Post on 14-Mar-2022
0
Estado do Maranhão
Instituto de Pesquisa econômico-social e informática-IPI
Centro de estudos pesquisa e planejamento-CENPLA
Aspectos
Antropológicos
1
Estado do Maranhão
Instituto de Pesquisa econômico-social e informática-IPI
Centro de estudos pesquisa e planejamento-CENPLA
PESQUISA POLIDISCIPLINAR “PRELAZIA DE PINHEIRO”
Vol.3 – ASPÉCTOS ANTROPOLÓGICOS
2
Governo do Estado do Maranhão
Governador: Prof. Pedro Neiva De Santana
Sistema Estadual de Planejamento
Secretário do Planejamento: Paulo Assis Marchesini
INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICO-SOCIAIS E INFORMÁTICA
Coordenador Geral: Darson Dagoberto Duarte
Coordenador Geral Adjunto: José Augusto Dos Reis
MUSEU NACIONAL, Rio de Janeiro, GB, Pesquisa Polidisciplinar “Prelazia de
Pinheiro”; aspectos antropológicos, por Dr. Roberto da Matta, Regina de Paula Santos
Prado, Laís Mourão Sá. São Luís, IPEI. 1975.
V.3 tab.
Conteúdo: Hipótese de trabalho: Significação Social da religiosidade popular. -Sobre a
classificação de entidades sobrenaturais. - Sobre a classificação dos funcionários
religiosos da Zona da Baixada Maranhense. –Rede de solidariedade: um estudo sobre o
parentesco e o compadrio no interior maranhense. – Colonização e resistência cultural. –
Antropologia social da Baixada maranhense: epílogo com proposta de um modelo.
391/397.001. 5 (812.12)Prelazia de Pinheiro)
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICO- SOCIAIS E INFORMÁTICA
(maranhão)
CENTRO DE ESTUDOS, PESQUISAS E PLANEJAMENTO.
Reservam-se aos autores os
Direitos de reprodução total ou
Parcial dos trabalhos aqui publicados.
3
S U M Á R I O
1. HIPÓTESE DE TRABALHO: SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DA RELIGIOSIDADE
POPULAR-------------------------------------------------------------------------------------------5
Dr. Roberto da Matta
1.1 - Introdução-------------------------------------------------------------------------------------7
1.2 - O outro lado da atividade Missionária-----------------------------------------------------7
1.3 - Localizando o problema---------------------------------------------------------------------8
1.4 - Definindo os Fiéis----------------------------------------------------------------------------9
1.5 - Separando Domínios-----------------------------------------------------------------------10
1.6 - Implementando a Ação---------------------------------------------------------------------11
2. SOBRE A CLASSSIFICAÇÃO DE ENTIDADES SOBRENATURAIS-----------13
Laís Mourão Sá
2.1- Introdução ------------------------------------------------------------------------------------15
2.2 - O domínio -----------------------------------------------------------------------------------16
2.3- Categorias-------------------------------------------------------------------------------------16
2.3.1- Deus-----------------------------------------------------------------------------------------16
2.3.2- Diabo----------------------------------------------------------------------------------------17
2.3.3 - Santos--------------------------------------------------------------------------------------17
2.3.4 - Outros--------------------------------------------------------------------------------------19
2.3.5 – Vagantes ----------------------------------------------------------------------------------21
2.4 - CRITERIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA--------------------------------22
3. SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS E RELIGIOSOS DA ZONA
DA BAIXADA MARANHENSE--------------------------------------------------------------25
Regina de Paula Santos Prado
3.1 - Introdução------------------------------------------------------------------------------------27
3.2 - Em busca do domínio----------------------------------------------------------------------29
3.3 - O CONJUNTO DE CATEGORIAS DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMINIO
DO SISTEMA-------------------------------------------------------------------------------------30
3.3.1- O Padre-------------------------------------------------------------------------------------31
3.3.2 - Rezador------------------------------------------------------------------------------------35
3.3.3 - Benzedor e Parteira----------------------------------------------------------------------40
3.3.4 - Pajé----------------------------------------------------------------------------------------46
3.4 - CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS
CATEGORIAS------------------------------------------------------------------------------------57
3.5 - Bibliografia----------------------------------------------------------------------------------59
4
4- REDE DE SOLIDARIEDADE: UM ESTUDO SOBRE O PARENTESCO E O
COMPADRIO NO INTERIOR MARANHENSE-------------------------------------------61
Regina de Paula Santos Prado
4.1-Introdução-------------------------------------------------------------------------------------63
4.2-Parentesco-------------------------------------------------------------------------------------64
4.2.1 - O povoado: entidade Afetiva -----------------------------------------------------------64
4.2.2 - Parentesco: repertório -------------------------------------------------------------------66
4.2.3 - Parentela: uma relação-------------------------------------------------------------------69
4.2.4 - Unidade doméstica: casa minha x casa alheia----------------------------------------71
4.3 - Compadrio ----------------------------------------------------------------------------------74
4.3.1 - Batismo e Dimensão de socialização--------------------------------------------------75
4.3.2 - Compadrio: um contrato bilateral------------------------------------------------------80
4.3.3 - “Credo” e compadrio --------------------------------------------------------------------81
4.4 - Incesto----------------------------------------------------------------------------------------84
4.5 - Conclusão------------------------------------------------------------------------------------85
5- COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL---------------------------------------88
Laís Mourão Sá
5.1 - Introdução------------------------------------------------------------------------------------91
5.2 - Ideologia e práticas missionárias---------------------------------------------------------95
5.2.1 - As origens sociológicas da missão-----------------------------------------------------95
5.2.2 - Os princípios ideológicos da missão---------------------------------------------------96
5.3 - A cultura camponesa e as novas instituições da missa ------------------------------110
5.3.1 - A instituição do catequista-------------------------------------------------------------110
5.3.2 - Modelos genéricos de apreensão das novas instituições --------------------------120
5.3.3 - O batismo e a missa -------------------------------------------------------------------125
5.3.4 - A legião ----------------------------------------------------------------------------------131
5.3.5 - A roça comunitária----------------------------------------------------------------------138
5.4 - Bibliografia---------------------------------------------------------------------------------147
5.5 - Anexo: brincadeira de Bumba-Meu-Boi do Gama (Maranhão, 1972) ------------149
6- ANTROPOLOGIA SOCIAL DA BAIXADA MARANHENSE: EPÍLOGO COM
PROPOSTA DE UM MODELO--------------------------------------------------------------165
Roberto da Mata
6.1 - Introdução----------------------------------------------------------------------------------167
6.2 - Hipóteses iniciais--------------------------------------------------------------------------167
6.3 - Por um modelo do mundo rural---------------------------------------------------------171
6.3.1 - O sistema social-------------------------------------------------------------------------171
6.3.2 - O sistema politico-----------------------------------------------------------------------174
6.3.3 - O problema da mediação e o sistema politico---------------------------------------175
6.3.4 - O sistema religioso e o sistema social------------------------------------------------180
5
1. HIPÓTESE DE TRABALHO: SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DA RELIGIOSIDADE
Dr. Roberto da Matta
- Antropólogo -
Dezembro-1971
1.1 - INTRODUÇÃO
1.2 - O OUTRO LADO DA ATIVIDADE MISSIONÁRIA
1.3 - LOCALIZANDO O PROBLEMA
1.4 - DEFININDO OS FIÉIS
1.5 - SEPARANDO OS DOMÍNIOS
1.6 - IMPLANTANDO A AÇÃO
Toda ação humana tem dois aspectos fundamentais: de um
lado uma prática e de outro lado um código de
comportamento que a norteia. A atuação missionária na
prelazia não foge a regra. A pesquisa examinará a prática
missionária e ainda os dois lado da religiosidade popular
da qual nada se sabe. O enfoque primordial da pesquisa
cuidará da religiosidade regional em situação de contato
com a religiosidade oficial ou erudita. Postula-se como
hipótese de trabalho que são os dois os domínios que
disputam a população local: o código religioso tradicional
(religiosidade popular) e um código super-imposto a ele,
ou seja, o código missionário. A população manipula os
dois códigos. Assim, o problema central da pesquisa
enquadra-se no teste da hipótese de trabalho e da
verificação das situações em que a população usa uma ou
outra ideologia quando se trata de orientar a sua prática. O
autor antes de recomendar a adoção de um diário de
campo e de sugerir a convivência intensiva com os
habitantes do local, observa a necessidade de seguir o
preceito antropológico: ouvir muito mais do que falar,
aprender muito mais do que ensinar.
6
1.1 – INTRODUÇÃO
Dize-me com quem andas que
Eu te direi que és
(Ditado popular)
Alguém1 já deve ter dito que não há melhor modo de conhecimento do
homem do que através das produções do homem. De fato, poder-se-ia ir ainda mais
longe, afirmando que a práxis é o único modo possível de conhecimento, porque ela é
de fato o ponto onde se pode detectar descontinuidades entre os seres viventes entre si e
entre homens entre si.
Num contexto mais técnico e mais antropológico, tal formulação
implica numa distinção entre dois aspectos fundamentais de toda ação humana: uma
aparência, uma prática, e, de outro lado, um código de comportamento. Uma cozinheira
te receitas para fazer seus pratos, um cientista tem padrões para elaborar os seus
trabalhos, um missionário tem uma religião que lhe fornece conceitos e preceitos para a
ação individual e coletiva.
Um estudo, portanto, de qualquer ação humana, terá sempre e
necessariamente que implicar num exame do outro lado. De fato, sempre há outro lado
quando se trata de homens e de sociedades.
Nesta minha tentativa de formular um campo para pesquisa, desejo
inicialmente ressaltar qual o outro lado da problemática proposta para a investigação.
Em seguida, conceituar aquilo que se pode entender por religiosidade e, finalmente,
delimitar alguns problemas mais gerais. Será somente nesta ultima parte que farei
algumas considerações sobre certas técnicas de pesquisa e alusões metodológicas.
1 Convém esclarecer que esta formulação para pesquisa antropológica foi aceita depois de
várias tentativas anteriores neste campo. A primeira, de certa forma, se deve ao trabalho pioneiro do
pe.Bertrad Drapeau e de seu colega Jean-Paul Renaud, que em 1969/70 fizeram várias pesquisas
antropológicas na região, base de suas teses para a universidade Laval , de Quebec. A seguir, a pedido dos
coordenadores da pesquisa, o antropólogo Bruce Corrie formulou um anteprojeto de pesquisa
antropológica e visitou a região durante o mês de fevereiro de 1971, apresentando alguns modelos teóricos
e formulando hipótese sobre as manifestações da religiosidade e o seu mecanismo no contexto social e
cultural da área. O seu precioso estudo constitui três trabalhos mimeografados, e são partes da pesquisa
como um todo. O atraso de alguns meses no inicio da pesquisa dificultou a continuidade do trabalho
antropológico, retomado a partir de dezembro de 1971 com uma equipe constituída das antropólogas
Regina Prado e Laís Mourão, tendo como assessor e coordenador o antropólogo Roberto da Matta, diretor
do Programa de Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ). As formulações aqui
feitas o são no caráter de hipóteses (e não afirmações definitivas)que o trabalho de campo irá ou não
comprovar.(nota do CENPLA).
7
1.2 - O OUTRO LADO DA ATIVIDADE MISSIONÁRIA
Pelo que aprendi, a prática missionária na região da Prelazia de
Pinheiro (como qualquer outra atividade do mesmo tipo) tem dois lado: há uma prática
e há uma ideologia que reifica essa prática, ou seja , um código que norteia a navegação
social da missão e o comportamento dos missionários. Pelo que sei os resultados de tal
prática nem sempre foram satisfatórios e a própria missão está disposta a revê-la na
região. Coloca-se, pois, o problema da prática e , ainda que o problema do código que
engendra essa prática deva ter sido também colocado , não se trata de propor uma
pesquisa sobre ele. O ponto de partida é, pois, que apenas um lado da atividade seja
analisado sociologicamente. Pois bem, como ponto de partida, seria crucial um estudo
das raízes dessa prática: sua ideologia, sua ordem oculta, o outro lado dela. O segundo
problema é que os fieis também possuem uma prática e ideologia. Nada se sabe sobre
ela, sendo preciso estuda-la para se se possa penetrar neste universo com mais
facilidade. Sabe-se que, a par de uma “religião oficial” existe outro lado, oculto,
misterioso, chamado de “religiosidade popular”.
1.3 - LOCALIZANDO O PROBLEMA
Sabe-se, também, que a prática missionária não foi totalmente
infrutífera. Ela de fato, entre muitas outras coisas, atraiu adeptos que se aliaram
totalmente a missão e tornaram-se “catequistas”. Tal grupo pode representar uma
categoria muito especial, mas de um ponto de vista sociológico, ele representa o melhor
índice de compreensão do trabalho da missão na região. Se a prática missionária gerou
um grupo de catequistas, isso representa uma verdadeira encarnação da atuação da
missão naquela área. Em outras palavras, somando-se a atividade da missão ás crenças
locais, engendrou-se um tipo de gente especial que de um lado representa a ideologia da
missão personificada, de outro, a negação de tudo aquilo que existe na área, em termos
religiosos. Tal categoria representa o verdadeiro amigo. Conhecer tal amigo é conhecer
bem a missão. De modo que estudar quem são essas pessoas é uma tarefa crucial neste
estudo. Tomo como ponto de partida que tais associados atualizam um padrão de
conduta caracterizado por ser provavelmente sectário. Eles devem ser mais moralistas
do que os padres da missão, devem ser mais “cristãos” do que os membros da missão
devem rejeitar tudo que diz respeito à religiosidade local e fatalmente representam uma
caricatura só dos padres, como também do ideal cristão que os padres têm em mente
produzir. Tal conduta, caracterizada por oposições e contradições revelaria não só o
“outro lado” da atividade missionaria, como também o “outro lado” da religiosidade
local. Tudo que tais pessoas adotam deve ser fundamental para os padres (ou foi
percebido desse modo), tudo que eles rejeitam deve ser fundamental para os moradores
da região. O estudo desta categoria, portanto serviria como verdadeiro índice dos dois
códigos em mútua conversão, pois o fracasso da prática missionária revela , ainda , uma
“conversão” em curso na própria missão. Uma conversão do código da própria área,
porque ninguém consegue escapar da dialética de relação social, sempre feita a dois.
8
1.4 – DEFININDO OS FIÉIS
Colocado de modo superficial e um tanto quanto brutalmente o
problema do sucesso da Missão – um sucesso, aliás, rejeitado – quero fazer uma
consideração sobre ele, antes de passar ao problema da religiosidade.
Como antropólogo marcado por viagens de campo, defrontei-me
algumas vezes com o mesmo problema. Também encontrei índios “convertidos”
radicalmente à civilização dos brancos, rejeitando uma série de padrões de sua própria
sociedade. Geralmente tais pessoas são marginalizadas na própria comunidade em que
vivem e usam o antropólogo (também ele agente de mudança social e portador de um
código de comportamento) como um trampolim para cavarem um lugar onde possam
ficar em paz. Nada mais representativo do agente colonial (esse antropólogo
desavisado...) do que o nativo que amanhece vestido com uma camisa bem sua, anda
com uma caderneta no bolso e tenta escrever uma escrita cabalística, cujo efeito é
mágico porque ele, na realidade, não sabe escrever. Sua atividade é de imitação (essa
poderosa atividade humana) e, como tal, assume aspectos mágicos e ritualizados. Ele é
o espelho do antropólogo no campo e certamente ensina uma lição, pois suas ações são
as ações do agente colonial em plena atividade e a todo vapor. É preciso ver nele a
minha própria caricatura, porque nele eu estou representado. Não se trata propriamente
de um fracasso do antropólogo, mas da crueldade imposta pela comunicação entre os
homens porque há uma violência na comunicação, na interpretação, na análise. E há
uma brutalização na mudança social...
Retomemos, porém, o fio da reflexão. É preciso ter uma ideia de
religião e da religiosidade (a prática da religião). O defino operacionalmente religião
como Peter Berger e, muito antes dele, com E. Durkheim: religião é aquele aspecto da
ordem social (ou de uma ação social) que remete a um domínio (ou domínios) situado
fora do “aqui e agora”. O domínio da religião é o domínio das reificações primeiras (ou
últimas) das ações sociais. Neste domínio estão os axiomas do modo mais claros e mais
preciso e, também, do modo mais arbitrário. Um exemplo simples: uma criança precisa
ir para a cama as nove porque é criança! (Esse é o ponto irredutível da ordem dada pelo
pai, desde que todas as respostas aos “porque” falharam e a criança continua
perguntando). Um homem deve ser bom porque assim Deus quer que seja! O domínio
da religiosidade é o da ancoragem final das ações humanas.
Nesta colocação, tudo aquilo que traz ordem (e reificar é,
fundamentalmente, ordenar) remete à religiosidade, desde que se achegue ao nível da
ideologia ou da reificação. Como diz Berger, “todo gesto de ordenação é um sinal de
transcendência”, sendo, portanto uma ação religiosa.
Descongestionando, pois, os conceitos dos preconceitos (já que
“religiosidade” é habitualmente uma categoria distintiva, utilizada por aqueles que se
reconhecem dentro de uma ortodoxia oficial), entende-se, do ponto de vista
antropológico, que religião e religiosidade, aplicam-se tanto aos missionários enquanto
tais, como a população local. No entanto, o enfoque primordial da pesquisa cuidará da
“religiosidade regional em situação de” contato com outra “religiosidade oficial ou
erudita’, Só por tabela, e como decorrência de uma técnica de interpretação é que a
9
pesquisa introduzirá, fornecerá, indiretamente, pistas para o começo de uma possível
análise da religiosidade do próprio universo missionário”.
Do mesmo modo tal colocação ajuda a compreender outros aspectos
da interação Missão/região. Isso porque é bastante provável que a Missão veja a
religiosidade como um domínio específico da vida social (como de fato indica o
processo histórico de secularização da civilização ocidental, onde a vida social foi
dividida em pedaços, veja-se o ditado “amigos, amigos, negócios à parte” ), enquanto a
Antropologia Social tem revelado que, na maioria das sociedades humanas, tal domínio
não aparece destacado dos outros, sendo tal processo característico das chamadas
grandes civilizações.
Ora, se a religiosidade em muitos casos faz parte da própria pratica
social, o único modo de abordá-la adequadamente é pelo estudo desta prática e suas
ideologias, Por outro lado, tal formulação indica – ao menos teoricamente – que, onde
há uma sociedade, há uma religiosidade e que, no caso da Prelazia de Pinheiro, a
“religião oficial” representa uma intrusão na prática religiosa que é parte e parcela da
própria religião. Tal perspectiva coloca, portanto, alguns problemas.
1.5 – SEPARANDO DOMÍNIOS
Pode-se perfeitamente postular, como uma hipótese de trabalho, que
na região há um código “religioso” tradicional (a chamada religião popular) e um outro
código, superimposto a ele, seu competidor, que é a religiosidade do missionário. A
preocupação de uma Missão qualquer é de fato integrar a região numa comunidade
universal do mesmo modo que o intuito do Governo seria igualmente integrar a região
numa comunidade nacional, criar-lhe um lugar dentro da economia capitalista. O
reverso de tal situação (o seu “outro lado”) é que a região está dividida entre um código
local e um código nacional no plano social e político e, no plano espiritual, entre um
conjunto de crenças “populares” e outro aparentemente muito mais elaborado e de
pretenso caráter universalista.
Existem, pois, por hipótese, dois domínios que “disputam” a
população local. Mas vendo o “outro lado”, pode-se igualmente dizer que a população
local manipula esses dois domínios e seus respectivos códigos. Tal situação, que é
muito comum quando se trata de suas culturas diferentes, como no caso de contrato
entre índio e brancos, torna-se confusa quando se trata de dois segmentos de uma
suposta sociedade única, no caso, da sociedade brasileira. O problema da comunicação é
assim muito mais relacionado às oportunidades que tem uma dada população de
manipular o código tradicional, e o código que se lhe apresenta como alternativa, do que
propriamente de se oferecer a ela um código alternativo altamente eficiente. Creio,
assim, que o problema desta pesquisa será o teste destas hipóteses de trabalho e a
verificação das situações em que a população usa uma ideologia ou outra quando se
trata de explicar, justificar ou simplesmente colocar determinados suportes para as suas
ações sociais e instituições.
10
Esperaria que, em determinados momentos, o código do catolicismo
missionário fosse plenamente usado e que, em outros, o código de “pajelança” fosse
utilizado. Isso não traria conflitos abertos ou necessários e, pelo contrário, reforçaria a
posição de que afinal regras sociais e códigos de comportamento estão ai para serem
usados. São recursos como quaisquer outros à disposição de uma dada população.
1.6 – IMPLEMENTANDO A AÇÃO
Para que tal pesquisa seja bem sucedida, é preciso seguir à risca o
preceito básico da Antropologia: ouvir muito mais do que falar, aprender muito mais do
que ensinar. As técnicas de pesquisa serão as que permitam descobrir como a vida
social desta gente se organiza.
Deve haver uma ordem oculta qualquer por trás das escolhas sociais
desta população e o primeiro passo será descobrir essa ordem. Em geral os homens se
organizam em grupos e o primeiro momento será localização destes grupos. Depois, a
verificação do seu peso específico em cada situação e problema. Para tanto, creio que a
convivência intensiva com os habitantes do local forneça as pistas principais. Em
antropologia, o antropólogo é um homem dentro de um quarto escuro: quem risca o
primeiro fósforo é o antropólogo formulando uma hipótese geral (isso foi feito aqui),
Mas quem ilumina gradativamente o quarto são seus informantes. A convivência, deste
modo, deverá trazer insights sobre a situação e estes insights devem ser seguidos com
entrevistas informais. Cabe basicamente a sensibilidade do antropólogo a descobertas de
certas conexões, porque sem ligar, não se pode descrever. Daí porque eu recuso o uso
do formulário que, de saída divida o continuum da vida social em pequenas perguntas,
partindo-o de modo irremediável. A descrição que vem de formulários ou questionários
é, sempre, uma descrição em pedaços, não integrada e, do meu ponto de vista,
deficiente. O problema da pesquisa em Antropologia é integrar e só se pode integrar
buscando os princípios de ordem fundamentais e discutindo esses princípios em detalhe.
Assim sendo, recomendo que seja feito um diário de campo, algumas
entrevistas formais (para a coleta de dados mais duros e fáceis de obter) e,
principalmente, desenhos das comunidades (ou comunidade, bairro, etc...) e diagramas
de fronteiras de grupos sociais, esquemas, etc..., pedindo aos próprios informantes que
seja seus executores.
Será deste modo que vejo o reinicio das atividades antropológicas na
área e estou certo de que assim alguns resultados positivos serão efetivamente obtidos.
11
2. SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DE ENTIDADES SOBRENATURAIS
Laís Mourão Sá
- Antropóloga –
1972
2.1 – INTRODUÇÃO
2.2 – O DOMÍNIO
2.3 – CATEGORIAS
2.3.1 – Deus
2.3.2 – Diabo
2.3.3 – Santos
2.3.4 – Outros
2.3.4.1 – Mãe-d’água
2.3.4.2 – Curupira
2.3.4.3 – Curacanga e Lobisomem
2.3.4.5 – Vagantes
2.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA
Trata o presente trabalho de um exercício sobre a aplicação do
método da Antropologia Cognitiva ao material colhido no
povoado de Barroso, município de Bequimão, na região da
Baixada Maranhense, que tenta apreender de que modo a
população local classifica suas entidades sobrenaturais. O
método utilizado foi o da comparação, ou seja, verificou-se de
que modo as categorias se relacionam e se essa relação
permanece ou se modifica, não havendo, portanto, a
preocupação com o problema da origem. O domínio considerado
mais geral é o dos seres que pensam, porque separa as diversas
categorias abordas e define os limites do campo semântico em
que o trabalho está inserido, chegando-se, após uma série de
critérios extraídos desse mais geral, a caracterizar
detalhadamente as entidades sobrenaturais aqui estudadas.
12
2.1 – INTRODUÇÃO
O que pretendemos aqui é fazer um exercício sobre a aplicação do
método da Antropologia Cognitiva ao material de que dispomos2. Apresentaram-se
algumas dificuldades principalmente devido ao fato de que este matéria não foi colhido
com a preocupação de aplicar o método, razão pela qual muitas lacunas não puderam
ser preenchidas durante a análise. Por ser nosso intuito cobrir toda a vasta área da
religiosidade local, evidentemente havia material suficiente para se tentar apreender de
que modo a população local classifica suas entidades sobrenaturais. Os informantes
utilizados eram, em sua maioria, leigos. Dentre os especialistas, contavam-se uma
rezadeira-parteira, uma benzedeira, uma pajoa3.
Muitos dos dados que utilizamos neste exercício foram deduzidos a
partir de mitos de origem, expressões linguísticas utilizadas em contextos específicos,
relatos de experiências vividas pelos informantes ou de casos conhecidos pela
comunidade. Outras vezes os dados saíram de entrevistas que tinham por objetivo
estabelecer relações mais precisas entre as categorias.
2 Material referente a trabalho de campo realizado durante os meses de janeiro-fevereiro-março, na região
da Baixada Maranhense, município de Bequimão, povoado de Barroso, Objetivo geral da pesquisa:
levantamento dos principais aspectos da organização social para inferir-se daí a importância e o alcance
do nível religioso da comunidade.
3 Cf. trabalho Regina Prado sobre as categorias de funcionários religiosos (capítulo seguinte).
13
É importante notar, também, que o pensamento religioso na cultura
local se elaborou a partir de três origens distintas: a indígena, a africana e a do
catolicismo ibérico, tradicional, veiculado pelo colonizador português e seus agentes
missionários. Na pratica, o quadro que encontramos apresenta, evidentemente, uma
unidade própria, não cabendo, portanto, uma preocupação básica com o delimitar das
estruturas originais de cada tipo de influência. Porém, muitas vezes constatamos que
existem como que “pedaços” de estruturas vindas dos três quadros originais,
combinando-se na cultura local de modo ambíguo, devido à perda do quadro de
referência global de onde provém. Quando isso ocorreu, tentamos o recuso à fonte
original, como, por exemplo, no caso da influência indígena Tenerehara4, com o
objetivo de verificar de que modo as categorias se relacionam aí, e se essa relação
permanece ou se modifica no caso presente. Isto é, o recurso metodológico foi o da
comparação, e não a preocupação histórica cm o problema da origem.
2.2 – O DOMÍNIO
A cultura local não possui uma expressão global para referir o
conjunto das entidades sobrenaturais que classifica. Analiticamente, o próprio conceito
de “entidade sobrenatural” se revela ambíguo, na medida em que o domínio do religioso
cobre uma extensão tão vasta da vida social que o limite entre profano-sagrado, ou
natural-sobrenatural, se torna extremamente difuso só podendo ser definido em termos
de situações específicas.
Tentamos, então, identificar as categorias a partir da definição de
religioso com a qual vínhamos operando, e analisar a posteriori qual seria a melhor
forma de definir o domínio. Desde nossas hipóteses de trabalho iniciais, definimos o
religioso como tudo aquilo que transcende o aqui e o agora da vida social, atingindo o
limite do axiomático. Assim, todas as explicações ou ações que não se encaram na
realidade imediata da vida cotidiana, constituem objeto de um estudo do nível religioso
da vida social. Procuraremos identificar quais as entidades que surgem neste contexto,
defini-las e estabelecer os critérios pelos quais se delimita o domínio aqui considerado.
2.3 – CATEGORIAS
2.3.1 – Deus
Deus fez tudo o que existe sobre a terra. O bem e o mal. É ele que dá a
“sina”5 das pessoas, santos ou pajés. Ele reina sobre tudo e explica tudo num nível mais
geral, o que não impede de haver outras explicações para cada fato, em níveis mais
específicos. Por exemplo, num nível geral, todas as sinas são atribuídas a deus; num
4 Cf. Wagley & Galvão.
5 Expressão que significa destino.
14
nível mais específico, quando se reconhece que uma criança tem sina de pajé, diz-se: “É
negócio de encantado”, sendo esta uma categoria bem distinta de deus, como veremos
adiante.
Comparada com o conjunto das demais categorias, a categoria deus se
assemelha à categoria do herói cultural indígena. São heróis criadores e civilizadores
que, depois de ensinar ao homem, sua criação, os traços mais fundamentais da cultura,
se retiram para o paraíso e de lá reinam sobre sua obra, sem atuar mais diretamente
sobre ela. Daí por diante sua ação se manifestará muito mais através de seus delegados.
É sabido, inclusive, que os jesuítas buscaram identificar a sua categoria deus com esse
tipo de entidade (o herói cultural Tupã), o que indica uma intuição da semelhança
estrutural entre as duas categorias, nos dois sistemas.
No material que recolhemos há afirmações como “O mundo é
contaminado de tudo. Do bem e do ruim. Do mal e do que é bom. Tudo Deus botou”.
Há uma estrofe de toada de Bumba-meu-boi que diz “... que pensa de Deus/não ficou
pra nóis adivinhá...” E o informante interpreta: “Os pensa de Deus nóis não adivinha.
Próprio nem os papa. O mundo não ficou pra adivinhá o que Deus tem pra fazer”. E,
noutro contexto, falando de sua atividade econômica: “A gente não sabe o que Deus tem
pra fazer. A gente faz um cálculo, Deus desmancha. O da gente é sempre errado, e o
dele é verdadeiro”.
2.3.2 – Diabo
É a categoria que expressa o conceito de mal num nível mais global,
funcionando como explicação de toda a situação de desordem. O conceito de desordem
vem explicitado no termo “atrasos”, indicando a consequência de toda ação que tem
como causa uma tensão do Malvado. Os “atrasos” ou “malfeitos” indicam transgressões
de leis sociais, como, por exemplo, no contexto em que a cachaça é considerada “coisa
do Malvado” porque leva a pessoa abrigar ou matar, “atrasos” para sua vida. Há ainda, o
caso mais típico do compadrio, onde a relação do mal com a desordem aparece
claramente: se os compadres não usarem o termo de tratamento adequado este será
usado pelo Malvado, e a pessoa que não foi chamada de compadre, ou comadre, passa a
figurar nessa relação com o diabo. O caso mostra de que modo uma relação social não
nominada cai fatalmente no nível de desordem, e mostra também de que modo a
ideologia utiliza esta categoria para expressar o fato.
2.3.3 – Santos
Elaborados a partir do quadro de catolicismo popular, os santos são,
sem exceção, definidos como entidades bondosas, ex-seres humanos com qualidades
excepcionais as quais conduziram a santificação. A indicação de que “são bons” é
importante porque surge como oposição à qualidade de outros seres: “Os santos não
atentam”. Por isso não se tem medo deles: sabe-se que castigam, mas só quando
15
reconhecidamente o indivíduo merece (quando, por exemplo, deixa de cumprir uma
promessa, ou em alguns milagres onde os santos castigam pessoas que estão
transgredindo impunemente leis sociais).
Muito já se disse sobre as relações contratuais estabelecidas com os
santos (promessas). Mas dentro desse modelo geral há aspectos importantes que
merecem atenção, como, por exemplo, o contexto das promessas, quando visto em
relação ao conteúdo da categoria “milagre”. Este é um dos temas sugeridos pelo
material de que dispomos, mas que não cabe no âmbito do presente trabalho.
Relacionamos a seguir os principais traços que aparecem nos relatos sobre a categoria
santos6:
a) Identificação do tempo dos santos com o tempo de Jesus, o que pode
aparecer também sob a forma de participação do santo no sofrimento de
Jesus (santos que foram sacrificados junto com ele ou passaram
concomitantemente por outros tipos de sofrimento). O elemento
importante aí é “sofrer uma injustiça, passar por um sofrimento”. Ainda
em relação à identificação no tempo, surge o modelo apocalíptico, com os
polos: tempo de santo (antes, tempo do bem, começo do mundo, tempo de
Jesus, em que todos rezavam) x tempo de dilúvio (hoje, tempo do mal, não
há mais santos, ninguém reza, não há lei, só há confusão);
b) identificação no espaço socialmente conhecido: diz-se que todos os
santos são “do Brasil”, sendo que alguns têm sua história localizada em
municípios próximos, onde se erguem suas igrejas;
c) predestinação com origem em deus. É importante notar que da mesma
forma que o pajé tem sua “sina”, explicada por regras que o colocam em
contato antecipado com o mundo dos encantados, também os santos,
durante sua vida (ou período que antecede a introdução no mundo
sobrenatural) apresentam sinais que explicam seu “dote” por uma ligação
especial com elementos ou situações de culto católico. Por exemplo,
“adorar a deus desde o berço”, ser assíduo à missa, ingressar numa ordem
religiosa;
d) ressureição: os santos são seres humanos que morreram e, voltando a
viver, se transformam em seres sobrenaturais. Daí serem chamados “santos
vivos”;
e) legitimação: o elemento legitimador da santificação é “Roma” que
aparece como símbolo de hierarquia máxima da Igreja, mesmo que não se
saiba explicar onde fica, ou o que existe lá, como ocorre sempre. O corpo
do santo é sempre levado para Roma, onde se transforma em imagem, da
qual é tirada uma cópia para ficar na igreja local;
6 A principal informante foi uma rezadeira-parteira, cujos relatos estão fortemente referidos ao conteúdo
dos “benditos” (orações cantadas provenientes da herança do catolicismo ibérico).
16
f) poderes excepcionais: depois de santificados, estes seres adquirem o
poder de realizar milagres, isto é, fatos sem qualquer probabilidade de
ocorrência dentro das leis sociais vigentes7. A definição-padrão da
categoria é: “Os santos existem para fazer milagres pra gente”.
Os “santos vivos” são ditos ter “alma e tudo”, isto é, parecidos com os
seres humanos. Existem em Roma, estando, portanto, “em cima da terra”, e é através de
sua imagem que se pode conhecê-los. Daí dizer-se que o santo é “visível”, sem oposição
às outras entidades que não se manifestam através de imagens. Daí, também, a relação
com os santos ser vivida com uma intimidade, resultante da certeza e da não-
ambiguidade com que são definidos: “Aqui todos estão acostumados a ter um santo
desses aqui na terra que a gente faz essas festas pra ele”. Há ainda os “santos de casa”,
que não fazem milagres (porque só os santos da Igreja podem fazê-los), mas que “é
como se fosse”. Estes também aparecem nas salas dos pajés, representando os santos de
sua devoção (sem relação com o ritual da pajelança).
Diante das três categorias já apresentadas (deus, diabo e santos), queremos chamar
atenção para um tipo de modelo que aparece no discurso de certos informantes referidos
basicamente ao quadro conceptual do catolicismo popular:
I - Deus (mundo de cima)
II - Santos (mundo da terra)
III - Inimigos (mundo do fundo)
As categorias I e II formam um polo de posição à terceira, e nesta são
incluídos tanto o diabo, símbolo do mal em sentido global, como também todas as
categorias que apresentaremos a seguir. Esse tipo de operação classificatória remete
diretamente à ideologia católica enquanto ideologia dominante, legitimada pela
sociedade nacional que defini como “inimigos”, isto é, elementos desorganizadores,
todos os sistemas que interferem na área ideológica que ela tenta controlar. Mas, se
considerarmos a totalidade dos informantes (sem separá-los segundo a ênfase neste ou
naquele modelo, já que todos integram num único sistema), é interessante notar que
principalmente as categorias I e II são unanimemente partilhadas pela população local.
As grandes contradições ideológicas surgem na conjunção da categoria III com as que
apresentamos a seguir.
