Post on 28-Oct-2020
Renata Amaral de Matos ROCHA1
Bruno de Assis Freire de LIMA2
RESUMO Como usar os gêneros para ensinar leitura e produção de textos nas práticas pedagógicas? Os textos têm formato próprio, suporte específico, possíveis propósitos de leitura, ou seja, se constituem pelas chamadas características sociocomunicativas, definidas pelo conteúdo, pela função, pelo estilo e pela composição do material a ser lido. E é essa soma de características que define os diferentes gêneros. No entanto, explorar apenas as características de cada texto contribui muito pouco para com o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita de determinado gênero por parte dos nossos alunos. Faz-se necessário discutir por que e para quem se escreve um texto, dentro de um determinado contexto comunicativo. Essa é a diferença entre tratar os gêneros como conteúdos em si e ensiná-los no interior das práticas de leitura e escrita. Neste texto, tratamos do gênero charge como instrumento de formação de leitores críticos, a partir da noção de linguagem como interação. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros textuais. Charge. Leitores críticos.
ABSTRACT How can we use genres to teach reading and writing in the classroom? Texts have specific size and support and possible reading purposes, they constitute the so-called sociocomunicative characteristics defined by content, function, style and composition of the material to be read. It is the sum of those features that define different genres. However, exploring only the characteristics of each text contributes very little to the development of reading and writing skills of certain genres by our students. It is necessary to discuss why and for whom a person writes a text, within a certain communicative context. That's the difference between treating genres as content itself and teaching them inside reading and writing practices. In this paper, we will treat the charge as gender training tool of critical readers, from the notion of language as interaction. KEYWORDS: Text genres. Charge. Readers critics.
Nas nossas aulas de português como língua materna, precisamos fazer com que as atividades de leitura
e escrita sejam realmente práticas comunicativas, e não, apenas, tarefas escolares com fins avaliativos. Nossos
alunos são sujeitos inseridos em uma sociedade, na qual gêneros textuais diversos são produzidos e recebidos
a todo instante, no processo de interação com o outro e com o mundo. Logo, na escola, temos o dever de
1 Doutoranda em Estudos Linguísticos pela FALE/UFMG, professora do Centro Pedagógico da UFMG.
2 Doutorando em Estudos Linguísticos pela FALE/UFMG, professor do Instituto Federal de Minas Gerais.
conduzir o processo de ensino de português por um caminho de construção de leitores e produtores textuais
críticos e reflexivos, para oportunizar aos estudantes uma participação ativa em seu contexto sociocultural.
Nosso foco específico, neste trabalho, é a prática de leitura; a formação de leitores críticos, na escola.
Escolhemos o gênero charge porque ele traz em seu âmago a marca da interdiscursividade, pois, ao
transitar entre o discurso jornalístico e o discurso humorístico, acaba por assumir características de ambos. No
entanto, é o tom jocoso que torna a charge diferente e, portanto, sedutora. Mais que isso, a torna transgressora.
Segundo Teixeira (2005), essa transgressão é positiva tanto para o jornal, quanto para o leitor, pois é uma
estratégia que proporciona a ambos uma subversão diária, “uma ‘travessura’ acima de controles e regras, além
do tédio, da mesmice e da chatice do dia-a-dia” (TEIXEIRA: 2005, p. 14).
Além disso, esse gênero textual contempla tanto a linguagem imagética quanto a verbal escrita; é
riquíssimo em sentidos, desperta o gosto pela leitura, tende a tratar de temas atuais com certa dose de humor e
crítica. Dessa forma, exige um conhecimento linguístico e de mundo maior para que, de fato, ocorra a
construção de sentido. Para tanto, devem ser trabalhados todos os seus aspectos textuais e discursivos,
permitindo, assim, que os alunos compreendam o texto em suas múltiplas faces.
