Post on 07-Jul-2020
Aline Santana dos Santos Rocha
Escravidão e Liberdade no
“sertão das Umburanas” (1850/1888)
Feira de Santana-Ba
2011
2
Aline Santana dos Santos Rocha
Escravidão e Liberdade no
“sertão das Umburanas” (1850/1888)
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual
de Feira de Santana para a obtenção
do título de Mestre em História.
Professora orientadora: Dra.
Lucilene Reginaldo.
Feira de Santana
2011
3
Escravidão e Liberdade
no “sertão das Umburanas” (1850/1888)
Aline Santana dos Santos Rocha
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profa. Dra. Orientadora Lucilene Reginaldo
__________________________________________
Prof .Dra. Elciene Azevedo
_____________________________________________
Profa. Dra. Sharize Piroupo do Amaral
____________________________________________
Prof. Dr. Erivaldo Fagundes Neves
_____________________________________________
Profa. Dra. Sharize Piroupo do Amaral
Feira de Santana, 29 de agosto de 2011.
4
Agradecimentos
Foram muitas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para esta
dissertação. Espero que minha memória não me traia no esquecimento de alguém.
Reservo um agradecimento muito especial à minha orientadora, profa. Dra.
Lucilene Reginaldo. Ela conseguiu amalgamar a extrema e notória competência
acadêmica, com uma peculiar generosidade. Certamente a Universidade ganha em
potencial de pesquisa, discussão e analise com pessoas como você, comprometida, que
emanam prazer pelo que faz. Obrigada por compartilhar comigo cada momento desta
dissertação, dos quais em nada os meus possíveis equívocos devam lhe ser imputados;
suas valiosas sugestões, sua calma em meio aos meus momentos de desânimo, os longos
telefonemas, os livros emprestados, os conselhos, sua sempre disponibilidade – tudo
certamente foi mais do que eu podia esperar; tê-la como orientadora foi realmente um
privilégio.
Sharize Piroupo do Amaral e Elciene Rizzato, que compuseram a minha banca
de qualificação, fizeram leituras cuidadosas do meu trabalho, além de criticas e
sugestões relevantes. Espero enormemente ter sido sensível a estas. Ao professor
Erivaldo Neves, sem dúvida um marco importante e necessário para os debates que
norteiam questões centrais desse trabalho, agradeço as valiosas referências, bem como
nossas discussões sobre história regional e local, esperando ter feito bom uso destas.
Luis Cleber Freire, nos bastidores da minha orientação no CEDOC, sempre tinha uma
observação pertinente e indicações de leitura.
Penso em outros professores do Mestrado da UEFS cujo destaque é necessário:
Eurelino Coelho, Iranneidson Costa, Ione Celeste, cada um ao seu modo deu uma
contribuição significativa em torno de conceitos e metodologia fundamentais para o
formato desta pesquisa. Com certeza a participação de vocês foi fundamental. Agradeço
também a professora Nacelice Barbosa pelos textos e indicações. Ah... e como não falar
na Prof. Elizete, sempre me lembrando dos prazos a serem cumpridos (rs.)! Todos vocês
foram sempre gentis e calorosos. Meu muito Obrigada!
Também foi imprescindível pessoas como Maria Ferraz, pesquisadora que, no
meu momento de gestação, impossibilitada de ir aos arquivos, ajudou-me bastante na
coleta de dados e fotografias de documentos; agradeço aos funcionários do cartório de
Antonio Cardoso, Ana Rita e Luciana que já reservavam “ meu lugar” improvisado no
5
fundo do cartório para que não atrapalhassem “ a escritora” rs como me chamava ;
Enfatizo ainda a educação e presteza dos funcionários da secretaria do Mestrado, Julival
e Andrei.
Agradeço também a comunidade Gavião pelo acolhimento, informações
prestadas e gentileza de seus moradores. Espero contribuir um pouco, para o
conhecimento da História de todos vocês.
Agradecimentos especiais devem caber igualmente à minha família: minha mãe,
abundante no seu amor, espectro de determinação e força de vontade, que me instigou o
fascínio da Clio, no seu ofício de professora de História; ao meu pai, in memorian, cuja
presença eu consigo sentir em cada conquista!; ao meu esposo, incansável incentivador,
companheiro em muitas das viagens a Antonio Cardoso e leitor atento dos meus
escritos, muitas vezes informes, ouvindo demasiadamente minhas inquietações e
conhecendo de perto esse apaixonante tema da “Escravidão e liberdade nas Umburanas”
(quem sabe a filosofia em você não tenha se irmanado doravante com a história?).
Muito Obrigada, amor!
Por fim, peço “desculpas” ao meu Filho Davi pelas ausências inevitáveis nesses
dois anos de pesquisa e escrita onde, a portas fechadas, dizia: “mamãe está
trabalhando!” O resultado deste trabalho eu dedico a você: o maior, eterno e
incondicional amor da minha vida...
6
Resumo
O presente estudo pretende contribuir com os debates em torno da escravidão no sertão
da Bahia, no século XIX. A pesquisa investiga a experiência da escravidão e o padrão
das alforrias na Freguesia de Umburanas, no período compreendido entre 1850 a 1888,
utilizando-se, sobretudo, de escrituras públicas de compra e venda de escravos,
processos crimes, cartas de alforria e registro eclesiástico de terras. Tendo como foco a
escravidão numa comunidade sertaneja, buscamos identificar suas características
próprias e, sobretudo, perceber a tensão existente entre escravidão e liberdade, nas
décadas que antecederam a abolição.
Abstract
This study aims to contribute towards the debates over slavery in the nineteenth century
countryside. The research investigates the experience of slavery and manumission in the
pattern of the Town of Umburanas, in the period 1850-1888 using mainly public deeds
of sale for slaves, criminal cases, letters of manumission and ecclesiastical registration
of land. Focusing on slavery in a backwoods community, we seek to identify their
characteristics and especially understand the tension between freedom and slavery, in
those last decade before abolition.
7
Lista de abreviaturas
APB – Arquivo Público do Estado da Bahia
CPAC – Cartório Público de Antonio Cardoso
NSAC – Notas sobre Antonio Cardoso
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana
8
Índice dos Mapas, Tabelas, Gráficos e Figuras
Mapa hidrográfico de Antonio Cardoso 19
Mapa de Antonio Cardoso (Antiga Umburanas) I 21
Mapa de Antonio Cardoso (Antiga Umburanas) II 24
Tabela I: Principais propriedades da Freguesia das Umburanas 36
Tabela II: Tráfico intraprovincial de escravos em Umburanas
através de poderes constituídos por Procurações 46
Tabela III: Relação de Homens e Mulheres por “Raça”
no Censo de 1872 55
Tabela IV: variação dos preços dos escravos e dos preços do açúcar
e do café na Bahia em Réis 67
Gráfico 1- Percentual relativo ao tamanho das propriedades 35
Gráfico II: Percentual de homens e mulheres proprietários de terra
nas Umburanas 37
Gráfico III: Padrão Racial nas Escrituras de Compra e Venda por Décadas 54
Gráfico IV: Percentual da idade dos escravos nas negociações 62
Gráfico V: Percentual dos Escravos Negociados por década
e Gênero (1850-1888) 63
Gráfico VI: Preço médio em Réis dos escravos das Umburana por gênero 67
Gráfico VII: Percentual das Modalidades de Alforria 73
Gráfico VIII: Padrão Sexual das Alforrias 88
Figura I: Carregando a mandioca, 1858 55
Figura II: Descascando mandioca, 1858 59
9
Índice
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
1.0 Capítulo I – Umburanas: sociedade e conjuntura ............................................... 18
1.1 Localização e formação de Umburanas.................................................................18
1.2 Economia e sociedade..............................................................................................25
1.2.1 As propriedades ........................................................................................ 31 1.2.2 Os proprietários ........................................................................................ 36
2.0- Capítulo II – Quem eram os escravos nas Umburanas? ................................... 42
2.1- O Tráfico inter e intraprovincial: faces de uma mesma moeda?.......................42
2.2- Origem: Africanos, Crioulos, Pardos e Pretos:...................................................50
2.3-A mão-de-obra escrava.........................................................................................56
2.3.1 – Crianças, Homens e mulheres .................................................................... 61
2.4 Preços dos escravos e seus condicionantes............................................................67
3.0- Capítulo III – Ser escravo nas Umburanas: escravidão e liberdade................71
3.1 Os Caminhos da Liberdade nas Umburanas........................................................71
3.1.1 A Liberdade “sem preço”: alforrias gratuitas incondicionais ........................ 75 3.1.2 Alforrias gratuitas condicionais ..................................................................... 79
3.1.3 Alforrias compradas: onerosas incondicionais e condicionais ...................... 81 3.1.4 Alforria comprada por terceiros .................................................................... 87
4. Padrão sexual das alforrias ...................................................................................... 89
5- A libertação pela fuga .............................................................................................. 90
Considerações Finais .................................................................................................... 97
Referências...................................................................................................................100
Fontes impressas..........................................................................................................100
Fontes Manuscritas.....................................................................................................100
Referências Bibliográficas..........................................................................................100
Apêndice I - Tabela de disposição de alguns dos registros: .................................... 108
Apêndice II – Entrevista ............................................................................................ 112
Anexo I: Certificação de autodefinição da Fazenda Gavião como remanescente
quilombola ................................................................................................................... 113
Anexo II: Lei de Terras n. 601 de 18 de setembro de 1850 (que dispõe sobre as
terras devolutas e as adquiridas por posse ou sesmaria) ........................................ 113
10
INTRODUÇÃO
O estudo aqui proposto busca compreender o fenômeno da escravidão,
juntamente com as estratégias de conquista da liberdade, numa localidade baiana
chamada Freguesia de Umburanas. O recorte temporal que trabalhamos (1850 a 1888)
se justifica pela nova dinâmica que a escravidão apresenta no período referido. O fim do
tráfico Atlântico, em 1850, levou a uma redução considerável do número de escravos
traficados para o Brasil, dando início, pois, a uma nova organização social. Isso vai
modificar as redes da escravidão no país, e ensejar a necessidade de novas pesquisas em
torno do problema. Em razão disso começa a se intensificar o tráfico interno1. O
objetivo deste estudo é pesquisar como se estruturava a escravidão nas Umburanas,
investigando a experiência do cativeiro, o padrão das alforrias e os caminhos para se
alcançar a liberdade nessa freguesia. Tentaremos perceber, ainda, a tensão existente
entre escravidão e liberdade, nesses últimos anos antes da abolição.
A Freguesia de Umburanas corresponde ao que atualmente é a cidade de
Antônio Cardoso, situada no polígono das secas, a 22 km de Feira de Santana-Ba.
Umburanas conheceu um “verdadeiro rodízio de domínios e jurisdições”: Cachoeira,
Santo Estevão, Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos .2 A investigação proposta
basear-se-á nas cartas de alforria3, registros de compra e venda de terras, escrituras
1Ou seja, o deslocamento dos escravos entre regiões “centrais e periféricas”, em um fluxo do Nordeste
para o Sudeste do Brasil. Cf. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos (1851-
1881)”, de Ricardo Tadeu Caires Silva, III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
Florianópolis, UFSC, maio/2007. Além do clássico de R. Conrad, Os últimos anos da escravatura no
Brasil (1850-1888). 2. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 2 Segundo dados obtidos no Arquivo Paroquial da cidade de Antonio Cardoso, através das “Notas sobre
Antonio Cardoso”, do Monsenhor Renato de Andrade Galvão, p 3. O Monsenhor Galvão ordenou-se
sacerdote em 1942. Foi relevante a sua atuação também como pesquisador, incansável na procura de
documentos, muitas vezes raros, em cartórios públicos e privados, além de ter coletados documentos
através de doações em bibliotecas particulares. Foi professor no Departamento de Ciências Humanas e
Filosofia, na UEFS, da extinta disciplina Estudo dos Problemas Brasileiros, e vice-reitor entre 1979 e
1987. Uma das suas mais importantes idealizações foi o Centro de Estudos Feirenses (CENEF). 3 Para registrar uma carta de alforria, o senhor ou seu procurador chamava o tabelião para a sua residência
ou ia ao cartório e ditava os termos da carta para um escrivão. Se a carta já existisse, como no caso de
alforriados vindos de outro município e querendo documentar sua condição na nova residência, era só
copiá-la. O cartório entregava a original para o senhor ou para o ex-escravo e transcrevia uma cópia para
o livro de notas. Essa carta era datada, assinada e atestada por duas testemunhas e pelo próprio tabelião, e
pagava-se uma pequena importância em selos, para oficializar o ato (EISENBERG, 1989, p. 246-247).
11
públicas de compra e venda de escravos 4 e processos-crimes. A disponibilidade destes
registros no Cartório Público de Antonio Cardoso, bem como no Arquivo Publico da
Bahia, que definiram objetivamente a periodização da pesquisa.
Utilizaremos também registros eclesiásticos de terras localizados no APEB,
tendo em conta que,
Entre 1855 e 1860 foi realizado o primeiro cadastramento
imobiliário do domínio privado no Brasil, determinado pelo já referido
decreto que regulamentou a „Lei das Terras‟. Como o Estado
brasileiro não dispunha de aparelho burocrático capaz de executá-lo,
incumbiu, em 1854, os párocos – então subordinados ao poder civil,
remunerados pelas côngruas dos governos provinciais para
responderem pelas estatísticas populacionais – desse encaro nas
respectivas freguesias, em todo o Império. Em consequência,
originou-se a imprópria denominação de „registros eclesiásticos ou
paroquiais‟ para os lançamentos que definiram as terras devolutas ao
delimitar o domínio privado e, por extensão, o público.5
Assim, utilizando como foco a escravidão numa “comunidade sertaneja‟,
buscamos identificar características próprias do fenômeno, não exclusivamente
relacionadas com a mão de obra, mas principalmente atenta à experiência de vida dos
escravizados. Há de se notar que a história da escravidão na Bahia se limitou em grande
parte à capital baiana e ao Recôncavo, evidenciando a necessidade de estudos sobre
regiões distantes do “circuito modelo” agro-exportador. Quiçá revés da tão anunciada
plantation, que caracterizou o Brasil colônia e a maior parte do século XIX, sem
perceber, contudo, que “a agricultura de exportação não dominava todo o Brasil rural”.6
Em um país de grande dimensão como o Brasil, a escravidão foi construída de forma
bem diferenciada nas diversas localidades e realidades possíveis.
Nessa perspectiva, urge a necessidade de estudos sobre a história da escravidão
em Antonio Cardoso, antiga Umburanas, tendo em vista suas características próprias:
situada no polígono das secas, longe dos grandes centros, destacava-se como a
4 Clóvis Beviláqua, no Código Civil, define a Escritura Pública como um ato notarial, isto é, um contrato
formal de compra e venda lavrado por um escrivão público: tabelião, à vista de declarações das partes ou
do interessado, e dos documentos exigidos por lei. 5 NEVES, Erivaldo. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história
regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 16. 6 Cf. Barickman B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, de
1780 a 1860. Tradução de Maria Luíza Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.27.
12
produtora de fumo de melhor qualidade da Bahia, juntamente com São Gonçalo, e
conhecida também por sua feira de carne verde, aos sábados.
É lamentável não haver nenhum trabalho sobre o passado escravista nessa
localidade, que possui população predominantemente formada por negros e algumas
“comunidades quilombolas”, com reconhecimento e certificação da Fundação
Palmares.7 Compreender a dinâmica da escravidão nas Umburanas é, sobretudo,
redimensionar a sua história local, uma vez que, mesmo nos livros de memorialistas da
região, não há destaque sobre a escravidão na localidade, camuflando um preconceito
evidente relativo a esse passado, escondendo aspectos inalienáveis e constituintes da
história do seu povo. 8
A metodologia da pesquisa é centrada na investigação e interpretação de fontes
documentais. Foram fichados e analisados os livros notariais manuscritos de número 6,
7, 8 e 10, ou seja, 100% dos livros encontrados9 no Cartório Público de Antônio
Cardoso, entre o período de 1850 e 1888. Ao mesmo tempo foi feita uma varredura em
outros acervos pertencentes à antiga sede de jurisdição da Freguesia de Umburanas,
bem como no APB, onde localizamos o registro eclesiástico de terras e alguns
processos-crime. Neste sentido, procuramos constantemente estabelecer um diálogo
entre tais fontes com a produção historiográfica sobre a escravidão no país, sobretudo
em sua dimensão social.
Este trabalho seria inviável sem a interlocução empreendida com autores da
chamada “nova história da escravidão” no pós 1980, onde se destacam os estudos de
Kátia Mattoso10
que, analisando a Bahia do século XIX, permitiu compreender “o
enigma baiano”, sobretudo os aspectos sociais e econômicos. Neste ínterim ela aponta a
metodologia adequada para as investigações cartoriais, na perspectiva de manter um
7 O Artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) diz que: “Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.” Atualmente, a legislação brasileira já adota este
conceito de comunidade quilombola e reconhece que a determinação da condição quilombola advém da
auto-identificação. Temos no anexo I a certificação da Fazenda Gavião e Paus-altos como remanescente
de quilombo. 8 Cf. dos memorialistas locais Carlos Mello e Telito Rodrigues: ”Das Umburanas à Cidade“: Antonio
Cardoso, 2002. 9 Infelizmente esses livros encontram-se em péssimas condições, além de estarem todos juntos como se
fosse um grande livro.Inicialmente foi feito este processo de separação e organização da seqüência dos
livros, em visita posterior já estava da mesma maneira que fora encontrado a priori. Existem muitos
livros que estão desaparecidos, entre estes o livro de número 9 (que abarca o período estudado). 10
Cito aqui os mais relevantes para o estudo: Kátia Queirós Mattoso, A Bahia do século XIX: uma
província no império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; “À propósito das cartas de alforria – Bahia,
1779 - 1850”. In: Da Revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX – itinerário de uma
historiadora”, 2004; Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.
13
diálogo com as fontes. É importante mencionar, ainda, os estudos de João Reis, Robert
Slenes, Sidney Chalhoub, Maria Helena Machado, Hebe Castro, e Sílvia Lara.11
Esses
pesquisadores, entre outros expoentes dessa geração, enfatizaram o escravo como o
agente das negociações, sujeito e capaz de reivindicar e produzir a sua história,
independentemente da vontade do senhor, resistindo aos desígnios estabelecidos. Essa é
a escravidão “sob o olhar do próprio escravo”, evidenciando sutilezas, anseios, malícias
e destacando muito da complexidade que permeia o sistema escravista.12
A partir do século XIX o sistema judiciário aparece mais atuante a nível local
como “regulador de propriedade e mediador entre pessoas”.13
Os escravos vão cada vez
mais se destacando nos cartórios de todo Brasil. Nos livros de registro de notas,
escrituras dos tabeliães são registradas: cartas de alforria, inventários, hipotecas,
escritura de compra e venda, penhor, enfim, uma série de fontes que permitem obter
informações riquíssimas sobre a dinâmica escravista, tanto para um tratamento serial e
quantitativo, quanto para uma reconstituição qualitativa das redes sociais e do cotidiano
dos escravos, apesar da geral precariedade de conservação desses documentos.14
Com
base nestes registros pode-se resgatar as experiências de vida dos muitos escravos que
fizeram parte da nossa história do Brasil, e cujo viés interpretativo vale-se muito da obra
de Thompson.15
Silvia Lara bem apresenta a importância do historiador inglês para a
historiografia da escravidão.16
Como associar tal autor com a experiência negra no
11
Destaco, sobretudo, de João REIS (org.), Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; Brasília: CNPQ, 2008; de Robert Slenes, Na senzala uma flor:
Esperanças e recordações na formação da família escrava no Brasil Sudeste, séc. XIX (1999); de Sílvia
Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988. 12
Os autores citados acima vão de encontro à perspectiva historiográfica das décadas de 1930 a 1960, no
qual o escravo era percebido apenas como coisa ou mercadoria, uma peça no sistema capitalista,
desprovido de qualquer tipo de papel como sujeito no processo histórico. Pode-se citar como arautos
desta proposta Caio Prado Junior (Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004);
Fernando Novais (Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1977-1808). São Paulo: Hucitec,
2000), Fernando Henrique Cardoso (Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Paz e
Terra, 1962); Roberto Simonsen (História econômica do Brasil: 1500-1820. São Paulo: C. E. Nacional,
1962). 13
SLENES, “Escravos, cartórios e desburocratização”, p. 172. 14
No artigo citado acima Slenes aponta, de forma pertinente, para uma preocupação com a documentação
cartorial, no sentido de conservar essa valiosa fonte de importância histórica, e denuncia as péssimas
condições de abandono e descaso na qual se encontram os arquivos: “armazéns”. Enfim, o que Rui
Barbosa não queimou pode ser destruído em virtude da indiferença com esse Patrimônio histórico. 15
Thompson percebe o campo jurídico como um lugar em que diferentes sujeitos históricos expressam
seus interesses conflitantes. Ver Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987 e Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. 16
Cf. “E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto História, São Paulo, (12), out. 1995.
14
nosso país, uma vez que ele estava preocupado com a sociedade inglesa do século
XVIII? Apesar das tentativas de autores como Peter Linebaugh a este respeito,17
o “bom
caminho” para tal junção estaria em textos thompsonianos como “La sociedad inglesa
del siglo XVIII”. Para ela, “não se trata apenas e simplesmente de passar a estudar o
modo de vida dos escravos ou a visão escrava da escravidão”.18
Trata-se antes de
perceber “a escravidão como uma relação permeada de „direitos‟ e „deveres‟
recíprocos”.19
A documentação sobre a escravidão deve ser percebida como uma arena
de conflitos, sem que se privilegie um ou outro agente do embate. Desse modo, o
caráter de “sujeito” do escravo é restituído, ao tempo em que a totalidade da sua
experiência ganha razão de ser.
No horizonte da nossa pesquisa ressalta-se também a perspectiva da história
regional e local. Erivaldo Fagundes Neves foi um dos pioneiros a utilizar fontes
primárias para evidenciar o caráter dinâmico da escravidão no sertão. De forma
pertinente ele apresenta possibilidades para o estudo da história regional e local.
Evidencia a importância desse método de pesquisa para o revelar de pequenos mundos e
sujeitos, desmistificando modelos explicativos que não levam em conta a pluralidade da
Bahia, aparecendo muitas vezes na História do Brasil como um denominador comum.
O autor alerta que a história do Brasil não deve ser o “somatório das histórias regionais
e locais”, mas enfatiza que esses estudos indicam as variáveis necessárias para
compreensão do “conjunto multifacetário da história nacional”. E completa: “As
relações de um sistema global e as formações locais deveriam ser vistas como um
problema histórico, porque essas vinculações, apesar de inerentemente contraditórias e
desiguais, seriam universalmente articuladas e intercomplementares”.20
Ele chama ainda a atenção para os dados quantitativos que evidenciam o
minifúndio e o trabalho familiar como traços marcantes da economia sertaneja.21
Revela, em seu estudo, uma Bahia rica em diversidade, onde destaca o papel da
pecuária, sua relação com o trabalho escravo e a importância da policultura para
acumulação de riqueza. Os estudos de Albertina Vasconcelos e Mônica Dantas22
são
17
Sílvia Lara cita deste autor “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Cf. LARA, “Thompson e a
experiência negra no Brasil”, p. 44, nota n. 3. 18
Ibidem, p. 46, grifo nosso. 19
Ibidem, p. 47. 20
NEVES, História regional e local, p. 59. 21
Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local).
Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008. 22
De Mônica Dantas fazemos menção ao texto “Povoamento e ocupação do sertão de dentro baiano
(Itapicuru, 1549-1822)”, artigo apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
15
referenciais importantes para dilatação da imagem do escravo no sertão; suas pesquisas
demonstram uma quantidade imensa desses escravos distribuídos nas mais diversas
ocupações. No caso de Vasconcelos, centrando suas pesquisas nas zonas de mineração,
identifica a diversidade de ocupações. Dantas, analisando três inventários da década de
30 no século XIX, igualmente constata a existência de escravos em muitas e distintas
profissões: “São 10 carreiros, 8 vaqueiros, 2 oleiros, 2 ferreiros, 1 feitor , 1 sapateiro, 1
alambiqueiro, 1 cozinheiro, 1 carpina, 1 pastora e 1 parteira”.23
Demonstrando que os
proprietários do sertão não só podiam adquirir bens de alto valor, no caso, trabalhadores
escravos, como também destiná-los para as mais diversas ocupações.
Os livros de Maria de Fátima Pires, O Crime na cor e Fios da vida - Tráfico
interprovincial e alforrias nos sertoins de sima, são menções importantes para esta
pesquisa; no primeiro livro a autora investigou e denunciou as condições de vida e
trabalho de escravos situados no sertão; no segundo ela interpreta a inserção dos
escravos e forros no alto sertão baiano na segunda metade do XIX,24
perseguindo a
trajetória de escravos, forros e ex-escravos, e de forma muito prazerosa nos aproxima
das relações sociais desses sujeitos e das vicissitudes da economia local. Em ambos os
trabalhos Pires alarga os horizontes da historiografia baiana voltados para o sertão,
deslocando o foco da análise de Salvador e Recôncavo, trazendo contribuição inovadora
para a história social da escravidão na Bahia.
Ricardo Moreno Pinho, em “Escravos, quilombolas ou meeiros?”,25
revela a
importância da escravidão no Médio do São Francisco e de forma muito sagaz traz as
estratégias adotadas pelos escravos para se inserirem na sociedade. É digno de nota
igualmente a importante dissertação de mestrado de Luís Cleber Freire, que teve como
objeto a fazenda de gado, o trabalho escravo e a riqueza em Feira de Santana e região.26
O autor demonstra quão diversificado foi o setor produtivo, o dinamismo na produção e
comercialização de culturas como tabaco, algodão e mandioca ao lado da monocultura
s/d. De Albertina Vasconcelos destacamos “Ouro, conquistas, tensões, poder. Mineração e escravidão na
Bahia no século XVIII”. Dissertação de mestrado em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, UNICAMP, 1998. 23
DANTAS, “Povoamento e ocupação do sertão de dentro baiano (Itapicuru, 1549-1822)”, p. 17. 24
Por alto sertão baiano a autora toma de empréstimo a classificação de Erivaldo Neves, na qual
compreende o alto sertão da Bahia como ”‟referenciada na posição relativa ao curso do Rio São Francisco
na Bahia e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes‟” (NEVES apud PIRES, Fios da vida, p.
15, nota 01). 25
José Ricardo Moreno Pinho. “Escravos, quilombolas ou meeiros? Escravidão e cultura política no
médio do São Francisco (1830-1888)”. Dissertação do Mestrado em História – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas-UFBA, 2001. 26
Luis Cleber Freire, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira
de Santana, 1850-1888”. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2007.
16
da cana de açúcar e pecuária,27
demonstrando ser Feira e região uma localidade de
“transição geográfica”, haja vista possuir clima, solo e vegetação peculiares, nem
tipicamente característicos do litoral e nem do sertão.
A estruturação dos capítulos desta dissertação foi feita do seguinte modo: no
primeiro capítulo é feita a caracterização e localização do universo de estudo, a
Freguesia de Umburanas (1850-1888), evidenciando o contexto da escravidão nesta
localidade, tendo em vista a sua estrutura produtiva e seus circuitos comerciais. É
importante destacar que, a partir do registro eclesiástico e dos registros de compra e
venda de terras, pudemos identificar nomes dos proprietários, fazendas e produção, e se
observaram quais eram as fazendas mais importantes dentro do circuito comercial.
Buscamos situar o leitor acerca dos limites e entorno da Freguesia e a dinâmica do seu
comércio local. Autores que trabalham com a história da estrutura fundiária no Brasil
foram referenciais importantes neste capítulo.28
No segundo capítulo priorizamos conhecer mais o escravo; utilizando os
registros de compra e venda, observamos as variáveis sexo, idade, preço, referência
étnica, cor, qualificação, ocupação etc., o tráfico intra e interprovincial, localizando nos
registros as regiões para as quais mais se vendia os escravos, e as peculiaridades da
escravidão nas Umburanas. No decorrer do capítulo, e especialmente ao tratar do tema
do tráfico interno, buscamos dialogar e referenciar nossa interpretação na bibliografia
clássica e mais recente, tendo como autores importantes R. Conrad, Graham, Marcondes
e Motta, Neves, Caíres, Barickman e Maria de Fátima Pires.29
27
Luis Cleber Freire, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p 40. 28
Hermínia Maricato, Habitação e cidade. São Paulo: Atual Editora, 1997; Helen Osório. Terras
devolutas e latifúndios: efeito da lei de 1850. São Paulo: Editora Unicamp, 1996, o próprio Erivaldo
Neves, com “Sobre o agrário e o regional na perspectiva sócio-econômica. In: “Posseiros, rendeiros e
proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro-mercantil no alto sertão da Bahia (1750-1850)”, Tese de
doutorado em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife 2003; e “Sertão como recorte
espacial e como imaginário cultural”, Revista Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 3, n.
1, p. 153, 2003, além de João Sette W. Ferreira, “A cidade para poucos: breve história da propriedade
urbana no Brasil”, p. 01, publicado nos Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em
tempos de globalização”, UNESP, Bauru, 21 a 26 de Agosto de 2005. 29
CONRAD, Robert E. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888); GRAHAM, Richard.
“Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-Ásia, n. 027,
2002; MARCONDES, Renato Leite e MOTTA, José Flávio. “Duas fontes documentais para o estudo dos
preços dos escravos no vale do paraíba paulista”. in: Revista Brasileira de história.vol. 21, n. 42. São
Paulo, 2001; SILVA, Tadeu Caires. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos
(1851-1881)”, III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis, UFSC,
maio/2007; NEVES, “Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o
oeste cafeeiro paulista”. In: Afro Ásia, n.° 24, 2000; BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano:
açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, de 1780 a 1860. Tradução de Maria Luíza Borges.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
17
O terceiro capítulo trabalhará o tema “Ser escravo nas Umburanas”, buscando os
“caminhos da liberdade” dos cativos. Articulando informações qualitativas da
documentação cartorial, intentamos perceber as tensões entre a escravidão e a liberdade.
Assim, como se processou a mudança do cativeiro à liberdade? Como poderíamos
definir um padrão para as alforrias? Os estudos de Stuart Schwartz, Lígia Bellini, Peter
Eisemberg, Sharyze Piroupo e Fátima Pires30
propõem uma analise conjuntural desses
documentos, extraindo informações atinentes ao cotidiano escravista. Avaliando esse
padrão das alforrias e suas variáveis, percebemos os escravos como autores interessados
na negociação da sua liberdade; enfim, uma liberdade nascida como conquista. E uma
conquista que “deve ser analisada como o resultado dos esforços bem-sucedidos de um
negro no sentido de arrancar a liberdade a seu senhor”.31
Como diz Chalhoub em outro
momento,
Os negros tinham suas próprias concepções sobre o que era o cativeiro
justo, ou pelo menos tolerável: suas relações afetivas mereciam algum
tipo de consideração; os castigos físicos precisavam ser moderados e
aplicados por motivo justo; havia maneiras mais ou menos
estabelecidas de os cativos manifestarem sua opinião no momento
decisivo da venda.32
Outra forma de se alcançar a liberdade, para além dos processos de alforria, foi a
fuga. E, embora este fenômeno tenha se estendido por todo o período da escravidão, nas
Umburanas, como é comum em diferentes regiões do Brasil, destaca-se a presença
histórica de comunidades de escravos fugidos e libertos, que sobrevivem até os dias de
hoje. Buscamos, assim, no final do trabalho, “puxar fios” antigos que nos levam até a
comunidade quilombola, situada na Fazenda Gavião, fundada por Zé Pedro. Nesta
Fazenda inúmeros escravos fugitivos, além de outros já libertos, buscavam refúgio e
recebiam abrigo, engendrando novas formas de vida.
30
Cf. SCHWART, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998; BELLINI, Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em
cartas de alforria”. In REIS, João (org). Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no
Brasil. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPQ, 1988; EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em
Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989; PIROUPO, Sharyse. “Escravidão, liberdade e
resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888”. UFBA, 2007; PIRES, Maria de F. Fios da vida - Tráfico
interprovincial e alforrias nos sertoins de sima (2009). 31
CHALHOUB, Visões da liberdade, p. 23. 32
Ibidem, p. 27.
18
1.0 Capítulo I – Umburanas: sociedade e conjuntura
Não sei bem se vou falar de problemas
de método ou de conceitos. É claro que
são coisas diferentes. De toda maneira,
não invoco nenhum sistema
interpretativo, nenhuma filosofia. (...)
Parto, mesmo, da atitude vivencial do
homem perante o mundo, a terra, o
espaço.33
1.1 Localização e formação de Umburanas
A freguesia Nossa Senhora do Resgate das Umburanas ”ficava à margem da
estrada de penetração desde o porto de Cachoeira para Camisão, hoje Ipirá, e o alto
sertão da margem esquerda do rio Paraguaçu”.34
Nesta rota baiana, chamada de Estrada
Real, circulavam escravos, tropas de burros com tabacos e outras mercadorias,
chegando a ser conhecida como “descaminho” do ouro e do diamante no século XIII,
uma vez que era cenário de um intenso contrabando desses minérios. Limitava-se a
Sudoeste com Cabaceiras do Paraguaçu, ao Sul com Conceição de Feira e São Gonçalo
dos Campos, a Oeste com Ipecaetá e Santo Estevão, e ao Norte e Leste com Feira de
Santana.35
Em razão de sua localização à margem dessa estrada, Umburanas tornou-se
locus de um significativo fluxo comercial, servindo de entreposto que interligava as
comunidades circunvizinhas ao porto de Cachoeira, cuja importância nacional foi
significativa nos séculos XVIII e XIX, uma vez que era utilizado para o escoamento de
boa parte da produção agrícola do Recôncavo Baiano. A localização entre os rios
33
Cf. MATTOSO, José. A escrita da história: teoria e métodos. Portugal: editorial Estampa, 1997. 34
GALVÃO, Renato (monsenhor), “Notas sobre Antonio Cardoso” (Texto mimeografado), p. 01. s/d.,
Localizado no arquivo paroquial da cidade de Antonio Cardoso. 35
ALMEIDA SANTOS, Ozeias de, “A Produção do espaço rural no Estado da Bahia: uma leitura da
concentração fundiária de comunidades quilombolas do município de Antonio Cardoso”. Anais do “XVI
Encontro Nacional dos Geógrafos. Crise, Práxis e Autonomia: Espaços de Resistência e de Esforços.
Espaço de Diálogos e Práticas”. Porto Alegre: ENG, julho/2010, p. 2.
19
Paraguaçu e seu afluente, o rio Jacuípe, o porto de Cachoeira e a Estrada Real foram
fundamentais para a ocupação e dinâmica escravista da Freguesia.36
Fonte: CEI – Base Cartográfica da SUDENE
36
SANTOS, “A produção do espaço rural do Estado da Bahia”, p. 6.
20
Sobre a sua formação mais recente, tendo em vista o período inicial do nosso
estudo (1850), cabe destacar o dia 12 de agosto de 1823, data em que o Vigário de
Santo Estevão do Jacuípe enviou ofício ao Vigário Capitular do Arcebispado da Bahia,
pedindo “autorizaçao para erigir uma capela dedicada a N. S. Do Resgate das
Umburanas”. Esta capela ficaria no terreno correspondente às doações do Sargento Mor
Francisco Almeida e D. Antonia Francisca de Almeida, sua esposa, correspondente à
Fazenda Cavaco: o “casal hemérito teria [assim] lançado o marco da futura cidade”. No
dia 10 de abril de 1843 é criada a Freguesia de Nossa Senhora do Resgate das
Umburanas, desmembrada da Freguesia de Santo Estevão.37
Em 1876 passou a ser administrada pela cidade de Feira de Santana através da
lei provincial nº 804/76 e, em 1884, foi anexada ao território da Vila de São Gonçalo
dos Campos. De forma despótica e abusiva passou a se chamar Uberlândia em 1938
(em apologia a uma cidade mineira), Tinguatiba (1943) e Antônio Cardoso, pelo
Decreto Lei Estadual n° 141 de 31 de dezembro de 1943, ocorrendo a sua emancipação
em 1963. Tais nomenclaturas cambiantes estiveram diretamente relacionadas com as
intervenções de representantes políticos e seus interesses imediatos. No seu derradeiro
nome, por exemplo, vê-se uma homenagem concedida pelo interventor federal na Bahia,
Renato Aleixo, ao coronel latifundiário Antonio Cardoso, nascido em 1848.
Segundo Monsenhor Galvão, “Todos os caminhos do sertão levariam o homem
ao Porto da Cachoeira. O massapê da orla do recôncavo não favoreceria, por muito
tempo, o mercado para as velhas metrópoles. A própria posição geográfica definiu os
rumos e as bases do povoamento”. Raramente se dissocia a história das coordenadas
geográficas.38
Observemos o mapa abaixo:
37
Ibidem, p. 02. 38
GALVÃO, Renato de Andrade.” Os povoadores da região de Feira de Santana” in : Sitientibus: revista
da Universidade Estadual de Feira de Santana. ano 1, nº n1, jul-dez 1982, p. 30.
21
Mapa I: Antonio Cardoso (antiga Umburanas)
Fonte: Elaborado por Maurílio Nepomuceno
O fenômeno da escravidão nas Umburanas não pode ser dissociado do conjunto
de suas peculiaridades regionais e econômicas, o que implicou na instauração de
relações específicas com os escravos e seu labor. Obviamente estar situado em uma
“região sertaneja” era ponto relevante, apesar de ainda hoje a própria definição de
“sertão” ser objeto de questionamentos. Para Ivone Cordeiro Barbosa, o “sertão guarda
um enorme poder de evocação de imagens, sentimentos, raciocínios e sentidos (...). A
categoria sertão não guarda nenhuma essencialidade fora das experiências sociais dos
sujeitos que o nomeiam”.39
A autora identifica o espaço não como categoria meramente geográfica, mas,
sobretudo, social e cultural. Ela recorre a Certau, quando discute a bipolaridade entre as
categorias, tentando realizar uma “hermenêutica do espaço, historicizando a sua
construção a partir de e ao mesmo tempo em que historiciza as experiências dos sujeitos
históricos”.40
Neste sentido, percebe-se o “sertão” como conceito carregado de
dificuldades, cuja “característica maior talvez seja a indeterminação dos referenciais”.41
39
BARBOSA, “Sertão: o espaço do outro”. In: ______. Sertão: um lugar incomum: o sertão do Ceará na
literatura do século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 33. 40
Ibidem, p. 34. 41
Ibidem, p. 34.
22
Neste sentido, a beleza da definição/indefinição de Guimarães Rosa, algures, tem muita
propriedade: o sertão é onde os pastos carecem de cercas...
Erivaldo Neves, em uma perspectiva similar, considera que o sertão é portador
de grande carga de sentidos que vai do histórico ao antropológico.
Em sua obscuridade etimológica, tanto na condição de categoria
geográfica como na perspectiva sócio-antropológica, “sertão” revela-
se polissêmico, carregado de novos e velhos sentidos. Mais que uma
alteridade negativa de litoral, firma-se como referente do regional e se
expressa como representação da cultura nacional. 42
O mesmo autor, porém, tenta esclarecer o seu conceito, recorrendo à gênese ou
etimologia da palavra sertão. Assim, escreve ele,
Etimólogos atribuem a gênese de „sertão‟ à „forma aferética de
desertão‟ (Antenor Nascimento), a referências „controversa ou
desconhecida‟ (José Pedro Machado) ou a „etimologia obscura‟
(Antonio Geraldo da Cunha). Já Gustavo Barroso (1888-1959),
apoiado no „dicionário da Língua Bunda de Angola‟, de Bernardo
Maria de Carnecatim, publicado em Lisboa, em 1804, conferiu sua
origem ao vocábulo muceltão, corrompido para celtão e depois,
certão, cujo significado, em latim, seria lócus mediterraneus, ou lugar
entre terras, interior, sítio longe do mar, mato distante da costa.
Transposta para Portugal dera-se, indevidamente, a essa significação
africana, a equivalência de „desertão‟, deserto grande, de onde surgira
„sertão‟, como forma contraída. Apesar de equivocada essa suposição
influenciara a grafia da palavra, na troca da consoante inicial.43
Dos sentidos possíveis que carrega a palavra sertão, talvez o mais fundamental
seja o político. O lugar sertanejo é o lugar “do outro” – retomando ainda uma expressão
de Barbosa; ou seja, “daquele que não participa da racionalidade da colonização: o
índio, o aventureiro caçador de metais e predador de índios, o branco e os mestiços
pobres, dedicados às roças de subsistência, os negros quilombolas”.44
Um caminho
interessante é o conceito de Jacqueline Hermann, trazendo o sertão com duplo viés:
42
NEVES, “Caminhos do sertão: vias da ocupação territorial, de interação cultural e de intercâmbios
coloniais”, p. 24. Muito se deve à arte a contribuição no sentido de propor imagens relevantes acerca do
espaço e homem sertanejos, como foi o caso de Luiz Gonzaga, compositor e cantor que talvez tenha
melhor traduzido o sertão, para além de uma caracterização tão-somente geoclimática. A hermenêutica
acerca dos modos de vida do homem sertanejo, em canções como “Sertão de aço”, é revelada de forma
bastante apropriada. 43
Cf. NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, Revista Politeia: História e
Sociedade. Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 153, 2003. 44
BARBOSA. Sertão: o espaço do outro, p. 35, grifo nosso.
23
“Lugar desconhecido, atraente e misterioso a um só tempo, despertava o ímpeto do
desbravamento, o sonho de enriquecimento rápido e fácil”45
Umburanas possuía a característica de conviver tanto com a produção do fumo,
quanto com o minifúndio e suas policulturas; de qualquer modo, é sine qua non
levarmos em consideração que no século XIX a acepção sertão ou certão configurou
como oposição a costa, ao marítimo, ou seja, o sertão é tomado como interior, mato
longe da costa. Uma expressão, pois, que se consolidou durante a “colonização”, e que
guardou com a palavra “litoral” uma relação complementar: “porque, como em um jogo
de espelhos, uma foi sendo construída em função da outra, refletindo a outra de forma
invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa), „sertão‟ esvaziava-
se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa”. Segundo Janaína Amado o século
XIX denotava ainda, com a palavra sertão, conotações negativas, a saber, “‟terras sem
fé, lei ou rei‟, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas
por índios „selvagens‟ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas,
leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente”.46
Apesar do seu solo fértil, em algumas localidades da região, sobretudo próximas
do rio Paraguaçu,47
observadores não titubearam em definir Umburanas como parte do
“sertão”; marcada pela presença dos “velhos chefes sertanejos”, pessoas “em geral
inteligentes, corajosos, homens de lideranças, fortes, cheios de bom senso, força moral e
equilibrados”.48
Memorialistas locais, como Carlos Mello e Telito Rodrigues, argumentando em
favor da memória histórica do município de Antonio Cardoso, desde os tempos cuja
denominação era Nossa Senhora do Resgate das Umburanas, localizam o município no
polígono das secas do semi-árido baiano, com um clima sub-úmido a seco, possuindo
uma variação pluviométrica em torno de 800 a 1000 / ano. Sua temperatura fica na casa
dos 23,84ºC em média, com a máxima e mínima entre 27,32º e 18,41º e com uma
vegetação predominantemente de “caatinga com arbustos espinhosos (mandacaru e
xique-xique)”, resultado dos longos períodos de estiagem, exceto os meses de maio a
45
HERMANN, Jacqueline. Sertão (verbete) In: VAINFAS, Ronaldo. (Org.) Dicionário do Brasil
Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. p. 528-529 46
AMADO, J. “Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos”. Rio de Janeiro, v. 8, n. 5, 1995, p. 149. 47
O próprio Neves (op. cit., p. 1), citando ainda filólogos contemporâneos, realça que o sertão não precisa
ser “necessariamente árido”, embora conote uma “região agreste, despovoada, lugar recôndito, distante do
litoral (...); enfim, o interior do país”. 48
GALVÃO, Renato M. Notas sobre Antonio Cardoso, p. 3.
24
julho, quando ocorrem as chuvas.49
O município situa-se num planalto em uma área de
191m de altitude.
Enfim, ”Umburanas” está situada, permitindo-nos fazer um trocadilho plausível,
na agreste paisagem sertaneja. Ou seja, ela apresenta características geomorfológicas
plurais, pois, apesar de estar situada no semi-árido baiano, no polígono das secas, e as
fontes a tratarem como região sertaneja, está localizada em uma zona de transição, com
mais características de agreste.50
O mapa abaixo ilustra a região.
Mapa II: Antonio Cardoso (antiga Umburanas) Fonte: http://antoniocardoso.com/imagens/coiland/jpg
49
Carlos Mello e Telito Rodrigues, Das Umburanas, p. 11. 50
Entende-se por agreste uma “zona intermediária entre o sertão e a mata” cujo clima, um pouco mais
ameno, favorece o desenvolvimento de “culturas alimentares, além do gado” (VERSIANI; Vergolino,
“Posse de escravos e estrutura de ativos no agreste e sertão de Pernanbuco”,
http://www.scielo.br/pdf/ee/v33n2/v33n2a05.pdf, p. 05.
25
Eurico Alves Boaventura,51
ao tratar dos grupos constituintes da população
sertaneja, destaca a intensa miscigenação de brancos e indígenas e a ínfima presença de
negros. Acreditamos que na “civilização do pastoreio” havia mais escravos do que
Boaventura conseguia imaginar, fato que revela que a sua ideia diretriz de um sertão
sem escravos estava equivocada. Em todo caso, seu pensamento era mesmo este, como
demonstra a citação abaixo:
Morre o recôncavo, quando as espátulas do canavial cedem lugar ao
flácido flabelar festivo do capinzal, das capineiras. Além do horizonte
descrito, já não se ouvem gritos histéricos de feitores sádicos, mas sim
da melopopéia do aboiado, conduzindo a vida e o rebanho para a
alegria do sertão imenso. Imenso como o coração.52
Tal ideia não vê, ao contrário, uma presença escrava inalienável e importante no
interior das localidades sertanejas, a busca de “modelos” da escravidão impede que
conheçamos o fenômeno na sua real configuração e camufla algumas questões centrais
relativas à natureza do escravismo brasileiro.
1.2 Economia e sociedade
Não havia escravos no agreste e no sertão? Será que sua existência foi mesmo
incipiente e pouco significativa? Como estava inserida a mão de obra escrava não ligada
à produção intensiva da cana de açúcar? Quem eram os proprietários? De que viviam?
Quem efetivamente eram esses cativos? Estas questões norteiam nossa investigação
sobre Umburanas.
A historiografia em muito insistiu em tratar da escravidão nas Américas a partir
de sistemas que exploravam as áreas de “Plantation” e a escravidão urbana. No livro O
negro na Bahia, Luiz Viana Filho53
elege o urbano como área que efetivamente
expressou a complexidade das relações escravistas; ele ressalta ainda que era nesta área
51
BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e vaqueiros, Salvador: Centro editorial e didático da UFBA,
1989. 52
Ibidem, p. 17. 53
VIANA FILHO, Luiz Vianna Filho, O negro na Bahia, um ensaio clássico sobre a escravidão.
Salvador: EDUFBA, Fundação Gregório de Mattos, 2008.
26
que se projetava todo e qualquer tipo de insurreição, revolta e indisciplina, pois os
escravos urbanos eram possuidores de uma ‟consciência de espécie‟ – entendida como
“espécie” cultural,54
e capacidade de insubordinação. De outra parte, a escravidão nas
áreas rurais, dos grandes plantéis, sustentáculo da economia de exportação – a
plantation – foi o cenário privilegiado dos estudos sobre a escravidão na colônia.55
Inclusive, na visão da Caio Prado:
A grande lavoura representa o nervo da agricultura colonial; a
produção de gêneros de consumo interno – a mandioca,o milho,o
feijão que são os principais – foi um apêndice dela,de expressão
puramente subsidiária. Este papel subsidiário se verifica, aliás, quase
sempre, na própria estrutura da produção agrícola. Aqueles gêneros de
consumo são produzidos, na maior parte dos casos, nos mesmos
estabelecimentos rurais organizados e estabelecidos para cuidar da
grande lavoura.56
Esta analise do autor deixa evidente que essa “economia subsidiária”- não
exportadora, exerceu pouca importância no cenário brasileiro. Em vista do exposto,
pouca atenção foi dada para a escravidão nas denominadas áreas “marginais” ao sistema
hegemônico. Os novos estudos sobre a escravidão no sertão57
em muito tem contribuído
na analise e conhecimento das experiências dos escravizados que outrora estavam
afônicos nos arquivos e cartórios do “interior de dentro.” Estes estudos clarificam,
portanto, dinâmicas sociais e econômicas diferentes, nem por isso, menos importantes.
54
Interpretação dada por Gilberto Freire no Prefácio na primeira edição do livro de Luiz Vianna Filho, O
negro na Bahia, um ensaio clássico sobre a escravidão, 2008. 55
“Nos últimos anos, o foco dos estudos a respeito da escravidão no Brasil tem se deslocado da excessiva
preocupação com a conceituação teórica e generalizante do tema. Se, até pelo menos a década de 70,
importantes estudos acerca da gênese e reprodução da sociedade colonial brasileira e, concomitantemente
do escravismo, privilegiaram o atrelamento do mundo colonial tanto a modelos teóricos provenientes da
economia política quanto a vicissitudes da expansão do capitalismo europeu, é também verdade que na
última década os estudiosos têm buscado redirecionar suas análises, delimitando a dinâmica interna da
sociedade como ponto nodal das transformações históricas. Em artigo de 1980, Barros de Castro,
espelhando estas novas tendências propunha, através de uma acirrada crítica aos modelos explicativos da
realidade colonial, a inversão das perspectivas analíticas e o enfoque da conformação interior da
sociedade em suas transformações, ajustes, improvisos e choque de vontades como foco central dos
estudos”. Cf. MACHADO, Maria Helena P. T. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a
história social da escravidão”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.8, n.16, mar.-ago. 1988, p.
144. 56
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação econômica do Brasil. 23º. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 143. 57
Citamos aqui alguns deles: José Ricardo Moreno Pinho (2001), PIRES (2010), NEVES (1998), Taiane
Martins (“Da enxada ao clavinote: experiências, liberdade e relações familiares de escravizados no sertão
baiano, Xique-xique 1850-1888”. Dissertação de Mestrado – UNEB, 2010), VIEIRA FILHO (Os negros
em Jacobina – Bahia – no século XIX. São Paulo: Annablume, 2009).
27
A escravidão se fez presente primordialmente em regiões de monocultura e
latifúndio.58
Essa premissa esconde a complexidade da escravidão e a diversificação da
economia baiana. Essa invisibilidade tem uma intencionalidade, as regiões mais
afastadas dos grandes circuitos comerciais foram durante muito tempo negligenciadas.
O que precisamos constatar, ao contrário, é que outra Bahia escravagista existiu, para
além das visões generalistas.59
A Freguesia das Umburanas estava integrada em uma
economia regional e interprovincial, não tão distante ou dissociada dos grandes centros
comerciais. Assim, apesar de terem elegido protótipos de escravidão, tendo como
referência a capital da província e o Recôncavo baiano, é preciso atentar para a
peculiaridade que criou o contorno de cada região.
Pretendeu-se descrever o Brasil a partir de um modelo – patriarcado
do Nordeste – e aplicá-lo de maneira quase absoluta, em todos os
lugares. Evidentemente isto conduziu a erros, até que os historiadores
começassem a compreender a utilidade de trabalhar não mais de
maneira geral, como haviam feito seus predecessores, mas a partir dos
arquivos regionais e por tema, de modo a apreender as sutilezas e a
captar ao máximo possível as singularidades.60
Daí a pergunta acerca dos aspectos singulares em relação à escravidão nas
Umburanas. Segundo a tese defendida por Stuart Schwartz,
Historicamente, no Brasil, a produção de roceiros e escravos, ou, com
maior exatidão, a agricultura de subsistência e a de exportação,
estavam intimamente ligadas numa relação complexa,
multidimensional e em mutação histórica. Eram de fato duas faces da
mesma moeda.61
Uma parte daquela vida rural nas Umburanas se dava nas feiras livres. A Feira
livre de Umburanas nasceu da aglutinação da comunidade em espaços abertos e
próximos da Igreja matriz. Para este centro comercial as comunidades circunvizinhas se
58
NOVAIS, Fernando A. Estrutura e funcionamento do antigo sistema colonial. 6.ed, São Paulo:
Brasiliense. 59
Preocupados com a dinâmica interna e não generalista da escravidão, é importante destacar a
contribuição e relevância do trabalho de autores como Barros de Castro, Erivaldo Fagundes Neves,
Barrickman, dentre outros, já mencionados na Introdução desta dissertação. 60
MATTOSO, “A carta de alforria como fonte complementar para o estudo da rentabilidade da mão-de-
obra”, p. 27-28. 61
SCHWARTZ, Escravos, roceiros e rebeldes, p. 125.
28
deslocavam semanalmente, a fim de comercializarem produtos agrícolas e as carnes
verdes.62
Sua proximidade da estrada real favoreceu o fluxo de pessoas e das
mercadorias comercializadas. Ainda sobre os negócios desenvolvidos na feira,
destacam-se as policulturas produzidas nas fazendas, a partir dos excedentes que eram
gerados, para depois serem vendidos. Acerca das práticas rotineiras do comércio nessas
feiras, como escreveu Kátia Mattoso, também o escravo, algumas vezes, por concessão
do seu senhor, podia fazer plantações em pequenos lotes, e vender o excedente da
colheita nas feiras livres, dinheiro que servia, em alguns casos, para a compra de sua
alforria:
No campo, o „costume do Brasil‟ – expressão empregada pelos
antilhanos da época – era o do escravo utilizar um trato de terra para
plantar sua mandioca e suas hortaliças. Com bastante freqüência, ele
vende o excedente de sua colheita a seu senhor, ou no mercado do
povoado vizinho.63
Embora não tenhamos documentos suficientes para compreender a dinâmica,
flutuações e características mais precisas acerca das feiras livres das Umburanas, é
possível identificar uma certa semelhança com a feira livre de Feira de Santana, tendo
em vista que as regiões são bastante próximas, e guardam semelhanças quanto ao clima
e posição geográfica. Claro, levando-se em conta algumas dessemelhanças, como a
grande força econômica de Feira de Santana, que aos poucos a fez tornar-se a “porta do
sertão, o seu entreposto comercial e seu canal de comunicações” no caminho para a capital da
Bahia.64
O trabalho de Pacheco, tendo como foco o “trabalho e costume dos feirantes de
alimentos” em Feira de Santana, aborda aspectos relevantes que se fazem presentes em
uma feira livre. Um desses aspectos é constituir-se como espaço de sociabilidade: “A
feira promovia o choque e encontros entre estas pessoas e mais muitas outras
estabelecidas na zona rural dos arredores do Município”. É verdade que muitas famílias
“dependiam deste [comércio] para suprir a dispensa, vendendo ou comprando”
mercadorias. Mas, para além deste aspecto comercial, as feiras também entravam em
62
Cf. Monsenhor GALVÃO, NSAC, p. 05. 63
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 119. 64
POPPINO. Rollie E. Feira de Santana. Bahia [Salvador]: Itapuã, 1968. p. 21-25.
29
um “circuito de lazer e festa atrelado também às vivências dos demais usuários da
urbe”.65
Grande destaque na feira das Umburanas era o intenso fluxo de mercadorias,
proporcionada também por produtos diversificados oriundo das viagens de boiadas
conduzidas por vaqueiros e tropas de burros.
Carregados de fumo, ovos de galinha e outros animais de pequeno
porte para serem comercializados na Vila de Cachoeira e
circunvizinhanças. Quando voltavam traziam carne de sol, farinha de
mandioca e outros artigos alimentícios (mantimentos) para serem
vendidos nos arraias do interior ou surtir os pequenos negócios das
comunidades do sertão. 66
Além da feira livre havia igualmente um manejo e comércio ligados à criação
de gado. Lycurgo dos Santos Filho, estudando o livro de contas da Fazenda Campo
Seco, demonstra a utilização de vaqueiros escravos na região do alto do São Francisco.
O gado servia tanto para o consumo quanto para trabalhos pesados na lavoura e no
engenho. A comercialização do couro não transparece nos documentos, mas é provável
que houvesse, caso levarmos em conta que na Bahia boa parte deste subproduto era
destinado à exportação e para o acondicionamento do fumo remetido para a Metrópole e
para a África.67
Em suas labutas cotidianas, o criatório de gado envolveu a presença
indispensável do vaqueiro. O processo-crime datado de 1852 mostra como o “serviço de
vaqueiro” era uma profissão ”estável” nas Umburanas. Na Síntese do processo
envolvendo os escravos Pedro e Paulina, verifica-se o seguinte:
Pedro, crioulo, escravo de Francisco Viera de Souza, vive na Fazenda
amarela onde há mais de vinte anos se ocupa do serviço de vaqueiro,
plantação e lavoura, foi preso por ser acusado de atirar e matar em
Paulina de tal, escrava, crioula da Fazenda gameleira na Freguesia de
Nossa Senhora do Resgates das Umburanas , mãe de Manoel.68
65
Cf. PACHECO, Larissa Penelu Bitencourt. “Trabalho e costume de feirantes de alimentos: pequenos
comerciantes e regulamentações do mercado em Feira de Santana (1960/1990)”, dissertação de mestrado,
UEFS/2009. 66
http://santoestevaodoparaguacu.blogspot.com/2010/03/antonio-cardosemancipacao. 67
FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 45. 68
APEB. Seção judiciária. Processo crime/série homicídio. Estante número 27, caixa número 960,
documento número 05, de 1852, grifo nosso.
30
Possuir escravos nas Umburanas era algo muito valoroso na região. No entanto,
não cabia apenas às grandes fazendas ou aos grandes proprietários possuí-los. Os
senhores (as) menos abastados financeiramente também conseguiam o privilégio da
mão de obra escrava, utilizando-se de estratégias diversas, às vezes curiosas. Uma
destas, como aparece nos registros de compra e venda de escravos de 1874, que fazem
como comprador o Sr. Thomé da Costa e Almeida e como vendedor Sr. Jorge Ambrósio
da Costa, foi a quitação do meio-escravo Caetano Crioulo, de 29 anos, por trezentos mil
reis.69
O escravo foi consorciado, a fim de se fazer possível a negociação.
