (inconsciente) de toda

a sociedade.

Após as Teorias Psicanalíticas, surgem as formulações sociológicas das Teorias da

Anomia e Estrutural-funcionalistas, originadas em um momento de grandes mudanças

sociais e rápida industrialização, marcado pela crise dos modelos, normas e pautas de

conduta nas sociedades onde tais mudanças ocorrem.33 Sob o prisma destas teorias, o crime

passa a ser visto como uma realidade inerente à organização social e não como uma

patologia do indivíduo ou da própria sociedade. O delito não é um mal para a sociedade que

é considerada o bem, e sim um elemento que contribui para o desenvolvimento desta. Dessa

forma, ocorre a negação do princípio do bem e do mal.

Durkheim, precursor dessas teorias, observando as taxas constantes de

criminalidade, conclui que o crime é um fato natural, inerente à sociedade, posto que existe

em qualquer lugar e em qualquer momento histórico. Assim, a abolição do crime seria

32 Ibid., p. 51.33 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia.Op. cit. p. 348.

impossível a partir do momento em que o homem tem sua vida regulada por normas, e as

formas de criminalidade variam em cada sociedade de acordo com seu grau de

desenvolvimento e com o tipo social dominante. O crime não passa de um acontecimento

normal, não deriva de patologias humanas, nem da desorganização social, podendo ocorrer

em qualquer sociedade e ser cometido por qualquer pessoa, independentemente da classe

social a que pertence.34 Assim, a desconstrução do princípio do bem e do mal ocorre

quando tais teorias passam a defender o crime como um fenômeno “normal” de toda a

estrutura social e que, quando dentro de certos limites, constitui um fator positivo de

inovação da sociedade, isto é, somente torna-se negativo para o desenvolvimento social

quando ultrapassa ditos limites.35

Da mesma forma que, para Durkheim, o crime é parte da estrutura social como

produto de seu funcionamento, e o indivíduo criminoso não é um ser patológico,

[...] a “pena” (castigo), conforme o autor, não cumpre os fins metafísicos que tradicionalmente lhe são assinalados, senão que surge como qualquer outra instituição social das relações estrutural-funcionais. O delito fere os sentimentos coletivos, porque o delinqüente rompe o que é tido socialmente como bom e correto; a pena é, pois, a reação social necessária e atualiza aqueles sentimentos coletivos que correm o risco de fragilização, clarifica e recorda a vigência de certos valores e normas e reforça, exemplarmente, a convicção coletiva sobre o significado dos mesmos.36

Posteriormente, a Teoria da Anomia desenvolvida por Durkheim é reelaborada pela

Sociologia, tendo como teóricos Merton, Cloaward e Ohlin. Primeiramente, essa

reformulação se dá através de Merton, que a utiliza para explicar o comportamento

desviado, explicando que a anomia, além de corresponder à crise de valores ou normas de

determinada sociedade derivada de problemas sociais, é também sintoma ou expressão do

34 Ibid., p. 349.35 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit. p. 200-201.36 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit. p. 350.

vazio que se produz quando os meios socioestruturais existentes não servem para satisfazer

as expectativas culturais de uma sociedade.37

Em outras palavras, a conduta irregular pode ser fruto da desigualdade social, pois

surgiria a partir da frustração experimentada por aqueles que acreditavam na igualdade de

oportunidades, mas descobriram que a mesma não existe e não conseguiram alcançar a

prosperidade social e os padrões de consumo desejados. Logo, o crime seria uma reação

normal a essa frustração das expectativas. Baratta explica esta tensão entre a estrutura

social e a estrutura cultural, dizendo que

[...] a cultura, em determinado momento do desenvolvimento de uma sociedade, propõe ao indivíduo determinadas metas, as quais constituem motivações fundamentais do seu comportamento (por exemplo, um certo nível de bem-estar e de sucesso econômico). Proporciona, também, modelos de comportamentos intitucionalizados, que resguardam as modalidades e os meios legítimos para alcançar aquelas metas. Por outro lado, todavia, a estrutura econômico-social oferece aos indivíduos, em graus diversos, especialmente com base em sua posição nos diversos estratos sociais, a possibilidade de acesso às modalidades e aos meios legítimos para alcançar as metas.A desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes. Esta desproporção, contudo, não é um fenômeno anormal ou patológico, mas dentro de certos limites quantitativos, em que não atinge o nível crítico da anomia, um elemento funcional ineliminável da estrutura social.38

Assim, torna-se importante reconhecer a quebra do princípio do bem e do mal,

especialmente operada pela superação da classificação do delinqüente a partir de critérios

biopsicológicos ou da patologia social. Apesar de não haver a necessária delimitação da

normalidade do fenômeno da criminalidade e a anomia, reconhece-se que a conduta

delituosa está sempre presente, em certo grau, na sociedade. Evidencia-se a função do

delito ao provocar a reação punitiva e através da aplicação da pena rememorar a todos a 37 Ibid., p. 351.38 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 63.

importância das pautas de conduta e, por conseqüência, a sua utilização como meio de

manter a conformidade da maioria das pessoas com relação às normas sociais. Destaca-se,

ainda, a importância das desigualdades sociais, especialmente no que tange às

oportunidades de ascensão cultural e econômica, na gênese do comportamento delituoso.

