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ETNOGRAFIA NO BECCO DO COTOVELO: O OLHAR QUE NÃO QUER
VER1
Antonia Maria Rodrigues Laureano Carneiro2
Kadma Marques3
Resumo
O presente trabalho faz parte de minha dissertação do mestrado acadêmico intitulada
Etnografia no Becco do Cotovelo: relação de gênero entre os beccianos utilizo como
técnica complementar, a fotografia sendo utilizada como forma de mediação com a
prática etnográfica e dados coletados por meio da observação participante e do diário de
campo. Neste trabalho, faço o enfoco nas diferenças de gênero (ser homem e ser
mulher) e nos modos de utilizar e representar o espaço. Busca-se analisar os modos de
representar o espaço, a partir da categoria nativa “becciano” e “becciana”, tecidas na
cultura local empírica. A fotografia aparece como ferramenta fundamental na pesquisa
etnográfica, portanto, o que pretendo descrever e analisar se fará á luz da etnografia e da
fotografia. Percebe-se, portanto, que há presença maciça de homens que se utilizam do
espaço como um ponto de encontro e, em contraposição, um número ínfimo de
mulheres que trabalham no lugar. O Becco do Cotovelo apesar de ser bastante
movimentado e frequentado por vários setores da população sobralense, não tem muita
representatividade feminina. A figura feminina representa uma minoria. Estas exercem
as mais variadas funções “menos nobres”, ficam atrás dos balcões, atendem os clientes,
usam aventais, vendem algum tipo de mercadoria, enfim, procuram o espaço como
forma de adquirirem remuneração salarial.
Palavras chaves: Becco do Cotovelo; Etnografia; Imagem; Becciano(a); Gênero.
1. Introdução
Neste artigo proponho algumas reflexões sobre as diferenças entre o ser
“becciano” e “becciana”4 utilizando como recorte teórico metodológico a experiência
etnográfica e a imagem. A atuação etnográfica proporciona percepções sobre a prática
1 Este trabalho faz parte de minha pesquisa do mestrado acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade-
UECE 2 Mestranda em Políticas Públicas e Sociedade- UECE; Graduada em Ciências Sociais - UVA
3 Doutora em Sociologia; Professora do mestrado acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade –UECE.
4 O termo “becciano” é uma categoria nativa, criada pelos frequentadores do Becco do Cotovelo.
“Becciano”, usado majoritariamente no masculino (justificado pela presença maciça de homens), denota,
um sentimento de pertença, de reconhecimento e de valorização do lugar. Ou seja, implica que os
frequentadores mantêm laços estreitos de sociabilidades.
nativa e a utilização da imagem será um suporte como forma de objetivar essas
dinâmicas.
A utilização da fotografia é um modo de enriquecer a pesquisa uma vez que
elucidam dados e informações que não conseguimos dizer com palavras, mas que ao
mesmo tempo requer a tessitura das palavras para que o texto não se torne ambíguo e
polissêmico. A fotografia é um recorte da realidade, uma forma de representação do real
(ARAÚJO, 2000).
Na minha pesquisa Etnografia no Becco do Cotovelo: relação de gênero entre
os beccianos5, a fotografia está sendo utilizada como forma de mediação com a prática
etnográfica. Assim, a imagem está sendo uma nova forma de método que juntamente
com a prática etnográfica traz novos benefícios ao estudo empírico.
2. Pensando a diferença a partir do olhar etnográfico
Os beccianos e as beccianas que frequentam o Becco do Cotovelo na cidade de
Sobral/CE construíram ao longo das últimas décadas formas diferenciadas de ocupar o
espaço social. As diferenças de papéis e funções exercidas pelos (as) beccianos (as) no
Becco do Cotovelo parece velada a um transeunte qualquer que passa cotidianamente
pela ruela de comércios. Um olhar desatento, não ver aquilo que aparece apenas nas
entrelinhas, é mais fácil visualizar o que conhecemos.