2.3.4 – Outros
Incluiremos nesse item quatro entidades que não se agrupam sob uma
denominação comum, embora se aproximem em certos aspectos, diferenciando-se em
outros.
7 Essa é uma hipótese a ser testada posteriormente.
17
2.3.4.1 – Mãe-d’água
É uma entidade ambígua, pode fazer o bem ou o mal, dependendo do
comportamento da pessoa em relação a ela. Há certas regras para se lidar com a mãe-
d’água (pedir licença para passar num riacho, ou para se banhar, pedir boa água no
poço, etc.). A ambiguidade dessa categoria está ligada, também, a sua vigência no
âmbito da pajelança, onde funciona como veículo dos diagnósticos e da cura ritual.
Outro traço característico é que as mães-d’água não têm origem humana: “Mãe-d’água
nunca foi pessoa que morreu. Foi Deus que deixou no mundo”. Aparece frequentemente
no discurso sobre a mãe-d’água o termo “encantado”, que também é sinônimo de
“companheiro do fundo”. Galvão observa que8 para o leigo (não iniciado na pajelança),
o conceito de “companheiro do fundo” é muito vago, às vezes é colocado na categoria
especial de “encantado”, conceito que, por sua vez, se define como um poder mágico de
encantar seres humanos, animais ou objetos. Diríamos que a repetida manipulação do
conceito, já bastante distanciado do sentido que teria no contexto indígena puro,
provocou uma generalização difusa do termo, para designar todos os seres que estamos
incluindo nesse quarto item de categorias. A teoria local não apresenta uma explicação
esclarecedora da questão, razão pela qual preferimos não utilizar o termo “encantado”
como uma categoria específica.
2.3.4.2 – Curupira
Enquanto as mães-d’água são responsáveis pelo domínio das águas, os
curupiras controlam o domínio da mata. A descrição da entidade se aproxima do Saci-
Pererê: é um pretinho que assovia de noite para assombrar as pessoas: tem o pé pequeno
e o calcanhar para a frente, deixando as pegadas ao contrário, de modo a enganar as
pessoas quanto a sua direção e fazê-las perder-se no mato. É também um ser ambíguo,
no sentido de que pode ou não fazer o mal, dependendo do comportamento que se tem.
Se alguém fica assombrado de curupira, só um pajé pode curar. Ele pode levar crianças
para o tucunzeiro (árvore que é sua morada) para fazer o mal: “ficar burro da cabeça,
assombrado”. As duas regras que se deve observar quanto ao curupira são: não xingar e
não construir casa no caminho por onde ele passa. Como a mãe-d’água, também não
tem origem humana.
2.3.4.3 – Curacanga e Lobisomem
Distinguem-se das duas categorias anteriores por serem seres humanos
que sofrem uma transformação momentânea em decorrência de certas circunstâncias.
Assim, a curacanga, espécie de fogo que pode ser visto à noite, é uma mulher que tem a
sina de sofrer essa mutação toda a sexta-feira, devido ao fato de ser a sétima filha de
uma sequencia de sete irmãs. A cabeça se desprende do corpo e se transforma em fogo
que fica a vagar pelo campo, assombrando e queimando quem a vê. O único modo de
8 Cf. “Galvão, Santos e Visagens”, pp. 91 a 93.
18
quebrar esta sina é fazer com que a pessoa tenha por madrinha a irmã mais velha.
Quanto ao lobisomem a explicação é a mesma, com a diferença que se aplica a uma
seria de sete irmãos e a sina é transforma-se em porco. Dizem que ambos “são do
maligno”, e não se confundem com a categoria dos encantados a que nos referimos
acima.
Enquanto, de um lado, essas quatro categorias são “acusadas” pela
ideologia do catolicismo tradicional de serem “coisas do Satanás”, de fato, nelas a ideia
de mal aparece com uma qualidade alternativa. O mal não se personifica num único ser,
mas surge como um tipo de poder que pode manifestar-se ou não numa entidade,
dependendo das circunstancias. Poderíamos talvez ver aí a presença de uma concepção
de mundo que diverge do maniqueísmo típico do catolicismo, o que, aliás, permite a
assimilação de certos conceitos desde (noção de mal(, com reintegração noutro quadro
de referência. Esse não-maniqueísmo seria mais representativo da cosmovisão indígena
que marca fortemente a cultura local9.
2.3.5 – VAGANTES
São os espíritos de seres humanos que, após a morte, voltam para
“atentar” as pessoas vivas. Aparecem à noite, sendo também chamados de
“assombrações” ou “visagens”, termos que designam todos os seres sobrenaturais que
se manifestam visivelmente aos vivos. Essa é a categoria que melhor especifica, ao
nível do cotidiano, as características que no nível mais global são atribuídas à categoria
diabo. Assim, os vagantes são espíritos “mal-encaminhados” que fazem o mal. É gente
que morre e “não vai pra bom lugar porque não presta”, deixou alguma falta ou pecado
por pagar.
“Quando a gente é malvado aqui em cima da terra, ele não tem bom
sossego na onde ele vai. Nós tamo aqui nesse mundo é pra nós fazer
benefícios uns pros outros”.
“...eram elementos que só faziam mal, se tinham dinheiro, só tinham
eles, se tinham o comê, comiam sozinhos, os pobres morriam à
mígua... Chegou lá, não teve lugar pra eles, ficaram purgando...”
Assim, a ideia, do mal num nível mais específico volta a surgir num
contexto de uma desorganização social, onde as regras sociais foram transgredidas. Os
vagantes “atentam”, isso é, provocam “atrasos”, como matar, roubar, etc. Na pajelança,
eles são o polo oposto às mães-d’água que fazem o bem (curam) e, como tal, os
vagantes são combatidos e exorcizados com “bálsamo santo em cruz”, quando, por
acaso, baixam nas sessões.
9 Enquanto no catolicismo se verifica um modelo de passagens irreversíveis bem-mal, isto é, uma
descontinuidade, nos outros sistemas ideológicos em questão essas passagens se dão dentro de uma
continuidade que vem, inclusive, explicar a ambiguidade teórica das categorias. Elas só se definem como
boas ou más contextualmente, há uma reversibilidade entre o bem e o mal.
19
2.4 CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA
Como não existe uma categoria para referir o domínio, tentamos
inferir que critérios estariam por trás da classificação de entidades sobrenaturais. Em
primeiro lugar, essas entidades estariam no domínio dos seres que pensam, já que se
distinguem de animais, vegetais, ou coisas sem essa característica. Este, então, seria um
domínio mais geral que separa as categorias que nos interessam de outras possíveis,
definindo os limites do campo semântico com que lidamos.
Dentro deste domínio, encontramos não só os homens de um modo
geral, mas todos os seres que, participando de sua lógica racional, se fazem presentes na
vida social. No entanto, essa presença assume uma conotação diferente da presença dos
homens, em que sua própria vida social rotineira, na medida em que se efetua por
intermédio da ação de poderes extra-humano, próprios do reino do sobrenatural. Temos,
assim, uma primeira dimensão de contrastes dentro do domínio:
a1: vida social rotineira – seres com poderes humanos;
a2: vida sobrenatural – seres com poderes não humanos.
Cada um desses componentes poderia, na verade, ser tratado como um
domínio à parte, ou um sub-domínio dentro do domínio maior. Nosso interesse aqui será
desenvolver o componente a2, deixando claro que a1 não indica uma categoria terminal,
mas será deixado de lado porque, em última análise, remete a um domínio distinto.
Os seres que possuem poderes anormais, não cotidianos, distinguem-
se primeiramente quanto à sua origem humana ou não humana. A segunda dimensão de
contraste fica sendo, então:
b1: seres com origem humana;
b2: seres com origem não humana.
Quanto aos de origem humana, há os que já morreram, insto é, santos
e vagantes, os quais se diferenciam pela prática do bem ou do mal.
Por outro lado, há os que são atualmente humanos, vivos, ou seja, a
caracanga e lobisomem, cuja distinção se faz pelo critério do sexo.
Temos, assim, mais três dimensões de contraste:
c1: ex-humanos; e1: bem f1: homem
c2: atualmente humanos. e2: mal f2: mulher
Voltando, agora, ao segundo componente da segunda dimensão (b2),
verificamos que, entre os seres de origem não-humana, temos mãe-d’água, curupira,
deus e diabo. Desses, os dois primeiros se distinguem pelo fato de lhes atribuído o
controle de um determinado domínio da natureza, enquanto os dois últimos atuam sem
essa especificação, apontando, ao contrário, a tendência a um controle difuso sobre o
mundo de um modo geral.
20
Por fim, teríamos que diferenciar ainda deus-diabo, o que se faz pelo
critério da prática do mel e do mal. As dimensões restantes são:
d1: controle específico de um domínio da natureza
d2: controle difuso sobre o mundo
g1: água h1: bem
g2: mato h2: mal
Indicamos, dessa forma, oito dimensões de contraste atuantes no
esquema de classificação das entidades sobrenaturais entre a população local. Essas oito
entidades distribuem em cinco níveis taxonômicos, como veremos nos diagrama a
seguir. Daremos, antes, as definições componenciais de cada categoria:
Santos a2 b1 c1 e1
Vagantes a2 b1 c1 e2
Lobisomem a2 b1 c2 f1
Curacanga a2 b1 c2 f2
Mãe-d’água a2 b2 d1 g1
Curupira a2 b2 d1 g2
Deus a2 b2 d2 h1
Diabo a2 b2 d2 h2
21
D I A G R A M A
Seres que pensam
Seres com poderes humanos
A1
Seres com poderes não-humanos
A2
Atualmente humanos
c2
Bem e1
Mal e2
Homem
f1
Mulher
f1
Ex-humanos
c1
Controle difuso sobre o mundo
d2
Controle especif. de 1 domínio nat.
d1
Água g1
Mato g1
Bem h1
Mal h1
Seres humanos
b1
Seres não-humanos
b2
I
II
SANTOSVAGAN-
TES
LOBISO-
MEN
CURACAN-
GA
MÃE-
D’ÁGUA
CURUPI-
RA
DEUS DIABO
III
22
3 – SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS RELIGIOSOS DA ZONA
DA BAIXADA MARANHENSE
Regina de Paula Santos Prado
- Antropóloga –
1973
3.1 – INTRODUÇÃO
3.2 – EM BUSCA DO DOMÍNIO
3.3 – O CONJUNTO DE CATEGORIA DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMÍNIO
COMO SISTEMA
3.3.1 – Padre
3.3.2 – Rezador
3.3.2.1 – O rezador como categoria referencial do padre
3.3.2.2 - O rezador como celebrante das festas dos Santos
3.3.2.3 – Algumas observações a respeito do padre e do rezador
3.3.3 – Benzedor e Parteira
3.3.3.1 – Benzedor
3.3.3.2 – Benzer
3.3.3.3 – Dimensão sexo
3.3.3.4 – Repertório dos males do benzedor
3.3.3.5 – A reza do benzedor
3.3.3.6 – Benzedor: uma categoria mediadora entre o código do catolicismo e o código
da pajelança
3.3.4 – Pajé
3.3.4.1 – Curador e Feiticeiro
3.3.4.2 – Pajé e Mineiro
3.3.4.3 – Doutor do Mato
3.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS
CATEGORIAS
3.5 – BIBLIOGRAFIA
Os funcionários religiosos da Baixada Maranhense são aqui estudadas
através de um método Sincrônico. A escolha de tal método e não do método
Histórico se prende à necessidade de enfocar a questão no seu conjunto,
apresentando os funcionários religiosos da Baixada Maranhense como um
sistema e não como uma colcha de retalhos em que se evidenciariam apenas
as origens culturais que contribuíram à formação do sistema. Após
descrever e analisar todos os funcionários religiosos, estudando as relações
existentes entre eles, observa-se que parece existir um continuum no qual o
padre e o pajé ocupariam os extremos, enquanto o rezador e o benzedor, os
meios. Isto significa que o padre articula a comunidade com o mundo
externo e existe uma gradação até o pajé, ou seja, à medida que passamos
pelo rezador e benzedor, penetramos cada vez mis no código local. O pajé,
no outro extremo, atuaria nas áreas mais escondidas, reprimidas e íntimas do
código local.
23
3.1 – INTRODUÇÃO
Toda fonte de informação deste artigo provém de um trabalho de
campo realizado, durante o período total de 5 meses (janeiro-fevereiro; junho a outubro
de 1972), no município de Bequimão, na zona da Baixada Maranhense. A maioria dos
dados foram colhidos junto a moradores de um pequeno povoado, Barroso, de mais ou
menos 350 pessoas. Mais tarde percorremos outras localidades em busca de
confirmações ou possíveis variantes.
Constituirá um dos capítulos de uma pesquisa mais ampla cujo
objetivo principal é o de dar conta do sistema religioso do caboclo daquela região.
Informações complementares sobre a organização social e as relações econômicas que
permitirão uma melhor apreciação da sociedade como um todo estão sendo ou já foram
amplamente descritas em capítulos especiais10
.
Contudo, algumas observações preliminares que tangem diretamente o
presente tema devem ser colocadas para que possamos navegar com maior segurança.
Ao penetrarmos mais de perto no universo religioso do caboclo
maranhense percebemos três grandes influencias: elementos provenientes do
catolicismo do branco (do senhor patrão ou do agente missionário), heranças indígenas
e componentes africanos.
Poderíamos tomar, assim como muitos já fizeram tanto no campo
sociológico quanto antropológico, o caminho de uma análise histórica e procurar as
raízes verdadeiras, as mediações, as “deturpações”, os amálgamas.
No entanto, se esse caminho, apesar dos inúmeros esclarecimentos
que possa trazer, for eleito de modo exclusivo e prioritário, poderemos deixar de lado
aspectos importantes. Ao maximizarmos as fontes e minimizarmos a lógica do
processor, termos como “verdadeiro” e “impuro”, “origens” e “reminiscências” ou
“corruptelas” viriam forçosamente à baila. Tal posição não raro tem conduzido a uma
ânsia enganadora de purismo e traído, sub-repticiamente, julgamentos de valor. De
outro lado, tem indiretamente fornecido explicações e argumentos aos que, se situando
na “ortodoxia”, desejam melhor conhecer as interferências estranhas e seu poder de
simbiose para poderem distinguir o original do espúrio e estabeleceram uma ação
normativa imune de qualquer perigo de deturpação. É muitas vezes o que acontece com
a Igreja.
A franqueza dessa posição advém do fato de tratar do universo
religioso daquela sociedade como se fosse uma colcha de retalhos, confusa e ilógica,
buscando as explicações coerentes, não no presente, mas no passado ou alhures. Em
suma: não se chega a analisa-lo enquanto sistema, a descobrir-lhe as regras e
consistências próprias, apesar da complexidade. Ao descrevê-lo, por causa da
necessidade constante de referir-se aos sistemas “verdadeiros” e “completos”,
descartam-se facilmente muitos informantes e privilegiam-se, ao contrário, os
exemplares raros, testemunhas fidedignas de um passado quase perdido. Assiste-se mais
à descrição das dignas de um passado quase perdido. Assiste-se mais a descrição
10 O meu trabalho Parentesco e Compadrio, apresentado mais adiante.
24
daquilo que foi ou poderia ter sido do que realmente como o povo vive e manipula
atualmente as suas tradições. De certo modo, a sociedade estudada torna-se apenas um
pretexto, um ponto de partida que se dilui no desenrolar da análise, como se tivesse sido
convenientemente amordaçada.
Insistimos, portanto, na riqueza da abordagem sincrônica. Isso não
quer dizer que deixemos de lado as informações de caráter histórico. Devem ser
consultadas e utilizadas. Só que não poderão constituir o ponto de chegada. Se não
puderem elucidar ou serem integradas na analise do universo religioso em questão,
enquanto sistema, não passarão de digressões eruditas de valor exógeno ao objeto
proposto.
Além disso, a abordagem sincrônica favorece o estudo do “religioso”
não desassociado da estrutura social. Se faz parte de um todo mais amplo e a ele está
intrinsecamente ligado poderemos, ao tratarmos de estrutura social, estar falando do
universo religioso ou vice-versa. Tudo se sustenta ou se explica reciprocamente. Melhor
ainda: a estrutura social e representação religiosa são duas maneiras diferentes de contar
aquela sociedade.
A outra vantagem, corolário da primeira, consiste na evitação de um
ponto de vista etnocêntrico. De fato, quando na analise do religioso não se procura
descobrir o caráter de sistema, destacam-se os componentes da cadeia semântica onde
se relacionam, e se faz uma comparação avulsa ou uma avaliação a partir de um centro-
crivo que se situa fora da cultura estudada. Numa linguagem, corriqueira: enxerga-se o
bonito ou o feio com lentes próprias. Mas não seria este o esquema que ainda perdura
em muitos dos documentos eclesiásticos oficiais que sob a aparência, não mais da
intransigência ou tolerância, mas do diálogo e do respeito, aconselhariam os fieis a
descobrirem “valores” presentes (= elementos destacáveis) em outras religiões que
deverão ser conservados ou assumidos? Em outras palavras: na impossibilidade de uma
total relativização, de um “não-centro universal”, passa-se a estabelecer um continuum
valorativo que vai do bom ao mais ou menos até o ruim.
Estas colocações foram necessárias porque, ao tratarmos dos
“funcionários religiosos”, esbarraremos inevitavelmente nas diferentes heranças, já que
alguns estariam ligados mais diretamente a esta ou aquela tradição. No entanto, este
agrupamento, segundo as fontes, não corresponde à classificação dos moradores locais,
objeto de nosso estudo.
Assim, aquilo que poderia parecer-nos incompatível de ser
aproximado, por razões históricas diferentes ou códigos doutrinários conflitante, será
relacionado e utilizado por um mesmo indivíduo, segundo critérios próprios.
Partiremos, pois, para a descoberta da lógica desses critérios e para
isso recorreremos, na medida em que puderem nos auxiliar, aos instrumentos analíticos
que nos fornece a antropologia cognitiva.
25
3.2 – EM BUSCA DO DOMÍNIO11
Ao entrarmos em contato com a comunidade de Barrosos veremos que
seus moradores recorrem, ao longo da vida para fins próprios, a especialistas
determinados ou, tecnicamente falando, a certas categorias de indivíduos investidos de
poderes específicos.
O que permitiria agrupar o conjunto destas categorias num mesmo
domínio seria a peculiaridade de poder ao qual todas participam. Não se trata aqui de
poder politico (o prefeito), judicial (o delegado ou o juiz), o econômico (o comerciante
ou o fazendeiro), mas de poder “religioso”.
Segundo mais de perto os conceitos locais e procurando apesar dos
traços divergentes que aparecerão mais tarde – o denominador comum dos funcionários
religiosos diria que são indivíduos “sabedores de muitas rezas”, maneira pela qual
caracterizam a especificidade do poder que possuem. É esta sabedoria adquirida,
conforme as categorias, por formação (= estudo), tradição, ou possessão que os tornará
capazes de ordenar, isto é, de dar sentido ou de arrancar do caos, para usar um conceito
de Peter Berger, a vida do “cliente” ou “fiel” (dependendo do contexto). Portanto, ainda
que não apareça no discurso um termo (= “label”) explícito que nomeie o domínio, ele
existe conceitualmente.
O que determinou a escolha deste domínio como objeto de análise não
está condicionado a motivos formais: a seleção de uma área que apresentasse melhores
condições para a aplicação dos recursos técnicos oferecidos pela “ethnoscience”. A
direção tomada foi inversa: tentamos penetrar naquilo que permeava o cotidiano dos
moradores para perceber a logica de suas decisões.
De fato, o quadro que nos desafiava, configura-se, de imediato,
complexo, quando não, contraditório. Festas de caráter católico onde o padre não
comparecia. Enterros e batismos oficiados por rezadores. Catequistas e fieis da igreja
que se dessolidarizam dos pajés, mas que a eles recorriam clandestinamente.
Frequentadores simultâneos da missa e dos serviços de pajelança. Indivíduos que
recorriam, sem nenhuma contradição, a médicos e curadores. Pajés que se
consideravam católicos (e não crentes) mas que se viam impedidos pelos padres de se
tornarem “padrinhos de alma” de uma criança. Benzedores se contrapondo a pajés e
pajés originados pelo próprios benzedor. Pontos de interseção e separação gradualmente
se delineando. Deveria haver atrás de tudo isso regras que norteassem os indivíduos na
escolha de seus especialistas religiosos.
Para descobri-las, talvez um estudo aprofundado das “categorias”
constituídas pelos próprios especialistas nos fosse de grande valia. Quais seus traços
comuns, quais os distintivos? “Até que ponto a antropologia cognitiva não poderia nos
11 Por domínio entendemos uma classe ou categoria conceitual que contém um grupo de categorias
membros com pelo menos uma característica comum a qual estabelece que estas pertencem à classe
inclusiva. Um domínio pode, ou não, ter nome (“label”).
26
auxiliar nesta tarefa”, como nos sugere Marcel Fournier (1971)12
. Desde modo
construímos o domínio dos funcionários religiosos e com ele as fronteiras de nosso
trabalho. Estas fronteiras, porém, não são inflexíveis, nem o domínio, um recorte
possível de ser tratado sem que se estabeleça pontos de contato com outros domínios.
Como tudo dentro de uma cultura se acha interligado, vimo-nos obrigados, na medida
em que isto era necessário para melhor explicar uma categoria, a nos referir a outros
domínios como o da oração, da doença, e das entidades sobrenaturais.
Em certos momentos, porém, nem mesmo a relação com outros
domínios nos pareceu suficiente. Questões cruciais só poderiam ser elucidadas se
levássemos em conta o complexo estrutural imbricado numa relação de sociedade
brasileira mais abrangente com sociedade camponesa, utilizamos os conceitos “código
dominante” e “código local”13
.
3.3 – O CONJUNTO DE CATEGORIAS DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMÍNIO
COMO SISTEMA
Para elencar o conjunto de especialistas religiosos de modo que
revelem o caráter de sistema que compõem será necessário falar, primeiramente, em
trajetória de existência.
Eis como a representam os moradores de Barroso. O indivíduo quando
nasce não é ainda um ser social. Há um ritual específico que coloca no domínio do
humano, marcando uma descontinuidade com o mundo natural: o batismo. Doravante
ele é “gente” como os outros e merece como qualquer “cristão” (por oposição a
“bicho”) o seu passaporte garantido para ingressar na sociedade dos mortos. Eis os dois
momentos previsíveis, as duas entradas que definem, pelos extremos, o caráter social da
pessoa, livrando-a do caos, de ser um “avulso qualquer”. No entanto, entre os dois
polos, a vida é, por assim dizer, salpicada de ameaças imprevisíveis, introduzindo
desordens como doenças, feitiços e assombramentos e que precisam ser afastadas.
Passando do ciclo de vida para o ciclo anual, ao mesmo tempo que do
plano individual para o comunitário, descobriremos, igualmente, momentos previsíveis
de nutrição social. De fato, o ano não transcorre no anonimato. Vem socialmente
marcado por festas comemorativas aos santos principais da região que dão, muitas
vezes, feitio a este ou aquele povoado.
12 “Pour la sociologia de la connaissance (et de l aculture) qui n’a connu depuis quelques annees que peu
de progres sensibles, l’emprunt à L’ethnoscience a chance d’être decond puisque celleci peut lui fournir à
la fois um objet mieux circonscrit et destechniques plus raffinéas” (p.479).
13 A respeito dessas limitações, nos diz ainda M. Fournier (op.cit.): “La contruction même de l’objet
d’analyse, qui pour l’ethnoscience est la simple dèlimitatio de “domaines” suppose em fait une analyse
cosiologique prélable des fonctions sociales qu sont au príncipe de as structure et de son fonctionnement.
Et l’oublier c’est peut-être pour l’ethnoscience se condammer à um formalisme arbitraire”.
27
Assim, o indivíduo ou a sociedade como um todo, nesses momentos
previsíveis ou imprevisíveis, recorre a especialistas certos.
Se descrever uma cultura é, segundo Frake (1969), not to recount the
events of a society but to specify what one must know to make those events maximaly
probable, ou em outras palavras, estar em condições de antecipá-los, creio que pela
análise das categorias poderemos chegar a dizer de antemão, com grande margem de
segurança, qual o funcionário religioso que será chamado para atuar nesta ou naquela
circunstância.
Com as duas distinções acima de momentos previsíveis e
imprevisíveis já estávamos dando, analiticamente, elementos para uma grande
subdivisão de especialistas.
Seguindo, porém, mais de perto a classificação dos informantes elas
cobririam respectivamente o grupo “dos que não curam” e “dos que curam”. Entre os
primeiros estariam o padre e o rezador; entre os segundos, o benzedor (a parteira) e o
pajé.
Passemos à análise de cada uma das categorias. Inicialmente
tomaremos as incluídas no primeiro grupo “dos que não curam”. Mas a negativa, se
bem que permita dizer o que o padre e o rezador não são, não dá conta do que são.
3.3.1 - Padre14
Entre todas as categorias o padre merecerá um tratamento à parte
porque, enquanto indivíduo, ocupa um lugar diferente dos demais especialistas dentro
da estrutura social.
De fato ele é um “outsider”: não vive da roça ou do pequeno
comércio. O dinheiro que recebe vem de fora. Não compartilha do mesmo sistema de
representações. Seu código é outro e é com esta bagagem que age junto ao povo. No
entanto, apesar de ser uma pessoa do “lado de lá”, é uma peça indispensável, de
“dentro” do universo cognitivo do caboclo. Não se consegue pensar o mundo sem ele.
No sistema classificatório local é uma categoria eterna que sempre existiu já que o
mundo possível é uma categoria eterna que sempre existiu já que o mundo possível é
identificado ao mundo cognoscível.
“O padre vem desde o início. Quando Deus fez o mundo já deixou ele,
porque não ficamos é pra ser tudo batizado”.
14 Antes de iniciarmos a análise da categoria padre convém dizer que a própria representação que dele
fazem os caboclos está de certo modo condicionada ao tipo do missionário que vem atuando na região. É
possível, portanto, que se mudando de área haja também mudanças na representação. Em Juazeiro, por
exemplo, possivelmente o padre, a partir do Padre Cícero, seria uma categoria que também tem o poder
de curar.
28
Os motivos apontados acima justificam porque na elaboração ele
próprio não será ouvido. Do contrário estaríamos embaralhando os polos da
classificação que, no nosso trabalho, parte do código local. Restringir-nos-emos a
examinar como o povo enxerga e não como é representado na ideologia missionária.
Para isto não basta enumerarmos, de maneira sucessiva, mas
justaposta, os traços distintivos que compõem a categoria Padres. Faz-se mister tomar
um caminho logico, descobrir entre os traços aquele que atua como elemento operativo
de todos. A nosso ver tudo parte de um centro responsável: a própria posição estrutural
do especialista que o constitui canal mediador entre a cultura local e a dominante, isto
se explica historicamente.
Junto com o “padrão” – ou outras categorias estruturalmente
correspondentes – o padre formava a dobradiça que articuláveis dessa articulação
fossem diferentes – aquele representando a dependência econômica, este a cultural –
ambos expressam uma ordem dominante distribuidora das cartas do jogo. De um lado
os valores que o missionário levava consigo, os padrões que inculcava tornavam-no um
digno emissário da cultura de origem.
De outro lado, através de sua pessoa, o caboclo começava a aprender,
a interiorizar, a almejar os valores do código que era portador. E assim se formou a
imagem do padre, o homem que estuda, sempre vinculado à escola, o indivíduo que
manipula a leitura, símbolo, enfim, do saber legitimado pelo código dominante. Disto
provém o seu poder: “ele se formou, sabe mais do que nós”. Nisto também se distingue
dos outros funcionários religiosos da região. O seu saber (=poder) não procede como no
caso do rezador ou do benzedor, da tradição ou como acontece como o pajé, da
possessão, mas da formação. Diferentemente como representaria a ideologia
missionária, um sujeito não se torna padre porque tem vocação (em termos locais
“sina”; é o caso do pajé) mas porque pôde estudar.
O mundo da igreja é o mundo dos alfabetizados. É entre eles que são
recrutados os auxiliares do padre, “os catequistas”, introduzem a Legião, onde se lê e se
comenta o manual, e organizam cultos dominicais onde roteiro, cantos e repertórios bem
impressos em folhas mimeografadas. Tudo na vida da igreja parte de uma leitura,
reflexão e comentário de um texto escrito. A própria revelação, a bíblia, está consignada
por escrito e quem tem o direito de explica-la é o próprio padre.
Em outras palavras: o saber do padre, cristalização do saber da cultura
dominante, já poderoso por si mesmo, vem, além disso, axiomaticamente penetrado de
um poder que se situa num outro nível. As coisas são, por ele, ditas e feitas em nome de
“Deus”, a entidade do código dominante colocada no ponto mais alto da hierarquia dos
seres sobrenaturais, identificada como o bem supremo, o legitimador sagrado e deste
modo mesmo apropriada pelo código local15
.
Mas vejamos como essa legitimação axiomática do saber do padre se
constrói. Ela se opera mediante a existência de uma instituição: a missa, a oração
15 O fato de um grupo menor adotar como deus supremo a entidade máxima da ordem que o engloba
parece ser uma tendência geral ao mesmo tempo que uma manifestação lógica da relação estrutural que
subordina uma à outra. No nosso caso o nome desta entidade, desde deus, é simplesmente Deus.
29
exclusiva e específica do missionário católico, do mesmo modo, como veremos mais
tarde, que o bendito e a ladainha caracterizarão o rezador, a reza eficaz o benzedor, e a
doutrina o pajé.
Como a “missa consiste nas palavras que Deus deixou para ao
apóstolos, mas escrito pra nós” e “no sermão o padre explica as palavras de Deus”,
porque “só ele tem esse direito”, vemos até onde, como pregador, vai o seu poder de
interprete fiel do Legitimador Sagrado. Conteúdo e valores poderão variar de sermão
para sermão, de pregador para pregador, mas serão sempre apresentados como a
vontade de Deus. E para a identificação de vontade de Deus como padrões culturais o
passo é pequeno. Eis como a missa do padre pode se constituir numa daquelas
mediações institucionalizadas – de que fala Bourdieu (1970) – para a transmissão do
“arbitrário cultural”.
O padre, sendo ao mesmo tempo símbolo do saber legitimado e
intérprete fiel de Deus, é visto, portanto, pelos caboclos como o conselheiro aquela
figura “que bota no bom caminho”, que está sempre opinando sobre o certo ou errado.
É certo que haverá, neste ponto, defasagem entre ideologia e práxis.
Há áreas (que possuem regras sociais e éticas próprias) impermeáveis ao arbítrio do
padre mas que não chegam a infirmar a representação generalizada que dele se faz: o
conselheiro e, consequentemente, o funcionário do perdão, aquele que tem o poder de
reatar as boas relações do indivíduo com Deus. Aliás, é de posse deste título que o padre
poderá apregoar mudanças de normas e padrões culturais. Por isso é tido como o
inventor e defensor do casamento monogâmico realizado na sua forma religiosa, do
batismo com palestras, da roça comunitária. Está associado ao mundo da técnica, da
burocracia, da escolaridade, da higiene e da medicina legitimada.
Estar ligado ao padre é estar ligado ao “desenvolvimento” e à
“modernização”. Muitos informantes locais, geralmente comerciantes ou professores do
povoado, se gloriavam de terem sido os primeiros a ter “levado o padre pra lá”.
Consideravam-se os beneméritos do lugar, porque trazer um padre equivaleria o mesmo
ou mais que suprir um bairro da periferia com redes de luz e esgoto.
Por isso se de um lado o padre interfere na cultura local, de outro lado
será manipulado através daqueles mesmos valores que estima importantes. Neste
contexto veremos sua função de conselheiro ser plenamente instrumentalizada quando
os moradores, que com ela estabelecem uma relação d classe, esperam que seja o
mediador das questões burocráticas e políticas ou o doador direto ou indireto de livros,
máquinas para a lavoura, animais reprodutores, remédios e dinheiro emprestado.
A posição de “canal mediador” entre grupo local e sociedade
abrangente determina ainda outro traço distintivo do padre. De fato, da mesma maneira
que o código local adotou como deus supremo o “Deus” do código dominante, dele
adotará igualmente os rituais que estão diretamente ligados à representação do indivíduo
como ser social, “gente” ou “cristão”.
Mesmo que outras pessoas possam ser os oficiantes eventuais, em
casa, desses dois momentos, desde que saibam as orações próprias (é o caso do rezador
como veremos adiante) elas só os celebram enquanto referencial legitimador.
30
“E agora o padre batizando primeiro não precisa o de casa. Quer
dizer que o batismo principal é o do padre. É porque ele batiza
melhor. Água benta, então, sim senhora. Os santos óleos. Com o
padre a gente tem aquela fiança, aquela certeza que o padre batiza
melhor. Nós não sabemos, né? Mas quando nós nascemos já ficou
assim criando no padre.
“O batismo do padre é pra confirmá. Garra o salzinho e o óleo
santo”.
A faceta legitimadora do verdadeiro funcionário do batismo vem,
assim, materializada nos elementos “sal e óleo santo” que só podem ser administrados
pelo padre.
Mas para demonstrar como este traço distintivo do padre é apenas
uma manifestação a mais, um corolário de sua posição mediadora entre dois códigos, a
qual vem melhor expressar na sua função de conselheiro, introduziremos a citação de
uma rezadeira.
P: E qual o batismo melhor, o de casa ou o do padre?
I: Todos dois.
P Todos os dois?
I: Todos os dois é bom. Eu já vi Padre Fulano de Tal, quando vinha
sempre dizia que a criança que fosse batizada e que pai e mãe subesse
que padrinho rezasse e madrinha subesse razá, que não negasse pra
ele. Dissera que ele só dava o santo óleo porque batizado dava. Por
isso é que eu digo, assim como voga tanto o do padre é esse, porque a
mesma coisa que se diz no do padre, gente diz assim.
P: Quer dizer que se o pai quiser levar no padre não faz mal, porque
batizou em casa?
I: Então! Tá batizado.
P: Quer dizer que se o padre faltar não faz falta, então? Se não tiver
padre então não faz falta?
I: Faz, porque o padre aconselha, bota no bom caminho, não?
P: E é isso que é o principal do padre, é?
I: É. Dar os bons conselhos, diz as missa dia de domingos dia de sábado,
dias santos grande, né?
Os traços distintivos do padre, dependendo do informante, podem pois
aparecer em sua totalidade (quando se trata de um simples morador) ou serem
restringidos. se quem fala é um rezador (como no caso da citação acima) ou um
catequista, que de certo modo partilham com ele algumas funções, observaremos uma
simplificação. O elemento compartilhado é eliminado (por ex., o batismo) mas sem
prejuízo algum para a categoria, porque se tratava de uma característica estruturalmente
redundante já encapsulada por aquelas outras que lhe são, estas sim, irrefutavelmente
específicas.
31
Ilustração perfeita desta triagem é a declaração de um catequista que
guardamos para o final por conter de modo sucinto os traços distintivos da categoria
padre.
“O padre é um homem como nós qualquer. A única diferença é que
ele tem outros poderes. Esses poderes é rezar a missa, fazer perguntas
ao povo, aconselhar o povo. Também se formou e tem mais do que
nós”.
Vantagens e limites do método utilizado: primeiras observações
O tratamento desta primeira categoria nos revelou a utilidade do
método empregado pelo “ehtnoscience”. Procuramos perceber quais os critérios
utilizados para a classificação e, através das dimensões de contraste, apontar os traços
distintivos que transcendê-lo pelo menos em dois momentos:
a) Quando tentamos mostrar que não bastava enumerar os componentes
de uma categoria para compreendê-la integralmente porque eles se
apresentam logicamente ligados a partir de um centro operativo. E,
para detectar o elemento operacional, tivemos que penetrar na análise
da estrutura das relações sociais (cf. nota 4, pág. 30).
b) Quando percebemos que dentro de uma cultura as respostas a respeito
de uma categoria nem sempre são unívocas. Há uma seleção possível
dos traços, dependendo do informante. Se de um lado esta variação nos
leva a perceber características redundantes que poder ser eliminadas,
conduzindo-nos a uma definição mais básica, de outro lado nos adverte
sobre o caráter de manipulação de que as categorias podem sofrer.
3.3.2 – Rezador
A origem de rezador como categoria local talvez se explique
historicamente pelo fato da presença do padre entre a população ter sido muito
esporádica. De posse de orações específicas, ele atuaria, em sua ausência, em momentos
originalmente prescritos pelo sacerdote.
No entanto, se a distância prolongada do missionário justifica, de um
lado, porque o rezador sempre atuará, mesmo na atualidade, tendo como quadro
referencial legitimador o padre, de outro lado, nos fornece razoes para o entendimento
do processo da criação de uma área autônoma que lhe é própria.
Esses dois ângulos através dos quais o rezador pode ser tratado
formarão as duas partes principais da análise desta categoria.
32
3.3.2.1 – O rezador como categoria referencial ao padre
O rezador, no dizer de uma informante, é “quase que um sacerdote”.
“As rezas que aprendi foi com meu pai que era quase que um padre. Tinha a biba. Pai
tinha a Biba Sagrada. Contava tudo! E rezava, tinha toda a reza. Meu pai não tinha o
que não soubesse”.
O fato de ambos utilizarem as mesmas fontes de tradição e as mesmas
orações é que permite a aproximação rezador-padre. Todos os dois se rementem ao
código católico e por isso rejeitarão como pecaminoso o intercurso com entidades
“periféricas” (cf. “os encantados”) ao cânon que os orienta.
No entanto o rezador se distanciará do padre na manipulação do
código que lhes é comum. Isto se prense ao tio diferente de aprendizado que sofreram.
Enquanto que o padre recebe uma educação sistemática, acadêmica, sempre controlada
e confrontada por uma ortodoxia normativa, o rezador é encaminhado de dois modos:
a) Se possui uma leitura rudimentar, apropria-se, de modo muito
pessoal, basicamente de dois textos: da Bíblia, ou da Cartilha cristã (é
a Cartilha da Doutrina Cristã, edição de 1871, da Diocese do Porto,
Portugal).
b) Se aquela lhe falta, a memória funcionará como máxima substituta.
“Eu aprendi rezar foi assim, com um, com outro, não tive mestre. Eu
chegava numa bancada de rezador, me sentava desde garoto,
escutando, viu? Agora eu fui gravando no sentido de pegar, sem saber
ler, sem saber nada, gravei tudinho. É, e depois os que sabe rezar
foram me chamando atenção e eu fui rezando junto com ele, depois
eles morreram, eu tomei conta da pasta.16
”
As duas formas de aprendizado do rezador remetem, pois, à tradição
oral, veiculada pelo saber dos mais velhos, no seio da família (o mais comum) ou fora
dela. Esta tradição oral guarda, de um lado, sem quase transformações, os mesmos
clichês aprendidos (podendo, por isto, ser mais “conservadora” que a formação
acadêmica). De outro, porém, introduz interpretações próprias nos vazios não
explicados que impregnarão o todo de uma dinâmica diferente daquela que se
processará na educação sistemática do padre.
As causas dessa diversidade se entendem facilmente porque tudo se
desenrola no seio de códigos culturais diferentes, onde todas as coisas precisam ser
integradas e receber respostas coerentes.
16 Na explicação da origem do saber (= poder) o rezador estabelecerá sempre um parâmetro com a cultura
letrada. O próprio fato de valorizar sua capacidade, a memória, prestigiando assim a transmissão pela
tradição oral, é uma maneira de responder no peso de legitimação conferido à formação escolar. Neste
contexto o catequista funcionará como uma ameaça de desvalorização do rezador.
33
É por isto que o rezador, embora tenha se originado de uma
necessidade histórica – a presenta esporádica do padre17
-, continua atuando, mesmo
após o cessamento daquela, como peça fundamental da cultura cabocla. Os rituais que
poderia celebrar por delegação oficial já ganharam caminho próprio, foram
reinterpretados. Penetraram no âmbito do doméstico. Ainda que o padre batize
oficialmente uma vez por ano, os novos candidatos, numa cerimônia pública, o batismo
de casa continua vigorando. Cumpre todas funções, sendo o afastamento de um perigo
(doença ou ataque de entidades) a principal dentre elas. O mesmo se dá com o ritual dos
defuntos. Embora a frequência do padre entre a população tenha se tornado muito mais
intensa, ele continua sendo um funcionário da sede (do município), onde reside, de onde
parte para chegar. E os mortos “dos interiores do interior” não podem esperar. Orações
especiais para aos defuntos já se padronizaram e têm os seus momentos certos. Tudo se
passa em casa, pra os parentes e amigos:
- antes da sepultura: orações para encomendar o corpo
nos nove dias que se seguem:
novena do rosário
- depois da sepultura
com um mês: a via-sacra
Por isso recorre ao rezador, figura imprescindível:
“Comecei a rezar por engano dos rezadores de lá engando uma alma
falecida. Os rezadores de lá tratavam de vir, marcavam o dia, mas
não vinham e fizeram assim três vezes. Eu fiquei penalizado. Então
pedi a M.P., um rezador, que me ensinasse a rezar”.
Se acontecer do morto ser enterrado em Bequimão (a sede), então o
padre “poderá benzer o corpo no cemitério” antes que seja sepultado. Mas todo mundo
“já sai de casa rezado” e “não tem esse que morra que não tenha via-sacra”.
“Porque o rezador não aprendeu. Aprendeu assim como encurtar a ladainha, ou um batismo,
uma reza para um enfermo. E os catequistas que vão, vão aprender, ouviu? Vem logo aprender com o
padre e sabe tudo, tudo mesmo porque isso é como um operário. Tem operários (= catequistas) e tem os
curiosos (= rezador), tá vendo? Os operários, às vezes, os mestres não fazem uma obra que os curiosos
faz, mas bota embaixo. Não é? É, bota em baixo. Ele faz bem feito aquela obra, mas o operário chega e
mete defeito. Assim é o caso dele”.
Este mesmo motivo explica porque o catequista que foi outrora rezador não continua a exercer
as antigas funções. Uma vez introduzido na cultura legitimada, evita tarefas que poderiam representar um
rebaixamento de sua promoção.
17 Neste sentido o rezador é uma vida de acesso para quem quiser perceber, numa visão
diacrônica, o estilo missionário de outrora: gestos, língua, orações de então, são por ele espelhados.
34
Assim parece terem sido demarcadas as fronteiras do rezador e do
padre dentro dos dois rituais polares da vida do indivíduo: o primeiro atuando
referencialmente na faixa doméstica e o segundo legitimando na faixa oficial. As
respectivas partes estão culturalmente fixadas no há redundância de funções, nem o
rezador poderia ser suprimido por causa da presença contínua do padre. O código local
já lhe reservou um lugar definitivo. Ele não desempenha seu oficio a partir de um
mandato do sacerdote. Esses laços já se dissolveram. Não é como o catequista, um
ajudante direto do missionário de quem recebe ordens e a quem deve presras contas. Ao
contrário: em relação ao padre goza de independência jurídica. As ligações existentes se
situam num outro nível: o das orações. De fato o rezador sempre estará de olho nas
modificações introduzidas pelo padre. Assim o cordão umbilical que subordina,
indiretamente, o primeiro ao segundo é sempre mantido, como ilustra a citação:
I: “as vezes, de primeiro se rezava nove noite (referindo-se às rezas para
os defuntos). Hoje em dia se reza três vezes.
P: Mas quem decide que passa para três?
I: É o padre que vão dizendo, que vão cortando. Aquilo às vezes é muito
longo.
P: Mas os padres mandam nisso também?
I: Mandam. Eles rezo. É assim: quando vai um morto pro cemitério eles
vão rezar com o teço.
P: Sim, mas na reza de você ele também que dirige?
I: Não senhora, na minha ele dirige porque é a mesma reza deles. Hoje é
assim, vai gravando, vai pegando, dum e doutro, vai sabendo. Sabe comé,
tá tudo mudado hoje em dia, né?
Com isto cremos ter dado conta do rezador, enquanto uma categoria
referencial ao padre. Existe, porém, uma área de desempenho exclusivo do rezador,
onde seus traços distintivos aparecem de maneira mais contrastante. Dela trataremos a
seguir analisando.
3.3.2.2 – O rezador como o celebrante das festas aos santos
Não caberia, no âmbito deste trabalho, discorrer longamente sobre
o papel que as festas aos santos desempenham na cultura local. Delas só daremos os
traços principais que nos ajudem a melhor situar a função do rezador.
Muito mais que Deus e o Cristo, entidades cultuadas e reverenciadas,
mas consideradas demasiadamente remotas, os Santos ocupam um lugar proeminente na
vida da comunidade18
. As relações que os caboclos com eles estabelecem vêm
conotadas de um misto respeito e familiaridade. São mediadores, mas conceptualmente
18 Cf. trabalho de Laís Mourão sobre a Classificação das Entidades Sobrenaturais, apresentado
anteriormente.
35
diversos de como os representa o catolicismo oficial que os encantonou numa esfera
extra-terrana. Ao contrário, os Santos dos caboclos são santos da terra, metidos nas
relações sociais, na produção econômica, nas angústias do cotidiano. Alguns até
passeiam, aparecem, são proprietários de terras. Enfim, estão sempre próximos e por
isso com eles se pode estabelecer uma relação do tipo contrato-mútuo: a promessa, na
qual o santo terá a sua parte, a de fazer um benefício, e o “promesseiro” de retribuí-lo
pagando ao santo com uma festa onde entram como elementos integrantes, a bebida, a
comida, o baile e a reza.
É aí que o rezador entra, como o oficiante de direito da contra-
prestação, não dividindo com ninguém sua tarefa. Para executá-la não tem, como no
batismo e no culto aos mortos, o padre como quadro referencial. Aliás, o sacerdote evita
e mesmo condena o caráter destas festas como uma espécie de heresia. A aproximação
da bebida, da comida, do baile e da reza lhe soa uma profanação. Os gastos despendidos
pelos franqueadores, uma irracionalidade econômica. De religiosos não tem nada. A
própria manipulação que se faz do santo é totalmente heterodoxa:
“É são promessas, eles dizem, mas pra quem, ninguém sabe. As
promessas não são feitas aos santos mesmo (isto é, a entidades com o
conteúdo que o catolicismo oficial lhe dá) mas sim a outras entidades
que possuem outra substância”.
É por isso quando chega o momento de se realizar a festa a um santo
já se sabe quem chamar. Parte-se em busca do cantador de benditos e ladainhas. São
estas as rezas específicas do rezador que o distinguem enquanto uma categoria à parte,
entre os funcionários religiosos. Será igualmente através destes traços que se poderá
detectar, no caso de um indivíduo acumular funções, quando está funcionando como
rezador e quando está atuando como benzedor. Deste modo as duas categorias se
contrastam:
O rezador utiliza o bendito que é
cantado num contexto público (“dá ao
povo em quantidade”) em dias certos do
ano como retribuição a um benefício
ocorrido.
O benzedor, a reza eficaz que é recitada
num contexto privado (familiaridades
do doente), dependendo das
contingências para que o benefício se
efetue.
3.3.2.3 – Algumas observações a respeito do padre e do rezador
Eis apresentadas as duas categorias de funcionários religiosos que se
distinguem das demais pelo fato de não curarem. Tomadas isoladamente, de fato, elas
não cumpre esta função. Se, porém, as situarmos num contexto maior veremos que não
estarão totalmente desassociadas do fenômeno da cura. Na maneira como os caboclos o
presentam o padre forma um par com a irmã enfermeira, estando por isto sempre ligado
ao ambulatório e à medicina legitimada: “o remédio do padre é remédio de farmácia”.
36
Do mesmo modo o rezador: é um elemento essencial para o
cumprimento da promessa muitas vezes feita com o intuito de afastar uma doença. Por
isso o rezador está associado ao Santo, que tem o poder, este sim, de curar, realizando
um milagre.
Feitas estas ressalvas, passaremos a analisar o segundo grupo de
funcionários que apresentam como traço comum o poder de controlar a doença.
3.3.3 – Benzedor e Parteira
3.3.3.1 – Benzedor
Nem sempre o lexema “benzedor” vem explícito no discurso. A
verdadeira pergunta, pois, que conduz à categoria seria muito mais “Quem benze aqui?”
do que “Qual o benzedor daqui?”.
3.3.3.2 – Benzer
Para se compreender a dimensão do termo benzer há que liga-lo à
semântica do conceito abençoar, igualmente disponível na cultura, mas estruturalmente
mais abrangente.
De fato o mundo criado por Deus não se apresenta como uma obra
definitivamente boa ou má, não vem definido a priori, já que as coisas estão sempre
envolvidas por uma atmosfera de ambiguidade.
No contexto deste embaralhamento de bem e mal que paira sobre toda
a criação é que a “benção” surgem como uma espécie de bússola, instrumento de
caráter teológico para o bem, como também seria a maldição, para o mal. Face ao
possível norteamento definitivo para o mal que exerceria a maldição, a bênção lhe seria
o antídoto preventivo o qual não deixa de incluir, segundo uma lógica interna, a outra
face da questão: o seu caráter de resgate corretivo. A vida de cada homem, e dos
homens entre si, tem que ser cumulada de bênçãos, como proteção prévia e eficaz das
boas relações sociais, e da relação homem-mundo.
De outro lado, a ação de “benzer”, como é concebida pela cultura
local, vem explicitar aquele outro lado da moeda contido no ato de abençoar, isto é, a
dimensão “redenção-resgate”. O benzimento é eminentemente curativo e exorcizante.
Quando se fala que tal pessoa “é benzedor” ou “que benze”, o que se
tem em mente? Está-se referindo a determinados indivíduos que manipulam rezas
especificas para males específicos e que no ato de proferir a reza eficaz agregam-lhe o
gesto também eficaz do sinal da cruz. Basicamente é isto. Outros gestos rituais
simbólicos e algumas técnicas terapêuticas suplementares podem acompanhar ou não,
dependendo do mal, o benzimento.
37
3.3.3.3 – Dimensão sexo
Os benzedores poder ser homens ou mulheres. Entre as últimas, no
entanto, quando se soma uma especialidade a mais, o seja, o fato de “partejar” mulheres,
temos as parteiras. Não são todas as “benzedoras” que são “parteiras”, mas não há
parteira que não seja também “benzedora”. Aliás, a difícil tarefa de secundar o parto de
uma mulher, onde vida e morte se roçam de perto, situa a parteira dentro do domínio
semântico de triunfo da primeira sobre a segunda. Todas as vezes que, de novo, a morte
rondar a vida, a parteira será chamada a atuar (agora, como benzedora). Eiras porque a
“parteira” não será tratada como uma categoria que extrapolasse os quadros do
benzedor. Ao contrário, ela é uma espécie de. Do mesmo modo que ele, recorre, em seu
serviço, a rezas eficazes. O que a distingue como parteira será apenas a conjunção de
dois traços: o tipo de sofrimento a ser tratado (= o parto) e a dimensão sexo: “mulher”.
3.3.3.4 – Repertório dos males do benzedor
Como “para tudo tem reza” e “não há doença que não tenha uma reza
para curá-la” porque “pra tudo Deus dá o conhecimento”, será suficiente tratarmos do
“universo da reza” para podermos atingir o repertório de males que recaem sob o
domínio do benzedor. Alias, quando o “benzedor” é procurado para curar ele jamais
diagnosticará uma doença que não esteja contida dentro de seu repertório de rezas. Dp
mesmo modo, quando um doente já levantou hipótese sobre o tipo de doença que o
molesta procurará não qualquer “benzedor” (= porque não são todos que sabem de todas
as rezas, ou melhor, que benzem qualquer tipo de mal) mas aquele que “benze” seu
sofrimento específico. Mas se quisermos, através de uma comparação entre vários
benzedores, inventariar os tipos de males ocorrentes, poderemos elencar:
I II III
Cobreiro Afogamento Entalamento
Fogo selvagem Quebranto Mal de terreiro
Isipra (e suas espécies) Mau-olhado Praga de roça
Dor de cabeça
Casco pegado
Dor de barriga
Pontada
Espinha na goela
Arca
Fastio
Caroço no peito
Mae do corpo
Dor de madre
Guante (= útero)
Afastar o mal
Mofina
38
Benze-se, pois, todo “vivente” quer seja “bicho” (= animal) quer seja
“cristão” (=homem). Os males da coluna da esquerda são os que atacam exclusivamente
os “cristãos”. Os da coluna do meio atingem tanto o “cristão” quanto o “bicho”. E os da
direita são comuns a “bichos” e reino vegetal (hortaliças e “fruteiras”), como “mal de
terreiro”, ou dizem respeito exclusivamente ao reino vegetal, como “praga de roça”.
Mas se atentarmos para o que é incluído dentro de todo “vivente”
veremos que de fato as fronteiras não recobrem indiscriminadamente todo o reino
vegetal ou animal (social ou não), como é de se supor à primeira vista. Os destinatários
do “benzimento” são antes o homem e tudo aquilo que é fruto de seu trabalho e
produção, ou seja, a natureza socializada. Mais explicitamente: sua família, seu terreiro,
sua roça.
3.3.3.5 – A reza do benzedor
A reza do benzedor difere tanto da reza do padre, quanto da reza do
rezador. Embora todas elas remetam ao código católico já que nomeiam as entidades
sobrenaturais por ele contidas como Deus, Nossa Senhora, Santo e Anjo da guarda
divergem, porém, por causa da função que desempenham.
A reza do padre é sobretudo uma intercessão, uma mensagem. É
dirigida a Deus, à Virgem, ao Santo mediador que atuarão com seu poder.
A reza do rezador (o “bendito”) é um pagamento, uma contra-
prestação, um agrado reciprocado (o Santo me fez este benefício, agora eu cudo dele
também(. Faz parte de um contrato levado a termo em dois tempos.
A reza do benzedor, ao contrário, possui um poder mágico. É eficaz,
realiza o que diz. É o sentido da expressão: “a reza tira (o mal)”. Participa de certa
forma da qualidade do “spell” (pronunciamento de uma fórmula mágica), um dos quatro
elementos que, segundo Evans-Pritchard, fazem parte de todo ato importante de magia:
“knowledge of the magic is knowledge of the spell... it is always the core of the magical
performance”.
Enquanto “spell”, portanto, difere essencialmente da intercessão em
que o resultado será somente obtido a posteriori, ou da oração pagamento onde a
solução já foi dada anteriormente. A reza do benzedor não é nem uma mediação para,
nem um recolhimento da cura, porque traz, dentro de seus próprios limites, a solução.
Para podermos melhor entender o caráter eficaz da reza do benzedor
vejamos o que se passa em outras culturas com o “spell” para depois fazermos as
devidas transposições.
Num estudo sobre o simbolismo do “spell” entre os mbowamb
(Strathern:1968) o autor relata: it is said that the spell will “make” the desired effect
come about. This is done through calling on objects which possess the appropriate
qualities. When calling on describing a spell the mbowamb say “We call on the names”
(e. g. of buds) and say! It is not a direct invocation of things and this activity of citing
the names of things in spell seems best referred to as “calling upon”… The purpose of
this calling-upon is explained in terms of similies: e. g. “as the whit marsupial gleams
39
so the man’s skin will shine”. This can refer also to actions whre one thing is done
which is symbolic of another.
De outro lado Evans-Pritchard escrevendo sobre os Azande diz
(Pritchard:1937): The homoeopathic element is so evident in many magical rites and in
much of the materia medica that there is no need to give many examples. It is
recognized by the Azande themselves. They say, “We use such-and-such a plant because
it is like such-and-such a thing”, naming the object towards which rite is directed.
Likewise they say, “we do so-and-so in order that so-and-so may happen”, naming the
action which they wish it to follow. Often the similarity between medicine and object,
and between rite and desired happening, is indicated in the spell.
As afirmações acima nos dão a chave para o entendimento da eficácia
do “speel”. Ela parte de um principio de similitude, como diz Strathern, ou se
fundamenta no elemento homeopático, como prefere Evans-Pritchard. A base é, pois, a
comparação (operacionalizada pelo próprio “spell”) de uma qualidade ou de uma ação,
em que o primeiro termo é um animal ou planta apropriados, selecionados do mundo da
natureza e o segundo o próprio objeto ou ser em questão. Como os “desiderata” (aquilo
que é almejo) já vêm contidos na seleção do primeiro elemento, e a similitude
estabelecida entre os dois termos, pela comparação, a eficácia se opera.
Todos esses requisitos se encontram igualmente na reza (= spell) do
benzedor. Mas ao invés do primeiro elemento ser selecionado do mundo da natureza, no
nosso caso, serão personagens míticas, ou melhor, pequenos fragmentos de mitos do
código católico, que apropriados e remanipulados figurarão como o primeiro termo da
comparação.
A título ilustrativo damos dois exemplos.
1º. Benzimento de dor de madre, após o parto.
Te incoloco madre
Madre mesmo te incoloco
Com as três palavras santa
Jesus Cristo rezou
Vim colocá esta madre
Vim tirá essa dor.
Comparação:
Assim como nossa Senhora
teve o parto e ficou donzela, 1º termo
Madre tu vai ficar como tu era 2º termo
Em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo. Amém.
40
2º. Benzimento das “arcas” (situa-se no tórax; “quando rola abre, a gente
enrola, fica “curvadinha”).
Lá vem o sol saindo
Trazendo o nosso Carvadô
Para levantar essas arcas
Como Jesus Cristo aleventô
Jesus e José, nosso Pai Sarvadô
me levantai essas arcas
como o sol alevantou
com o nome de Deus Pau, Deus Filho
e Deus Espírito Santo.
O benzimento das arcas oferece elementos ainda mais ricos porque o
primeiro elemento já é fruto de uma analogia: “sol alevantando com Jesus Cristo
ressuscitando”.
Noutro ponto também a reza do benzedor difere do “spell”, pelo
menos entre os Azade. Enquanto para esses the spells are never formulas porque the
magician chooses his words as he utters the spell, o benzimento segue estritamente uma
formula. É necessário que seja pronunciado ipsis litteris.
Vejamos a declaração de uma parteira para entendermos até que ponto
a reza é uma réplica antecipada do próprio resultado do parto.
“A gente reza quanto tá nesse trabalho e tem muitas orações também
de negócios de parto, que eu trabalho assim muito com parto, umas
reza, umas orações. Se eu rezá elas e eu não errá um pé, eu sei que a
pessoa não tem perigo. E quando a pessoa tem que ter perigo, a gente
tem que se esquecê de um pé”.
A pré-avaliação da operação supõe um critério de confrontação: a
preexistência de uma fórmula. Neste sentido a reza do benzedor amplica as
consequências do simples “spell” como ele é tradicionalmente concebido. Funciona não
somente como uma fórmula eficaz mas até como oráculo, adivinhação ou presságio tal o
grau de isomorfismo existente entre recitação e operação.
A penetração pois do benzedor nas áreas da magia e da adivinhação é
o que o aproximará, de certa forma, do “pajé”. No entanto eles não se confundirão.
Apesar de haver elementos de contágio, há igualmente elementos de separação. É isto
que nos permitirá tratar do benzedor como uma categoria mediadora entre o código do
catolicismo e o código da pajelança.
41
3.3.3.6 – Benzedor: uma categoria mediadora entre o código do catolicismo e o código
da pajelança.
Se acompanharmos a evolução de um especialista até se tornar
pajé veremos que não raro ele foi um simples benzedor. E enquanto pajé uma das
atividades que mais exerce é a de benzer. Mas benzer o quê? Mau-olhado, quebranto e
mofina. São estes três males que criam uma área mediana, um “overlap” no domínio da
doença, sobre os quais tanto o pajé quanto o benzedor atuarão. Eis o primeiro ponto de
contágio.
Se bem que os dois utilizem praticamente as mesmas rezas, no
controle do mal; o simples benzedor a proferirá conscientemente e o pajé, sob efeito da
possessão. No primeiro caso é o próprio especialista que a pronuncia; no segundo, será
o “encantado” que a dirá através do especialista.
É por isso que a reza do primeiro poderá ser ensinada (o que nos
permite inferir, na ausência de dados mais explícitos, que o benzedor prendeu o seu
ofício de outros) enquanto que a do segundo não tem condições de ser divulgada. Uma
vez passado o efeito da possessão, o pajé declara não se lembrar das palavras.
Esta simples distinção está correlacionada a diferenças ainda mais
englobantes. Os dois se situam em esferas diferentes. O benzedor se coloca dentro do
código do catolicismo e não admite o fato de um “encantado” poder se invocar num
“cristão”. Quando muito pode aceitar a existência de entidades como a mãe d’água, mas
não o seu poder de “entrar numa pessoa”. Ele trabalha é com a fé em Deus e não sob
possessão.
O pajé, ao contrário, se situa no código da pajelança. Com isto não
queremos dizer que as entidades católicas não fiquem também neste código. Deus,
Nossa Senhora e Santos têm aí o seu lugar. Mas formam com as demais entidades
específicas um arranjo novo.
Eis como a parteira se contrapõe ao pajé:
“Mas eu não sou curandeira porque não trabalho com gente do
fundo. Eu só trabalho com Deus e Nossa Senhora. Porque eu sou
guiada de Deus, eu sou qual uma serva de Deus. Certas coisas, antes
de acontecer eu sei. Quando chega acontecer eu já tou sabendo.
Agora, eu sou dominada é pelo anjo da minha guarda e também sou
devota de Santo Antônio. Desde pequena trago sempre a devoção com
Santo Antônio. Agora, eu vou fazer um trabalho desse eu vou com fé.
Abaixo de Deus Nosso Senhor estão estes Santos que me protege”.
Separados, assim, pelos códigos que os norteiam, benzedor e pajé irão
novamente se aproximar se levantarmos elementos que lhes são estruturalmente
semelhantes. Mais uma citação e estaremos em melhores condições para aponta-los.
(Parteira falando sobre uma parturiente desenganada pela pajoa) –
(Chega o procurador): “Olha, Fulana, pajoa de tal botô visto. A Menina está muito
arriscada, talvez não salve a vida”. Eu disse: -“Por isso é que eu tô indo. Porque ela
não é Deus e eu vou com a fé em Deus e Nossa Senhora. Abaixo de Deus e Nossa
42
Senhora as minhas orações”. E eu disse: - “Eu já rezei em casa antes de eu saí. A
mulher não tem perigo de morte”.
Portanto, pajé e benzedor se aproximam estruturalmente:
1º - Pelo modo de se relacionar com as entidades de seus respectivos códigos
PARTEIRA PAJÉ
A tua sob a égide de a tua sob a égide dos
Deus, Na. Sra., Santos encantamentos
Mas ambos
a) Se concebem como servos, guiados pelas
entidades
b) Mantêm uma relação especial com uma dentre
as entidades. São dominados por elas:
Esta, pelo Anjo da Guarda, ou Santo da devoção Este, pelo patrão (encantado que o encruzou)
2º- Por utilizarem espécies de oráculo para a predeterminação
Esta, a reza dita em casa, antes de sair Este, mirando na pedra de botar visto
Os pontos de contágio e as semelhanças estruturais, de um lado, e as
diferenças de códigos de outro, explicam porque o benzedor poder ser ou não uma etapa
do pajé, ao mesmo tempo que uma categoria mediadora entre o catolicismo e a
pajelança. Mais do que isso: permitem o entendimento das diferentes combinações
possíveis de papéis acumulados por um mesmo indivíduo:
- pajoa e parteira (se se remente ao código de pajelança)
- parteira e rezadeira (se se remete ao código católico)
A confluência impossível seria portanto: rezador e pajé.
43
3.3.4 – Pajé
A categoria “pajé” apresentará dificuldades diferentes das até agora
encontradas. De fato a cultura local utiliza vários termos para indicar o funcionário da
pajelança: pajé, curador, experiente, mineiro, doutor do mato, cavalo da mãe d’água.
Seriam apenas lexemas – que se recobriram perfeitamente? Um caso sinonímia19
. Uma
análise mais apurada nos mostrará que nem sempre; há distinções, ênfases, traços
selecionados por detrás dos diversos lexemas. Eles não são empregados
indiscriminadamente. Cada um deles expressa um conteúdo e uma mensagem. Contexto
e qualidade do interlocutor explicariam também a manipulação – manifesta inclusive na
escolha do termo – que sofre a categoria “pajé”.
Assim o termo “pajé” é empregado para designar:
1º - Num nível mais global (mais alto)20
aquelas pessoas, homens ou
mulheres, que ao mesmo tempo são possuídos por determinadas entidades – que aqui
enfeixamos sob o termo genérico de encantados – e são capazes de manipulá-las para
controlar certos tipos de doenças ou males específicos:
assombro - (doença provocada pela encantaria)
vagante - (perturbação proveniente de uma alma de um morto que não
encontra sossego)
feitiço - (malefício, trapaça, coisa feita, mondogaria)
panema - (indivíduo “brumado” que não progride nos negócios, no trabalho,
na fortuna)
mau-olhado -
Que igualmente recai sob o domínio do benzedor, como já vimos.
quebranto -
Nesse nível o termo “pajé” não carrega nenhuma nota pejorativa e
como tal pode ser permutado por “experiente” (aquele que tem experiência das doenças
e dos remédios) e por “curador” (aquele que cura). Trata-se de lexemas sinônimos.
2º - Em outro contexto, porém, o mesmo termo vem estigmatizado
diferindo do primeiro emprego que dele se faz21
. Quando o que se quer alcançar é sua
falsidade, é tomado num sentido depreciativo. Para isso a cultura local possui critérios
próprios, através dos quais discerne o verdadeiro do falso “pajé”.
19 Sinonímia: when, within the context of a particular taxonomy a single taxon may be labeled
by phonemically distinct forms, we may speak of referential synonyms (or synonymous lexemes). 20 Por isso adotamos também o termo “pajé” para denominar, de maneira qual, a categoria.
Cada vez que assim aplicarmos o vocabulário usaremos aspas simples para evitar uma confusão com o
emprego contextual que se faz do termo. 21 Neste caso talvez estejamos diante de um fenômeno de “homonímia”, isto é, “quando um
termo, numa análise de um paradigma semântica, apresenta dois significados distintos”.
44
VERDADEIRO
- É aquele que reluta em querer ser.
Sabe que é uma “sina pesada”, pois
geralmente a carrega desde a infância;
- possui “encantado”, “linha”, por isso
canta;
- não se importa em ganhar dinheiro;
está preocupado em fazer o serviço;
- dá remédio.
FALSO
- É aquele que resolve ser “só porque
acha bonito”;
- Não tem encantado, não recebe linha;
se mete a cantar, por imitação;
- “come dinheiro vadio” dos pobres;
- não sabe que remédio dar. Por isso
- levanta “aleve” (falso testemunho)
para desmanchar os verdadeiros.
Esse quadro merece algumas observações complementares para que
não leiamos nele o que não quer dizer.
a) Na verdade, todos os ‘pajés’ cobram, seja para “botar o visto”, seja
para o serviço completo de “encruzamento”. Mas não vivem só da pajelança. Como
qualquer outro indivíduo da comunidade, trabalham na roça. O que é censurado não é de
fato de a consulta a ser paga. Aliás, o ‘pajé’ encara seu trabalho como uma prestação de
serviço qualquer, no qual despende tempo e esforço. Aliás, o médico e o ambulatório
também cobram para curar. Se a recriminação existe é porque se paga a uma pessoa
indevida, charlatã, que não cumpre os requisitos de ser pajé, isto é, de possuir
encantados. Sem eles não é possível ensinar o remédio. Só há duas fontes de saber que
legitimam a ação de medicar: ou ter encantado e ser doutor do mato, ou ter estudado e
ser doutor da cidade.
Há ainda outro fator que legitima o fato da cobrança: é que a virtude
do remédio só é acionada quando se paga.
“Pessoal diz que não presta alguns experientes. Mas a coisa é essa.
Vão para botar visto mas não querem pagar. O remédio só faz bem
pagando, senão desmoraliza, relaxa”.
Se relacionarmos isso com outros eventos ocorridos na cultura local,
poderemos perceber melhor o valor que está associado ao pagamento. Em conversa com
os padres da região soubemos do fato de que muitos caboclos voltar para rebatizar o
filho, alegando que o primeiro batismo não tinha sido válido porque não fora pago. “Por
isso passamos, explicam eles, a cobrar uma pequena taxa simbólica”.
b) A segunda observação deseja explicitar o fato imitação. A cantiga
que o pajé entoa, isto é, a doutrina, é um sinal de possessão, pelo encantado. Para cada
um há uma doutrina diferente. É o modo de anunciar a chegada e a partida das
entidades. Constitui também a reza específica do pajé. Quando ele está normal, “puro”,
não “espritado”, nem consegue entoá-la. Do mesmo modo que ele na conhece suas
cantigas, também não poderá reconhecer, durante o serviço de pajelança, os
frequentadores enquanto os indivíduos do cotidiano. Cumprimenta-los pelo nome seria
45
trair sua falsidade. É por isso que o indivíduo que deseja se passar por “pajé” se
apropria do sinal de identificação e se põe a cantar.
“Curador é aquele que cura de nascença. Mas esse que é curador
porque aprendeu cantiga é só pajé”.
Comprovação disso nos foi fornecida através de nossa própria
experiência como pesquisadora. Em conversa com os ‘pajés’ ou com seus
frequentadores habituais procurava criar um clima de intimidade, mostrando meus
conhecimentos sobre a questão. Punha-me a cantar doutrinas dos encantados ao que os
presentes exclamavam com um ar maroto: - “Vai ver que tu é pajé!”. O importante disto
está na seleção do termo “pajé”. Para identificar as aparências jamais empregavam o
termo experiente ou curador.
c) Mas há de se explicar por que a escolha do termo “pajé” e não
experiente ou curador para designar falsidade? A nosso ver isto expressa uma
consciência de censura social que envolve o fenômeno pajelança. De fato o código
dominante (padre, polícia, médico, professor e pessoas de nível mais abastado) não se
faz distinções, como o fariam os caboclos, entre falsos e verdadeiros.
E ao se referirem ao fenômeno, sempre num sentido pejorativo,
utilizam o termo “pajé”. É normal, portanto, que o morador em seu discurso continue a
adotar o mesmo vocábulo “pajé”, previamente deteriorado, para designar um falso pajé.
De outro lado a consciência de censura pelo código dominante do
fenômeno pajelança no seu todo leva o informante a policiar sua linguagem, num
contato inter-classe, preferindo utilizar antes o termo “experiente” (mais frequente) ou
“curador” (menos frequente). Eis a explicitação do motivo que nos foi fornecida.
“Experiente do mato é melhor falar. Pajé é para rebaixar. Pra dentro
se trata pajé e pajelança. Pros de fora é experiente e serviço”.
Mas voltemos à definição básica que formulamos sobre a categoria
‘pajé’. Ela nos guiará na análise dos outros termos. Dissemos que fundamentalmente o
‘pajé’ seria o indivíduo que a um só tempo é possuído e mantém o controle dos
encantados. É esse traço que nos permite entender o conteúdo da expressão “cavalo de
mãe d’água” utilizada em dois contextos.
a) Para especificar uma característica comum a todos.
P: “Cavalo de mãe d’água é diferente de pajé?”
I: “Não, é a mesma coisa porque tudo nós somos cavalo de mãe
d’água. Porque a mãe d’água debruça é na costa. Mãe d’água não
entra dentro de corpo de pessoa nenhuma. Encosta, fica na costa, a
gente sente o peso na costa e o arrepio no corpo, esfria a mão,
esfria o pé, dá um batimento de coração, dá uma aflição, aí o
camarada não sabe mais dele.”
46
b) Para diferenciar daquele que sabe curar, dar remédio. Designa o
indivíduo que só “esbazuga” e canta porque a mãe d’água se
encostou nele. Em outras palavras: o “cavalo da mãe d’água”,
neste contexto, significa o sujeito que é possuído pelos
encantados, mas que não tem poder de controla-los. É um pajé
pela metade, que ficou a meio caminho. Esta incompletude é que o
torna alvo de comiseração, de caçoada, de desvalorização.
“Fulano de tal não sabe de nada. É só “cavalo de mãe d’água”.
A ciência do ‘pajé’ se resume, pois, na síntese destes dois fatores:
possessão e controle, ou melhor, numa possessão controlada. De que valeria para seu
oficio de curador se os encantados somente se encostassem quando bem entendesse? É
necessário que possam ser cooptados quando a ocasião se apresenta. O saber do ‘pajé’
não é, pois, fruto de uma formação escolar, ou uma herança da tradição oral, mas
provém de um intercurso com os encantados. Ciência e poder são transmitidos põe eles
e não por meio de uma qualquer pessoa, ainda que especialista. Assim declara uma
pajoa:
I: “A moça que me fez trabalho nunca me ensinou nada.”
P: “Como é que a senhora aprendeu?”
I: “Aí... quando chegar na vez eles (os encantados) me mostram.”
P: “Mas de ver assim, de observar, de ir tantas vezes lá a senhora
não aprendeu?”
I: “Eu não. Não aprendi. Porque pra mim aprender então eu não
sou nada. Eu penso que isso seja uma coisa que a gente pra
aprender só sendo por livro. Agora eu não sei ler.”
É uma constante da ideologia a afirmação: o saber do pajé vem dos
encantados. Mas como explicar os padrões, as mesmas regras, na pajelança? Deve haver
uma espécie de “escola”, de iniciação. Esta indagação foi recebendo resposta à medida
que penetrávamos no universo da pajelança. De fato existe até mesmo uma hierarquia
abreviada nos dois tipos de ‘pajé’: o mestre ou o pai (mãe) de terreiro e o discípulo (a).
Há mesmo etiquetas que devem ser observadas na relação.
O mestre é:
Aquele que diagnostica;
Que encruza, fecha o corpo, colocando as contas;
Que guia o terreiro, onde baila o discípulo;
Que o controla, exigindo uma forma de obediência.
O discípulo não pode se consultar nem ser benzido noutro
terreiro. A infração nesta obediência acarreta no quebramento de
contas põe ela colocadas. “Desfirmado” poderá ser atingido pelo
mal.
47
Assim o mestre garante dependência e frequência necessária, se
não por outros motivos, pelo menos como certeza de
recrutamento para um serviço mais apurado. Donde aquisição de
prestígio através do cerimonial.
O ‘pajé’ tem tanto mais prestígio quanto mais discípulos possui. Este
fato confirma sua fama. Se é tão procurado é porque seu poder de diagnosticar e curar é
grande.
O discípulo é aquele
Que diante de qualquer perturbação estranha recorre ao mestre;
Que brinca em seu terreiro quando deseja ou se sente obrigado.
São vários os motivos que o levam a não fazer o serviço por conta
própria: insegurança, temor de não manipular bem as entidades,
censura dos moradores do local onde mora;
O que faz são as “obrigações” prescritas pelo mestre e, dentre elas,
a “chamada de caboclo” que não é a mesma coisa que um serviço
completo;
Tem muito respeito para com o mestre. Chama-o de padrinho,
madrinha e lhe toma a benção.
A relação mestre-discípulo chega a formar uma rede generativa:
Discípulo
Mestre II
Discípulo Discípulo
Mestre I
Discípulo Discípulo
Mestre II
Discípulo
Na fala de associação de ‘pajés’ que inexistem no interior, esta rede
constituiria uma forma semi-institucionalizada de solidariedade. No dia de grandes
festas, por exemplo, a de Santa Bárbara, os mestres II se dirigem com seus discípulos
para a casa do mestre I. Além disso, há serviços que só são do poder do mestre I,
quando, por exemplo, se quebra ou se afasta uma conta de Mestre II. Muitas vezes
também mestre II não se acha com poder suficiente para resolver o caso de um discípulo
novo. Ambos se dirigem à casa de Mestre I. Esses poderes estão quase sempre ligados à
ainda não manipulação dos complementos terapêuticos: como fazer a composição de
um banho, etc.
48
3.3.4.1 – Curador e Feiticeiro
Na definição básica de ‘pajé’ apontamos seu poder de controlar certos
males, inclusive o feitiço. De fato o especialista sempre se apresenta com os traços
conhecidos do “shaman”. É ao sempre tempo o “medicine-man” e o “witch-doctor”. No
dizer de uma pajoa: “o livrador da vida”. Por isso nunca “bota” mas “tira o mal”,
porque deseja a salvação de sua alma. Suas ações têm em vista bons propósitos (a
“adivinhação” ou como ocorre aparecer no discurso: ele “descobre”).
Vemos assim que a confissão do exercício da feitiçaria na cultura local
é extremamente velada, censurada. Nenhum ‘pajé’, na cultura local é extremamente
velada, censurada. Nenhum ‘pajé’, falando de si mesmo, dirá que é feiticeiro, mas se
refere, de maneira vaga, evitando identificação, aos que praticam o mal.
P: “O que é mondongo?”
I: “É feiticeiro. Esse que é a linha negra que faz mal pros outros”
P: “Mas a senhora consegue tirar?”
I: “Sim, mas botar não. Que eu sou o espírito de luz.”
P: “E os da linha negra que espírito são?”
I: “De Lucifer, do Cão, né? É negro. Essa é que é a linha negra. Só
trabalha pra fazer má. Feio não é? Quem é fulano? Fulano é
curador. Curador nada, é feiticeiro. Daí não dá certo.”
Mas se mudarmos de tipo de informante e não pegarmos o
especialista, mas um morador qualquer veremos que estas distinções entre só “tirar” e
“não por” não poderão ser utilizadas para diferenciar entidades. Ao contrário, as duas
ações são vistas como complementares e provém da mesma fonte. Se um ‘pajé’
consegue trabalhar na área perigosa e marginal de tirar o feitiço é porque sabe
manipular com as mesmas forças. Mesmo quando ele luta contra um feiticeiro, ele só
pode esperar ser bem sucedido se tornar emprestado as armas do mesmo arsenal.
“Porque o pajé compartilha nesses encantados. É difícil ter um pajé
que não faça mal, né? Não saiba fazer o mal e desmanchar, tá vendo?
Porque se eu faço um cofo (espécie de cesto) eu sei desmanchar, né?
Assim é que é. Agora outro boba (tenta), boba e não acerta, né?”
O importante disso tudo, porém, é voltar ao emprego do lexema.
Todas as vezes que se suspeita de um consórcio com a zona da feitiçaria o termo
escolhido é “pajé”. “Curador”, por contraste, seria a expressão que tenta negar tal
aliança.
3.3.4.2 – Pajé e Mineiro
Noutro contexto ainda o lexema pajé é utilizado em contraposição a
mineiro, não revelando nenhuma conotação pejorativa. O que se tem em mente é
49
contrastar tipos de rituais diferentes e as respectivas especificidades de “linhas” e
“entidades” que atuam.
É preciso dizer que, na verdade, as diferenças entre ambos são muito
tênues. Ainda que a denominação esteja ligada a tradições históricas diversas (africana
para o mineiro e indígena para o pajé) e a zonas de desenvolvimento próprias (urbana
para o mineiro e rural para o pajé), o que observamos é uma apropriação mútua de
modelos. As oposições nítidas que os discerniam funcionam, na atualidade, mais como
uma questão de grau, ou de ênfase. A estas se somam novos traços distintivos.
Para a caracterização utilizaremos basicamente duas dimensões
semânticas.
1. Entidades que atuam
1.1 Designação do conjunto: 1 (Mina); 2 (Encantaria)
1.2 Habitat: 1 (água salgada); 2 (água doce)
1.3 Força: 1 (mais forte); 2 (mais fraca)
Assim, temos parcialmente:
Mineiro: 1.1.1 e Pajé: 1.1.2
1.2.1 1.2.2
1.3.1 1.3.2
2. Parafernália
Neste ponto é que as coisas parecem mais misturadas. Antes de
estabelecer as oposições teremos que ressaltar o seguinte. Embora alguns instrumentos
rituais como tambor e maracá caracterizem mais um do que o outro, eles aparecem
utilizados por ambos.
É uma questão de ênfase que na codificação será assinalada pelos
sinais + e -. Outros instrumentos só diriam respeito a um dentre eles.
2.1 Instrumentos utilizados: 1 (Tambor); 2 (Maracá);
3 (cigarro especial: “Tauari”)
2.2 Vestes: 1 (cabeça amarrada e saias multicoloridas)
2 (cabeça descoberta e vestimentas comuns reservadas
para a ocasião)
Portanto, o mineiro reuniria: 2.1.1 (+)
2.1.2 (-)
2.2.1
De outro lado o pajé corresponderia a: 2.1.1 (-)
2.1.2 (+)
2.1.3
2.2.2
50
Estas são as distinções que, quando perguntadas, aparecem manifestas
no discurso. Existe uma outra, porém, escondida, só apurável pela observação do
pesquisador. De fato nunca encontramos um pajé preto que não fosse mineiro. Ao
contrário o pajé caboclo22
raramente o é.
Se tivermos em vista tudo o que culturalmente vem associando à
categoria preto, poderemos entender que a dimensão cor funcionaria também como
critério de distinção, não aparente. O preto é sempre o indivíduo não totalmente
socializado, objeto de caçoadas do caboclo, marginalizado enfim. Mas é ao mesmo
tempo o ser que trabalha com serviços mais pesados, em tarefas mais perigosas. A
composição de força e marginalização cria uma peculiaridade de poder. Assim o
mineiro é tido como aquele que dá conta de serviços mais difíceis, aquele que vem
ligado à área de feitiçaria.
Um outro componente que explicaria a força do mineiro é o fato de se
conceber sua ligação com a cidade, onde foi encruzado e donde hauriu maiores
conhecimentos. A cidade é sempre vista como o lugar onde se sabe mais, se aprende
mais. Num contexto mais amplo é símbolo de sucesso, pujança e também de
legitimação. O simples fato do ‘pajé’ frequentar esporadicamente a cidade, de nela ter
sido iniciado concorre para seu prestígio. Na cidade nutre-se o vigor.
É esta ligação rural-urbana que nos levou a pesquisar, na própria
cidade, a distinção entre pajé e mineiro. Na tarefa de deslindar as especificidades eis o
que lá colhemos.
“Pajelança” é um nome antigo. Hoje mais se fala curador e cura. As
diferenças entre os dois corresponderiam ao seguinte:
Na pajelança
Se trata: linha
Se manifesta a linha de água doce
As entidades são: encantados de bicho e caboclos
Usa-se: pena e maracá
Dança uma pessoa só: o pajé (eventualmente entre um atuado, por instantes)
Cura-se, retirando o “malofício”.
Nas minas
Se trata: corrente
Quem desce são: os orixás e caboclos
Usa-se: o tambor
Dança um grupo constante: o pai de Santo com suas filhas
Cura-se através de remédio.
22 Para que o leitor não seja confundido convém esclarecer: temos empregado o termo caboclo
em dois sentidos, nisto seguindo a própria classificação local. Primeiramente ele designaria o indivíduo
do interior que vive substancialmente do cultivo. Noutro contexto funciona como uma categoria racial. O
pobre de pele branca.
51
Além das distinções de entidades e rituais é importante notar que os de
dentro das minas, na cidade, reservam à pajelança a área que recai sob o domínio da
feitiçaria. Quando se trata de um malofício é necessário recorrer a um pajé. Só ele tem o
poder de tirar.
Este fato parece corresponder a uma lógica mais englobante: a Igreja
oficial reservaria ao todo que extrapola suas fronteiras, aliança com a feitiçaria.
Descendo, porém, veremos que no interior, onde o fenômeno da pajelança é mais
generalizado, será o mineiro que apresentará maiores poderes nesta área. Na cidade, ao
contrário, onde o mais comum é o “Tambor de Minas”, será a pajelança que tratará com
o “malofício”.
Mas esta classificação a partir do urbano só foi um parêntesis que, no
decorrer da pesquisa, funcionou como uma necessidade de classificação. Voltamos à
representação rural veremos que tanto pajé quanto mineiro são um tipo de pajé. São dois
taxas que contrastam diretamente.
Mas se mudarmos de direção e olharmos verticalmente teremos o
termo pajé num contraste de inclusão. Na verdade se trata de um fenômeno de
polissemia; where the two or more (meanings signified by a) word are related, sharing
some of their distinctive features and suggesting derivation one from the other
(Scheffler and Lounsbury 1971:6).
3.3.4.3 – Doutor do Mato
É o ultimo lexema da lista do princípio que resta a ser analisado.
O termo doutor do mato é, em última análise, uma satisfação ao
código dominante em que o doutro é reconhecido como único individuo que
legitimamente possui controle sobre a doença. Mais do que isso: o código local se
apropria do termo “doutro” para conferir legitimamente ao ‘pajé’ como curador e lhe
agrega a qualificação “do mato” para designar os males sobre o qual tem poder.
Pajé
pajé Mineiro
52
Assim os campos do “doutor do mato” e do “doutor (da cidade)”
ficam bem delineados.
Doutor (da cidade)
Doenças que necessitam de aparelhos
especiais e exames de laboratório.
Obs.: O repertório de doenças
reservadas ao doutor (da cidade) é uma
lista não fica, sempre aberta. Varia, vai
aumentando, conforme a experiência do
informante. As sempre citadas: coração,
operação.
Doutor do mato
Assombro
Espírito mau (vagante)
Malofício
Obs.: quando o doutor do mato se
contrapõe ao doutor (da cidade) o
repertório de doenças que recai sob o
poder do primeiro é restringido levando-
se em conta somente aquelas sobre as
quais o segundo não controlaria.
Neste caso os dois não são competidores (i. é, sempre partindo do
ponto de vista da cultura analisada) porque atuam em áreas competentes. Mas quando se
trata do próprio ‘pajé’ ser o informante, ainda que reconhecendo as competências
específicas de ambos, ele se reserva a clarividência do diagnóstico. O fato de ambos, ele
se reserva a clarividência do diagnóstico. O fato de não deixar a doença à mercê do
acaso e aportar o doutor (da cidade) como indivíduo de poder para o caso, lhe evita o
risco do fracasso ao mesmo tempo que lhe confere prestígio ainda maior. O doutor
passa a ser uma descoberta do ‘pajé’, uma categoria que recebe clientes de suas mães e,
por isto, de certo modo controlada já que prevista dentro da própria área da pajelança.
Existiria ainda um outro jeito de marcar as fronteiras de poder entre
doutor do mato e doutor (da cidade) mas que não estaria ligado ao repertório distinto de
doenças. Há sofrimentos (não prefixados culturalmente mas selecionados a posteriori)
que exigem a concorrência dos dois: o medico curaria a parte física e o pajé a parte
“espiritual”. É assim que se explica a utilização não alternativa do conflitante, mas
concomitante dos dois para o tratamento do mesmo mal. Esta composição, porém,
guarda uma separação Necessária que provém da própria representação da doença.
Em outros contextos, porém, o doutro é visto pelo ‘pajé’ como um
inimigo competidor:
quando o que se considera é a interferência na própria área. Assim
o pajé prognostica o agravamento da doença se o cliente recorrer
ao médico, já que não se trata de uma doença de doutor;
quando o ‘pajé’ ataca por incompetência procura se defender
apelando para a própria vulnerabilidade do médico. Para isso lança
mão de uma espécie de modelo estatístico.
“Dizem que o pajé mata. Mas eu gostaria de saber se morre mais
gente na mão de pajé ou na mão de médico”.
53
Mas se o doutor do mato e o doutor (da cidade) se distinguem por
causa do tipo de doença que controlam é porque igualmente esse controle lhes é
legitimado pela diferença de origem de poder que manipula. O doutor (da cidade)
adquiriu o seu saber através de livros e estudos. O doutor do mato recebe ensinamentos
dos “encantados” e entre eles “aqueles que têm feição de índio são os maiores
doutores”.
“A senhora não já ouviu dizê que sempre tem os índios, né? Então,
são os maió curado. Os maió descubridô de remédio, de ervas e tudo.
Então eles têm prestígio grande que eles dão, né?”
Como já dissemos anteriormente, se no primeiro caso é diploma que é
exigido, no segundo o que conta é o encantado.
Eis a riqueza e a complexidade de informações: que pudemos
depreender da categoria ‘ pajé’. Mutatis mutandis para o presente caso poderíamos
chegar a conclusões semelhantes que levaram Frake a dizer: the greater the number of
distinct social contexts in which information about a particular phenomenon must be
communicated, the grater the number of different levels of contrasts into which that
phenomenon is categorized (1961-121).
Ao formular esta hipótese Frake estaria, no entanto, tentando explicar
a causa de uma maior subdivisão em níveis diferentes numa taxonomia. Nós, ao
contrário, tomaríamos a mesma hipótese para explicar a ocorrência de vários lexemas
para um mesmo taxa e em vez de níveis, falaríamos de dimensões de contraste. Os
fatores situação e interação estariam na base desta soma de informações.
Com esta última categoria terminamos a apresentação dos
funcionários religiosos. Após a análise do todo eles parecem formar um continuum no
qual o padre e o ‘pajé’ ocupariam os extremos, e o rezador e o benzedor sucessivamente
o meio.
Que queremos dizer com isso? Tendo em vista a atuação na
comunidade local o padre é o funcionário religioso que se situa nos limites que se
articulam com o exterior, com o que não é ela. À medida que passamos pelos outros
vamos penetrando cada vez mais o seu seio até chegar no ‘pajé’ que atua nas áreas mais
escondidas, mais reprimidas, mais íntimas da cultura local. O ‘pajé’ é uma categoria que
funciona como via de acesso, revelação do avesso da comunidade.
Rezador Benzedor
Padre Pajé
54
3.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS
CATEGORIAS
Depois de ter discorrido pormenorizadamente sobre as categorias
poderemos com mais segurança dar a definição componencial de cada uma. Não
tomaremos para isso os traços compartilhados (ainda que numa relação de grau como
acontece com o padre-rezador), mas os verdadeiramente distintivos e que emergem
quando jogadas uma de encontro a outra. Deixaremos de lado igualmente as
manipulações (cf. o ‘pajé’) que a categoria pode sofrer dependendo do contexto23
.
Durante a dissertação, aliás, tivemos o cuidado de aponta-los. Embora
introduzidos intencionalmente no melhor momento da redação eles aparecem
difusamente. Cumpre agora realçá-los.
O domínio dos funcionários religiosos sofreu inicialmente uma
subdivisão em dois grupos. O critério adotado foi a ausência ou presença da cura
(analiticamente os momentos previsíveis e os imprevisíveis). Temos então a primeira
dimensão de contraste com as suas duas manifestações alternativas, ou seja, os
componentes:
a1: não curam
a2: curam
Tomando o grupo dos que não curam mas que se caracterizam por
atuarem em áreas previsíveis há que se distinguir os momentos entre:
b1: entradas rituais no social e
b2: festas aos santos
Passando para o grupo dos que curam o critério primeiro de distinção
vem ligado ao repertório de doenças sobre as quais os funcionários têm controle. Como
há “overlap” também neste ponto (cf. mau-olhado, quebranto) convém formular
provisoriamente a dimensão de contraste segundo a origem do mal24
:
c1: se não causados por seres sobrenaturais
c2: se causados por seres sobrenaturais ou pela ação intencional de
ser humanos “normais”
23 Com isso não queremos dizer que as manipulações são fruto do acaso. Ao contrário, o código também
prevê o uso conforme as circunstâncias como nos demos ao trabalho de mostrar no entanto elas não
fornecem os elementos completos para uma definição componencial.
24 Dizemos provisoriamente, porque a distinção depende de uma classificação prévia das doenças que
ainda não pode ser feita.
55
Além disso outros critérios operaram para classificação de todas as
categorias do domínio. De fato os funcionários religiosos tinham o direito de atuar
legitimamente porque de posse de um saber culturalmente reconhecido. Daí a existência
de uma outra dimensão: a origem do saber triformemente adquirido.
d1: por educação escolar
d2: por transmissão oral, hereditária ou não
d3: através da possessão
De outro lado se todas as categorias puderem ser englobadas num
único domínio é porque partilham de um poder particular: o religioso. O modo da
cultura designar esta especificidade é dizer: “são pessoas sabedoras de muitas rezas”.
Serão os tipos de orações utilizadas que caracterizarão este ou aquele funcionário.
Temos então a ultima dimensão assim concretizada:
e1: a missa
e2: o bendito
e3: a reza eficaz
e4: a doutrina
Com essas cinco dimensões estamos aptos a dar a definição
componencial das categorias:
Padre a1 b1 d1 e1
Rezador a1 b1 d2 e2
Benzedor a2 c2 d2 e3
Pajé a2 c2 d3 c4
56
3.5 – BIBLIOGRAFIA
BERGER, Peter. La Religion dans la conscience moderne. Paris, Ed. Du
Centurion, 1971.
BERREMAN, Social Categories and Social Interaction in Urban India. American
Anthropologist, 74 (3): 567-86, 1972.
BOURDIEU, PIERRE ET PASSERON, J.C La reproduction, Paris, Ed. De
Minuit, 1970.
CONKLIN, Harold. Lexicographical Treatment of Taxonomies. International
Journal of American Linguistics, 28 (2): 119-141, 1969; In Tyler, ed.
Cognitive Anthropology, New York, p.41-57.
EVANS-PRITCHARD, E.E. Witchcraft, oracles and magic. Clarendon Press,
1937.
FRAKE, Ch. O. The Diagnosis of disease among the Subanum of Mindanão.
American anthropologist 63 (1): 113-132, 1961.
______________ A Structural description of Subanum. In: TYLER. Religions
behavior. S.l., s. ed. 1969, p-470-489.
FOURNIER, M. Reflexions théoriques et méthodologiques à propos de
l’ethnoscience. Rer. Franc. Social., XIII 2 (459-489) 1971.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão; veredas. 6. Ed. Rio de Janeiro, Liv.
José Olympio, 1968.
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. Um estudo da vida religiosa de Itá;
Amazonas. São Paulo, Brasiliana, 1955.
STRATHERN, A. et alii. Marsupials and magic; a study of spell among the
Mbowamb. Dialect is practical religion. Cambridge, 1968.
57
4 – REDE DE SOLIDARIEDADE: UM ESTUDO SOBRE O PARENTESCO E O
COMPADRIO NO INTERIOR MARANHENSE
Regina de Paula Santos Prado
– Antropóloga –
1972
4.1 – INTRODUÇÃO
4.2 – PARENTESCO
4.2.1 – O Povoado: Entidade afetiva
4.2.2 – Parentesco: O Repertório
4.2.3 – Parentela: Uma Relação
4.2.4 – Unidade Doméstica: Casa Minha x Casa Alheia
4.3 – COMPADRIO
4.3.1 – Batismo e Dimensão de Socialização
4.3.1.1 – O “Santo”: Modelo de perfeição social
4.3.1.2 – Substituição dos laços de parentesco pelos laços de compadrio em casos de
reincidência
4.3.2 – Compadrio: Um contrato bilateral
4.4 – INCESTO
4.5 – CONCLUSÃO
Para analisar os novos modelos de organização social
propostos pelos missionários do povoado de Barroso, na
Baixada Maranhense, tornou-se necessário estudar a rede
de solidariedade já existente no código regional, o que é
caracterizado de modo mais marcante pelas relações de
compadrio e parentesco estabelecidas na comunidade. A
análise da rede de solidariedade não se prende ao aspecto
formal, mas sobretudo à ideologia que a informa. Essas
relações são consideradas distintas entre si em virtude de o
estabelecimento de vínculos, isto é, o compadrio é um laço
tão forte que o casamento entre compadre e comadre ou
entre duas pessoas que possuam o mesmo padrinho é
considerado incesto. Os laços de parentesco são
determinados pelas circunstâncias concretas (doença, por
exemplo), não havendo normas rígidas para considerar-se
alguém como parente, daí a parentela ser tratada aqui
como uma relação. Para caracterizar a ideologia que
informa o parentesco foram considerados três níveis: o
povoado, a parentela e a unidade doméstica. O Batismo,
gerando o ser social torna o compadre-padrinho um
elemento importante na colocação ou recolocação do
indivíduo para dentro do domínio social. O compadrio é
também considerado um contrato bilateral na ajuda e
amizade mútuas, o que explica a existência de outras
formas de compadrio (de fogueira e de apelação).
58
4. 1 – INTRODUÇÃO
“Pois é: tem muita coisa no mundo pra gente poder viver”.
(Palavras de um informante)
As conclusões desenvolvidas neste trabalho são o resultado de dois
meses e meio de trabalho de campo (janeiro, fevereiro e março de 1972) no interior do
município de Bequimão, localizado na zona chamada Baixada Maranhense. Os dados
procedem dos moradores de Barroso, povoado de mais ou menos 300 pessoas
distribuídas em 53 casas ou unidades familiares, situado a 7 km da sede do municio. Sua
população predominantemente cabocla, vive substancialmente do cultivo da roça, onde
se planta arroz, mandioca e milho. Tal atividade econômica se exerce, até o momento,
juridicamente falando, de modo descontraído, já que as terras são devolutas e
consideradas de baixo rendimento, portanto minimamente cobiçadas. A “posse”, ou
melhor, o direito socialmente reconhecido, se faz pela simples ocupação de uma faixa
de terra, a qual é cercada para o plantio. É a cerca que delimita o “meu” e “o teu”, sendo
que o negociável se restringe aos benefícios nela implementados.
Estas terras, porém, outrora da Igreja e atualmente do Governo, são
sentidas, percebidas ideologicamente pelos moradores como terras de Santa Teresa, de
modo que o único tributo prestado à “proprietária” consiste na joia tirada anualmente
por seus encarregados, indivíduos destacados de um outro povoado, Itamatatiua, onde
reside, por assim dizer, a “dona”, isto é, a imagem da “santa viva”.
Essas informações sumárias foram fornecidas, a título auxiliar “de
localização”, para o leitor curioso que somente tomará contato com o presente tema, um
dentro os diversos que comporão uma pesquisa, ainda em curso, cujo objetivo principal
será o de caracterizar o sistema religioso da população rural da Baixada Maranhense.
Isto quer dizer: este capítulo, peça de um todo projetado, ganhará maior força numa
leitura integrada, somente possível após o término da pesquisa. É provável que algumas
afirmações tenham de ser formuladas e outras ratificadas com exemplos ainda mais
enriquecedores.
No entanto, as referidas interpendências e previsão de abertura não
nos impedem de tratar do tema de modo consistente e, por isso, de certa maneira,
autônomo. Aliás, ele constituiu a pedra fundamental e inicial de toda a indagação
maleavelmente planejada. Partimos em busca da caracterização do grupo local: de que
forma se organizam socialmente, qual a ordem que o mantém estruturalmente
congregado? Isto nos impunha por dois motivos:
1º. Existe um postulado antropológico que afirma: onde existem pessoas
morando juntas existem sempre regras sociais que as norteiam, mapeando-lhes o
comportamento e prevendo sanções nos casos de infração. Aquilo que parece com
informe ou desprovido de ordem para o “colonizador” desavisado possui uma lógica,
imperceptível para quem não está dentro das regras do jogo, mas poderosos para quem
foi socializado dentro dela, como bem concluiu uma informante após me explicar uma
dessas regras: “Pois é: tem muita coisa no mundo pra gente poder viver”.
59
2º. O outro motivo que nos levou a perseguir o tema está diretamente
ligado ao encontro de duas culturas que se dá na religião: a dos missionários e a dos
moradores locais. De fato, aqueles estariam propondo, por diversos canais institucionais
próprios, novos modelos de organização, veiculados pela comunidade de “culto”, da
“legião de Maria”, “roça comunitária”. Pautados pelas diretrizes pós-conciliares e
embebidos de ideologia cristã de respeito pelo homem, procurariam ser agentes, com
demais auxiliares, de criação de “comunidades eclesiais”, muitas vezes denominadas,
pelo código missionário, de “comunidades de base”.
Mas, para que a análise desse novo modelo proposto pelo missionário
pudesse se processar era necessário, primeiramente, e tomando emprestado o termo,
procurar “a comunidade de base” local, a rede de solidariedade, de fidelidade, já
existente no código regional para poder, depois, avaliar em que medida os antigos
padrões se apresentavam ou não, refratários ou suficientemente poderosos para
canalizar, modificando, através de uma retradução, as novas regras e instituições
introduzidas pela ideologia missionária.
Nosso trabalho, portanto, restringir-se-á, à primeira parte do que foi
dito acima. Constará de duas unidades principais, isto é, tentará analisar os dois códigos
que, a nosso ver, são os responsáveis pela rede de solidariedade:
o código do parentesco
o código do compadrio
4.2 – PARENTESCO
O caminho que adotaríamos para descrever o grupo de moradores que
constituem o povoado de Barroso seria de fora para dentro, do inclusive ao particular,
fazendo a lente de análise aproximar-se gradativamente dos elementos que tecem a
estrutura social. Em outras palavras: estaríamos preocupados em explorar não somente o
aspecto forma, mas sobretudo a ideologia que informa o que convencionamos chamar
de “rede de solidariedade. Assim estaríamos atentos para detectar de que modo, por
exemplo, o parentesco, em outros contextos é alargado até os limites do próprio
povoado, identificando-se com ele, ao passo que em outros contextos ele é restringido
às unidade domesticas. Ou seja: descobrir, norteados pela ideologia, todos os elementos
do repertorio do código de parentesco e apontar em que circunstâncias somente alguns
são tomados para caracterizá-lo, enquanto que, em outras situações haveria necessidade
de todos para defini-lo.
4.2.1 – O Povoado: Entidade Afetiva
Para melhor percebermos as nuances contidas nas expressões
carregadas de afetividade que caracterizam o povoado como uma grande família
lançaremos mão de dois recursos técnicos:
60
a posição do informante (P.I.)
a dimensão de contraste utilizada (D.C.).
A combinatória desses recursos nos revelariam três nuances:
1º. Quando aquele que fala se acha fora do povoado (P.I.) e o assunto
gira em torno daquilo que conhece como habitual. De outra maneira: o indivíduo fala do
que é comum para “os seus”, sente-se seguro e sábio para opinar sobre o mundo que lhe
é socialmente contíguo, familiar. Por isso a dimensão de contraste implícita no discurso
é da origem: “lá x aqui”, do que “sei e que não sei”, do que é “meu mundo do que não
é”.
Assim o informante que se encontra fora do povoado percebe aquela
totalidade caseira. A expressão referencial não é “no meu povoado” mas “lá em casa”.
2º. Quando o sujeito que fala se encontra dentro do próprio povoado (P.I.)
e quer se referir à qualidade das relações (D.C.) que o caracteriza por ocasião a outros
povoados, ou à vila (= sede do município). O que ocorre geralmente é a idealização do
lugar onde se mora, as relações entre os indivíduos caracterizadas como pacíficas, de
respeito e ajuda. Todos são “gente nossa”, “gente da gente”, que não desejam mal um
para o outro, com quem se pode contar, onde impera a “popularidade” (traço
despretensioso e igualitário) e não a “soberba”.
“É. Porque eu faço ali um lugar, ali no S... que eles tratam, que se a
senhora chegar lá, uma qualqué pessoa chegar lá... Fulano vamo
comigo ali nessa casa? Eu não vou. Então vamo naquela outra? Não,
eu não vou, eu não falo com esse camarada, é meu inimigo. Pra lá é
assim. E aqui, não senhora. Aqui na cabeça da ladeira acolá onde
tem aquela estiva, essas casa tudinho não tem essa casa que esse
cristão diga eu não encosto nessa”.
3º. Quando o indivíduo está dentro do povoado mas o caracteriza não mais
a partir da oposição “este povoado” x “outro povoado”, mas de uma lógica metonímica.
a parte pelo todo
o sítio pela periferia
os antigos pelos recém-chegados
o parente pelo não parente.
Para que se entenda melhor: Barroso é formado de um centrinho
dominado “sítio” e de caminhos conduzindo a moradias mais distantes. No sítio é que se
desenrola com mais intensidade, a vida social, lugar das quitandas, do grupo escolar e
das festas. Por isso no discurso, a coluna da direita é ideologicamente suprimida, ou
mais corretamente falando, encoberta extensivamente pelos elementos da esquerda que
logicamente se permutam.
61
“Era estas três famílias que existia no lugar. Depois foi aumentando,
já os filhos casam, faz uma casa pra ali. Gente de fora pra cá inda
nunca veio. Pra dizê uma pessoa de fora desses outro lugar, pra vir
fazer casa aqui., não. Vai aumentando as família”.
Na realidade porém, há casas novas localizadas na periferia e na beira
da estrada, de moradores vindos de outro lugar. Mas isso não é representado
conscientemente, não havendo propriamente patrão ou distinção de classe acentuada
entre os moradores, deveríamos estar atentos para esta diferenciação sutil e descobrir:
quem se identifica com o sítio? Quais os critérios? Quais os moradores que ocupariam
estruturalmente a periferia?
São essas portanto as três nuances básicas que podemos discernir
dentro da categoria mais inclusiva: o povoado enquanto “lá em casa”, “gente da gente”
e “famílias aumentadas”.
São afirmações desta ordem que nos levaram a aproximar a lente da
análise, a fim de averiguar até que ponto, realmente, se estendiam os laços de
parentesco.
4.2.2 – Parentesco: O Repertório
Se a ideologia do parentesco serve, como vimos, para estabelecer
descontinuidades em níveis mais inclusivos da ordem “meu povoado x outro povoado”,
é porque na verdade seu código deve ser muito rico e permitir a atualização de muitos
laços. No entanto não poderíamos nos perder na expressão mais aparente desses laços.
Teríamos que descobrir os nódulos responsáveis da multiplicação das relações de
parentesco.
Um dos pontos fundamentais que explicaria a extensão dos laços que
ligariam um determinado ego a inúmeras pessoas seria o fato de que ele considera
abertamente como irmãos:
1. não somente os filhos de seus próprios pais biológicos
2. mas também todos aqueles gerados com os outros parceiros sexuais
tanto do pai como da mãe, quer isto se dê durante a união atual
(coabitação) dos próprios pais, quer após o rompimento dessa união,
seja pela separação ou pela morte de um deles.
Esta declaração manifesta obriga a correspondência gramatical da
regra: os homens e as mulheres consideram abertamente como seus filhos todos aqueles
gerados com o esposo (a) ou com outros parceiros sexuais.
Não há duvidas que uma distinção é feita conforme os casos, quer se
trate da relação irmãos ou da relação filhos. Quanto aos primeiros, há:
o irmão “de parte a parte” ou legítimo
o irmão por “parte de pai”
o irmão por “parte de mãe”
62
Quanto aos segundos:
filhos “de casal” ou legítimos
filhos “particulares”.
Mas seria enganador pensar que a categoria “legítimo” possui a
mesma conotação que na sociedade brasileira dominante, isto é, filhos de casamento
realizado segundo as normas jurídicas e/ou religiosas. Isto porque o código local possui
também uma forma de casamento própria contendo regras e sanções como veremos
mais adiante. Assim, a categoria “legítimo”, numa instância específica, estaria dando
satisfações a esse código: 1º filhos ou irmãos do mesmo pai e da mesma mãe e 2º que
“combinaram a vida juntos”.
É claro que a primeira colocação não está totalmente ausente da
representação do caboclo, sobretudo no que tange ao casamento “no cartório” ou “no
juiz”. O casamento “no padre”, porém, é um fato bem mais recente e são bem poucos os
que o adotam; não possui a mesma força cultural que o primeiro. Ninguém se sente não
casado por não ter se casado no “padre”. Por isso a categoria “legítimo”, em certos
contextos, procura dar satisfação no código jurídico da sociedade brasileira dominante.
De outro lado o poder julgador desse código estaria por detrás, como origem, da
categoria “amasiados” ou “amantiados”, mas cujo conteúdo é diferente daquele de onde
procedeu: não possui a carga de anormalidade ou de marginalidade.
Esta ligeira incursão nas regras de casamento só veio como suporte
explicativo da possibilidade de aceitação normal de um grande numero de irmãos.
Assim, um dos entrevistados considera como seus irmãos:
os filhos de sua mãe com o pai que fez (o físico)
os filhos de sua mãe com o pai que lhe deu o nome, casando-se
com ela no cartório (o jurídico)
os filhos de sua mãe com o pai que o criou (o sociológico).
Deste modo o código admite, no caso de uniões desfeitas, três tipos de
maternidade, que são exercidos por pessoas diferentes. Caso contrário, estas três
funções estariam concentradas numa mesma pessoa. Diria ainda que o desdobramento
destes três tipos de paternidade está diretamente relacionado ao ciclo da criança, isto é,
depende da idade em que se encontra, no momento das rupturas. Quando isto se dá, um
dentre estes três tipos é privilegiado: o pai de criação, considerado verdadeiro pelo grau
de participação da socialização do ego. Tal vínculo torna-se tão substancial que se o pai
de criação se separa da mãe de ego, este considera também como seus irmãos os filhos
daqueles com a outra mulher com quem atualmente coabita. Veríamos, assim, a terceira
possibilidade dentro do grupo de irmãos.
Seria, portanto, a extensão de irmãos que no caso da sociedade
estudada é maior que o grupo de filhos, o principal responsável pela dilatação da rede de
parentes, criando uma infinidade, por exemplo, de tios, primos e sobrinhos.
63
Porém, dentro do grupo de irmãos existe um laço mais forte entre os
irmãos uterinos, já que nas uniões sempre feitas e desfeitas, é regra quase que geral, os
filhos permanecerem com a mãe que os gerou e regra inevitável se estiverem em tenra
idade.
Por causa dessa ocorrência, isto é, da mãe permanecer com os filhos
que gerou, é que os tipos de maternidade não irão corresponder simetricamente aos três
tipos de paternidade. A mãe biológica é geralmente aquela que cria o filho, isto não se
dando somente em alguns casos excepcionais. Aliás, ao nível ideológico, há como que
uma censura do ato de conceder filhos a outrem: “filho não se dá, não é ramo de frô”;
“filho não se reparte, não é porco”.
Na prática, porém, isto às vezes acontece, não desordenadamente, mas
se conformando a certas regras. Nestes casos apareceria a mãe de criação ao mesmo
tempo que o pai de criação, se aquela possuir um cônjuge (é a normalidade). São eles:
a) quando a criança, ainda pequena, perde os pais. Neste caso são os
padrinhos que a tomam sob seus cuidados, tornando-se primordialmente seu pai e sua
mãe de criação;
b) quando por motivo de esterilidade de um parente próximo,
geralmente, irmã, se concede um dos próprios filhos, ato que não raramente é
considerado bênção, gerando fertilidade àquela até então infecunda;
c) outra possibilidade é a de dar um dos filhos, resultado de uma
união desfeita, à avó materna, viúva ou sem marido. De idade avançada, geralmente os
velhos não se incorporam à unidades domésticas dos filhos. Até quando podem
trabalhar, sobretudo no caso das mulheres, se unem à roça do filho, mas continuam
morando em sua própria casa. Toda uma ideologia de moralidade, de “casa própria x
casa alheia”, determina essa ocorrência, como veremos mais adiante. No momento em
que a anciã não puder mais trabalhar produtivamente para o seu sustento, já que tem o
neto crescido que a provê;
d) o último caso e o menos desejado, é a concessão de um filho a
pessoas não parentes ou ligas por laço de compadrio, por motivos de grandes
dificuldades econômicas. Mas sempre o temor impera de que sejam maltratados como
empregados.
Geralmente todas essas adoções, sobretudo as três primeiras, se fazem
segundo consenso local. Não há formalidades jurídicas, às vezes presentes no último
dos casos, que não é muito almejado: o caso do “filho de papel passado”. No entanto,
isto não diminui o caráter definitivo da doação. No item a) isto decorre por imposição
das circunstâncias; nos itens b) e c) o direito definitivo socialmente reconhecido vem
encapsulado na expressão: “fui eu que me consumi” pela criança.
Estes seriam em suma os contextos que dariam nascimento à mãe de
criação.
Há, porém, no código local um terceiro tipo de maternidade que não
desfruta, como a anterior, de uma logica de decisões. Ele já vem previsto pela estrutura
social desde o nascimento da criança. Tratava-se da mãe de leite¸ daquela que por estar
amamentando um filho seu, pode vir a dar o primeiro leite a um recém-nascido de uma
64
outra unidade doméstica. A explicação axiomática que justificaria a sua existência é que
o primeiro leite da mãe é “choco”, “não presta”.
A escolha da mãe de leite é muito ampla, mas dela não excluídos os
inimigos. De fato, o leite é concebido como sangue, transmissor da substância pessoal
de modo que, através dele pode ser também veiculado o mal. A noção de substância,
isto é, do leite como sangue torna-se mais explícita ainda quando penetramos no novo
tipo de relação no qual é introduzida a mãe de leite. Ela passa a ser considerada como
um parente consanguíneo e classificada dentro da rede de parentesco. Ocupa,
estruturalmente, em relação ao filho de leite a mesma posição que a mãe biológica.
Cumpre notar, porém, que a totalidade dos laços anteriores contraídos pela pessoa não
entra automaticamente como fazendo parte da nova relação. Por exemplo, os irmãos da
mãe de leite não serão tios do filho de leito. Somente algumas posições serão
classificadas: as que forem contraídas daí para frente e que estiverem dentro dos limites
do grupo nuclear. No momento em que se cria a relação três posições são definidas: a
mãe de leite, o filho de leite, e o irmão de leite (= exclusivamente aquele que está sendo
amamentado ao mesmo tempo).
O filho de leite se casando, sua mulher será nora da mãe de leite, e
seus futuros filhos os netos dela.
A análise deste terceiro tipo de maternidade além de nos apontar a
quarta possibilidade de irmão serve como chave de entendimento de descontinuidades
internas no âmbito do parentesco, bem como nos leva a perceber a distinção existente
entre relação (parentela) e grupo corporativo (família nuclear) do que trataremos mais
profundamente adiante.
Por ora basta dizer que o papel da mãe de leite é altamente estimado
na ideologia local. Há quem afirmou ter 128 filhos de leite, contagem que ia
estabelecendo mediante um risquinho no reboco de sua casa. Não acreditando como
verídico o número retido pela entrevistada. A informação estaria querendo, no entanto,
comunicar uma verdade de outra ordem: de ordem ética.
“É porque se eu nego o leite a um inocente, quando morrer, na porta
do inferno vou encontrar aquele leite. Se eu der esse leite, na porta do
céu vou encontrar. Tenho a felicidade comigo. Pois é; tem muita coisa
no mundo pra gente viver”.
De outro lado, o espaço estrutural para a mae de leite é sempre
garantido pela ideologia. Foi isto que obtivemos como resposta ao indagar
maliciosamente: e se não houver quem dê leite? Ao que a informante retrucou: “isto não
acontece, há sempre criança nascendo” no povoado.
Cremos assim ter chagado a demonstrar os principais nódulos do
código de parentesco que, desdobrados, tornam seu repertório riquíssimo. Dependendo
do contexto assistiremos a uma apropriação de todos os elementos desse repertório,
quando se trata de estabelecer descontinuidades mais inclusivas. Em outras ocasiões há
como que uma seleção desses elementos e então estaríamos diante de uma retratação da
própria rede. Num e noutro caso o contorno seria determinado pela ideologia que os
65
informa, isto é, por um conjunto de regras prescrevendo direito e deveres. A percepção
destas regras é que nos permitirá distinguir ainda duas unidades: a parentela e o grupo
doméstico, que serão tratados a seguir, a primeira, como uma relação, a segunda, como
uma corporação.
4.2.3 – Parentela: Uma relação
De fato a parentela é um fenômeno mais difuso, que não possui
contornos físicos nítidos na vivência do cotidiano, mas que pode emergir, “sofrer um
apelo” diante de circunstâncias específicas, quando então distinguiria o parente do não
parente e o próximo do distante.
Estas circunstâncias têm um nome e um conteúdo.
1º – A primeira delas se chamaria “vergonha”. Trata0se de uma
unidade moral percebida sob diferentes nuances que se integram.
a) O bem ou o mal feito atinge a rede, sobretudo em que se acham
mais perto.
“Mas como é possível que esse filho é só pra me trazer com a cara no
chão? Eu disse: eu vou buscar. Quando chego lá digo: T..., vamos
embora pra casa. Desse jeito dá o que falar de mim e de ti. O povo há
de dizer que é eu ou tu que não presta”.
b) Obriga a recorrer primeiro aos seus, sob pena de condenação moral
Pesquisador: “é bom morar perto de parente?”.
Informante: “É. Morar longe não dá certo. É porque se a
pessos se é de ocupar uma pessoa de fora, eu ocupo
primeiro meu parente. Porque agora eu vou ocupar
Regina (pesq.), eu vou lá pedir qualquer coisa pra ela
emprestado, eu largo aqui meu parente. Ele tem aí. Então
um de nós dois não presta. E por esta causa não dá certo.
Se eu ir lá e ocupar e ver que ele não tem aí, eu vou lhe
ocupar. Aí eu ocupo primeiro é meus parentes. Porque:
Mateus, primeiro os teus”.
c) Infração da solidariedade, da unidade moral, pela denúncia para
fora da rede, ratificando o ditado: “roupa suja se lava em casa”.
“Então chegou aí um rapaz que eles merenda e convidou pra ir na
casa de D...(fulana). E foi e teve de chamar a menina pra ela falar
com a merenda. Ela disse que tinha o marido dela. Um amante que
ela tem. Ela casou, ao depois desabandonou o marido e veio embora e
hoje é então um e outro. Quando foi no outro dia, ele veio falar por
66
T..., meu filho. T... escrachou com ela, aí ela chegou aqui e... ela vem
ser minha sobrinha. Então ela veio aqui e disse que não ia dar parte
de T... me considerando. Eu digo: menina, não vai, isso é uma coisa
que não dá certo, não presta, porque tudo é uma parentagem só, e eu
digo: não vai... mas ela por detrás foi e deu parte dele.
2º – A segunda dessas circunstâncias se chamaria “ajuda”. Apareceria
sobretudo em casos de:
1º. doença
“Então eu disse: M..., tu fica lá em casa. Porque M... tava doente,
com doença do mundo. Gente dele não ligava pra ele, a cabeça dele
fedia que não se podia. Antonce eu sendo parente dele, eu carreguei
pra minha casa”.
2º. repartição de comida, prevendo reciprocidade em casos de doença.
“Quando se traz um comer (por ex. uns peixes) em casa, se faz uma
repartição com os vizinhos da gente. Vamos dizer que eu trago cinco
prateada de diaba. Dou uma e meia pra meu pai, uma para meu
cunhado, meia para cada um de meus dois vizinhos, e fico com duas.
Faço assim porque hoje eu tenho então eu dou. Se amanha eu não
tiver dão pra mim. Se por acaso eu adoecer, Deus e Nossa Senhora há
de livrar, sei que vou poder comer ainda e minha família também.
Se um parente mora mais longe e estiver doente eu mando pra ele sem
ele pedir pra mim. Até dou mais que aos outros. Mesmo outros dando
pra ele (outros parentes e vizinhos) eu dou porque é uma obrigação.
Se eu não der e depois cair doente naquela hora ele dirá: ’Mas
quando eu estava doente, ele não me deu nem um tiquinho, nem se
lembrou de mim; será que vou lembrar dele agora?’.
Mas se um sujeito estando bom de saúde passa um dia inteiro (um dia
que não seja dia santo de guarda) deitado na rede sem procurar o que
comer, não se dá pra ele. Se dá pra quem caçou (=procurou) e não
achou”.
Assim o parentesco desta sociedade como sistema funciona de modo
maleável. A posição “parente” não é ficada de uma vez por todas, aprioristicamente.
Existe, por assim dizer, de modo latente, mas se revela em contextos peculiares. Do
mesmo modo a gradação entre parente “próximo” e “arretirado” segundo maior grau de
consanguinidade, na práxis rotineira isso se dilui. Como vimos nos exemplos citados,
serão as circunstâncias concretas que irão determinar. Um vizinho poderá ser incluído
dentro dos deveres que atingem a parentela, no caso da repartição de comida, e um
parente não vizinho esquecido em situações de normalidade, tornar-se-á muito próximo,
em caso de doença.
Por causa desta imprecisão de fronteiras é que preferimos tratar da
parentela como uma relação.
O único grupo que funciona mesmo como corporação seria a unidade
familiar, objeto agora de nosso estudo.
67
4.2.4 – Unidade Doméstica: Casa Minha x Casa Alheia
Em vez de oferecermos abruptamente nossas conclusões teóricas
preferimos tomar um caminho indireto que apresentasse ao leito a vantagem de poder
acompanhar mais de perto as categorias locais.
Partiremos primeiramente de um estudo do casamento, segundo os
padrões locais, para depois detectar regras relativas ao nosso objetivo.
Anteriormente já havíamos nos referindo à existência de uma
modalidade de casamento comum para o código local. Trata-se do “casamento
furtado”. Vejamos as etapas e falamos alguns comentários no momento oportuno.
1º) A moça casadoura é aquela que mora com os pais e se encontra
num estado de virgindade. É classificada segundo a categoria dos moradores de
“suficiente” ou mais comumente de “moça” em contraposição à “solteira” (= prostituta).
2º) A separação entre os sexos é bem rígida, na vida cotidiana. No dia
a dia o que se observa no povoado são grupos de meninos ou meninas, ajuntamentos de
rapazes ou moças. Nunca se misturam. Mas há um momento parêntese em que essas
regras são levantadas, até mesmo violentamente invertidas. É o momento das festas.
Elas congregam pessoas de povoados vizinhos que andam horas a pé a fim de não
perdê-las. As festas seriam portanto o lugar privilegiado de encontro do futuro parceiro
sexual, geralmente de outra localidade que a própria onde se habita.
3º) O conhecimento sumário se faz e a atração se estabelece. Parte-se
então para o contrato que é feito não entre as famílias, mas sigilosamente entre o rapaz e
a moça.
4º) Combina-se então a “fuga” ou o “furto”, geralmente à noite. Nesse
momento é que entra um intermediário importante, amigo, simultaneamente tanto da
família da moça (capaz de dissimular sua saída) quanto do rapaz (incapaz de desviá-la
para si. Daí o tratamento de “compadre” que recebe).
5º) Processa-se a “fuga” para o local onde habita o rapaz. A moça é
levantada à vezes para uma casa independente, preparada a propósito, ou muito mais
frequente e honradamente para a “casa da mãe” do rapaz, a qual é advertida nas
vésperas. Aí dormem e copulam.
6º) Com um intervalo de alguns dias os pais da moça vêm adquirir
sobre as intenções do rapaz e estipular o prazo do casamento do cartório.
7º) Este pode se processar de duas maneiras: ou o juiz vem até o
povoado, dependendo das posses do indivíduo ou, o que é mais comum, se casa na vila,
o que é mais econômico.
8º) Se o enlace é do agrado dos pais da moça e se eles não estão muito
mal de vida, aqueles devem comemorar o acontecimento dando um banquete.
9º) O casal não permanece por longo tempo na casa dos pais do rapaz.
Estabelecem logo uma nova residência porque “quem tem olho fundo chora cedo”. A
regra atualizaria o ditado: “quem casa quer casa”.
Portanto numa sociedade onde a aproximação dos sexos não existe no
cotidiano (namoro prolongado e “casar noiva” são categorias da cidade) compreende0se
que a regra lógica do casamento seja “o furto”. Ainda mais: a aproximação dos sexos
68
implicaria quase que imediatamente na cópula. Por isso se entende, de outro lado, que
no nível do discurso a expressão “tirar de casa” signifique ter tido relação sexual.
“Tirar de casa” ou “bulir” com a moça (ainda na casa dos pais = virgem) é julgado pelo
código local. Há três saídas quando se está “devendo”:
ou se casa
ou se paga a honra da moça
ou é processado
A título de ilustração, introduziremos uma longa citação:
(O pai da moça vindo inquirir a família do rapaz). “Eu tou vindo aqui
pra saber se tu já tá ciente que teu filho buliu com a minha filha? Eu
digo: buliu com tua filha? Diz: buliu. E eu quero saber se ele casa. Eu
digo: rapaz, se ele achou ela suficiente ele casa, mas se ele não achou
ela suficiente ao casamento não casa porque ele não vai pagar a fava
que o boi não come (s[o casa se ela for “moça?”). se ela for moça
casa, se não for, não casa (Se não for moça não casa?). casa se for
por essa conformidade: por acaso, eu vou te buscar pra ti morar
comigo, agora nós não combina a vida, nós não vamos casar. Mas se
nós combinar a vida nós casa e vamos viver como Deus quiser. Então
se ele dever ele casa. Bem, aí o meu filho chegou, e eu disse: eu filho,
o pai da moça veio aqui porque diz que tu buliu com a filha dele e
vamos ver o que faz; quem deve, paga (Pagá como?) de qualquer um
jeito. Por acaso eu tou lhe devendo um dinheiro, eu tenho que lhe
pagar, algum cargo de consciência eu tenho de pagar; eu não pago
nesse mundo, eu pago outro. (Mas não tem que dar nada pra família
da moça?) Nada. Só se por acaso ele diz: ‘Eu não me caso’. Então ele
tem de pagar a honra dela (como é que paga?). agora ela diz: ‘ a
minha honra você tem de me pagar um milhão de cruzeiro’. Agora ele
tem de descascar e aí ele fica livre dela pra sempre. Pode ser outra
coisa. Por exemplo, ela diz: ‘você me paga 20 cabeças de gado’.
Essas vinte cabeças ele tem de pagar”.
Assim o pagamento da honra da moça que não é propriamente o preço
da noiva (the bridewealth) revela o outro lado da questão. É que de fato o “furto” é visto
como um bem. “Tirar de casa” é um benefício para a família da moça. As despesas
domésticas são divididas porque se dá o desdobramento das unidades familiares. Por
isso se o “tirar de casa” não é levado a seu temo, isto é, a uma nova unidade, há que
compensar através do pagamento da “honra da moça”.
Nesta sociedade não se conhece o fenômeno da família extensa. Não
acontece da família se desdobrar e continuar morando junto. Cada casamento é uma
casa nova e cada casa é uma nova unidade econômica, onde os membros podem ser
recrutados, e as divisões de tarefas são distintas. Casa cada possui sua roça e cada
família possui sua cozinha, parte tão central, econômica, simbólica e socialmente
falando, da unidade nuclear.
69
Este é o ponto onde queríamos chegar: se, partindo de um ponto de
vista mais global, o parentesco é dilatado ate a totalidade do povoado, descendo, porém,
veremos a parentela e não parentela. Prosseguindo na aproximação deparamos, dentro
da própria parentela com uma outra descontinuidade: a unidade domestica sempre
manifesta na expressão “casa minha” e “casa alheia”. Assim como para a parentela há
uma ideologia que a norteia e coloca oposicionalmente face ao “não parente”, ao “de
fora”, a unidade doméstica possui um código de comportamento que a opõe a outras
unidades domésticas.
“Meu filho, vida de casa alheia não dá certo; vida de cada alheia
desde de manhã até de tarde não presta. (Por que?) Porque, por
exemplo, eu vou pra lá conversar e fico. Quando é amanhã ou depois
sai uma fuxicada é aí o povo há de dizer: ‘ela só vivia na casa das
moças, é pra isso’. É falando má. E por essa causa não presta. Pra
vocês verem as senhoras chegar, mas a senhora me vê de casa em
casa? Duvido! Quando a senhora me vê na casa de qualquer um dele,
pode dizer: ‘ela tá vindo com a precisão dela’. Se não ser eu não vou.
Eu tenho meu serviço em casa pra fazer, por isso eu não tenho nada
de ir em cada alheia.”
Não raro após uma visita prolongada é comum se ouvir: “Vamos
embora pra nossa casa. A gente já está abusando em casa alheia”.
Assim ao tratarmos do parentesco e procurando ao mesmo tempo
realçar a ideologia que o informa, dependendo dos contextos onde esta solidariedade se
formula, mostramos três níveis:
o do povoado
o da parentela
o da unidade doméstica
Não haveria, porém, um outro código que uniria pessoas entre si,
ocasionando igualmente obrigações mútuas entre indivíduos?
É o que nos dirá o compadrio.
4.3 COMPADRIO
Qual seria o melhor modo de descrever esta instituição, procurando
atingir o mais profundamente possível a ideologia que estava por detrás das
informações?
Isto porque se olharmos superficialmente de fora, e tomarmos como
ponto de partida apenas a terminologia, derraparemos com uma multiplicidade de
compadres e padrinhos, podendo formar, enganosamente, uma opinião fragmentária
dessa instituição. O que estaria ligando, basicamente, as diversas nominações de
compadres e padrinhos:
70
de batismo = “de alma”
de consagração (crisma)
de fogueira
de encruzamento (cerimônia de iniciação do pajé em suas
funções)
de simples tratamento ou apelação?
Padrinhos que podem ser tantos seres humanos, como sobre-humanos
(santos ou caboclos)?
Tratar-se-ia de coisas desconexas ou estariam relacionadas entre si?
Falariam de relações diferentes ou, segundo nosso ver, estariam enfaticamente
atualizando, por um processo seletivo, aspectos diferentes contidos num único
paradigma?
Fazendo-nos todas essas perguntas estaríamos escolhendo um
caminho teórico para análise desta instituição. Tradicionalmente nos estudos
antropológicos o compadrio tem sido analisado a partir de um desdobramento de duas
relações nele contidas: a relação compadre-comadre (= horizontal) e a relação padrinho-
afilhado (= vertical). Não queremos dizer que, adotando um outro caminho, essa
posição deixe de extrair resultados positivos. Porém, segundo nosso ponto de vista,
estaríamos mais preocupados em detectar as dimensões estruturais, que poderiam dizer
respeito tanto a uma como a outra relação. De outro lado, esta opção teórica parece ser
aquela que melhor daria conta do modelo local, permitindo a referia visão integrada das
múltiplas formas a partir de um paradigma.
Qual seria, portanto, este paradigma?
Os próprios informantes ao responderem à pergunta “quais são os seus
compadres?”, estariam nos dando as pistas,
De fato, ao se referirem a eles nomeiam por um processo seletivo
prioritário e eloquente, somente aqueles que lhes estão ligados pelo batismo.
Presenciamos, então, um fenômeno de polissemia, isto é, o termo compadre, “tout
court”, seria empregado para indicar “compadre de alma” (terminologia referencial que
revelaria toda uma classificação de “compadres de ...”). O que quer dizer: os outros
tipos apareceriam sob solicitação, após ter sido esgotada a lista acima.
É importante, assim, analisar pormenorizadamente este modelo,
paradigma de compadrio em suas diferentes dimensões, e fazer, no momento oportuno,
ligações com suas outras formas.
4.3.1 – Batismo e Dimensão de Socialização
O batismo no ponto de vista da população não se coloca como uma
opção, “uma conversão”, mas como uma necessidade cultural:
“Ficamos no mundo para ser batizados.”
71
Expliquemo-nos melhor: cada sociedade representa-se o homem
segundo critérios específicos que a caracterizam. Antropologicamente falando: o
conceito “humanidade” seria uma abstração. Haveria, sim, vários modos humanos de
ser.
Um exemplo simples: um índio de uma determinada tribo poderia
legitimamente, segundo seu próprio código, duvidar do caráter humano de um branco ao
vê-lo dormindo horizontalmente sobre uma superfície plana, a cama. Isto é próprio do
animal. O homem mesmo, segundo suas categorias, dorme na rede, destacado no chão.
Deste modo, o batismo, no caso da sociedade estudada, é um
componente básico uma exigência que decorre da representação do homem enquanto
ser social, carcando uma descontinuidade com o mundo da natureza, o mundo não
humano.
“O não batizado eu não sei bem o que é. É assim dizer como meio
animal, o corpo fica à toa. É uma pessoa avulsa que não pode falar
direitinho”.
O batismo gera, portanto, o ser social ou em outras palavras, o cristão.
No entanto, para o código local a categoria cristão não apresentaria nenhuma conotação
religiosa “confessional”, no sentido de opor cristão a outras religiões não cristãs. Tal
oposição surge num outro contexto e vem expresso no discurso pelo par de oposição
“católico x crente”.
O mesmo raciocínio se aplica ao termo “pagão”, um “animal
qualquer”, um não cristão, em suma, um não “gente”.
É dentro desta ideologia que podemos aprender a primeira dimensão
do compadrio, sua função na estrutura social. O “compadre-padrinho” se apresenta
como elemento importante na colocação ou recolocação do indivíduo para dentro do
domínio do social. Tendo em vista que a totalidade do ser humano nunca é dada de uma
só vez, mas que cada pedaço seu lhe é conferido por pessoas diferentes e determinadas,
poderemos compreender melhor o alcance da citação seguinte, onde os pais, doadores
do ser físico, se referiam ao caso de uma de suas filhas ainda criança:
“Ficou sem padrinho desde pequena, sozinha no mundo. Eu lhe disse:
‘tu és desinfeliz, minha filha, sem padrinho’. O dela morreu. Por isso
ela chama um outro de padrinho”.
O caráter não social da criança ainda pagã, bem como o papel social
ocupado pelo padrinho, se revelam ainda num outro contexto. Até que ela seja batizada
tudo aquilo que se compra para vir a ser de propriedade sua, como é costume, uma
franga, ou um porquinho tem de ser colocado em nome do padrinho ou da madrinha.
Observemos bem: a aquisição do bem não é feita em nome dos pais, mas daqueles que,
estruturalmente simbolizam a sociedade. Esta regra nos falaria de uma única verdade
que poder ser vista a partir de dois ângulos:
72
de um lado aquele que não é “gente” não pode possuir
nominalmente um bem; e
de outro lado só é “gente” o indivíduo plenamente
socializado, aquele que possui qualquer coisa como seu, o que revela
o caráter socializante também do bem privado.
Por isto, a infração desta regra merece uma sanção.
Toda compra realizada diretamente em nome de “um pagão” torna o
indivíduo endereçado “panema”, bem como aquele que comercializou o bem. Eles “não
prosperam”: tudo o que lhes pertence é “desencaminhado”.
Portanto a mediação para o social quer seja tomado no sentido estrito
(isto é, de descontinuidade entre natureza e cultura) ou no sentido mais abrangente (o
“mundo de fora”) não é feita pelos pais mas pelo padrinhos. Eis a chave de
entendimento para podermos compreender a razão da:
1º) escolha de um “Santo” como padrinho
2º) substituição dos laços de parentesco pelos laços de compadrio
quando a escolha recai sobre um indivíduo já parente
3º) dos critérios seletivos que determinam, entre vários possíveis, a
escolha de um para padrinho.
4.3.1.1 – O “Santo”: Modelo de Perfeição Social
O “santo”, outrora homem que viveu aqui na terra é aquele que
preencheu, cumpriu os requisitos éticos estimados historicamente como os mais altos,
pelo código daquela sociedade “temporal”. Nele e por ele, o conjunto das regras sociais,
tomadas ideologicamente, foram por assim dizer “perfeitas”. Por isto se torna o
protótipo, o modelo daquela sociedade, capaz de ser o “doador” por excelência do nome
do recém-nascido.
Para melhor podermos penetrar nesta realidade, observamos com mais
agudeza o que se passa à nossa volta. O ser engendrado pelo homem, não cai à toa no
mundo, numa espécie de vazio caótico. Seu lugar é preparado, ele é, em linguagem
comum, “esperado” e sempre há um conteúdo social nessa espera: projetos do que
poderá ser e escolha de um nome, porque segundo um de nossos informantes nada pode
existir que não tenha um nome, ou melhor, “tudo que tem um nome existe”.
Em geral, portanto, no caso da sociedade estudada a “criança traz o
nome”, isto quer dizer, seu nome é dado pelo santo do dia.
“Para botar o nome na criança a gente manda mirar na folhinha o
nome do santo. Porque não se põe nome em filho como se põe em
cachorro ou gato. Mando mirar na folhinha aquele que for fica. Não
tiro. Faz mal”.
73
É este pano de fundo que permitirá a escolha também de um santo
como padrinho já que este concentra enfaticamente as funções sociais dentro da
estrutura.
Tendo em vista, além do mais, que os limites do universo social não
se restringem ao mundo visível dos viventes sobre a terra, mas incluem a sociedade
post-mortem, construída de maneira metonímica à sociedade humana, o “santo-
padrinho” será concebido tanto como modelo da primeira como mediador para a
segunda.
Daí podermos concluir: o padrinho além de ser o definidor do social
como tal, é aquele que exerce uma função de dilatador das fronteiras sociais, quer se
trate: a) de um alargamento de uma sociedade menor para uma maior (da doméstica
para o global local ou distante – povoado, vila ou cidade – ou de uma classe para outra)
ou b) de uma presente para uma futura.
4.3.1.2 – Substituição dos Laços de Parentesco pelos Laços de Compadrio em casos de
Reincidência
Há certas zonas dentro da estrutura social que não permitem
ambiguidades. Pessoas, portanto, que já tinham sido classificadas anteriormente dentro
de uma área, não poderão acumular papeis no caso de seres redefinidas numa outra área.
O que acontece geralmente nesses casos será a adoção do último papel que substituirá o
primeiro.
Tal regra aparece no código local quando a escolha do compadre-
padrinho recai sobre um indivíduo parente. A infração desta regra vem expressão num
mito:
“Agora se acaso a senhora é minha tia e vai ser madrinha da minha
filha. Agora tem que largar de chamar tia. Tenho que chamar de
comadre, senão o Malvado (= Satanás) é que chamará comadre”.
Indiretamente esta regra estaria nos orientando a distinguir as áreas do
parentesco e a do compadrio como duas coisas distintas, o que temos tentado fazer
desde o princípio, tratando-os como duas instituições e procurando explicitar-lhes o
conteúdo específico.
A função primordial, portanto, do padrinho como colocador ou
recolocador do sujeito no domínio social não se esgota de uma vez por todas mas se
torna atuante em outros momentos da vida dos indivíduos em que a ameaça de confusão
dos planos “natureza-sociedade” ou “sociedade-sobrenatureza” se apresenta.
Como exemplo do primeiro caso (confusão entre natureza e
sociedade) tomamos dois mitos da cultura local a título de ilustração: o da “curacanga”
e o do “lobisomem”.
74
Narraremos primeiramente, segundo a versão e linguagem própria dos
moradores, explicando aqui e ali alguns termos de difícil compreensão, para depois
tirarmos conclusões concernentes ao tema analisado.
Curacanga: (a regra). “Por acaso eu tenho agora sete filhas, a última
vira curacanga (= um fogo que passeia e destrói). Mas se tiver um homem no meio
quebra. Mas tem um jeito: se eu não quiser que ela vire curacanga, agora minha filha
primeirinha vai ser a madrinha da outra, da DERRADEIRA QUE É PARA
QUEBRAR A SINA DELA.
(Um caso concreto) Toda a sexta-feira ela caía doente, muito mofina (= cansada,
desanimada), dor na cabeça e o homem foi prestando reparo, prestando reparo. Foi
um compadre dele e disse: olha, preste reparo pra ver se ela não sai. Aí ele foi
prestar reparo. Aí ela anoiteceu gemendo, dor na cabeça, muito mofina; aí ele com
aquele sentido nele, não dormiu. Aí, sem demora ele fez que estava dormindo,
ressonou. Aí, foi quando ele viu ela se remexendo, remexendo, aí buliu na porta. Aí,
ele deixou sair. Aí, depois de muito ele deu luz dentro de casa e viu: tava só o corpo
dentro da rede. Aí, o que ele fez? Emborcou (=colocou de bruços) o corpo. Quando
foi umas tantas da noite, depois que o galo cantou ela veio e garrou (= se prendeu) já
a frente nas costas (= o copo estava virado). Senhora, diz que todo o povo veio vê
ela doente. Estava doente, doente. Quando foi na outra sexta-feira foi que ela tornou
sair, a cabeça tornou a sair. Aí, ele emborcou o corpo dela outra vez.
Aí o compadre dele disse: agora o senhor já se capacitou. Agora quando sê sexta-
feira de noite outra vez, agora é pro senhor pelejar pra vê se o senhor quebra a sina.
Porque é só se esconder quando vem aquele fogo faiscando a pessoa se esconde que
é pra ver se queima o freguês. Quando foi passando, ele botou lá, ferrou ela, a
cabeça. Mas ainda deu conta de vir em casa. Garrou... mas saiu sangue quebrou a
sina. Feriu, mas só mesmo pra quebrar a sina. Se não ela não dava conta de voltar.
Aí a cabeça ficava e o corpo sem cabeça morria. E ela ficou boa”.
Lobisomem (é a versão masculina do mito anterior, com
algumas variáveis)
“Quando os pais tem sete filhos que sê homem tem que sair um, vai
ser lobisomem. É mesmo que a curacanga. Agora se esse primeiro não for padrinho
desse derradeiro, ele vira lobisomem. Agora, se sexta-feira ele pega a gemer, vai
gemendo e sai pra fora e tira a roupa e pega a rolar. Agora ele vai rolando, vai se
rolando e batendo boca e vira naquele porco. E aí sai aquele marajé e osso velho.
Tudo ele rói e bate boca. Assim é que é. E de madrugada, nas primeiras cantadas do
galo, é quando ele volta, ele chega e pega a rolar de novo. Pra sair ele se rola na
frente. Quando ele vem se rola de novo no terreiro, que é pra ele poder virar cristão.
Pra poder ser gente de novo”.
Não podendo tomar o mito em si mesmo como objeto de análise
devido à limitação já estabelecida pelo próprio tem em pauta, retiremos dele apenas os
elementos que nos interessam.
a) O fato de ter sete filhos (número que fala por si mesmo,
considerado como limite e cujo transbordamento exprimiria
“impossibilidade” ou “mentira”) seguidos, do mesmo sexo, é tido
75
como uma exceção tão estranha que o fato beira à anormalidade, à
desordem. Não cabe mais dentro das fronteiras sociais conhecidas.
b) A anomalia se estabelece no plano fisiológico e expressa uma
ambiguidade entre natureza e sociedade. O último da cadeia de
sete já está numa situação tão limítrofe que tende, “tem a sina”, de
se transformar em fogo ou animal.
c) Mas a estrutura do próprio mito provê um elemento reordenador
em duas instâncias:
“preventivamente”, o primeiro da cadeia de sete torna-se o padrinho ou
a madrinha do derradeiro;
“curativamente”, o compadre, pessoa de fora da estrutura familiar
(aquele que não dorme com a pessoa e que poderá desvendar o mistério)
torna-se o conselheiro, o condutor das estratégias no intuito de “quebrar
a sina”, isto é, de estabelecer a pessoa definitivamente dentro do reino
social, como cristão = gente.
Como exemplo do segundo caso (confusão entre sociedade e
sobrenatureza), tomaremos a cerimônia de iniciação do pajé em suas funções: o
encruzamento. Se bem que no todo da pesquisa, a pajelança esteja projetada como um
capítulo à parte, alguns elementos devem ser adiantados agora para que se compreenda
a colocação.
a) O futuro pajé, o verdadeiro, aquele que possui a sina da nascença, no
período que precede à iniciação que o coloca oficialmente no exercício, passa por
provações contínuas.
b) É um sujeito atacado “de doenças” que o deixam prostrado, que não o
permitem trabalhar, enfim, de ser como os outros.
c) A causa destas provações é diagnosticada como obra de entidades
sobrenaturais, dos encantados (mães d’água, caboclos), que habitam nele, como
seus familiares (em termos locais, “a gente dele”) e que o apavoram até ele se
entregar ao serviço.
d) O que provoca este estado de “doenças” intermitentes é que “a gente
dele” não é ainda conhecida pelo indivíduo. Em outras palavras: os encantados o
manipulam porque seu corpo não está firmado. O perigo é tanto que o indivíduo
pode até “sumir”, ser levado por eles, tornar-se encantado.
e) É preciso que seja encruzado. No encruzamento, as últimas “contas”
serão introduzidas em seu corpo para que se torne resistente, firmado, não mais
exclusivamente manipulado, mas podendo ele mesmo manipular essas entidades
para a cura de outros.
76
f) A cerimônia de encruzamento tem como modelo o batismo, não só no
aspecto formal (os banhos de purificação, “de luz”, e adoção de padrinhos, a vela,
a oração em cima da cabeça) mas no seu significado mais profundo.
A clientela da pajelança a descreve: “é bem, como um batismo; não falta
nada, tem até água benta”.
O encruzamento vai ser como batismo um divisor de águas, um
ordenador permitindo a localização do indivíduo no social (ameaçado de se
encantar, marginalizado das atividades comuns de seu grupo, por causa das
“doenças” constantes). O afastamento da confusão advém sobretudo do
conhecimento das entidades. Agora, ele sabe quem são elas pelo “seu nome”
(lembrar-se do valor ordenador do nome, seu conteúdo social).
Até o instante do encruzamento, o “nome” de seu “familiar principal”, de
seu “companheiro do fundo” é um segredo, desconhecido. Ele se revela no clímax
da cerimônia. A apreensão do nome do “chefe da gente dele”, configura, define,
ordena sua “nova identidade social”. Agora ele é plenamente pajé.
Assim esperamos ter explorado, em seus aspectos principais, a
primeira dimensão estrutural do compadrio e podermos atacar a segunda.
4.3.2 – Compadrio: Um Contrato Bilateral
1º) Os compadres devem ajudar-se mutuamente
2º) Os compadres não podem se atacar ou dissolidarizar-se. Há nesse
sentido uma ideologia, um modelo de comportamento que norteia a relação. Espera-se
que um defenda o outro em casos de litígio. Para tanto a relação é bem ritualizada,
evitando-se familiaridades que com o correr do tempo viriam a minar a noção do
respeito mútuo. Daí o compadre ser sempre um conselheiro (o que diz respeito também
ao santo-padrinho, guia e protetor).
“Compadre é melhor ter fora do povoado porque assim é difícil a
gente bater boca. Chegou perto dele tem que abaixar a bandeira, tem
que ouvir”.
3º) os compadres permanecem compadres mesmo com a morte
prematura do vínculo, isto é, o laço horizontal permanece mesmo com o
desaparecimento do laço vertical mediador.
4º) A permanência do laço horizontal é realçada sobretudo quando há
convergência de fidelidades, de obediência em que o vínculo “teria de selecionar”. A
decisão é orientada por causa da força do laço horizontal entre compadres.
“Os compadres merecem a mesma consideração que os pais. É
respeito porque reza na cabeça do filho na hora do batismo. A
consideração para com os compadres é maior que a para com os
irmãos. Se um afilhado tem que ajudar pai e padrinho na mesma
77
hora, o pai logo dirá à criança de ajudar o compadre. A criança não
terá de escolher entre os dois, pois logo o pai resolve que a criança
deve ajudar o compadre”.
A ênfase, portanto, no contrato bilateral, na relação horizontal,
explicaria a existência de formas de compadrio que prescindem de um vínculo
mediador, desde que se deseje privilegiar uma amizade, de pacto:
a) O compadrio de fogueira: se bem que o termo usado
seja “padrinho”, “madrinha”, as pessoas nele
envolvidas são que se escolhem mutualmente,
podendo se dar inclusive entre crianças.
b) O compadrio de simples apelação: há muitas pessoas
que passam a se tratar de compadres sem que haja um
laço ritual formal que o sustente, com o desejo, porém,
de explicitar uma amizade forte.
Aliás, se estivermos atentos para entender o jogo
malicioso que está por detrás de situações banais em
que os próprios envolvidos não se dão conta,
podermos compreender o caráter aliciante do
tratamento “compadre” (em outros códigos
correspondendo a “chefe”) instrumentalizado em
situações de negócio ou de serviços.
4.3.3 – “Credo” e Compadrio
Aqui entraremos no âmago do ritual do batismo como é vivido pelos
moradores.
O fato específico, o momento crucial que faz de um sujeito padrinho-
compadre é a recitação da oração “Creio em Deus Pai...”. Funciona como um poder
mágico, constitutivo da reação. Por isso os pais que porventura estiverem no recinto do
cerimonial recuam neste momento. O ato de “firmar” (= segurar) a criança e pronunciar
a oração jamais poderia ser realizado por eles, do contrário se tornariam “compadres” o
que lhes vedaria o intercurso sexual sob pena de cometerem incesto.
Mesmo no caso de perigo eminente de morte não poderão ser os
celebrantes do “batismo em casa”. Têm de procurar rapidamente, alguém de fora que
saiba dizer a oração, função que recai muitas vezes no “rezador local”, possuidor de
muitos afilhados.
De outro lado, o código local classifica as “entidades espirituais”, os
“espíritos” a partir de uma conjugação de dois modelos herdados que chegam a formar
78
sistema. O modelo que nos interessa no momento é o adotado através do catolicismo
tradicional onde duas forças antagônicas principais estariam em luta: Deus, sempre bom
x Diabo, sempre maléfico. Haveria em seguida as entidades que fariam parte de um ou
de outro lado: os santos da primeira, os espíritos vagantes da segunda.
Por isso, mesmo no contexto da pajelança, quando se quer afastar um
“vagante” por meio do poder de um “caboclo”, entidade do outro modelo, aquela
entidade terá de lançar mão de recursos exorcizantes do primeiro modelo: água benta e
orações do repertório católico.
Compreende-se pois, (e eis o ponto em que queríamos chegar) que se
um “caboclo”, “atuando” num pajé, rezar para afastar um “vagante” o “creio em Deus
Pai”, ele se torna padrinho do cliente atingido pelo mal, e compadre de sua mãe.
Por isto, uma das informantes, trata o “caboclo Bernardo”, que rezou
sobre seu filho, de compadre.
Cremos ter cumprido, com esta última dimensão, o que havíamos
proposto de início: tratar das diferentes formas de compadrio a partir de um paradigma,
procurando descobrir os aspectos estruturais, responsáveis de sua interligação. Se de um
lado, o modelo paradigmático continua a todos de maneira embrionária, de outro lado os
diversos tipos de compadre que atualizavam enfaticamente este ou aquele aspecto nos
explicitam o próprio modelo.
Antes, porém, de concluir a análise desta instituição temos que
explorar o item 3 da letra A, apenas enunciado naquela ocasião o qual se referia aos
critérios de escolha de compadres.
Tais critérios estão colocados ao que se espera dos compadres, de
modo que revelarão, ao mesmo tempo, suas obrigações.
Dentre os vários possíveis quem poderá vir a ser o compadre?
Para facilitar a descoberta do caminho das decisões apontaremos
primeiramente, aqueles que são excluídos de antemão, por razões incompatíveis:
Os próprios pais, por causa da implicação do incesto;
A mãe de leite, pelo mesmo motivo acima;
O pajé, por interferência da ideologia missionaria cujo efeito
repressivo perdura até hoje. Quer dizer, esta exclusão não parte
como as anteriores e com a mesma força do código local.
Apresenta-se como uma necessidade diante da qual os
indivíduos têm de se curvar. Não é viável porque não é do
“agrado dos padres”.
Fora isso, o compadre pode ser escolhido dentro da área “da
amizade”, “do conhecimento” ou seja: dentro ou fora do parentesco, dentro ou fora do
povoado. Ideologicamente a amplitude desta área vem expressa no nível do discurso:
(por que você o escolheu para padrinho?)
“Ah! Nós se agradamos, se simpatizamos”.
79
Por isso dentro do parentesco se “leva” um irmão, um tio, um primo
para compadre, a fim de ratificar uma solidariedade já existente. No entanto, o parente
que se torna compadre deixa de ser, como já vimos, parente, para ser antes de tudo
compadre.
Fora do parentesco o motivo ideológico apresentado é que o “parente”
já é amigo e “compadre é um meio para a gente poder caçar mais amizade”.
O que estaria determinado por detrás da expressão “caçar amizades?”
porque a seleção não parece ser assim tão indiscriminada na práxis.
Ela possui uma tendência que cobriria os seguintes traços:
pessoas de fora do povoado (alargamento do mundo social)
pessoas de um melhor nível econômico (esperança de ajuda)
pessoas chaves dentro da rede de negócios (sucesso na
profissão). O compadre tente a ser sempre “uma pessoa assim
melhorzinha”.
Porque:
“O compadre me vale. Dá pra comprar fiado. É como um guarda-
chuva. Apara tudo quando vou a Bequimão e não tenho dinheiro,
graças a Deus nunca voltei para casa com a sacola vazia. É pra vale
a situação da gente. Se fosse por boniteza a gente escolhia qualquer
um”.
Por isso se evita a escolha de pessoas muito idosas. Aliás, elas
mesmas recusam por não se verem mais em condições de cumprir cm as obrigações que
a ideologia lhes atribui. Vejamos como o mito local retrata o compadre como aquele
que provê:
“Fora de Barroso eu não tenho afilhados porque estou velha. Não
tenho o que dar. Não tenho um agrado. Não posso trabalhar. Só
para dizer que tenho afilhados? (quer dizer que a madrinha tem
sempre que ajudar?) é. Vou lhe contar. Uma madrinha que era má
em quantidade. Nunca deu nada para o afilhado. Quando morreu
chegou no ceu, ela batei palma. São Pedro veio: – O que é que tu
quer? – Quero a salvação. – Vai aonde Deus. Deus perguntou: o
que tu fizeste? Ela disse: Nada. – Tu não fizeste caridade nenhuma?
– Não. – Para afilhado também não? (A informante faz um
parêntese na narrativa e explica) Agora por acaso o afilhado morre
e vai pro céu. Mais tarde eu morro, mas nunca dei nada. Se eu não
der ele não me puxa pro céu. E seu eu der ele me puxa naquele
objeto. (continuação da narrativa) Ela respondeu: eu dei sim, duas
folhas de cebola. Deus chamou o afilhado. – Bota essas duas folhas
de cebola que é pra você chamar sua madrinha. Aí ele botou. Aí a
folha foi arrebentando, até o derradeiro toquinho. Não subiu pro
mode safadeza dela. Proveniente da malinidade dela ela não foi pro
céu”.
80
Ligando o conteúdo deste mito ao que dissemos anteriormente sobre a
dimensão da socialização do compadrio, veremos de um lado como a escolha do
compadre se identifica com o que se espera do compadre; de outro lado, o estudo das
novas escolhas permitiria identificar quais os valores almejados para a socialização do
indivíduo. O compadre seria, pois, um lugar, uma categoria privilegiada para a análise
dos valores de uma dada sociedade, quer sejam eles tradicionais quer esteja em
mudança. No caso da sociedade estudada que vive imprensada entre dois códigos não é
de se espantar que estes valores estejam embaralhados.
4.4 – INCESTO
Vendo incluída a análise do parentesco e do compadrio, podermos
falar agora da noção de incesto. Adiamos propositalmente. Restringi-lo à concepção de
consanguinidade parecia-nos falso. Do contrário como explicar que incluí também
indivíduos ligados pelos laços do compadrio?
Qual é portanto a relação específica que define o incesto chegando a
englobar pessoas determinadas das duas instituições? De fato, o próprio código fornece
um nome para esta relação. Vem encoberta no nível do discurso pela palavra “respeito”.
“Respeitar” uma pessoa equivaleria dizer: não posso namorá-la ou estabelecer qualquer
tipo de relação que tivesse como ancoragem última o intercurso sexual. assim, todas as
relações que recebem este rótulo são aquelas que, se inferidas serão consideradas como
incestuosas. Na busca dessas relações há que se analisar um outro termo do código
local. A palavra incesto não consta no vocabulário dos moradores. Empregam antes a
categoria “pecado” quando a ele estão se referindo. O incesto é o pecado por excelência.
A descoberta desse lexema nos revelaria, igualmente uma gradação do incesto bem
como nos daria as posições que não podem se combinar como afins. Tais regras viriam
melhor explicitadas num mito:
“Contam que um homem casado morreu. Mas todas as noites ele
vinha ‘como vivo’ conversar com a mulher. Esta ficava amedrontada,
pois quem não tem medo de um morto que volta, que não fica
sossegado no lugar dele? Todas as noites era a mesma coisa. Então a
mulher foi se aconselhar com o padre. O que deveria fazer?
Este sugeriu que ela contasse estórias terríveis para ver se o espírito do
defunto se afastava.
Ela foi. Quando o marido apareceu ela lhe disse que durante o dia
tinha ido a um casamento de um irmão com uma irmã. Nada! Na noite
seguinte ele tornou a voltar. Ela saiu com uma pior: naquela dia tinha
assistido a um casamento de um pai com uma filha. O defunto tornou
a voltar. Então ela contou: hoje eu fui a um casamento de um
compadre com uma comadre. O finado se assustou e exclamou: ‘cruz
credo’. Afastou-se dela para sempre dizendo: ‘então até o dia do
juízo’.”.
81
Assim, as posições conflitantes seriam:
– entre irmãos
– entre pais e filhos
– entre compadres
Aliás, o incesto no âmbito do compadrio não se daria somente entre
um compadre e uma comadre. A regra é mais abrangente: duas pessoas que possuem o
mesmo padrinho não podem, igualmente, ter relações sexuais.
Há quem estenda essas proibições aos primos por serem considerados
uma só irmandade:
“Senhor... (fulano) era muito ordinário mas nunca buliu com uma
prima. Tinha pra ele como irmã”.
Mas o casamento entre primos ainda que tidos como irmandade, não
vem conotado do sentimento de “pecado”. Não é uma coisa assim muito boa para o
sangue. Diz que as crianças nascem “fraquinhas”, “doentes”. Não pode, portanto, ser
equiparado aos demais casos citados.
O “pecado” mais terrível no entanto (daí a gradação) seria o cometido
pelos compadres entre si. Uma variante do mito anterior revela sua gravidade: o morto
desta vez não vinha para assustar a mulher, mas para contar sobre o céu e a largueza da
misericórdia de Deus. Sua bondade era tão grande que perdoava mesmo as relações
incestuosas entre pais e filhos, ou irmãos. Mas face ao “pecado” entre compadres não
havia perdão que apagasse a culpa.
Por isto, se o pesquisador insistir junto ao informante no desejo que
ele lhe aponte um caso concreto, tal fato “ideologicamente nunca poderá existir”. Não
consta do repertório de estórias.
De fato, porém, um missionário narrou-me uma ocorrência. Disse-me
ele que eram os amigos do “casal de compadres” que vinham contar e solicitar o perdão.
O casal não podia ele próprio, expor a sua culpa. A vergonha era extrema.
Portanto, em vez de julgar o acontecido como uma incongruência ou
uma “insinceridade” no comportamento do caboclo (como queriam alguns) veria antes o
fato do amarrado por uma lógica surpreendente: para o “pecado” que não tem perdão,
existe o “pecado que não tem confissão”.
4.5 – CONCLUSÃO
Eis em seus traços principais como se organiza socialmente a
comunidade de Barroso.
Todo o nosso cuidado constitui no levantamento de regras que
traduzem o código local: como se recrutam, o grau de fidelidade, de solidariedade, de
ajuda; os direitos e deveres; as sanções.
82
Regras enfim que configuram aquela sociedade no que tem de mais
básico. Por isso não é de se esperar que no caso de introdução de novas instituições, elas
não sejam abandonadas mas, ao contrário ordinariamente utilizadas. Portanto se se
quiser avaliar o grau de penetração ou de conflito que poderia causar a superposição de
um novo código ao já existente, é preciso descobrir: a) em que medida as novas regras
se incompatibilizam com as tradicionais? B) em que medida as novas instituições não
reproduzem, apesar de uma casca aparente de “modernidade”, os mecanismos já
operantes naquela sociedade?
Isto, porém, será objeto de estudo de um capítulo à parte. Por ora
gostaríamos apenas de introduzir uma linga citação que pudesse realçar a relevância do
parentesco e do compadrio como canais institucionais poderosos para o recrutamento de
membros em vista da formação de “novas” comunidades, segundo a ideologia
missionária.
“Quando começou a Legião de Maria lá em F... eu estava com 14
anos. Terminou, não foi assim uma coisa bem organizada. Passado
um ano, chega outro padre. Então ele organizou, queria fundar uma
legião. Compadre Z.P. saiu convidando. Quando o padre falou com
ele ‘Rapaz, vamos fundar uma legião aqui e tal, será que tu não ajeita
um pessoal?’ Ele se alembrou: ó meu Deus, onde eu vou achar? Ele
pensou, pensou, convidou O... O, um compadre dele que atualmente é
meu compadre também. Convidou S e M, irmã dele. Aí ele se
alembrou: eu vou convidar compadre M. M é meu pai. ‘Eu vou pra
ele me ajeitá dois menino dele pra entrá na legião com a gente’. E eu
estava com 15 anos. Isso foi com o prazo de um ano. Ele foi e chegou:
‘compadre M. eu estou vindo aqui não é para lhe visitar. Aliás é uma
visita diferente da que nós somos acostumado. Eu quero pra você me
ajeitá os seus filhos J e J pra entrá na legião comigo’. Então ele
deixou entrar. Quando foi no próximo domingo em diante, nós
começamos a frequentar a legião, assim auxiliar né, provisoriamente,
não era uma coisa efetiva”.
83
5 – COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL
Laís Mourão Sá
– Antropóloga –
1974
5.1 – INTRODUÇÃO
5.2 – IDEOLOGIA E PRÁTICA MISSIONÁRIA
5.2.1 – As Origens Sociológicas da Missão
5.2.2 – Os Princípios Ideológicos da Missão
5.2.2.1 – A Noção de Universalidade do Cristianismo
5.2.2.2 – A Missão como Implantação da Igreja
5.3 – A CULTURA CAMPONESA E AS NOVAS INSTITUIÇÕES DA MISSÃO
5.3.1 – A Instituição do Catequista
5.3.1.1 – O Catequista na Ideologia Missionária
5.3.1.2 – O Catequista e a Tradução da Mensagem Missionária
5.3.1.3 – O Catequista como Categoria da Cultura Local
5.3.2 – Modelos Genéricos da Apreensão das Novas Instituições
5.3.2.1 – O nível do Povoado como uma Unidade Afetiva
5.3.2.2 – O nível das Separações internas entre dois Grupos Distintos
5.3.2.3 – O nível da Divisão de Áreas Internas do Domínio Religioso
5.3.2.4 – Bumba-Boi: A Formulação da Autonomia Ideológica
5.3.3 – O Batismo e a Missa
5.3.3.1 – Seu Significado na Cultura Camponesa
5.3.3.2 – As Inovações da Missão e suas Consequências na Vida Social Local
5.3.4 – A Legião
5.3.4.1 – Os Objetivos Missionários
5.3.4.2 – A Questão do Aprendizado das Rezas
5.3.4.3 – As Interpretações da Legião na Ideologia Camponesa
5.3.5 – A Roça Comunitária
5.3.5.1 – A Missão e o Desenvolvimento Econômico
5.3.5.2 – A Representação da Prática Econômica Camponesa e a Roça Comunitária
5.3.5.3 – A Racionalidade da Economia Camponesa
5.3.5.4 – A Introdução da Roça Comunitária
5.4 – BIBLIOGRAFIA
5.5 – ANEXO: BRINCADEIRA DE BUMBA-MEU-BOI DO GAMA (Maranhão,
1972).
84
Este trabalho destaca: as mediações institucionais que
operam a reprodução das relações de dominação da
sociedade global sobre os povoados interioranos. Ora é a
Igreja a principal medianeira entre a sociedade local e a
sociedade nacional, com muita continuidade desde os
primeiros dias da Colônia até agora. No presente como no
passado, ela atua como sistema pedagógico dominante,
detendo em grande parte o monopólio da violência
simbólica legítima, inculcando modelos. Este trabalho
discute a natureza dos novos modelos de ação social que a
Igreja tenta impor à população local e as consequências de
seu impacto do ponto de vista desta sociedade. Trata-se,
assim, de analisar o encontro entre dois sistemas distintos,
o da cultura local e o do missionário.
“Je n’ai jamais à réduire L’Autre à um homme abstrait ou
à um frère dans l’au-delà. C’est aujourd’hui dans
l’historique concret que j’ai à l’affronter dans son altérité,
autrement je le manque totalement”.
Laënnec Hurbon
Dieu dans le Vaudou haitien (p.37)
85
5.1 – INTRODUÇÃO
Este artigo se baseia em trabalho de campo realizado por uma equipe
de 5 antropólogos em 1972, na região da Baixada Maranhense, com o objetivo de
recolher dados sobre a vida social do caboclo nos povoados rurais. As informações
resultantes cobrem uma vista amplitude da vida social. Referindo-se tanto à organização
social e à prática econômica, quanto às diversas expressões da ideologia local.
Desta amplitude, selecionamos no momento um objeto específico: as
mediações institucionais que operam a reprodução das relações de dominação da
sociedade global sobre os povoados interioranos. As condições históricas em que estes
se desenvolveram, revelam dados importantes para a colocação inicial em questão.
A região da Baixada Maranhense conheceu um período áureo de
desenvolvimento econômico durante a administração colonial, tendo como grande polo
regional a cidade de Alcântara, sede da nobreza latifundiária colonizadora. A partir de
meados do século XIX, iniciou-se a decadência da região, com a transferência do
comércio, da atividade econômica e social da classe dominante para a sede de São Luís.
Abandonados os engenhos, transferida a aristocracia para a futura capital do Estado,
ficaram os pequenos povoados com população de origem indígena e negra, ex-escravos,
entregues a uma situação de progressivo isolamento, acentuado pela falta de estradas
(que só existem na região a partir de 4 anos) e pelas dificuldade de transporte marítimo
para a capital. Durante quase um século viveram estes núcleos numa aparente
autonomia organizativa, que só veio a ser quebrada a partir da segunda metade do
século XX, com a formação dos atuais municípios. Porém, não chegou a diluir-se o seu
caráter de inserção no sistema mais amplo da sociedade nacional, reafirmando a partir
de então, pela presença do sistema político-administrativo, do controle jurídico e da
repressão policial. São estas, à primeira vista, as instituições que permitem ao caboclo
pensar-se enquanto participante, embora marginalizado, de uma sociedade mais ampla
que pouco conhece.
Por outro lado, há outros tipos de interferências que, atuando mais
diretamente sobre a cultura local, modificam progressivamente sua ideologia a sua
prática social. São estes penetração do rádio, veiculando uma imagem onírica do mundo
da capital, através dos programas de auditório, musicais, etc.; a implantação recente de
grupos escolares nos povoados e do Projeto João de Barro e outros do gênero de
educação formal de adultos; a penetração crescente dos Sindicatos Rurais; e o
reaparecimento da Igreja, através da missão de padres canadenses, que ata na região
desde 195825
.
Do ponto de vista dos habitantes dos povoados, essas modalidades de
presença da cultura dominante impõem certos problemas teóricos (= ideológicos), na
25 A missão ou a Igreja no lugar, a Prelazia de Pinheiro, nos anos 1930, estava muito bem servida pelos
Missionários do Sagrado Coração, advindos da Itália. Chegaram outros da Espanha. Enfim, três dioceses
do Canadá mandaram, também, pessoal para a missão: Nicolet em 1955, St-Hyacinthe em 1956 e
Sherbrooke em 1957 (EPEI-CENPLA).
86
medida em que modificam o modo pelo qual pensavam tradicionalmente as suas
relações com o mundo à sua volta. Interferindo no corpo de representações gerado pela
pratica social semi-isolada dos pequenos povoados, provocam uma série de rearranjos
conceptuais, n na tentativa de explicar as modificações que estão ocorrendo em suas
relações com a sociedade abrangente. Do ponto de vista do pesquisador social, esse
mesmo fenômeno coloca uma ampla questão teórica que remete tanto à imposição de
modelos da parte da cultura dominante, quanto ao desafio de dar conta da dinâmica
própria dos sistemas ideológicos dominados.
Considerando que toda formação social só sobrevive na medida em
que é capaz de reproduzir suas condições de produção social e que, na sociedade de
classes, isto se dá através das repressões normativas e físicas, e da violência simbólica
exercida pelas múltiplas instituições chamadas por Althusser de “aparelhos ideológicos
de Estado” (Althusser, 1970), coloca-se a questão de explicar de que modo essa
premissa teórica se manifesta na realidade imediata de uma sociedade camponesa. Por
outro lado, tendo em vista a pluralidade de mecanismos pelos quais se opera a
reprodução da submissão às regras da ordem dominante, tal tarefa parece exigir uma
delimitação mais rigorosa dentro do próprio objeto em questão.
A definição de tais limites decorreu de uma avalição empírica sobre o
âmbito de penetração das instituições de origem externa no conjunto da vida social dos
povoados, no intuito de determinar as áreas críticas desta intervenção. Nesse sentido, já
no decorrer do trabalho de campo, pudemos constatar que a presença da Igreja,
enquanto instituição sobrevivente às diversas etapas históricas da região e principal
mediadora entre a sociedade local e a nacional, oferecia um bom ponto de partida para a
nossa análise.
Seguindo a tradição colonizadora ocidental, a Igreja Católica chegou à
região no rastro do explorador branco que a constituiu delegada de seus interesses nas
ricas terras e explorar. Alcântara foi a sua sede e núcleo irradiador das cruzadas para
conquista das áreas virgens, onde subjugou índios, implantou fazendas e fundou
povoados, com suas casa paroquiais, capelas e escolas. Para a sede da vida social
aristocrática reservou suas “igrejas suntuosas, procissões pomposas e clérigos
eruditíssimos” (Documentos da Missão, 1971-c), enquanto dividia com a classe
dominante os frutos da terra conquistada. A expulsão das ordens missionárias sob
Pombal, no século XVIII, coincidiu com o início do esvaziamento econômico da região,
e muitas das propriedades eclesiais ficaram com o Estado, algumas revertendo mais
tarde à Igreja. Durante o tempo em que permaneceram na região, foram os missionários
que sustentaram as bases ideológicas das relações sociais necessárias ao bom
desempenho da economia agrícola colonial, tratando de legitimar pela religião as
normas e valores da classe dominante. Através deles, fixou-se o que hoje é chamado de
catolicismo tradicional, com seus rituais da missa, do batismo e as festas aos santos
católicos, até hoje tão profundamente enraizados na cultural local a ponto de terem
sofrido um processo de apropriação e retradução que determinou o seu distanciamento
do sistema de significações da Igreja oficial. Esses rituais passaram a integrar o
conjunto de modelos que regem a organização social dos povoados, operando em
posições chaves do sistema. O longo período d ausência de funcionários religiosos
87
católicos na região, após a expulsão dos missionários, certamente contribuiu para a
cristalização de tais modelos, em detrimento das transformações e adaptações pelas
quais passava a ideologia religiosa oficial.
Em princípios do século XX, chegaram à região os padres italianos,
seguidos, na década de 50, pela missão canadense que hoje controla toda a área da
prelazia de Pinheiro, abrangendo 12 municípios26
. Isto significou uma transformação
importante no que se refere aos vínculos formais da população local com a sociedade
nacional, já que as demais instituições politico-jurídico-administrativas não chegaram a
penetrar profundamente na vida social dos povoados. Norteada pelos princípios
assumidos pela Igreja no Concílio Vaticano II, a missão se instalou na região para levar
a cabo sua tarefa evangelizadora e colaborar na superação do subdesenvolvimento
regional. Com tal objetivo, os missionários espalharam-se pelas sedes municiais e vêm
tentando penetrar na vida dos povoados, tanto através de suas funções já tradicionais
nos rituais da missa e do batismo (embora modificados liturgicamente), como pela
proposição de outros tipos de instituições que pretendem transformar o quadro
socioeconômico da região. Num nível mais global, essas instituições tendem para dois
tipos (documentos da missão 1970, p.26)27
: instituição de educação (Ensino
acadêmico), de formação social (“grupos não acadêmicos que formam a pessoa humana
com a finalidade de promover o desenvolvimento socioeconômico na perspectiva do
bem comum”); embora existam ainda dois tipos, as instituições de pastoral (“toda obra
diretamente eclesial, já apostolado, catequese e liturgia”), e assistência (“atendimento
direto das necessidade de saúde”). Ainda nesse nível, existe um importante centro de
informação, a escola da fé, fundada em 1961 no município de Guimarães, para atender
toda a prelazia, a qual só não se enquadra na categoria “instituição de assistência”,
cobrindo todas as demais.
No outro nível, o das comunidades camponesas propriamente ditas, a
ação da igreja consiste basicamente numa proposição modernizadora, tanto da liturgia,
dos rituais da missa e do batismo, quanto de outros modelos não estritamente religiosos
da cultura local, o que se dá pela introdução da legião de Maria (que além da parte
religiosa, veicula um código moral para as relações sociais) e da roça comunitária.
Existe ainda uma instituição especial, a do catequista, indivíduo da cultura local
recrutado pela igreja para formar-se na escola da fé e representar o missionário na vida
social de cada povoado, através de novas instituições aí introduzidas. O catequista se
torna, assim, o vínculo por excelência entre a comunidade camponesa e a estrutura da
Igreja, veículo de suas mensagens e ponta de lança de suas iniciativas dentro dos
povoados.
26 À missão de Nicolet dirige duas paróquias, a de St-Hyarinthe dirige uma, a de Sherbroole, duas. As seis
outras paróquias assim como a administração da própria Prelazia de Pinheiro estão sob a responsabilidade
de Brasileiros e Italianos (IPEI-CENPLA). Documentos da Missão 1970.
27 Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e sim, exclusivamente da
CENPLA (IPEI-CENPLA).
88
O objetivo deste trabalho está limitado a partir da atuação exercida
hoje pala Igreja na região. No passado como no presente, ela atua como sistema
pedagógico dominante, detendo em grande parte o monopólio da violência simbólica
legítima. Falamos em sistema pedagógico no sentido amplo de mecanismo de
inculcação de modelos (v. Bourdieu 1970)28
. Encarregando-se dessa tarefa, a Igreja
também acumula funções que na sociedade nacional se encontram especializadas em
outras instituições; mesmo as novas instituições introduzidas mais recentemente na
região, como os sindicatos rurais, as escolas e projetos de educação de adultos sofrem à
inevitável interferência da Igreja, na medida em que se articulam dentro do mesmo
espaço ideológico que ela ocupa.
Pretendemos discutir a natureza dos novos modelos de ação social que
a Igreja tenta impor à população local e as consequências de seu impacto do ponto de
vista desta sociedade. Esse impacto aciona necessariamente os mecanismos integradores
existentes na cultura local que, diante de um confronto entram num processo de
rearticulação. As áreas da vida social em que isso ocorre são, basicamente, as regras de
compadrio, as regras de aliança, as áreas de poder dos funcionários religiosos, as
relações de produção e os modelos de cooperação e solidariedade.
Trata-se, assim, de analisar o encontro entre dois sistemas distintos, o
da cultura local e o do missionário. Quanto ao primeiro, já está separadamente analisado
em dois trabalhos que integram esta pesquisa (v. Prado, R., pp. 25-87) quais nos
referiremos no decorrer do texto. A Parte I que segue tratará da delimitação das origens
sociais da missão e dos princípios básicos de sua ideologia.
5.2 – IDEOLOGIA E PRÁTICA MISSIONÁRIAS
5.2.1 – As origens Sociológicas da Missão
Para se compreender os processos sociais que sustentam a ideologia e
prática missionária é preciso primeiro apontar as diferenças que separam dois momentos
históricos distintos em que ela se desenvolveu. De início, ela cumpriu o papel de
legitimadora da empresa colonial, na primeira fase de expansão capitalista da sociedade
ocidental, formulando uma ideologia religiosa hoje considerada tradicional e
ultrapassada pela própria Igreja. Em seguida, diante da sociedade industrial capitalista e
28 “Toute action pédagogique (AP) est objectivement une violence symbolique en tant qu’imposition, par
um pouvir arbitraire, d’um arbitraire cultural” (p.19)
“L’AP est objectivement une violence symbolique, em um premier sens, em tant que les rapports de force entre les groupes ou les classes constituifs d’une formation sociale sont au fondement du pouvoir
arbitraire qui est la condition de l’instautation d’um rapport de communication pédagogique, i...e., de
l’imposition et de l’inculcation d’um arbitraire cultural selon um mode arbitraire d’imposition et
d’inculcation (éducation)” (p.20.)
“L’AP est objectivement une violence symbolique, en un second sens, en tant que la delimitation
objectivemente impliquée dans le fait d’imposer et d’inculquer cetaines significations, traitées, par la
selection et l’exclusion qui en est correlative, comme dignes d’être reproduites par un AP, re-produit (au
double sens du terme) la sélection arbitraire qu’um groupe ou une classe opere objectivement dans et par
son arbitraire culturel” (p.22).
89
seus novos estilos de vida, as ideologias religiosas dominantes (isto é, aquelas derivadas
de uma mesma tradição, a revelação bíblica) sofreram os efeitos de um processo de
secularização que pós em xeque o seu status de legitimadora em última instancia dos
modelos institucionais vigentes na sociedade como um todo.