Em sentido aparentemente39 oposto ao pensamento estrutural-funcionalista e tendo

como ponto de partida a (des)conformidade com relação às normas sociais, as teorias

subculturais surgem na década de 50 e parecem estar relacionadas aos problemas das

minorias marginalizadas nos Estados Unidos da América. Têm sua origem nos estudos de

Cohen e Whyte, sendo também importantes as contribuições de Matza, Bloch, Cloward,

Ohlin, Wolfgang e Ferracuti.40

As teorias subculturais têm como base três postulados fundamentais, quais sejam: o

caráter pluralista e atomizado da ordem social, a cobertura normativa da conduta

desviada e a semelhança estrutural, em sua gênese, do comportamento regular e

irregular.41

Isso significa que as teorias das subculturas criminais partem da idéia de que a

sociedade é dividida em vários grupos, como o próprio termo subcultura indica. Cada grupo

possuiria seu próprio código de valores, sendo esse conjunto normativo assimilado por cada

indivíduo que está inserido no grupo e pautando, então, a conduta de todos os demais

componentes, inclusive no que tange às condutas delituosas. Isso porque, para as teorias em

comento, determinadas condutas seriam delituosas somente para o grupo que atua na

criminalização, grupo diverso daquele em que estão inseridos os agentes das condutas. Em

39 Pablos de Molina entende que ao admitir a existência de uma sociedade formada por vários grupos, cada qual com um sistema próprio de valores, pautando uma série de condutas e, entre estas, as condutas delituosas, as teorias subculturais acabam por contrariar as teorias estrutural-funcionalistas baseadas na anomia, ou seja, no pressuposto de que o crime seria a expressão da ausência de norma em determinado grupo. (Op. cit., p. 364-365). Entretanto, Baratta ressalta que as teorias se comunicam na medida em que a teoria funcionalista busca estudar a função do delito dentro da estrutura social, enquanto a teoria subcultural busca a origem da subcultura delinqüencial e, em especial, dos jovens delinqüentes. Por sua vez, Cloward e Ohlin, utilizaram a teoria funcionalista para explicar a teoria das subculturas, disciplinando que a ausência de meios legítimos (oportunidades) dos quais possam se servir os membros das classes sociais inferiores para alcançarem os fins culturais (basicamente a ascensão social) são a origem das subculturas criminais, as quais representam uma reação das minorias desfavorecidas e a tentativa, por parte delas, de se orientarem dentro da sociedade, não obstante as reduzidas possibilidades legítimas de agir, de que dispõem. (Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 69-70).40 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 363 e 365.41 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 364.

outras palavras, a conduta criminosa, em determinado grupo, estaria em conformidade com

seu código de valores, não ofendendo as normas aceitas pelo grupo, mas somente as regras

de outros grupos.

Dessa forma, o comportamento chamado delitivo, assim como o comportamento

considerado normal, estaria em conformidade com as normas de conduta social comuns à

subcultura à qual o agente pertence. Além disso, a interiorização das regras próprias a uma

subcultura ocorre de forma semelhante à interiorização das normas que pautam a conduta

dita regular, e tal assimilação de valores depende muito pouco da vontade do indivíduo,

mas sim da forte influência dos mecanismos de socialização. Como assevera Baratta,

[...] A teoria das subculturas criminais mostra que os mecanismos de aprendizagem e de interiorização de regras e modelos de comportamento, que estão na base da delinqüência, e em particular, das carreiras criminosas, não diferem dos mecanismos de socialização através dos quais se explica o comportamento normal. Mostra, também, que diante da influência destes mecanismos de socialização, o peso específico da escolha individual ou da determinação da vontade, como também o dos caracteres (naturais) da personalidade, é muito relativo. Deste último ponto de vista, a teoria das subculturas constitui não só uma negação de toda teoria normativa e ética da culpabilidade, mas uma negação do próprio princípio de culpabilidade, ou responsabilidade ética individual, como base do sistema penal.42

Verificando-se a diversidade de subculturas e a identidade entre os mecanismos de

aprendizagem dos valores que embasam as mais diversas condutas, impõe-se a

relativização do princípio da culpabilidade. Isso ocorre porque, como mencionado, a

interiorização das normas relativas à subcultura se efetiva pelo simples fato de o indivíduo

fazer parte do grupo e com ele interagir e não por vontade própria.

De forma semelhante às teorias subculturais, as teorias do conflito surgem

contestando a existência de uma sociedade pautada por um sistema de valores comuns a

42 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 76.

todos os seus membros (monolítica), pugnando pela existência de uma sociedade pluralista

formada por diversos grupos, os quais podem possuir, inclusive, valores antagônicos.43 As

teorias do conflito efetuam uma abordagem macrossociológica, isto é, analisam a dinâmica

do poder entre os grupos que formam a sociedade e os conflitos derivados dessa dinâmica

como contexto explicativo da criminalização.44

É nesse âmbito que ocorre a negação do princípio do interesse social e do delito

natural a partir da refutação da Criminologia Positivista. Isso porque, para a referida

corrente do pensamento, a ordem social seria constituída sobre o consenso, devendo o

Direito tutelar seus valores. Além disso, a aplicação das leis deveria ocorrer de forma

neutra, a fim de que os interesses gerais fossem protegidos. Nesta sociedade consensual,

caberia à Criminologia identificar as causas do comportamento delitivo que representa a

violação do consenso.45 Assim, o princípio do interesse social e do delito natural, possui

dois pressupostos básicos: a) a concepção da criminalidade como qualidade ontológica de

certos comportamentos ou indivíduos; b) a homogeneidade dos valores e dos interesses

protegidos pelo direito penal.46

Em sentido oposto, para as teorias conflituais, não é o consenso que mantém a

organização social, mas sim o conflito (e os crimes originados pelos conflitos) que efetiva a

43 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 355.44 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 118-119.45 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 356.46 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 118.

manutenção da sociedade e também promove as mudanças necessárias ao desenvolvimento.

Dessa forma, essas teorias se baseiam nos seguintes postulados:

a ordem social da moderna sociedade industrializada não tem por base o consenso, senão a dissensão; o conflito não expressa uma realidade patológica, senão a própria estrutura e dinâmica da mudança social, sendo funcional quando contribui para uma alteração social positiva; o Direito representa os valores e interesses das classes ou setores sociais dominantes, não os gerais da sociedade, aplicando a justiça penal as leis de acordo com referidos interesses; o comportamento delitivo é uma reação à desigual e injusta distribuição de poder e riqueza na sociedade.47

Em todas as suas vertentes, as teorias conflituais possuem uma concepção do delito

como produto dos conflitos que ocorrem entre os grupos que compõem a sociedade, seja

pela tentativa de imposição de valores, seja pela luta pelo poder econômico ou político.

Nesse contexto, o Direito Penal seria um instrumento a serviço do grupo que detém maior

poder sobre os demais para manutenção da hierarquia dos seus e interesses. Assim, denota-

se que a criminalização seria, conforme os ditames das teorias conflituais, uma maneira de

tornar ilícitas condutas que ameaçassem a hegemonia do grupo dominante. 48

47 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 356.48 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 119-120.

