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EU DIGO SEMPRE VARGEM GRANDE ESTÁ AGONIZANDO: reflexões teóricas e
metodológicas a respeito da narrativa biográfica.
Rafaela Paula da Silva*1
I. Introdução
Tudo isto é o real, isto é, o fragmentário, o fugaz, o inútil, tão acidental mesmo e
tão particular que todo acontecimento ali aparece, a todo instante, como gratuito, e
toda existência, afinal, como privada da menor significação unificadora. (Robbe-
Grillet, 1984 apud BOUDIEU, 2006, p.185, grifo nosso)
Esta é a terceira nota de rodapé do texto A Ilusão Biográfica escrito por Pierre Bourdieu.
Em que, o autor discute a biografia, ou de modo mais restrito, a narrativa biográfica em
entrevistas de História Oral. O cerne de sua reflexão é organização narrativa que dota os eventos
de sentidos determinados, já que, em princípio não possuem necessariamente relação entre si e
nem tampouco significado intrínseco. O fragmentário neste caso são os próprios eventos que se
sucedem de forma acidental ou tão particular e específica, que não poderiam servir para uma
generalização.
Para ele a tendência de buscar fatos representativos conferir-lhes sentido, construir
relações coerentes de causa e efeito, entre outras coisas, corresponde a aceitação do “...sentido
da existência narrada”. Que por sua vez configura o projeto, um conjunto de intenções
objetivas e subjetivas direcionadas, enunciadas em expressões como “desde sempre”, “desde
então”, “desde pequeno”. O projeto, conforme o autor expõe é mais uma construção discursiva,
evidenciada mais por estes termos, do que propriamente um processo biográfico. (BOUDIEU,
2006, p.184)
A noção de projeto permite uma articulação profícua entre memória e identidade.
Porque a memória formatada dentro de uma lógica processual impar forjaria a apreensão
constitutiva de uma identidade social, fornecendo uma narrativa coesa repleta de subsídios que
a fortalecem. Gilberto Velho associa isso ao indivíduo, como aquele que faz projetos, centrando
na valorização de sua personalidade e trajetória. Deste modo, não apenas significa o passado
*1 Bacharela em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), cursa atualmente Licenciatura em
História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é pesquisadora associada ao Núcleo de Pesquisa em
Ambiente, Territórios e Sistemas Agroalimentares (NEATS/UFRRJ). E-mail: rafaela.paula.rp@outlook.com.
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no presente subjetivamente, mas também e principalmente entreve e propõe metas para o futuro.
(VELHO, 2013, p. 64-65)
Outro aspecto frisado pelo antropólogo é que da organização dos fragmentos
memorialísticos e suas descontinuidades, depende em grande parte o sentido da identidade
social. E apesar disso, não é apenas algo feito subjetivamente, e sim intersubjetivamente.
Pressupondo a existência de outras pessoas com quem o sujeito interage e nos próprios termos
que enuncia essa interação. Na maneira como planeja suas ações, nos objetivos, como uma
forma de comunicação com o outro, se trata de negociar com a realidade conscientemente, no
contato com as circunstâncias do campo de possibilidades que o sujeito está inserido,
limitações, constrangimentos. Disto resulta a identidade social, que numa sociedade mais e mais
complexa tende a multiplicar-se em projetos, ao mesmo tempo que aumenta a possibilidade
contradições e conflitos. O dinamismo é uma característica do projeto, que permite sua
adequação ou reformatação, consequentemente a biografia valorizada está sujeita a constantes
revisões e reinterpretações. (VELHO, 2013, p. 67)
II. Memória biográfica, identidade social e memória histórica
Em sua conferência intitulada Memória e Identidade Social, Michel Pollack faz algumas
considerações sobre os elementos formadores da identidade social por meio da memória, são
eles:
Esses três critérios, acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou
indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos, personagens e
lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas pode se tratar também
da projeção de outros eventos. (POLLACK, 1992, p.202)
Um dos aspectos interessantes de sua colocação é que a apreensão de todos estes
elementos não se dá apenas de forma direta, mas também indiretamente. O que significa,
conforme Pollack desenvolve ao longo do texto, a possibilidade de vivenciar situações,
conhecer personagens e lugares através de mecanismos diferentes, por exemplo, relatos,
imagens, textos. E de alguma maneira interiorizar estes elementos em sua narrativa individual,
de tal maneira que pode ser até difícil determinar se o indivíduo participou ou não diretamente
do evento. Não se trata exatamente de hierarquizar memórias, entre as mais ou menos reais, e
sim reconhecer outras referências, além da experiência empírica, como elementos formadores
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da narrativa da história de vida, a possibilidade de “uma memória quase que herdada”.
(POLLACK, 1992, p.201)
Os acontecimentos, Pollack categoriza entre aqueles vividos objetivamente e outros que
foram vividos “por tabela” pela coletividade de que o sujeito participa, ou no extremo que
ocorreram contemporaneamente sem vínculos formais com o sujeito ou com seu grupo,
distantes espacialmente, por exemplo, uma ditadura ou guerra. Então, por algum aspecto da
socialização o sujeito ou grupo, pode sentir identificação com isso, tornar um marco de memória
pessoal e inclusive transmiti-lo ao longo do tempo.
Halbwachs que é um dos referenciais utilizados por Pollack para discutir a memória,
parece por outro lado desenvolver um tipo de categorização interna para pensar a memória de
eventos não vividos, principalmente os que possuem alguma importância histórica. Bem como
as formas aumentar, desenvolver essas lembranças dos fatos históricos...
Quando eu os evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros, que
não vem aqui completar ou fortalecer a minha, mas que é a única fonte daquilo que
eu quero repetir. Muitas vezes não os conheço melhor, nem de outro modo, do que os
acontecimentos antigos que ocorreram antes de meu nascimento. Carrego comigo uma
bagagem de lembranças históricas, que posso ampliar pela conversação ou pela
leitura. (HALBWACHS, 1990. p. 54)
E os lugares? São aqueles que possuem um forte vínculo com a memória, não
necessariamente expressos por uma cronologia exata. Podem ter sido cenário de algum fato
pelo qual a pessoa nutra apreço, monumentos de comemoração e memória pública ou
longínquos no espaço-tempo que servem como referencial identitário, como no caso de
descendentes de imigrantes que guardam tradições e memória dos países de origem.
As pessoas ou personagens por sua vez podem ter sido um envolvimento direto familiar,
uma vivência compartilhada ou serem personalidades contemporâneas com quem se
desenvolve algum tipo de identificação. Podem ser também personagens de outro tempo, como
personagens históricos ou de um romance. A memória social é principalmente fruto destas
interações, mais ou menos complexas, próximas, distantes que formam o caráter individual a
identidade social. Absorvendo e produzindo cultura:
A transmissão cultural entre as gerações é tão antiga quanto a humanidade, nascida
que é da condição humana fundamental. Nossas vidas constituem uma fusão entre
natureza e cultura; no entanto, natureza e cultura estão em contradição. Sendo a
cultura a essência daquilo que converte indivíduos humanos em grupos (o núcleo da
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identidade social humana), sua continuidade é vital. Todavia, em contraste com as
pretensões da cultura e representar a tradição através dos séculos, as chamadas
verdades eternas a crua brevidade da vida humana. Daí a necessidade universal de
transmissão da cultura entre as gerações. (THOMPSON, 1993, p.9)
A transmissão da cultura é forma de continuidade, contra a morte. De modo que, a
resposta a brevidade individual é a continuidade da cultura coletiva mantida pela memória.
Thompson em seu texto, como Pollack, parte do pressuposto que a memória é sempre coletiva
(HALBWACHS,1990, p.26). O sujeito transita para ele, entre grupos diferentes e cumula
lembranças que formam se aparato cultural. Embora claramente exista uma preponderância na
cultura familiar para formação individual é disso que se trata a memória individual.