Outra forma de adquirir, pelo menos por um tempo determinado, a força de
trabalho de um escravo, sem ter que desembolsar o valor total da sua compra foi o
penhor, como aconteceu com o “escravo Domingos, preto, [que] fazia parte da mesma
dívida negociada com Salustiano Alves Sampaio (...) cedendo todos os direitos por esse
instrumento de escritura (...) para que possa o cedenário dela usufruir como sua”...70
A importância do trabalho escravo para além do litoral era, pois, inegável, tendo
tal valor relação direta com as inúmeras possibilidades de afazeres no interior das
fazendas. Como observou Luis Cleber Freire acerca do problema da ocupação escrava,
O trabalho escravo em uma unidade agrária era diversificado. Embora
a ocupação exercida por eles não fosse obrigatoriamente registrada
nos inventários – principalmente os anteriores a 1872 –, quando
aparece, fica evidente a diversidade dos trabalhos, variando de
atividades ligadas à agropecuária, até aos serviços domésticos e os
oficiais mecânicos e de serviços.71
Com efeito, segundo Fátima Pires, a necessidade de adquirir e manter um
escravo, ou melhor, de “preservar o „sistema escravista‟” era comum entre “os pequenos
proprietários e ricos senhores de engenho”. E isso justamente em função da lida diária
na “roça”, do seu pesado fardo que deveria, quando pudesse, ser delegado a algum
mancípio. Ou pelo menos deixar para este o trabalho mais penoso. Daí a escravidão ter
continuado vigorosa mesmo próxima da abolição.72
69
CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 8, Escrituras públicas de compra e venda.
1874, p. 75. 70
CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 8, Escrituras públicas de compra e venda.
1874, p. 85. 71
FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 75. 72
PIRES, Fios da vida, p. 118.
31
Taiane Dantas, estudando a “experiência dos escravizados e escravizadas no
sertão do São Francisco, Vila do Senhor do Bonfim e Bom Jesus de Xique-Xique
(1850-1888)” corrobora igualmente a tese segundo a qual as tarefas empreendidas no
sertão eram, sobretudo, tarefas de “sobrevivência”.73
Daí, de um lado, a importância do
trabalho escravo e, de outro, a não existência de “diferenças radicais entre as ocupações
desses dois grupos [pessoas livres e escravizadas]”. Com predominância do serviço da
lavoura. Salientando-se, entretanto, que para algumas tarefas os escravos estavam
“invariavelmente excluídos”, como professores, guardadores de livros, caixeiros,
religiosos, capitalistas e proprietários.74
1.2.1 As propriedades
O inverno tá maneiro/ Tem riacho dando nado/ cartoze vacas
das minhas/ Dero cria mês passado/ A fartura tá matando/
Sertanejo impanzinado.75
A propriedade se constitui “Um direito próprio, perpétuo e hereditário de pessoa
física ou jurídica, sobre determinado bem. Caracteriza-se pela legitimidade que a
sociedade lhe conferiu e pela legalidade que as instituições jurídicas e políticas lhe
outorgaram”.76
Até meados do século XIX, no Brasil, a terra era concedida pela coroa
portuguesa, a sesmaria.77
Sua distribuição acompanhava os fluxos e os interesses do
73
Esta constatação foi também feita por Flaviane Ribeiro Nascimento (“E as mulheres da Terra de Lucas?
Quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas (Feira de Santana, 1850-1888)”. Monografia de
graduação. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009) e Luis Cleber Freire (2007), apontando,
talvez, para uma realidade presente e comum dos escravos em Feira de Santana e região circunvizinha. 74
Taiane Dantas Martins, “Da enxada ao clavinote: experiências, liberdade e relações familiares de
escravizados no sertão baiano, Xique-Xique (1850-1888)”. Dissertação de Mestrado. UNEB, 2010. 75
Trecho de autoria de Antonio Ribeiro da Conceição, conhecido como Bule-Bule, natural de Antonio
Cardoso, um cordelista, repentista e escritor, que realiza um trabalho de rica produção poética e musical,
cujas raízes estão fincadas em gêneros musicais nordestinos, como as Chulas do Sertão, Cocos, Martelos,
Agalopados, Xote e Marche de Pé-de-Serra. 76
NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 01. 77
As sesmarias, instituição de origem portuguesa, foram desde o início o meio, por excelência, de
alienação da terra. Sua distribuição acompanhava os fluxos e os interesses do povoamento. Primeiramente
foram requisitadas as áreas próximas de Salvador. Cf. DANTAS, “Povoamento e ocupação do sertão de
32
povoamento. Os municípios tinham o Rocio, terras em que se construíam as casas em
pequenas áreas de produção, sem custo. A riqueza dos latifundiários era medida pela
quantidade de escravos que possuíam, já que a terra, ainda, não estava agregada o seu
valor comercial.
A Lei de Terras (601/1850), aprovada no Senado e publicada em 20 de setembro
de 1850,78
buscou regulamentar o domínio de terras no Brasil, uma vez que isso era uma
exigência premente do governo imperial: construir mecanismos para o domínio da
estrutura fundiária brasileira. Em vista disso, todos os proprietários eram obrigados a
registrar suas posses nas paróquias, o que restringiu o acesso às terras que eram
devolutas somente por meio da compra. É preciso destacar que esse processo de
promulgação da lei se deu logo após a Lei Eusébio de Queiroz; dessa forma, grande
parte do capital que outrora era investido na escravidão passara a ser investido em
terras.79
Segundo Hermínia Maricato,80
a lei de Terras transforma a terra em mercadoria
nas mãos de quem já detinha as “cartas de sesmarias”:
Nas décadas anteriores á aprovação entre 1822 e 1850, que se
consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através de ampla e
indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão de pequenos
posseiros pelos grandes (...) tal processo se deu em função da
indefinição do Estado em impor regras.81
Mas isso não foi sem propósito: “a demorada tramitação do projeto de lei que
iria definir regras para comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos
latifundiários em não ver suas terras confirmadas”.82
Em conseqüência surgem os
registros eclesiástico de terras.
dentro baiano (Itapicuru, 1549-1822)”, artigo apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, s/d. Instituído no reinado de D. Fernando (1367-1383) o sistema de sesmarias foi um
recurso para se distribuir as terras e estimular o povoamento de áreas incultas ou conquistadas dos árabes
que ocupavam a península ibérica, para desenvolver a agricultura e dinamizar a produção de alimentos
em Portugal.Ver NEVES, Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história
regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008 p. 64. 78
Cf. Anexo II. 79
Ver SILVA, Hélem Osório. Terras devolutas e latifúndios: efeito da lei de 1850. São Paulo: Editora
Unicamp, 1996. 80
Sobre Lei de terras ver MARICATO, Hermínia, Habitação e cidade. 81
Cf. João Sette W. Ferreira, “A cidade para poucos”, p.45. 82
MARICATO, 1997, apud FERREIRA, “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no
Brasil”, p. 01.
33
Para se entender um pouco a estrutura fundiária83
das Umburanas, conseguimos
catalogar 126 registros de terras no APB. A partir de tais registros, que fazem menção à
“sorte de terras”, é possível encontrar inúmeros aspectos, como: tamanho, forma de
aquisição, local da propriedade, limites das terras e nome das partes envolvidas. Foi
importante o cruzamento com os registros de compra e venda das terras que
complementavam as informações.
As Umburanas do séc. XIX era um povoado típico do interior da Bahia:
“simples e humilde”. Para sermos específicos, em termo de arquitetura e distribuição
geral do espaço,
A maioria das casas era feita de vara trançada com enchimento de
barro amassado, o piso era terra batida, a iluminação das casas eram
feitas de velas de sebo, candeeiros e lamparinas alimentadas por
querosene, azeite de peixe ou óleo de mamona”. As ruas eram
iluminadas por lampiões alimentados por querosene. A água [...vinha]
dos rios e tanques alternativos dos fazendeiros, e pequenos
proprietários que existiam próximos da povoação. 84
Com efeito, só “os fazendeiros mais abastados edificavam suas casas com
alicerces de pedra, paredes de adobes de argila crua e cobertura de telhas vãs. Portas e
janelas de espessas vergas” fechadas com trancas.85
Relativamente à forma de aquisição
é preciso ressaltar que “A titularidade fundiária surgiu como perpétua, hereditária e
inviolável, com a organização jurídica e política do Estado, em paralelo à propriedade
do escravo, antes pública, privatizada na sequência evolutiva”.86
No caso das
propriedades das Umburanas a maioria das terras era passada de pai para filho; ou seja,
através de herança, como no caso das terras da Fazenda Candeal Verde, adquirida por
Francisco Fernandes Serra “através de herança de seo pai, finado coronel Manoel
83
Em “História agrária na perspectiva socioeconômica” (NEVES, 2003, p. 11) podemos encontrar
observações interessantes sobre a vinculação de uma história agrária a uma história regional e local,
verificando-se aí „o estudo das estruturas e das organizações do espaço rural‟, e não simplesmente um
estudo do “crescimento da produção, da inovação das técnicas, dinâmicas dos sistemas de cultivo e
incremento da produtividade”. 84
Carlos Mello e Telito Rodrigues, Das Umburanas, p. 6. 85
NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 102. 86
NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 01. Acrescentamos aqui que,
em 1917, o Código Civil Brasileiro, no seu Capítulo II, seção I, artigo 550, iria dispor sobre as formas de
aquisição de terras, discriminando quatro maneiras: transcrição do título de transferência no registro
imóvel, acessão, usucapião e direito hereditário.
34
Fernandes Serra”.87
Embora devamos também realçar que, em outros momentos, a
“família agregada” participava igualmente desta transferência de bens. Reportamo-nos
aqui ao caso de parte de terra da Fazenda da Tapera, 85 braças de fundo que em 1858
foi adquirida por Francisca Gomes do Livramento através de herança de sua sogra,
Francisca Maria de Paula. 88
Quanto às partes envolvidas nas negociações, observamos uma considerável
participação de mulheres no processo da compra e vendas de terras, como veremos no
tópico seguinte que, obviamente, vai reservar também espaço para os proprietários do
sexo masculino, maioria no quesito de proprietários de terras.
Por fim, relativamente aos preços das propriedades, era preciso observar
aspectos que condicionavam as suas oscilações; acerca deste segundo aspecto, sabe-se
que as extensões das terras, as condições do solo, localização e disponibilidade de água
(como a proximidade dos rios Jacuípe e Paraguaçu), eram fatores condicionantes do
preço de mercado. Vicente Ferreira da Silva, que apresentou para registrar uma sorte de
terras à beira do Rio Jacuípe, no lugar denominado Jenipapo, com 404 braças e meia
larga e 800 de fundo, e houve por compra a viúva de Pedro Ribeiro, tendo como limites
pela parte nascente do Rio Jacuípe pelo Norte os marcos enfincados e pela parte do Sul
a Fazenda Mocó: poente com o Capitão Inocêncio de Almeida e Sul com terras de
Mateus de Almeida Lima. As terras adquiridas por Vicente Ferreira certamente
alcançaram altos preços em razão dos benefícios naturais que abarcavam.
A existência de benfeitorias no interior das propriedades (casas, cercas, tanques
etc.) e inexistência de ônus fiscais, como foi o caso da Fazenda Curumatahi, de
propriedade, em 1880, de Antonio Dias Lopes, era outro fator de valorização das
propriedades rurais. A fazenda, que foi comprada por João Augusto Ferreira pela
quantia de 1:500$000 (um conto e quinhentos mil réis), é bem possível que alcançou o
considerável preço por possuir tais atributos.
Para efeito de catalogação dividimos as propriedades das Umburanas, com
referência ao tamanho, em: pequenas (até 399 braças), médias (de 400 até 849 braças) e
grandes, com porte acima de 850 braças. Os registros de terras fazem referência à
nomenclatura de “braças de terra” e a légua para designar o lado frontal da propriedade
87
Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858, APB,
Colonial, maço 4823, p. 28. 88
Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858, APB,
Colonial, maço 4823, p. 23.
35
e o “fundo” da mesma. 89
Como mostra o gráfico abaixo, a maior parte das propriedades
das Umburanas é de pequeno porte e uma parte ínfima de grande porte, o que nos leva a
crer que em Umburanas do século XIX predominavam os pequenos proprietários com
um número reduzido de escravos, e sendo as fazendas bem próximas umas das outras.
Gráfico 1- Percentual relativo ao tamanho das propriedades
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Colonial maço 4823, Registro
Eclesiástico de Terras.
A tabela I apresenta as principais fazendas das Umburanas:
1. Areal 21. Morro Talhado
2. Barra do Corumathaí 22. Coqueiro
3. Cabana 23. Candeal
4. Cavaco 24. Morro Pombo
5. Campinhos 25. Olhos D‟água
6. Caldeirão 26. Olheiros
7. Candeal Verde 27. Paus d‟arco
8. Cansanção 28. Perí
89
Braça - do latim brachia - plural de brachin (braço). Antiga unidade de medida de comprimento,
equivalente a 10 palmos, ou seja, 2,2ms (Brasil). Uma légua equivale a 6.000 metros.
PEQUENO55%
MÉDIO30%
GRANDE15%
Propriedades:
36
9. Corimataí 29. Poço Grande
10. Caroá 30. Rôco
11. Ervadoce Verde 31. Porteiras
12. Facão 32. Patrimônio da Matriz
13. Genipapo 33. Queimado
14. Gerde 34. Riacho de Areia
15. Ladeira 35. Ribeirão
16. Lagoa Comprida 36. Santa Cruz
17. Mangabeira 37. Santa Bárbara
18. Mata do Rio Cavaco 38. Santa Tereza
19. Mocó 39. Santo Antônio
20. Mariana 40. Amarela
Tabela I: Principais propriedades da Freguesia das Umburanas
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Colonial maço 4823, Registro Eclesiástico
de Terras.
1.2.2 Os proprietários
Observemos primeiramente que há uma diferença entre ser proprietário de terra
e ter a posse da mesma. Neste caso, a posse tem caráter transitório, uma vez que se
constitui em uma propriedade de fato, não de direito, pois consiste em “se apoderar e
controlar algum bem, independentemente da legitimidade desse ato”;90
no primeiro
caso, ser proprietário significa possuir a terra tanto de fato quanto de direito,
formalizando-a através de registro e dando, desta feita, a sua continuidade de forma
hereditária. Tendo em conta que nossa analise foi pautada nos registros em cartório, só
foi levado em conta os proprietários legais das terras.
Nas Umburanas do séc. XIX a vida rural era caracterizada por uma população
dispersa, distribuída pelas fazendas. Dessa forma, a taxa de urbanização era pequena.
Em relação à quantidade de fazendas na região notamos, através dos Registros
90
NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 03.
37
Eclesiásticos de Terras91
, que os proprietários dessas fazendas muitas vezes eram
mulheres. De uma relação composta por 79 fazendas que constam os nomes dos
proprietários há, no registro aqui especificado, 24 mulheres proprietárias, ou seja,
aproximadamente 30%. Além de donas destas fazendas, tais mulheres participavam
também do processo de compra e venda de escravos.
Gráfico II: Percentual de homens e mulheres proprietários de terra nas
Umburanas
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Registro eclesiástico de terras,
colonial,1858-1859, maço 4823.
Foi o caso da Sra. Victorina Maria Carvalho92
, dona da fazenda Bom viver,
viúva do Sr. José Joaquim de Carvalho (cujo nome vem sempre presente nas escrituras,
apesar de já ter falecido), que comprou a escrava Luiza, “cabra de idade de 31 anos”,
por 550$000 (quinhentos e cinquenta mil réis); ou da Sra. Maria da Anunciação
Araújo,93
proprietária da Fazenda Pernambuco, que comprou o escravo João Batista, de
16 anos, por 350$000 (trezentos e cinquenta mil réis). Acrescentamos ainda o caso da
91
Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858-1869
APB, Colonial, maço 4823. 92
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, s/p, 1886. 93
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, fl. 27, 1885.
70%
30%
0
10
20
30
40
50
60
Homens Mulheres
PADRÃO DA PROPRIEDADE
38
Sra. Felipa Maria de Jesus94
, vendedora da escrava Augusta, preta de 18 anos mais ou
menos, cedendo para posse do comprador José Onorato de Araújo, pela quantia de
300$000 (trezentos mil réis). Foi bastante comum encontrar os nomes dessas mulheres
proprietárias nos cruzamentos dos registros. Dessa forma, fica evidente a participação
dessas senhoras proprietárias de terras e de escravos umburanenses em transações e
negócios que envolviam a mão de obra cativa.
Esse fato é instigante, na medida em que abre caminho para uma reflexão sobre
o papel das mulheres nestas sociedades rurais no século XIX. Constituíram essas
senhoras proprietárias um “grupo social heterogêneo e transitório”,95
a saber, senhoras
donas de terras e escravos, com suas práticas próprias, com suas maneiras específicas de
lidar com o manejo das terras e dos escravos? O livro de Maria Odila Dias, Quotidiano
e poder em São Paulo no século XIX, embora se concentrando em uma região
metropolitana, traz a ideia da necessidade de percebermos uma outra “condição
feminina”, menos abstrata, universal e a-histórica.96
Ou seja, uma mulher desmitificada,
que tem uma participação efetiva no processo histórico, inclusive relacionado ao
processo produtivo.
As fontes disponíveis que conseguimos ter acesso apontam justamente para
inúmeras mulheres que se tornavam proprietárias de terras, muitas vezes em função do
falecimento de seus maridos, fato que as obrigava a, ou vender a propriedade, ou então
administrá-la. Foi este o caso da Dona Eufragina de Magalhães, viúva do finado
Joaquim Magalhães que, com a morte do esposo, herdou a Fazenda Barra do Pote,97
tornando-se a partir daí uma presença constante no cartório, comprando e vendendo
imóveis.
Quanto aos proprietários homens, o que aparece muito frequentemente nos
registros são suas denominações por patentes. A Fazenda Coqueiros é de propriedade de
Coronel Alvino José da Silva e Almeida, cujos limites desta terra encontram “por um
lado com as terras do Capitão Joveniano José da Silva Almeida”. O Capitão Jerônimo
apresenta ao cartório duas declarações das terras e o Capitão Jose da Silva Barreto
aparece muito freqüentemente nos registros, pois sua fazenda (sem nome) era um marco
sempre presente: “terras do Capitão José da Silva Barreto”.
94
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, fl.18, 1886. 95
DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 118. 96
Ibidem, p. 13. 97
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso do ano 1883.
39
É importante observar aqui que os registros não informam se essas patentes eram
devidas a hierarquia militar como tal, pois, com frequência, a denominação de coronel
ou capitão era atribuída àquelas pessoas que detinham um certo lugar social ou político
de destaque. Assim, como escreveu Iara Nancy Rios, “A patente de coronel, porém, não
ficou restrita ao serviço militar, passando a ser usado para distinguir pessoas com poder
político em determinadas regiões, principalmente proprietários de terra com poderes
paramilitares, ou pessoas com prestígio político”.98
Enfim, se esses senhores com “patente” representaram uma parcela da população
com prestigio e poder, este poder não se restringiu apenas aos registros de terras aqui
referidos, mas, sobretudo, permeou transações envolvendo a mão de obra cativa. Isso
reforça a ideia de que a breve menção às patentes, dos que aparecem como comprador
ou proprietário de terras e escravos sinalizava claramente para a existência de uma
relação de poder aí instaurada, bem como de senhores capitães ou coronéis possuidores,
geralmente, de força econômica.
É preciso destacar uma peculiaridade interessante do perfil dos proprietários de
terras do sertão, relativamente aos do recôncavo. O poeta Eurico Alves Boaventura traz
a imagem de uma aristocracia sertaneja como suarenta, castigada pelo sol a pino, atrás
de boi bravo, com suas roupas se rasgando no serrado, ao invés de guardar a imagem de
um senhor de escravo alheio ao trabalho mais pesado da lida. O poeta em causa nos leva
a visualizar o sertanejo dono de terra com seu chapéu de couro, seu gibão e, enfim,
todos os adereços ou recursos necessários para a difícil labuta do dia a dia. Tais
proprietários participavam ativamente, pois, das atividades ligadas ao manejo do gado
em suas propriedades, juntamente com os escravos.99
A estrutura agrária das Umburanas, tão marcada pelas relações de proximidade
entre senhores e escravos, nos remete ao conceito de paternalismo, tão caro à
historiografia da escravidão nas Américas. Thompson fez algumas ressalvas para o uso
sem qualificações do termo paternalismo, principalmente devido às generalizações que
o seu emprego pode vir a implicar. “O paternalismo é um termo descritivo frouxo. Tem
uma especificidade histórica consideravelmente menor do que termos como feudalismo
98
RIOS, Iara Nancy. “Nossa Senhora da Conceição do Coité: poder e política no século XIX”. Programa
de Pós-Graduação em História. Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2003, p. 63. 99
BOAVENTURA, Fidalgos e vaqueiros, 1989.
40
ou capitalismo. Tende a apresentar um modo de ordem social visto de cima. Tem
implicações de calor humano e relações próximas. Confunde o real com o ideal”.100
Mas o que fazer, então, com o uso ou emprego do termo? O autor não aconselha
a que o deixemos de fora, que se o abandone. O que não poderíamos fazer é tomá-lo de
uma forma generalizante, crítica parecida a quem empregasse outras tantas noções sem
esclarecer as suas devidas especificidades históricas. Assim, pecaríamos se falássemos
em geral sobre conceitos como “autoritário”, “democrático”, “igualitário”. Desse modo,
“Nenhum historiador sensato deve caracterizar toda uma sociedade como paternalista ou
patriarcal”, embora tal termo possa aparecer como operador relevante nesta ou naquela
sociedade.101
Douglas Libby, fazendo um estudo do paternalismo no âmbito do escravismo
moderno, e seguindo a interpretação de Genovese,102
ilustra bem essa problemática. O
autor procede a uma comparação entre o paternalismo consolidado no Sul dos Estados
Unidos com o paternalismo da América portuguesa, partindo da ideia de que, no
primeiro caso, as fontes para a pesquisa eram ricas e mais abundantes:
É que o paternalismo brota de maneira simplesmente prodigiosa das
páginas e folhas de centenas de milhares de fontes produzidas por
senhores e senhoras de escravos e seus familiares, por administradores
e outros empregados livres, por médicos e advogados contratados por
proprietários de cativos e até pelos próprios escravos. A riqueza das
fontes privadas tão bem preservada nos arquivos locais e estaduais do
Sul, é virtualmente incalculável.103
Não obstante esse fato, Libby não deixa de defender a posição segundo a qual o
paternalismo brasileiro, mesmo sendo de difícil reconstituição, haja vista a carência de
fontes, foi inalienável e marcante. E esta presença se tornava mais evidente nas
pequenas e médias posses (algo não adequadamente discutido ainda, segundo o autor),
100
THOMPSON, Costumes em comum, p.32. 101
Ibidem, p. 32. 102
Libby, em “Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas” (Rio de Janeiro: Paz e
Terra, CNPQ, 1988, p. 28), faz referência à obra de Genovese A terra prometida: o mundo que os
escravos criaram, e menciona o conceito de paternalismo deste autor não como uma doação, mas como
uma conquista na qual o escravo é um agente da sua própria história. 103
Ibidem, p. 36.
41
pois aí não se podia fugir do contato interpessoal, das relações de afeto e de desafeto
que se instauravam.104
Tendo em vista que nas Umburanas as propriedades eram em geral de médio a
pequeno porte, supomos que as relações paternalistas, tais como as descritas acima,
foram latentes. Vários exemplos disso são encontrados nas cartas de alforria. Citamos
aqui o caso curioso de Salustiano Alves Sampaio105
, que “concedeu” a liberdade à
escrava Joaquina, pelos “bons serviços prestados” pela “pequena quantia de 150$000
(cento e cinqüenta mil reis) para o gozo da liberdade”. O que poderia indicar uma
concessão do senhor – a liberdade por uma pequena quantia – sugere um olhar mais
atento do investigador. Ora, o que caracterizaria aqueles “bons serviços prestados”? No
bojo disso os escravos não teriam desenvolvido certos ardis, com o fim de conseguir
benesses dos seus senhores e de barganha nos valores da compra de sua alforria?
Em segundo lugar, tendo em vista que muitos escravos pagaram pela sua
liberdade como no caso de Joaquina que paga “pequena quantia” (apesar dos bons
serviços prestados), essas circunstâncias demonstram que o processo de conquista da
liberdade se estabeleceu “como um jogo nunca vencido pelos senhores, pela simples
razão de que os cativos nunca cessaram na sua luta pela conquista de espaços
adicionais”.106
Vimos até agora algumas peculiaridades das Umburanas, tanto relacionadas com
aspectos geográficos e climáticos, quanto a aspectos relacionados com a sua estrutura
produtiva. Foi importante destacar a investigação dos arranjos de poderes locais,
relacionado com a apropriação territorial, que nos permitiu mapear as caracterizações
das propriedades e dos seus proprietários. O elemento geral consistiu em ser uma
localidade de pequenos e médios senhores, com uma produção mais voltada para a
agricultura alimentar , fumageira e a criação de gado, tanto para o auto-consumo quanto
para o abastecimento de regiões circunvizinhas (culturas estas que foram favorecidas
pela proximidade dos rios Jacuípe e Paraguaçu). Conheceremos agora questões
atinentes ao escravo, como a dinâmica do tráfico, a sua forma de trabalho, as repartições
dos mancípios nessas ocupações (crianças, homens e mulheres) e as transações
comerciais no qual estavam envolvidos.
104
Sobre esse amplo conceito de paternalismo autores que merecem destaque são GENOVESE (A terra
prometida), SLENES (Na senzala, uma flor), LARA (Campos da violência), CHALHOUB (visões da
liberdade) e MACHADO (“Em torno da autonomia escrava”). 105
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, p.72, carta de liberdade datada
de 1870. 106
LIBBY, “Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas”, p. 34.
42
2.0- Capítulo II – Quem eram os escravos nas Umburanas?
2.1- O Tráfico inter e intraprovincial: faces de uma mesma moeda?
Na segunda metade do século XIX deu-se o fim do tráfico atlântico de escravos,
o que propiciou uma significativa mudança no sistema escravista brasileiro, no sentido
de uma crescente rearticulação interna de redes de transferências de escravos. Era uma
estratégia necessária, a fim de manter o sistema ainda vivo, possibilitando o fluxo intenso e
interno de escravos nas transações comerciais, que deixavam regiões em decadência
econômica para as mais promissoras. Daí a máxima de que a Bahia passara da condição
de importadora para a condição de exportadora de escravos.107
É importante atentar para os conceitos de tráfico intra e interprovincial. O tráfico
intraprovincial era aquele realizado dentro da própria província, de uma determinada
região para outra ou mesmo dentro de uma mesma região. Já o tráfico interprovincial
dos cativos fazia-se de uma província para outra, mais comumente das províncias do
norte: (notadamente Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Maranhão), para as do sul
do Império (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas), embora fosse praticado, em menor
escala, entre as províncias de uma mesma região. Segundo Graham, na metade do
século dezenove, quando a “economia cafeeira da província do Rio de Janeiro crescia de
maneira explosiva, logo seguida por São Paulo, e foi principalmente para estas áreas
que os escravos foram transferidos”.108
Assim, até ser abolido oficialmente em 1885, o
tráfico interprovincial movimentou nada menos do que 200 mil escravos das províncias
do norte para as do sul, conforme constatou Slenes.109
Nas últimas décadas que precederam a abolição a escravidão ainda continuava
muito vigorosa nas Umburanas, embora com diferentes configurações. Os livros de
notas dos tabeliães foram a principal fonte para analise de como se deu a inserção da
referida freguesia dentro do tráfico interno de cativos. O seu potencial, tanto para
compra como para vendas, mostrou-se bem significativo no século XIX. A demanda
107
Cf. SILVA, Tadeu. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos (1851-1881)”, III
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis, UFSC, maio/2007. 108
Cf. GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no
Brasil”, Afro-Ásia, n. 027, 2002, p. 122. 109
apud SILVA, op. cit., p. 02.
43
crescente e contínua de escravos evidencia que realmente a região era um centro
dinâmico de comercialização de cativos. Tudo indica que essa demanda por escravos na
região estava associada a sua utilização na produção, criação e mercado de especulação
de mancípios. Consideramos significativo o número de registros de compra e venda de
escravos: foram 200 registros e 243 escravos negociados no período compreendido
entre 1850-1888, localizados no cartório publico de Antonio Cardoso (Umburanas).
O comércio intra regional, apontado nas escrituras públicas, registra uma maior
freqüência das vendas para negociantes da própria região de Feira de Santana. Isso nos
faz supor que houve uma rearticulação interna para a posteriori negociar para as regiões
do Sul e Sudeste; uma mão de obra escrava, segundo Graham,110
vinda não
propriamente dos grandes engenhos, mas, sobretudo, das pequenas e médias
propriedades agrícolas. Enfim, o comércio intra e inter-regional estavam intimamente
relacionados em Umburanas, constituíam etapas da negociação, na qual os proprietários
mais abastados dos centros urbanos recorriam aos escravos de zonas rurais com preços
mais acessíveis e revendiam para as zonas mais prósperas. É importante destacar que
muitos desses registros de compra e venda tem a presença marcante dos procuradores
que, em sua maioria, eram naturais de Cachoeira.111
Muitos negociantes de escravos procuravam meios para escapar dos impostos e
aumentar a margem de lucro no tráfico. Para fugir de tais tarifas cobradas pelos portos
provinciais uma opção era se valer dos procuradores.112
Alguns destes realmente
estavam na condição de meros representantes; não obstante, sabe-se que essa era uma
estratégia eficaz no tráfico de escravos. Esses intermediários como representante dos
compradores e vendedores se valiam dessa condição de “plenos poderes” e construíam
redes de comercialização. Robert Slenes detalha a ação desses pseudo representantes:
“compravam o escravo do vendedor original e vendia-o depois ao comprador final,
110
GRAHAN, “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-
Ásia, n. 027, 2002, p. 130. 111
Lucilene Reginaldo remete à dinâmica de Cachoeira: “Para este importante e estratégico centro
comercial e urbano se dirigiam as tropas da região das Minas, Caetité e Rio de Contas que, além de
gêneros alimentícios salgados e curtidos, traziam algodão, couros, ouro em pó e em barra; gado cavalar e
vacum. Toda essa movimentação de tropas e embarcações concorria para fazer aparatosas e atraentes suas
animadas feiras. Embarques de produtos sertanejos, desembarques de mercadorias européias, além do
burburinho das atividades comerciais faziam de Cachoeira uma região de freqüentes roubos, desordens e
assassinatos”. REGINALDO, Lucilene. “Os Rosários dos angolas: irmandades negras, experiências
escravas e identidades africanas na Bahia setecentista”. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de
Campinas, 2005, p. 78. 112
Nesses casos, não se costumava fazer uma escritura de compra e venda para cada transação efetuada.