Somente conseguimos ver aquilo que previmos, ou melhor, adquirir o saber
quando este tem significado para nós. Porquanto, quando um conhecimento não faz
parte de nossa estruturação do saber, passa despercebido, ou mal compreendido. Na
maioria das vezes, só conseguimos apreender sobre uma cultura ou particularidade
cultural quando desmistificamos nosso olhar e começamos a perceber o outro, a
alteridade. É essa desmistificação do outro a que Laplatine (1987) fala quando se remete
a ideia do “espanto provocado pelas culturas mais distantes de nós, cujo encontro vai
acarretar uma modificação do olhar que dirigimos para nós mesmos (LAPLATINE,
1986 p.15). Perceber o diferente implica um alargamento do olhar no sentido de
5 O Becco do Cotovelo é uma ruela de 7.5 m de largura e 75 metros de comprimento que corta
transversalmente as duas ruas paralelas, a Cel. José Sabóia e a rua Cel. Ernesto Deocleciano, onde há uma
variedade de lojas e comércios, situado na Cidade de Sobral. O espaço Becco do Cotovelo além de ser um
espaço de discussão política e social sobre os principais acontecimentos da cidade de Sobral é também
um ponto de encontro.
compreender que existem outras manifestações culturais e que, por sua vez, não somos,
em hipótese alguma, o centro do mundo.
Para que se compreendam as diferenças de gênero no que se refere às formas de
“habitar” o Becco do Cotovelo, se faz necessário esse alargamento do saber, direcionar
o olhar para as práticas que são tecidas diariamente no cotidiano do espaço. E foi esse
“espanto” sentido e vivenciado no campo de pesquisa que me possibilitou encontrar
entraves para pensar a questão de gênero. Enquanto pesquisadora, me despi (na medida
do possível) dos meus pré- conceitos o que viabilizou o “alargamento” do olhar. Não
penso aqui no olhar treinado e fechado a qualquer variação e ou mudança no objeto da
pesquisa, ao contrário, enfatizo o olhar a partir do devaneio em busca de algo pertinente,
que venha a fazer parte de minhas inquietações como também dos achados empíricos no
campo. “É a partir do método etnográfico que conseguiremos estranhar o que nos é
familiar compreendendo a nossa realidade por meio do treinamento do olhar” (IDEM, p.
16).
Há, por outro lado, diferenças singulares entre o ver e o olhar. Segundo
Laplatine (1987), o ato do ver seria associado a uma condição automática, espontânea,
portanto, vemos o que nos vem à frente, automaticamente, sem, no entanto, ter um
posicionamento crítico ou amigável sobre algo. “A percepção etnográfica não é por sua
vez, da ordem do imediatamente visto, do conhecimento fulgurante da intuição, mas da
visão (e consequentemente do conhecimento)”(IDEM, p. 17). Contudo, percebe-se que
o ver é a simples captação de imagens, no sentido de ser receptivo às imagens de forma
passiva e sem questionamentos, enquanto o olhar é a captação de sentidos e significados
a partir de um pensamento questionador é a capacidade de olhar bem e de olhar tudo,
distinguindo e discernindo o que se encontra mobilizado, e tal exercício [...]- supõe
uma aprendizagem (IDEM, p. 16).
O olhar não é um olhar treinado e direcionado, ao contrário, mesmo que de
forma temporária, fica livre, à deriva, para poder alcançar a dinamicidade “do campo”, é
uma tática de percepção entre o ficar atento e por outro lado, não criar rótulos a ser
seguido rigidamente. A percepção deve, portanto, está aberta para receber o inesperado,
o impensado. Isto é, nem sempre vimos o que queremos, muitas vezes, o campo nos
“mostra” um caminho imaginado, e é a isso que devemos está preparado.
Mas, afinal, quais as relações possíveis entre a fotografia e os (as) beccianos (as)
na construção do texto etnográfico?
A imagem fotográfica como método de pesquisa possibilita a captação de
detalhes não perceptíveis no campo empírico. A análise das fotos, em momentos
posteriores à estadia empírica me remete à tessituras antes não questionadas. Quanto ao
papel metodológico da fotografia, tem, portanto, significado imprescindível na
composição da etnografia do Becco. Poder comparar, a partir das fotografias, as
diferentes divisões do espaço e das funções ocupadas tendo como eixo divisor o gênero
sexual, poder dialogar com os beccianos e com as beccianas sobre a fotografia, sobre as
representações espaciais do espaço, estas técnicas etnográficas são possíveis a partir do
uso da imagem como recorte metodológico.