Dessa forma partimos da seguinte problemática: o uso do gênero textual/discursivo Charge pode
auxiliar o ensino de leitura numa perspectiva crítica? Como pode ser desenvolvida essa prática? Para
fundamentar nosso trabalho utilizamos PCN (2000), Marcuschi (2008), Soares (2010), Bakhtin (2003) entre
outros, os quais corroboram para um ensino sociointeracionista da linguagem, o qual assumimos.
Os termos língua e linguagem têm sido amplamente usados, com os mais diversos significados, em
diferentes contextos e ciências. Nesta pesquisa, assumirmos a linguagem como atividade linguístico-cognitiva
e social, entendendo “atividade” no sentido de um fato social que possibilita e proporciona a interação entre as
pessoas. Consideramos, aqui, a língua em uso, ou seja, a linguagem como uma atividade constitutiva,
interacional, especificamente, a língua portuguesa em uso, nas modalidades oral e escrita.
Em consonância com essa concepção, compreendemos que “um texto é um evento comunicativo no
qual convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas” (BEAUGRANDE: 1997, p. 10), entendendo por evento
“aquilo que acontece quando um texto é reconhecido como tal através da produção de sentido que ele
permite”, como definido por Oliveira (2002) apud Nascimento e Oliveira (2004, p. 286), seja ele oral ou escrito.
Esse evento constitui-se, basicamente, a partir do processo de interação entre os interlocutores e, também, pela
atuação conjunta de fatores de ordem linguística, situacional, cognitiva e sociocultural.
Sendo assim, entendemos, com base em Beaugrande & Dressler (1981, p. 3), que
Um TEXTO será definido como uma OCORRÊNCIA COMUNICATIVA que reúne sete fatores de TEXTUALIDADE. Se qualquer um desses fatores não for considerado e satisfeito, o texto não será comunicativo. Assim, os textos não-comunicativos são tratados como não-textos.3
Costa Val (2006, p. 3), na mesma perspectiva de Beaugrande, define o texto como “ocorrência
linguística falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal”.
E acrescenta: “um texto é uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma função social identificável num
dado jogo de atuação sociocomunicativa”. Ainda segundo a autora, para que o texto seja bem compreendido,
precisa atender a três aspectos: o pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação
informacional e comunicativa; o semântico-conceitual, de que depende sua coerência; e o formal, que diz
respeito à sua coesão.
Para Costa Val, com que concordamos, o “texto é dotado de unidade de sentido”; o sentido do texto
não está nele inscrito, pronto e acabado, mas é construído através da ação desenvolvida pelos interlocutores,
mediante a atuação e influência de diversos fatores contextuais.
Nesta perspectiva, para aprender a utilizar a linguagem, é necessário que o sujeito esteja diretamente
ligado à sua atividade, ou seja, a construção de textos, e isso realiza-se “através dos gêneros que as práticas de
linguagem materializam nas atividades dos aprendizes”, como colocam Schneuwly & Dolz (2004, p. 74). Dessa
maneira, nota-se a importância de intensificar o contato dos discentes com os gêneros, explorando seus aspectos
linguísticos e comunicativos.
Ao assumir essas concepções, o ensino de língua portuguesa passa a se ancorar em uma perspectiva
sociointerativa, dinâmica e real, visando o trabalho com a língua em uso efetivo e compreendendo o aluno
como um sujeito ativo e inserido em uma sociedade, na qual ele precisa ser proficiente no uso da língua para
se colocar e interagir neste contexto.