Normalmente se disfarçava a transferência de posse para um negociante intermediário com uma
procuração bastante. Cf. SLENES, 1986, p. 118.
44
quando não a outro mercador”.113
É válido ressaltar que esses negociantes possuíam
uma procuração, que legitimava as suas transações.
O trabalho de Mariana Assunção também discute e corrobora este aspecto da
inserção dos procuradores nos processos de negociação com escravos em Fortaleza.
Para a autora, a existência dos procuradores foi inegável e importante, uma atividade
que, possibilitando burlar exigências fiscais, tornou o negócio vantajoso e rentável:
A figura do procurador surge como uma peça importante dos negócios
de venda dos escravos na província. Com um documento de
procuração em mãos, os negociantes lucravam mais com a venda de
escravos, postergando e até não pagando os impostos governamentais
exigidos em qualquer transação comercial. Por esta razão a rede do
tráfico interno foi bastante profícua na província, pois negociantes
atuantes no porto compravam e repassavam escravos em troca de
recibos de pagamento sem que uma escritura fosse lavrada,
possibilitando margens para sucessivos substabelecimentos.114
Supomos que os traficantes encontraram nas Umburanas um terreno propício
para a comercialização e especulação de cativos. Isso foi devido, principalmente, à
intensa movimentação dos procuradores e a facilidade de circulação e escoamento dos
escravos, favorecido pela proximidade dos rios Paraguaçu e Jacuipe, além da já citada
Estrada Real. Alguns procuradores-negociantes apareciam nos registros com muita
frequência. Um desses casos é o de Thomaz de Souza Silva, natural de Cachoeira, que
se tornou uma presença constante no cartório da referida freguesia, em livros e períodos
diversos. Na escritura de vinte e dois de agosto de 1874 quem comprava era Vicente
Rodrigues de Oliveira,115
morador da cidade Cachoeira, a escrava Cândida, dezoito
anos, serviço da lavoura, por seu legítimo procurador Thomaz de Souza Silva, e,
curiosamente, dois anos depois o nome dele ainda estava presente nas escrituras. Aos
doze dias do mês de abril de mil oitocentos e setenta e seis compareceu ao cartório com
sua bastante procuração para compra da escrava Teresa, vinte e cinco anos, serviço da
lavoura.116
113
SLENES, “Grandeza ou decadência?”, p. 118. 114
Cf. ASSUNÇÃO, Mariana. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (século XIX)”, tese de
doutorado, UFBA, 2009, p. 103. 115
CPAC. Livro de notas do tabelionato n. 6 Escrituras públicas de compra e venda, (1874, p. 57) 116
CPAC. Livro de notas do tabelionato n.7, Escrituras públicas de compra e venda, (1876, página não
identificada).
45
Robert Conrad destaca que o tráfico interno fez surgir a figura do “comprador de
escravos viajante”, que percorria caminhos por entre as províncias e convencia os
fazendeiros menos abastados a venderem seus poucos escravos à módicos preços,
porém, acima da média do local. Segundo ele:
O tráfico interno de escravos no Brasil foi estimulado pelo o fato de
haver total disponibilidade de escravos para os plantadores que
tivessem dinheiro para comprá-los, não só em lugares remotos do
império mas também nas cidades e áreas rurais vizinhas, onde os
residentes da cidade, fazendeiros pobres, plantadores empobrecidos, e
outros que obtinham um lucro relativamente pequeno com seus
trabalhadores podiam vendê-los com algum proveito.117
Ricardo Tadeu Caíres descreve de forma muito interessante como era a ação dos
traficantes no interior da Bahia: “Munidos de dinheiro, correntes, armas [...] percorriam
as vilas e cidades do interior em busca dos senhores menos abastados, sobretudo os
pequenos e médios proprietários, para propor-lhes a compra de seus cativos”.118
Segundo ele, tomando a fala do barão de Cotegipe, à época João Maurício Wanderley,
transparece a denúncia de que tais traficantes não trabalhavam sozinhos, senão
formavam “uma rede organizada de angariadores de escravos”, que se especializavam “em
seduzir os pequenos lavradores que possuem um [escravo], por exemplo, e que com ele ganham
de 30 a 40$000 por mês”. Por que isso?
Para dar fim produtivo ao seu dinheiro? Não, porque o dinheiro é
desperdiçado logo ou entregue a um especulador, dos que se dizem
grandes negociantes por aí. E com isso o número de pequenos
proprietários vai desaparecendo, e reduzem-se homens livres à
escravidão, além de se desprezar o lado humano, que nisso também
existe, porque ao aliciador de escravos só lhe interessa o homem que
pode trabalhar, e não a sua família, portanto separado do seu chefe.119
117
CONRAD, Robert. Tumbeiros. O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.
189. 118
Cf. CAIRES, Ricardo Tadeu. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas
últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese de doutorado, UFPR, 2007, p. 124. 119
Idem. Apud Gerson. Brasil. A escravidão no Império. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, ANAIS da Câmara
(1854).
46
Desta forma, ele conclui que o trafico interno foi tão ou mais cruel do que o
tráfico atlântico. Quanto aos escravizados, eles eram reunidos em lotes, onde
“permaneciam vários dias e até mesmo semanas nos depósitos e armazéns das casas
comercias, à espera do embarque”.120 Nesses locais improvisados eles faziam as refeições e
obtinham certo cuidado quando apresentavam alguma moléstia, uma vez que o seu preço
tinha a ver diretamente com as suas condições de saúde para o trabalho. È válido salientar
que esse tráfico interno existiu muito antes do marco estabelecido como conseqüência direta
da escassez do tráfico atlântico; não obstante, é inegável a amplitude e recorrência que se
deu após esse marco, homens e mulheres escravizados “vinham, há muito, sendo
comercializados internamente no Brasil, alguns atravessando longas distâncias,
tivessem eles primeiro sido transportados do ultramar ou não”.121
Tabela II: Tráfico Intraprovincial de Escravos em Umburanas através de Poderes
Constituídos por Procurações Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso. Registros de compra e venda de escravos Livro de
Registros Diversos.
De um total de 200 registros analisados, 48 destes foram por procuração. É uma
quantidade significativa e, a nosso ver, bastante esclarecedora da realidade da freguesia.
Outro destaque é que, apesar de existirem muitas procurações, poucos eram os
120
CAIRES, Caminhos e descaminhos da abolição, p.125. 121
GRAHAM, “Nos tumbeiros mais uma vez?”, p. 27.
PODERES
CONSTITUÍDOS
Nº PROCU
RAÇÕES
%
DÉCADAS
Compra e venda de
escravos
18 37,5 % 1850
Compra e venda de
escravos
6 12,5% 1860
Compra e venda de
escravos
14
29,16% 1870
Compra e venda de
escravos
Total:
10
48
20,83%
1880
47
procuradores, ou seja, alguns nomes se repetem com frequência, em virtude do que já fora
exposto, isso nos faz supor que havia nas Umburanas pessoas que lucravam muito nas
referidas negociações por meio de procurações.
De acordo com a tabela acima percebe-se que houve um maior número de
procurações na década de 50, computando 37,5%. Acreditamos que os procuradores se
aproveitaram muito das condições de crise do cólera e da grande seca para comprar os
escravos com preços abaixo da média e depois barganhar entre os senhores interessados.
Sobre a crise ocasionada pela epidemia do cólera, esta se concentrou entre de julho de
1855 e agosto de 1856. “De acordo com as estimativas feitas pelo médico Rodrigues
Seixas, que atuou no combate à doença, a epidemia matou cerca de 36.000 pessoas, sendo a
maioria destas pertencentes à população negra e pobre”.122 Segundo Onildo Reis David, o
problema maior era que:
A Bahia não estava preparada para enfrentar o cólera. As precárias
condições de higiene de suas cidades, a pauperização de seu povo, a
falta de diligência do governo na condução das medidas sanitárias
preventivas, o parco conhecimento dos médicos sobre a doença e sua
maneira de transmissão, tudo isso contribuiu para que a província,
bem como outras regiões do Brasil, fosse atingida de forma virulenta
pela peste.123
Outro fator que certamente contribuiu para uma maior incidência da presença
dos procuradores foi a grande seca que abateu a região entre os anos de 1857 e 1860,
caracterizada por um longo período de estiagem, provocando a morte de gado e perda
de lavouras.124
Fátima Pires observa o seguinte, ao analisar este período:
A prolongada seca de 1857-60 contribuiu significativamente para
intensificar as atividades do tráfico que, açodado por fatores internos e
externos viu paulatinamente mudar a sua condução e configuração.
Traficantes especializados, „gente do Sul‟ e firmas da capital da
província e de São Paulo penetraram por fazendas e roças
comercializando escravos com ricos e pobres senhores do sertão”.125
O trabalho de Luiz Cleber Freire não deixou de mencionar o fato, mostrando em
primeiro lugar que havia uma periodicidade na ocorrência da seca, própria de Feira de
122
Cf. CAIRES, Ricardo Tadeu. “Caminhos e descaminhos da abolição”, p. 89. 123
DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: Sarah Letras/
Edufba, 1996, p. 124
As atas da Câmara Municipal fizeram menção a este difícil período. Cf. APB, série Câmaras, maço
1310. 125
PIRES, Fios da vida, p. 49.
48
Santana e região; mas, em segundo lugar, pontuando que este fenômeno sofreu um
agravamento nos anos acima descritos, daí falar-se em crise. Assim, resgatando
registros datados de 1857, na cidade de Feira de Santana, ele escreve:
Em ata de 27 de agosto do referido ano, a Câmara chegou a solicitar
ao presidente da província, auxílio para a crise da seca na região,
relatando que os preços dos alimentos estavam tão altos que, se
fossem aumentados um pouco mais, trariam “a penúria e
enfraquecimento de meios pecuniários tal, que dificilmente as
Famílias remediadas se manterão e a classe pobre miseravelmente
perecerá, pois absolutamente não podem adquirir equivalentes
quantias e permutar, pelo alimento.126
Esse fluxo do tráfico interno de cativos trouxe mudanças significativas às suas
vidas, tendo em vista as transformações no que dizia respeito aos seus laços familiares,
aos laços afetivos, de amizade e de trabalho. Acrescentamos a isso as frustrações que
passavam eles, quando não viam as suas expectativas e acordos cumpridos, sobretudo
em relação às promessas de liberdade que os seus senhores muitas vezes, mudavam de
rumo, quando a venda de algum mancípio tornava-se imperiosa. Neves, em
“sampauleiros traficantes”, também detalha a ação dos traficantes:
Os traficantes internos se revelaram astuciosos na burla das leis e do
fisco, negociando menores de 12 anos sem a companhia materna,
como determinava a Lei do Ventre Livre, de 1871, alegando
orfandade ou filiação desconhecida; informando preços inferiores, sob
argumento dos escravos serem doentes; comercializando cativos
matriculados em outras províncias após a Lei dos Sexagenários, com a
justificativa de adquiri-los para venda antes desse dispositivo.127
As pesquisas de Barickman confirmam o fato de que os grandes proprietários
baianos utilizaram a mão-de-obra escrava até os últimos instantes em que a escravidão
126
APEB. Seção Colonial/Provincial. Série Câmaras. Maços 1310 (caderno 1857) e 1312 (caderno 1860),
in FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 52. 127
Cf. NEVES. “Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste
cafeeiro paulista”, p. 23. Nesta mesma obra o autor menciona como, antes de 1871, havia igualmente a
ação dos traficantes no sentido de burlar as leis: “(...) Em meados da década de 1870, para burlar o fisco
imperial, não pagando a meia cisa das transações comerciais determinadas pela legislação, os traficantes
transferiram escravos apenas com a procuração dos vendedores, lhes outorgando poderes para
comercializá-los, podendo substabelecerem em sucessivos negócios”. P. 4.
49
vigorou.128
Segundo Caires, “A província baiana foi uma grande consumidora de
escravos e quando o tráfico cessou encontrava-se devidamente abastecida por milhares
deles”.129
Algumas medidas foram inclusive tomadas no sentido de garantir a
permanência da mão de obra cativa: “A intensidade dessa remoção levou o governo da
Bahia, na tentativa de evitar a escassez da mão de obra, estabelecer, em 1853, uma taxa
de 80 oitenta mil réis sobre cada escravo exportado, e aumentá-la posteriormente para
200 mil réis”.130
Quanto à destinação dos escravos negociados, o que pudemos observar foi que
nas Umburanas, ao avaliarmos a localidade para onde se vendia o escravo, tivemos a
nítida impressão que o tráfico interno foi caracterizado por um atrativo da mão de obra
voltado para os próprios limites ou interior da província. Encontramos nos registros,
apenas um caso de venda para o Rio de Janeiro. Só é possível que os negócios
envolvendo o elemento cativo tenha atendido ao tráfico interprovincial, mediante ação
traficantes de Cachoeira, de Feira de Santana ou outras regiões circunvizinhas. Pois
pelos registros não pudemos fazer essa inferência.
Relativamente ao fim do tráfico interprovincial, segundo Conrad (1975) as
razões do seu término estiveram ligadas precipuamente ao desequilíbrio numérico dos
cativos entre as regiões Norte e Sul do país. O receio que se tinha era que tal
desequilíbrio ocasionasse o crescimento de ideias abolicionistas, podendo redundar em
uma guerra civil, tal como ocorreu nos Estados Unidos. A solução adotada, a priori,
para resolver esse problema foi a elevação das taxas de importação de escravos, sendo o
Rio de Janeiro a primeira província que chegou a estipular o alto valor de 1:500$000
(um conto e quinhentos mil réis) para cada escravo oriundo de outra província,
providência esta seguida tão logo por São Paulo e Minas Gerais. Soma-se a isso o
aumento da vontade dos cativos de se libertarem do cativeiro, desejos potencializados
pelas tensões geradas a partir dos transtornos que passavam, por exemplo quando
tinham que se desvincular da sua famílias, em função do tráfico ao qual eram
submetidos. Esse prolongamento da escravidão se constituiu como única possibilidade
128
BARICKMAN, Bert. ““Até a véspera”, o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do
Recôncavo baiano (1850-1881)”, In: Afro-Ásia, n.° 21-22. Bahia: 1998-1999, pp. 177-237. 129
CAIRES, “Caminhos e descaminhos da abolição”, p. 58. 130
NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 282.
50
de manutenção do próprio sistema escravista e também, paradoxalmente, forneceu
elementos para o seu declínio131
.
2.2- Origem: Africanos, Crioulos, Pardos e Pretos:
Em cada uma dessas esquinas,
reuniam-se os que se tinham por da
mesma nação,ou falavam a mesma
língua, ou eram, na África, vizinhos ou
culturalmente aparentados, ou eram
malungos, ou seja, tinham chegado ao
Brasil no mesmo navio. Aqui, ficavam
os nagôs; ali, os jejes; lá, os cabindas;
acolá, os angolas; mais adiante, os
moçambiques – identidades que os
africanos criaram no Brasil. E entre os
seus aparentados e semelhantes
ajustavam fidelidades e renovavam os
contatos com a África de cada um.
Alberto da Costa e Silva
Um rio chamado Atlântico
Em “De onde vem o cativo na África” Kátia Mattoso faz um estudo acerca da
procedência dos escravos africanos para o Brasil, lembrando-nos que milhares deles
foram expatriados, caso contássemos os “três longos séculos” de vigência da
escravidão.132
A autora ainda ressalta que para cá vieram, “sem se confundir, etnias,
tribos [e] clãs diversos”.133 O problema, porém, estava em identificar como se processou
a diáspora, como saber mais sobre o que muito tempo na historiografia ficou rotulado
como algo por demais genérico – o escravo africano – mas sem pontuar de qual africano
estaríamos falando ao pensar no seu tráfico para o Brasil.
131
“Tiro a conclusão de que o tráfico interno de escravos contribuiu fortemente para acelerar a abolição
da escravidão no Brasil. (...) o crescimento da resistência daqueles escravos que tinham sido arrancados
de seus contextos familiares e antigos laços sociais minou a autoridade dos senhores e encorajou-os a
forçar a sua própria libertação através da ação direta”, Richard Graham, p. 122. 132
Segundo Kátia Mattoso, “Entre 1502 e 1860 mais de 9 milhões e meio de africanos serão transportados
para as Américas, e o Brasil figura como o maior importador de homens pretos” (2003, p. 19). O número
desses escravos vindos para o Brasil, não obstante, é ainda bastante controverso. Cf. VERGER. Pierre.
Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo:
Corrupio, 1987. 133
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 23.
51
Beatriz Gallotti Mamigonian alerta-nos para o fato de que pouco se conhece
sobre a experiência das diferentes etnias africanas.
Apesar do reconhecimento de genéricas “heranças africanas” na
mestiçagem cultural brasileira, a imagem dos africanos de primeira
geração se diluiu rapidamente na memória popular ao longo do século
XX, depois que a lembrança de sua presença viva morreu com aqueles
que tinham conhecido os últimos africanos sobreviventes, trazidos
ainda crianças nos últimos anos do tráfico de escravos.134
O papel relevante da recente historiografia sobre o problema das identidades
africanas foi justamente tentar “Redescobrir” a África e buscar dar as devidas
dimensões das experiências escravas no Brasil. Não é uma tarefa fácil, até por que
muitas vezes só se é possível identificar as origens étnicas dos escravos a partir dos
pontos de embarque.135
Daí que, como escreveu Mamigonian,
(...) os registros de nação tendem a reagrupar pequenos grupos étnicos
sob identidades maiores, como “Mina” ou “Congo”, ou a identificar os
escravos africanos genericamente como “de nação”. Isto é, em geral,
os registros de nação denotam identidades construídas do lado de cá
do Atlântico. Seguindo os passos de João Reis, outros historiadores
vêm buscando as referências às identidades étnicas e reconstituindo
cenas do cotidiano africano em várias partes do Brasil: a descrição dos
zungus, casas de angu e dormitórios por onde circulavam africanos
minas e de outras etnias no Rio de Janeiro oitocentista, é um dos
melhores exemplos desta safra de trabalhos.136
Os estudos de Maria Inês Cortes de Oliveira137
têm trazido uma contribuição
relevante e bem esclarecedora sobre as diversas “etnias” vindas da África. A autora
redefine muitas generalizações e aponta como a identidade étnica assume diferentes
configurações, dependendo do tempo e local em que estejam inseridas. O termo “negro
da Guiné”, no século XVI, referia-se mais à condição de escravo na linguagem corrente
da época. Mas, no início do século XVIII, em meio à pluralidade de “nações”, aquele
134
MAMIGONIAN, Beatriz G. “África no Brasil: mapa de uma área em expansão”. Topoi (Rio de
Janeiro). Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 33-53, 2004, p. 1. 135
Sobre o tema ver também KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. 136
Ibidem, 2004, p. 8. 137
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. “‟Quem eram os "negros da Guine?‟ A origem dos Africanos na
Bahia”. In: Afro- Ásia, n. 19. UFBA, 1997.
52
termo “toma um novo sentido”, e o termo “Gentio da Guiné” assume uma conotação
mais geográfica. A autora destaca que muitas dessas identificações atribuídas aos
africanos foram posteriormente incorporadas por eles como elo de identidade no novo
mundo. Robert Slenes, no artigo “Malungu, ngoma vem!: África coberta e descoberta
do Brasil”, discute o processo de “redesenhar as fronteiras entre as etnias”:
A formação de uma “identidade bantu” comum se chegou a acontecer,
só podia ter sido o resultado de um processo complexo. Sugeri que
para muitos africanos esse processo iniciou-se, não na experiência
compartilhada da terrível travessia para a América, mas, antes disso,
no suplício da viagem para a costa; e começou pela descoberta de que
a comunicação com os companheiros dessa viagem não era
impossível. A continuação ou rompimento desse processo, contudo,
teria dependido da experiência dos escravos no Novo Mundo, e das
suas possibilidades de encontrar outras afinidades entre si, para além
da comunidade da palavra.138
Lucilene Reginaldo discute essa noção de identidade africana na diáspora,
mostrando como era complexa e flutuava entre um pertencimento a valores e tradições
oriundas de um passado africano, bem como de fatores locais vivenciados pelos
mancípios, suficientes para acrescentar elementos novos àquela identidade. Como
escreveu a autora: “Matrizes culturais, embora não sejam imutáveis, são pontos de
partida para novas identidades. Assim, relativizar a importância das origens não
significa a negação das mesmas, mas o reconhecimento da historicidade de toda e
qualquer matriz cultural”.139
E Completa mais adiante:
Desse modo, ainda que impostas, as identidades foram, com o tempo,
tornando-se expressivas da realidade dos grupos que as assumiram.
Esta identidade grupal, ainda que vinculada às origens africanas,
estava igualmente fincada nas experiências do mundo da escravidão e,
por este motivo, era apenas uma dentre as muitas identidades sociais
que poderiam ser assumidas pelo escravo ou liberto africano no
decorrer de suas vidas.140
Nesse ínterim, é importante destacar que houve um processo de
“desafricanização da diáspora”, ou seja, em todo momento houve tentativas de apagar,
138
SLENS, Robert. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta do Brasil", p. 55. 139
REGINALDO, “Os rosários dos angolas”, p. 16. 140
Ibidem, 2005, p.105.
53
camuflar ou esconder a condição de africano do escravo, a fim de que estes assumissem
os seus laços de identidade no novo mundo, deixando para trás a sua herança africana.
É interessante perceber que a cor também era entendida como um elemento de
construção de identidade. É bastante comum nas fontes a identificação de Crioulos,
Pardos, Cabras e Pretos, nomes que remetem a certos significados ou conotações
específicas. Crioulo foi derivado da palavra "crea” que, no Império, escrevia-se “cria”,
e se referia às pessoas criadas na terra, ou seja, descendentes de africano, com
naturalidade brasileira, este freqüentemente designado preto.
Kátia Mattoso entende pelo termo crioulo os
(...) „escravos feitos no país‟, isto é, negros completamente
assimilados e adaptados. (... ) os senhores compuseram o ditado: „um
crioulo vale quatro boçais‟! Os crioulos mulatos são os mais
apreciados, embora tenham freqüentemente a fama de orgulhosos e
violentos [...] Seja como for, negro ou mestiço de branco ou de índio,
crioulo ou boçal, o escravo é sempre escravo aos olhos da lei.141
O debate historiográfico em torno dessas designações, não obstante, parece
ainda estar longe do seu fim. Hebe Maria Mattos sintetiza bem algumas das principais
nuances:
[...] como a historiografia já tem assinalado, os significantes „crioulo‟
e „preto‟ mostraram-se claramente reservados aos escravos e forros
recentes. A designação „crioulo‟ era exclusiva de escravos e forros
nascidos no Brasil e o significante „preto‟, até a primeira metade do
século, era referido preferencialmente aos africanos. A designação de
„negro‟ era mais rara e, sem dúvida, guardava um componente racial,
quando aparecia nos censos de época, qualificando a população
livre.142
Mariana Assunção, atenta às burlas dos negociantes do tráfico interno,
questiona, entretanto, se, entre aqueles que foram designados como crioulos, pretos,
fulas ou pardos, não existissem negros africanos:
141
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 123. 142
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista,
Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p 30.
54
Questiono, entretanto, se todos estes escravos ao longo da década de
1850 e início dos anos de 1860 eram nativos ou crioulos, tendo eles
nascidos na escravidão brasileira. Acredito que não. E penso que
muitos entre pretos, fulas, incluindo os pardos, poderiam existir uma
parcela de escravos africanos143
.
No caso das Umburanas, a identificação dos escravos africanos chegados até
esta freguesia corrobora as dificuldades mencionadas acima. Isto porque, no período
compreendido entre 1850 a 1888, os registros cartoriais não fazem menção direta a um
único escravo africano, embora conste em alguns registros a denominação “pretos”.
Como os escravos africanos eram, no geral, muito caros, e uma elevada taxa de
“africanidade” aponta para um alto poder aquisitivo dos proprietários; além disso, tendo
em vista que na Freguesia das Umburanas predominava um escravismo dos pequenos
proprietários, pode-se supor que a expressão “preto” fora usada de forma genérica e
extensiva para os negros nascidos no país. O gráfico abaixo, ilustrando o padrão racial
nas escrituras das Umburanas, mostra a seguinte disposição:
Gráfico III: Padrão Racial nas Escrituras de Compra e Venda por Décadas
Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livros de nota do
Tabelionato. Série- Registros de compra e venda de escravos- 1850-1888
143
ASSUNÇÃO, Mariana. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (século XIX)”, tese de
doutorado, UFBA, 2009, p. 94.
0
5
10
15
20
25
30
35
1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888
PRETOS
PARDOS
CRIOULOS
CABRAS
55
É importante destacar que só levamos em consideração um universo de 174
escravos, pois nem todos tinham a especificação de cor ou origem étnica nos registros.
Em termos de proporção verificamos 44,25% crioulos, 17,81% pardos, 9,77% cabra e
28,16% pretos. Nas décadas de 1870 e 1880 verificam-se algumas mudanças
interessantes: de 1870 a 1879 houve uma quase equivalência na proporção entre
crioulos e pretos, o primeiro atingido 52%; já na década de 1880 notamos uma inversão
das denominações, onde a expressão “preto” foi superior à expressão “crioulo”,
atingindo 53,12%, e o desaparecimento paulatino dos “cabras” nos registros.144
Foram
também muito recorrentes na documentação analisada os termos “pardinho” e
“crioulinho”, quando se referiam a crianças abaixo de 10 anos, mas não levamos em
consideração esses diminutivos, uma vez que englobamos as crianças nas análises
gerais. Assim, em todo período de 1850-1888, tivemos a predominância de crioulos,
mostrando que na região deve ter havido uma predominância de cativos “nacionais”.
No censo de 1872 das Umburanas constam, de um total de 4.645 indivíduos, 537
pretos (homens e mulheres), 2.409 pardos (homens e mulheres), 1644 brancos e 55
caboclos. A tabela abaixo mostra essa disposição:
HOMENS MULHERES
PRETOS 350 187
BRANCOS 875 769
PARDOS 1268 1141
CABOCLO 24 31
Tabela III: Relação de Homens e Mulheres por “Raça” no Censo de 1872
Fonte: Censo de 1872- Nossa Senhora dos resgates das Umburanas.
A grande parcela de negociações envolvendo os crioulos nas Umburanas aponta
para um elevado crescimento vegetativo na região. Isso encontrava uma explicação
plausível, tendo a ver com uma tendência que ocorria em outras partes do sertão baiano.
Nas “regiões mais distantes dos portos exportadores e das fazendas de café”, ou então
das porções de terras sertanejas não litorâneas, como no caso das Umburanas, a
tendência era propiciar um crescimento endógeno mais intenso, diferentemente das
144
O termo “cabra”, segundo o estudo de Tânia Gandon, possuiu vários significados: um deles podia ser
“morador de propriedade rural ou ainda „capanga, cangaceiro‟, personagens característicos do interior do
Nordeste brasileiro, onde a presença índia na mestiçagem brasileira é marcante e reconhecida”.
GANDON, Tânia. “O índio e o negro: uma relação legendária”. Afroasia, UFBA, n19, 1997, p. 14.
56
“áreas de agricultura exportadora e comércio ativo”, onde o volume de negociações com
a compra de escravos era bastante alto. Em outras palavras, exigia-se neste caso uma
força escrava oriunda de negociações diretas, ao invés de se esperar, ou estimular, que
ocorresse o processo natural de reprodução dos cativos locais.145
Mas para qual
destinação essa mão de obra escrava foi requerida nas Umburanas? É o que
abordaremos a seguir
2.3-A mão- de- obra escrava
Figura I: Carregando a mandioca,
1858 (“Négresse de La roça”, Brazil
pitoresco. Álbum de vistas, paisagens,
monumentos, costumes etc., Paris,
Lemercier, 1861. Reprod. Bauer Sá).
Fonte: REIS, p. 337, in REIS e
GOMES, 1996.
Esta é uma questão central, e envolve uma série de pontos a serem observados.
Havia nas Umburanas a produção de artigos ou produtos voltados tanto para o auto-
consumo e circulação entre as regiões circunvizinhas, quanto para a exportação,
145
MARTINS, “Da enxada ao clavinote”, p. 30.
57
destacando-se aí a cultura do fumo,146
que requeria uma melhor qualificação escrava,
em detrimento da necessidade de haver um número elevado de mancípios. Dessa forma,
no bojo de um leque de tais atividades, precisaríamos saber quais seriam as
peculiaridades e exigências desses trabalhos, sempre pensando na relação necessária
entre cada atividade designada para os mancípios e o contexto em que eles estavam
inseridos.
A destinação da mão de obra escrava, quando especificada nos registros, faz
referência aos mancípios que eram comprados com o fim precípuo de trabalharem em
policulturas no interior das fazendas, produção esta que muitas vezes atendia ao
mercado interprovincial. “As policulturas sertanejas não se subordinavam à grande
lavoura de unicidade de cultivo, nem dependiam dela, embora lhe vendessem seus
excedentes”.147
Foi muito comum nos registros a expressão “bom trato com o fumo”,
referindo-se ao escravo negociado; parece-nos que era interessante que ressaltasse esse
atributo na venda, a fim de que ele fosse mais valorizado.