Seria o caso, então, de distinguir duas memórias, que chamaríamos, se o quisermos, a
uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória pessoal, a outra
memória social. Diríamos mais exatamente ainda: memória autobiográfica e memória
histórica. A primeira se apoiaria· na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte
da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a
primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma
resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um
quadro bem mais contínuo e mais denso. (HALBWACHS,1990, p. 55)
A memória do país ou da cidade em que o sujeito vive é maior, porque se refere a mais
pessoas, um espaço mais amplo e não está presa ou ciclo vital dos membros, antes se desenvolve
e permanece abarcando outras vidas gerações. A memória da própria vivencia seria mais densa,
embora menor, disso resulta a importância do núcleo familiar para a transmissão de valores, da
cultura, o aprendizado da linguagem, habilidades domésticas modelo de comportamento, visão
de mundo. (THOMPSON, 1993. p. 10)
A primeira coletividade em que sujeito se insere é a família, em suas pesquisas
Thompson percebeu que a tradição, ou uma família estruturada e segura não era
necessariamente garantia de ascensão social podendo inclusive corroborar para permanência no
mesmo nível. A transmissão de um conhecimento familiar não se refere ao conhecimento
remoto, mas recua no máximo até os bisavôs. O grupo familiar “...é um sistema estruturado de
relações interpessoais mantido a base de certos pressupostos (geralmente não declarados) ”
(THOMPSON, 1993. p. 12-13)
III. História de vida e enunciação narrativa do eu nas entrevistas de História Oral
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Pierre Bourdieu usa o termo ilusão retórica ao se referir ao “...relato coerente de uma
sequência de acontecimentos com significado e direção...” (BOURDIEU, 2006, p. 185). Nesse
sentido a narração da vida não existe previamente formulada, é algo construído de maneira
conjunta, por meio do contato entre o entrevistador e o entrevistado. E, se por um lado o
entrevistado se preocupa em contar as coisas da melhor maneira possível dando sentido e
significado a sua trajetória, o entrevistador tende a receber e aceitar essa construção pela própria
maneira como se dá a entrevista. Uma situação artificial em que dois seres interagem mediados
por uma máquina de escrever, um gravador, um bloco de anotações, um arsenal teórico e
metodológico. (PORTELLI, 2010, p.20)
No texto História Oral como gênero Alessandro Portelli demonstra que a História Oral
assim como um relato completo não existe naturalmente. Porque as coisas no cotidiano são
contadas de forma fragmentada, quando surge a ocasião em pedaços, episódios, por vezes
repetidos, que apesar disso, não se encontram contextualizados dentro de uma lógica biográfica.
Trata-se, portanto de um discurso dialógico em que, a própria presença física do entrevistador
e a forma como ele apresenta a si mesmo e sua pesquisa interferem ativamente no resultado.
(PORTELLI, 2001, p. 10-11)
Assim “A entrevista, implicitamente, realça a autoridade e a autoconsciência do
narrador e pode levantar questões sobre aspectos da experiência do relator a respeito dos quais
ele nunca falou ou pensou seriamente. ” (PORTELLI, 2001, p. 12) Nesse processo, segundo
ele, também o esforço de narrar é expresso pela linguagem ou “linguística socializada” que
incluirá elementos da comunicação social, formas que locutor conhece o sentido e tenta aplicar
em sua performance visando, por exemplo, o efeito dramático ou a empatia.
Em seu texto Portelli discute principalmente a especificidade da História Oral como
gênero discursivo que entrelaça o oral e o escrito para comunicarem-se mutuamente a respeito
do passado. Em que, se evidencia a consciência da historicidade do indivíduo e seu papel na
história da sociedade, isso talvez inclusive faça com que a História Oral alcance sua proposta
de maneira mais intensa quando lida com pessoas comuns e não necessariamente
personalidades da vida pública. (PORTELLI, 2001, p. 13-14) Porque estaria efetivamente
construindo um novo discurso de forma dialógica, a respeito da sociedade a partir de uma
pessoa que até então não tido essa oportunidade e não apenas lidando com uma formulação
experimentada diversas vezes.