Nas últimas décadas, o ensino de língua portuguesa vem passando por interessantes mudanças,
fundamentações e concepções, visando o desenvolvimento de competências e habilidade voltadas para a
3 Tradução livre. Texto original: “A TEXT will be defined as a COMMUNICATIVE OCCURRENCE which meets seven standards of
TEXTUALITY. If any of these standards is not considered to have been satisfied, the text will not be communicative. Hence, non-communicative texts are treated as non-texts” (Beaugrande & Dressler: 1981, p. 3).
interação efetiva, em diversos contextos comunicativos, ao invés da antiga forma, voltada para a análise,
descrição e nomenclaturas. Por isso, na seção acima, apresentamos as concepções de língua, linguagem e texto
que assumimos, pois são a base para o ensino de português.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL: 1998, p. 33), marco formal e oficial deste
processo de mudança, asseguram que o “o objetivo do ensino de língua é a consolidação dos
conhecimentos do aluno para agir em práticas letradas, o que inclui os diversos gêneros textuais e os
diferentes meios nos quais estes circulam”.
A proposta de incluir os gêneros textuais na escola, sobretudo nas aulas de português, tem por objetivo
tornar a sala de aula um espaço de leitura, discussão e reflexão sobre a língua e a sociedade, e, assim,
transformá-la em um espaço dinâmico, significativo e verossímil para o aluno, de modo que reflita o que
realmente acontece linguisticamente na vida, em sociedade. Nesta perspectiva, deve-se eleger o texto como
centro do processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, já que “são os textos que favorecem a
reflexão crítica e imaginativa, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, os mais vitais
para a plena participação numa sociedade letrada” (BRASIL: 2000, p. 30).
Nessa perspectiva, os gêneros devem ser trabalhados em sala de maneira que os estudantes possam
compreendê-los como práticas comunicativas de interação com o outro e com o mundo, partindo do que eles
já conhecem e ampliando seus referenciais epistemológicos para o que será aprendido, de acordo com a função
comunicativa de cada gênero.
No curso dos anos escolares, é de extrema importância trabalhar com gêneros variados e com níveis
de complexidade diversos, conforme etapa escolar, para que os discentes façam um percurso progressivo,
de modo que seu nível de compreensão e de linguagem vá se ampliando cada vez mais. Esse domínio
aumenta de acordo com o constante contato com os gêneros, por meio de leituras e discussões, porquanto
não basta apenas o contato com essas formas linguísticas; é imprescindível a exploração de todos os aspectos
textuais e linguísticos que os compõem para ter um bom domínio dos gêneros. Corroborando esse ponto de
vista, Soares afirma que é refletindo sobre como e por que razão um certo gênero é produzido que o aluno
se habituará a lê-lo de forma crítica e a produzi-lo de forma mais adequada, quando isso lhe for solicitado.
“[...] isso só é possível se a escola sair da rotina de identificar características óbvias e explorar estratégias de
levantamento e checagem de hipóteses, inferências, comparações, sínteses e extrapolações, dentre outras
coisas” (SOARES: 2010, p. 92).
Segundo Dolz & Schneuwly (2004, p. 179), “quando um gênero textual entra na escola, produz-se um
desdobramento: ele passa a ser, ao mesmo tempo, um instrumento de comunicação e aprendizagem”. Os
gêneros textuais devem ser colocados dentro do contexto de sala de aula e explorados neste âmbito para que
os alunos “[...] se tornem capazes não só de reconhecê-los e compreendê-los, mas também de construí-los de
modo adequado, em seus variados eventos sociais” (SCHNEUWLY: 2004, p. 21).
No entanto, essa competência/habilidade só é desenvolvida quando os professores abordam a
funcionalidade do gênero para além da forma, da denominação, embora sejam, também, parte do processo de
ensino. Sabemos que os textos têm formato próprio, suporte específico, possíveis propósitos de leitura, ou seja,
se constituem pelas chamadas características sociocomunicativas, definidas pelo conteúdo, a função, o estilo e
a composição do material a ser lido. E é essa soma de características que define os diferentes gêneros. No
entanto, explorar apenas as características de cada texto contribui muito pouco para com o desenvolvimento
das habilidades de leitura e escrita de determinado gênero por parte dos nossos alunos. Faz-se necessário
discutir por que e para quem se escreve um texto, dentro de um determinado contexto comunicativo. Essa é a
diferença entre tratar os gêneros como conteúdos em si e ensiná-los no interior das práticas de leitura e escrita.