De 1850 a 1888 havia ainda de forma demarcada, uma produção originária das
propriedades de menor porte: artigos agrícolas tipicamente voltados para a exportação e
outros para o consumo local ou, às vezes, para a venda nas feiras livres. Não
necessariamente excludentes, muitas vezes conviviam em paralelo. O fumo, por
exemplo, tinha o seu plantio, em grande parte, voltado para o mercado externo. Segundo
Mons. Galvão, desde o período setecentista, regiões do entorno de Santo Estevão, como
Cachoeira, cujas terras eram sabidamente férteis, primavam pelo cultivo do fumo, cuja
troca do produto por escravos ocorria com freqüência.148
Reiteradas ordens régias
reservavam as terras de São Gonçalo, Itapororocas, Água Fria e Santo Estevão para o
cultivo de tal produto, apesar de pedidos de protestos contra a monocultura partido da
câmara de Cachoeira.149
Não obstante, os pequenos proprietários das Umburanas se
destacavam intensamente na produção do fumo em seus pequenos plantéis.
A freguesia não ficava alheia a esta tendência. Dos livros de nota aqui
trabalhados, relativos à comercialização dos escravos, 75% das referências sobre a
destinação escrava (ocupação), quando apareciam, indicavam o “serviço de lavoura”,
não havendo nenhuma menção para cana de açúcar. Acredita-se que não ocorreu um
146
Monsenhor Galvão relata em seus estudos como a região das Umburanas possuía um solo propício
para a cultura e desenvolvimento do fumo. NSAC, folha 3. 147
NEVES, Uma comunidade sertaneja, p.172. 148
NSAC, folha n. 01. 149
Anais do arquivo publico do Estado. Salvador, Imprensa oficial 1924.v XII pg 47 e 48, in: Sitientibus:
revista da Universidade Estadual de Feira de Santana, ano 1, nº 1, jul-dez 1982, p. 30.
58
desenvolvimento dessa cultura em virtude principalmente, como disse monsenhor
Galvão,150
da exigência de maior umidade do solo. Além disso, havia uma questão
material: a cultura da cana de açúcar, em geral, exigia grandes propriedades e um
investimento alto com estrutura, mão de obra farta e beneficiamento.
Curioso observar que em alguns registros destaca-se a experiência dos escravos
no intuito de valorizá-lo na venda, destacacando-se primeiramente o plantio de fumo:
“bom trato com o fumo”, e na seqüência mandioca, milho e feijão. Na venda da escrava
Maria, de 30 anos, comercializada em 1869151
, aparece igualmente a destinação para o
plantio de mandioca, demonstrando também que esta raiz era cultivada. Das qualidades
dos cativos vendidos para este fito ressalta-se ter “bons braços para a lavoura” (como o
escravo Estevão) e ter “bom trato com o fumo” (como a escrava Marcelina).152
Mas, na
maioria dos registros, a especificação geral ou o detalhamento das suas ocupações não é
mencionado; quando a ocupação é citada, permanece no mais das vezes apenas “serviço
da lavoura”.153
Acerca do manejo do fumo, bastante comum em Umburanas, algo importante a
ser observado é a necessidade de que os escravos fumageiros tivessem certa
especialidade para realizar a meticulosa tarefa de beneficiar o produto. Barickman
descreve em detalhes esse difícil processo:
Esse trabalho começa quando, depois de ficar ao sol por um dia para
murchar, as folhas colhidas eram levadas para a „casa de fumo‟. (...)
Ali os escravos amarravam as folhas a varais e as penduravam para
secar. Após cerca de uma semana, recolhiam as folhas e, uma por
uma, retiravam os talos. Nessa altura o lavrador podia separar algumas
das melhores folhas para que fossem moídas como rapé. A maior parte
da safra, contudo, seria transformada em longas cordas de fumo de
rolo. (...) No dia seguinte, os escravos desmanchavam a bola, torciam
novamente a corda e enrolavam-na outra vez em torno de uma vara.
As repetidas torceduras, conhecidas como „viraduras‟, produziam uma
corda com uma textura uniforme e cerrada.154
150
NSAC, folha n. 03. 151
CPAC. Seção Judiciário. Livro de notas do tabelionato n. 6, Escrituras públicas de compra e venda
1869, p.35. 152
CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n.7, Escrituras públicas de compra e venda
1871, p. 51 153
Segundo Cleber Freire o que explica a inexistência de detalhamento das funções dos escravos é que
sua ocupação registrada em detalhes não era obrigatória, principalmente antes de 1872. “Nem tanto ao
mar, nem tanto à terra”, p. 75. 154
BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 292.
59
O fabrico do fumo era demorado e trabalhoso, e exigia do escravo mais perícia e
destreza do que força bruta; era, pois, uma atividade mais “intensiva em cuidados” do
que “intensiva em esforço”, diferentemente da cana-de-açúcar.155
Lembramos aqui da
presença das mulheres nessas atividades, constituindo esse aspecto em mais um fator
que poderia explicar a marcada ocorrência desta nas negociações de compra e venda.
Não obstante essa aparente dificuldade – o cultivo e o beneficiamento do fumo –
não necessitava de um número elevado de mancípios para cumprir as tarefas, como
dissemos. Outro fator positivo era a não incompatibilidade entre lavoura de fumo e
criação de gado (ao contrário, o esterco servia como adubo), e certamente parte dos
rebanhos eram vendidos nas feiras de carne verde.156
Um terceiro aspecto ainda é que,
levando-se em conta que há uma parte do fumo que serve para exportação, e outra, de
qualidade inferior, que se transformava em fumo de rolo, este segundo sub-produto
também nos faz supor que deveria ser negociado nas feiras livres, embora parte daquele
fumo de rolo, muito apreciado na África, provavelmente também foi incorporada como
mercadoria para a exportação.
Um quarto aspecto distintivo da plantação do fumo era o seu consórcio com
culturas de gêneros alimentícios para consumo e comercio local e regional. Não há
informações precisas nos documentos encontrados, mas cresce a suposição de que os
excedentes daqueles produtos eram igualmente comercializados nas feiras livres. Assim,
era inegável a importância de outros produtos utilizados na alimentação diária, como
feijão e milho, além do cultivo da mandioca, esta bastante presente nas propriedades da
região.
A cultura da mandioca se destacava porque servia como produto básico para a
produção de inúmeros outros derivados, imprescindíveis na mesa do sertanejo. Assim,
da mandioca extraia-se a farinha; desta, outros tantos derivados, como goma, puba,
beiju e tapioca. Como escreveu Luis Cleber, no seu estudo sobre Feira de Santana,
(...) dos 200 inventários post-mortem pesquisados, em 105 deles foi
registrada a presença de casas de fazer farinha ou de roças de
mandioca. Deve-se considerar a ausência da menção dessas roças em
muitos inventários, em consequência da colheita que já tinha sido
feita, ou mesmo a perda da lavoura em razão da escassez de chuvas.157
155
ANTONIL apud BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 295. 156
CALMON, apud BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 297. 157
FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 69.
60
Quanto ao aspecto da plantação e manejo da mandioca nas casas de farinha, o
trabalho de Francemberg Reis chegou a mostrar que, para a realidade de Feira de Santana e
região circunvizinha, havia uma expressiva plantação deste cultivo, pouco se valendo do
recurso a máquinas; ou seja, quando os pequenos proprietários necessitavam de
empréstimos, o investimento daí advindo não se destinava à aquisição de implementos
técnicos para uso na lavoura, mas sim para a utilização de mão de obra.158 Assim mesmo, a
exigência do número de pessoas para a sua produção nas propriedades era pequena, em
geral não precisando exceder sete escravos; daí esta ter sido “uma cultura ideal para
pequenos agricultores, quer tivessem escravos, quer contassem apenas com o trabalho
familiar”.159 Enfim, crianças, homens e mulheres nas Umburanas participavam dos mais
diversos serviços na lida diária. Verificaremos a seguir como se deu essa repartição.
Figura II: Descascando mandioca, 1858 (Éplucheuses de mandioca, Brazil pitoresco. Álbum
de vistas, paisagens, monumentos, costumes etc., Paris, Lemercier, 1861. Reprod. Bauer Sá).
Fonte: REIS, p. 338, in REIS e GOMES, 1996.
158
Cf. REIS, Francemberg T. ; REGINALDO, L. . Fazendeiros Modestos e Roceiros: padrões da
propriedade, da produção rural e do mercado em Feira de Santana (1890-1920). In: XIV Seminário de
Iniciação Científica, 2010, Feira de Santana. Anais do XIV Seminário de Iniciação Científica: ciência e
sustentabilidade. Feira de Santana : UEFS, 2010. p. 1636-1639. 159
BARICKMAN, apud FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 70.
61
2.3.1 – Crianças, Homens e mulheres
Um problema oriundo das negociações com os mancípios era a possibilidade da
desagregação da família escrava.160
No entanto, nas Umburanas, mesmo antes da Lei de
1871 foram encontrados vários registros de mães escravas que eram vendidas
juntamente com seus filhos. No ano de 1866 ”Luiza, preta de 31 anos, solteira do
serviço da lavoura, acompanhada de seus filhos, Lucinda 12 e Manoel de 3 anos foi
vendida pela quantia 550$000 para Salustiano Damasceno 161
”. Outro, em 1870, de
“Martinha, preta, 35 anos, serviço da lavoura, acompanhada de suas crias: Rosa (12),
João (5) e Antonio (3) pela quantia de 1 conto e 90 mil reis para capitão Francisco
Manoel de Santana.162
O interessante a se notar é que parece ter sido uma prática
comum a venda de ”escravas com sua crias” nessa freguesia. Levando-se em
consideração as negociações em bloco, foram efetivadas antes, durante e depois da lei
de 1869,163
que em seu artigo 2° proíbe a desagregação da família escrava.
Não obstante, apesar de haver muitos registros de venda de escravos com suas
famílias, há também a venda de crianças em separado, aproveitadas para o trabalho no
“serviço da lavoura”. Isso é verificado em vários registros de compra e venda, onde a
especificação do trabalho a ser realizado na plantação menciona criança de 10 e 12
anos, como no caso, respectivamente, dos escravos Theófilo164
e Martinha165
. Para
crianças cujas idades são inferiores às que mencionamos acima, não existe uma
designação acerca do fim a qual elas se destinavam, o que nos faz supor que estava
implícita a ideia de que elas ainda não estavam aptas para algum tipo de trabalho.
Mas é preciso salientar que, por volta mesmo dos oito anos, era provável que a
criança escrava fosse encaminhada para os diversos serviços requeridos (algo que
contribuía para o aumento da taxa de mortalidade infantil), ideia ainda mais plausível se
160
GENOVESE (A terra prometida), analisando os escravos do sul dos Estados unidos, constrói um
padrão do que podia ser qualificado como bom ou como mau senhor. O senhor ruim teria, como uma de
suas características, o fato de não se importar com a estrutura das famílias escravas, separando os casais
se assim fosse preciso. 161
CPAC. Seção judiciário. Livro de notas do tabelionato n.6 Escrituras públicas de compra e venda,
1870, p 42) 162
CPAC. Seção Judiciário. Livro de notas do tabelionato n. 6 Escrituras públicas de compra e venda,
(1869, p. 57) 163
A referida lei de 1869 proibia a separação das famílias escravas por vendas, doações ou partilhas. 164
CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 7, Escrituras públicas de compra e venda.
(1874, p. 85). 165
CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 7, Escrituras públicas de compra e venda.
(1874, p. 87).
62
lembrarmos que Umburanas era uma comunidade pobre no geral e, portanto, não
poderia se dar ao luxo de criar uma criança escrava até o início do auge da sua força de
trabalho. Conclusão similar foi exposta por Kátia Mattoso:
A criança escrava presta serviço desde os 7-8 anos. Nessa idade já se
dá conta de sua condição inferior em relação às crianças livres, e este
é seu primeiro choque importante. As exigências dos senhores tornam-
se precisas, indiscutíveis. Se escolhido para figurar entre os
domésticos, o aprendizado é tão doloroso quanto o dos trabalhos no
campo ou os de um artesanato.166
Nas Umburanas, o número total das crianças negociadas somam cerca de
31,25%, um número razoavelmente alto, haja vista ser quase 1/3 de todas as
negociações realizadas. É importante atentar para isso porque, como bem analisou
Freire,167
a idade produtiva era entre 11 e 50 anos, sendo que de 21 a 30 o cativo estava
“no auge da força física”.168
E mais: a compra de escravos menores de 11 anos trazia
alguns riscos e prejuízos: riscos oriundos da mortalidade infantil, e prejuízos pelo ônus
relativo à criação da criança até a idade do labor
É importante destacar a situação peculiar dos “ingênuos”, ou seja, dos assim
chamados filhos das escravas que nasceram após a lei de 28 de setembro de 1871, a Lei
do Ventre Livre. Conforme esclarece Melina Kleinert Perussatto,
[...] os menores deveriam permanecer sob a companhia dos senhores
de suas mães até completarem oito anos de idade. Depois desse
período o tutor poderia requerer uma indenização pecuniária de
600$000 réis pelas despesas com os cuidados, ou então entregá-los à
tutela estatal. Caso os senhores não desejassem a companhia dos
filhos de suas escravas, poderia entregá-los a associações
governamentais destinadas ao cuidado e educação desses menores.169
166
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 12. 167
FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 100. 168
Esse número é polêmico, contudo: segundo MELLO, Metamorfoses da riqueza: São Paulo, 1845-
1895. São Paulo: HUCITEC, 1990 (Coleção Estudos Históricos), o auge da força produtiva estava entre
15 a 35 anos, enquanto que a idade menos afeita ao trabalho os menores de 15 anos e os maiores de 60
anos. 169
PERUSSATTO, Melina Kleinert. “Crias de ventre livre: tutelas de ingênuos em um município Sul-
Rio-Grandense na última década do escravismo”. X Encontro Estadual de História, Santa Maria-RS,
2010.
63
Essa lei, que a princípio parece ter um caráter humanitário guardava, não
obstante, intenções ligadas ao poder ou controle desses filhos. Primeiro, a partir de um
prejulgamento segundo o qual as mães escravas daquelas crianças livres eram
“incapazes de educarem e zelarem por seus filhos”, uma vez que lhes faltavam aditivos
maternos, valores que só as mães brancas e livres possuíam; segundo, estando implícita
a intenção de regularizar o trabalho infantil. Para Melina Kleinert Perussatto, “Isso
ajuda a explicar a rapidez com que os diversos pedidos de tutela que encontramos foram
concedidos, sempre enfatizando os atributos positivos do solicitante”. Ajuda-nos
igualmente a imaginar o quanto essas crianças “ingênuas” vão procurar “entender e dar
significado à liberdade em que viviam”, diante de um contexto em que suas mães eram
cativas.170
O que pode explicar o elevado número de crianças negociadas nas Umburanas
talvez tenha sido o uso de uma estratégia traçada pelos pequenos proprietários com
parcos recursos e uma vontade imensa de se inserir no sistema. As crianças eram, no
geral, muito mais baratas que os escravos em idade adulta e no auge da força física,
como vimos.
170
PERUSSATTO, “Crias de ventre livre”, p. 12.
64
Gráfico IV: Percentual da Idade dos Escravos nas Negociações
Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livros de nota do Tabelionato. Série-
Registros de compra e venda de escravos
A partir do gráfico acima podemos notar que os escravos com idade superior a
40 anos sempre tiveram um modesto percentual nas negociações de compra e venda em
Umburanas, certamente em decorrência daquilo que já falamos anteriormente, ou seja,
que esta faixa corresponde a escravos cuja força física já estava desgastada pelo tempo.
Além disso, há de se levar em conta que a vulnerabilidade do corpo desses escravos
propensos para o surgimento de doenças (embora não tenhamos dados do índice de
óbitos), constituindo, assim, em sério risco às negociações. Os escravos na faixa etária
de 13 a 39 anos, que correspondem àqueles que estavam no auge da força de trabalho,
sempre tiveram expressões significativas no processo de compra e venda; apenas no
período de 1880-1887 igualaram-se aos mancípios com idades até 12 anos. Em termo de
análise da curvatura do gráfico, é significativo o fato de que os escravos negociados até
12 anos foram crescendo sucessivamente, atingindo um elevado nível entre 1880-1887.
Outra curiosidade observada foi que, nas décadas de 70 e 80, verificamos no
número de adultos, em comparação com o número de crianças e idosos – ou seja,
pessoas fora da faixa ideal da força de trabalho – uma equivalência nas negociações.
Assim, de 1870 a 1879 houve, segundo os registros de compra e venda de escravos,
55% de transações com escravos entre 13 a 39 anos; na década de 70 este número caiu
para 51,02%. Supomos que a falta de recursos financeiros por parte dos pequenos
0
5
10
15
20
25
30
1850 - 1859 1860 - 1869 1870 - 1879 1880 - 1887
Até 12 anos
13-39
Acima de 40
65
proprietários das Umburanas tenha contribuído para esta redução da compra de
mancípios adolescentes ou adultos. Veremos no próximo tópico a questão do preço
médio dos escravos nas negociações.
Outra análise cabe ainda ser feita aqui; é quanto à média de escravos negociados
segundo o gênero. Temos abaixo o seguinte gráfico:
Gráfico V: Percentual de escravos negociados por década e gênero (1850-1888)
Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC) Registro de compra e
venda escravos.
Quanto ao gênero, o universo dos escravos listados compunha-se de 51,3% de
homens e 48,6% de mulheres. Isto reflete a ideia de que nas transações comerciais o
contingente de homens não era muito superior ao de mulheres negociadas. Os números
apontam para uma distribuição equilibrada entre eles, o que nos faz supor que a lida
diária era praticamente repartida sem distinção de gêneros. Isso também sinaliza para a
existência de proprietários de pequeno porte, que não tinham a condição econômica
necessária para comprar escravos especificamente para um ou outro trabalho – por
exemplo, escravos homens para o serviço de lavoura. Na falta de um poder aquisitivo
maior, ambos os sexos deveriam ser utilizados, seja para qual serviço fosse necessário.
0
5
10
15
20
25
30
1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888
Homens
MULHERES
66
Podemos pensar, portanto, que não havia uma rigorosa distribuição de papéis
atrelados às noções de masculinidade ou feminilidade entre os escravos implicando, tal
distinção, numa repartição de tarefas. Como chegou a escrever Flaviane Nascimento,
trabalhando sobre “Quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas (Feira de
Santana, 1850-1888)”, “Distanciadas da imagem de mulher frágil – existente apenas no
ciclo restrito das classes dominantes ocidentais -, as mulheres da África no Brasil foram
submetidas a “todo serviço”: da roça, da casa ou nas atividades do ganho, eram sempre
elas a realizá-los”. Dessa forma, trabalhando com essa realidade de Feira de Santana, a
autora vai tentar realçar a questão das experiências das mulheres escravizadas, no
sentido de que o seu cotidiano foi marcado por uma “área de improvisação de papéis
informais” onde elas “vivenciaram experiências diversas, nos mais diferentes espaços
aos quais foram relegadas”. 171
Apesar de não haver um papel feminino demarcado, podemos levar em conta
que os serviços domésticos deviam ser prioritariamente atribuídos às mulheres (às
escravas, quando não à patroa pobre), o que era de certa forma um privilégio, se o
compararmos com o difícil serviço de lavoura. Diga-se de passagem, porém,
constituindo um privilégio, de fato, a depender do “nível de fortuna de seu proprietário e
o tipo de trabalho que realize na casa do que propriamente pelo fato de ser um escravo
doméstico”.172
Não obstante, a existência dos afazeres domésticos atribuídos às mulheres é uma
inferência apenas plausível, uma vez que nos registros cartoriais nas Umburanas, não há
sequer uma menção a algum escravo comprado com o fito de realizar atividades
domésticas, mas serviços ligados ao trato com a terra, quer dizer, à plantação. Talvez
pudéssemos afirmar com mais segurança que a mulher escrava tinha uma qualidade a
mais do que o escravizado homem: embora geralmente não possuidora da mesma força
física ou “resistência”, destacava-se dos homens pela versatilidade.
Assim, é plausível pensar que os serviços da mulher escrava tinham a ver,
primeiro, com a implementação dos labores diários; porém, nada nos leva a
desconsiderar que elas pudessem ser utilizadas, também, para afazeres domésticos, a
depender da necessidade ou da vontade do seu senhor (a). Essa função versátil das
mulheres era ainda interessante na medida em que, para os padrões produtivos das
Umburanas, a policultura não necessitava de braços tão fortes assim, caso fizéssemos
171
NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. “E as mulheres d Terra de Lucas?”, p. 30-31. 172
OLIVEIRA, 1988, p.12.
67
uma comparação com o cultivo da cana, por exemplo. Por fim, como veremos no tópico
posterior, a compra de mulheres e homens nas Umburanas atingiu patamares bastante
próximos, revelando uma preferência pelo sexo masculino em menor monta do que a
verificada nas regiões da grande lavoura de exportação.
2.4 Preços dos escravos e seus condicionantes
O preço do escravo é um jogo de variáveis,
algumas das quais totalmente alheias ao próprio
escravo e outras, ao contrário, intimamente
ligados a sua pessoa. O preço do escravo
depende da concorrência, da distância entre o
porto de embarque e o ponto de venda, da
especulação, da conjuntura econômica, depende
ainda da sua idade, sexo, saúde e de sua
qualificação profissional.173
Algo que devemos atentar agora é quanto ao preço dos escravos que, como tal,
obedeceram a uma série de variáveis. Para entendermos devidamente a variação dos
preços dos escravos nas Umburanas, juntamente com os seus fatores condicionantes,
procedemos uma breve comparação com a pesquisa de Kátia Mattoso, tomando por
foco a cidade do Salvador, e o estudo de Cleber Freire, aportando em Feira de Santana.
Com isso poderemos demarcar os pontos comuns e distintos dos dados obtidos nas
Umburanas em relação tanto à capital da Bahia quanto em relação a uma cidade
bastante próxima das Umburanas. Sobre a primeira autora ela pretendeu abranger os
anos de 1750 a 1888, mas o que nos interessa é o período compreendido entre 1850 a
1888. Cabe ainda realçar que sua tabela levou em conta a comparação entre a variação
dos preços dos escravos e dos preços do açúcar e do café na Bahia em réis; e que, na
análise da autora, “afere-se bem a progressão dos preços e, sobretudo, o golpe da
inflação contemporânea à extinção definitiva do tráfico negreiro”.174
173
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, 78. 174
Idem, p. 95.
68
Escravos Açúcar Café
Preço Índice
(médio)
Preço Índice
(arroba)
Preço Índice
(arroba)
1850
500 000 285,7
2 685 215,6
3 975 319,2
1860 650 000 357,1 6 675 536,1 6 735 341,4
1870 650 000 357,1 6 510 522,9 6 030 484,3
1880 450 000 257,1 5 835 468,6 7 220 579,9
Tabela IV: Variação dos Preços dos Escravos e dos Preços do Açúcar e do Café na Bahia
em Réis
Fonte: “Para os preços dos escravos: dados coletados nos inventários de heranças APB, seção
judiciária, 1740-1890; para os preços do açúcar e do café: dados coligidos nas contas do
hospital da Santa Casa de Misericórdia, Bahia, 1750-1890”, in MATTOSO, 2003, p. 95.
Julgamos interessante trazer alguns dados da pesquisa de Luiz Cleber Freire
para a região de Feira de Santana. A constatação do autor foi de que nos “decênios 1850
e 1860, os preços dos escravos homens e mulheres se aproximaram, ocorrendo, a partir
da década de 1870, um distanciamento nesses preços entre os gêneros”, fato explicado,
talvez, pela “maior procura por mão-de-obra masculina e maior oferta de braços
femininos para o trabalho”.175
Em termos de valores, eis os resultados obtidos por
Freire:
Na primeira década, a média geral de preços entre homens e mulheres
foi de 603$258 réis. Na seguinte, 1860-9, os preços médios
alcançaram o seu ponto máximo: 790$897 réis para os homens e
733$333 réis para as mulheres. No intervalo de 1870-9 a média
encontrada para homens foi de 745$827 réis e 553$929 réis para
mulheres e, para os anos 1880-8 a média foi de 589$428 réis e
382$031 réis, respectivamente, para homens e mulheres.176
Quanto aos dados colhidos em relação ao preço dos escravos em Umburanas é
importante destacar que quando as vendas eram em conjunto, em bloco, não ficou
175
FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 103. 176
Ibidem, p. 103.
69
especificado nos registros o preço individual de cada cativo a ser negociado, ficando
apenas o total dos preços dos escravos em conjunto. Dessa forma, utilizamos a média
aritmética de preços dos escravos em relação à quantidade de cativos negociados.
Enfim, foram encontrados os seguintes dados nos registros das Umburanas acerca do
período compreendido entre 1850 e 1888:
Gráfico VI: Preço Médio em Réis dos Escravos das Umburanas por Gênero:
Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC) Registro de compra e venda
escravos.
A partir do gráfico acima percebemos que não houve uma significativa
disparidade entre os preços dos escravos dos gêneros masculinos e femininos nas
negociações em Umburanas. Assim, se constatamos que o preço médio dos homens foi
maior do que o das mulheres, e em todas as décadas, verificamos, entretanto, que a
diferença entre eles foi mínima. E esta diferença se mantém, seja na década de pico das
vendas, 1860, onde o preço médio atingiu 770$000 (setecentos e setenta mil réis) para
os homens e 735$000 (setecentos e trinta e cinco mil réis) para as mulheres, seja na
década de 1880, quando o volume das negociações atingiu o seu menor patamar:
400$000 (quatrocentos mil réis) para homens e 390$000 (trezentos e noventa mil réis)
para as mulheres.
Procedendo agora a uma comparação com a tabela III de Kátia Mattoso, e com
os dados colhidos da pesquisa de Freire, existe uma clara diferença entre os preços dos
0
100000
200000
300000
400000
500000
600000
700000
800000
900000
1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1887
HOMENS
MULHERES
70
escravos vendidos em Salvador, em Feira de Santana e nas Umburanas. Nas décadas de
50, 60, 70 e 80 o preço médio dos escravos em réis foi menor nesta localidade do que na
capital baiana e na própria região de Feira de Santana, corroborando com aquilo que já
tínhamos observado neste trabalho. Em primeiro lugar, os escravos da zona rural eram
procurados com frequência para comercialização porque tinham preços mais acessíveis
do que os da capital da província; em segundo lugar, concomitantemente, no geral
deveriam ser escravos menos especializados que os de Salvador e Feira de Santana.
A inflação brasileira vai se estender das décadas de 1850 a 1880,
proporcionando variações de preços dos escravos, mas, a partir da década de1880, seu
preço médio baixará sensivelmente, como escrevemos mais acima, reflexo da “gradual
substituição da mão de obra servil pelo braço livre (...). Essa mudança opera-se,
contudo, de maneira bastante lenta e somente se torna sensível por volta de 1890”.177
A
tabela acima aponta para outro fenômeno interessante; ela mostra que a escravidão se
prolongou por muito tempo nas Umburanas, evidenciando, ao invés, os vários lucros e
interesses que estavam por trás dessa permanência. Às vésperas do fim da escravidão, na
década de oitenta, o traballho escravo continuava o com muito vigor e nem demonstrava,
em números, a decadência do sistema escravista
Caracterizadas as Umburanas, sua formação e os seus circuitos comerciais,
devemos agora nos voltar para questões ligadas à identificação das tensões vivenciadas
pelos mancípios, sua liberdade, suas formas de luta ou resistência e, portanto,
aproximarmo-nos ainda mais do seu cotidiano. Esta aproximação se fará a partir das
cartas de alforria e da memória dos quilombolas. Elas evidenciarão outro aspecto vital
do escravismo brasileiro afetado pelo fim do tráfico africano, qual seja a política de
alforrias, de fundamental importância para o funcionamento do sistema e, ao mesmo
tempo, uma das suas fontes de tensão e contradição.
177
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 93-94.
71
3.0- Capítulo III – Ser escravo nas Umburanas: escravidão e
liberdade.
3.1 Os Caminhos da Liberdade nas Umburanas
A escravidão era uma rede, não apenas
e nem mesmo de relações de trabalho
(...), mas antes uma rede de relações
sociais entre pessoas de condições
legais, recursos, mobilidade, instrução e
poder radicalmente distintos.178
Conquistar a liberdade era, obviamente, um desejo das pessoas que vivenciaram
a experiência da escravidão. Na historiografia muito já se discutiu sobre esse tema,179
e
tais análises certamente trouxeram uma contribuição significativa, não apenas para a
compreensão da alforria no Brasil, como nas Américas. Recorremos a alguns desses
trabalhos relacionando-os, na medida do possível, com a dinâmica da liberdade nas
Umburanas, embora nosso intuito não tenha ido à direção de uma demografia da
liberdade nesta localidade.180
O nosso objetivo precípuo foi conhecer algumas formas
adotadas no sentido da conquista da liberdade, como se deu esse processo, quais as suas
características e estratégias, e preferindo realizar uma intervenção qualitativa das fontes
analisadas.
Dessa forma, nosso estudo esteve atento ao alerta de Carlo Ginzburg:
geralmente há dificuldades em se compreender os problemas do cotidiano por meio da
investigação quantitativa, que poderia resultar em uma história homogeneizada. Por
178
GRANHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres na sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 222. 179
Citamos aqui algumas obras fundamentais: EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em
Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989; REIS, João (org). “Escravidão e invenção da
liberdade: estudo sobre o negro no Brasil”. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPQ, 1988; BELLINI,
Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”. In REIS, João (org).
“Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no Brasil”. São Paulo: Brasiliense; Brasília:
CNPQ, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade; ALMEIDA, Kátia Lorena. “Da prática
costumeira à alforria legal”; PIROUPO, Sharyse. “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”. 180
Até por que não encontramos fontes suficientes para isso: das cartas de liberdade coletados nas
Umburanas, só encontramos um número relativamente pequeno, totalizando 32 cartas.
72
isso, deve-se atentar para os possíveis vestígios, sinais ou indícios que possam revelar
aspectos de uma da sociedade, não apreendidos em modelos formais.181
Existem muitas e variadas formas de os escravos alcançarem a liberdade. As
quatro formas principais encontradas nas Umburanas para se obtê-la foram: alforrias
doadas gratuitas incondicionais, doadas gratuitas condicionais, compradas onerosas
incondicionais e compradas onerosas condicionais. Fizemos ainda breves menções às
alforrias compradas por terceiros e às alforrias coletivas, uma vez que foram raros esses
casos nas Umburanas, não chegando a se constituir como forma básica relativamente
aos processos de liberdade; por fim, abordamos a fuga, como outra opção para se livrar
do cativeiro.
Acerca da noção geral de alforria é preciso fazer aqui algumas observações sobre
sua natureza, conceito e dinâmica. A alforria era um “documento jurídico [forma parte
do conjunto das escrituras notariais] pelo qual o senhor transferia para o escravo a posse
e o título de propriedade que tinha sobre ele”. Kátia Lorena Almeida chegou a
esclarecer seus procedimentos legais. Segundo a autora,
Para ser reconhecida, a alforria devia ser oficializada: o senhor, ou seu
procurador, se dirigia ao cartório e ditava os termos da carta ao
escrivão, ou entregava uma cópia para que ele a registrasse no livro de
notas do tabelião. O documento era datado e assinado por testemunhas
e pelo tabelião, e o senhor pagava os selos, legitimando o ato. Em
casos raros, o escravo também solicitava o registro de sua carta, como
o liberto Antonio, pardo, alforriado em verba de testamento.182
A relação entre o sistema judiciário e as alforrias guardava algumas outras
particularidades. Antes da Lei do Ventre Livre, em 1871, tratava-se de uma prática
privada, fruto da vontade e benevolência do senhor. Assim, alforria do ponto de vista
efetivo, significava “galgar um caminho inseguro, aberto a diversas possibilidades”,183
no horizonte sempre impreciso das negociações. Era uma espécie de acordo entre o
senhor e o escravo. Essa prática privada não tinha, pois, a interferência direta do Estado,
salvo em situações em que o processo de concessão não chegava a bom termo. Aí o
181
GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais:
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 171. 182
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Da prática costumeira à alforria legal”. Este artigo é uma versão
modificada do segundo capítulo da dissertação “Alforrias em Rio de Contas, Bahia, Século XIX”,
defendida no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia.
http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/view/227/245, p. 143. 183
Ibidem, p. 164.
73
mancípio podia recorrer à instituição estatal, solicitando a sua intervenção. Para
Cunha,184
antes da referida Lei esses casos ocorriam com certa freqüência. E os
“advogados e juízes que militavam em prol da liberdade recorriam a argumentos
baseados no Direito Natural, nas Ordenações Filipinas e no Código Romano, para
respaldarem o que se defendia nas normas costumeiras”.185
Em virtude disso, não havendo lei que tratasse do pecúlio, as decisões eram
baseadas na jurisprudência, sabendo-se que “Geralmente, a carta de alforria só era
registrada em cartório após sua quitação”.186
Não obstante, isso não impediu que muitos
escravos impetrassem ações judiciais para questionar o injusto cativeiro e a busca da sua
tão esperada liberdade. As tensões existentes entre os escravos e senhores deixavam de
ser apenas um campo da vida privada, rusgas do cotidiano, e atingiram a esfera pública.
Finalmente, havia ainda outro papel ativo do escravo, quando ele tentava “conduzir e
convencer seu senhor para obter um resultado que lhes fosse favorável”.187
Marcelo Badaró Mattos, por outro viés, traz uma interpretação bem interessante
da dinâmica escravista após a instauração da Lei de 1871. Para ele, sobretudo a partir
desta data, os processos de luta pela liberdade através das alforrias, com a intervenção
do Estado, não diziam respeito a situações em que este órgão estatal visasse apenas
intervir como simples mediador entre particulares: os escravos e os senhores. Até
porque o costume do pecúlio e compra de alforria “já eram antes disseminados”. Então,
qual fora de fato a necessidade e papel do Estado? Para Mattos, o que estava em causa
mesmo naquele “Estado senhorial” era um processo de luta de classes, a saber, a
necessidade daquela instância governamental de, através do “canal da alforria, tentar
aliviar a tensão social e o mal maior (as revoltas em massa, das quais os senhores
tinham efetivamente grande medo)”.188
Algumas cartas de alforria das Umburanas são mais sucintas e diretas do que
outras, apesar de haver nelas um formato geral, tanto no padrão da linguagem quanto
nos dados fornecidos (nome do escravo, cor, idade, estado civil, nacionalidade, motivo e
condição da alforria). É uma fonte primorosa, apesar de haver algumas limitações que
184
CUNHA, M. C. da. “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no
Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 123-144. 185
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Da prática costumeira à alforria legal”, p. 164. 186
Ibidem, p. 164. 187
Ibidem, p. 164. 188
Cf. MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: Experiências comuns na formação da classe
trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Tempo, 2008, p. 153. É Válido salientar que Sidney Chalhoub,
em Visões da liberdade (1990), aprofunda e discute este debate em torno da Lei de 1871.
74
impossibilitam ao historiador muito da compreensão das relações complexas entre
senhor e escravo. Sharize Amaral nos alerta:
A carta de alforria era um documento privado, através do qual o
senhor concedia a liberdade ao seu escravo, podendo ter sido redigida
pelo próprio senhor ou representante legal (normalmente quando o
proprietário do escravo não sabia ler e escrever), mediante duas
testemunhas. O original costumava ficar de posse do liberto, como
prova de sua nova condição jurídica, e era registrado na íntegra em
cartório, como garantia contra sua perda e alguma tentativa de
reescravização. No caso de mudança de município, o liberto devia
registrar novamente a carta no cartório mais próximo.189
No nosso caso foram pesquisadas as cartas registradas entre os anos de 1866 a
1888, que estão nos livros notariais no Cartório Publico de Antonio Cardoso, nos livros
de número 8 e 10. Não foram encontradas cartas de alforria nos livros de número 6 e 7,
ou seja, não verificamos cartas datadas no período compreendido entre 1850 e 1865. A
fim de melhor visualizar as informações fornecidas pela fonte, elas foram organizadas
em uma planilha com as seguintes informações: nome do senhor, número de escravos
alforriados, nome do escravo alforriado, etnia, idade, forma da alforria, condição da
alforria (caso exista), valor (se fosse o caso de alforrias onerosas), data da carta, local,
data de registro e a justificativa.
Nas Umburanas, onde só encontramos cartas de alforria registradas em cartório
nos livros notariais, tivemos um predominio das cartas gratuitas condicionadas a
serviços. Em segundo e terceiro lugares, respectivamente, com proporções bem
próximas, vêm as compradas onerosas incondicionais e as gratuitas incondicionais,
onde nesta, em sua maioria, aparecem o ato de belevolência do senhor, legitimando “os
bons serviços prestados” pelos seus cativos. Em último lugar aparecem as alforrias
compradas onerosas condicionais. O gráfico abaixo mostra a disposição dessas
informações. Em seguida abordaremos cada um dos tipos de alforria apresentados:
189
AMARAL, Sharyse Piroupo do. “Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe”, p. 190. Grifos
nossos.
75
Gráfico VII: Percentual das Modalidades de Alforria
Fonte: Livro de Registros Diversos, série Cartas de Liberdade do Cartório Público de Antonio
Cardoso (1866-1888).
3.1.1 A Liberdade “sem preço”: alforrias gratuitas incondicionais
Em 1872, Teodora, parda, 27 anos recebeu a carta da liberdade, sem qualquer
ônus, de José Alves Barreto, pelos bons serviços prestados.190
Nas Umburanas houve
alguns casos de alforria gratuita, sem restrições, como o caso de Teodora. A alforria
gratuita, porém, jamais pode ser entendida como um mero ato de generosidade. Não
podemos nos furtar do ato comercial e político que estava na base dessa concessão.
Existem poucos estudos no Brasil que trabalham a fundo com os porquês de uma
concessão sem ônus.191
O que está por trás de uma alforria de escravos produtivos e no
auge da força física, como no caso acima da escrava Teodora?
190
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso. Série cartas de liberdade, Livro
8, fl. 7, 1872. 191
Muito já se falou que as alforrias gratuitas favoreciam principalmente os escravos “ improdutivos”. Na
visão de Kátia Mattoso, essa liberdade contemplava o “escravo envelhecido, sem oficio, trabalhador
braçal do campo, que se encontrará sem morada, repentinamente livre”. Ou então terá a ver com o
“escravo estropiado, doente, sofredor” (MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 168). Muitos outros
estudiosos da escravidão seguiram essa vertente, de que as alforrias gratuitas contemplavam escravos
improdutivos. Não obstante, verificamos que essa não foi uma realidade encontrada nas Umburanas, pois
as manumissões gratuitas favoreceram escravos jovens com idade de 14 a 32 anos de idade.
47%
27%
23%
3%
PERCENTUAL DE ALFORRIA
GRATUITAS CONDICIONADAS COMPRADAS ONEROSAS INCONDICIONAIS
GRATUITAS INCONDICIONAIS COMPRADAS ONEROSAS CONDICIONAIS
76
Em Trabalho sobre “La manumisión em Cuba”, Aisnara Pereira e Maria Fuentes
trazem uma pesquisa de folêgo e bastante enriquecedora do processo de alforrias em
Cuba no século XIX que, certamente, não ficou restrita àquela realidade, mas acrescenta
bastante para a compreensão da América escravista em sua totalidade. Assim, escondido
sob uma liberdade concedida, a princípio um ato de “caridade” havia, entretanto, uma
intencionalidade bem diversa. O discurso senhorial tinha uma clara intenção de ocultar a
iniciativa do liberto de ele mesmo buscar a sua liberdade para, concedendo-a, tentar
forjar na sua consciência uma posição de subalternidade e agradecimento. Com isso o
senhor tentava consolidar um mecanismo de clientelismo, forjando relações de
“dominação e subordinação”.192
Em vista disso, cobrava do alforriado fidelidade e
gratidão.
Díaz e Fuentes chegam a mostrar, todavia, que nem sempre esse processo de
“clientelismo” obtinha sucesso; que não era uma condição garantida a manutenção da
“tutela” do senhor em relação ao escravo alforriado, até porque estavam em jogo
interesses muitas vezes conflitantes. E, apesar de mostrarem em suas pesquisas que os
libertos adultos tendiam a permanecer mais tempo morando nas proximidades da
propriedade do senhor que o libertou, não se tinha como calcular “quanto tempo os
senhores „desfrutariam‟ do agradecimento do liberto”.193
Isto muitas vezes solapava a
pretensa ideia de uma genuina fidelidade dos ex-cativos e caía por terra a idéia de que
as “liberdades graciosas” sempre poderiam lhes render muitos proveitos. Deve-se isso,
principalmente, à complexidade nas relações senhor-escravo, não se podendo exigir um
padrão de comportamento dos ex-mancípios, como se todos se comportassem da mesma
maneira. Em geral, os interesses eram conflitantes, e os libertos escolhiam como lhes
conviessem a melhor maneira de fazer valer sua alforria.
La manumisión en Cuba fue – como em todas las regiones de la
diáspora africana en las Américas – la culminación de una lucha para
vencer la resistencia de los amos, em medio de cual muchos tuvieron
que penetrar en las intricadas redes del poder y de las leys , ceder y
exigir, y lo fundamental: entender para qué se quería ser libre.194
192
Cf. DÍAZ, Aisnara Perera; FUENTES, Maria de los Ángeles Meriño. Para librarse de lazos, antes
buena família que Buenos brazos. Apuntes sobre la manumisión em Cuba. Santiago de Cuba: Editorial
Oriente, 2009, p. 218. 193
Ibidem, p. 219. 194
Ibidem, p.15, grifo nosso.
77
Kátia Lorena Almeida, trabalhando com as Alforrias Testamentárias em Rio de
Contas,195
analisa que, do ponto de vista do senhor, as “alforrias gratuitas não refletiam
somente sentimentos de afeto e gratidão entre as partes, mas também uma forma de
domínio sobre o escravo, mediante uma política de incentivos”.196
Ela aponta em seus
estudos que alguns senhores em seus testamentos demonstravam tal discriminação
quando certos escravos eram mais beneficiados do que outros, ou seja, a autora,
analisando os testamentos do século XIX, percebeu que os senhores se utilizavam do
documento para uma política de recompensa ou punição.
Para Peter Eisenberg “A alforria nunca foi gratuita. Mesmo sem ter de pagar
dinheiro ou prestar serviços para receber a alforria, o indivíduo, durante a sua vida de
escravo, já entregava valores para o senhor, sem que tivesse havido uma contrapartida
de valores”.197
Walter Fraga Filho nota que, em fins do século XIX, o importante das
concessões gratuitas era a publicização do seu ato, ou seja, em um momento em que a
escravidão já se mostrava moribunda, os senhores se aproveitavam da situação e
construíam uma autopromoção da sua imagem. Assim, o Jornal O Guarani, em 1884,
noticiou como um gesto de “verdadeira filantropia”, ocorrido no Engenho Vitória, o ato
do senhor Francisco Muniz Barreto, que discursou diante de diversas pessoas,
concedendo alforria gratuita ao escravo Luis, “Carapina Habilíssimo”.198
Esses atos se
tornaram freqüentes e constituíam verdadeiros “espetáculos solenes”, que chamavam a
atenção de todos os escravizados. O “ato de bondade” do senhor tentava limpar a
mancha divulgada pela campanha abolicionista.199
195
Ver mais sobre Alforrias testamentárias em Eduardo França Paiva, Escravos e Libertos nas Minas
Gerais do Século XVIII: estratégia de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995;
e, sobretudo, Adauto Damásio, “Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do
século XIX” (Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1995). Existe também o trabalho de Lizandra Ferraz,
a partir do cruzamento dos testamentos, inventários, verbas testamentárias e escrituras notariais de carta
de alforria. Ela faz uma pesquisa interessante sobre a prática da alforria em Campinas no século XIX. Ver
FERRAZ, Lizandra Meyer. “Testamentos, Alforrias e Liberdade: Campinas, século XIX”. Monografia de
graduação de curso. Campinas: UNICAMP, 2006. Esses autores demonstram as várias possibilidades de
se estudar a alforria para além da própria carta registrada em cartório. 196
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Alforrias em Rio de Contas - 1800-1850”. 4º encontro de
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba, 2009. 197
EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989,
p. 210. 198
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-
1910). Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 109. 199
Em termos de movimentos sociais, porém, o mais significativo na segunda metade do século XIX foi,
certamente, o abolicionismo. Tradicionalmente caracterizado como um movimento de homens livres,
quase sempre brancos, letrados, que no parlamento e nas ruas batalharam por uma legislação que acabasse
com a escravidão no país, o abolicionismo vem sendo revisitado por estudos que tendem a dar maior
atenção às ligações entre os abolicionistas e a luta dos escravos contra a escravidão (MATTOS,
Escravizados e livres, p. 150).
78
Os jornais deram grande publicidade a esses atos como prova de
desprendimento e de espírito humanitário. Na verdade, era uma forma
de antecipar-se á decisão do império de abolir o cativeiro. Era também
um meio de conter a crescente insatisfação da população cativa e
evitar distúrbios na produção. A „emancipação concedida‟ no apagar
das luzes do cativeiro foi uma tentativa de arrancar o respeito e a
antiga gratidão „dos antigos escravos‟.200
Consideramos oportuno lembrar que esse jogo de sedução fez parte de uma
política paternalista que, como bem analisou Genovese, não podia ser entendida apenas
pelo viés do senhor; diferentemente da concepção de paternalismo de Freire, que
desconsiderava como o escravo interpretava e agia, o importante no processo era a
lógica senhorial, voltada para as pseudo-benevolências e algumas amenidades. Para
Genovese o paternalismo:
(...) surgiu da necessidade de disciplinar e justificar,
moralmente, um sistema de exploração. Estimulava a
bondade e a afeição, mas também, simultaneamente, a
crueldade e o ódio. A distinção racial entre senhor e
escravo acentuava a tensão inerente a uma ordem social
injusta.201
Dessa forma, assim como o senhor se utilizava de meios para consolidar os “atos
de benevolência” em uma política paternalista, é preciso destacar que os escravos
também construíam medidas para facilitar essa concessão. Em outras palavras, o fato de
serem gratuitas não implicava que os escravos da referida freguesia fossem menos
astutos, ou que os senhores da região fossem benevolentes demais. É provável que tenha
havido uma relação atuante da parte escrava, e esse “contra-teatro” dos escravos
terminava sendo uma forma eficiente para a obtenção das alforrias; ou seja, mesmo com
a existência de uma ampla gama de mecanismos de dominação, esta não deixou de
conviver com forças opostas e que, ao seu modo, conseguiam seus objetivos em relação
ao domínio sofrido.202
Isso não implica que não tenha existido de alguma forma
200
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 113. 201
GENOVESE, A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Tradução de Maria Inês Rolim e
Donaldosom Magalhães. Brasília: Paz e Terra. 1988, p. 22. 202
Ibidem.
79
relações de afeto ou gratidão das partes envolvidas; ao contrário, a dinâmica escravista
consistiu em mostrar o quão essas relações eram complexas.203
A alforria nunca é uma aventura solitária. Resulta de todo um tecido
de solidariedades múltiplas e entrelaçadas, de mil confabulações,
processos de compensações, promessas feitas e mantidas, preceitos,
até mesmo de conveniência, reflexos e imagens mentais que
constituem, no Brasil da escravidão, o quadro de uma sociedade.204
Por fim, uma modalidade não tão comum de alforrias doadas pelo senhor foi o
das alforrias coletivas. A sua raridade certamente estava atrelada a inúmeros fatores,
geralmente não revelados nos documentos. Um desses podia ser a condição favorável
do senhor, economicamente falando, pois conceder a liberdade a vários cativos ao
mesmo tempo implicava na existência de uma “reserva” escrava para a mão de obra. De
qualquer forma, nas Umburanas só encontramos um caso: a carta datada de 1876, no
qual o senhor Vicente Rodrigues de Oliveira concede a liberdade para “Brígida, parda,
casada [que] gozará da inteira liberdade desta data em diante. Juntamente com Maria,
filha de Firmino e Gregório, pardinho, que me acompanha desde a infância”.205
3.1.2 Alforrias gratuitas condicionais
Peter Eisenberg demonstra que a liberdade do escravo muitas vezes era
condicionada a algumas restrições que, sendo desrespeitadas, poderiam conduzir o
“liberto” novamente à condição jurídica de escravo. A carta regulava um contrato que
estabelecia certas restrições à liberdade do escravo como, por exemplo, uma cláusula de
prestação de serviços: trabalhar por mais alguns anos após a morte do senhor para seus
203
Essa noção de poder como um jogo de forças antagônicas e nunca unilaterais deve se aplicar às
análises sobre o fenômeno das alforrias, e isso numa referência direta ao trabalho de Michel Foucault.
Para este, o poder não é uma substância, algo que existe por si mesmo, mas, essencialmente, uma relação,
que sempre pressupõe uma atuação recíproca das partes envolvidas, mesmo que uma delas (como no caso
do senhor, na relação senhor-escravo) tenha mais influência ou mais força para impor-se. Cf.
FOUCAULT, Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1979. 204
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p.194. 205
Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,
Livro 8, folha 27.
80
familiares.206
Enfim, as cartas gratuitas, condicionadas a serviços, foram as que mais
frequentemente apareceram nos registros das Umburanas totalizando 47% de todas as
cartas analisadas.
De fato, a prestação de serviço apareceu muito nos registros das Umburanas.
Geralmente, a condição imposta era a de que o senhor fosse bem servido enquanto vida
tivesse e, em alguns casos, obrigação que se estendia para o seu cônjuge, filho e até
neto. Caso a condição da liberdade não fosse cumprida em algum momento o senhor
tinha a possibilidade de revogar a carta. Temos o caso da alforria “sob condição de
servir” de Maria Joaquina da Conceição: “Liberto a minha escrava Hilária, parda, 21
anos (mais ou menos) com a condição de ajuda na criação de meos netos.”207
Em 19 de
março de 1870 o escravo crioulo Feliz recebeu sua carta de liberdade de sua senhora
Clemência Maria de Jesus, de forma gratuita, mas com a condição de acompanhá-la
“durante sua vida, prestando-lhe todos os serviços e obediência”.208
Outro exemplo foi o
caso de Luzia, preta, liberta pelos “bons serviços que me tem prestado e com a condição
de me servir e acompanhar, como sempre tem feito, depois de meo [sic]
fallecimento”.209
Enfim, muitos foram os casos dessas alforrias com medidas
reguladoras.
Consideramos esse tipo de concessão como um ato extremamente perverso, pois
engessava o escravo diante da promessa de uma liberdade vindoura que poderia,
obviamente, durar anos a fio. Não é excessivo imaginarmos a frustração dos sonhos dos
escravos de uma liberdade prometida, frustrada dia após dia e mantida através do
controle, pois o escravo sob alforria condicional tenderia para uma maior “disciplina”,
já que estava em jogo a sua liberdade e, aos seus olhos, ela nunca esteve tão próxima.
Maria de Fátima Pires destaca uma tendência interessante que permeou essas
cartas gratuitas condicionais. A autora constata que, a partir da década de 1870,
momento próximo do fim da escravidão, a conjuntura então emergente precisava se
valer de algumas estratégias relativas às alforrias dos escravos. Uma delas foi delimitar
os prazos para a sua concessão, uma vez que “Utilizar a carta como expediente de
206
EISENBERG, Ficando livre, p. 210. 207
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro 8,
folha 20, 1878. 208
Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,
Livro 8, folha 23,1878. 209
Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,
Livro 10, folha 5, 1883.
81
controle, sem delimitar um período para a sua efetivação, talvez não se revelasse uma
estratégia tão eficiente”.210
Um destaque nessas concessões gratuitas condicionais foi a presença marcante
das crianças nesse processo. Pires destaca o fato de elas serem „crias‟ da casa, revelando
uma espécie de „amor‟ daqueles em relação a elas, bem como a existência de „laços
familiares e de amizade‟. Não obstante essas menções de carinho e apreço constantes às
vezes nos registros, a autora faz observar algo no mínimo paradoxal, pois em muitos
casos não se “dispensavam a manutenção da condição de escravo para as crianças, que
deveriam aguardar até o fim da vida de seus senhores”.211
3.1.3 Alforrias compradas: onerosas incondicionais e condicionais
Muitas “barreiras” se interpuseram entre o escravo e o seu anseio para a
conquista da liberdade. Como bem disse Kátia Mattoso, “a mais conhecida delas é o
preço a ser pago”.212
Em março de 1873, nas Umburanas, o tenente Manoel Alves de
Assunção desembolsou 600$000 (seiscentos mil reis) como pagamento ao senhor David
Dias pelo escravo nominado Ricardo, conhecido como zula , 35 anos (mais ou menos),
solteiro e do serviço da lavoura.213
No decorrer de 3 anos, em junho de 1876, Ricardo
aparece nos registros comprando sua liberdade do senhor Manoel por 400$000
(quatrocentos mil reis).214
No cruzamento do registro de compra e venda com essa carta
de alforria fica a questão: como o escravo Ricardo zula conseguiu reunir o pecúlio para
a compra da sua liberdade? O que houve para a desvalorização do preço de Ricardo?
As alforrias onerosas aconteciam quando o escravo desembolsava “valores em
moeda sonante, ouro ou papel”, a fim de obter o documento de liberdade.215
Para a
autora, havia, na verdade, um acordo verbal na obtenção do preço a ser negociado entre
senhor e escravo, uma vez que boa parte das cartas de alforria registraram o fato de que
“o preço foi decidido pelas duas partes‟”; não obstante, esse contrato bilateral baseava-
210
PIRES, Fios da vida, p. 79. 211
Ibidem, p. 76. 212
A lei de 1871 estabelecia em seu artigo quarto : “É permitido ao escravo a formação de um pecúlio
com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver
do seu trabalho e economias”. Cf. Colleção das Leis do Império do Brasil. 213
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, fl.28. 1873 214
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso fl.23. 1876. 215
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 180.
82
se em uma avaliação feita pelo senhor, o qual estava encarregado de atribuir um valor
que era justo. Sharize Amaral destaca, porém:
Não podemos deixar de lado a hipótese de que estes escravos
aceitavam o preço da avaliação sem maiores barganhas por temor do
convívio com os novos senhores ou ainda pela possibilidade de
mudança de domicílio decorrentes da partilha da herança entre os
herdeiros. Ainda assim, houve casos em que, após a morte do senhor,
os escravos tentaram se alforriar mediante pagamento do seu valor e,
por alguma artimanha senhorial, não conseguiram.216
Nas Umburanas, apesar de sua área ser predominantemente rural,217
muitos
escravos conseguiam acumular o pecúlio para a compra de suas alforrias. Prova disso
era que o número das alforrias onerosas assumidas pelo próprio escravo foi de 27% do
total dos registros. Isso nos faz supor que nesta região eles tiveram alguma margem de
tempo disponível e de condições de trabalho, em paralelo com os afazeres dos quais eles
eram designados pelos senhores. É preciso, então, saber de que forma um escravo nas
Umburanas poderia juntar “capital” necessário para comprar a sua alforria.
Maria Helena Machado salienta que, no âmbito das atividades desenvolvidas
para obtenção do peculio, havia muitas e variadas formas. As mais usuais estavam
relacionadas a atividades econômicas autônomas ligadas ao plantio em pequenas roças e
sua conexão com o pequeno comércio.218
É o que mostrou também o trabalho de
Flaviane para a realidade de Feira de Santana:
Há, portanto, indícios de que muitas escravizadas estiveram
empregadas ao serviço do ganho na feira, inclusive de que elas
conseguiram, a partir dessa atividade, acumular pecúlio para a compra
de suas respectivas cartas de liberdade. É provável que esse também
fosse o meio usado por Francisca, de nação cabra, que pagou
quinhentos mil réis pela alforria na fazenda São Tiago, em julho de
1865 (...).219
Além disso, ressalta que existiam outras atividades possíveis para a obtenção do
pecúlio: “o artesanato, a pesca, a coleta, a prestação de serviços remunerados [...] e as
216
AMARAL, “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”, p. 167. 217
Contrariando a idéia de que a alforria foi um fenômeno essencialmente urbano. Conheceremos um
pouco mais das alforrias compradas em uma região com índice populacional muito pequeno e distante dos
centros de propulsão comercial. 218
MACHADO, “Em torno da autonomia escrava”, p. 148. 219
NASCIMENTO, “E as mulheres da Terra de Lucas?”, p. 32.
83
gratificações e prêmios embutidos no próprio regime de trabalho das fazendas;
finalmente, e por que não, os furtos e desvios da produção agrícola empreendidos pelos
escravos”.220
Não obstante, a referida autora destaca que não há ainda estudos
suficientes para determinar com precisão “o peso específico de cada uma dessas
atividades no cômputo geral das fazendas [...], faz-se necessário manter-se atento à
manifestação de formas extremamente variadas de atividades econômicas independentes
exercidas pelos escravos”.221
Certo, porém, era o fato de que geralmente o escravo buscava desenvolver
atividades autônomas, com vistas ao pecúlio e, não sendo verificada essa condição, em
casos extremos poderia acontecer o que houve com o senhor Joaquim Guedes de Godói,
assassinado pelo escravo Gregório. Em seu depoimento ele manifesta a raiva pela
“‟ruindade‟” do senhor em não permitir que ele exercesse atividade complementar à sua
lida diária. 222
Havia, portanto, uma necessidade de equacionar a relação tempo-trabalho, dada
a tarefa imperiosa de acúmulo do pecúlio, e isso mostrava outro elemento de iniciativa
do escravo no processo de conquista da sua liberdade:
Manter o controle pessoal sobre determinada parcela de seu próprio
tempo, criando assim, as condições necessárias para reter parte de sua
força de trabalho em usufruto próprio, estabelecendo seu acesso a
alguma modalidade de economia monetária, sendo a roça
independente- plantar e criar- uma das possibilidades aventadas.223
Fraga Filho corrobora esta idéia, inclusive mostrando como os escravos
chegaram a se aproveitar de um contexto de falta de mão-de-obra, utilizando a sua força
de trabalho a serviço de outros senhores, a fim de obter o seu pecúlio. Isso não poderia
dar-se sem que o escravo utilizasse de meios sutis de convencimento relativamente ao
seu senhor:
Para manter uma atividade independente, o escravo precisava
negociar, ou, mediante vários artifícios, arrancar dos senhores
margens maiores de „tempo livre‟. É possível que, nas décadas de
1870 e 1880, diante do problema premente da escassez de mão-de-
220
MACHADO, “Em torno da autonomia escrava”, p. 148. 221
Ibidem, p. 148. 222
Ibidem, p. 148. 223
Ibidem, p. 148.
84
obra cativa, se tenham ampliado as oportunidades de trabalho alugado.