2.1.3- Escola Crítica

A criminologia Crítica surgiu inspirada no marxismo, a partir de teorias políticas e

econômicas do delito, passando a analisar as causas sociais e institucionais causadoras daquele.

De acordo com as idéias de Alessandro Baratta

A etiqueta “criminologia crítica” se refere a um campo muito vasto e não homogêneo de discursos que, no campo do pensamento criminológico e sociológico-jurídico contemporâneo, têm em comum uma característica que os distingue da criminologia “tradicional”: a nova forma de definir objeto e os termos mesmos da questão criminal. A diferença é, também e principalmente, uma conseqüência daquilo que, também e principalmente, uma conseqüência daquilo que, utilizando a nomenclatura da teoria recente sobre “as revoluções científicas”, onde pode ser definido como “mudança de paradigma” produzida na criminologia moderna. Sobre a base do paradigma etiológico a criminologia se converteu em sinônimo de ciência das causas da criminalidade. 25

Continua Baratta que

Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas.26

25 BARATTA, Alessandro.Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.Rio de Janeiro: Ed. Revan. Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 209.26 Ibidem, p.161. 27 BARATTA, Alessandro. Op. it., p. 162.28 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Op. cit, p. 155.

A escola crítica segue as determinadas proposições:

a) o direito penal não defende todos somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigualdade e de modo fragmentário.b) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos.c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estes não.constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.27

Assim, de acordo com Pablos de Molina a Criminologia Crítica questiona toda ordem

social, mostra sua simpatia pelas minorias desviadas e ataca o fundamento moral do castigo

(culpável é a sociedade), pregando, de algum modo, a não intervenção punitiva do Estado. 28

Nesse sentido, teorias como o Labelling Aproach e a Reação social passam a ser bases de

defesa dos postulados da Criminologia Crítica.

De acordo com tais teorias, os mecanismos de controle da criminalidade não a detém, e

sim, a causam. Isso, porque no momento em que instâncias controladoras da sociedade agem,

2

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acabam criando uma espécie de rótulo dos delinqüentes, ou seja, a partir de uma reação social,

ocorre um processo de discriminação dos “etiquetados” como criminosos, havendo a

perpetuação delitiva, e a criação de subculturas (aproximação dos “etiquetados”).

Baratta conclui que

As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis ais baixo da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.29

A partir disso, Juarez explica que a teoria distingue a criminalização primária (de

natureza “poligenética”, excluída do esquema explicativo da teoria) e criminalização

secundária (resposta seqüencial a criminalização primária, o comprometimento na “carreira

desviante” como impacto pessoal da reação social), o ponto de incidência de suas análises.30

Os principais estudiosos dessa área de pesquisa são Alessandro Baratta, Becker, Schur,

Granfiel, Goffman, Erickson entre outros.31

29 BARATTA, Alessandro. Op. cit, p.165.30 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro:Ed. Forense, 1981.p.14

3

31 MOLINA, Antônio Garcia; Luiz Flavio Gomes; Plabos. Criminologia. São Paulo: Editora RT, 2002.

Além disso, no âmbito da Criminologia Crítica é inevitável citar pensadores como

Foucault (autor do livro “Vigiar e Punir”) e Kirsheimer.

1 O CONTROLE SOCIAL E AS TEORIAS CRIMINOLÓGICAS

Desde a história do homem em sociedade, verifica-se que sua convivência é

permeada por conflitos, os quais podem ser solucionados das mais variadas formas. Alguns

desses são solucionados pelos envolvidos, enquanto outros, conforme o grau de lesividade

que apresentem para os valores sociais da época, acabam por receber uma resposta estatal

repressiva dirigida à tutela do valor ou interesse ameaçado.

A partir da percepção da necessidade de uma forma de controle social

institucionalizada, surgiu o direito de punir do Estado, o qual foi legitimado pelas teorias

contratualistas e se efetivou através do Direito Penal. Dessa forma, a dinâmica do controle

social, bem como as diversas concepções propostas pelas teorias criminológicas acerca das

formas e dos instrumentos utilizados pelo Estado, necessita ser abordada antes de quaisquer

considerações sobre as sanções penais, por constituir a origem e a fundamentação dessas.

1.1 O controle social

A fim de garantir a convivência pacífica entre os homens, a sociedade estabelece

normas de conduta. Em geral, as pessoas têm a expectativa de que todos se comportem

conforme as normas e, a fim de evitar a frustração com referência a essa expectativa,

estabelece-se uma sanção para ser aplicada àqueles que não se comportarem conforme os

preceitos estabelecidos. Todas as sociedades, por mais primitivas que sejam, possuem

regras e sanções correspondentes que formam a ordem social.49 Nesse contexto, erige-se o

controle social que representa a influência da sociedade delimitadora do âmbito de conduta

do indivíduo.50

Nas palavras de Muñoz Conde

O controle social é condição básica da vida social. Com ele se asseguram o cumprimento das expectativas de conduta e o interesse das normas que regem a convivência, conformando-os e estabilizando-os contrafaticamente, em caso de frustração ou descumprimento, com a respectiva sanção imposta por uma determinada forma ou procedimento. O controle social determina, assim, os limites da liberdade humana na sociedade, constituindo, ao mesmo tempo, um instrumento de socialização de seus membros. [...] 51

O controle social é conceituado por Garelli como o

[...] conjunto de meios de intervenção acionado por cada grupo social a fim de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de conformação, também em relação a uma mudança do sistema normativo.52

49 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 9-10. 50 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 61.51 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. p. 22.52 GARELLI apud SICA, Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 27.

Nesse sentido, também Pablos de Molina entende o controle social como o conjunto

de instituições, estratégias e sanções sociais que pretendem promover e garantir referido

subentendimento do indivíduo aos modelos e normas comunitários.53

Essa forma de intervenção na conduta individual pode ser exercida por diversas

instâncias, a exemplo da família, da escola, da religião, dos meios de comunicação, além

dos meios especializados, como é o sistema penal. O Direito Penal e, por conseguinte, a

pena, são formas pelas quais se efetiva o controle social praticado pelo Estado.

Sica explica que o controle social é exercido

[...] por meios internos (instâncias informais) ou externos (meios formais). Os primeiros são os processos pelos quais a sociedade busca educar o indivíduo, desde a infância (família, escola, igreja etc.), interiorizando valores e, em suma, formando uma consciência que impeça ou reprove a prática de condutas que se desviem do padrão ético-social de comportamentos. Já os externos são os mecanismos, em regra punitivos, estabelecidos institucionalmente para reprimir e, em tese, prevenir e reprimir atos atentatórios às normas. Aqui se corporificam as instâncias formais de controle, dentre as quais o sistema penal.54

Assim, os agentes informais de controle atuam a partir do o início da vida de cada

pessoa, na intenção de que ela interiorize valores comuns em sua comunidade e conforme-

se com as normas dessa comunidade, pautando sobre tais normas sua conduta. Esse seria o

processo de socialização. Mas, quando as instâncias de controle informal fracassam, isto é,

quando um indivíduo age em desconformidade com as normas estabelecidas, passam a

atuar as instâncias formais através da aplicação de sanções. Dentre as instâncias formais,

insere-se o Direito Penal, salientando-se que, segundo Pablos de Molina,

53 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos. Tradução de: Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 133-134.54 SICA, Leonardo. Op. cit., p. 29.

[...] é inegável que o Direito Penal simboliza o sistema normativo mais formalizado, com uma estrutura mais racional e com o mais elevado grau de divisão do trabalho e de especialidade funcional dentre todos os subsistemas normativos. [...] O controle social penal é um subsistema dentro do sistema global do controle social; difere deste último por seus fins (prevenção ou repressão do delito), pelos meios dos quais se serve (penas ou medidas de segurança) e pelo grau de formalização que exige.55

O controle social tanto em seu exercício formal como no informal possui duas

funções: a prevenção de comportamentos desviantes e a punição, esta última atuando

subsidiariamente quando a primeira falhar. Entretanto, não é verdadeiro que, em ocorrendo

uma conduta desviante, sobrevirá sempre uma sanção, posto que a solução dos conflitos

não é sempre punitiva, mas residualmente punitiva, devendo assim existir espaço para

outras soluções e até para a aceitação de uma margem de conflito aceitável, como forma de

respeito às liberdades e desigualdades individuais.56 Dessa forma, as instâncias de controle

informal devem ser valorizadas, a fim de evitar a utilização do Direito Penal, que atua

sempre a posteriori e tem efeito seletivo e estigmatizante sobre aqueles contra quem é

dirigido.

Entretanto, é necessário ponderar, conforme lição de Muñoz Conde, que o Direito

Penal não cria sozinho um sistema de valores ou de motivação do comportamento, mas

depende das demais instâncias de controle, sendo uma continuação dessas. Dessa maneira,

as diferenças existentes entre o sistema jurídico-penal e outros sistemas de controle social

são muito mais de caráter quantitativo: o direito penal representa um plus em intensidade

e gravidade das sanções e no grau de formalização que sua imposição e execução

exigem.57

É difícil, senão impossível, delimitar a origem do controle social, posto que esse

controle é inerente à organização do homem em sociedade. Em razão dessa

55 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 134-135.56 SICA, Leonardo. Op. cit., p. 28.57 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. p. 23.

interdependência entre controle e organização social, os fundamentos do controle social

penal e do ius puniendi poderiam ser encontrados na Teoria do Contrato Social que, como

base da Teoria Geral do Estado, explica

o porquê de o Estado ter o poder de dispor sobre a liberdade dos indivíduos ou do porquê de os homens, ao se organizarem socialmente, aceitaram e pactuaram passar às mãos do Estado esse poder, despojando-se de considerável parcela do seu livre-arbítrio.58

As teorias contratualistas desenvolveram-se a partir da idéia de que o homem vivia

em um estado de natureza, desorganizados, sem a existência de alguém que comandasse a

convivência, ou seja, um estado de liberdade correspondente a uma condição de

independência, de domínio de si próprio. Em que pese a discordância dos pensadores sobre

a natureza humana59, os mesmos concordam sobre a necessidade de um ente superior, que

organizasse as vontades individuais e buscasse efetivar a vontade geral (o bem-estar social

de Rousseau), ou seja, uma organização suprapessoal de controle, calcada na hipotética

soma das vontades pessoais. 60 Nessa necessidade, então, baseou-se a teoria do contrato

social, ou pacto social, por meio do qual cada um (e todos) cedeu (cederam) uma parcela de

sua liberdade a fim de que o Estado organizasse o exercício da mesma.

Para Beccaria, o homem tem natureza beligerante e no estado natural vivia em

guerra, primeiramente entre um e outro homem, e, após, entre os bandos formados para

melhor garantir sua sobrevivência. Assim, o ius puniendi teve origem quando os homens se

esgotaram de viver em beligerância e tendo sua liberdade ameaçada constantemente,

decidiram abdicar de parte desta liberdade irrestrita para dispor do restante com segurança.

A soma dessas parcelas de liberdade originou a soberania da nação. Neste ínterim, foi o

58 SICA, Leonardo. Op. cit., p. 21.59 No referido estado natural, Hobbes considera que o homem é mau por natureza, o homem é o lobo do homem, e por isso necessita viver em sociedade e sob regras que protejam uns dos outros. O respeito a estas regras deve ser imposto por um ente sobre humano, por ele chamado Leviatã, que corresponde ao Estado. Já para Rousseau, o homem é naturalmente bom, sendo o convívio social a origem de sentimentos como a ambição e competição e, portanto, dos conflitos. Logo, para Rousseau, não é o homem que faz surgir a necessidade de regras e de uma autoridade superior que as efetive, mas sim a vida em sociedade. (Ibid. p. 23). 60 Ibid., p. 23.

soberano (rei) encarregado de sua administração, cabendo-lhe proteger as liberdades de

usurpações. Os instrumentos jurídicos adotados, para tanto, foram as penas estabelecidas

para aqueles que desrespeitassem as leis.61

O referido pacto de associação e de submissão teria originado a sociedade civil e o

controle social formal, de modo que o ius puniendi foi concebido como inerente à

organização social, devendo ser exercido pelo Estado, uma vez que, como portador das

vontades individuais e representante da vontade geral, teria o dever de garantir a

convivência pacífica.62 Em outras palavras, o contrato social63 fundamentou a organização

estatal e concedeu ao Estado o ius puniendi que, por sua vez, legitimou os instrumentos

repressivo-punitivos voltados ao controle social, dentre os quais se insere o Direito Penal.

Contudo, neste pacto social não estaria apenas a origem do Direito Penal, mas

também seu limite, posto que,

[...] somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante.A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.64

Com base nas citações de Beccaria, percebe-se que o controle social penal não

surgiu como meio de retribuição de um mal àqueles que infringissem as normas

reguladoras da convivência social. Mas sim, como forma de evitar a aplicação das sanções

por parte dos demais, especialmente, limitando o exercício do ius puniendi por parte do

61 BECCARIA, Marquês Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Claret, 2003. p. 18-19.62 SICA, Leonardo. Op. cit. p., 24.63 Importante ressaltar que a Teoria do Contrato Social é, atualmente, muito criticada, pois, segundo Muñoz Conde, o direito e o Estado não são, sem embargo, expressão de um consenso geral de vontades, senão reflexo de um modo de produção e uma forma de proteção de interesses de classe, a dominante, no grupo social a que esse direito e Estado pertencem. MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. p. 30.64 BECCARIA. Op. cit., p. 19-20.

Estado. Dessa forma, através da passagem da vingança privada para o direito de punir do

Estado, buscou-se a racionalização das penas. Cabe ressaltar, com as palavras de Sica, que

a parcela do controle social manifestada através do direito de punir passa às mãos do

Estado, primariamente, como esperança de racionalizar a vingança privada, de evitar a

utilização de força e da autotutela entre os cidadãos.65

Assim como o crime e o criminoso, o controle social acima delineado também é

objeto de preocupação da Criminologia, especialmente das teorias componentes da

Criminologia liberal contemporânea que analisam a relação de causa e efeito estabelecida

entre o controle social penal e a criminalidade.

Segundo Pablos de Molina, a Criminologia Positivista teve como centro de estudo o

criminoso e pouco se importou com o controle social, posto que admitia as disposições

legais como expressão da vontade geral explicitada pelo Estado, devendo ser aplicadas

sanções àqueles que não as respeitassem: os desviantes.66

Em sentido oposto, o Labelling Approach surgiu com uma postura diversa acerca do

controle social. Para os teóricos desse segmento, o crime não é uma realidade ontológica

que desperta a necessidade de controle. Muito pelo contrário, tem natureza definitorial, pois

passa a existir a partir de definições seletivas de condutas humanas efetuadas pelos agentes

do controle social formal. Desse modo, os processos de atribuição do status de delinqüente

e a aplicação dos instrumentos de controle na realidade social recebem maior importância

na configuração da criminalidade. O controle social, sob este prisma, não detecta a

criminalidade e o criminoso, mas os gera a partir de atos de seleção e de etiquetamento.67

Nesse sentido, a abordagem acerca da criminalidade se desloca da análise da pessoa

do criminoso e dos motivos que o levaram ao cometimento de determinada conduta

(Teorias Positivistas) para a análise de como condutas humanas são selecionadas e

etiquetadas como criminosas e como as normas tipificadoras e sancionadoras de tais

condutas são aplicadas na realidade social. Logo, faz-se necessária uma análise sobre esta

65 SICA, Leonardo. Op. cit., p. 24.66 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 132.67 Ibid., p. 133.

mudança de paradigma, destacando-se a passagem da Ideologia da Defesa Social para a

Teoria da Reação Social (ou Labelling Approach).

Dessa forma, Andrade refere que

O princípio do interesse social e do delito natural é questionado pelas teorias do conflito que, desenvolvidas sobre a base do labelling approach, tratam de localizar as verdadeiras variáveis do processo de definição nas relações de poder e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os conflitos de interesse. Estas teorias puderam determinar em ditas relações a base não só da desigual distribuição do status de criminoso, mas também a desigual distribuição entre os grupos sociais de poder de definição, do qual aquele status e as mesmas definições legais da criminalidade dependem. Puseram assim em evidência que, na origem do processo de criminalização primária (gênese da lei penal) e secundária (aplicação da lei penal) não residem interesses fundamentais para uma determinada sociedade ou diretamente para toda sociedade civilizada, mas interesses dos quais são portadores os grupos que detêm o poder. [...].68

Daí infere-se que o princípio do interesse social e do delito natural é refutado no

momento em que se revela que inexiste uma sociedade consensual, na qual os interesses

protegidos sejam comuns a todos os seus membros. Ao contrário, os interesses protegidos

seriam os pertencentes às classes dominantes. Como conseqüência, o delito também não

seria uma realidade natural, mas produto dos processos de criminalização, que, por sua vez,

representa o ato legislativo de tornar ilícita uma conduta anteriormente considerada lícita.

Como é possível perceber, as proposições das teorias do conflito foram desenvolvidas sobre

a análise do caráter seletivo e estigmatizante do processo de criminalização de condutas,

acrescentando a esta constatação a desigualdade como característica da distribuição do

poder de definição das condutas delitivas. Como esse aspecto já foi abordado durante a

exposição da teoria de que deriva, resta, ainda, aprofundar a questão relativa ao processo de

criminalização. 68 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 202.

1.4 O Labelling Approach

A Teoria da Reação Social ou Labelling Approach, surgida no último século dentre

as várias outras teorias sociológicas, é a que melhor se adequou aos termos do presente

trabalho. Isso ocorre porque esse pensamento opera uma desconstrução da Ideologia da

Defesa Social, em especial, do princípio da finalidade ou da prevenção, o qual serve como

base legitimadora da pena privativa de liberdade e do sistema punitivo como um todo,

conforme se demonstrará.

A Teoria do Labelling Approach, ao lado da etnometodologia e da criminologia

radical, corresponde a uma das principais perspectivas da criminologia nova ou

criminologia crítica, desenvolvida durante os anos 60. Segundo Dias e Andrade, tal

criminologia opera uma revolução, especialmente em razão das questões que passam a ser

formuladas, pois

As questões centrais da teoria e da prática criminológicas deixam de se reportar ao delinqüente ou mesmo ao crime, para se dirigirem, sobretudo, ao sistema de controlo, como conjunto articulado de instâncias de produção normativa e de audiências de reacção. Em vez de se perguntar por que é que o criminoso comete crimes, passa a indagar-se primacialmente porque é que determinadas pessoas são tratadas como criminosos, quais as conseqüências desse tratamento e qual a fonte de legitimidade. Não são, em síntese, os motivos do delinqüente mas antes os critérios (os mecanismos de seleção) das agências ou instâncias de controlo que constituem o campo natural desta nova criminologia.69

Além dessa mudança de paradigma70, as três correntes da criminologia crítica acima

citadas, também propiciam uma ruptura metodológica e uma recusa do monismo cultural. 69 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2 reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 42-43.

Isto porque refutam o determinismo etiológico, no qual se baseava a criminologia

tradicional, e, porque passam a conceber as normas a partir de um pluralismo ou de uma

perspectiva de conflito, como resultado da dominação de uma classe sobre as demais.71

Assim resume Hassemer:

Las teorias tradicionales sobre el delincuente son englobadas em el concepto de “teorias etiológicas” y contrapuestas a las teorias de la definición o del paradigma del control, expresión esta última que pone de manifesta el cambio que comporta. El delincuente ya no puede seguir siendo el objeto de investigación de las teorias criminológicas. Em su lugar aparecen las instancias de control social, em cierto modo como “delincuentes”, como las recién descubiertas fuentes de la criminalidad. El interes de la investigación se desplaza desde el desviado y su médio hacia aquéllos que definen a éste como desviado, y se analisan los procesos de control y la gênesis de las normas em vez de los déficitis de socialización. Las carências no se buscan em los controlados sino em los controladores. Em vez de explicar la criminalidad se trata de explicar la criminalización, y el “autor” del delito passa a ser la “victima” de los procesos de definición.72

Entretanto, é possível diferenciar as vertentes em comento com base no aspecto

temporal e teórico-sociológico a que se referem. O Labelling Approach e a

etnometodologia foram predominantes na década de sessenta, enquanto a criminologia

crítica teve prevalência na década de setenta. Quanto à influência sociológica que sofreram,

pode-se referir que o Labelling foi influenciado pelo interacionismo simbólico73, a

70 Como esclarece Hassemer, por cambio de paradigma científico se entiende em la historia y la sociologia de la Ciência el cambio de todos los elementos que caracterizan a uma ciência estabelecida: metas de la investigación, instrumentos de la misma, criterios acerca de la correccion de lãs perguntas y de las respuestas, exigencias lingüísticas, racionalidad y progreso científico, interesses científicos y sociopolíticos. HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Tradução de: Francisco Muñoz Conde e Luiz Arroyo Zapatero. Barcelona: BOSCH, 1984. p. 84.71 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 43.72 HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 84.73 De acordo com Arnaud e Fariñas Dulce, o princípio da interação surge como uma teoria das relações entre indivíduos e sociedade, acerca dos fundamentos epistemológicos da filosofia pragmática. Para essa corrente, a sociedade é fundamentalmente “interação”, uma premissa que nos remete ao âmbito metodológico: a análise das instituições sociais deve realizar-se por meio da análise dos processos de interação entre seus membros, em que ação e intencionalidade aparecem como elementos primordiais. Por sua vez, o “princípio

etnometodologia, pela fenomenologia sociológica e, por sua vez, a criminologia crítica,

pela teoria marxista. Diferenciam-se, ainda, pelas propostas de política criminal defendidas,

em razão dos valores que são preponderantes em cada vertente.74

No entanto, a elaboração dos postulados do Labelling Approach apresenta seus

fundamentos não só no interacionismo simbólico de George H. Mead, mas também em

outra corrente da sociologia norte-americana: o construtivismo social de Alfred Schutz,

tendo como principais representantes Garfinkel, Goffman, Erikson, Cicourel, Becker,

Schur, Sack, entre outros.75 O interacionismo simbólico corresponde à psicologia social e à

sociolingüística, sustentando que a sociedade é construída a partir de uma série de

interações entre os indivíduos que a compõem, aos quais um processo de tipificação

confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se

através da linguagem. De forma semelhante, o construtivismo social entende a sociedade

como uma construção social derivada de um processo de definição e tipificação por parte

de indivíduos e de grupos diversos. Assim, o estudo do desvio como parte da realidade

social depende do estudo desses processos de interação.76 Nesse sentido, Andrade,

seguindo os passos de Baratta, explica que

Modelado pelo interacionismo simbólico e o construtivismo social como esquema explicativo da conduta humana, o labelling parte dos conceitos de “conduta desviada” e “reação social”, como termos reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio – e a criminalidade – não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. Uma conduta não é criminal “em si” ou “per si” (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e a atribuição de criminoso a seu autor depende de certos processos sociais de

da interação simbólica” é uma corrente sociológica que aparece da década de 1960 [...] e implica a adoção de uma perspectiva epistemológica “subjetivista”, para a interpretação das relações sociais (que se esforça para compreendera ação social do ponto de vista do ator) e para compreender a ação social. ARNAUD, André Jean; FARIÑAS DULCE, Maria José. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos.Tradução de: Eduardo Pellew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 168-169.74 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 49.75 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 388.76 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 87.

“definição”, que atribuem à mesma um tal caráter, e de “seleção”, que etiquetam um autor como delinqüente.77

Dessa maneira, o interacionismo simbólico postula que não se pode conceber a

significação do crime sem a devida análise da interdependência que guarda com a reação

social, ou seja, da interação do crime com os processos de seleção e etiquetamento de

condutas como desviantes. Nas palavras de Pablos de Molina, a desviação não é uma

qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade que lhe é atribuída por meio de

complexos processos de interação social, processos estes altamente seletivos e

discriminatórios.78

Segundo Dias e Andrade,

O labeling parte do princípio de que a deviance não é uma qualidade ontológica da acção, mas antes o resultado duma reacção social e que o delinquente apenas se distingue do homem normal devido à estigmatização que sofre. Daí que o tema central desta perspectiva criminológica seja precisamente o estudo do processo de interacção, no termo do qual o indivíduo é estigmatizado como delinquente. Este deixa, assim, de ser o protagonista do campo da criminologia, sendo sub-rogado pelos outros, que adscrevem, estigmatizam, manipulam e degradam. Dito noutros termos, são as instâncias de reacção e controlo que passam a constituir o principal objecto de estudo do labeling.79

No mesmo sentido, Dotti sustenta que

A perspectiva do labeling approach parte do princípio de que a deviance não é uma qualidade ontológica da ação, porém o efeito de uma reação social. O delinqüente apenas se distingue do homem normal pela estigmatização que sobre ele recai. Daí que o aspecto

77 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 205.78 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 385-386.79 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 49-50.

central desse enfoque é a existência de um processo de interação através do qual o indivíduo é estigmatizado como criminoso.80

Do exposto, percebe-se que, sob a perspectiva do Labelling Approach, o fenômeno

da delinqüência corresponde ao processo de interação entre o autor de uma conduta

qualificada como criminosa e os demais membros da sociedade que reagem contra esta

conduta. É devido a essas bases sociológicas que o Labelling Approach nega a concepção

de delito como uma realidade natural e preexistente, para então concebê-lo como uma

criação do homem que, através de processos de seleção e etiquetamento (labelling), define

quais comportamentos serão considerados ilícitos e, portanto, deverão ser sancionados.

Logo, conforme Thompson,

Os criminosos não são “os outros”, relativamente ao restante da humanidade. Não formam, destarte, um grupo homogêneo, perfeitamente identificável e separável da sociedade civil, através da apresentação de características certas e definidas. “O criminoso”, como uma entidade absoluta, é fruto puramente de abstração [...].81

Devido a tal percepção, essa teoria desloca o enfoque do delinqüente para o próprio

controle social, isto é, da pessoa que comete uma conduta tida como criminosa para as

agências estatais de controle social que selecionaram tal conduta e a etiquetaram como

criminosa, bem como as demais instituições não-estatais que atuam na repressão do

fenômeno criminal. A análise da criminalidade, desse modo, não parte somente das causas

que levam o homem a praticar a conduta delitiva, mas abrange todo o processo de

criminalização, desde a criação das normas, passando pela aplicação dessas e atingindo os

efeitos da reação da coletividade perante o crime.

Com efeito, Pablos de Molina explica que, como o enfoque da investigação se

desloca do desviado para as instituições que definem quais são as condutas desviadas e

80 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 90. 81 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 81.

quem são os desviados, o próprio conceito de criminalidade passa a ser questionado,

ressaltando que ela é então considerada produto do controle social, resultado de um

processo social de interação (definição e seleção), e o desviado não tem outro significado

senão o de vítima desses processos de etiquetamento. Assim, os órgãos estatais de controle

não descobrem as condutas que possuem caráter delitivo, mas, efetivamente, criam-nas.82

Esse processo teria seu início formal com o processo de criminalização das

condutas, que, por sua vez, se divide em duas etapas: a criminalização primária e a

criminalização secundária. A criminalização primária corresponde à seleção de condutas e à

elaboração de normas penais que determinem a ilicitude dessas e a sujeição de seus autores

a uma sanção a ser imposta pelos órgãos estatais, visando a tutelar bens jurídicos.83

Após a criminalização primária, segue-se a criminalização secundária, caracterizada

pelo cumprimento do programa de criminalização através da aplicação das normas

sancionadoras pelos órgãos encarregados pelo Estado a alguns dos indivíduos que violam

tais normas, de forma seletiva e diferentemente entre classes de pessoas, épocas e

situações.84

Nas palavras de Dias e Andrade,

[...] O que fundamentalmente a distingue da deviance primária é a sua etiologia: enquanto esta é poligenética e devida a uma variedade de factores culturais, sociais, psicológicos e sociológicos, a deviance secundária traduz-se numa resposta de defesa, ataque, adaptação aos problemas manifestos ou latentes criados pela reacção social à deviance primária.85

Ambas as etapas são efetuadas de forma seletiva. A criminalização primária é

seletiva devido à impossibilidade de prever todas as condutas potencialmente lesivas. Já a

seletividade da criminalização secundária ocorre em função da deficiência das agências de

82 PABLOS DE MOLINA, Antônio Garcia. Op. cit., p. 388-389.83 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Op. cit., p. 43.84 BISSOLI FILHO, Francisco. Op. cit., p. 174-177.85 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 350.

controle diante do número de condutas criminosas. No entanto, merece destaque essa

última seleção pelo efeito concreto que pode acarretar: a estigmatização do indivíduo.

Afinal, através dessa teoria, denota-se que não são todas as pessoas que cometem as

condutas delituosas que sofrem a imposição da sanção legal, mas tão-somente as que são

selecionadas pelo sistema penal.

Entretanto, torna-se necessário ponderar que não são somente as instâncias de

controle social as responsáveis pela estigmatização, mas também as instâncias de controle

formal. Uma vertente moderada do interacionismo simbólico admite que a seletividade do

sistema penal não é autônoma, mas vinculada às demais instâncias de controle social. Tal

ponderação deriva do reconhecimento de que o sistema penal é apenas uma parte do

controle social.

Nas palavras de Hassemer,

[...] La criminalidade es uma etiqueta que se aplica por la policía, los fiscales y los tribunales penales, es decir, por lãs instancias formales de control social. Algunos representantes de esta orientación, menos radicales, reconocem que los mecanismos del etiquetamiento no se encuentram solo em el âmbito del control social formal, sino también em el informal. Este es el caso de los procesos de interacción simbólica em los que la familia define tempranamente a la oveja negra entre los hermanos o los maestros y los escolares al estudiante difícil o marginal y com ello los estigmatizan com el signo social del fracaso, hecho que com posterioridade es remachado y profundizado por otras instancias de control social, que terminam por hacer que el estigamatizado assuma por sí mismo, como parte de su própria historia vital, esse papel impuesto y acuñado desde fuera.86

86 HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 82.

De modo geral, na criminalização secundária, as agências de controle social elegem

quais condutas criminosas terão primazia na repressão, pois

[...] A regra geral da criminalização secundária se traduz na seleção: a) por fatos burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, cuja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico, ou à comunicação massiva). No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade, desconsiderado não apenas perante a lei mas também na lei. O princípio constitucional da isonomia (art. 5° CR) é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela.87

Nesse ponto, então, ocorre a relativização do princípio da igualdade, posto que nem

todas as pessoas que infringem a lei recebem o mesmo tratamento por parte do sistema

penal. O princípio da igualdade é convincentemente refutado pelo labelling approach, em

cujo âmbito se demonstra que o desvio e a criminalidade não são entidades ontológicas

preconstituídas, identificáveis pela ação das distintas instâncias do sistema penal, mas sim

uma etiqueta atribuída a determinadas condutas por meio de um processo de seleção e

etiquetamento: a criminalização. A criminalidade, então, deriva desse processo. Além

disso, o comportamento contrário à lei é inerente à maioria das pessoas, entretanto, somente

uma minoria é selecionada pelas instâncias de controle social. O status de criminoso, por

sua vez, também não é uma qualidade da pessoa, mas uma indicação de que as etiquetas

estão sendo aplicadas com êxito. Nesse contexto, ocorre a refutação do princípio da

igualdade, posto que somente uma minoria é atingida pela ação seletiva da criminalização

secundária.88

87 ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Op. cit. p. 46.88 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit. p. 201-202.

Essa seleção desigual e estigmatizante levada a efeito pela criminalização

secundária têm como conseqüência a atribuição de etiquetas negativas aos condenados, as

quais Williams Payne compara a corredores e prisões. A referida comparação é baseada na

proposição de que as etiquetas, tal como os corredores, levam os indivíduos à iniciação de

uma carreira criminal e ainda, da mesma forma que prisões, determina a assunção de uma

identidade de sujeito desviante, conduzindo à sedimentação da carreira criminal uma vez

iniciada.89

Nesse contexto, como conseqüência desse processo de estigmatização, então, surge

a assunção de uma identidade90 desviante e o desvio secundário. Sobre esse aspecto, Baratta

explica que a reação ao desvio primário (primeiro delito) pode ser uma das determinantes

do desvio secundário (segundo ou terceiro delito)91, pois

[...] a reação social ou a punição de um primeiro comportamento desviante tem, freqüentemente, a função de um “commitment to deviance”, gerando, através de uma mudança da identidade social do indivíduo estigmatizado, uma tendência a permanecer no papel social no qual a estigmatização o introduziu.92

89 PAYNE, Williams. Apud BISSOLI FILHO, Francisco. Op. cit. p. 183.90 No que tange à identidade, segundo Dias e andrade, [...] tal como o interaccionaismo simbólico, também o labeling approach rejeita o pensamento determinista e os modelos estruturais e estáticos, tanto no que respeita à abordagem do comportamento como no que toca à compreensão da propria identidade individual. A identidade, o self, não é um dado, uma estrutura sobre a actuam as causas endógenas ou exógenas, mas algo que se vai adquirindo ao longo do processo de interacção entre o sujeito e os outros. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 50.91 Torna-se necessário ponderar que também o Labelling Approach é alvo de críticas por parte da doutrina por sua faceta determinista. Segundo Dias e Andrade, também essa teoria busca uma explicação para o crime, assim como fazem as teorias de natureza etiológica, apesar do mérito de acrescentar outras variáveis, como a atuação das agências de controle. Além disso, ao enfatizar o desvio secundário como resultado da reação ao primeiro desvio, os defensores interacionistas, por vezes, acabam por cair em um determinismo também, considerando que concebem a carreira criminal como irresistível e irreversível. Também por se concentrar quase exclusivamente sobre o desvio secundário, não é possível dizer que a Teoria da Reação Social invalida as tentativas de explicação do desvio primário efetuadas pelas teorias tradicionais. (DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 160-161). 92 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 89.

Na mesma linha de raciocínio, Shecaira e Corrêa Junior explicam como o desvio

secundário pode derivar da reação ao desvio primário ao referirem que

Em linhas gerais pode-se dizer que a “deviance” primária é poligenética e decorre de uma variedade de fatores culturais, sociais, psicológicos e sociológicos. Uma pessoa submetida a um processo criminal passa por verdadeira “cerimônia degradante” em face da ritualização judicial. Se condenada for, sofrerá as conseqüências já narradas das instituições totais. A “deviance” secundária, conseqüência natural desse modelo explicativo, traduz-se numa resposta de adaptação aos problemas ocasionados pela reação social à desviação primária, que produzirá o “role engulfment”, ou seja, a carreira criminal.93

Ao perceber o caráter criminógeno das instâncias formais de controle, verifica-se

desconstrução de outro postulado da Ideologia da Defesa Social: o princípio da finalidade

ou da prevenção. Segundo Baratta, a partir das noções de desvio secundário e carreiras

criminosas, o Labelling Approach coloca

[...] em dúvida o princípio do fim ou da prevenção e, em particular, a concepção reeducativa da pena. Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinqüente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa.94

Assim, demonstrando a estigmatização acarretada pelo sistema punitivo estatal,

devido ao modelo de seleção e etiquetamento das condutas consideradas criminosas, o

Labelling Approach desmistifica as funções que a pena exerceria. Finaliza, então, a

desconstrução da Ideologia da Defesa Social. Em função disso, o Paradigma da Reação 93 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 366.94 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 90.

Social servirá de fundamento para a análise da responsabilidade do Estado pela reincidência

criminal. Porém, antes disso, resta necessária a abordagem sobre os caracteres do instituto

da reincidência, bem como sobre seus fundamentos e sobre as críticas que lhe são dirigidas.