A seleção das charges pode ser aleatória ou temática. O ideal é que sejam atuais, ligadas a fatos que
estão sendo divulgados na mídia, para que o estudante perceba a veracidade da prática comunicativa do texto
estudado em sala de aula e para que o contexto contribua para que o aluno compreenda a charge e para que ela
desperte o interesse dele. As charges podem ser selecionadas dos jornais impressos e on-line supracitados ou em
sites próprios, como http://charges.uol.com.br/arquivo.php, http://www.chargeonline.com.br/, entre outros.
Para esta proposta de trabalho, optamos por selecionar três charges que tratam sobre o mesmo tema,
mas de modo diferente. Acreditamos que será bastante enriquecedor, pois, além do trabalho com o gênero,
poderemos focar, também, nos diálogos e comparações entre eles; nos posicionamentos enunciativos dos
personagens para se atingir o objetivo comunicativo comum às três charges, o que será muito enriquecedor e
aguçará ainda mais o caráter crítico do ato de ler.
Estas são as charges selecionadas:
TEXTO 1:
https://goo.gl/LKFNXR. Acesso: 20/09/16. Charge 1.
TEXTO 2:
http://goo.gl/hoxiKF. Acesso: 28/05/14 - Charge 2.
TEXTO 3:
SALVADOR, S. Charge. Estado de Minas, Belo Horizonte, 27/04/2014 – Charge 3.4
A charge é um tipo especial de cartum (maneira de emitir opinião sobre os acontecimentos do dia a
dia). Ela tem por objetivo a crítica humorística e até satírica de um fato social. Para compreendê-la é necessário
conhecer o assunto a que se refere. Esse gênero textual está presente nos principais diários, ilustrando jornais e
revistas, fazendo sátiras sociais revestidas de cunho político, irreverência e bom humor. Estão situadas no tempo
e no espaço real, razão pela qual se encontram sempre apontando para um personagem da vida pública em
geral, às vezes um artista, outras vezes um político, entre outros. Enfim, trata-se de uma excelente ferramenta
nas aulas de leitura, na perspectiva da formação crítica do aluno. O humor, na maioria das vezes presente nesse
gênero, também cumpre um importante papel de denúncia social.
Sugerimos ao docente, que, inicialmente, desenvolva um trabalho coletivo e oral. Proponha à turma
a formação de uma roda de bate-papo e projete a primeira charge para iniciar a discussão. Na sequência, em
caráter de comparação e ampliação, projete a segunda e, depois, a terceira charge.
No processo de interpretação do texto, procure conduzir os estudantes na consideração de alguns
aspectos, tais como: o tempo e o espaço de construção do discurso chargístico; o conhecimento do assunto
4 Charge adaptada por Glauber Bernardes Ferreira Rogério, em 28/04/14.
apresentado na charge; a identificação da pessoa ou instância a que a charge se refere; o entendimento do
traço, do exagero proposto pela caricatura, comumente presente no gênero; a relação entre linguagem verbal
e não verbal; as cores, saliências e efeitos. Isso porque a leitura está para além da decifração; está para além,
também, de uma simples descrição de imagens presentes na charge, porque esse gênero textual visa a crítica.
Em síntese, conduza o processo de modo que os estudantes tenham clareza sobre:
1. o tema tratado;
2. quem é o enunciador do texto (quem ‘fala’);
3. quem é o enunciatário do texto (para quem se fala);
4. o tempo e espaço de produção e recepção do texto;
5. o objetivo textual;
6. o posicionamento enunciativo, entre outras questões possíveis.
No caso das charges selecionadas, o tema central é a Declaração de Imposto de Renda da Pessoa
Física (IRPF). Esse tema faz parte da vida de todo adulto, trabalhador e que tenha tido renda superior a R$
25.661,70, em 2013, ou seja, um público específico. No entanto, como se trata de um tema amplamente
divulgado na mídia e, possivelmente, por ser tratado também nos lares dos estudantes, de alguns, pelos menos,
acreditamos ser possível o trabalho com essas charges. Além disso, a terceira charge traz dois ricos elementos:
o diálogo com as duas anteriores e o caráter intertextual com a primeira e com o conto da Chapeuzinho
Vermelho, de amplo conhecimento social.
A charge 1 apresenta uma situação esperada para o contexto: um declarante totalmente atordoado
com a entrega da Declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física, possivelmente, por causa do alto valor do
imposto a pagar; e a figura do Leão, que ruge forte diante do declarante, amedrontando-o. A sátira estaria sendo
feita em relação a um possível abuso da cobrança dos impostos e ao medo que essa cobrança cria nas pessoas
que devem efetuar tal pagamento.
Nesse momento, seria interessante explorar a figura do leão. Segundo informações do site da Receita
Federal (http://www.receita.fazenda.gov.br), o leão ruge pela primeira vez no final de 1979, quando a Secretaria
da Receita Federal encomendou uma campanha publicitária para divulgar o Programa Imposto de Renda. O
leão foi imaginado como símbolo da ação fiscalizadora da Receita Federal e, em especial, do imposto de renda.
De início, a ideia teve reações diversas, mas, mesmo assim, a campanha foi lançada. A escolha do leão levou
em consideração algumas de suas características: é o rei dos animais, mas não ataca sem avisar; é justo; é leal;
é manso, mas não é bobo.
As peças publicitárias começaram a ser veiculadas no início de 1980. A campanha resultou, de
imediato, numa identificação pela opinião pública do leão com o imposto de renda. Em dez anos, foram
realizados cerca de trinta filmes. O sucesso da campanha publicitária foi tão grande que chegou aos dicionários.
O Houaiss define Leão como o órgão responsável pela arrecadação do imposto de renda. Segundo o Aurélio,
Leão é o órgão arrecadador do imposto de renda. Para o Sacconi, Leão é o serviço de arrecadação do imposto
de renda. Na definição do Dicionário da Academia Brasileira de Letras, Leão é o órgão encarregado de recolher
o imposto de renda. Pelos conceitos emanados dos dicionários, verifica-se a relação do Leão com o imposto de
renda e não com a Receita Federal. Também se observa que se liga o felino à arrecadação, embora, no início,
a afinidade fosse forte com a fiscalização. Embora hoje em dia a Receita Federal não use a figura do leão, a
imagem do símbolo ficou guardada na mente dos contribuintes, numa das mais bem-sucedidas peças
publicitárias da mídia brasileira.
A charge 2 apresenta uma situação inesperada. Temos um pretenso indivíduo-declarante e a figura do
leão, que representa o imposto de renda, o recolhimento do imposto, e que deveria imprimir uma sensação de
medo, como ocorre na primeira charge. No entanto, ao contrário dela, essa charge nos surpreende ao apresentar
a relação inversa: o leão mais frágil, frustrado, sem ação diante do indivíduo. Essa situação se configura porque
o personagem humano da charge representa uma outra parcela da população, a dos isentos, palavra expressa
no balão da charge. Esse grupo não paga imposto sobre a renda, alvo do leão. Há uma inversão de valores
nessa charge, o cidadão é que se mostra seguro, dono da situação e que “ruge” para o leão. E o humor é
instaurado justamente nessa inversão.
A charge 3 apresenta uma situação inusitada. O leão revela força, vigor, coragem, tenacidade frente
ao seu interlocutor, mas ele é a Chapeuzinho Vermelho, uma menina travessa e curiosa que tem o objetivo de
levar doces para a vovó. Logo, ela se mostra indiferente e passa a questionar o leão, que retoma a figura do logo
do conto, que tem final trágico na história.