Havia escravos que trabalhavam nas lavouras do senhor, durante os
domingos e feriados; normalmente, eram remunerados com alimentos
(carne e farinha) e dinheiro.224
A percepção dos senhores da importância desse trabalho paralelo dos seus
escravos, realizados principalmente nos domingos e feriados, levou-os a entender que a
negação dessa concessão podia constituir-se como forte meio de punição, para além do
recurso a métodos tradicionais de castigo. Assim, como o demonstrou novamente Fraga
Filho em seus estudos, tal artifício foi uma das formas mais freqüentes de punição
utilizadas pelos senhores e feitores aos escravos “insubordinados”.225
Investigando o alto sertão da Bahia, mais precisamente Rio de Contas, Maria de
Fátima Pires chama a atenção para a importância dos arranjos cotidianos para obtenção
do pecúlio, “constituídos nas redes de vizinhança e parentesco, que ampliaram as
margens de negociações com os senhores locais”.226
A autora destaca ainda que, para
além da necessidade escrava de buscar a compra da sua liberdade, existia a preocupação
de garantir os meios de subsistência já na condição de liberto:
Percebe-se que interessava ao escravo assegurar não somente a sua
liberdade, mas meios de subsistência como forro, garantindo de uma
só vez mecanismos para desempenho de atividades rentáveis,
possivelmente já partilhadas em suas rotinas enquanto cativos.227
.
Havia, portanto, muitas possibilidades de os escravos amealharem alguma renda
que, conforme vimos, servia muitas vezes de poupança para a compra da sua futura
carta de liberdade. Assim, “data de longe” essa prática, como apontaram Spix e Martius
que, ao passarem “pelo alto sertão na primeira década do século XIX, compraram milho
„das roças de escravos‟ para alimentar seus animais durante a viagem”;228
assim como
Lycurgo Santos Filho, quando identificou a posse de éguas de criação por escravos, face
224
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 44. 225
Ibidem, p. 46. 226
PIRES, Fios da vida, p. 83. 227
Ibidem, p. 83, grifo nosso. 228
Ibidem, p. 82.
85
à permissão do seu senhor de que seus mancípios plantassem e criassem no interior da
sua propriedade.229
A possibilidade de cultivar um pedaço de terra e produzir alimentos em seus
pequenos lotes deve ser entendida, igualmente, como uma conquista escrava. Slenes
denomina este processo de “economia interna dos escravos”. Esta se constituiu como
“todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para aumentarem seus recursos, desde
o cultivo de suas roças à caça e, inclusive, o furto.”230
Erivaldo Neves informa que,
“durante e depois da escravidão, senhores cediam nesgas de terra a seus escravos „em
usufruto e a folga semanal para trabalhá-la”.231
Esta conquista, para alguns autores, ia mais além do que um mero ganho
econômico:
O espaço de economia própria servia para que o escravo adquirisse
tabaco, comida de regalo, uma roupinha melhor para mulher e filhos
etc. Mas, no Rio de Janeiro do século XIX, sua motivação principal
parece ter sido o que apontamos como válvula de escape para as
pressões do sistema: a ilusão de propriedade „distrai‟ da escravidão e
prende, mais do que uma vigilância feroz e dispendiosa, o escravo à
fazenda.232
Maria de Fátima Pires menciona como a venda de reses também se constituiu
como forma de reunir o pecúlio. “Sabe-se que vaqueiros recebiam pelo sistema de sorte
ou giz, mas não há provas de que os escravos partilhassem dessa espécie de bônus.
Entretanto, escravos vaqueiros, tornados forros, poderiam utilizá-lo como pagamento
em diversas cartas de alforria”.233
Porém, é importante destacar que, de uma maneira
geral, as cartas de alforria não mencionam de que forma os escravos obtinham a compra
da sua alforria, ou seja, qual serviço proporcionou a eles aqueles excedentes de capital.
No caso das Umburanas, por ser uma região “pobre” e distante dos centros
urbanos, não havia um leque tão grande de possibilidades de trabalho para a obtenção
do pecúlio. Parece-nos, assim, que a maneira mais plausível e preponderante tenha sido
229
PIRES, Fios da vida, p. 82 230
SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor, p. 197-200. Outros autores, como Erivaldo Neves, seguindo
a vertente de Ciro Flamarion Cardoso, utilizaram a denominação de „brecha camponesa‟ ou „proto-
campesinato‟, referindo-se às “‟atividades econômicas que, nas colônias escravistas escapavam ao
sistema de plantation, entendido em sentido estrito‟”. 231
NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 294. 232
SILVA, Eduardo e REIS, João J, Negociação e Conflito - a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 29, grifo nosso. 233
PIRES, Fios da vida, p. 84.
86
realmente a criação de animais em pequena escala, o plantio em pequenas roças, e a
venda desses produtos nas feiras livres, como já foi observado também para a realidade
de Feira de Santana por Flaviane Nascimento, cada uma dessas atividades geralmente
relacionadas com a função precípua desenvolvida pelo escravo, embora ainda assim não
se possa garantir que foi ela a responsável pelo pecúlio. Isso responde àquela indagação
que fizemos anteriormente: o escravo Ricardo, no seu Registro de Compra e Venda,
fora comprado com o fim de servir na lavoura, em 1873. Se o mesmo conseguiu
comprar a sua carta de liberdade três anos depois, é provável que a sua fonte tenha sido
serviço de lavoura; não obstante, mesmo nesse caso não se pode garantir que essa
poupança amealhada tenha se originado exclusivamente desse afazer.
Portanto, é sempre perigoso adotarmos uma perspectiva generalista. Prova disso
foi a maneira inusitada pela qual Pedro, crioulo, escravo de Francisco Vieira de Souza,
conseguiu arrecadar alguns réis. No processo crime no qual ele fora acusado de atirar na
crioula Paulina, constava-se que, na verdade, sua arma tinha disparado acidentalmente,
arma esta que ele estava carregando nas redondezas da Fazenda Gameleira, na
Freguesia das Umburanas, negociando a sua venda para o filho da vítima, Manoel de
São Leão.234
Dessa forma, a venda da arma de fogo se constituiu em uma possibilidade
que Pedro, escravo, vaqueiro, encontrou para arrecadar alguns trocados.
Existia ainda o escravo que, para juntar o pecúlio necessário para sua liberdade,
precisava se afastar do convívio direto com seu senhor e, a partir de um prazo
estipulado, conseguir recursos para quitar sua alforria. Nas Umburanas não
identificamos nenhum caso de coartação,235
embora houvese caso de alforria onerosa
condicional, em que o escravo Matias, preto, 28 anos, serviço da lavoura, em 1885
compra a sua carta de alforria por 300$000 (trezentos mil Réis), do Sr. João Augusto
Ferreira, com a condição de quitar a outra parte restante, no mesmo valor, a fim de obter
definitivamente a carta de liberdade. No documento não consta, porém, se o escravo
Matias podia ausentar-se em algum momento, prestando serviço a outros senhores, a
fim de obter o pecúlio necessário.
234
APEB. Seção judiciária. Processo crime/série homicídio. Estante número 27, caixa número 960,
documento número 05, de 1852. 235
Para este conceito de coartação, apesar de haver na historiografia várias versões, consideramos
pertinente o que diz ser um “tipo de manumição paga parceladamente pelo escravo e ou terceiros. O
coartado afasta-se geralmente do domínio direto do seu senhor, conseguindo deste último autorização por
escrito – carta de corte – para trabalhar em outras regiões e para obter o pecúlio. Às vezes a coartação era
acertada verbalmente e dispensava o acordo por escrito” (PAIVA, “Escravos e libertos nas Minas Gerais
do século XVIII”, p. 21-21).
87
3.1.4 Alforria comprada por terceiros
Um caso específico de alforrias onerosas incondicionais foram aquelas
compradas por terceiros. Aos 12 dias do mês de maio de 1869, na Freguesia de Nossa
Senhora do Resgate das Umburanas, Alexandre, crioulinho, é libertado pelo senhor José
Joaquim de Carvalho, seu vizinho e padrinho.236
Na documentação pesquisada foi
comum encontrarmos esses “laços de compadrio” para a obtenção da alforria, ou seja,
padrinhos concedendo a liberdade e comprando alforrias. Manolo Florentino e Roberto
Góes, estudando aspectos das famílias escravas e do tráfico atlântico, mencionam o
batismo como uma “oportunidade aproveitada pelos cativos para tecer laços de proteção
e ajuda mútua”.237
Segundo os autores, os arranjos familiares forneceram as bases para a
organização e a pacificação entre os cativos. Isso porque esses elementos foram
fundamentais para o escravo sobreviver ao cativeiro e até libertar-se dele.
Kátia Mattoso, apesar de acreditar que muitos fatores impediam a formação da
família escrava, quiçá questionando a sua própria existência, destaca, sobretudo, as
proibições dos seus senhores e a tendência dos mancípios de evitar a procriação.238 Não
obstante, ela chegou a reconhecer o tema das “solidariedades procuradas: o compadrio”
como um elo importante nas relações de parentesco. Para ela, ser afilhado de um senhor
significava possuí-lo como alguém que assume “responsabilidades idênticas às dos
pais”,239
devendo oferecer ao escravo algum tipo de auxílio material e espiritual. Eram
obrigações que, segundo a autora, coadunavam-se com uma característica da cultura
brasileira: “são raros no Brasil os padrinhos que não levam a sério suas
236
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, 1869, p. 15. 237
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 92. 238
“Para o escravo a vida sexual responde apenas às necessidades físicas, não visa à procriação. Nas
fazendas, dormitórios de homens e de mulheres são separados e os encontros de casais, mesmo
legalmente casados, são realizados furtivamente, durante a noite. A política dos senhores é tornar os
contatos sexuais difíceis, mas não impossíveis. Assim foi que a poligamia africana foi substituída no
Brasil por uma sucessão de ligações passageiras” (MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 127). Emília
Viotti da Costa também coaduna com a visão de que a escravidão desorganizou a vida familiar e
“contribuiu para conferir precariedade e instabilidade àqueles laços” (COSTA, Emília Viotti da. Da
senzala à colônia. 4 ed. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998, p. XII). Esta visão tornou-se
simplista e generalista e já não condiz com as pesquisas que negam o caráter de excepcionalidade dos
laços familiares entre os cativos. Foi notadamente a partir da influência da historiografia americana,
destacando aqui os estudos de Gutman e Genovese, que se consolidou a tendência de reconhecimento da
importância e existência da família escrava, deixando de ser vista como exceção e tornando-se um
fenômeno recorrente e fundamental para a sociedade escravista como um todo. Cf. de SLENES, Robert.
Na Senzala, uma Flor, onde a família escrava aparece, sobretudo, como forma de resistência, além dos
autores que citamos na Introdução deste trabalho. 239
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 112.
88
responsabilidades”.240
O padrinho, de um modo geral, devia ser influente, possuir terras,
ter bom relacionamento e prestígio na comunidade.
O objetivo da escolha desse padrinho tinha várias finalidades. Sharize Piroupo
do Amaral mostrou que, no caso de alguns escravos fugitivos, “O padrinho devia
interceder junto ao senhor do escravo para que este não fosse castigado ou ainda que o
castigo fosse atenuado. Este era um costume que existia desde a época colonial e que
parece ter se disseminado por todo país”.241
A autora mostra também que o padrinho
servia também como “mediador nas desavenças entre o feitor e o escravo. Neste caso a
intervenção de um terceiro serviria bem ao senhor, que poderia perdoar o escravo sem
se indispor com o feitor”.242
Para além de questões relacionadas à fuga, uma outra finalidade precípua
embutida no processo do apadrinhamento era, quem sabe um dia, o escravo poder obter
a sua liberdade, através da alforria comprada pelo padrinho.243
Tal objetivo maior
explicava o fato da existência de laços entre os escravos e seus padrinhos, embora em
menor monta do que aqueles relativos aos escravos entre si. Na verdade, conclui Kátia
Mattoso, “os vínculos pessoais entre escravo e senhor pesarão menos para o equilíbrio
afetivo e promoção pessoal do negro do que os traços de união forjados no interior do
próprio grupo de escravos”.244
Outros autores, diferentemente da perspectiva acima, vêm mostrando como a
existência da família escrava era uma realidade bem mais comum do que se supunha. A
existência do compadrio ilustrava a possibilidade de se estabelecer o parentesco
simbólico entre os escravos. Para Engeman, “É preciso que se diga que este mecanismo
de aparentar certamente não foi de menor importância, já que podia transformar em
parentesco relações para além do âmbito marital e consangüíneo, utilizando-se do rito
batismal para lhes conferir plasticidade e status”.245
Em vinte de setembro de 1884, o escravo Cipriano consegue a sua carta de
alforria das mãos do seu senhor. Este o libertou alegando o seguinte motivo: ele “(...)
240
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 112. 241
AMARAL, “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”, p. 96. 242
Ibidem, p. 96. 243
É válido salientar que não necessariamente havia relação desses apadrinhamentos com o batismo
católico, pois foram analisadas as cartas de alforria e não foram encontrados os assentos de batismo da
freguesia das Umburanas. 244
MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 134. 245
ENGEMAN, Carlos. “De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em
grandes plantéis do Sudeste brasileiro do Oitocentos”. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História Social, Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006, p. 25.
89
me tem servido bem como escravo, afilhado e bom cristão”.246
Assim, o compadrio
assume uma importância como ferramenta na construção de “arranjos familiares” e,
sobretudo, como possibilidade de aproximação da liberdade. Nesses termos, instituído o
compadrio, criava-se o parentesco com outras pessoas com as quais se dividiam algum
tipo de afinidade. Nesse âmbito, não queremos dizer que as relações de parentesco
firmadas pelo compadrio fossem apenas um jogo de cálculo do escravo para obter a
concessão da liberdade ou somente um cálculo senhorial com a intenção de dominação.
Ao destacarmos essas relações de parentesco simbólico, tivemos a intenção de
evidenciar que as relações estabelecidas foram geradas por ambas as forças: o
explorador e o explorado, cada um com suas intencionalidades.
Outro caso apareceu nos registros foi o de uma escrava que lutou para conseguir
comprar a carta de liberdade da sua filha. Isso ocorreu com a cativa Gorete, por
exemplo, que, embora não tenha conseguido juntar o pecúlio para a compra de sua
alforria, conseguiu libertar sua filha Inácia, 12 anos, do julgo do cativeiro. Aos quinze
dias do mês de março de 1870 ela pagou 120$000 (cento e vinte mil reis) por essa
liberdade 247
e, doravante, Inácia desfrutaria da sua liberdade como se do ventre livre
tivesse nascido.
4. Padrão sexual das alforrias
Quanto às alforrias distribuídas segundo o padrão sexual nas Umburanas,
verificamos uma disposição que apontou para o seguinte fato: geralmente as mulheres
escravas foram alforriadas em número bem mais elevado do que os homens, sejam as
alforrias compradas, sejam as doadas. No gráfico abaixo verificamos que, exceto entre
1871-1880, quando houve uma igualdade entre os sexos no quesito de escravos
alforriados, ocorreu uma disparidade entre homens e mulheres nos períodos 1865-1870
e 1881-1888 quando, respectivamente, a proporção observada foi de 25% e 33,3% de
homens libertos.
246
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro
10, 1884, p. 42. 247
Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro 8,
folha 12, 1870.
90
Gráfico VIII: Padrão sexual das alforrias
Fonte: Livro de Registros Diversos, série Cartas de Liberdade do Cartório Público de
Antonio Cardoso (1866-1888).
Ao mesmo tempo, quanto àqueles que alforriavam, existiu uma predominância
das senhoras proprietárias que se utilizaram desse expediente, numa proporção de 56%
do total das cartas de alforria analisadas. Isso mostrou uma predominância das mulheres
entre si no processo de negociação da liberdade. Pires chegou a explicar este fato. Para
ela, "A mulher tendia a libertar as suas criadas domésticas fiéis e suas crias, preferindo a
alforria condicional, a fim de garantir que as cativas continuassem a trabalhar para ela
até a sua morte”.248
No caso específico das Umburanas há que se considerar também a
notável proporção de mulheres entre os proprietários de escravos, como discutimos no
Capítulo I.
5- A libertação pela fuga
Uma forma mais imediata, e porque não dizer arriscada, de se alcançar a
liberdade nas Umburanas foi através da fuga. Para Eduardo Silva e João Reis ela se
constituiu como “unidade básica de resistência no sistema escravista, no seu aspecto
248
PIRES, Fios da vida, p. 85.
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
1865-1870 1871-1880 1881-1888
HOMENS
MULHERES
91
típico”.249
Estes autores dividiram em suas analises dois tipos de fuga: a reivindicatória
e a fuga-rompimento. A primeira funcionava como “uma espécie de „greve‟ por
melhores condições de trabalho e vida, ou qualquer outra questão específica,
sentimental inclusive”.250
Os autores destacam que, nesse caso, não se buscava “um
rompimento radical com o sistema”. Esta „greve‟ buscava, na verdade, ensejar um
processo de negociação entre as partes, obviamente sem referência a alguma forma de
diálogo franco entre senhor e escravo, mas um jogo velado de indisposições e, às vezes,
até ameaças. Os autores citaram, por exemplo, a pressão exercida no caso de escravos
que ameaçavam fugir, insatisfeitos com o atual senhor ou interessados em voltar para o
“dono” anterior.
Já a fuga-rompimento era muito mais complexa, pois caracterizada por uma
espécie de desacordo em relação ao “pacto” existente entre o senhor e o escravo; isso
supunha a existência, portanto, de formas previamente veladas de conduta entre as
partes, tanto a obrigação de servir do escravo, quanto a obrigação de o senhor atender a
algumas condições – certamente mínimas – de existência escrava no interior da
propriedade:
Dos primórdios da colonização até a década de 1870 mais ou menos,
isto é, sob a vigência do paradigma ideológico colonial, a principal
motivação para fugas e revoltas parece ter sido a quebra de
compromissos e acordos anteriormente acertados. Existia em cada
escravo idéias claras, baseadas nos costumes e em conquistas
individuais, do que seria, digamos, uma dominação aceitável.251
Aos escravos que optaram por conquistar a sua liberdade através da fuga ficava
uma questão incontornável: fugir como? Mas também, fugir para onde? Se, como disse
Perdigão Malheiros, “a fuga é inerente à escravidão”, Sílvia Lara acrescenta a isso o
fato de que “também fazem parte dela a associação entre os fugitivos e o auxílio
solidário direto ou indireto de terceiros”.252
Assim, diferentemente do escravo,
considerado um “fugitivo”, o seu cúmplice era qualificado de “criminoso”. É provável
que tenha havido muitas pessoas coniventes com a fuga de escravos nas Umburanas,
249
VAINFAS, Ronaldo. “Deus contra Palmares”, p. 62. 250
Ibidem, p. 63. 251
Ibidem, p. 67. 252
LARA, “Do singular ao plural”, p. 83.
92
uma vez que uma opção para o local onde o escravo devia fugir tinha um lugar possível:
a Fazenda Gavião, local que veio a se tornar uma comunidade quilombola.
Para João Reis e Eduardo Silva “quilombos pressupõem fugas, tanto individuais
quanto coletivas.”253
Mas, antes de trabalharmos com a comunidade quilombola da
Fazenda Gavião, como entender o “novo” conceito de quilombo? Até 1970 a imagem
conceitual que permeou relativamente ao quilombo foi a dada pelo Conselho
Ultramarino em 1740, a saber, “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,
em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões
neles”.254
Este conceito, não obstante, pressupunha algumas idéias que foram
posteriormente revistas:
Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho
Ultramarino, Almeida (1999:14-15) mostra que aquela definição
constitui-se basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma
quantidade mínima de fugidos; 3) o isolamento geográfico, em locais
de difícil acesso e mais próximos de uma natureza selvagem, que da
chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no termo rancho.;
5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na imagem
do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação
etnográfica, se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar
que a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há
uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou
pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora
simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida
numa reapropriação do mito do bom senhor, tal como se detecta hoje
em algumas situações de aforamento.255
O que se enfatiza acima, buscando estabelecer um conceito de quilombo mais
moderno e relacional, destaca-se pelo árduo processo de lutas sociais aí travadas,
salientando a questão da autonomia e, ao mesmo tempo, realçando que “Este sentimento
de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de expressão da identidade étnica e
da territorialidade, construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais os
quilombolas se confrontam e se relacionam”.256
Em vista disso, é realmente preciso que
253
VAINFAS, Ronaldo. “Deus contra Palmares”, p. 62. 254
SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília; CARVALHO, Maria Celina de. “A atualização do
conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas”.
http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889. pdf, p. 01. 255
Ibidem, p. 02. 256
Ibidem, p. 03
93
tenha essa trajetória histórica com presunção de ancestralidade negra critérios de
relações que sejam pautados segundo uma auto-atribuição da comunidade.
De acordo com o Decreto 4.887, de 20 de Novembro de 2003, que
“Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”,
lê-se o seguinte, no seu artigo 2º:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para
os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.257
Caracterizado o conceito de quilombo, passemos a abordar a comunidade
quilombola da Fazenda Gavião, nas Umburanas. Embora tenhamos dito acima que uma
das opções possíveis de fuga dos escravos foi para esta Fazenda, é preciso acrescentar
que para aí se refugiaram, igualmente, libertos, encontrando nesta localidade um ponto
de apoio. Foi o que salientou Ozéias Santos, explicando que a formação da Fazenda
Gavião deu-se a partir da “ocupação das terras devolutas por escravos fugidos ou
libertos, desde o final do século XIX”.258
Aliás, um dos seus primeiros habitantes foi
justamente Juvêncio Pedro, escravo liberto e detentor da “maior posse de terras da
região”.
Houve, portanto, a ocupação dessas terras devolutas para o cultivo e criação e,
quando possível, comercialização dos excedentes.259
Nessa fazenda Gavião eles
257
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm, acessado em 11 de julho de 2011. 258
SANTOS, Ozeias de Almeida, “A produção do espaço rural no Estado da Bahia”, p. 4. Na análise
deste autor ele ainda acrescenta a origem mais remota daquela comunidade: “Os fazendeiros de escravos
em Antonio Cardoso, apoiado pelos jesuítas, dentre eles José de Aragão e Araujo, vieram dos Conventos
da Cachoeira, se instalaram na margem esquerda do rio Paraguaçu em 1690, e foram expandindo seus
domínios, formando a grande Fazenda Cavaco, que ocupava toda porção leste e nordeste do atual
território do município, onde estão localizadas as comunidades de Paus Altos, Cavaco/Gavião e Santo
Antonio”. Op. cit. p. 7. 259
“Outros libertos ocuparam algumas terras devolutas, onde atualmente se localizam as Fazendas
Gavião/Cavaco, Paus Altos, Santos Antonio dentre outras áreas, e formaram comunidades, onde
trabalhavam de forma coletiva na terra de uso comum”. SANTOS, “A Produção do espaço rural no
Estado da Bahia: uma leitura da concentração fundiária de comunidades quilombolas do município de
Antonio Cardoso”, p. 5.
94
plantavam feijão, milho, mandioca, fumo, criavam pequenos animais e desenvolviam
atividades de “trabalho coletivo na terra”.260
A comunidade era praticamente envolta em
mata virgem, opção estratégica dos quilombos, na medida em que estes deveriam
oferecer obstáculos ao seu acesso para autoridades ou senhores. Assim se constituiu
como um abrigo seguro para escravos fugitivos ou libertos, além disso, um pólo de
atração mesmo para aqueles que, insatisfeitos da sua condição, buscavam a liberdade,
ou queriam afastar-se ao máximo da sua realidade cativa.
Nessa Fazenda houve um gradual desmembramento de suas terras, e muita luta
para que não fosse expropriada. Como disse Flávio Gomes, “podemos construir a
história do quilombo no Brasil, articulando – para além do protesto escravo – as lutas
pelo acesso, direito e manutenção à posse e uso das terras e a gestação de culturas
originais do mundo rural”.261
Para este autor, ainda, “(...) os escravos, a partir de suas
roças e economias próprias, e os quilombolas, com suas atividades econômicas,
acabaram por formar um campesinato negro ainda durante a escravidão”. Através dos
excedentes dos produtos que obtinham aí, em geral podiam conseguir outras
mercadorias com “taberneiros, pequenos lavradores e cativos de fazendas vizinhas”.262
No caso das Umburanas, provavelmente essas atividades comerciais deram-se mais
entre fazendas e escravos vizinhos e nas feiras livres, como vimos.
Após o fim da escravidão, em decorrência do “forte processo de especulação
imobiliária, conseqüência natural da interiorização do Brasil e do crescimento
populacional”,263
muitos latifundiários tentaram tomar posse dessa terra, com o fito de
desenvolverem uma pecuária extensiva, assediando “os aquilombados para
expropriarem as suas terras”, quase repercutindo no fim da comunidade. Os filhos de Zé
Pedro, porém, como Juvêncio, conseguiram resistir e garantir a posse, pelo menos de
alguma parcela da propriedade dos antepassados.
260
O Sr. Martins Alexandre, conhecido como na Fazenda Gavião como o Sr. binô, nascido em 1924, é
descendente de zé Pedro. Em conversa realizada no dia 08 de janeiro de 2010 fez uma tentativa de
rememorar a sua história de vida, lembrando das rudezas da lida, quando devia realizar essas plantações e
criações. O senhor binô recorda-se de ter passado fome algumas vezes, de ter trabalhado em fazendas
circunvizinhas e de ter recebido, algumas vezes, “dois vinténs por um caminho de cova”. 261
Cf. GOMES, Flávio dos Santos. “Sonhando com a terra, construindo a cidadania”, p. 463. In:
PINSKY, Jaime e BASSANEZI, Carla (Orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2008. 262
GOMES, F. S.: "Quilombos do Rio de Janeiro do Século XIX", In: REIS, J. J. & GOMES, F. S.
(orgs.): Liberdade Por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p.
274. 263
Cf SANTOS, Pitágora Oliveira dos. “Comunidade quilombola da Fazenda Gavião e suas relações
com a sociedade circundante”. Trabalho final da Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira.
Fundação Visconde de Cairú, 2007, p. 19.
95
Os seus membros tornaram-se ou “donos de pequenas propriedades, cuja
dimensão está abaixo do módulo rural estabelecido para região (25 hectares), ou
ganham a vida trabalhando nos latifúndios de criação que circunda a comunidade”.264
Coube ao Sr. Januário Pedro de Santana, bisneto de Juvêncio, continuar com a missão
de defender a comunidade da Fazenda Gavião contra a sua expropriação.
Enfim, tal ocupação foi uma das alternativas possíveis para os que, libertos após
a Lei de 13 de maio de 1888, pudessem trabalhar e tirar seu sustento. Com efeito, podia-
se também permanecer na antiga propriedade: muitos dos ex-escravos ficavam então na
condição de rendeiros. Outras dificuldades que faziam alguns ex-mancípios quererem
permanecer na propriedade que o escravizara há pouco era justamente a falta de
políticas públicas que viabilizasse o pós-emancipação, sobretudo a manutenção de
“certos esquemas hierárquicos” que perduravam. Assim, segundo a visão de Wlamyra
Albuquerque, o processo emancipacionista
(...) foi marcado pela profunda racialização das relações sociais; e a
manutenção de certos esquemas hierárquicos foi o principal saldo do
longo e tortuoso percurso que levou a sociedade brasileira à extinção
legal do cativeiro em 1888. Depois, o desafio será explicitar como
ações políticas protagonizadas por diferentes personagens e
instituições, como o Conselho de Estado, lideranças abolicionistas e
republicanas, literatos, libertos africanos, festeiros e adeptos do
candomblé, a partir de suas expectativas e planos para o pós-abolição,
racializaram as relações sociais no período.265
Flávio Gomes e Olívia Cunha discutiram esse último aspecto, margeando o
problema da cidadania, inserindo questões importantes. Afinal, após a abolição
poderíamos mesmo falar em uma antítese entre escravidão e liberdade, uma vez que
desapareceram os “vínculos de submissão, a distensão de hierarquias legais de
subordinação no plano jurídico e consensual, bem como o desaparecimento dos textos e
instrumentos burocráticos que legitimaram a sujeição”?266
Em contrapartida, a liberdade
então instaurada encontrou o seu devido sinônimo: a igualdade? Sem negar a existência
264
SANTOS, Pitágora. “Comunidade quilombola da Fazenda Gavião e suas relações com a sociedade
circundante”, p. 24. 265
Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.37-38. 266
GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M. “Introdução – que cidadão? Retóricas da igualdade,
cotidiano da diferença”, in GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M. (Orgs.). Quase-cidadão:
histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 13.
96
do fenômeno da abolição, precisar-se-ia, não obstante, perceber as sutilezas do
processo:
Liberdade avesso da escravidão, igualdade como corolário de
liberdade, liberdade como duplo da cidadania, escravo versus liberto,
sujeito/assujeitado versus livre etc.? Ao investir na compreensão da
dimensão provisória, por vezes precária, atribuída a esses termos,
talvez devêssemos explicitar que não estamos necessariamente
evocando os sinais da permanência e da continuidade. Ao contrário,
interessa-nos entender como e através de que operações discursivas,
processos sociais e históricos, homens e mulheres cujo estatuto social
estava condicionado à combinação de sua condição jurídica, origem
social e aparência física passam a ser vistos e a ver a si próprios como
iguais.267
267
GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M., “Introdução – que cidadão?”, p. 13.
97
Considerações Finais
A investigação acerca da escravidão e da liberdade na Freguesia das Umburanas
foi um trabalho árduo, tendo em vista as dificuldades que encontramos para conseguir
fontes historiográficas suficientes, muitas vezes esbarrando em problemas como a má
conservação dos documentos nos arquivos públicos, a lacuna de livros notariais não
encontrados268
e a grande dispersão das fontes. Apesar de tais lacunas, este estudo
buscou aprofundar e denunciar questões não discutidas na produção local: a presença
marcante de escravos na região no século XIX e as formas de resistência aí instauradas.
Nesse bojo, a importância do tráfico interno para a região e os fluxos da dinâmica
escravista mostraram-se fundamentais: eles ajudaram a compor as diversas
experiências históricas dos cativos do séc. XIX.