A dialogicidade se acentua a partir da visualização da foto, eles querem ver a
foto, exigem o modo como devo fotografar, escolhem o pano de fundo, o local e até
opinam sobre a qualidade da imagem. Perguntam se vai sair em algum jornal ou revista,
querem, de forma impositiva criticar ou elogiar o colega ou a si mesmo quando veem as
fotografias.
A fotografia viabilizou narrações de lembranças no tempo em que no Becco do
Cotovelo não podia ser frequentado por mulheres. Era considerado lugar estritamente
masculino. As mulheres que porventura, passassem por lá ficariam mal faladas. As
alunas do Colégio Sant’ Ana evitavam passar pelo Becco por que os homens ficavam
dizendo “engraçamentos” .
Ao observar uma fotografia do Becco do Cotovelo no século XIX pude perceber
as diferenças urbanas que diferenciaram o espaço. A rua quase deserta, não fosse a
figura esquálida de um homem a cavalo. E onde estariam as mulheres naquela época,
me perguntei por um instante: elas estavam em suas casas, indaguei instantes depois.
Com esta fotografia percebi mudanças no espaço urbano, se antes, a ruela do Becco era
transitável por transportes sejam estes cavalos, bicicletas ou automóveis, hoje é
permitido apenas o tráfego de pedestres. Se apenas homens podiam ali frequentar, hoje,
as mulheres também frequentam este espaço.
Com a modernização da Cidade, mudam-se também os percursos, as
configurações, as vias de acesso e assim, o que era proibido pode se tornar permissivo.
Os itinerários são reconfigurados para viabilizar as novas transformações.
Proponho uma reflexão sobre as diferenças sociais de gênero presente no Becco
tendo como instrumento de mediação o olhar etnográfico no campo empírico, a escrita e
o uso da fotografia. Estas técnicas como instrumento de informações, direcionam muitas
expressividades e olhares múltiplos.
O pensar é uma prática reflexiva que depende, dentre outras coisas, do olhar. Na
prática etnográfica o olhar e o pensar são práticas indissociáveis na construção da
imagem. O olhar, diferentemente da visão que é uma prática mecânica, é intencional, e
as formas de olhar são resultados de uma construção que é ao mesmo tempo cultural e
social (BARBOSA e CUNHA, 2006, p.54). Na análise antropológica, o olhar faz parte
de uma construção de aprendizagem para a captura de imagens para uma dada realidade.
A utilização da imagem audiovisual na Antropologia nos remete aos estudos de
Bronislau Malinowski em seu livro Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) e os
trabalhos de Mead e Batesom dentre eles: Sexo e Temperamento (1935) e Balinese
Character (1942). Embora esses (as) antropólogos não tenham sido os primeiros e nem
os únicos a utilizarem a imagem em trabalhos antropológicos ficaram conhecidos e
reconhecidos por serem ousados e inovadores.
Malinowski inicia sua carreira em um período de transformações
epistemológicas que se propunha uma remodelagem dos métodos empíricos das
expedições científicas. Ao invés dos relatos empíricos advindos por meio de
informantes e missionários, propunha-se que os próprios antropólogos fossem a campo
em contraposição ao método de gabinete até então empreendido. Malinowski se utiliza
da imagem no livro Argonautas do Pacífico Ocidental como forma de emitir no leitor a
sensação vivida e presenciada no campo empírico. “Seus textos etnográficos são muito
ricos em imagens. Neles os Trobiandeses são descritos em toda sua vivacidade e
humanidade”(IDEM, p. 22). Quanto ao livro Balinese Character (1942), Mead e
Bateson optaram pela utilização extensa de imagens o que evidencia o desafio inovador
de “construir uma análise na qual existisse uma circularidade entre a narrativa verbal e
visual” (IDEM, p. 32). A partir dessa proposta audaciosa e inovadora se consolidou nos
1980 um campo de estudos denominado de antropologia visual tendo como obra
referencial a Balinese Character como também os filmes produzidos por Margaret
Mead e Gregory Bateson.
A imagem como recurso de diálogo possibilita o cruzamento de olhares: o olhar
direcionado do pesquisador e do fotógrafo (na maioria das vezes são a mesma pessoa) e
dos sujeitos da pesquisa. Essa relação dialógica da imagem captada no cotidiano, nas
vivencias práticas do dia a dia possibilita a compreensão imagética por meio das teias
culturais e simbólicas a que estão inseridas os sujeitos sociais.
As imagens são representações de algo, não são a realidade. Constitui-se do
processo de abstração e da capitação imaginária do observador, Flusser (2002). Por
outro lado, quando se pretende aprofundar o significado e restituir as dimensões
abstratas, é preciso muito mais de que um simples deciframento de imagens, deve-se
fazer a leitura imagética buscando significá-la subjetivamente, o que é denominado por
Flusser (2002) de scanning. “O traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas
também impulsos no íntimo do observador. O significado decifrado por este método
será pois, resultado de síntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do
receptor”(FLUSSER, 2002, p. 15). Para se compreender a imagem de um modo geral,
os significados devem ser compreendidos à luz do deciframento imagético, da realidade
vivida e subjetivamente apreendida pelo observador como também da intencionalidade
sócio histórico e cultural do autor.
O processo de scanning tem como elemento central o olhar. Este que vagueia de
forma circular pela imagem buscando se situar no contexto imagético. E nesse vai e
vêm ininterrupto e constante de captação da mensagem (ou das mensagens), os
elementos vão fazendo sentido, vão adquirindo significados e pouco a pouco sendo
apreendidos. O tempo projetado pelo olhar é um eterno retorno (IDEM, p. 17). Nesse
sentido, o tempo destinado e direcionado à imagem estabelece relações dialógicas
significativas entre o fotógrafo e o etnógrafo, o que evidencia a representação da
realidade em um dado espaço temporal determinado.
O trabalho etnográfico direcionado a partir do olhar fotográfico estabelece ou
proporciona o estabelecimento de um posicionamento significativo a partir da realidade
presenciada pelo pesquisador (fotógrafo) no campo empírico e a história objetiva e
subjetiva de vida deste mesmo pesquisador, o que faz com que as imagens sejam
direcionadas a partir de seu interesse objetivo.
3. Olhando pelas lentes da câmara
Fotos 1.1 e 1.2
(Legendas das imagens)
1.1. Imagem no Café Jaibaras, um balcão separa os homens das mulheres.
1.2.Imagem no Café Aurora, as mulheres parecem ocupadas (lavando louças) ao
contrário dos homens que conversam despreocupadamente.
Nestas duas fotos podemos perceber oposições bem acentuadas no tocante à
diferença das táticas de fazer o espaço entre homens e mulheres. Em ambas as imagens
existem um balcão que separa os homens das mulheres. As mulheres estão fazendo suas
atribuições (servir aos clientes), enquanto aos homens, estão conversando, na maioria
das vezes, entre um grupo de amigos.
A diferença entre os papéis exercidos pelo homem e pela mulher (o becciano e a
becciana) denota certos pressupostos instigadores desta pesquisa. O Becco do Cotovelo
como um espaço de discussão política social e cultural, conhecido como o lugar da
democracia, separa a mulher do espaço público, ou seja, do lado exterior ao balcão,
reservando-a ou impedindo a participação desta no tocante as questões políticas e
sociais. Enquanto ao homem, está livre à propagação e proliferação das questões
públicas, o espaço lhe é portanto, inerente.
Mesmo que a mulher tenha saído de sua casa, (espaço privado) e esteja no Becco
do Cotovelo (espaço público), as funções relegadas as estas parecem continuar
similares. Em casa, o lugar relegado à mulher é a cozinha, espaço que na maioria das
vezes é oculto (pelo menos aqui no Brasil), um lugar reservado e escondido, existindo
paredes que separam a cozinha dos olhares da sala (espaço reservado aos homens). E no
Becco do Cotovelo, acontece algo parecido, existe o balcão que denota essa separação
entre o espaço feminino e o masculino.
Embora possamos perceber, a partir da imagem 1.1 e 1.2 que o balcão não
impede às mulheres de visualizar os homens, de ouvir as conversas, mesmo por que elas
têm que serví-los, entre um café e outro. Mas, enquanto os homens falam de política, de
economia, de religião, “elas” não podem ser ouvidas, estão submersas em situações
menos privilegiadas, ocupadas lavando copos, fazendo café, limpando o chão,
atendendo a um cliente ou algo parecido. Essa é a figura da mulher no Becco do
Cotovelo, tendo, portanto, o papel de secretárias e de ajudantes de tarefas consideradas
menos nobres, como fazer faixas ou panfletar (GROSSI, 1998, p. 2).
A realidade social assegura papéis sexuais distintos e distintivos para os sujeitos
sociais com sexo biologicamente diferente (BOURDIEU, 2002). Portanto, no Becco do
Cotovelo as mulheres se encontram reclusas às atividades rotineiras, tais como: vender,
lavar, atender ao cliente, por outro lado, os homens estão livres de obrigações rotineiras
e se utilizam das relações sociais para vivenciar do cotidiano político no Becco do
Cotovelo.
Qual o papel social da mulher nesse espaço? Estas exercem as mais variadas
funções “menos nobres”: ficam atrás dos balcões, atendem aos clientes, usam aventais,
vendem algum tipo de mercadoria, enfim, se utilizam do espaço como forma de
adquirirem remuneração salarial.
A divisão das funções e papéis sociais está, em nossa sociedade, condicionada
ao sexo, como uma significação social. “A divisão sexual do trabalho, mediada por
situações historicamente dadas entre pessoas de sexo oposto, fundamenta-se na ideia da
relação antagônica entre homens e mulheres, mas também nas relações de exploração
que sofrem os sexos” (ALVES, 2013, p. 274). Nessa concepção de exploração dos
sexos, há sempre o que exerce dominação e o outro que é dominado, isto é, o poder é
exercido do homem (dominador) à mulher (dominada) numa relação naturalizada e
legitimada socialmente.
Assim, o masculino e o feminino se diferem não apenas pelas características
biológicas, mas e, principalmente, pelos conjuntos de atribuições diferentes a que são
direcionados na vida social. Opostas e arbitrárias, os papéis sociais do ser homem e do
ser mulher recebem denotações objetivas e subjetivas e, portanto, se reproduzem.
A homogenização do pensamento e a razão para a classificação e diferenciação
de gênero são associadas a fenômenos naturais e, portanto, internalizados e
naturalizadas. A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”.
A divisão entre os sexos, parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por
vezes para falar do que é normal, natural a ponto de ser inevitável: ela está
presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas, (na casa, por
exemplo, cujas partes são todas sexuadas), em todo mundo social e, em
estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como
sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU,
2002, p.8).
A construção dos papéis sociais com base na diferenciação sexual é aceita como
a normalidade das coisas. É o “constructo” aceito e legitimado pela sociedade. Está,
portanto, objetivado nas tarefas diárias do homem e da mulher e nos esquemas de
pensamento e percepção do mundo.
Percebe-se, portanto, essa heterogeneização na caracterização dos
espaços e lugares. Há, portanto, lugares em que a presença maciça de homens é visível.
O Becco do Cotovelo é um exemplo desse espaço masculinizado. Há homens por toda
sua extensão, grupos de homens que se reúnem antes de ir para o trabalho, homens
aposentados que se reúnem para conversar e passar o tempo, escritores, filiados
políticos, partidários fervorosos dos Ferreira Gomes, enfim, homens que pertencem ao
lugar, figuras do Becco do Cotovelo.
Um espaço naturalizado masculino, o Becco do Cotovelo, revela de forma
uníssona a representação majoritária dos homens no quesito a questões públicas, sociais
e políticas. A construção da representação social e política do espaço se dá sem
enunciação e o discurso é neutralizado de forma que “a ordem social funciona como
uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a
qual se alicerça”(IDEM, p. 9).
Os espaços sociais são construídos a partir de lógicas de divisão de corpos
sexuados, há espaços que são especificamente femininos como a cozinha, o quintal, o
supermercado, em contraposição, os bares, boates, cafés (especificamente o Café
Jaibaras e o Café Flora, no Becco do Cotovelo), são espaços predominantes masculinos.
O papel que a mulher ocupa no Becco do Cotovelo se não é similar à sociedade Cabília,
traz uma breve lembrança, olhar no rosto, nos olhos, tomar a palavra publicamente -
são monopólio dos homens (BOURDIEU, 2002, p. 13), mesmo que a realidade de
Sobral não seja idêntica, até por que estamos à frente historicamente, meio século, as
mulheres ainda estão afastadas dos espaços públicos e não têm representatividades
política, social e econômica.
As mulheres ocupam, no Becco do Cotovelo, posições marginalizadas, como
forma de excluí-las do ambiente masculino, da participação, do convívio mais estreito
como os assuntos naturalizados “de homens”. Ocupadas com seus “afazeres” cotidianos,
lavar louças, varrer, atender ao cliente, interiorizam as normas sociais do “ser mulher”
delegando as questões públicas ao homem. As condutas de marginalização impostas às
mulheres com sua exclusão dos lugares masculinos [...] excluem as mulheres dos
lugares mais nobres (BOURDIEU, 2002, p. 17).
As divisões de espaço a partir do gênero estão naturalizadas de forma que é
ratificada sem nem ao menos ser questionada. A uniformidade do pensamento, a
conservação da tradição da diferença entre os gêneros, intencional e motivada da
construção do ser “homem”, faz com que se crie e se reproduza continuamente maneiras
diferentes de ser e habitar um determinado espaço. O homem se utiliza do espaço para
fins de lazer e discussão política e social, por outro lado, a mulher se utiliza do espaço
para trabalhar, para conseguir uma remuneração salarial.
4. Algumas considerações
O uso da etnografia e da fotografia como método de trabalho de cunho
antropológico aponta muitas possibilidades. Falar de etnografia é ter em mente o campo
empírico, os atores sociais e as relações tecidas diariamente entre eles.
O olhar etnográfico visualiza (ou tenta visualizar) os achados empíricos
utilizando-se de técnicas que permitam encontrar o que se procura, isto é, o método e as
técnicas são escolhidos a partir da delimitação do objeto.
Dizer que existe técnica perfeita para este ou aquele objeto de pesquisa seria um
equívoco. A escolha possibilita a utilização de determinadas técnicas em detrimento de
outras. O pesquisador ao fazer as escolhas (levando em consideração uma série de
pressupostos), propõe um direcionamento, traça um percurso a ser delimitado pelo
campo empírico, escolhas estas que fazem parte do desenvolvimento da pesquisa.
A escolha da fotografia como um método complementar à etnografia clássica,
faz parte desse jogo de escolhas, da intersubjetividade do pesquisador e da relação
dialógica que se espera entre o olhar do etnógrafo e dos sujeitos envolvidos. Esta
escolha metodológica é apenas uma tentativa (dentre as possibilidades), um dos
caminhos possíveis para desemaranhar os achados empíricos.
As imagens, que por sua vez, falam coisas indescritíveis, assumem uma
textualização pela mensagem enunciada. Mas, por outro lado, a imagem precisa de
relatos textuais para que seja direcionado o olhar, para não correr o risco de gerar
pensamentos e entendimentos polifônicos que afastem o significado da imagem das
intenções de seu autor.
A fotografia tem como fundamento, neste trabalho, de gerar análises contextuais
entre as formas de ser becciano em contraposição ao papel social cabível à becciana no
Becco do Cotovelo. Enunciar reflexões, muitas vezes, intocáveis, devido à naturalização
das diferenças entre os sexos, é uma das funções imagéticas neste trabalho. Elucidar as
diferenças ambíguas de papéis sociais presentes no contexto citadino do espaço social
entre os homens que têm este espaço como lugar de lazer e as mulheres que ocupam
posições menos visíveis numa relação desigual entre o sexo.
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