Como se pode observar, as três charges em análise, de mesmo gênero textual, transitam entre
humorístico e o jornalismo. Elas ancoram-se no mesmo fato, com o objetivo de satirizar a cobrança de imposto
pelo governo, mas o tratam de modo diferente. Na primeira, ressaltando o desespero do declarante; na segunda;
focando a frustração do Leão; e a na terceira fazendo uma comparação do Leão com o Lobo do conto
Chapeuzinho Vermelho que, embora seja assustador, pode ter um fim trágico frente ao seu interlocutor.
Essa construção da teia textual, nos gêneros analisados, se dá pelas informações e pelos diálogos e
intertextos neles costurados e articulados e viabilizam uma ampliação do processo de leitura, para além da
imagem, da forma e da letra. Esses elementos têm grande importância na construção textual, mas acreditamos
que são parte de um processo amplo de leitura e que, talvez, não devessem ser o ponto de partida.
A charge é um texto e, como tal, possui elementos que caracterizam sua construção. Em se tratando
da linguagem, a charge costuma associar linguagem verbal (texto escrito, curto e informal) e não-verbal
(desenhos, caricaturas, balões, cores e traçados). Na ilustração, caricata ou não, embora comumente seja, os
chargistas utilizam-se de traços específicos para enfatizarem as características do personagem que está sendo
caricaturado. Todos esses elementos contribuem para que o autor da charge manifeste a sua opinião a respeito
de fatos da vida real. O feito de sua composição é o humor (que se situa na força do leão frente ao homem e
vice-versa) entremeado com a crítica e/ou sátira (sobre o IRPF, imposto tão questionado).
A charge é um gênero predominantemente imagético, utilizado para criticar fatos ou situações,
provocar o leitor a partir de crítica contundente ou expor uma atitude de protesto. Sua construção conta com
alguns elementos básicos, como os observados nas charges acima, a saber:
• Ilustrações, desenhos, caricatura: o homem, o leão, a personagem Chapeuzinho Vermelho.
• Balões indicativos de fala: balão em formado de nuvem.
• Cores e efeitos gráficos: cor forte no entorno do leão e clara no entorno no homem.
• Texto verbal curto: “não enche porque eu sou isento”, “Para que essa boca tão grande”.
• Formato quadrado ou retangular: quadrado.
Para melhor compreensão do modo como o gênero charge é construído, apresentamos este quadro:
Quadro 1 - Esquema de construção do gênero charge.
É evidente a necessidade de se implementar nas salas de aulas uma metodologia que verdadeiramente
vise o trabalho com a leitura em sua acepção plena. Segundo o que diz Foucambert (1994), faz-se necessário
uma visão de leitura como formulação de juízo sobre a escrita, um ato de questionar e explorar o texto na busca
de respostas textuais e contextuais que geram uma ação crítica do sujeito no mundo.
O gênero charge atrai muito o público leitor, não só por sua linguagem acessível a todos os níveis
de leitura, mas também por tratar de temas atuais, os quais envolvem política e causas sociais de forma leve
e com uma dosagem de humor, crítica e/ou sátira. Segundo Nascimento (2010, p. 77), a charge é “uma
representação crítica do cotidiano que, utilizando uma visão bem-humorada ou satírica, transmite uma
mensagem de caráter opinativo e através de sua linguagem verbal e não verbal”. Logo contribui para um
posicionamento crítico do leitor.
Diante do exposto podemos afirmar que o trabalho com esse gênero favorece a discussão em sala de
aula, bem como contribui para a formação de leitores assíduos e críticos.
CHARGE
Crítica satírica e/ou humorística de falos sociais.
Função social: Criticar fatos ou situações; provocar o leitor a partir de uma crítica contundente ou expor uma atitude de protesto.
Construção do texto: Ilustrações, desenhos, caricatura; Balões indicativos de fala; Cores e efeitos gráficos; Texto verbal curto; Formato quadrado ou retangular.
Linguagem: Texto verbal curto e informal; Predominância de texto não-verbal.
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