Analisando este processo. Peter Berger (1971) mostra como esta
redução da capacidade da ideologia religiosa para fornecer sentido à vida social global
(secularização), conduziu a uma situação pluralista: a secularização eliminou a
possibilidade de um monopólio exclusivo de uma ou outra tradição religiosa e, ao
contrário, colocou em competição grupos religiosos de mesmo status. Competição que
se dá dentro de uma situação de mercado na qual os bens religiosos são oferecidos a um
publico de consumidores que não só pode fazer escolhas individuais, como também
determinar de certa maneira o conteúdo dos mesmos, de acordo com suas necessidades
sociais.
É nesse contexto que se coloca, renovada, a questão da missão, isto é,
a questão dos resultados que cada sistema religioso deve alcançar para fazer face a seus
competidores legítimos. Numa situação pluralista, onde não se exerce o controle
exclusivo dos partidários, cada sistema religioso tem que organizar-se de modo a ganhar
o maior numero possível de consumidores. Essa necessidade de organização conduz às
modificações nacionalizantes por que passam as Igrejas, no intuito de adotar as suas
estruturas sócio-religiosas de condições ótimas para a execução dos objetivos
missionários. A racionalização estrutural, como ocorre nas demais esferas institucionais
da sociedade moderna, se realiza através da burocracia. A maior importância dada ao
laicato é outra tendência originada da situação de competição e, de uma certa forma,
consequência do maior controle do consumidor sobre os bens religiosos.
É dentro desse quadro histórico que se pode entender a especificidade
da ideologia missionária, como ela se apresenta na região da Baixada Maranhense. A
questão que se coloca, no caso, é compreender de que modo a missão, enquanto
concepção gerada nas condições sociais da sociedade industrial moderna, é transposta
para situações sociais marginais a esta sociedade, de subdesenvolvimento ou de
dominação cultural, onde um sistema religioso legitimado pela sociedade nacional se
defronta com outros sistemas religiosos não legitimados por essa sociedade. Para isso, é
preciso apontar de que modo a missiologia se instrumentaliza para realizar a tarefa
evangelizadora, isto é, a arregimentação de grupos sociais não plenamente vinculados a
qualquer dos sistemas religiosos legítimos; e também apontar de que modo a relação de
subordinação que articula esta situação modifica o esquema que orientaria uma
competição entre sistemas religiosos de mesmo status.
Para distinguir os dois tipos de situações sociais, usaremos os termos:
situação de pluralismo, designando o contexto geralmente urbano onde a secularização
é um resultado das novas relações engendradas pela sociedade industrial: a situação de
colonização, designando o contexto geralmente não urbano-industrial onde as relações
sociais capitalistas mais desenvolvidas parecem ainda não ter penetrado, no qual a
ideologia religiosa não está relativizada (pois não houve processo de secularização) e
seus conteúdos se fundamentam na realidade objetiva do mundo social. A situação de
90
colonização se caracteriza, para efeitos da utilização da expressão no presente texto,
sempre que se dá a interferência da ação missionária.
Tentaremos agora apontar os princípios gerais da ideologia
missionária na região da Baixada Maranhense, procurando detectar a sua especificidade
enquanto resposta a uma situação de pluralismo e, ao mesmo tempo, a uma situação de
colonização. Como veremos, esta duplicidade coloca certos impasses que, se de um lado
se resolvem coerentemente do ponto de vista da missão, engendram novas contradições
quando o exercício de sua práxis a defronta como “outro lado” da situação de
colonização, isto é, a realidade social local.
5.2.2 – Os Princípios Ideológicos da Missão
Tentando aprofundar esta análise, fomos encontrar na obra de Laënnec
Hurbon29
um quadro de referência que se encaixou surpreendentemente com os dados
que dispúnhamos sobre a missão canadense. Com efeito, vamos encontrar na própria
definição que a missão faz de si mesma, os traços que Hurbon aponta como
fundamentais para a sustentação da ideologia colonialista veiculada pela Igreja em
certas circunstâncias.
“(os missionários são) solicitados e mandados para orientar os
habitantes até a salvação, para procurar e formar líderes espirituais e
temporais” (grifos nossos) (Documento da Missão, p.18)30
Estão aí os temas da missão como implantação da Igreja e da noção de
universalidade do Cristianismo (ou da salvação pela Revelação cristã), que serão
desdobrados de modo a justificar um determinado tipo de atuação da Igreja na situação
de colonização. No entanto, esses dois temas básicos não se apresentam nitidamente
diferenciados para a consciência missionária, mas ao contrário, aparecem como um só e
mesmo objetivo.
Antes de entrar na descrição específica dos dois temas, gostaríamos de
chamar atenção para uma característica que parece definidora do tipo especial de
ideologia missionaria de que tratamos. Os próprios documentos da missão apontam
explicitamente para uma evolução no conceito que a missão faria do seu tipo de atuação
29 A obra de Hurbon, padra católico no Haiti, filósofo, teólogo e antropólogo, impressiona antes de tudo
pelo esforço antropológico de superação do etnocentrismo. Sua tentativa, em grande parte bem sucedida,
a nosso ver, é a de formular uma análise crítica de sua própria ideologia religiosa, questionando-a de fora
dela mesma, posição teórica que só se torna possível na medida em que o autor busca explicitar o vodu
como uma expressão coerente da logica da sociedade local. É a preocupação com a exploração
colonialista que lhe permite formular teoricamente a alteridade e as relações de poder entre as duas
culturas.
30 Cf. acima, a nota 3.
91
(Documentos da Missão, 1970, pp.30 e 46)31
. Teria havido uma primeira etapa
caracterizada por uma orientação religiosa “tradicional”, voltada para o ensino
doutrinal, a formação de padres e obras assistenciais; e uma segunda etapa
“revolucionária”, voltada para a “conscientização”, “promoção humana”, a criação de
“verdadeiras comunidades”, chegando-se a “um nível técnico que, embora introduzindo
certa sofisticação numa sociedade pouco diversificada, começa a tomar em
consideração as ocupações básicas e vitais da maioria da população”. Ora, o que os
documentos da missão chamam de “orientação tradicional”, não passa de um traço
característico do primeiro momento histórico de atuação da Igreja de que falávamos no
início deste capítulo, no momento pré-secularização, pré-sociedade industrial moderna,
no qual a Igreja tem garantido seu papel de legitimadora ideológica em última instância
Das relações sociais. Por outro lado, o que é chamado de “orientação
revolucionária”, corresponde a uma adequação aos princípios do Vaticano II. O
importante nestes dados é notar que a adoção da nova orientação se apresenta como uma
das interpretações possíveis de tais princípios, se compara a outras interpretações
formuladas por grupos eclesiásticos noutras regiões e países da América Latina. Dir-se-
ia haver uma defasagem histórica que determina o pensamento da missão canadense de
modo a persistir em impasses teóricos já bastante mais refletidos pela Igreja noutras
regiões. Desses impasses, o crucial nos parece ser o que coloca a noção de
“desenvolvimento” e a preocupação com os problemas seculares, socioeconômicos das
populações onde ela atua. Nos termos em que coloca a sua interpretação particular dos
próprios teóricos que revolucionaram o pensamento da Igreja, a missão cria para si
mesma uma permanente dualidade conceitual, a dualidade entre Estado-Igreja,
formação doutrinária-formação comunitária, religião-desenvolvimento, sendo que, em
última análise, se vê obrigada a formular (por força de uma exigência de coerência
logica) a prioridade do objetivo de importa a religião católica, deixando o objetivo
“desenvolvimento” em plano secundário.
“Todos os agentes de pastoral, de todos os tempos e em todos os
lugares, encontram sua razão de ser na promoção dessa Igreja de Jesus
Cristo, criação particular do Espírito Santo. É verdade que, devido a
situações de urgências sociais e de calamidades públicas,
frequentemente são levados a agir de acordo com suas aptidões, em
auxílio das populações necessitadas: eles têm o direito e o dever de
fazê-lo, uma vez eu são homens, vivendo em solidariedade e
fraternidade com todos os outros homens; mais ainda, são cristãos.
Entretanto o seu papel específico consiste em promover, em todas as
partes, o nascimento e o desenvolvimento da vida das Igrejas locais”.
(Documentos da Missão 1971-A, p.118)32.
31 Cf. acima, a nota 3.
32 Documentos da Missão 1971-a. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e
sim, exclusivamente de CENPLA (IPEI-CENPLA).
92
Buscando mais a fundo as origens desse dualismo conceitual, vejamos
de que forma ele aparece através dos dois temas centrais da ideologia missionária.
5.2.2.1 – Noção da universalidade do Cristianismo
A ideologia missionária é sustentada, antes de tudo, pela noção de que
a mensagem de Cristo, enquanto convocação à salvação dirigida a todas os homens sem
distinção, é a verdade religiosa por excelência, por ser a única originada da Revelação
divina tal como interpretada e transmitida por seus legítimos veiculadores, isto é, a
Igreja. Ora, no quadro de uma crítica teórica ao ideológico, é fácil verificar aí a lei geral
de todas as ideologias (religiosas, ou não) que corresponde a pensar-se enquanto
ilimitadas, verdades absolutas. A ideologia é incapaz de relativizar seus próprios
conceitos; sua função social é a de manter a coesão entre as diversas relações sociais
onde opera. Não se atribuindo limites, aos sistemas ideológicos necessitam
fundamentalmente coloca-se enquanto universais, já que o reconhecimento de seus
limites ocasionaria a perda de sua função de organizadores dos universo simbólicos
através dos quais os homens explicam o mundo em que vivem e sua relação com ele.
Assim, ao pretender-se resposta absoluta para todas as questões colocadas pelas
religiões nas diversas culturas humanas, o cristianismo não faz mais do que repetir os
mecanismos presentes em quaisquer dessas outras religiões.
Da noção de universalidade, decorrem, no entanto, suas outras
posições ideológicas que, como mostra muito bem Hurbon, explicitam claramente o
colonialismo que impregna o pensamento missionário. Primeiro, uma visão
evolucionista das religiões e culturas divergentes da tradição ocidental cristã. Nesse
sentido, pe importante notar o modo pelo qual a ideologia carrega em suas proposições
o conjunto do quadro cultural de onde se origina, de tal forma que, ao transporta-se para
outros contextos culturais, terá sempre como ponto de referência para emitir seus
julgamentos os outros modelos culturais não religiosos que, com ela, fazem corpo
unitário. Assim, a sociedade ocidental que legitima a ideologia cristã será o ponto de
referência a partir do qual serão hierarquizadas as outras tradições culturais, vistas como
etapas de um processo necessário que culminará na realização do modelo social
ocidental tomado globalmente. Do ponto de vista religioso, dirá um padre e seus
catequistas referindo-se à resistência da população local a aderir às novas modalidades
de culto e ação comunitária propostas pela missão: “Nosso povo é criança, mas ele tem
riqueza. São lentos de compreender, refletir, produzir”. (Reunião de catequista,
documentos da pesquisa). O modelo da sociedade ocidental aparece primeiro numa
avaliação global negativa do outro, o qual seria fatalista, passivo e inconsciente, inibido,
atrasado e sem iniciativa (Documentos da Missão 1970, pp. 30 e 38)33
., para surgir,
finalmente de modo positivo, quando se propõe uma estratégia que alia a imposição
religiosa outros critérios igualmente ideológicos, como por exemplo as noções de
progresso e prosperidade da sociedade capitalista industrial. Vejamos, a esse respeito, o
33 Cf. acima, a nota 3.
93
que diz a missão sobre as finalidades de “um estudo mais científico da realidade do
povo de Guimarães” (Documentos da Missão, 1970, p.89)34
.
a) “conhecer todos os aspectos da realidade do povo;
b) aproveitar todos os valores válidos do povo, inserindo-os na vida
de hoje;
c) criar condições e possibilitar meios que deem chance ao povo de
se libertar dos aspectos alienantes de sua religiosidade” (grifos
nossos).
Assim, a cultura local é vista de modo fragmentário, composta de
certos “aspectos aproveitáveis” e outros “alienantes”, podendo, portanto, ser
desmontada e remontada pelo missionário para a obtenção de um novo produto cultural,
que repetisse finalmente o modelo perfeito de sua própria cultura. É interessante ver
também que a missão não só absolutiza o seu sistema religioso, mas também formula a
sua legitimidade nos termos de uma sociedade globalmente mais racional, mais eficaz,
de modo que “alienante” é tudo aquilo que não corresponde a tais modelos, como, aliás,
o texto prossegue mostrando:
d) “valorizar, entre o povo, as pessoas, mesmo rústicas, que são
dotadas de percepção extra-sensorial e metapsíquica, e
recomendar a ciência experimental dos ‘doutores do mato’ que
sabem usar as virtudes de muitas ervas, cascas, etc.” (grifos
nossos).
Ou seja, ao se traduzir para o nível do profano da cultura ocidental,
tudo aquilo que compõe o mundo sagrado da cultura local, abre-se um espaço para a
verdadeira religião e inculca-se, ao mesmo tempo, uma interpretação mais “racional” de
fatos que, desprovidos de seu caráter social, passam à categoria de fenômenos da
natureza; estes poderiam receber um tratamento científico, enquanto a verdadeira
religião transcende a capacidade explicativa do conhecimento humano. Por fim, o ponto
de vista evolucionista culmina numa formulação mais globalizante que alia
explicitamente a ideologia desenvolvimentista da sociedade capitalista à mentalidade
inovadora incorporada à ideologia cristã.
“É preciso lembrar que em outras nações e povos, que tiveram um
passado marcado pela passividade e pela inconsciência – nutridos pela
religiosidade popular – libertaram-se desta mentalidade,
desenvolveram-se e se transformaram, com o impacto do progresso e
das novas condições de vida” (grifos nossos).
Portanto, a eliminação dos sistemas religiosos originais e a sua
substituição pelo cristianismo podem ser uma via segura a expansão da sociedade
ocidental capitalista. Aliás, não é outra coisa o que pretende mostrar um documento
mais recente da missão, quando afirma:
34 Id.
94
“Com efeito, a equipe teológica, utilizando os seus instrumentos
específicos (a fé cristã), pretende identificar os núcleos humanos,
focos do futuro desenvolvimento, por serem esses núcleos lugares de
uma presença especial do Espírito Santo. Pois, no grupo humano no
qual o Espírito de Deus opera abundante e intensamente, qualquer
movimento desenvolvimentista encontrará ressonância favorável ao
apelo em favor dos bens humanos, como: trabalho, progresso,
verdade, bondade, liberdade, unidade, etc.” (Documentos da Missão
1972-A, p.15)35.
Nesse nível, a ideologia missionária procura equacionar o seu próprio
conceito de salvação religiosa com o conceito da “salvação” pelo desenvolvimento
capitalista, o qual só poderia ser alcançado dentro de verdadeiras “comunidades cristãs”,
isto é, com a condição de eliminar as comunidades originais.
Uma segunda consequência da noção de universalidade do
cristianismo é a descontextualização histórica que fundamenta o discurso missionário.
A Igreja tem por tarefa implantar um Reino espiritual onde todos os homens sejam
irmãos, unidos em comunhão mística, abstração feita de suas diversidades culturais,
grupais e de classe. O modelo mediador para a realização dessa união é a “comunidade
cristã apostólica da Igreja primitiva” (a experiência social dos primeiros cristãos), que
deve ser implantado entre a população local como alternativa, não apenas para a vida
religiosa, mas para o conjunto das relações sociais. Desse modo, a missão introduz na
cultura local um conceito de comunidade que vai operar como polo de oposição ao
modo pelo qual o caboclo pensa a sua própria comunidade e a vive realmente na prática.
Nos documentos da missão, esse conceito vem nomeado pelos termos “comunidade de
fé”, “comunidade de culto”, “comunidade de base”, “comunidade eclesial”,
significando:
“...um conjunto de homens que se reivindicam o Evangelho, que têm
em comum algumas relações de vida e tentam expressar este
Evangelho”. (Documentos da Missão 1971-B, p.6).
Tais “relações de vida” devem repetir o modelo das “virtudes dos
primeiros cristãos”, que se resumem em “amor e união”. De um lado, a comunidade é
a própria Igreja, “povo de Deus”; em seguida, ela deve realizar-se no âmbito mais
amplo das relações sociais, como explica um missionário a seus catequistas.
“Deus está no grupo, no amor mútuo, porque Ele está primeiro no
grupo. Ele está em cada um de nós. Andando unidos, amamos a Deus.
Explicamos para todos que nos perguntam que é essa união que Deus
quer, e que a gente está fazendo isso pelo amor do Senhor. Sempre
35 Documento da Missão 1972-A. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e
sim, da equipe de Teologia (CENPLA) pesquisando na região da Prelazia de Pinheiro (IPEI-CENPLA).
95
nosso grupo está aberto. Abraçamos todos”. (Documentos da Missão
1971-B, p.7)36.
O estilo comunitário marca um novo tipo de atuação missionária,
ligado à etapa da “orientação revolucionária” a que já nos referimos e tem sua expressão
mais elaborada na ideologia que a missa inculca na população local através da Escola
da Fé. Aí os catequistas têm a oportunidade de viver, durante algumas semanas,
isolados das suas condições reais de existência social, aprendendo o “amor” e a “união”
como verdadeiros princípios morais das relações comunitárias. Assim, diz um
documento sobre a Escola da Fé:
“...a comunidade cristã se forma no amor, vive pelo amor e dá
testemunho como o amor. O centro da vida da comunidade, da vida
cristã, é o amor”.
“...O que estimula o cristão no amor é o exemplo de Cristo, que deu
sua vida pelos que amava, em nos convidando para fazer o mesmo,
para expressarmos em nossos atos o nosso amor para com todos, sem
exceção de ninguém” (Documentos da Missão 1971-B, p.15).
A ideologia igualitária que aí se veicula, ignora, antes de tudo, as
próprias distinções sociais presentes na representação que o caboclo faz de sua própria
comunidade e os critérios de que ela se utiliza conceptualmente para atualizá-las37
.
Além de ver a cultura local como alguma coisa desprovida de sentido e de organicidade,
a ideologia missionária encobre, em seu discurso, as verdadeiras tensões e contradições
inerentes à realidade social que a cerca, as diferenças culturais e de classe. No plano de
uma humanidade ideal, ela elabora para a população local, por exemplo, a seguinte
mensagem sobre o trabalho:
“Sou vosso servo, Senhor/Sei que servir é amar/Por isso com muito
amor/o fruto do meu labor/Deponho no vosso altar/.
Quem serve ao irmão, melhor vos serve/
Pois serve mais quem serve ao seu igual/
Seja operário, sacerdote, lavrador,/
Artista, estudante, industrial”.
(Paróquia de Bequimão, folheto Missa “Servir” pp.1 e 2, fev. 1972.)
A comunhão mística proposta pela missão, a realizar-se pela formação
de “comunidade cristãs” nos povoados, passa pois em silêncio sobre as condições
históricas concretas em que vive a população rural maranhense. Mas como explicar que
isso ocorra justamente quando a missão está formulando um projeto que visa influir na
transformação das condições sociais desta população, reconhecendo, assim, a sua
36 Documentos da Missão 1972-B. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e
sim um elemento dos trabalhos, no campo, pela equipe de teologia. (IPEI-CENPLA).
37 Vida Prado, R. pp. 25-87 onde a autora procura demonstrar a organicidade da sociedade
local, seus critérios próprios de diferenciação das relações sociais segundo os sistemas do parentesco, do
compadrio, e ao nível do sistema religioso como um todo.
96
especificidade histórica? Esta contradição (que só aparece quando se questiona a
ideologia missionária de fora dela mesma) resulta da dualidade conceitual à qual nos
referimos antes, pois se de um lado, a inculcação religiosa se justiça por uma concepção
a-histórica da fé cristã se equaciona com um maior contato com a cultural ocidental,
letrada, racional; como repete, textualmente, um catequista já formado pela dita Escola:
“...até esse ano mesmo... foi que eu pude entender aquela comparação
que a irmã X fez ano passado, dos copos. Ela fez assim três vasos, um
maior, outro menor, outro menorzinho... Aquilo quer nos dizer que... é
a mesma coisa nossos corações, a nossa fé. Tem um que tem a fé mais
forte, outro menos, outro menos. Mas tudo, se tem a fé, todo coração
tá cheio. É como os copos, se tem um grande, outro pequeninho, outro
menorzinho, mas tudo cheio, num tá igual, mas tá cheio. Ele tá cheio,
o menorzinho tem menos, é a mesma coisa com nós. Nós tem menos
porque estudemo menos, o maiorzinho já tem mais, já é aqueles que
estudaram mais, e o grande é aquelas pessoa que estudaram bastante
mesmo”.
Assim, podemos deduzir que propondo um aprendizado do seu
sistema de valores segundo os mecanismos “civilizados” – escola, leitura, documentos
escritos – a missão afirma o seu vínculo cultural, explicita-o na sua prática. Mas são é
só. Como dizíamos, o reconhecimento de uma especificidade histórica própria à cultura
local, é um modo de contornar o tema da a-historicidade, mas sem romper, no entanto,
com a lógica que fundamenta o pensamento missionário, pois tal especificidade será
definida a partir de evolucionismo intrínseco a tal pensamento. Temos, então o tema do
desenvolvimento como um divisor de águas que permite à missão legitimar sua
implantação e expansão e revelar (talvez mais do que isso, enfatizar e reivindicar) a
adequação de seus princípios e de sua prática aos princípios e a prática da expansão do
capitalismo ocidental .
“Sem sombra de duvidas, Na Baixada Maranhense, Brasil, há uma
população que se pode qualificar de subdesenvolvida. A libertação
desta população e sua entrada no circuito das riquezas das nações
seria uma gloriosa vitória da humanidade” (Documento da Missão,
1970,p.7)(14)
Para justificar sua própria atuação, a igreja identifica–se formalmente
ao estado, assumindo, na prática , o seu modelo de atuação e o contexto histórico que
ele representa na região :
“Existem... dentro da igreja, elementos semelhantes aos encontros no estado:
uma organização pública e funcionários. Frequentemente essa duas
organizações públicas se sobrepõem mais ou menos bem , como a paróquia e
o município”.
“O Estado opera como a igreja, ou a igreja como estado. Frequentemente a
influencia é mútua, sem que se possa dizer, quanto a cada modo de ser e de
agir ,qual dos dois o tenha adotado em primeiro lugar”(Documentos da Missão
, 1971-A,p.116)(15).
97
“A sede da Missão é muito procurada e muitas pessoas dependem não só da
orientação, mas dos trabalhos que a missão pode oferecer: construção da
escola, transporte de material, trabalho na olaria (a Missão é dona de uma
),recursos para viagem a são Luís ou para atendimento de doenças”(DOC. da
Missão ,1970 ,p.41)(16).
Resumindo, temos que , enquanto , de uma lado, a ideologia
missionária elabora o tema de um igualitarismo a-histórico, expresso nos conceitos de
“comunidade” “amor” e “união”, encobrindo as verdadeiras tensões sociais , de outro ,o
seu discurso assume uma historicidade explicita , formulada pelo tema do
evolucionismo , cindindo a população local entre verdadeiros-falsos cristãos,
cooptando indivíduos que são levados a renegar sua própria cultura(pelo menos ao nível
da relação padre-catequista) e vinculando o modelo ideológico desenvolvido da
sociedade nacional ao seu próprio modelo da salvação pela fé cristã.
5.2.2 - A MISSÃO COMO IMPLANTAÇÃO DA IGREJA
A preocupação com a expansão e implantação burocrática da igreja é
o traço que melhor explicita a situação de competição criada pelo contexto da
secularização, como apontávamos no instrumento para produzir resultados satisfatórios
ao nível de uma maior arregimentação de adeptos em todas as partes em isto for
possível. É preciso assinalar, no entanto, que a missão é um fenômeno típico de
situações de colonização (tal como definimos), de modo que se encontra é marcada por
uma delegação de poder que lhe atribui o Estado nacional e que determina a relação
subordinativa que a igreja terá em relação a cultura “a cristianizar”.
Falando das situações de pluralismo, Peter Berger assinala que “o
mercado competitivo se dá quando é impossível a maquinaria politica da sociedade para
eliminar os rivais religiosos” (Berger,1971p.203). Ora, é precisamente o oposto que se
verifica na região da Baixada Maranhense ,onde o catolicismo é historicamente a
ideologia religiosa que fundamentou o poder politico do colonizador; mesmo que novo
catolicismo da missão queira descartar-se desse passado , ao conceber-se a si mesmo
como fonte propulsora do progresso material e espiritual dos oprimidos , ele continua ,
embora num novo estilo , a ser uma das instituições que operacionalidades marginais.
Uma das provas mais evidentes é a repressão ao sistema religioso local. Esta não
alcança , para a missão, o status de uma posição de monopólio religioso dentro da
cultura cabocla. Por outro lado como as manifestações religiosas locais(pajelança,
curandeirismo ,catolicismo popular)tomam por referencia um conjunto de tradições
articuladas num sistema divergente da tradição ocidental, elas se tornam
desorganizadoras dos valores que a missão quer inculcar. A repressão missionária a
realidade local visará, assim , impor a ilegitimidade da tradição cabocla como um
todo, e afirmar o seu próprio poder legitimo. A questão do competidor legitimo fica
bem ilustrada por um fato que documentamos durante a pesquisa de campo :numa
reunião de catequistas , um padre missionário instruía seus ouvintes sobre a
98
necessidade de combater as crenças “primitivas” do povo e , mais adiante , louvava a
vantagem de existirem protestantes na região , porque isto aguçava o sentimento de
lealdade dos católicos a sua religião.
Para se entender claramente a verdadeira relação de poder que
fundamenta a relação da igreja com a cultura local, é necessário aborda-la a partir da
representação que esta cultura faz da igreja e de seus funcionários religiosos locais , a
origem do poder sagrado do padre esta no saber letrado , na educação escolar ; ele é
visto como pregador capaz de interpretar a palavra de Deus, b)o padre é também visto
como conselheiro para as situações ligadas a sociedade mais ampla, isto é , em todas as
situações que envolvem a técnica, a burocracia, a escola , a medicina oficial ;c)por fim ,
ele recebe o papel do funcionário das entradas no social: pelo batismo ,a entrada na
sociedade dos vivos , pelo ritual dos defuntos a entrada na sociedade dos mortos que a
sociedade local mantem com a sociedade mais ampla. O que permanece constante em
todas as situações de colonização, apesar das mudanças de estilo que possa sofrer a
atuação missionária . Como aponta muito bem Hurbon:
“Mais nous n`avons pas simplement à voir dans les dégáts
produits par l´oeuvre missionaire derreurs qui viennent
aniguement de ce que colonisation et mission ont éte
entreprises à rla même époque , comme si les
administrateurs coloniaux.
Dans la mesure oú la religion faisait corpe ele créaait par
ele-même une ligne de démarcation entre les colons et los
colonisés”(grifos nossos) (Hurbon, 1972)
Numa época de secularização, a tarefa de implantação da igreja se
apresenta modificada em alguns aspectos de seu estilo tradicional, já que se faz
necessário justificar , ao nível de sociedade nacional , a presença da instituição religiosa
nas áreas problemáticas desta sociedade (porque marginais) , ao lado de outras
instituições (religiosas e leigas) com funções semelhantes. Assim, o tema
desenvolvimentista volta ao debate , conduzindo mais uma vez ao dualismo conceitual
em que se encontra a missão .Ou se já , a s missão não pode mais , como outrora ,
preocupar-se apenas com suas tarefas estritamente religiosas , sacramentais , mais deve
fazer um esforço para adequar-se ás proposições mais relevantes da ideologia
dominante na sociedade nacional , sob pena de ver ameaçada a legitimidade
institucional que lhe confere o Estado. É dentro desse esforço de adequação que se
pode interpretar o tema da modernização na ideologia missionária .Em primeiro
lugar , a preocupação modernizadora dos métodos de atuação está ligada a um tipo de
interpretação dos princípios do Vaticano II e Medellin , no sentido de engajamento da
igreja nos problemas sócio-econômicos das populações marginais .Referimo-nos a
uma das possíveis interpretações de tais princípios porque , no caso presente , a
modernização significa adequação a ideologia dominante , ao passo que noutros
contextos de atuação da igreja essa filiação tem sido explicitamente criticada e
99
ultrapassada .No caso da missão católica na Baixada Maranhense e , o reconhecimento
da necessidade de transformações sociais se coloca no quadro da lógica da expansão
capitalista e implica o desmantelamento das relações sociais internas a comunidade
cabocla , na medida em que se tenta impor a cultura local novos princípios de relações
em todos os níveis da vida social. Assim, as instituições implantadas pela missão darão
maior ênfase e a educação , não apenas no seu sentido religioso , mas principalmente
no seu aspecto técnico e burocrático aliando aos atributos próprios a uma instituição
”moderna”(tecnicidade) , um tipo de organização que lhe permita expandir-se e fixar-se
na região (burocracia). Estes aspectos se esclarecem quando analisamos a ideologia que
orienta a escola da fé , cujos objetivos são:
“preparar pessoas que possam representar a igreja em todas
as suas funções, sobre tudo de anunciar o cristo , de formar
comunidade cristãs , de fazer a catequese e de dirigir o
culto”(DOC. da Missão, 1970,p.45)(18)
Modernização-tecnicidade (componentes de conceito de “comunidade
cristã”) e implantação burocrática (“representar a igreja“) surgem aí como um só
objetivo , apontando o mecanismo ideológico pelo qual a missão deixa implícito o
seu compromisso cultural. No contexto da relação missão-cultura local , a Escola da
Fé é lugar por excelência da violência simbólica em termos de repressão aos valores
sociais caboclos e de imposição dos valores da ideologia dominante .Sua dupla tarefa é
a de criar grupos locais vinculados subordinativamente a burocracia eclesial , as
comunidades cristãs” , orientando lífrres (catequistas) que sejam também os mediadores
para “modernização” da vida social dos povoados. Assim , a evolução que um
documento da escola aponta , do conceito de “catequistas” para o de “animadores”ou
“evangelizadores” a serem formados , explicita uma necessidade de ultrapassar uma
inculcação meramente doutrinal , para formar indivíduos teoricamente capazes de negar
os valores da sua própria cultura e capazes não apenas de aderir ideologicamente , mas
de tornar-se instrumentos adequados a repressão cultural sobre povoados .Este mesmo
documento formula as condições ideais em que isto pode ocorrer:
“O problema no fundo é bem maior:trata-se de termos a
coragem de acreditar num novo tipo de padre que esta em
gestação nas atuais comunidades de base.Padre que não
venha de nenhum seminário,que não saiba latim ou
filosofia, que não seja orador ou fino apalogeta de sua
fé.Um padre que “seja um deles” (sic) em todos os sentidos
da expressão , um homem que trabalhe há tempo naquela
comunidade , que seja bem entrosado nos problemas vivos
e diários do seu povo, um homem que , embora com uma fe
simples e deserudivada pelos ventos e aguas da vida”(DOC.
da Missão,1971-B , p.22)
100
Para atingir tal objetivo, a escola moderniza-se também tecnicamente
,tanto ao nível de uma especialização de seus funcionários mais graduados (professores
religiosos e leigos),quanto ao nível de novas técnicas didáticas ,substituindo a
doutrinação tradicional pela dinâmica de grupo. Vinculado o aprendizado a formação
de grupos locais liderados pelo catequista e orientados pelo pároco que visita
periodicamente os povoados, a Escola da Fé funciona como sistema alimentador dos
princípios ideológicos que asseguram as ralações hierárquicas dos princípios
ideológicos que asseguram as relações hierárquicas comunidades-Igreja. Tais princípios,
“união”, “amor”, “comunidade cristã”, são, como já vimos, os polos de oposição às
formas de organização sociais locais e fornecem, para a ideologia missionária, as
condições necessárias ao aliciamento de grupos básicos que garantem a presença e
continuidade de sua ação “modernizadora” na região.
Mais do que a modernização, no entanto, é a implantação burocrática
que vai permitir verdadeiramente a continuidade que a Igreja persegue. Max Weber,
analisando as condições de implantação da autoridade racional legal através da
burocracia, apontou a sua vinculação com o desenvolvimento do capitalismo na
sociedade ocidental.
“O desenvolvimento da moderna forma de organização coincide em
todos os setores com o desenvolvimento e contínua expansão da
administração burocrática. Isso é válido para a Igreja, Estado,
exércitos, partidos políticos, empresas econômicas... Seu
desenvolvimento é,... o mais crucial fenômeno do moderno Estado
ocidental” (Weber, 1966, p.24).
Quanto aos fatores que conduzem à burocratização, ele aponta dois
elementos cruciais: a inserção de uma estrutura de poder no nível local, com sentido de
organizar coletiva e interlocalmente o controle, e a superioridade técnica sobre outras
formas de organização (Weber, 1971, p.247). O caso da Igreja se insere claramente
nestas condições, esclarecendo-se também a prática pela qual ela realiza aas suas
relações de dominação sobre as comunidades locais. Opondo-se às formas de autoridade
temporárias e difusas, a burocracia instala autoridade permanente e pública, com
jurisdição fiza, sistematizando racionalmente as relações de poder. Não cabe nos limites
deste ensaio aprofundar os inúmeros aspectos que Weber aponta para o entendimento do
poder burocrático; apontaremos apenas algumas características gerais que definem o
modelo de implantação burocrática da Igreja como um das preocupações centrais da
missão. Deixando de lado sua hierarquia extra-regional, interessa-nos ver de que modo a
proposta de formação de “comunidade cristas”, e a adesão à ideologia
desenvolvimentista da sociedade nacional se sustentam na prática em procedimentos de
tipos burocrático que visam garantir a expansão e fixação da dominação institucional da
Igreja sobre a população cabocla. Para tanto, o catequista é uma categoria básica, pois
nela se concentra a estratégia missionária de implantação, principalmente através da
Escola da Fé.
101
As qualidades ideias de um catequista são:
“um homem que vive o Evangelho em todas as suas
dimensões;
um homem que já encontrou o Cristo;
um homem que, delegado na ordem da Fé, apresenta e
partilha a Fé com a sua Comunidade;
um homem cujo trabalho, e vida dele, constituem um
serviço de Fé, serviço de Evangelho, através da sua
atuação humana”.
Por outro lado, o catequista tem como etapas de sua formação:
1. “trabalho e compromisso na Comunidade;
2. estágio na Escola da Fé;
3. retorno à comunidade e renovação com assistência do
orientador da Paróquia e renovação anual com a equipe
da Escola”.
(Documentos da Missão, 1971, p.3).
O curriculum da Escola se divide em: ensino religioso (catequese,
pastoral, liturgia), ensino escolar (portuguesa, matemática, etc.) e ensino técnico
(higiene, agricultura, psicologia, etc.).
Segundo Weber, a ocupação do cargo burocrático é antes de tudo uma
profissão: entre outras características, exige treinamento rígido como pré-requisito, e
tem a natureza de um dever, insto é, de uma obrigação específica de administração fiel.
Pelas situações acima, percebe-se, inicialmente, de que modo a Escola procura dar
continuidade ao vínculo institucional que o catequista matém com a estrutura da missão,
em termos de sua inserção num sistema de autoridade hierárquica e de sua capacitação
para desempenhar a profissão de inculcador dos valores (religiosos, escolares e
técnicos) da ideologia dominante. O aspecto da dominação pelo saber, por outro lado,
nos parece crucial, principalmente se nos lembrarmos da posição estrutural que o padre
(e consequentemente a Igreja) ocupa enquanto funcionário religioso da cultura local.
Com efeito, segundo Weber:
“A administração burocrática significa, fundamentalmente, o exercício
da dominação baseado no saber. Esse é o traço que a torna
especificamente racional. Consiste... em conhecimento técnico que,
por si só, é o suficiente para garantir uma posição de extraordinário
poder para a burocracia”. (Weber, 1966, p.26).
Seria interessante ver, também, que, enquanto por seu lado, a missão
procura legitimar sua autoridade em termos racionais (categoria weberiana), já que este
é o código vigente na sociedade nacional, a cultura cabocla, por outro lado, se utiliza de
um tipo de legitimidade tradicional (segundo Weber, crença no caráter sagrado das
102
tradições para legitimar a autoridade) para reservar certas áreas de seu âmbito social à
autoridade da Igreja e do padre, áreas que estariam ligadas ao domínio de um certo tipo
de saber religioso38
.
Para finalizar, se tornarmos o discurso geral sobre a importância do
laicato, no quadro da ideologia missionária, veremos surgir ainda outra característica
importante da arregimentação burocrática: a posição do funcionário não deve
estabelecer lealdades pessoais, mas sim a lealdade a finalidades impessoais e funcionais,
uma adesão a princípios, embora, por detrás destes, sempre ressurgia o conceito
tradiocinal de “senhor” ou “patrão”, através das ideias de “Estado”, “igreja”, “partido”,
etc.39
.
Abrindo um parênteses, é bom notar que o tema da conversão conduz
ao problema da individualização da opção religiosa, posição que as ideologias
religiosas de um modo geral assumem a partir da secularização do mundo urbano. A
incongruência se revela quando notamos que, se esta formulação é consequência do
contexto pluralista da sociedade complexa, onde os valores religiosos se relativizaram,
no caso da missão, a mesma formulação é imposta numa situação social não
secularizada, onde a religião permanece sendo o sistema legitimador em ultima
instancia da ordem social. Portanto, quando a missão propõe à população local a
“religião como estilo de vida”, isto é, uma descoberta do “verdadeiro” catolicismo por
uma escola subjetiva que implicaria numa transformação radical da vida individual
(conversão), ela ignora o real caráter intersubjetivo, e, portanto, objetivado socialmente
que a religião local assume para os agentes sociais daquela cultura. Decorre daí,
também, a ênfase que se dá às funções morais e terapêuticas da nova religião em relação
aos valores tradicionais locais, em termos de soluções individuais (Ver na Parte II deste
trabalho, p. ( ) como o tema aparece nas inovações do Batismo). Diz-se, então, que o
“Cristianismo não é uma religião, mas um estilo de vida”, o que só teria sentido num
discurso dirigido á “consciência secularizada” da sociedade urbana. Esse “estilo de
vida” será um veículo da implantação da moral e dos modelos ideais da sociedade
industrial capitalista (racionalização e eficácia no trabalho, progresso e
desenvolvimento).
Voltando ao problema do laicato, além do seu enquadramento
burocrático pela adesão aos princípios que levam à conversão, vemos também que ele
assume na ideologia missionária um papel central de mediador para a tarefa de
38 Prado, R. 1973. Ver especialmente a conclusão, no fim de 3.3.4.3, p. ( ): a posição estrutural
do funcionário padre em relação aos demais funcionários (rezador, benzedor e pajé) e suas áreas de poder
religioso,
39 Weber, 1971, p.232. O autor aponta, nesta passagem, o modo pelo qual certas categorias
ideológicas mais amplas, como, por exemplo, a de patrão e a do senhor tradicional, permanecem
sustentando as relações burocráticas, embora muitas vezes encobertas pela ideologia da racionalidade.
Seria interessante pesquisar as modalidades de passagem da categoria local de patrão para a relação
catequista-missão e padre-comunidade, e a forma como ela é assumida de ambos os lados.
103
implantação da Igreja, através da formação e manutenção das “comunidades cristãs”,
que são de sua responsabilidade, e através da assimilação da função missionária:
“O leigo é o cristão engajado que se responsabiliza por tudo na
família, na vizinhança, no trabalho, onde ele passa, para tornar a Igreja
presente e operosa naqueles lugares e circunstâncias onde apenas
através dele ela pode chegar como sal da terra”.
“O leigo é cristão na medida em que expressa sua comunidade para
fora. Como um espelho fiel, ele ilumina o mundo com a luz do ideal e
do pensamento da Igreja que é presente na sua comunidade”.
(Documentos da Missão, 1971-B, pp. 13 e 14)
5.3 – A CULTURA CAMPONESA E AS NOVAS INSTITUIÇÕES DA MISSAO
Abordaremos agora a questão da ação missionária a partir do ponto de
vista da cultura camponesa, confrontando o quadro ideológico delineado na Parte I com
seus resultados concretos ao nível da realidade social onde ele atua. Verificamos que, ao
penetrar no âmbito da produção simbólica camponesa, as instituições criadas pela
missão ganham uma dinâmica própria que foge muitas vezes ao controle direto da ação
missionária. Como veremos, essas instituições não chegam a provocar mudanças
estruturais na comunidade local, sofrendo um processo retradução pelo qual a cultura
camponesa se instrumentaliza para manter sua integridade e identidade social.
5.3.1 – A Instituição do Catequista
5.3.1.1 – O Catequista na Ideologia Missionária
Ao concluir a Parte I, mostramos o papel do laicato na ideologia
missionária e sua função mediadora entre a Igreja e a população local. No caso dos
catequistas, que são camponeses recrutados a assumir funções na burocracia eclesial,
vemo-nos diante de um tipo especial de leigos. Na verdade, existem dois tipos distintos
de leigos, de acordo com sua origem de classe e sua capacidade de preencher as
necessidades burocráticas de implantação da missão. De um lado, temos os leigos com
funções de direção semelhantes às dos funcionários religiosos legítimos, pessoas com
capacitação profissional suficiente para dividir com eles as tarefas de inculcação do
saber dominante, enfim, pessoas tão missionárias quanto os próprios missionários,
enquadrando-se perfeitamente nas definições ideais sobre o papel do laicato. De outro
lado, porém, quando se trata de arregimentar leigos provenientes da cultura “a
cristianizar”, os princípios ideias não resistem ao confronto entre as duas tradições
distintas, e a oposição religioso-leigo reaparece não só através de uma subordinação de
hierárquica em termos de autoridade burocrática, como também ao nível de uma
104
pretensa superioridade cultural. Este era o problema que enfrentava um padre,
orientando seus catequistas:
“Muitos catequistas misturam padre missionário e catequista. O
missionário é aquele que vai passar que não vai ficar. Daqui a
cinco anos nos vamos nos limpar daqui, cair fora,. Deixamos
vocês ai. Nossa ajuda será terminada. Então o padre vai chegar
no lugar, cruza os braços e depois começa a dar a manobra:
olha, se não fizer assim, não volto mais. Como sempre, o povo
pega a amizade nele, se encasqueta um pouco com ele, né,
então ele vai querer cabresto, né? Eu posso, eu me dou esse
direito de fazer chantagem. Até se endireitar. Porque qualquer
forma eu não tenho nada, o povo é quem vai se virar depois
que eu sair. Mas se o catequistazinho chega depois e diz: - óia,
faz assim também, senão eu não vou mais, será que isso é
serviço da catequista? Já tá imitando demais o padre, viu? Esse
catequista tem que ficar, e não sozinho, ele tem que ter um
grupinho com ele, uma responsabilidade junto com o padre.”.
De certa forma, esse discurso apreende um aspecto real da visão local
sobre o padre (Isto é, sua relação de poder sobre a comunidade); por outro lado, ele
revela a contradição em que são colocados os catequistas: depois de formados
especialmente para preencher quadros burocráticos da missão, passa a existir um nível
de seu comportamento social em que eles assumem integralmente o seu papel
missionário e sua relação hierárquica, realizando perfeitamente esse papel. Mas, quando
o catequista repete o padre, a ideologia missionária vê nisso um “exagero” ou uma
“caricatura” quando na verdade, ele está fazendo uma leitura adequada do papel do
padre, tal como esse se define na sua própria cultura. Nesse momento, então, será
preciso dizer que o catequista é um tipo de leigo especial, que se mantem numa relação
subordinativa, justificada na ênfase as diferenças culturais. Como assinala um
documento da Escola de Fé:
“Sentimos, desde agora, o perigo que potenciando
incondicionalmente vários ministérios sem uma sólida
preparação comunitária, ajudemos a criar na Igreja nova,
pequenos déspotas “convencidos”, defensores de sua soberania
em seu ministério, à custa do verdadeiro espírito de serviço.
Houve há pouco tempo no nordeste diáconos casados que só
quiseram pregar com batina e barrete. O que se lamenta ter
acontecido com o clero, pode acontecer muito pior com
pessoas incultas e sem a devida experiência da tradição”
(Documentos da Missão, 1971-B, p. 24).
A “devida experiência da tradição” é o que o catequista adquire ao
cursar a Escola da Fé. Antes de tudo, ele entra em contato mais íntimo coma cultura
letrada dominante na sociedade nacional, pela alfabetização, os cursos religiosos,
105
acadêmicos e técnicos; aprende a dominar o saber religioso dominante ( as Escrituras) e
as novas fontes de poder ( a celebração do culto e a direção das novas atividades
comunitárias), conhece novas “verdades” sociais ( os valores do amor e da união com
todos) e entra para a categoria dos iniciados no conhecimento que sua cultura atribui ao
domínio do padre. Em segundo lugar, ele se socializa numa relação hierárquica
específica, sustentada na legitimidade que confere o saber religioso aliado ao saber
profano da cultura dominante ( o padre é o religioso e o professor, que domina uma área
do sagrado e uma área do poder temporal, a do progresso, da técnica, do
desenvolvimento); esse poder lhe será em parte na medida em que ele for um
funcionário fiel. Por último, ele s socializa numa relação igualitária horizontal, entre
catequistas, numa situação artificial de isolamento das relações sociais cotidianas ( os 3
ou 4 meses vividos na Escola), onde aprende um modelo ideal de sociedade ( a
comunidade dos primeiros cristãos). Apesar de que, dependendo do ano em que
cursaram, outros catequistas tenham sofrido outro tipo de inculcação, de acordo como
estilo do curso40
, em nenhum momento a Escola perde seu caráter essencial de
impositora da violência simbólica dominante.
5.3.1.2 O catequista e a Tradução da Mensagem Missionária
Tomando o discurso dos próprios catequistas, em várias situações41
,
encontraremos três planos distintos em que se dá a sua versão da mensagem
missionária: a repetição da linguagem missionária, a ambiguidade e a retradução.
Em primeiro lugar, quando o catequista se define a sí próprio, ele
procura repetir os conceitos que percebe como mais importantes pra missão:
“Catequese é... dizem que vem da palavra catequizar, catar,
quer dizer, se esforçar, fazer pesquisas, pescar, vamos dizer
que tem um pescador, ele vai pro mar pescar pra apanhar peixe,
né, então assim é o catequista, ele vai fazer curso de catequese
pra ele poder ter mais instrução, ter uma maneira de chamar
uma atenção ao pessoal, pra ele se introsar mais nas aulas, na
40 A Escola da Fé se encontrava em fase de reestruturação no período de 71-72, com a adoção de novas
técnicas (dinâmica de grupo, atividades extra-curriculares, etc.). Em anos anteriores, era dada maior
Ênfase à obediência, a uma rígida disciplina e a um acúmulo e informações novas.
41 As situações de pesquisa quanto ao catequista foram as mais diversas: em diálogo com os padres (os
pesquisadores assistiram algumas reuniões de catequistas na sede municipal) em diálogos com grupos
comunitários locais, falando ao pesquisador, de seu trabalho como catequista, falando sobre a população
do ponto de vista das novas instituições e falando sobre a sua própria cultura noutros contextos não
diretamente ligados à Igreja. Essa variação das situações nos permitiu compreender de que modo o
catequista, separando do contexto, resolva as contradições inerentes ao seu papel.
106
religião. Porque a religião nossa aqui é só católica. Mas é que
esses católicos não entendem o papel do católico. Então por
isso, é pra conscientizar as pessoas, a finalidade de ele ser um
católico, qual é o papel de um católico”.
Assim, as aulas, o estudo e a tarefa conscientizadora surgem como os
componentes básicos do seu papel.
“Ser catequista é evangelizar o povo. É ser católico, é uma
missão. O católico tem como missão, viver na Igreja e pregar
os Evangelhos. Praticar a religião é trabalhar, pois a pratica
não é só dentro da Igreja. O povo daqui pode praticar a religião
vindo rezar na capela e cindo receber as aulas, adelugar
(dialogar) com os outros. Aqueles que não vem não estão
praticando a religião.”
Este novo conceito de trabalho, que a maioria interpretará como um
verdadeiro contrato de patronagem padre-catequista (como veremos adiante), vem
aliado às formas de saber da cultura letrada, cujo domínio é privilégio de alguns
iniciados e engendra um novo critério de diferenciação social nas comunidades: o “povo
de dentro” e o “povo mais forte”, os que se aliam aos padres e os que não aderem às
novas instituições.
“Críticas não faltam, principalmente do povo de fora. Muitos
acusam o catequista de querer projetar-se, bancar importante e
ganhar muito dinheiro. Enquanto, isso o povo de dentro, tem
confiança no catequista, dá valor a ele e acredita que ele sabe
mais.”
Se a ação missionária consegue, através do catequista, introduzir na
cultura local um novo critério de distinções sociais, esse critério só se mantem, no
entanto, na medida em que o catequista é capaz de manipular a sua subordinação
hierárquica na burocracia missionária para legitimar junto à população local a sua área
de autoridade.
“O meu trabalho, só da parte do catequista, primeiramente é
dirigir as reuniões ou culto, dar algumas explicação da leitura,
aquilo que eu entender também. E também eu tô pronto a
ajudar aquelas pessoas que precisam, (precisam de que?) que
precisam da ajuda daquilo que eu posso dar pra eles, que eu
posso explicar, das aulas da preparação do batismo. E até pros
legionários, algumas explicações de algumas coisas que eles
não , então, como se diz, por dentro do assunto, eles me
perguntam, o que tá no meu alcance, eu explico. E muitas
vezes que cai a pergunta eu não resolvo, mas eu levo pro padre,
107
a gente tem que discutir e resolver o problema e tem que dar
resultados pra eles. E sempre...o catequista o padres deram
uma responsabilidade que eles ficasse mandando no povoado,
não que ele ficasse, como se diz, o manda-chuva, mas que ele
ficasse dominando aquele povoado, de acordo também, em
contato, com ele. Pedindo as opiniões dele, e dando as da
gente, pra ir concordando tudo,, pra não viver assim se
chocando. Porque se a gente dizer só pela conta da gente, e o
padre sem tá sabendo, quando vai no conhecimento do padre,
talvez num tá fazendo certo.”
Assim o catequista mantem sua autoridade dentro dos limites
marcados pelo poder do padre e pelo tipo de saber que ele domina (responsabilidade de
direção, dar aulas, explicações com base no saber letrado). Por outro lado, é preciso que
o catequista, assumindo e radicalizando a ideologia de elite que lhe transmite a missão,
consiga cooptar alguns membros de seu povoado para integrar as novas instituições,
inserindo-os no mesmo tipo de relação que ele mantem com o missionário. A categoria
“serviço” é a que melhor define essa relação, designando tanto as tarefas que são
obrigação do catequista e das quais ele presta conta ao padre quanto as tarefas que, por
delegação, ele cobra do seu grupo.
“(o presidente da legião) ele encarrega os legionários de fazer o
serviço pra semana, como agora, amanhã a gente dá os serviço
pra semana que entra. Quando chegar no domingo eles vão
prestar conta daquele serviço. (É você que resolve o que eles
vão fazer, ou eles que discutem?) . Não, sempre eu dou o
serviço, porque eu vou na Cúria em Bequimão, lá a gente vai
discutir como é que tá, então a gente traz o serviço de lá.”
É interessante notar que a categoria serviço é usada geralmente no
discurso sobre a prática econômica, indicando um dos componentes da relação de
patronagem, ou do conceito de patrão de um modo geral, em oposição ao modelo de
autonomia do trabalho da unidade doméstica42
. É através do modelo de patronagem que
o catequista e seu grupo será classificado pela cultura local, como veremos adiante.
42 Uma análise que estamos realizando sobre a vida econômica local, mostrou que o conceito mais global
de patrão tem dois componentes: aquele que é dono do serviço, isto é, da oportunidade de trabalho
remunerado monetariamente e, como consequência, por poder pagar empregados, aquele que não entra no
sistema de troca-de-dia baseado em relações de reciprocidade entre pessoas do mesmo status (ver nesse
trabalho, o item “Racionalidade da Economia Camponesa” ). Os tipos de patrão que ocorrem são: o
patrão da pajelança ( o encantado), o patrão do alugado (Trabalho remunerado eventual, complementar a
renda da unidade doméstica), o patrão do empregado (trabalho fixo), o patrão dono da terra (a quem se
paga o foro), o patrão do comerciante (“o patrão da cidade”) e o patrão instituições-oficiais (Igreja e
Estado).
108
Definindo-se enquanto funcionário e tentando repetir as categorias que
percebe como básicas na ideologia missionária, o catequista atribuirá a legitimidade de
sua subordinação aos princípios últimos da ideologia católica:
“ gente é mais ou menos representante do padre no povoado...E
mesmo sendo pesado, vem do padre. Receber ordens do padre
é receber ordens de Deus” (Documentos da Missão, 1972-B, p.
3)43
Ou seja, a relação catequista-padre mantém as mesmas relações de
sentido que a relação padre-Deus. É o que permite também, a sustentação da visão
elitista que o catequista assume em relação a sua cultura, alimentada pelo poder que a
aliança com o missionário lhe confere:
“Nós somos criticados como povo do padre, mas não devemos
se importar com isso. Nós temos responsabilidades, mas eles
falam mal da gente. Nós que acompanhamos parte do padre
não devemos se incomodar pra não ficar no mesmo caminho
que eles tão.”
Por fim, tomando ainda o nível em que o catequista repete a
linguagem e os valores missionários, o seu discurso comporta as mesmas categorias
pelas quais o padre classifica a cultura local. Falando das causas do pouco engajamento
nos povoados, os catequistas afirmam:
“Falta de conscientização: o povo quer receber sempre, mas
não quer dar para os outros”. “No campo religioso, porque não
é lucrativo, nada pega”. “Quando eles se defrontam com as
responsabilidades, eles saem” (Documentos da Missão, 1971-
B, p. 19)
Mas se no contexto direto da relação padre-catequista, a tendência é a
de repetir radicalizando o modelo missionário, fora dele o catequista surge como um
agente social ambíguo em sua ideologia e em sua prática, incapaz de romper com o
conhecimento religioso engendrado por sua cultura, já que é dentro dela que ele
permanece desenvolvendo sua prática social, e incapaz de aderir integralmente aos
novos valores missionários que, na verdade, cobrem apenas uma parte das relações
sociais locais. Esta ambiguidade se mostra principalmente em relação ao sistema
religioso local, em particular à pajelança. Os ataques violentos da repressão missionária
não chegam a desestruturar o modo pela qual a cultura cabocla organiza a sua vida
religiosa e seus funcionários para tais fins, de modo que os rezadores, benzedores e
pajés atuam em áreas específicas com legitimação garantida pela população local. 43 Cf. acima, nota 13.
109
Enquanto membro desta cultura, o catequista, continua a se utilizar de código para
nortear sua ação social, mas enquanto elemento que tem sua lealdade dividida com
outro sistema que o fez seu funcionário e representante, terá que empreender um esforço
de adequação mútua entre dois códigos, o que nem sempre é logicamente possível.
“P- Você falou de pajelança, queria que me explicasse melhor o que é..
R – Eu pouco entendo, conheço a pajelança porque fui em duas. Diz que, parece que
uns espírito, diz que mãe d’agua invoca, penetra, no corpo e quer dizer que aquele
corpo não fica sabendo dela, fica como quem tá dormindo (riso) e só quem tá
falando é aquela mãe d’agua.
P - E a mãe d’agua é o que?
R – Eu não sei o que é. Mãe d’agua diz que é espírito que tem no fundo da água. Eu
não entendo quase isso. Eles fazem uma festa a noite toda, um baile... Aqueles
tamborzinhos, eles batem, ela dança, aquela pajoa, né, dança, pula, brinca, e ensina
remédio, benze, diz que encruza. Encruza, eu não sei como é isso, agora diz que...
(Segue uma descrição minuciosa da cerimônia de encruzamento de um pajé.)
P – E esses remédio curam?
R- Já curou alguns. Agora dizem que cura por causa que eles tem a fé naquele pajé.
Diz que ficam tão creditado, né,o pajé é tão creditado pra aquela pessoa, porque diz
que só do crédito faz curar.
P – E os da Legião não podem assistir à pajelança?
R – Dizem que não...Desde o bispo, parece que o bispo exigiu isso. Os padre é que
eu sei que exigiro, que não presta.
P – Mas eles dizem que não presta?
R – Que não presta. Dizem que a pajelança é mentira.
P – Também a mãe-d’agua o padre falou que é mentira?
R – Sim, mas mãe-d’agua eu digo que existe, porque eu já achei um livro já velho, e
contava que existia. Dizia assim, que tudo que existe, que tem um nome, tudo que
tem nome, diz que é realidade, realmente existe aquele objeto, aquela coisa. Por
exemplo, Deus a gente não olha, mas existe. Então tudo quanto é tipo de espírito
existe. E outra coisa, como amor, saudade, amizade, várias dessas coisas estão numa
parte invisível mas que existe. Porque tem um nome. Sim, e diz assim no livro que a
gente deve então acreditar que realmente existe a mãe-d’agua.
P – E lá em X a maioria acredita, não é?
R – A maioria das pessoas acredita, agora eles faze o seguinte. Só de tanta pajoa que
tem... então eles dizem que dentro dessas todas, de dez pajoas pra ter uma que tem
mãe-d’agua, que é realmente verdadeira...E tem pajoa boa aqui no X, tem uma por
nome...Ela já curou muita gente.
P – O pessoal da Legião não frequenta essas pajoas que são melhores?
R – Não, quer dizer, lá em X ninguém visita pajelança, não.
110
P – Porque tem medo do padre ver?
R – A gente, quer dizer, nós queremos cumprir aquela exigência, né, queremos
obedecer àquela ordem que ele dá. Mas até eu vou dizer que é bom a gente se
examinar deles novamente, conversar sobre isso.”
Esta longa citação permite desvendar os mecanismo ideológicos pelos quais o catequista
soluciona a ambiguidade em que se encontra. Primeiro é preciso notar que a situação da
entrevista colocava o informante na exigência de definir-se enquanto catequista, mas, ao
mesmo tempo, lhe exigia uma defesa de sua própria cultura. Daí aparecem, de inicio, as
expressões “não sei”, “não entendo”, “diz que”, como tentativa de prova do seu não
envolvimento com práticas condenadas .Aos poucos , porém , se revela no discurso o
mesmo tipo de conhecimento comum a todos os membros de sua cultura, e sua adesão
conceptual a ela(a crença a cura e a mãe d`água), embora venha discriminados alguns
dos traços que a ideologia missionária acusa como ilegítimo(a festa , divertimento
profano , num contexto que se pretende religioso).Tentando adequar o julgamento
missionário a defesa da tradição local, o informante lança mão tanto dos critérios
locais(a distinção entre pajés falsos e verdadeiros), quanto de critérios próprios a
tradição dominante(para provar a existência da mãe d`água , baseia-se no saber letrado ,
em oposição aos livros sagrados católicos ).
Nesse nível do discurso do catequista começa fazer-se menor a distância que o separa
dos outros membros de sua comunidade. Nossa própria observação revelou que, ao
nível da prática, o catequista recorre normalmente aos funcionários religiosos
específicos de sua cultura (rezadores, benzedores, pajés),segundo os tipos de
necessidades que são comuns a todos(promessas , feitiços, assombramentos, mau-
olhado, as diversas classificações de doenças).
Por ultimo, existe um nível de discurso em que o catequista assume integralmente o
quadro de referencia da sua cultura, combinando a mensagem religiosa missionária com
o sistema religioso local, de acordo com as funções especificas que a ideologia local
lhes atribui, sem achar nisso contradições que só apareceriam no contexto de uma
visão estritamente missinária.É assim que um catequista afirma crer em dois tipos de
batismo: o de casa , para livrar de mãe d`água , que dá febre ;e o da igreja ,para “abrir o
caminho de Cristo” , “da salvação”; ou uma definição do mesmo informante ,
explicando o que é ser católico :”é crer em Deus e nas imagens , nos santos de pau”. Um
outro catequista ,referindo-se a nova exigência de que os pais e não os padrinhos
segurem a criança durante o batismo( e que representa para a igreja a responsabilidade
dos pais na educação cristã da criança) , adota a explicação mais corrente entre os
moradores e que , naturalmente , lhe parece a mais lógica para esclarecer este aparente
absurdo:
“Porque os padres exige que se a criança tá chorando , se ele deixar nas
mão dos é padrinhos que é uma pessoa estranha , que tem vez que é uma
pessoa lá de longe que a criança nunca viu , então enquanto tem aquela
111
preparação, antes da hora do batismo deve as mães garrar , porque são
costumada com as crianças”.
5.3.1.3 – O CATEQUISTA COMO CATEGORIA DA CULTURA LOCAL
Para completar o quadro de análise da instituição catequista é preciso vê-la a
partir da ótica da comunidade camponesa local. Apesar de existir aqui dois tipos de
informantes , segundo sejam participantes ou não das novas instituições ,suas opiniões
nesse nível são de tal modo semelhante que a distinção se torna desnecessária ;ou
melhor , ela serve apenas para constatar a existência de um nível de discurso em que a
adesão formal a tais instituições não significam na verdade uma plena adesão
ideológica. Citaremos as definições de alguns dos informantes.
“Catequista são aquelas pessoas que o padre quer bem. São as pessoas do
peito deles. Então eu penso assim que os padres deu a mão pra eles
,porque de certa parte eles ajudam eles, eles ajudam os padres ,que de
certa parte dão dinheiro ,gratificam eles...Quem sempre tem mais fiança
nele é o padre ,porque sempre ajuda o padre nessas missa. Lê o
mandamento da lei de Deus , né ?certa religião ,tal , bota no caminho.
Então o padre enxerga mais ele. Ás vezes ele Lê a bíblia no começo da
missa que é uma pessoa que ajuda o padre naquela parte”.
“... foi fortuna pra ele .Ele já foi parece dois ano ou três pra
Guimarães.(foi fazer o que em Guimarães?)Estudar .(o que ?)a
ler.(aprender a ler? ) é , que ele tinha pouco estudo.(ele não sabia ler ainda
?)sabia , mas pouquinho, acho que ele estudou 10 ano,29 ano, coisa
assim. Ele foi , o padre pagava o estudo dele lá , e ficava pagando
mantimento pra mulher , ainda de lá pra cá ,tem sido uma vantagem o
padre é muito bom pra ele”.
“O catequista, ele estuda pra ajudar o padre, pra na vez de fazer as
palestras pras pessoas manda batizar os filhos, as vez quando o padre não
vim, ele dá. E também pra ajudar nos legionários , se ele precisar de
alguma coisa , ele vem e o conta o que foi que eles estudaram por lá.(No
povoado ele faz o que ?) ele aí , ele ajudou a dar as palestras de
dezembro pro batismo das crianças , na hora do batizado também ele já
ajuda o padre, o padre dá uma coisa pra criança , ele dá outra, e sempre
eles vão lá nas reuniões ,sempre eles tão chamando. Eles tão dizendo que
eles tão formando esses catequistas porque daqui a uns ano eles vão
embora e na certa quem vai ficar fazendo batizado são os catequistas.
Não se trata , aqui de indagar sobre a veracidade factual de tais afirmações ,
mas tentar compreender a sua veracidade sociológica ,isso é , que princípios sçao
usados pela ideologia camponesa para definir a nova relação encarnada pelo catequista
.O principio principal parece ser o da patronagem ,que surge como modelo de relação
em diversas áreas da cultura local e a qual já nos referimos ao abordar o conceito
global de “patrão” e a categoria “serviço”(v.nota 23).Embora este principio se aplique a
áreas internas a sociedade local ,noutros níveis ela as ultrapassa, passando a definir as
relações externas que vinculam essa sociedade ao mundo social mais amplo que a cerca.
São esses vínculos externos que permitem a certos indivíduos , engajados em relações
112
de patronagem , o acesso a mecanismos de Ascenção social e prestígio , posições
diferenciadas que a comunidade camponesa só integra na medida que originem de
fontes externas a ela própria. Se no caso da relação catequista-padre, é este o principio
definidor, é porque o padre mantem dessa sociedade uma posição estrutural , como já
vimos , mediador com as fontes de poder(domínio de instituições e de um tipo de saber
) da sociedade nacional. É importante notar nesse sentido, que , enquanto a missão vê a
sua ação como penetração e fixação de sua presença institucional nas comunidades
locais ,estas , ao contrário, selecionam do mesmo fenômeno apenas os aspectos de uma
relação pessoal especifica ,de patronagem , que, no conjunto de sua vida social, serve
para definir relações em grande parte externa a ela própria , concebidas como
extraordinárias (“vantagem” “fortuna”) em relação a regra geral .Assim, o que o
camponês percebe não é a presença renovadora da igreja na região .mas a reiteração do
modelo tradicional de relação com o padre , patrão entre outros.
Como categoria referida ao padre , o catequista recebe dois tipos complementares
de definições .Primeiro , é percebido ao nível de uma relação pessoas de amizade25
que
pode estender-se a todos que tem contatos mais constantes com o padre. A escolha de
um individuo será sempre explicada nos termos de um “agradar-se” reciproco e
aparentemente gratuito .Em seguida ,vem o nível de uma relação contratual que
desdobra e explica o primeiro.
Se o catequista desempenha a função de representar o padre, ele está prestando um
serviço ,isto é, está desempenhando um tipo de trabalho que , com tal, deve ser
remunerado .A reciprocidade padre-catequista pode abranger tanto a remuneração
monetária ,como a troca de serviço por outros bens valiosos dos quais só o padre é
detentor (educação ,favores, viagens, facilidades em relação instituições da sociedade
dominante).Quanto aos serviços prestados pelo catequista , sua área fica definida de
antemão :ele é um subordinado do padre , podendo substitui-lo em algumas funções
:será o que domina o saber letrado , o que traduz a palavra escrita de Deus , o
conselheiro que “bota no caminho da religião” e o eventual assessor do padre nos rituais
de entrada no social(batismo e missa).
Mas a definição dessa área de competência, por referencia a área de
competência do padre, não faz do catequista um perfeito substituto daquele.
Principalmente pela razão logica de que ele não é um elemento de fora da comunidade,
como o padre, capaz de cumprir integralmente o papel de mediador com a sociedade
nacional, e de ser , enfim ,um protótipo do patrão .Por outro lado, como funcionário
religiosos , o padre tem que ser, necessariamente , um “outsider” , com poderes distintos
dos demais funcionários religiosos locais. É nesse sentido que surge , muitas vezes , um
tipo de contestação a legitimidade do catequista , como relata um missionário :
“Eles acham que eu deveria vir celebrar missa aqui todo mês .Se eu
esperar que o x(catequista)explique bem o que é, vai custar muito. Ele diz
113
uma poção de coisas, mas eles não dão conta de gravar tudo. Também o x
(catequista) não é padre e quer fazer mais do que o mandado .Aula de 3
hhoras é demais.Se eu viesse celebrar missa de vez em quando ,poderia
dar mas explicações e o povo poderia aprender melhor”.
5.3.2 Modelos Genéricos De Apreensão Das Novas Instituições
A análise do catequista como categoria da cultura local nos introduz a um nível
mais global no qual a ideologia camponesa coloca as suas definições sobre a presença
missionaria na região ,
Tais modelos genéricos de apreensão se colocam em três níveis de discurso ; estes se
hierarquizam pelo principio de uma progressiva delimitação das áreas de relações
sociais dominadas pelo código da cultura missionária e pelo código da sociedade local.
5.3.2.1 O Nível Do Povoado Como Uma Unidade Afetiva
O povoado como unidade afetiva é uma categoria que se constrói a partir da
ideologia do parentesco em seu aspecto mais globalizante(ver Prado ,R.,p.27).Nesse
nível a comunidade local é percebida como um todo uniforme e, enquanto tal
relacionada aos outros mundos sociais conhecidos , também estes vistos a partir de uma
perspectiva globalizante. No caso que nos interessa, essa comparação se mediatiza pela
categoria padre e sua posição estrutural em relação a sociedade local ,isto é , a
posição de veículo da cultura dominante .Por outro lado , se a categoria padre está
historicamente construída a partir do processo de colonização decorrente das inovações
que a igreja introduziu em seu estilo de atuação na área .Percebendo tais inovações e
tentando explica-las , a ideologia camponesa acrescenta uma dimensão temporal que
servirá para marcar dois momentos históricos que percebe como distintos , referindo a
imagem global de seu mundo social na medida em que percebe uma redefinição no
estilo de atuação missionária. Assim , num discurso genérico , toda presença atual da
cultura dominante (isto é , da igreja )será definida como “progresso” , em oposição a um
passado de “atraso”.
“Sim , senhora ,desenvolveu mais o povo , porque os outros era mesmo
que bicho do mato. Porque les(os padres) vieram com essa legião , com
essas palestra, estas missa todo sábado e domingo do primeiro mês
.Entoce melhorou mais ,muito. O pessoal ficou todo mundo mais aberto ,
era um pessoal tudo tolo , então ficou mais encaminhado .Não sabiam um
reza nenhuma , não sabiam uma reza nenhuma, não sabiam o que era uma
legião , nem uma missa , nem nada. Missa tinha só lá uma vez no ano.
Agora é todo mês”.
A categoria progresso, portando, se refere , em principio, a uma presença permanente
da religião oficial , com a consequência de democratizar uma parte do saber
114
dominante(possibilidades de conhecer e acompanhar as rezas do padre),em oposição a
um passado em que todos eram “tolos” , isto é , não dominavam tais conhecimentos. O
progresso também aparece para caracterizar a oposição e competição entre povoados ,
mediada pelo prestígio da presença do padre:
“Aqui é um dos povoados que o padre tinha melhor aceitação. Ele
dizia mesmo, viu, que nunca houve dia de missa pra ter poucas
pessoa. Sempre a igreja era superlotada e eles ficava muito
satisfeito. Tinha lugares aqui que eles chegava, não tinha
ninguém”.
Por fim, a noção de progresso pela presença da cultura dominante se expressa pela
ênfase na necessidade de mudar costumes locais para adequá-los a nova “lei dos
padres”. Nesta adequação aos valores atribuídos a cultura dominantes , aperece
simultaneamente a noção da ilegitimidade da cultura local. A “lei dos padres” significa
a proposição de princípios de conduta “certos”; valores morais(não brigar, não beber ,
não xingar, não frequentar muitas festas) e filiação ritual(casar-se no religioso , assistir
ás missas , batizar no padre , não frequentar pajelança); em oposição aos princípios de
conduta locais , “errados”.
“P. Por que o padre vai contra os costumes do povo?
R.Ele quer endireitar , que esse povo se endireite.
P. Ele acha que tá errado ?
R. Ele acha.
P. E o povo acha errado ?
R. O povo acha que teje certo , mas não tá , senhora.No omeço o
povo era muito chamado de nome , muito inguinorante.Hoje já é
mais difícil de encontar...embora que eles não vão assim na
legião.Mas sempre quando o padre faz reunião ,, enche aquela
tribuna , dá cheinho, homens e mulherer. Então já escutam muito
conselho.Já bem poucos tão com essa besteira”.
5.3.2.2- O