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Suponho, então que o grande problema seja até que ponto é possível entrar em contato
com o outro e compreender sua realidade. Sempre existe uma barreira: A arte multivocal da
História Oral é um ensaio que formula esse estranhamento causado pelos limites da
compreensão. Em princípio, discorda de que apenas o locutor está sendo analisado, se trata de
uma entrevista, portanto, um entre olhar, ambos estão a mercê da observação. (PORTELLI,
2010, p. 20) Isso significa que o discurso do entrevistado, em alguma medida irá se ajustar as
referências que percebe vidas de quem o questiona. O autor cita o exemplo de um sindicalista
que foi entrevistar e antes de começar a contar sua vida lhe perguntou se ele era filiado ao
sindicato, após ouvir que sim inicia seu relato.
A esposa do entrevistado conta seu relato em outra ocasião e em determinado momento
chega ao tema conflitos raciais. Em sua colocação demarca uma linha, ela descreve que ao
longo de sua vida ouviu e viu histórias de violências cometidas por brancos contra negros. Então
mesmo que nada tenha ocorrido diretamente com ela, reconhece essa distância, esse perigo e se
sente desconfiada. A conclusão do autor é basicamente “Sempre existe uma linha, sempre existe
uma barreira, diz a Sr. Cowan – e a boa-vontade e as boas maneiras não são suficientes para
ultrapassá-la. ” (PORTELLI, 2010, p. 33) Outra conclusão indireta é que o entrevistado que
determina até onde se permitirá ser invadido, e que oralmente essa barreira vai ser mais ou
menos definida dependendo do testemunho os limites naturalmente vão se diluir ou adensar.
Porém na escrita histórica essa linha vai se tornar um muro definido, tomando o controle
daquele que enunciou para conferir uma lógica textual. (p.35)
Talvez nos ocorra então, que a forma mais “verdadeira” de alcançar o discurso seria,
portanto, minimizar as interferências do entrevistador, anulá-lo por assim dizer. Segundo
Portelli essa é uma estratégia que só serve para captar o superficial que prontamente será
exposto a qualquer um. Enquanto um ouvinte respeitoso, mesmo que antagonista pode
alimentar uma boa narração. (PORTELLI, 2001, p. 22) E também como a entrevista é uma troca
de confiança, esperar que outro fale de si enquanto o próprio entrevistador tenta se esquivar é
um paradoxo.
IV. Análise de história de vida em entrevista de História Oral
Minha pesquisa investiga a culinária e os dispositivos sociais que propiciam sua
patrimonialização numa determinada comunidade quilombola, a Comunidade Cafundá
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Astrogilda, localizada no Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB – RJ). Compreendendo
patrimônio como uma possibilidade analítica, uma noção que comparativamente pode ser útil
para o entendimento de um grupo específico, por meio da análise de um elemento social que
adquire importância para o grupo. (GONÇALVES, 2003, pp. 22-23)
Para tanto, me utilizo de uma metodologia de pesquisa qualitativa construída em etapas
subsequentes e por vezes concomitantes: pesquisa bibliográfica, trabalho de campo com
observação participante, entrevistas e análise de dados (BONI; QUARESMA, 2005, p.70)
A pesquisa bibliográfica versou inicialmente sobre patrimônio cultural, memória
social, identidade, História Oral. Bem como, textos sobre comidas patrimonializadas,
objetivando compreender que mecanismos sociais tornavam possível e desejável este
reconhecimento nacional. Dois trabalhos importantes para esta reflexão foram o de Nina Bitar
(2011) e o Debora Simões de Souza Mendel (2014), que pesquisam a patrimonialização do
ofício das baianas do acarajé. Ambas tratam da comida como um aspecto material de um
sistema, um elemento social que possibilita reflexões mais amplas.
Torna-se, portanto, relevante pensar a valorização local disto dentro de uma reflexão
mais ampla, que englobe a discussão da patrimonialização de elementos da cultura afro-
brasileira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). E a
consequente possibilidade de tornar elementos potencialmente “patrimonializáveis”
ferramentas políticas para pautar demandas sociais de grupos ou comunidades. Mendel
relaciona este processo a “de lutas do movimento negro, abertura política, valorização da
herança da África, cujo próprio conceito de patrimônio sofreu alterações...” (MENDEL, 2014,
p.135)
A noção de patrimônio cultural, imaterial e/ou intangível, neste caso, confere valor
legalmente a culinária, como também a outras práticas culturais afro-brasileiras. Após o decreto
3.551 de 4 de agosto de 2000 que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial,
várias manifestações culturais têm sido registradas, a arte kusiwa, o ofício das paneleiras de
Goiabeiras, o círio de Nossa Senhora de Nazaré, o ofício das baianas de acarajé, a viola-de-
cocho e o samba de roda do Recôncavo Baiano, o jongo. Quando Martha Abreu publicou seu
Cultura Imaterial e patrimônio histórico nacional sobre esta temática em 2007, mais de vinte
manifestações culturais estavam sendo inventariadas para registro. (ABREU, 2007, p.235)
O Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB) foi ocupado, juntamente com seu entorno,
principalmente a Baixada de Jacarepaguá, no período colonial pelos grandes engenhos de
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açúcar. Associados a outros elementos importantes que proporcionassem condições de cultivo
e produção: plantio de capim para alimentar os animais responsáveis pelo transporte, uma
numerosa população escrava para plantar, colher, extrair madeira das matas, construir cercas,
caixas para o transporte do açúcar, carros de bois, construções e reformas em geral. Além de
seus mandiocais. (FERNANDEZ, 2009, pp.213-214)
No século XIX, com a decadência do mercado açucareiro, as grandes propriedades
esmaeceram, dando lugar a sítios e chácaras com uma produção doméstica. Voltada para
negociações locais e coexistindo com as grandes propriedades. Mais tarde as regiões serviram
ao de café, fazendas em que muitas vezes o dono não vivia. Neste contexto as relações com a
Corte, ou regiões centrais do Rio de Janeiro, propiciaram mudanças significativas, uma quebra
do isolamento. Proprietários puderam negociar seu numeroso excedente, construir casas
luxuosas, e cumular escravos. Apenas em fins do século XIX, com o fim da escravidão e o
declínio no comércio cafeeiro. Acompanhados de outras transformações socioeconômicas,
disseminação de doenças (febre amarela e malária). (FERNANDEZ, 2009, p. 214)
Fizeram com que a região, dentro da visão sanitarista em alta no início do século XX
passasse a representar decadência e estagnação. A derrocada dos altos ganhos seria evidenciada
pelo fracionamento das grandes propriedades, vendidas ou cedida a pequenos agricultores da
região, para cultivo em pequena escala. Neste contexto a Comunidade Cafundá Astrogilda é
um grupo que vive dentro do PEPB. O mito evocado para explicar o início da comunidade
remonta a compras de pequenos lotes de terra, de um grande proprietário, ou a doações destes
lotes.
Os grupos familiares que passaram a ocupar o território, plantando em pequenas
quantidades de vários alimentos, além de produzir carvão e criar animais. Escravos libertos
pelos grandes proprietários e outros trabalhadores. Alguns se referem a isso como o princípio
da comunidade hoje dividida em núcleos familiares, embora seja uma preocupação delimitar
ao redor do território destes núcleos, estão cientes de sua propriedade particular.
Numa tarde quente de agosto entrevistei a moradora Maria Isabel da Silva Santos que
foi casada com Jorge dos Santos filho mais novo da matriarca Astrogilda da Rosa Mesquita.
Em sua casa ela me recebeu para falar dos doces que havia preparado para a comemoração que
acontecia naquele dia e seriam distribuídos gratuitamente aos participantes, e relatar um pouco
de sua trajetória.
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Ahhh minha família, a minha família toda não, por parte de pai e mãe estão todos
mortos, a parte materna não conheci. Que dizer, eu vivi mais a vida da minha sogra,
mas a minha família é toda daqui. Minha mãe morreu com trinta e poucos anos, a
minha vó de parto, teve ela, teve um outro filho e morreu. E foi assim, praticamente
não conheci, eu sei, por exemplo que meu avô nasceu lá no topo que era sitiante, por
parte de pai. Depois virou ferreiro ali no largo, acho que foi o primeiro ferreiro daqui.
Eu lembro que eu era menina e vinham aquelas tropas imensas de burro serem
vendidas para os sitiantes daqui. Tudo era levado para Vargem Grande no Lombo de
Burro... e foi, eu cresci vendo tudo isso, e foi se acabando. Porque todo mundo foi
embora e isso foi ficando para trás, os mais velhos morrendo. Um tio avô dele (aponta
vagamente para o filho que está ao lado da cozinha na sala) morreu com 103 anos.
Deixou uma grande propriedade no Sacarrão que ficou com a família. Alguns mais
novos ficaram lá encima na propriedade como o pai dele, outros que estão morando
lá também. (Maria Isabel, agos. 2014.)
Ao longo da entrevista Maria Isabel com frequência se refere a sogra, invariavelmente
mesmo tratando de assuntos distintos, a senhora Astrogilda parece ser seu referencial familiar,
o que em parte se justifica pela perda de seus próprios familiares, mas também demonstra ao
mesmo tempo que reconhece a importância da sogra e se vale dela para referendar o próprio
testemunho, embora possivelmente isto não se conscientemente. Outro tema recorrente é o
esvaziamento das propriedades locais e o consequente deslocamento para outros lugares dos
moradores. A partilha das grandes propriedades é também comentada diversas vezes, seja
porque estas propriedades foram vendidas pelos moradores que deixaram o parque e
indiretamente acabaram propiciando a construção de condomínios e casas, seja porque foram
divididas entre os descendentes que as ocupam.
Nesse sentido, seus laços com os moradores que ainda habitam a localidade se
enfraquecem a ponto de que ela não saiba determinar com exatidão para onde foram e de que
maneira eles vêm lidando com a própria memória familiar. Numa dessas casas da parte alta
residia a senhora Astrogilda e atualmente mora seu filho mais novo.
O lugar ter que vir de uma comunidade, importante, importante por causa da partilha,
partilhar uma festa. Não se vive muito isso, acho que trazer de volta seria bom.
Antigamente, eu me lembro, mês de junho [...] as pessoas se reuniam, um criava um
porco, aquele criava outra coisa, tinha uma festa de Santo Antônio ali se reuniam todo
mundo, pobre ou rico era indiferente. Tinha uma festa na casa de D. Mocinha todo
mundo ia para lá, era uma propriedade grande agora já foi dividida. Ia com os archotes
sabe aquela lanterna de bambu, aqui se chamava archote não sei como é outro nome,
como uma tocha com querosene no fundo, chegava lá apagava, na volta acendia e
vinha. Todo mundo andava, quer dizer era divertido e acabou tudo isso, digo sempre
que Vargem Grande está agonizando. [...]
São coisas que vem desde lá das pessoas que viveram essa cultura, foi se acabando,
se acabando porque todo mundo foi indo embora, os mais velhos foram morrendo
levando isso com eles, e assim foi. Eu passei isso para os dois filhos, muitas pessoas
foram embora, as tias deles mesmo, todo mundo indo embora, tem gente em Nilópolis,
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em todos os lugares. Todo mundo foi indo embora e a cultura foi ficando para trás...Eu
não sei como eles tiveram essa preocupação de passar para os filhos[...] Como minha
sogra contava para gente, sentava na beira do fogão para contar toda a história da
família. (Maria Isabel, agos. 2014.)
Muitas das proposições que discutimos anteriormente se expressam em seu relato. Por
exemplo, sua projeção de se mesma se dá entre duas margens a comunidade e a família, a
comunidade normalmente é expressa pelo “todo mundo” ou “todos”, como se os moradores
formatassem uma totalidade. E o passado aparece apenas do ponto de vista positivo, hoje a casa
de Maria Isabel conta com luz elétrica, água encanada, mais ao referir-se ao período em que
não usufruía destas comodidades o define como divertido, uma época em que as pessoas se
reuniam para festejar independentemente de sua condição financeira todos ajudavam como
podiam.
Além disso, minha condição completamente externa ao campo tendeu a deixar Maria
Isabel mais livre para expressar suas opiniões, na ocasião o filho dela estava em casa no cômodo
ao lado na segunda parte da entrevista. E em suas interferências algumas vezes relativizou
alguns enunciados da mãe a respeito de algumas informações, me deixando com a impressão
de que alguns aspectos eram enfatizados para obter efeito dramático. Quando cita a cultura
Maria Isabel de forma inconsciente está tratando da transmissão cultural geracional, conforme
aborda Thompson, como apreendeu que sua vida deveria ser e ao mesmo tempo fazendo as
próprias escolhas dentro do campo de possibilidades, o que engloba inclusive as dispersões do
território como uma escolha possível. (THOMPSON, 1993, p.15)
A fala de efeito sobre Vargem Grande estar agonizando na verdade parece um pouco
com dar uma relevância maior ao que acontece no Parque, inserir suas vivências no que ela
compreende como um contexto de decadência, e ao mesmo tempo está relacionando isso as
mudanças negativas causadas no bairro pela especulação imobiliária como a falta de água. Ela
se vê como parte desse projeto de integração comunal, afirma algumas vezes que seria
importante retomar as coisas como eram antes.
V. Considerações finais:
Minha intenção neste trabalho foi relacionar algumas proposições teóricas e
metodológicas que auxiliam na compreensão da história de vida de Maria Isabel. E, ao mesmo
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tempo possibilitam algumas reflexões sobre a própria História Oral. Me parece que o primordial
reconhecer que o relato com início, meio e fim não existe antes da entrevista, e provavelmente
se modificaria em outras circunstâncias.
Por exemplo, ter entrevistado Maria Isabel durante uma festa da comunidade
possivelmente interferiu no fio condutor de sua narrativa, fazendo com que ela conferisse
importância a comemorações que ocorriam anteriormente, e desse detalhes a respeito delas.
Quando questionada sobre família falou diretamente sobre a figura da sogra e os parentes
próximos a ela, sem tentar implicar em seu relato parentes de seu pai ou de sua mãe. A história
contada ao lado do fogão, é sobre a família do marido, embora ela também evite cautelosamente
falar dele.
Eu me senti num lugar meio ambíguo porque ela abriu a porta me recebeu gentilmente,
me ofereceu seus doces saborosos, falou de sua vida pregressa. Mas não contou nada sobre os
dois filhos, e nem sobre o casamento ou a separação, nem mesmo expressou qualquer juízo a
respeito do marido morar na casa que pertenceu a sogra na parte alta e ela ali embaixo com um
dos filhos, ou mesmo sobre o outro filho Sandro da Silva Santos ser uma das lideranças locais
da comunidade.
Havia uma linha bastante clara que ela podia romper ou esfumaçar a qualquer momento
com um gesto e não eu. Embora tenha tentado tornar a entrevista mais pessoal em certo
momento percebi claramente que ela não estava disposta a isso, não naquele dia pelo menos. E
isso não é uma crítica, e sim uma reflexão sobre os limites da aproximação em determinado
momento, e eticamente reconheço que a gentileza, os doces e mais tudo que ela desejou me
contar foi uma concessão generosa.
VI. Referências bibliográficas
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VELHO, Gilberto. Memória Identidade e projeto. In: Um antropólogo na cidade: ensaios de
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VII. Entrevista:
SANTOS, Maria Isabel da S. A culinária na Comunidade Cafundá Astrogilda [16 de agos.
2014] Entrevistador: autor. Rio de Janeiro: UERJ, 2014. Mp3. Entrevista concedida durante a
festa de certificação do Quilombo Cafundá Astrogilda.