Identificamos nas Umburanas algumas peculiaridades, e este foi um caminho
necessário e inevitável para nos aproximarmos do tema da liberdade. A primeira delas
estava relacionada com a própria região, que denominamos de “agreste paisagem
sertaneja”. Os rigores do seu clima, a distância em relação à capital baiana e ao
“modelo” de escravidão aí associado, tudo isso deveria ensejar a emergên cia de outras
modalidades de vida escrava, abrindo o horizonte da sua complexidade.
Importante também foi a constatação das formas de arranjo de poder local
relacionadas com a propriedade e os proprietários, localizando entre estes os que mais
se destacavam, tanto na transação com a posse de terras, quanto com a negociação
envolvendo a mão de obra cativa. Ao mesmo tempo, as Umburanas mostraram ter uma
predominância de pequenos e médios proprietários,269
cuja estrutura produtiva estava
atrelada praticamente ao manejo da terra em pequena escala e com pouco número de
cativos.
268
Como o livro de número 9 do Cartório Público de Antonio Cardoso, bem como os inventários dos
grandes proprietários, ainda desaparecidos, e os livros de assento de batismo, só encontrados a partir de
1889. 269
Isso explica hoje a concentração da estrutura fundiária de Antonio Cardoso: “enquanto 7 (sete)
propriedades possuem área maior que 500 (quinhentos) hectares, aproximadamente 1.000 (mil)
estabelecimentos apresentam áreas menores que 2 (dois) hectares – aqui denominado microminifúndios,
pois não dispõem de terra para garantir sua reprodução social.” Cf. Ozéias Santos, “A Produção do espaço
rural no Estado da Bahia, p. 8. Dessa forma, torna-se imperioso incluir “no debate sobre a questão agrária
no Brasil a questão étnica, especialmente as experiências do cativeiro – com os quilombos /mocambos e
formas de protesto e ocupação de terras - e aquelas do pós emancipação , com as comunidades
remanescentes e outras tantas “terras de pretos””. Cf. GOMES, Flávio dos Santos, “Sonhando com a
terra, construindo a cidadania”, p. 463.
98
No universo daqueles proprietários constatamos a existência de muitas senhoras
donas de terra, cujas propriedades geralmente eram adquiridas através de herança,
sobretudo pelo falecimento do cônjuge. Identificamos a presença delas nos registros
eclesiásticos de terra e de compra e venda de escravos, assumindo diretamente o
processo de negociação. Além disso, boa parte dessas mulheres fora responsável por
conceder cartas de alforria a seus escravos, posturas ativas que eram, no século XIX,
predominantemente masculinas.
A negociação envolvendo crianças e mulheres escravas nas Umburanas mostrou-
se igualmente significativa. Verificamos que não houve uma repartição de afazeres tão
demarcados, uma vez que o trabalho na roça compunha a maioria das suas atribuições,
não precisando de tamanha divisão. As mulheres, neste ínterim, tiveram a oportunidade
de mostrar a sua versatilidade, podendo inserir-se nas mais diversas ocupações, o que
explicava o número praticamente igual de homens e mulheres negociadas, bem como
uma proporcionalidade semelhante dos seus preços.
A partir da abordagem dos aspectos acima, que tentaram circunscrever o
contexto regional, social e político das Umburanas, passamos para a temática da
liberdade, como uma busca natural daqueles que viviam sob o jugo do cativeiro.
Tentamos identificar ou apontar formas atuantes e inusitadas através das quais os
mancípios buscavam o pecúlio para a compra da sua alforria. Este era um claro sinal de
que também os escravos não se reduziam a figuras passivas diante do sistema, mas
participavam das relações que eram estabelecidas. A liberdade do escravo era, portanto,
muitas vezes negociada entre as partes envolvidas. Tentamos realçar a necessidade de
relativizar o discurso oficial, por exemplo, quando as alforrias gratuitas pareciam surgir
como atos de benevolência do senhor, ocultando intenções bem diversas.
Teófilo, Hermínia, Ricardo Zula, Maria, enfim, muitos escravos do séc. XIX nas
Umburanas almejaram “inventar” ao seu modo uma forma de liberdade, tendo em vista
constituir sua família, ter sua morada e poderem usufruir diretamente do seu trabalho,
plantando, criando animais e negociando os frutos desse labor em sua “nesga de terra”.
Para alguns deles a fuga surgiu como outro recurso direto à busca dessa liberdade. E se
este fenômeno percorreu toda a época da escravidão, a peculiaridade das Umburanas foi
a existência do refúgio quilombola da Fazenda Gavião.
Não conseguimos obter fontes importantes acerca dessa comunidade. Não
obstante, compactuando com a visão de Flávio Gomes e Olívia Cunha, se a Lei de 1888
99
não garantiu cidadania e liberdade efetivas aos mancípios, o refúgio da Fazenda Gavião
foi, como disse Leibniz, mutatis mutandis, o “melhor dos mundos possíveis”.
100
REFERÊNCIAS
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Antonio Cardoso).
Diário Oficial dos Municípios. Estado da Bahia, Salvador, Ano XC, nº 19.213, de
21/08/2006.
Fontes Manuscritas
Arquivo Público do Estado da Bahia:
Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das
Umburanas, 1858-1859, APB, Colonial, maço 4823.
APB. Seção judiciária. Processo crime/série homicídio. Estante número 27, caixa
número 960, documento número 05, de 1852
Cartório Público de Antonio Cardoso:
Livros de Registros diversos Notas de número 6,7,8 e10 sob guarda do Cartório público
de Antonio Cardoso.
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Apêndice I - Tabela de disposição de alguns dos registros:
ESCRAVO
NOME
NATURALI
DADE
FILIAÇ
ÃO
COR IDADE
ESTAD
O
CIVIL
ESPECIALI
ZAÇÃO
PRE
ÇO
VENDE
DOR
SENHO
R
COMPR
ADOR
AN
O
THEODÓSIO FREGUESIA ESCRAVA
ANA
PARDINHO 7 ANOS 400
MIL REIS
JOAQUIM
LONGUINHO
MANOEL
ROMUALDO DE
ALMEIDA
1866
LUIZA FREGUESIA CRIOULA 30 ANOS SERVIÇO DA
LAVOURA
300
MIL REIS
ANTONIO
DIAS PEREIRA
ANTONIO
JOSÉ DOS SANTOS
BARAÚNA
1866
FELICIANAn
nbb
FREGUESIA ESCRAVA CARLOTA
7 ANOS MAIS OU
MENOS
500 MIL
REIS
DOAÇÃO DE JOSÉ
JOAQUIM
DE LEMOS
PARA JOÃO CHRISÓSTO
MO DE
OLIVEIRA LIMA
1866
CARLOTA FREGUESIA
UMBURANAS
600
MIL
REIS
DOAÇÃO
DE JOSÉ
JOAQUIM DE LEMOS
TENENTE
JOSÉ
JOAQUIM DE
CARVALHO
1866
CLARA FREGUESIA 40 ANOS
MAIS OU
MENOS
SERVIÇO DA
LAVOURA
400
MIL
REIS
BONIFÁCIO
DIAS
PEREIRA
JULIO
PIRES DE
CERQUEIRA
1866
ESTEVÃO FREGUESIA 10 ANOS
MAIS OU MENOS
SERVIÇO DA
LAVOURA
1866
BERNARDINO FREGUESIA CRIOULINHO 840
MIL
REIS
1867
SUTERO (OU
LUTERO)
FREGUESIA DE SANTO ESTEVÃO
CRIOULINHO 739 MIL
REIS
DOAÇÃO EM CAUSA
DE DOTE
DE JERÔNIMO
SOARES DE
ALMEIDA
PARA SEU GENRO
MANOEL
AMANCIO PEREIRA
1867
THERESA FREGUESIA 4 ANOS
MAIS OU
MENOS
450
MIL
REIS
D. MARIA
DE DEUS
DA CONCEIÇÃ
O
FELIPE
JACINTHO
DE MEDEIROS
1867
CLARA MARIA
FREGUESIA - PRETA 40
SERVIÇO DE
LAVOURA: FUMO, MILHO,
FEIJÃO
400
MIL REIS
BONIFÁCIO
DIAS
JÚLIA
PIRES CERQUEIRA
1869
ESTEVÃO FREGUESIA
- 18 ANOS REFERÊNCIA
AOS “BONS BRAÇOS” PARA
A LAVOURA
300
MIL REIS
MARIA
DANTAS
TENENTE-
CORONEL JOSÉ
MILITÃO
1869
ALEXANDRE FREGUESIA 9 ANOS TRABALHO AGRÍCOLA
500 MIL
REIS
MANOEL JOAQUIM
CARVALO
JOSÉ JOAQUIM
CARVALHO
1869
EUZÉBIO FREGUESIA 2 ANOS 100
MIL
REIS
CAPITÃO
FRANCISCO
MANOEL
MARIA
ANGÉLICA
1869
MARIA FREGUESIA PARDA 30 ANOS LAVOURA DE
FUMO,
MANDIOCA, MILHO E
FEIJÃO
750
MIL
REIS
MANOEL
JUSTINIAN
O DOS SANTOS
MARCELIN
O JOSÉ
SANTA ANA
1869
LOURENÇA FREGUESIA DE SÃO PEDRO DA
MURITIBA –
ESCRAVA CÂNDIDA
5 ANOS 600 MIL
REIS
APRÍGIO DA SILVA
DUTRA
LAURIAN jUSTINO
SANTOS
1869
109
COMARCA DE F.
DE SANTANA
ALEXANDRE FREGUESIA CRIOULO 9 ANOS MAIS OU
MENOS
SERVIÇO DA LAVOURA
500 MIL
REIS
MANOEL JOAQUIM
DE
CARVALHO
JOSÉ JOAQUIM
DE
CARVALHO
1869
EUZÉBIO FREGUESIA ESCRAVA ANA
CRIOULINHO 2 ANOS MAIS OU
MENOS
100 MIL
REIS
1869
CÂNDIDA FREGUESIA DE SÃO PEDRO DA
MURITIBA –
CIDADE DE CACHOEIA
28 ANOS SERVIÇO DA LAVOURA
NÃO FAZ REF
NÃO FAZ REF
1870
ALVINO FREGUESIA PRETA 15 MAIS
OU
MENOS
SERVIÇO DA
LAVOURA
400
mil reis
JOSÉ
ALVES
BARRETO
(OU
BARREIRO)
ANTONIO
ALVES
BARREIRO
1870
JUSTINO FREGUESIA 35 ANOS SERVIÇO DA
LAVOURA
600
MIL REIS
FRANCISCO
JOSÉ CORREIA
TENENTE
JOSÉ JOAQUIM
DE
CARVALHO
1870
CRIOULO
FELIZ
FREGUESIA 40 ANOS RECEBEU
CARTA DE
LIBERDADE
1870
SANCHA FREGUESIA CRIOULA 27 ANOS SERVIÇO DA LAVOURA
400 MIL
REIS
APRÍGIO DA SILVA
DUTRA
VIGÁRIO SALUSTIAN
O ALVES
SAMPAIO
1870
TEODORA FREGUESIA PARDA 27 ANOS RECEBEU CARTA DE
LIBERDADE
1870
MARCELINA FREGUESIA 35 ANOS BOM TRATO COM O FUMO
680 MIL
REIS
SIMÃO GONÇAL-
VES
Impossivel leitura
1871
FRANCISCO FREGUESIA 25 ANOS
MAIS OU MENOS
SERVIÇO DA
LAVOURA
900
MIL REIS
SIMÃO
GONÇAL-VES DA
SILVA
TENENTE
MANOEL ALVES DE
ASSUMPÇÃ
O
1871
VICÊNCIA FREGUESIA PARDA 30 ANOS MAIS OU
MENOS
SERVIÇO DA LAVOURA
800MIL REIS
CAPITÃO ANTONIO
MENDE DE
LEÃO
TENENTE JOSÉ
ALVES DE
ASSUMPÇÃO
1871
CATARINA FREGUESIA MARIA 9 ANOS 500MI
L REIS
LUIS
COSTA
ALMEIDA E
SUA
MULHER JOSEPHA
MARIA DE
OLIVEIRA
FRANCISCO
DIMETRIS
DA SILVA
CERQUEIRA
1871
MARIA FREGUESIA CRIOULA 45 ANOS MAIS OU
MENOS
SERVIÇO DA LAVOURA
400 MIL
REIS
ANTONIO MOREIRA
DE
OLIVEIRA
TIBÚRCIO PEREIRA
DE ARAÚJ
O
1871
FELÍCIA FREGUESIA CRIOULA
32 AN0S SERVIÇO DA LAVOURA
600 MIL
REIS
MANOEL FELIPE
SANTIAGO
TENENTE JOSÉ
JOAQUIM DE
CARVALHO
1871
CLEMENTE FREGUESIA CRIOULO 7 ANOS 500
MIL REIS
MANOEL
FELIPE SANTIAGO
TENENTE
JOSÉ JOAQUIM
DE
CARVALHO
1871
THOMAZIA FREGUESIA CRIOULA
6 MESES 200 MIL
MANOEL FELIPE
TENENTE JOSÉ
1871
110
REIS SANTIAGO JOAQUIM
DE CARVALHO
ANDRÉ FREGUESIA
UMBURANAS
PARDO 8 ANOS 500
MIL
REIS
MANOEL
FELIPE
SANTIAGO
TENENTE
JOSÉ
JOAQUIM DE
CARVALHO
1871
CLEMENTINO FREGUESIA CRIOULO 6 ANOS BELARMIN
O LOPES DE MEDEIROS
TENENTE
JOSÉ JOAQUIM
DE
CARVALHO
1871
CEZARIA FREGUESIA DE
SANTO ESTEVÃO
12 ANOS SERVIÇO DA
LAVOURA
750
MIL
REIS
BERNARDI
NO ALVES
BARREIROS
FRANCISCO
FERREIRA
DE SANTA ANNA
1872
THEÓFILO FREGUESIA CRIOULO 10 ANOS 650
MIL
REIS
BELARMIN
O LOPES DE
MEDEIROS
JOSÉ FILHO
DE
MENEZES
1872
RICARDO FREGUESIA 35 ANOS MAIS OU
MENOS E
SOLTEIRO
SERVIÇO DA LAVOURA
600 MIL
REIS
DAVID DIAS
TENENTE MANOEL
ALVES DE
ASUMPÇÃO
1872
CIRILLO FREGUESIA PARDINHO 10 ANOS
MAIS OU
MENOS
SERVIÇO DA
LAVOURA
400
MIL
REIS
MANOEL
FELIPE
SANTIAGO
TENENTE
JOSÉ
JOAQUIM DE
CARVALHO
1873
METADE DO
ESCRAVO
CAETANO
FREGUESIA MARIA CRIOULO 29
SOLTEIRO
SERVIÇO DA
LAVOURA
600
MIL REIS
JORGE
AMBROSIO DA COSTA
THOMÉ DA
COSTA E ALMEIDA
1876
JOÃO FREGUESIA CRIOULO 25 SERVIÇO DA
LAVOURA
1
CONT
O DE REIS
LUIS LOPES
DE
OLIVEIRA
DONA
MARIA
VIRGINIA BARBOSA
1876
MANOEL FREGUESIA PARDO 10 SERVIÇO DA
LAVOURA
480
MIL REIS
DONA
MARIA MATHILDE
S DAS
VIRGENS
THOMAZ
ALVES
1876
MANOEL
NICOLAU
FREGUESIA PRETO 19 SERVIÇO DA LAVOURA
1 CONT
O DE
REIS
JOSE CANDIDO
MACEDO
PEDRO MOREIRA
SAMPAIO
1878
FELIPE
(ESCRAVO
DOADO)
FREGUESIA ROSA 18 SERVIÇO DA LAVOURA
190 MIL
REIS
JOAQUINA MARIA DE
SÃO JOSE
MANOEL GOMES DE
ALMEIDA
1878
MANOEL FREGUESIA PRETO 24 SERVIÇO DA
LAVOURA
1
CONT
O E 90
MIL REIS
CANDIDO
JOSE
BARBOSA
ESTEVÃO
JOSE DOS
SANTOS
1878
MARTINHA
(ACOMPANHA
DA DE SEUS
FILHOS ROSA,
JOÃO E
ANTONIO
FREGUESIA EUZÉBIA 31
SOLTEIRA
SERVIÇO DA
LAVOURA
400
MIL
REIS
DONA
VICTORINA
MARIA DE CARVALHO
EDUARDO
CARDOSO
DE SANTANA
1881
EZEQUIEL,
CIPRIANO
MANOEL,
ANTONIA
TEODORA E
MARTINHA
HENRIQUIETA
FREGUESIA CRIOULO
CABRA
28 15
35
44 16
12 12
SERVIÇO DA LAVOURA
3 CONT
OS
E 500
MIL REIS
AUGUSTO BORGES DE
FREITAS
CAPITÃO FRANCISCO
MANOEL
SANTANA
1882
CLEMÊNCIA FREGUESIA PRETA 14 SERVIÇO DA
LAVOURA
600
MIL REIS
ALEXANDR
E GOMES DE
OLIVEIRA
JOÃO
DAMASCENO DE
OLIVEIRA
1883
JOÃO FREGUESIA PRETO
35
SOLTEIRO
SERVIÇO DA
LAVOURA
600
MIL REIS
ANA
JOAQUINA DE JESUS
FAUSTINO
GOMES DA CONCEIÇÃ
1883
111
O
MATHIAS FREGUESIA
UMBURANAS
PRETO 28 SERVIÇO DA
LAVOURA
500
MIL REIS
JOÃO
RODRIGUES DO
BONFIM
JOÃO
AUGUSTO FERREIRA
1884
FRANCISCA FREGUESIA PRETA 24 SERVIÇO DA
LAVOURA
350
MIL REIS
PEDRO
GOMES DE SOUZA
MACHADO
ANTONIO
CARDOSO DE SOUZA
1884
GRACILIANA FREGUESIA DE SANTO ESTEVÃO
JOANA PRETA 24 SOLTEIRA
SERVIÇO DA LAVOURA
400 MIL
REIS
AUGUSTO LUQUINHO
GOMES
GREGÓRIO DA COSTA
ALMEIDA
1884
PEDRO FREGUESIA CABRA 16 SERVIÇO DA
LAVOURA
450
MIL REIS
JOÃO DIAS
LOPES
VICENTE
RODRIGUES DE
OLIVEIRA
1884
BENVINDA FREGUESIA CABRA 40
SOLTEIRA
SERVIÇO DA
LAVOURA
250
MIL REIS
JOÃO DIAS
LOPES
AUGUSTO
CESAR DE ALMEIDA
1884
BRIGIDA FREGUESIA CRIOULA 23
SOLTEIRA
SERVIÇO DA
LAVOURA
- JOSE
FERNANDES DE
ARAUJO
JOSEFA
FLORINDA DE
OLIVEIRA
1885
AUGUSTA FREGUESIA PRETA 18 SERVIÇO DA LAVOURA
300 DONA FELIPA
MARIA DE
JESUS
JOÃO HONORATO
DE ARAUJO
1885
HILÁRIO FREGUESIA FELIPA PRETO 20 SERVIÇO DA
LAVOURA
500
MIL
REIS
MANOEL
ANTONIO
COELHO
JOÃO
AUGUSTO
FERREIRA
1885
HIPÓLITO FREGUESIA CRIOULO 13 SERVIÇO DA LAVOURA
650 MIL
REIS
BELOMIRO LOPES DE
MEDEIROS
JOSE TELES DE
MENEZES
1885
LUIZA
(ACOMPANHA
DA DE SEUS
FILHOS,
LUCINDA DE
15, E MANOEL
DE 14 ANOS
FREGUESIA - CABRA 31
SOLTEIRA
SERVIÇO DE
LAVOURA
550
MIL REIS
DONA
VICTORINA MARIA DE
CARVALHO
SALUSTIAN
O DAMASCEN
O PASSOS
1886
ANTONIA FREGUESIA
FAZENDA DO
BOMVIVER
- PRETA 33
SOLTEIRA
SERVIÇO DA
LAVOURA
300
MIL
REIS
DONA
VICTORINA
MARIA DE
CARVALHO
ZEFERINO
DA SILVA
BARBOSA
1886
MARIA FREGUESIA JOAQUIM PINHEIRO E
LUCIMAR
PRETA 19 SOLTEIRA
SERVIÇO DA LAVOURA
350 MIL
REIS
MANOEL FERNANDE
S DA SILVA
VICENTE RODRIGUES
DE
OLIVEIRA
1886
JOANA
VITORIA
FREGUESIA DO FAZENDA DO
BOMVIVER
PRETA PRETA
38 21
SOLTEIRA
S
SERVIÇO DA LAVOURA
650 MIL
REIS
DONA VICTORINA
MARIA DE
CARVALHO
JOÃO GOMES
MACHADO
1886
IZABEL
E SUA FILHA
RAIMUNDA
FREGUESIA PRETA
PRETA
35
18
SOLTEIRAS
SERVIÇO DA
LAVOURA
400
200
MIL REIS
ANTONIO
RODRIGUE
S VIEIRA FALCÃO
VICENTE
RODRIGUES
DE OLIVEIRA
1886
GONÇALO FREGUESIA PRETO 44 SERVIÇO DA
LAVOURA
200
MIL
REIS
FELIX DA
SILVA
BARBOSA
JOÃO
GOMES
MACHADO
1886
JOÃO FREGUESIA PRETO 20 SERVIÇO DA LAVOURA
500 MIL
REIS
ROMÃO GOMES DE
OLIVEIRA
CARLOS LUQUINHO
GOMES
1886
112
Apêndice II – Entrevista
Pontos da Entrevista: 270
1- Você tem conhecimento de quando a comunidade da Fazenda Gavião se fixou
nesta localidade? Teria sido no período escravista?
2- Qual a origem da população de escravos refugiados que deu origem a
Comunidade da Fazenda Gavião?
3- De onde os escravos refugiados para a Fazenda Gavião procederam?
4- Quais os fatores que levaram esta comunidade a se fixarem na Fazenda Gavião?
5- Porque os escravos fugitivos foram levados a se fixarem na Fazenda?
6- Tem-se alguma estimativa acerta de quantos escravos buscaram abrigo no
período escravista na Fazenda Gavião?
7- Como se davam as relações sociais e econômicas nesta Fazenda?
270
Entrevista feita com o Sr. Binô (Pedro) descendente de Zé Pedro e morador da Fazenda Gavião, no dia
08 de janeiro de 2010, com o intuito de conhecer um pouco da memória da comunidade sobre o seu
passado escravista.
113
Anexo I: Certificação de autodefinição da Fazenda Gavião
como remanescente quilombola
114
Anexo II: Lei de Terras n. 601 de 18 de setembro de 1850 (que
dispõe sobre as terras devolutas e as adquiridas por posse ou sesmaria)
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo
de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de
posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas
cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento
de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a
colonisação extrangeira na forma que se declara D. Pedro II, por Graça de Deus e
Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do
Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a Assembléa Geral Decretou, e
Nós queremos a Lei seguinte:
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja
o de compra.
Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros em uma
zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.
Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem
mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e
de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da
satisfação do damno causado. Esta pena, porém, não terá logar nos actos possessorios
entre heréos confinantes.
Paragrapho unico. Os Juizes de Direito nas correições que fizerem na forma das leis e
regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento destes
delictos põem todo o cuidado em processal-os o punil-os, e farão effectiva a sua
responsabilidade, impondo no caso de simples negligencia a multa de 50$ a 200$000.
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou
municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem
forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não
incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição,
confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que,
apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em
titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou
Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual
115
do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha
sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação
primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com
principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o
represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além
do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o
posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em
nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou
criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.
§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias
ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta
Lei, só darão direito á indemnização pelas bemfeitorias.
Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes
hypotheses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os
sesmeiros ou concessionarios e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição
da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida
depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.
§ 3º Dada a excepção do paragrapho antecedente, os posseiros gozarão do favor que
lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionario ficar com o
terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se tambem
posseiro para entrar em rateio igual com elles.
§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios
ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a
prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o
contrario.
Art. 6º Não se haverá por principio do cultura para a revalidação das sesmarias ou
outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples
roçados, derribadas ou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e
outros actos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura effectiva e
morada habitual exigidas no artigo antecedente.
Art. 7º O Governo marcará os prazos dentro dos quaes deverão ser medidas as terras
adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir,
assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, attendendo ás
circumstancias de cada Provincia, comarca e municipio, o podendo prorogar os prazos
marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que comprehenda todos os
possuidores da mesma Provincia, comarca e municipio, onde a prorogação convier.
Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo
Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que
tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da
116
presente Lei, conservando-o sómente para serem mantidos na posse do terreno que
occuparem com effectiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.
Art. 9º Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder á
medição das terras devolutas, respeitando-se no acto da medição os limites das
concessões e posses que acharem nas circumstancias dos arts. 4º e 5º.
Qualquer opposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a medição; mas,
ultimada esta, se continuará vista aos oppoentes para deduzirem seus embargos em
termo breve.
As questões judiciarias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco as
diligencias tendentes á execução da presente Lei.
Art. 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do
particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás
autoridades que julgar mais convenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes
procederão administrativamente, fazendo decidir por arbitros as questões e duvidas de
facto, e dando de suas proprias decisões recurso para o Presidente da Provincia, do qual
o haverá tambem para o Governo.
Art. 11. Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem
pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos
terrenos, nem alienal-os por qualquer modo.
Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo designar,
pagando-se 5$ de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder de um quadrado
de 500 braças por lado, e outrotanto por cada igual quadrado que de mais contiver a
posse; e além disso 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou sello.
Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a
colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e
quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a
construção naval.
Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas,
sobre as declaracões feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas
áquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem
inexactas.
Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica, ou
fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir,
demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser exposta á venda,
guardadas as regras seguintes:
§ 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes,
por linhas que corram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras
que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500
braças por lado demarcados convenientemente.
117
§ 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão
acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo, fixado
antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real, real e meio, e dous réis, por braça
quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e sobras.
§ 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do
minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o
Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral das
Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante as Thesourarias, com assistencia de um
delegado do dito Chefe, e com approvação do respectivo Presidente, nas outras
Provincias do Imperio.
Art. 15. Os possuidores de terra de cultura e criação, qualquer que seja o titulo de sua
acquisição, terão preferencia na compra das terras devolutas que lhes forem contiguas,
comtanto que mostrem pelo estado da sua lavoura ou criação, que tem os meios
necessarios para aproveital-as.
Art. 16. As terras devolutas que se venderem ficarão sempre sujeitas aos onus seguintes:
§ 1º Ceder o terreno preciso para estradas publicas de uma povoação a outra, ou algum
porto de embarque, salvo o direito de indemnização das bemfeitorias e do terreno
occupado.
§ 2º Dar servidão gratuita aos vizinhos quando lhes for indispensavel para sahirem á
uma estrada publica, povoação ou porto de embarque, e com indemnização quando lhes
for proveitosa por incurtamento de um quarto ou mais de caminho.
§ 3º Consentir a tirada de aguas desaproveitadas e a passagem dellas, precedendo a
indemnização das bemfeitorias e terreno occupado.
§ 4º Sujeitar ás disposições das Leis respectivas quaesquer minas que se descobrirem
nas mesmas terras.
Art. 17. Os estrangeiros que comprarem terras, e nellas se estabelecerem, ou vierem á
sua custa exercer qualquer industria no paiz, serão naturalisados querendo, depois de
dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S, Leopoldo, e
ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro do municipio.
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo
numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em
estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou
na formação de colonias nos logares em que estas mais convierem; tomando
anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que
desembarcarem.
Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo antecedente.
Art. 19. O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que tratam os
arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, á ulterior medição das terras devolutas e
2°, a importação de colonos livres, conforme o artigo precedente.
118
Art. 20. Emquanto o referido producto não for sufficiente para as despezas a que é
destinado, o Governo exigirá annualmento os creditos necessarios para as mesmas
despezas, ás quaes applicará desde já as sobras que existirem dos creditos anteriormente
dados a favor da colonisação, e mais a somma de 200$000.
Art. 21. Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessario Regulamento, uma
Repartição especial que se denominará - Repartição Geral das Terras Publicas - e será
encarregada de dirigir a medição, divisão, e descripção das terras devolutas, e sua
conservação, de fiscalisar a venda e distribuição dellas, e de promover a colonisação
nacional e estrangeira.
Art. 22. O Governo fica autorizado igualmente a impor nos Regulamentos que fizer para
a execução da presente Lei, penas de prisão até tres mezes, e de multa até 200$000.
Art. 23. Ficam derogadas todas as disposições em contrario.
Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento, e execução da
referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente,
como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios do Imperio a faça imprimir,
publicar e correr.
Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 18 dias do mez do Setembro de 1850, 29º da
Independencia e do Imperio.
IMPERADOR com a rubrica e guarda.
Visconde de Mont'alegre.
Carta de lei, pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da
Assembléa Geral, que Houve por bem Sanccionar, sobre terras devolutas, sesmarias,
posses e colonisação.
Para Vossa Magestade Imperial Ver.
João Gonçalves de Araujo a fez.
Euzebio de Queiroz Coitiuho Mattoso Camara.
Sellada na Chancellaria do Imperio em 20 de Setembro de 1850. - Josino do
Nascimento Silva.
Publicada na Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio em 20 de setembro de 1850.
- José de Paiva Magalhães Calvet.
Registrada á fl. 57 do livro 1º do Actos Legislativos. Secretaria d'Estado dos Negocios
do Imperio em 2 de outubro de 1850. - Bernardo José de Castro
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm