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Ed.2 – 07/agosto/2006
VICTOR STEINBERG MOTTA
EU TENHO MEDO DE VIRGINIA WOOLF
DRAMA
INSPIRADO EM AS HORAS
Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e
protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer
meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.
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“Quase o amor , quase o t r iunfo e a chama, Quase o pr incip io e o f im – quase a expansão . . .Mas na minh ' a lma tudo se derrama. . .Entanto nada fo i só i lusão!De tudo houve um começo . . . e tudo errou. . .– Ai a dor de ser -quase ( . . . )”
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
“O tempo é uma espécie de duração. Duração s igni f ica pers is tência em exis t i r . O que não tem exis tência , também não tem duração.”
WALTER BRUGGER
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Es ta apresentação fo i fe i ta para o le i tor apressado, aquele
que pula as páginas antecedentes e va i d i re to ao começo da
h is tór ia .
Quando rabisco es ta nota , sob o impacto afe t ivo
i r redimível das sensações que foram tantas ao presenciar
“As Horas” , consola-me imaginar o le i tor , espectador ou
gente do tea t ro , com o encargo de ver (quem sabe rever) o
f i lme ou ler o l ivro ; o que será de imensa impor tância antes
de passear com os o lhos por aqui . É a opor tunidade de tentar
consent i r uma abrangência mais n í t ida dos assuntos aos
quais me ref i ro nes ta obra quase tea t ra l . Do mesmo, ver o
f i lme ou ler o l ivro é uma dica mui to mais va ledora do que
somente fazer essa tarefa como t re inamento para le r es te
tex to .
Eu rea lmente pus lá em c ima “quase tea t ra l” , pois de fa to
t ra ta- se de uma quase-obra . Uma vez que é tea t ra l por seu
formato ser es té t icamente encenáve l , mas não chega a ser
a lgo ass im. Na exis tência de uma ca tegor ia ext ra nos
ca tá logos , a lgum outro gênero l i te rár io , não tenho cer teza da
palavra que bem encaixar ia , mas penso que o mais per to
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poss ível , embora a inda afas tado, ser ia a lguma coisa em
torno do “depoimento de d is túrb ios sens íveis” . É mais
quase- tea t ro a inda , pois a mis ter iosa escr i tora que aparece
ent re as l inhas escreve um romance do qual , não se i
exatamente porquê, pode serv i r como excer tos de seu l ivro
apenas como suges tão a le i tores ou indicações desses
“depoimentos sens íveis” a d i re tores e a tores , que têm plena
l iberdade em fazer com ela o que bem entenderem no caso
de uma montagem. Um raro e ameaçador equi l íbr io ent re
dramaturgia e l i te ra tura . Entre o óbvio e o compl icado,
exis te apenas uma t roca de o lhar . E nes te exis te uma
inspi ração (“ inspi rado em ‘As horas’”) , não es tá escr i to de
maneira a lguma “Adaptação de ‘As Horas’” , quanto menos
“uma peça inspi rada em ‘As Horas’” . Mas não deixa de ser
um drama, s implesmente por causa das s i tuações . Essas
s i tuações que foram não se i como parar na minha cabeça e
morreram es t icadas em f rases no papel .
Haviam pensado que “As Horas” era um l ivro
“ inadaptáve l” . Seu excelente autor , Michael Cunningham,
vencedor do prêmio Pul i tzer em 1999, fez uma obra
inspi rada (e que inspi ração!) em Mrs . Dal loway, cujo t í tu lo
era para ser , cogi tou Virg ín ia , As Horas . O que torna ,
por tanto , a obra de Cunningham uma adaptação. Es ta ,
porém, depois de tantos preconcei tos , t ransformou-se num
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ro te i ro br i lhante e num f i lme contagioso , incurável , a mim
ins ta lou-se como uma c ica t r iz na a lma. O f i lme, de S tephen
Daldry , fo i ac lamado, espi r i tua l izado (com razão!) e
indicado a nove prêmios da academia hol lywoodiana . Seu
ro te i r i s ta-adaptador , David Hare , fez do f i lme uma
adaptação de uma adaptação. Um t rabalho d i f íc i l , a nar ração
do l ivro c i rcunda em pensamentos in ter iores das
personagens ; como t raduzir i s so em cena (c inema)? Hare fo i
su t i l : a in terpre tação das cé lebres a t r izes faz um contra-
ponto ent re as pa lavras profundamente s imples e o ponto de
v is ta que a personagem apresenta . Que t ipo de pensamento
escorre sobre aquele semblante? Pres to , encontrava- se
cora josamente adaptado.
Hare fo i v i tor ioso e ousado. Aqui , f iz tudo er rado, de um
je i to que se um produtor de c inema lesse , pensar ia ser uma
piada e uma t remenda perda de tempo. Mas vale perder o
tempo com esse l ivro , que fa la sobre o tempo perdido? A
fa lha também in teressa nas es tantes das l ivrar ias? Pois
nenhum obje t ivo fo i conclu ído, nem os meus para cr iar uma
peça in teressante sobre uma obra que amo tanto , tampouco o
dos personagens , que são tão boni tos e caem num jogo
per igoso . Foi só por amor . E o amor comete umas bobagens!
José Saramago comentou sobre a obra “Budapes te” de
Chico Buarque: “ . . .ousou mui to , escreveu cruzando um
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abismo sobre um arame e chegou ao outro lado” . No meu
caso , se Saramago lesse es te quase-coisa , d i r ia ,
provavelmente : . . . ousou mui to , escreveu cruzando um
abismo sobre um arame e ca iu no pr imeiro passo . Contudo,
em Mrs . Dal loway, “Virgin ia Woolf escreveu, na verdade, a
h is tór ia da cr ise de um indiv íduo, de uma c lasse , de uma
sociedade e a do própr io romance” .
Essa quase-peça que temos aqui é , enf im, uma inspi ração
de um rote i ro adaptado de uma adaptação, num t í tu lo
meramente culpado em responder a pergunta de uma outra
peça , sucesso em Nova York, de Edward Albee “Quem tem
medo de Virg in ia Woolf?” (que também foi adaptada para
c inema!) . O que também faz dessa uma peça de t í tu lo
adaptado.
O que torna todo esse emaranhado de inspi rações
adaptadas e uma apresentação espantosa uma peça
obviamente f racassada . E , sendo ass im, apesar dessa
contradição às expecta t ivas de um le i tor e um escr i tor , o
f racasso é a grande v i tór ia des ta quase-a lguma coisa . Pois
aqui se faz uma homenagem a Richard Brown, um escr i tor
que , no f racasso t rágico , encontrou heróico t r iunfo .
Porque acho que Virg in ia sent ia uma coisa que eu s in to ,
que qualquer escr i tor decente sente , que é a sensação de que
mesmo que o l ivro pronto , o l ivro f ina l izado, sa ia mui to
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bom, você t inha a lgo maior em mente . Você f icava
c i rculando por a í com um balão de desenho animado na
cabeça no qual es tá o “ l ivro do amor” , que contém tudo que
você sabe e imagina . Esse l ivro mudará a consciência das
pessoas , quando não o mundo rea l . E mesmo que o l ivro
f ique mui to bom, é s implesmente um l ivro . E é imposs ível
não se sent i r desapontado. F iquei mui to fe l iz ao ver que isso
t ransparece quando Richard sente que fa lhou. Porque
ar t i s tas fa lham. Todos fa lhamos . Nunca f ica tão bom quanto
você sabe que poder ia f icar . I sso é par te do que nos mantém
escrevendo e às vezes é nossa janela . A sensação de não ter
acer tado é a par te mais na tura l e inevi táve l do processo . É
c laro que você t inha um l ivro melhor em mente , você prec isa
te r . Você prec isa tentar i r a lém daqui lo que você faz . Se
você t iver a lgum t ipo de contro le , a lguma saúde menta l ,
saberá minimizar as perdas e pensar : “es te l ivro não f icou
tão bom, mas o próximo f icará” . Mas , se você for de
natureza mui to del icada , poderá encarar sua v ida como um
f racasso , mesmo que n inguém mais pense ass im, mesmo que
todos achem que f icou ó t imo, você sabe que poder ia te r s ido
um l ivro melhor se você t ivesse se es forçado mais , se
concentrado mais , se não t ivesse se embebedado naquele
sábado e f icado com ressaca , bem no d ia em que a grande
inspi ração ter ia v indo. Enf im, já d isse quase tudo sobre o
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ar t i s ta a tormentado, mas ar t i s tas são a tormentados como
quase todos . Mas acho que esse é um dos tormentos de que
mais sof rem os ar t i s tas . Você sabe , mesmo que n inguém
mais sa iba , você não conseguiu . Não fez o que podia te r
fe i to .
O Autor
DRAMATIS PERSONAE
A Escr i tora .
GABRIEL (1975 - 2002) , a pr inc íp io , um dramát ico . Anda s im
desesperado, f rági l e so l i tá r io como a lguém desprovido de
moradia tanto quanto para um imóvel quanto para as coisas que
habi tam no eu . Quer ia ser escr i tor e tem mui ta vontade de
compreender o f i lme “As Horas” . Mas é um dramát ico , com cer ta
ingenuidade.
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LÚCIO (1974 - ?) , observador e anal í t ico , mergulha nas
profundezas das pessoas . Mas quando sa i , seca-se d iscre ta e
rapidamente .
PATRÍCIA (1977 - ?) , amiga ín t ima e ant iga dos rapazes . Tem
um namorado, ANTÔNIO , que es tá morando na Europa.
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PRÓLOGO
Um solo coreográf ico de um bai lar ino .
Música “Metamorphos is # 2”, de Phi l ip Glass .
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ATO ÚNICO
CENA: 2003.
Um apar tamento (k i tne t ou lo f t ) a lugado no centro de
São Paulo (como de cos tume, nublado e f r io ,
ac inzentado, subaquát ico) . As t rês paredes que fecham
(encaixam) o espaço cênico aparentam gas tas e mau
pin tadas , rasgadas , manchadas de fungo e bolhas , e o
p ior , quadros incoerentes (não dever iam es tar a l i
jamais ) es forçam-se a se manter pendurados , com suas
i lus trações r id ículas de árvores , paisagens e ros tos ,
como se vár ios moradores t ivessem habi tado lá
anter iormente , o que aparenta todos e les terem s ido
mui to imundos , negl igenciando o domicí l io . O piso é
es t i rado por tapetes a tu lhados , tapetes d is t in tos , a lguns
desbotados , outros persas bem fa lsos (desacer tos nas
es tampas) , outros bem color idos e chamat ivos , os c í l ios
melecados de ácaro e ac identes (a lguém derrubou
cerveja ou deixou cair o c igarro) , a lgo que aumenta
bas tante a cafonice lamentável e apodrecida daquele
lugar . Sob esse p iso asqueroso , um rádio rodeado por cd
´s e l ivros , um sofá rasgado (espuma bege e molas –
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anéis bem enferrujados- são ev identes ) , dois colchões
nada prof i lá t icos , uma janela que dá para uma v is ta (se
for puxada a pers iana toda enroscada e a trapalhada)
fe ia e apocal íp t ica , uma mes inha de jantar para duas
pessoas , um banquinho, fo lhas de jornal , te le fone de
parede , pratos e ta lheres su jos na p ia , gavetas , fogão,
l ixo e , no corredor ao fundo, vê-se somente a por ta
aber ta de um banheir inho que ex ibe uma cor t ina de
chuveiro gosmenta e sebosa, a outra por ta do corredor
nunca será aber ta . Há, na sa la , um DVD do f i lme “AS
HORAS”. Tudo isso com pos ições es tra tégicas para todos
os cômodos serem v is íve is num campo de v isão g lobal da
p la té ia .
(Uma Escr i tora entra , abre um caderno e escreve) .
(GABRIEL, de calça jeans , gorro e b lusa de lã por
causa do fr io , abre a por ta e entra com um carr inho de
supermercado bem cheio , com aquelas sacolas p lás t icas .
Es frega as mãos , esquentando-as . Larga as chaves num
canto e vai depos i tando as compras na mes inha. L iga um
cd, Metamorphos is # 2 , de Phi l ip Glass . Procura f icar
mais à vontade , re t i rando a b lusa , a calça , menos o
gorro e de ixa coisas como car te ira e c igarro . Ves te um
roupão azul e desbotado i lus trado por foguetes , p lanetas ,
es tre las e as tronautas , a lgo bem in fant i l , mas
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s igni f ica t ivo , uma calça de mole tom e sapatos Aruba
pre tos . Põe-se a t i rar os produtos que havia comprado,
uma garrafa de v inho t in to , um l ivro de recei tas e a lguns
ingredientes gas tronômicos como tomate , abóbora,
massa , far inha, molhos e carne . O te le fone toca . Arruma
as sacolas num mont inho e vê- se sa t is fe i to . O te le fone
ins is te) .
GABRIEL (ao te le fone) : _ Alô . Oi . . . S im, es tou em
casa . Até mais . (des l iga) .
(Acende um c igarro , abre o v idro da janela e pára a f im
de re f le t i r . Dá uns t ragos , de ixa o c igarro na boca, t i ra
o mont inho de sacolas , amassa tudo e enf ia no carr inho
de compras , abandonando o mesmo num canto da
coz inha. Dá mais uns t ragos para saber o que fazer com
os ingredientes sobre a mesa. Pega o l ivro de recei tas .
Lê , dando a lguns t ragos) .
Escr i tora:_ A v ida toda num só d ia .
(LÚCIO entra , abr indo a por ta do apar tamento . Es tá
carregando – um tanto que com di f icu ldade, a f inal es tá
sem carr inho - um monte de sacolas de supermercado) .
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LÚCIO:_ Gabr ie l . Gabr ie l? Gabr ie l !
(S i lêncio) .
LÚCIO:_ Richard?
GABRIEL (pára de escrever) :_ Oi.
LÚCIO : _ Como vai? Hoje achou a lguma coisa?
GABRIEL : _ Nada. Nem deu tempo de procurar .
LÚCIO : _ Meu, o lha que saco! O car r inho de
supermercado sumiu da garagem, eu t ive que car regar
tudo isso . . . (nota que o carr inho e as compras es tão no
apar tamento) . Mas o que é i sso?
GABRIEL : _ Isso o quê?
LÚCIO : _ Você sa iu?
GABRIEL : _ Ah! Eu f iz as compras . Es tou querendo
fazer um jantar .
LÙCIO : _ Porra , cara! Eu fa le i que ia fazer as compras
hoje! Depois você fa la que eu gas to d inhei ro à toa .
GABRIEL : _ E gas ta mesmo. Não aprende nunca .
(LÚCIO vai guardando as compras que carrega
enquanto observa as compras do colega, que f ica
sentado num sofá apenas para lhe escutar , anotando) .
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Escr i tora: _ Ele es tá sendo agora in terrompido por
tudo.
LÚCIO : _ Mas você sa iu , você nunca sa i .
GABRIEL : _ Saí , sa í s im. O que é agora? Não posso?
LÚCIO : _ Claro que pode, não é i sso . É que você nunca
sa i . Achei es t ranho. Que h is tór ia de jantar é essa? Nossa ,
gruyére!
GABRIEL : _ Eu ia fazer uma surpresa . A Pat r íc ia não
vem aqui hoje? Então , comprei a té v inho.
LÚCIO : _ Com que d inhei ro?
GABRIEL : _ O meu! Eu também tenho d inhei ro já se
esqueceu?
(Pausa) .
LÚCIO : _ Meu Deus! Esse v inho é caro pra cacete . Que
é que deu em você hoje , he in?
GABRIEL : _ Pô, cara . Eu não tenho empregada nem
cozinhei ra para fazer um jantar . E nossa amiga es tá v indo
a í .
LÚCIO : _ Você não tem empregada porque não quer .
Podia mui to bem morar em outro lugar , mas não, f ica
t rancado nesse es t rupíc io por causa de um f i lme! Ainda
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bem que você tem um amigo. Nem se i porque f ico te
v is i tando. Tor te l l i , abóbora! Você quer abr i r um
res taurante?
GABRIEL : _ Quer ia escrever . Você sabe de a lgum
lugar que venda inspi ração? Cacei hoje o d ia in te i ro e
não achei . Depois d izem que São Paulo tem tudo.
LÚCIO : _ Como você se v i rou lá fora?
GABRIEL : _ Sei exatamente o que fazer lá fora , não se
preocupe.
LÚCIO : _ A Pat r íc ia l igou?
GABRIEL : _ Ainda não. Será que e la vem mesmo?
LÚCIO : _ Sei lá . Porque você quer fazer um jantar ,
he in?
GABRIEL : _ Me deu na te lha .
LÚCIO : _ Não é pe la Pat r íc ia?
GABRIEL : _ Também, não se i . Pode ser .
LÚCIO : _ Você só escuta essa música! É tão chato!
(Vai ao rádio e des l iga a mús ica) .
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Escr i tora:_ o que fazem com a mús ica dele? O que
fazem com ele?
GABRIEL : _ Me faz bem. Eu acho boni to . É música de
f icar em casa e pensar sobre lá fora , en tende?
LÙCIO : _ Que horas você fo i ao supermercado?
GABRIEL : _ Fui bem cedo, f iquei o d ia in te i ro
inventando coisas para o jantar . Porque você não me
a juda? Comprei l ivro de recei tas , tem um pra to del ic ioso ,
esse com abóbora ; e a sobremesa é formidável . . .
LÚCIO : _ Eu já comi .
GABRIEL : _ Já comeu? Que mancada!
LÚCIO : _ Como é que eu ia saber? Desculpa .
GABRIEL : _ Não, tudo bem. Agora já fo i .
LÙCIO : _ Mas eu tomo um vinho com vocês .
GABRIEL : _ Es tá bem. Pelo menos isso .
LÙCIO : _ Um jantar na sua casa . Você nunca fo i d isso!
GABRIEL : _ E você nunca fo i de f icar rec lamando
tanto .
LÚCIO : _ Só es tou sendo s incero . Foi mui to es t ranho
chegar aqui e ver que você t inha sa ído . Como uma
surpresa , sabe? É como chegar em casa e ver um móvel
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novo, que você nem sabe como fo i parar lá . I sso faz você
f icar ques t ionando.
GABRIEL : _ Surpresa!
LÚCIO (Vê o DVD do f i lme As Horas) :_ Ah, você
comprou o f i lme!
GABRIEL :_ É. Chegou ontem. Já ass is t i umas duas
vezes .
LÚCIO : _ E o jornal? Não achou nada mesmo?
GABRIEL : _ Não. ( levanta-se) . Nada que serv isse .
LÚCIO : _ Vai t rabalhar ! F ica a í como um id io ta , parece
um velho ranzinza .
GABRIEL : _ Não dá para acredi tar que você a inda não
possa ter me entendido. Será tão d i f íc i l?
LÚCIO : _ Não é ass im. Não é ass im mesmo.
GABRIEL : _ Não é ass im mas é ass im s im! Fala a í :
Então porque quem me conhece pela pr imeira vez se
incomoda?
LÚCIO : _ Quem f ica incomodado?
GABRIEL : _ Todo mundo! Tem sempre a lguém que eu
vejo pela pr imeira vez , conversa um pouco e me chama
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para um cant inho: “posso fa lar com você? Vou ser bem
s incera . Você é d i ferente e i sso me i r r i ta” .
LÚCIO : _ Ment i ra! Quem fez i sso?
GABRIEL : _ É o que s in to . É isso . É o que s in to . Não
sou eu quem quer que eu se ja ass im.
LÚCIO : _ Você pode mudar . Parece um es túpido. Olha
para o espelho. Pensa que você no espelho é uma pin tura .
Retoque.
GABRIEL : _ Acabou a t in ta e não fabr icam mais . Vou
ver a rece i ta .
LÚCIO : _ Você consegue me deixar tenso . Só você .
Mas que porra!
GABRIEL : _ Você é que vem aqui por que quer .
LÚCIO : _ Você devia era ser agradecido. Venho porque
você é meu amigo. To fazendo a té as compras de
supermercado pra você!
GABRIEL : _ Vem porque sou um ót imo obje to de
anál ise . O paciente cdf dos ps iquia t ras .
LÚCIO : _ Ah, cara . Pára com isso! Deixa eu levar i s so
pra lá . (Segura o carr inho e sa i ) .
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GABRIEL (sent indo-se culpado) : _ Esqueci que você
far ia compras hoje .
LÚCIO : _ ( fora de cena) . Não d isse?
GABRIEL : _ Es tou com a cabeça fora do e ixo . Esqueço
que exis te v ida pra v iver nesse p laneta e f ico d ivagando
na minha imaginação. Acho que o único espaço que vou
ter sempre é o que es tá de baixo da minha pele . Se eu
pudesse v i rar do avesso e v iver sempre no meu mundo eu
ser ia bem mais fe l iz , você não acha?
LÚCIO : _ Vai v iver , amigo! Você vai ver como é bom.
Depois , se não for , você se lamenta com o pé na cova.
GABRIEL : _ Eu sempre vou morrer incompleto , Lúcio .
Eu sou a escul tura mal fe i ta , o poema hermét ico , a obra
incoerente , o esboço do quadro .
LÚCIO : _ Você tem ar te na veia e f ica fa lando,
vomitando, despejando ar te toda hora . Você a í , soz inho,
rec luso , só te for ta lece como ar t i s ta . Você es tá se
preparando, parece . Um dia va i explodir .
GABRIEL (r indo) : _ Você vem aqui na minha casa e
t i ra umas conclusões!
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LÚCIO : _ Você não sabe como vai ser amanhã.
Ninguém sabe . Você sa iu hoje . Isso é d i ferente . Ontem
você nem abr ia a janela . Olha que d i ferença .
GABRIEL : _ Não é não. Não é .
LÚCIO : _ Aí , tá vendo? Suas palavras , impos tadas
desse je i to , é como uma vi tamina . Você nem pode
perceber , mas es tá se nut r indo. Ass im é que você i rá se
formar . E eu se i que esse d ia va i surgi r numa surpresa e
você vai notar como sua id io t ice era inút i l .
GABRIEL : _ Acha que sou id io ta?
LÚCIO : _ Não devo ter d i to nada que pudesse te mover ,
não é?
GABRIEL : _ Não, espera . Sabe que o que você d isse é
mui to impor tante . Moveu s im. Desculpa .
LÚCIO : _ Espero um dia d izer pa lavras que te movam
daí de verdade. Palavras que lhe levantasse .
GABRIEL : _ Você é amigo. Meu amigo mesmo.
Obr igado, amigo. Obr igado por me acei tar . Sou mal
agradecido.
LÚCIO : _ Você não es tá com fome? Eu posso a judar . . .
GABRIEL : _ Espere , o lha esse poema que eu l i hoje no
jornal ! James Merr i l . Já ouviu fa lar?
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(Pega um jornal) .
LÚCIO : _ Não. . .
GABRIEL ( lendo): _ Olha que maravi lha! “…Ela
escolheu pescar , pescar usando como isca a minha v ida ,
esperando qual o suspense para a dor inevi tável de me
engol i r onde eu agarro sua água. E , de fa to , o
reconhecimento com olhos de fósforo escorrega devagar
dentro de minhas profundidades” . Legal , né?
LÚCIO : _ Legal .
(S i lêncio . Entreolham-se) .
GABRIEL (r indo) :_ Como você adora anal isar os
out ros! Você faz de todos uns quadros numa expos ição .
Sou o seu quadro prefer ido , fa la a í .
LUCIO : _ É o meu t rabalho.
(S i lêncio) .
LÚCIO : _ Porque te deu vontade de fazer esse jantar? É
o f i lme?
(S i lêncio) .
Escr i tora: _ Descobr iram-me! E sabem tudo sobre mim!
GABRIEL _ S im. É o f i lme s im.
(Pega o DVD do f i lme “As Horas”) .
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GABRIEL : _ É essa maravi lha que es tá me deixando
louco.
LUCIO :_ Meu Deus , Gabr ie l . O que es tá acontecendo?
GABRIEL : _ Eu quer ia saber . Eu bem que quer ia!
Escr i tora: Es tou meio que me trans formando no f i lme.
Nem no f i lme em s i , mas no l ivro , na tr i lha sonora, no
conteúdo! Es tou deixando de ser para v iver no f i lme.
Aquele poeta . . . É como se e le t ivesse se jogado da
sacada e caísse dentro de mim. Eu, que tão vulnerável
es tava sendo, fu i sugado pelo personagem. Eu quer ia ser
e le . E a té d igo que quero ser e le do modo que eu imagino
que e le d ir ia . E não saio d isso , acabo sendo um
fracassado. E por e le também ser um fracassado, ou pelo
menos se cons iderar um, s in to-me v i tor ioso em fracassar
como e le .
LÚCIO :_ O cara é um gay velho e a idé t ico que se mata .
Pensa ass im e esquece tudo. Esquece .
GABRIEL :_ Virg in ia Woolf mesma disse que f icar
louco é bem melhor que ser normal , você pensa em coisas
que nunca que os normais dar iam conta de pensar . E eu
não se i o que é . É um sent imento . . .
LÚCIO :_ Isso , fa la . . .
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GABRIEL :_ É aquele sent imento a inda . A sensação, a
maneira , o je i to que as coisas es tão fazendo, essa perda
dos sent imentos . E o in teressante é que parece que o
único sent imento que sobrou é o dessa sensação de que
todos os sent imentos foram esquecidos .
LUCIO :_ Quando você fa la essas coisas , é como se eu
deixasse de exis t i r . Ou melhor , ex is to em outro lugar ,
bem longe daqui . Eu não se i se i sso que você es tá fa lando
vem de você mesmo, você , Gabr ie l , não Richard , o
Gabr ie l , meu amigo de infância , ou você do je i to que
você quer ia ser , ser do f i lme, fa lando as mesmas coisas
do f i lme. Não dá . Eu não sou bom o bas tante pra te
compreender .
GABRIEL :_ Então o que você es tá fazendo aqui?
LUCIO :_ Eu es tou aqui , tenho cérebro e corpo. Eu fu i
um fe to também.
GABRIEL :_ Eu quer ia te r nasc ido mudo e surdo.
LUCIO :_ Ou do avesso?
GABRIEL :_ Ou do avesso . . . Mas que es t ranho. Então
porque será que somos amigos há tan to tempo se não
exis te nenhuma coisa a ver?
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LUCIO :_ Talvez por uma ques tão de formal idade .
Talvez por sermos v i t imas de máscaras socia is . Talvez
porque eu te entendo e você gos ta de ser
entendido,mesmo que se ja da minha maneira , por a lguém.
É confuso .
GABRIEL :_ Dane-se se é confuso . Pode ser confuso
para uma especiez inha de seres evoluídos depois dos
macacos . O que a gente já nasce tendo, que é idênt ico o
que também já tem os animais , é mui to melhor do que
saber a lguma coisa .
LUCIO :_ Es tamos v ivendo e fa lando sobre a v ida . É
como se a gente não exis t i sse .
GABRIEL :_ Noi te após noi te , de i to e durmo ouvindo a
t r i lha sonora .Vis to-me como o a idét ico do f i lme, gos to de
ser doente? Por acaso sou sadomasoquis ta e gos to do que
é depr imente?
LUCIO :_Aí , tá vendo? Não se i se agora eu rea jo como
uma pla té ia aplaudindo de pé ou tento acredi tar que esse
é você fa lando.
GABRIEL :_ Eu também.
LUCIO :_ Como ass im, “eu também”? O que você es tá
fa lando?
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GABRIEL :_ Eu es tou fa lando e essa é minha voz , puxa
v ida . Então sou eu , não sou?
LUCIO :_ Não se i !
(S i lêncio . GABRIEL vol ta a colocar Metamorphos is . A
dupla guarda a segunda compra nos devidos lugares .
Alguns produtos de l impeza, des in fe tante , esponja de
aço, de tergente , cândida, sabão em pó, os quais enf ia
num armarinho debaixo do fogão. Depois a lguns
produtos de h ig iene , pas ta de dente , papel h ig iênico e
sabonete , pos tos a trás no armarinho-espelho do
banheiro . Tudo parece es tar organizado, apesar de que a
máxima organização naquele apar tamento a inda é uma
bagunça. LÚCIO entra no banheiro e se fecha. GABRIEL
arruma a mesa do jantar do je i to que quer ia . Es t ica uma
boa toalha, bota taças , ta lheres , guardanapos de pano,
pratos boni tos e a garrafa de v inho. Lê a recei ta
novamente) .
GABRIEL :_ Eu comprei duas gar rafas de v inho.
Enquanto a Pat i não chega a gente pode i r tomando. . .
(a lcança a garrafa na coz inha)
LUCIO :_ Pode ser . Que horas são?
GABRIEL (caçando um abr idor) :_ O quê?
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LUCIO :_ As horas!
GABRIEL :_ S im, o que é que tem?
LUCIO :_ Quais são as horas?
GABRIEL :_ Ah! Desculpa . (Recompõe-se) . Se is e
quinze .
LUCIO (dando a descarga, usando a p ia , sa indo do
banheiro com uma roupa mais a vontade . Uma roupa
gos tosa de f icar em casa) :_ Será que a Pat i vem mesmo?
Não se i não , he in .
GABRIEL (Após achar um abr idor e in ic iar a aber tura
do v inho) :_ Tem que v i r , né . F iz tudo isso por e la .
LÚCIO :_ Ou por você?
GABRIEL ( re t i rando a ro lha) :_ Ah, se i lá . Pega as
taças a l i na mesa .
(LUCIO pega, de ixando-as prontas para GABRIEL e
des l iga a mús ica . Serve- se o v inho) .
GABRIEL (provando) :_ Del íc ia .
LUCIO (provando) :_ Mui to bom.
(S i lêncio) .
LÚCIO :_ Ai , essa música!
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GABRIEL :_ E daí? (re f le te) . Es tá bem.
(GABRIEL ins ta la um fone de ouvido para ouvir a
mús ica) .
LÚCIO :_ Nada dá cer to . Nada dá cer to!
GABRIEL :_ O quê?
LÚCIO :_ Pára de escutar essa música um pouco! Eu
es tou te fazendo uma vis i ta !
(GABRIEL t i ra os fones e senta-se à mesa com o
amigo) .
Escr i tora: É e le a mús ica . É dele essa massa de pele
cheia de su lcos que é a mão. É uma massa de pele cheia
de su lcos essa mús ica . Quando não há mais mús ica e le
tem um gél ido nada, um nada aberração que f ica lhe
mos trando que e le não é uma coisa nem outra .
GABRIEL :_ E a í? Como fo i hoje?
LUCIO :_ Ah, a mesma coisa de sempre . Nada de mais .
GABRIEL :_ Cer to . (Pega um c igarro no maço) . Quer?
LUCIO :_ Dá um aí .
(Fumam. S i lêncio . Al ternam entre beber e fumar . Nem
se o lham) .
GABRIEL ( r indo) :_ Que engraçado, não é?
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LUCIO (querendo r ir ) :_ O quê?
GABRIEL :_ Essas coisas todas .
LUCIO (com uma r isadinha soluçante) :_ Pois é .
GABRIEL :_ Eu comprei tudo isso e nem se i cozinhar .
LUCIO :_ Eu se i fazer o de sempre . Deixa eu dar uma
olhada (pega o l ivro de recei tas ) . Tor te l l i d i Zucca . Ah!
Esse que vai abóbora . . .
GABRIEL :_ Isso . Achei s imples e sof is t icado. Mas ,
mesmo ass im, não se i nem o que fazer com a abóbora . . .
LUCIO ( lendo) :_ Eu cons igo fazer a massa , mas esse
recheio , va i saber . . .
GABRIEL :_ Eu a té t inha pensado que você sabia .
LUCIO :_ Eu se i . Você nunca cozinhou na v ida . Eu
t inha pensado a té que você comprou tudo pronto . Ou
comida congelada .
GABRIEL :_ Eu quis fazer tudo em casa .
LUCIO :_ Esse é seu mal . Tudo em casa . Sempre tudo
em casa .
GABRIEL :_ Ai , meu Deus . Olha , eu . . . (des is te) .
Escr i tora: _ Mas esse é o único lugar que eu posso ser
quem quero .
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LUCIO ( ignorando) :_ É.
(GABRIEL se levanta e joga toda a comida que comprou
no l ixo) .
LUCIO :_ O que é i sso? O que você es tá fazendo? Puta
merda! O que você es tá fazendo!?
GABRIEL :_ Ela não vem mais .
LUCIO :_ E daí , cara? E se e la v ier? E mesmo que e la
não v iesse , por favor! Que é i sso , meu. I sso não é coisa
de gente normal não.
GABRIEL (r indo) :_ Mas é que no f i lme. . .
LUCIO :_ Você ‘ tá louco cara! (r i fa lsamente) Jogar a
comida fora? Isso é pecado, meu! Porra , acorda , cara!
Isso daqui é a rea l idade , aqui lo é um f i lme, porra! Agora
você vai querer se fantas iar de Meryl S t reep , puta que
par iu! Tem gente passando fome nesse mundo e você
compra comida pra jogar fora por causa de um f i lme?
Pelo amor de Deus! Você ‘ tá prec isando de um terapeuta ,
se i lá !
(GABRIEL r i . Toca o in ter fone) .
GABRIEL :_ Será que é e la?
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LUCIO :_ Eu não fa le i? (Vai ao in ter fone) . Agora e la
chegou e não tem mais comida. . . (a tende o in ter fone)
Pronto . Oi , pode subir . Obr igado.
GABRIEL :_ É e la?
LUCIO (emburrado) :_ Es tá subindo a í .
(GABRIEL corre para o armário , t i ra o gorro , a je i ta o
cabelo , t i ra o roupão e ves te uma camise ta) .
Escr i tora: _ Precisa ser t r iv ia l e de ixar passar o
personagem um ins tante . Quando alguém chega como
Patr íc ia , não pode f icar sendo o que é ou o que quer ser .
Tenho medo de assombrar a lguma pessoa com sua
mons truos idade - que não tem nenhuma evidência .
GABRIEL :_ Nossa , meu deus , quanto tempo! Será que
e la es tá mui to d i ferente?
LUCIO :_ Vamos ver .
GABRIEL :_ Nossa . Vamos ver a cara de la de mulher
agora .
LUCIO :_ É mesmo. Ela já es tá com vin te e o i to!
GABRIEL :_ O que será que es ta v indo a i , he in Lucio?
O que será que es tá subindo esse e levador? Eu es tou com
uma sensação es t ranha. . .
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LUCIO :_ Eu não se i . Não se i mesmo.
(Toca a campainha. GABRIEL corre , abre a por ta .
PATRICIA entra , agasalhada e com f lores) .
PATRICIA :_ Oi , Ga. . . (abraça GABRIEL) . Quanto
tempo. (Vê LÚCIO) . Lúcio! (corre e o abraça) . E a í? Que
saudades!
LUCIO :_ Olá , Pat i ! Tudo bom?
PATRICIA :_ Tudo bom. E a í , gente? E as novidades?
LUCIO :_ Você não mudou nada!
GABRIEL :_ Mudou s im! Quem dir ia você t razendo
f lores .
PATRICIA (vai se acomodando, de ixando o casaco no
sofá e guardando as f lores) :_ Ah, eu t rouxe, Ga. . .
GABRIEL :_ São mui to l indas . Eu não esperava isso de
você mas nunca .
Escr i tora: _ Ela precisa fa lar a lguma coisa para não
f icar quie ta e dar uma imagem de per turbada e
complexa, uma imagem que nenhuma moça quer passar .
As moças querem apenas ser moças e sent ir na v ida todos
os e logios que recebem uma moça no sent ido tão puro e
l indo que se tem quando alguém diz “uma moça”. Ao
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dizer “uma moça” a frase já tem uma par te impor tante
de beleza .
PATRICIA :_ Ai , Ga! por quê? (o lha para LUCIO) .
Onde tem um vaso?
LÚCIO ( tomando as f lores) :_ Dá aqui . (procura um
vaso , acha, coloca um pouco d´água e as f lores) .
GABRIEL :_ Não esperava esse romant ismo seu . Você
nunca fo i d isso . Sempre t razendo a s i mesma como
presente para qualquer um.
PATRICIA (Escr i tora : . . . representando . . . ) :_ Ga, eu
sempre fu i românt ica .
LUCIO :_ Bom, e a í? Você veio de car ro?
Escr i tora: Ele quis romper essa d iscussão antes de tudo
v ir a explodir .
PATRICIA :_ Eu v im. Nossa , Gabr ie l , eu jurava que
seu apar tamento não ia ser ass im.
Escr i tora:_ Patr íc ia percebe que tem o maior
arrependimento imaginável em ter entrado nesse
apar tamento .
GABRIEL:_ Feinho, né? Mas se i lá . Eu gos to desse
je i to .
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LÚCIO :_ Vem aqui .
(Leva-a para o fundo. GABRIEL, soz inho, rapidamente
cheira as f lores . Vol tam. PATRICIA vê o v inho) .
Escr i tora:_ Quando vê o v inho, sente que precisa de
a lgo que se ja mis turado com seus pensamentos . Vinho
ser ia per fe i to .
PATRICIA :_ Vinho! Dá um pouco pra mim?
(LÚCIO a serve numa taça) .
PATRICIA (bebendo) :_ E como ‘ tá o t rabalho, Lucio?
LUCIO :_ Es tá ó t imo. Trabalhando bas tante .
PATRICIA :_ E você , Ga? Como es tá indo?
GABRIEL :_ Não ar rumei nada a inda .
PATRICIA :_ Ih , mas vai dar cer to! Você vai ver .
GABRIEL : _ É o que eu espero .
Escr i tora:_ o lha para amiga de uma maneira o fens iva ,
para e la , tudo é fác i l . Para e le , tudo é imprat icável .
PATRICIA :_ Vamos comer a lguma coisa?
LUCIO :_ Comer o quê? O Gabr ie l comprou um monte
de comida e jogou fora!
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PATRICIA (r indo) :_ Você jogou a comida fora? (r i
mui to mais ) .
GABRIEL :_ Eu não se i cozinhar mesmo! Eu comprei
pensando que o Lucio saber ia fazer , mas e le não sabe
também. Aí eu joguei pra não f icar apodrecendo na
geladei ra .
LUCIO :_ Ah, nem é i sso . É por causa do As Horas . Por
i sso que e le jogou fora .
PATRICIA :_ O quê?
GABRIEL (envergonhado) :_ Ah, é um f i lme novo que
eu comprei que a mulher joga a comida fora também.
PATRICIA (sem entender bulhufas) :_ Esse Gabr ie l ,
v iu . E a í? O que vocês es tão a f im de comer?
LUCIO :_ Putz , eu já comi . Se eu soubesse . . .
PATRICIA :_ Ah, já? E você , Ga?
GABRIEL :_ Eu comer ia qualquer coisa .
PATRICIA :_ Mas vocês es tão a f im de pedir , de sa i r?
GABRIEL :_ Tanto faz . Ah, vamos pedir en tão .
PATRICIA :_ Uma pizza?
GABRIEL :_ Ót imo. Deixa eu ver aqui para l igar (caça
um número nos imãs de geladeira . L iga em mímica) .
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LUCIO :_ E o Antônio?
PATRICIA :_ Cont inua t rabalhando lá . Vol tar para o
Bras i l es tá bem fora dos p lanos , lá e le tem tudo, pra que
se preocupar em vir aqui , né?
LUCIO :_ Nossa , Pat i ! Quanto tempo, né? Ele v ia jou e
depois d isso parece que nunca mais vol ta .
(Sorr iem e abraçam-se) .
Escr i tora:_ Apenas os dois , ass im, es tá um c l ima
del ic ioso . Mas Gabr ie l a taca com algo tão bobo.
GABRIEL (ao te le fone) :_ Pat i , p izza de quê?
Escr i tora:_ Ela precisa responder . Não quer magoar
n inguém. Não sabe, mas tem um cer to poder . Se quiser
magoar , fere v io lentamente . Se quiser a legrar , leva a
pessoa ao êx tase .
PATRICIA :_ Pode ser de ca labresa , vê qualquer uma
a í ! (vol ta para LUCIO) . Então, e e le d isse que não sabe
se vol ta cedo.
LUCIO :_ Putz , faz o maior tempão que eu não fa lo com
ele . Puta saudade.
PATRICIA :_ E eu então , Lúcio . ‘To f icando louca sem
ele . O que eu faço enquanto e le não vol ta? Ainda por
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cima parece que e le fo i e fe t ivado. Ele não largar ia tudo
pra vol tar pra cá por minha causa , né?
(GABRIEL vol ta da l igação, procurando alcançar o
assunto) .
LUCIO :_ Se e le fo i e fe t ivado é bom para e le , não é?
Quem sabe a gente que tem que i r pra lá um dia . Ou e le
paga pra gente i r . (r i ) .
PATRICIA (nunca t inha pensado n isso) :_ É.
GABRIEL :_ E o Antônio? Como es tá?
PATRICIA :_ Es tá lá a té hoje .
GABRIEL :_ Es tá tudo cer to?
PATRICIA :_ Ele tá se dando bem lá , v iu . Tá tudo
cer to , mas dá aquela saudade, né? Ainda mais quando eu
v i vocês ass im, f iquei lembrando de todos aqueles
momentos . . .
LUCIO :_ Foi tan ta coisa , não? Desde perdas de fô lego
com r isadas a té t rês d ias na delegacia .
GABRIEL :_ Aqui lo s im era v iver . Todo d ia , lembra?
Todo dia a gente inventava uma coisa d i ferente para fazer
e a gente nunca f icava sa t i s fe i to . Agora o lha a gente
aqui , um bando de adul to . Uns verdadeiros mons t ros .
Bicho-papão do p laneta Terra . É ass im, fazer o que , né?
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Agora a gente depende cada um de s i para v iver . Só res ta
recordar .
PATRICIA :_ Ai , Ga! Que é i sso? A gente cont inua
sendo amigos! Olha só , a inda es tamos juntos .
GABRIEL :_ Es tamos juntos porque o Antônio es tá
v ia jando e a gente prec isava compar t i lhar essa fa l ta ou
então cada um ia p i rar da cabeça .
PATRICIA ( levantando-se) :_ Ai gente , acho que eu vou
embora . Fui infe l iz de v i r , meu deus . É . Que t r i s te .
GABRIEL :_ Não vai agora!
Escr i tora: _ Lúcio precisa acabar com essa d iscussão
de uma vez por todas . Mais uma vez .
LÚCIO :_ Pediu a p izza?
GABRIEL :_ Es tá v indo a í .
LUCIO :_ Quer mais v inho?
PATRICIA :_ Pode ser .
LUCIO :_ Quer também, Gabr ie l?
GABRIEL :_ Pode ser .
(LÚCIO enche as taças e as t raz) .
GABRIEL :_ Ele conseguiu tudo o quer ia , não?
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PATRICIA :_ Ele fo i e fe t ivado ontem.
LÚCIO :_ Ah, que bom, Pat i . Ele deve es tar mui to fe l iz .
Logo logo vocês es tão juntos de novo.
GABRIEL :_ Nós es taremos juntos de novo.
PATRICIA :_ É. . . E a namorada, Lucio?
LUCIO :_ Ah, nem to namorando.
PATRICIA :_ Não tá nem preocupado com isso , né! E
você , Ga?
Escr i tora: _ Porque e la me chama de Ga? O nome é
Gabr ie l . A porcar ia da minha mãe escolheu esse nome. O
problema é que eu gos to demais desse a fe to quase
in fant i l .
GABRIEL :_ Sempre à procura .
PATRICIA :_ Aí , Ga, porque você não namora aquela
sua amiga? Ela combina com você .
GABRIEL :_ É es t ranho. Todo mundo acha que eu
combino com ela , só eu que não.
PATRICIA :_ Aí , tá vendo?
GABRIEL :_ Ah, se i lá . Ela é meio desencanada demais .
Eu gos to das ar rumadinhas .
PATRICIA :_ Qual é o seu t ipo de mulher , en tão?
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GABRIEL (Escr i tora: _ Es força-se mui to) :_ Ah, o lha . . .
Eu quer ia uma mulher que desse valor para o que eu faço ,
en tende? E f icasse fe l iz com meu t rabalho. Eu quer ia uma
mulher ass im. . . que se dedicasse . Uma mulher que
inventasse todo tempo como me deixar fe l iz .
PATRICIA :_ E você não far ia nada por e la?
GABRIEL :_ Se eu t ivesse uma mulher ass im, eu ia
fazer e la esquecer a pa lavra t r i s teza .
PATRICIA :_ Nossa! Que profundo. E você , Lúcio?
LUCIO :_ Eu sou ao contrár io . Eu quer ia aquelas bem
independentes , que v ivesse a v ida dela sem me encher o
saco .
PATRÍCIA :_ Ai , Lúcio , só você mesmo.
GABRIEL :_ E o Antônio? Ele é seu t ipo de homem?
PATRÍCIA :_ Ah, acho que s im. Eu já ‘ to há tanto
tempo com ele que nem se i mais o que ser ia out ro t ipo de
homem.
GABRIEL ( r indo) :_ Isso é verdade. Mas acho que eu
sou mais fe l iz so l te i ro . Nessa fase de minha v ida eu acho
que não me adaptar ia com uma mulher .
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PATRICIA :_ Então cada vez mais você vai f icar
pensando isso? Depois f ica um velho e a í que n inguém
mais va i te querer .
GABRIEL :_ O negócio mesmo é uma coisa que eu
cheguei à conclusão um dia . Se eu quisesse mesmo uma
mulher , eu ia a t rás . Sou capaz a té de i r nas ba lada pra
ar rumar uma. Enquanto isso , eu vou ass is t indo a v ida
passar só com meus própr ios o lhos . Sem uma visão
feminina para f icar comentando.
LÚCIO :_ Ah, eu também sou meio ass im, sabe? Sempre
fu i , né? Não sou de f icar azaranado as menininha com um
papinho de p layboyzinho e b la b la b la . Isso é tão fa lso ,
se i lá . Se a lgum dia uma mulher in teressante aparecer , a í
ó t imo, senão, pra que f icar que nem bicho a t rás de
fêmea?
GABRIEL :_ É que as pessoas guardam uma coisa
dentro da cabeça que se chama ins t in to . Af inal , a gente é
b icho como qualquer b icho.
LÚCIO :_ Mas a gente sabe se contro lar .
GABRIEL :_ Será?
PATRICIA :_ Acontece que vocês não são pra qualquer
mulher não , v iu , gente . As mulheres sempre pensam que
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são os homens que não servem para e las , mas às vezes
são as mulheres que não pres tam para os homens .
GABRIEL :_ Nossa , Pat i ! Isso é uma coisa mui to d i f íc i l
de ouvir . Uma mulher admit indo as coisas desse je i to!
Você cont inua com a mesma car inha de menina mas agora
tem opiniões formadas e prec isas . Quem são as amigas
que te ens inaram tudo isso? Tem o te lefone delas?
LUCIO :_ Ela sempre fo i ass im, va i Gabr ie l .
GABRIEL :_ O pior defe i to da Pat i fo i te r nasc ido f i lha
única! Maldi ta! Bem que você podia te r uma i rmãzinha ,
nem precisava ser idênt ica , mas parec ida , que chegasse
per to , en tende? Ou quem sabe eu espero que você e o
Antônio tenham uma f i lha , que ta l? Vinte e poucos anos
de d i ferença hoje em dia não são nada , imagine daqui
a lguns anos .
(PATRICIA dá r isada como uma cr iança) .
PATRICIA :_ Ai , Ga. Você vai encontrar essa sua musa
um dia . Não prec isa ser minha f i lha .
GABRIEL :_ Se eu encontrar uma musa e e la for uma
burra , f inge que você quer ser bas tante amiga e faz uma
boa lavagem cerebra l ne la . O que você acha? Uma coisa
bem sut i l , que e la nem perceba .
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PATRICIA (r indo) :_ Ai , Ga. Só você mesmo.
GABRIEL :_ Não é má idé ia não, v iu? Se eu esquecesse
essa porra de emprego que poder ia me t razer um pouco
de fe l ic idade e t rabalhasse no que minha mãe sempre
quis que eu fosse e f icasse arquib i lhardár io , vazando
d inhei ro a té pe lo cu , eu pagar ia uns dez mi lhões pra uma
gos tosa burra , e far ia de la uma legí t ima my fa ir lady . Eu
f icar ia dando aulas de e t iqueta , sexo e compor tamento e
você ser ia a professora de lavagem cerebra l , mas e la tem
que f icar igual a você , he in! Putz! Aí eu v iver ia para
sempre com uma gos tosa lambendo meus pés de
fe l ic idade .
LUCIO :_ Não fo i você quem disse que far ia a mulher
da sua v ida esquecer a pa lavra t r i s teza? Essa escravidão
manipulada poder ia acabar num processo judic ia l e você
ia v i rar aqueles ex-mar idos leprosos . A cada f im do mês
vai perdendo uma par te do que tem.
GABRIEL :_ E, por acaso , você acha que eu não ia
querer f icar lambendo os pés de uma gos tosona também?
Eu tenho fe t iches mui to in teressantes , sabia?
PATRICIA :_ Ai , Ga, que péss imo!
GABRIEL ( i rônico , para não gr i tar com os amigos) :_
Que fo i? Deixa eu sonhar um pouco! As pessoas têm uma
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imagem de mim, como se eu fosse um ps icót ico fugi t ivo .
Porra , parece que eu sou proib ido de tudo nessa v ida .
Não to fa lando que eu vou fazer i sso mesmo, vou largar
minha v ida pra fazer a merda de uma faculdade e fa turar .
Olha só . Você acha que no meu es tado eu ia fazer uma
coisa dessas? Quem vai querer um escr i tor medíocre ,
enf iado no apar tamento , cheio de d i f iculdade e um monte
de compl icações?
(vai ao banheiro) .
PATRICIA :_ Que fo i?
LÚCIO :_ ‘Tá a tacado hoje . Meio t r i s te que não es tá
achando emprego, sabe?
PATRICIA :_ Ah, se i .
LUCIO :_ É umas coisas que dão nele de repente . Coisa
de escr i tor , né?
PATRICIA (não percebe) :_ É. Mas vai dar tudo cer to .
LÚCIO :_ Ah, va i .
(GABRIEL sai do banheiro e toma água. Acende um
c igarro e se junta aos dois ) .
LÚCIO :_ Dá um cigar ro para mim?
(GABRIEL dá- lhe) .
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PATRICIA :_ Eu também quero . (recebe o c igarro) .
(Os três fumam).
LÚCIO :_ Nossa , sabe o que eu v i hoje?
PATRÍCIA :_ O quê?
LÚCIO :_ Duas mulheres se be i jando no meio da rua .
GABRIEL :_ Que jó ia!
PATRÍCIA :_ Ai , c redo.
GABRIEL :_ Você bei jar ia uma mulher na boca , Pat i?
PATRÍCIA :_ Eu não, imagina!
LÚCIO :_ Foi bem in teressante .
GABRIEL :_ Eu acho a coisa mais l inda duas mulheres
se be i jando. . .
PATRÍCIA :_ Ai , que safadinho você , he in . Você
bei jar ia um homem na boca?
GABRIEL :_ Ah, mas duas mulheres se be i jando tem um
outro sent ido completamente d i ferente .
PATRÍCIA :_ Pra você que é homem, né?
GABRIEL :_ Não, mas no aspecto poét ico da coisa ,
sabe? As mulheres f icam mais boni tas desse je i to .
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PATRÍCIA :_ É, bem poét ico mesmo.
GABRIEL :_ Ah, vocês não me entendem.
LÚCIO :_ Ah, cara . . . É que é es t ranho duas mulheres se
be i jando.
GABRIEL :_ Depende. É só não ter preconcei to e
descobr i r o porquê que e las fazem isso . E e las fazem
bas tante .
PATRÍCIA :_ Eu tenho uma amiga que já be i jou outra
também.
GABRIEL :_ E na hora você achou es t ranho?
PATRÍCIA :_ Ah, se i lá . Não cur t i mui to f icar vendo
mas não me sent i incomodada, sabe?
GABRIEL :_ E com cer teza se fossem dois caras se
be i jando ia ser bem mais es t ranho, não é?
PATRÍCIA :_ É verdade. . .
LÚCIO :_ É. Eu gos te i mais de ter v is to duas mulheres
do que dois homens .
GABRIEL :_ A mulher tem um outro je i to de v iver . Ela
é mui to mais pura , mui to mais efe t iva do que o homem,
que é tão f raco que acaba gas tando a força para se impor
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em es tereót ipos de pos ições socia is . As mulheres sabem
compar t i lhar .
PATRÍCIA :_ Nossa , Ga. Você entendendo ass im de
mulher e so l te i ro , he in? Quem dir ia?
GABRIEL :_ Eu gos tar ia mui to de saber o porquê
também. Eu ‘ to chegando a conclusão de que as mulheres
a lém disso são a contradição em pessoa . Sempre d izendo
que procuram homens d i ferentes e sens íveis , mas es tão
sempre acompanhadas de marmanjos de bolso cheio .
PATRÍCIA :_ Eu não sou ass im.
GABRIEL :_ Ah, va i . O Antônio sempre fo i o bonzão da
turma.
PATRÍCIA :_ Mas e le é sens ível e bem diferente .
GABRIEL :_Pelo menos isso , né?
LÚCIO :_ O Antônio é como você , Gabr ie l .
GABRIEL :_ Como eu . Mas e le es ta na Europa de v ida
fe i ta e eu aqui , não conseguindo ar rumar nada . É ass im,
os vencedores tem namoradas , os f racassos f icam
chupando o dedo e ba tendo punheta . Seleção Natura l !
LÚCIO :_ Acho que as mulheres quando vêem uma
pessoa como você se sentem tão iguais que acabam
procurando uns caras nada a ver com quem elas são .
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GABRIEL :_ Escreva isso .
PATRÍCIA :_ Calma, Ga. Essa namorada dos seus
sonhos vai v i r no momento mais inesperado que você
imaginar .
GABRIEL :_ Es tamos a í para o que der e v ier .
LÚCIO :_ I sso a í , rapaz . Coragem! Larga a mão de f icar
depr imidinho, chorando nos cantos . Vá a lu ta!
PATRÍCIA :_ É, Ga. Deixa pra lá . Você vai ver .
GABRIEL :_ É tão bom f icar recebendo essas
ca l ibradas de esperança . Eu gos to mui to de vocês . Mesmo
mesmo.
LÚCIO :_ A gente cur te você pra caramba. Não prec isa
f icar achando que é um órfão de compaixão. Você devia
dar mais va lor para o que você tem.
GABRIEL :_ É, eu se i .
(Toca o in ter fone) .
LÚCIO :_ É a p izza . ( vai ao in ter fone) . Pronto? ‘To
descendo. (des l iga) . Vou descer lá .
PATRÍCIA :_ O dinhei ro!
LÚCIO :_ Ah. Quanto deu, Gabr ie l?
GABRIEL :_ Quinze .
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PATRÍCIA (mexendo na bolsa) :_ Então deu quanto para
cada um?
GABRIEL :_Não. Eu pago.
PATRÍCIA :_ Não, espera a í . Metade , metade!
GABRIEL :_ Não, por favor . Por favor , Pat i . Hoje eu
ins is to , eu pago. (dá o d inheiro para LÚCIO) .
PATRICIA :_ ‘Ta bom então . Obr igada .
(LÚCIO desce) .
GABRIEL :_ Oba, p izz inha del íc ia , he in?
PATRÍCIA :_ Hmmm.
GABRIEL :_ Mais v inho?
PATRÍCIA :_ Quero .
(GABRIEL a serve) .
GABRIEL :_ Vamos f icar chapados .
PATRÍCIA :_ Pelos ve lhos tempos , Ga!
GABRIEL :_ Eu f ico chapado a qualquer hora . F iquei
mais preocupado com você . Mas você nunca fo i cer t inha
mesmo.
PATRÍCIA :_ E a inda não conseguiram me corr ig i r .
Pode encher a taça .
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(Enche) .
GABRIEL :_ Vou abr indo o outro v inho. . .
(Abre) .
PATRÍCIA :_ Já ‘ to começando a f icar a legr inha . E
você?
GABRIEL :_ É d i f íc i l eu f icar a legre com bebida . Eu
d i r ia que es tou começando a f icar t r i s t inho.
PATRÍCIA :_Puta merda , Ga! Que depr imido! Já se i .
Vamos numa balada hoje , mais ta rde . Que ta l? Daí você
se anima um pouco.
GABRIEL :_ Mas e o Lúcio? Ele não cur te nada de
música e le t rônica .
PATRÍCIA :_ A gente convence e le! Qualquer coisa
vamos nós dois . Só hoje!
GABRIEL ( indeciso) :_ Fes ta hoje . . .
PATRÍCIA :_ Vamos!
GABRIEL :_ Mais ta rde eu decido, ‘ tá?
PATRÍCIA :_ ‘Tá bom, Ga. . .
(LÚCIO entra com a p izza) .
LÚCIO :_Olá .
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PATRICIA :_ Hmmm!
GABRIEL :_ Nossa , puta fome!
(Sentam-se reunidos . Abrem a p izza) .
GABRIEL e PATRÍCIA :_ Nossa! (comem com a mão) .
LÚCIO :_ Putz , eu sabia que devia esperar pra jantar
aqui .
GABRIEL :_ Come um pedacinho!
LÚCIO :_ Ah, não . Eu já comi mesmo. Es tou sem fome
nenhuma.
PATRÍCIA :_ Ah, va i , Lúcio! Só por hoje . Pra
comemorar .
LÚCIO (Escr i tora:_ para quê ev i tar a id io t ice?) :_ ‘Tá
bom, me dá esse pedaço a í . (serve-se) .
Escr i tora:_ Cont inuam os t rês sentados , bebendo e
comendo. Bas tava fazer aqui lo . Era tão s imples . Era só .
Não precisa ter o t rabalho de ser a lguém para comer ou
beber; o que para e les era um al ív io e f icava sendo a
melhor hora da noi te .
PATRÍCIA :_ Vamos na balada hoje , Lúcio?
LÚCIO :_ Balada? Vocês ‘ tão loucos!
PATRÍCIA :_ Pra comemorar , vamos a í ! Que coisa!
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LÚCIO :_ Putz , nem se i . . . Amanhã eu tenho que acordar
bem cedo.
PATRÍCIA :_ Ai , Lú! Você não vai morrer se acordar
com sono amanhã (r i ) .
LÚCIO (e la o chamou de Lú) :_ Ai a i a i . . . be leza .
PATRÍCIA :_ Oba! Põe mais v inho pra nóis , Ga!
(GABRIEL serve a todos) .
(Comem e bebem) .
PATRÍCIA :_ Nossa , gente . Não agüento mais . ( leva o
prato na p ia) .
GABRIEL :_ Putz . Também não quero mais não . Quer
esse pedaço, Lúcio?
LÚCIO :_ Valeu , cara . ‘Tô bem sa t is fe i to .
(Fumam, t i ram as coisas da mesa. Bebem o que sobrou
da segunda garrafa . Sentam-se juntos no so fá , fumando) .
PATRÍCIA :_ Ai , como a gente es tá l ivre , não é? Sem
preocupação, cada um cuida da sua v ida , sem mãe pra
f icar fare jando aonde a gente va i , que beleza .
LÚCIO :_ Isso é bom. Mas hoje a gente t rabalha e cuida
da própr ia v ida . Isso é foda . Mas essa l iberdade vale a
pena mesmo. Olha a gente aqui , no ap . do Gabr ie l ,
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tomando vinho, comendo pizza e indo pra ba lada! Não é
coisa de cr iança não.
GABRIEL :_ A gente pensava nessa l iberdade toda vez ,
lembra? Sempre quando acontec ia a lguma merda , agente
pensava: “putz , se agente t ivesse um lugar só nosso pra
fugir” .
PATRÍCIA :_ Eu lembro. E agente não t inha lugar pra
sa i r de noi te e f icava rodando de car ro mesmo. (r i ) .
LÚCIO ( lembrando) :_ Nossa , cada uma.
GABRIEL :_ Puta merda . O passado melhora mas não
cura o presente . A gente fa lando de todas essas épocas
del ic iosas , da ans iedade pela l iberdade , mas sabe que eu
não perdi essa âns ia a inda? Hoje eu posso ter tudo bem
al i , mas tem um peso dentro que não me deixa i r pra
f rente .
LÚCIO :_ É que você a inda não se consol idou de
verdade na sua prof issão . E eu tenho cer teza que quando
você ar rumar uma namorada e começar a ganhar um
monte de prêmio, você nem vai perceber de tão l ivre que
vai es tar sendo. A sua hora a inda não chegou, meu amigo.
GABRIEL :_ Será?
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PATRÍCIA (bêbada) :_ F ica com medo não,
Gabr ie lz inho. . . (acar ic ia- lhe a nuca) . Fica ass im que do
je i to não vai dar pé .
LÚCIO (r indo) :_ O que você d isse?
PATRÍCIA :_ Sei lá . Eu nem se i mais o que eu ‘ tô
fazendo.
Escr i tora: _ Todos r iem. Só GABRIEL que dá uma
r isada d is farçada, tensa , es tranha – “Para quê
choramingar e depois dar inúmeras expl icações se todos
es tão se d iver t indo?”.
LÚCIO :_ Vou pegar um cigar r inho (vai t ropeçando) .
PATRÍCIA :_ Põe um som aí , Lú!
(LÚCIO imediatamente t i ra o cd de GABRIEL e coloca
outro , de mús ica mais modernosa, agi tadinha) .
Escr i tora:_ A mús ica; a mús ica!
PATRÍCIA (r indo) :_ Que música é essa , Lúcio?
LÙCIO ( r indo):_ Ah, é um cd que eu ganhei .
GABRIEL :_ Só porcar ia .
LÚCIO :_ Ah, Gabr ie l . Você não quer ia que eu
colocasse aquelas músicas suas , né , meu?
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GABRIEL :_ Não, tá bom. Tá bom. Hoje a Pat i es tá aqui
então pode botar qualquer música que vocês quiserem.
PATRÍCIA :_ Acabou o v inho?
LÚCIO ( fumando) :_ Você quer mais?
GABRIEL :_ Acabou. (pensando, a fas ta-se de tudo) .
PATRÍCIA :_ Ah, eu quer ia .
LÚCIO :_Virou p inguça?
PATRÍCIA (r indo) :_ P inguça , eu?
LÚCIO :_ ‘To br incando, Pat i !
PATRÍCIA :_ Ah, eu quer ia dar uma animada, vamos
fazer a lguma coisa! Vamos pra ba lada?
LÚCIO :_ Agora?
PATRÍCIA :_ É! Vamos , Ga?
Escr i tora:_ Não ouve nada. Cont inua em outro lugar .
PATRÍCIA :_Gabr ie l !
GABRIEL (chegando) :_ Oi?
PATRÍCIA :_E a í , vamos pra ba lada?
GABRIEL :_ Acho que eu não vou não, Pat i . Você não
vai f icar brava?
PATRÍCIA :_Por quê?
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GABRIEL :_ Não es tou mui to bom pra sa i r hoje .
LÚCIO :_ Puta merda , cara! Vai encanar com o f i lme de
novo?
PATRÍCIA :_ Aquele f i lme?
LÚCIO :_ É. Tem uma mulher no f i lme que chama o
cara pra uma fes ta e e le não vai , f ica em casa . E o
Gabr ie l f ica imi tando o f i lme, sabe? Uma encanação do
cacete .
GABRIEL :_ Não é que eu f ico encanado no f i lme! Eu
não es tou a f im de sa i r mesmo. Sei lá . Bebi demais ! Não
ia nem conseguir .
LÚCIO :_ Es tá bem, cara . Vamos f ingi r que es tamos no
f i lme, Richard . E as vozes? Es tão aqui , Richard?
GABRIEL :_ Pára , cara . Não é i sso .
LÚCIO :_ Mrs . Dal loway diz que vai comprar as f lores
e la mesma.
GABRIEL :_ Larga a mão disso .
PATRÍCIA :_Você v iu o f i lme?
LÚCIO :_Vi duas vezes no c inema por causa dos “por
favor , va i comigo” dele .
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PATRÍCIA :_ Vamos ver o f i lme então . Es tou cur iosa
já .
GABRIEL :_ Ah, não , gente . Deixa pra lá .
PATRÍCIA :_ Então vamos sa i r !
GABRIEL :_ Então beleza . Vamos sa i r , ué .
(S i lêncio) .
Escr i tora:_ Ela percebe a lguma coisa , en tão tenta não
press ionar demais .
PATRÍCIA :_ Gente , de ixa então . Vamos f icar aqui e
pronto . Já es tá ó t imo. A gente não é mais adolescente!
LÚCIO :_ Pelo je i to ; não é?
PATRÍCIA :_ Vamos conversar . O papo já tava ó t imo
pra quê parar , não é? Então . O que es tá acontecendo com
você , Ga?
GABRIEL ( já um tanto desesperado) :_ Boa pergunta!
Vocês me fazem tantas perguntas d i f íce is !
LÚCIO :_ É que é o seguinte . ( impõe-se) Os laços
despropos i ta is dos ar t i s tas ! (Para GABRIEL) Vê se não é
meio ass im, cara . (Para PATRÍCIA) Eu a té já converse i
bas tante com ele sobre i sso . Esse choque, essa encanação
engrunhida é porque a mãe do cara do f i lme t ra tou o f i lho
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mais ou menos da mesma maneira que a mãe do Gabr ie l
t ra tou e le e também tem outras coisas que e les se
parecem, você lembra da mãe do Gabr ie l?
PATRÍCIA :_Lembro.
Escr i tora:_ GABRIEL pres ta dedicada a tenção. Como
LÚCIO pode fazer uma coisa dessas? Que dom! Que
mergulho! Mas por qual razão e le tem de me humilhar?
LÚCIO :_ Duas mães que de je i tos d i ferentes
abandonaram o f i lho . Ao mesmo tempo em que são
bruxas , são santas . E cr iaram monst ros como Richard e
Gabr ie l . Pode ter de ixado e les de lado, mas são e ternas
grávidas .
GABRIEL (r indo) :_ Viu só? Nem preciso pagar
te rapeuta! Tenho tudo em casa!
PATRÍCIA :_ Mas o que fo i que sua mãe fez que te
de ixou tão t r i s te , Ga?
GABRIEL :_ Eu nem gos to mui to de f icar fa lando sobre
o je i to que f iquei por causa da minha mãe. Me s in to um
id io ta . E percebi que me s in to um id io ta de tanto que eu
cheguei ta rde pra ver como é que eu f iquei por causa
dela . Cheguei ta rde demais .
PATRÍCIA :_ Gabr ie l , a gente é seu amigo.
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GABRIEL (Escr i tora:_ com a frase de PATRÍCIA
ecoando dentro da cabeça. Ela es tá bêbada? Ela
realmente quer saber i sso?) :_ Ah, vamos cont inuar a
fa lar sobre as coisas boas que a gente faz ia! Para quê
lembrar das coisas pessoais , os medos , as paranóias !
Tava tão gos tosa nossas memórias de aventuras e o que a
gente aprontava .
LÚCIO :_ Mas a conversa chegou aqui , cara . E fo i por
acaso . Acho impor tante a gente revelar a té as coisas mais
ín t imas para os amigos de verdade. A gente não deve pôr
essa fa ls idade de vol tar aos assuntos fe l izes se a gente
chegou nos assuntos t r i s tes . Senão tudo parece tão
mi to lógico , tão representa t ivo .
GABRIEL :_ Mas tem tanta coisa . Se eu contasse o
porquê que eu acho que pareço com Richard , porquê
minha mãe ent ra na h is tór ia , por i sso ou por aqui lo , é
tudo tão evidente! Eu sou ass im do je i to que eu f iquei
hoje por causa de tudo o que aconteceu. E eu f iquei ass im
também porque tenho essa velha sens ib i l idade que é como
uma doença , en tende? Pode parecer tão imbeci l , mas uma
das coisas que eu mais lembro fo i ass im: Meu quar to
t inha um monte de desenhos do espaço, sabe? Até o te to ,
cheio de foguetes , p lanetas , es t re las e as t ronautas . Eu
sent ia que era o meu universo . E eu era o deus daquele
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universo . Até que minha mãe resolveu ar rancar o papel de
parede e tudo fo i p in tado de branco. Ela me deu aquele
mundo e de repente tudo es tava vazio quando eu cheguei
da escola . Tudo branco, fedendo a t in ta f resca . Eu t ive
que dormir em outro quar to por causa do chei ro e nunca
f iquei tão t r i s te . Como a cr iança sente essas coisas , não
é? E como isso inf luencia de outras maneiras , t ipo , a
mulher que me empres tou um universo e de repente , sem
consul ta , sem razão, por pura vaidade , t i ra esse universo
de mim.
Escr i tora:_ GABRIEL f ica meio sér io , pres tando
a tenção na conversa como um al ienígena lendo os lábios
para entender como os humanos são ass im. Af inal ,
conf iante , e le realmente expôs coisas de seu mais
in tangíve l in ter ior .
LÚCIO :_Ah, eu também t ive cada decepção quando eu
era cr iança . Uma vez eu quer ia fazer uma exper iência em
casa e bote i fogo no sofá mais adorado da famíl ia .
Queimei metade do negócio e chamaram bombeiro , levei
uma porrada do meu pai . Foda, né?
PATRÍCIA (r indo) :_ Você fez i sso , Lú? Ai , meu deus . . .
cada uma!
LÚCIO :_ E você , Pat i?
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PATRÍCIA :_ Ah, eu já afoguei o cachorro da minha vó
na p isc ina , já perdi na escola a roupinha de fes ta junina
da minha mãe, putz! Minha mãe sof reu comigo, coi tada .
LÚCIO (r indo) :_ Nossa , como você fo i levada , he in!
PATRÍCIA :_ Desas t rada! Sempre fu i desas t rada .
LÚCIO :_ É. As cr ianças são ass im. Imagine quando a
gente t iver nossos f i lhos .
PATRÍCIA :_ Nem me fa le n isso! Mais desas t res !
LÚCIO :_ Desas t res recompensadores .
PATRÍCIA :_ E afe t ivos!
(Riem) .
GABRIEL (metendo-se no meio da conversa) :_ Se for
para eu ter um f i lho , rezo para que e le nunca se ja como
eu sou. Nem como o Richard do f i lme. E que a mãe do
meu f i lho não se ja nem parecida com a minha nem com a
dele .
PATRÍCIA (r indo) :_ Tomara que eu não f ique como
sua mãe então .
LÚCIO (r indo) :_ Pelo amor de deus , he in Pat r íc ia!
GABRIEL :_ Puxa, como vocês são legais !
PATRÍCIA :_ Ah, br incadei ra , Ga.
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LÚCIO :_ Mas que não se ja mesmo! Você quer ia que a
Pat i fosse como sua mãe para o f i lho dela?
GABRIEL :_ Claro que não.
PATRÍCIA :_ Gente , vou no banheiro . (Vai) .
Escr i tora:_ Sobram GABRIEL e LÚCIO na sensação de
que a tormenta PATRÍCIA deu uma pausa, esse era o
momento do d ia que e les es tavam como antes de la
chegar . GABRIEL já sente fa l ta . LÚCIO sente a l ív io e
percebe que se cansou. E não supor ta mais ouvir o
amigo.
GABRIEL :_’Tá vendo? As mulheres v ivem mui to mais
no passado do que nós . Apegam-se aos lugares ; e seus
pais . . . as mulheres sempre se orgulham de seus pais . Eu
aqui , como uma es tá tua ant iga ro ída de chuva ác ida e e la
lá , com a cabeça no fu turo e com a roupa do passado,
como se agora não exis t i sse .
LÚCIO :_ Mas agora exis te ou tudo não passa de uma
cont inuação?
GABRIEL :_ Não se i .
LÚCIO :_ Ai , cara . Já es tá meio tarde . ( levanta-se) . Vou
dormir , que amanhã começa tudo de novo. Você não vai
dormir?
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GABRIEL :_ Vou depois . Pode i r .
LÚCIO :_ Beleza . Boa noi te , en tão , Gabr ie l .
GABRIEL :_ Boa noi te .
LÚCIO ( indo ao quar to , no corredor) :_ Boa noi te , Pat i !
PATRÍCIA (do banheiro) :_ Já va i dormir?
LÚCIO:_ Amanhã vou t rabalhar . Foda, né?
PATRÍCIA (abr indo a por ta , sa indo) :_ Es tá bem. Boa
noi te . (Bei ja- lhe a bochecha) .
(LÚCIO vai para o quar to . PATRÍCIA caminha meio
insat is fe i ta a té a sa la) .
Escr i tora:_ Não procura saber , mas a lgo lhe d iz que
vai ter de agüentar esse GABRIEL novamente . Agora sem
a a juda do outro amigo. E GABRIEL descobre que agora
não haverá mais quem possa romper com sua própr ia
verdade. PATRÍCIA e GABRIEL em s i lêncio .
GABRIEL (sorr indo) :_ Quer um café?
PATRÍCIA:_ Tem chá?
(GABRIEL levanta e se dedica ao chá. PATRÍCIA mexe
nas coisas do apar tamento . Acaba achando o f i lme) .
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PATRICIA (observando a capa da cópia) :_ É pra fa lar
de você? Tudo bem, entendi o jogo. O que você v iu nesse
f i lme? Até agora fo i o Lúcio que d isse por você .
GABRIEL :_ Fala sobre t rês mulheres num único d ia . Só
que a v ida cabe toda nesse d ia . Uma escreve um l ivro .
Em outra época uma mulher es tá lendo esse l ivro . E a
out ra v ive nos d ias de hoje e meio que es tá v ivendo a
h is tór ia do l ivro .
PATRICIA :_ Legal . Parece ser d i ferente .
GABRIEL :_ Prec iso fa lar a lguma coisa? (vai serv indo
o chá) . É bem diferente , sabe? Tenho que fa lar sobre o
f i lme. Um f i lme é um f i lme quando você percebe que
exis te a lguma coisa por t rás da h is tór ia . Sabe que a
pa lavra f i lme é de pel ícula , de pele . E se você consegue
enxergar a lgum nervo, a lgum sangue ou a lguma a lma por
t rás dessa pele a í você soube entender o f i lme. É que nem
as páginas de um l ivro . As páginas es tão a l i , é a pe le ,
mas o espí r i to , o sangue, o coração, os ossos , es tão tudo
no meio das f rases , en t re as pa lavras . E o in teressante é
que e le é um personagem, não exis te , mas aqui no rea l
e le es tá me pegando, e le me in t r icou, entende? Ele f ica
meio que ass im no f i lme. . . (T ira a camise ta . pega o
roupão e o gorro) .
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Escr i tora:_ Agora, mais uma vez , mas como se fosse a
vez de f in i t i va , a grande tenta t iva de t rans formação, e le
vai ser Richard Brown; Ele vai ser Richard, mas sempre
na pele de Gabr ie l .
GABRIEL:_ Desse je i to , com essas roupas no
apar tamento dele , doente , e le tem Aids sabe , escreveu um
l ivro , uma espécie de tenta t iva de l ivro , um l ivro que fo i
para e le como uma bacia que e le vomitou tudo o que
es tava enta lado no corpo, essa ca ixa mole que guarda os
órgãos humanos , e não consegue supor tar mais a v ida .
Até perdeu a noção do tempo. Nem sabe se já es tá mor to .
PATRICIA :_ Pelo je i to você cur te bas tante esse
personagem aí . Você comprou as roupas dele?
GABRIEL :_ Não, eu já t inha . Sabe , e le é um grande
homem. Ele la rgou a v ida para sa lvar out ra . Eu meio que
me tornei fã de le . Para mim, a a t i tude desse personagem
é um verdadeiro exemplo . Mas o f i lme tem mui tas out ras
coisas , a gente ia f icar fa lando e fa lando.
PATRICIA :_ Vamos ass is t i r o f i lme .
GABRIEL :_ Eu não se i se vou poder , Pat r íc ia .
PATRICIA :_ Por quê?
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GABRIEL :_ É que esse f i lme anda mexendo mui to
comigo. Eu es tou f icando com medo dele .
PATRICIA :_ Ai , Ga. Não fa la i s so . É só um f i lme.
GABRIEL :_ É, eu se i . Mas é como eu d isse . É só um
f i lme, mas que me deu a enxergar as coisas que es tão
dentro dele . O Antônio deve ter gos tado. Ele v iu esse
f i lme lá? Fez mui to sucesso . E e les f i lmaram por a l i
também.
PATRICIA :_ Nem se i se e le v iu . Ele tem t rabalhado
tanto . Não sobra tempo nem pra comer d i re i to , quanto
mais i r ao c inema, coi tado.
GABRIEL :_ Ele anda bem ocupado, então?
PATRICIA (d is tante) :_ Ele anda fazendo de tudo.
Trabalhando d ia e noi te .
GABRIEL :_ Ele é um homem de sor te .
PATRICIA :_ E você , Ga? F ica aqui o d ia in te i ro . . . Não
faz mais nada da v ida?
GABRIEL (Escr i tora:_ não sabe para onde ir , quase
não consegue d izer uma palavra sequer . Prefer ia ser um
mudo. Um morto) :_ Não.
PATRICIA :_ Por quê?
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GABRIEL (Escr i tora:_ Fica choroso, não pode fazer
coisa nenhuma. Alcançaram num ponto do qual a verdade
necess i ta ter ex is tência) :_ Eu não posso ser mais nada .
(Ves te o roupão e o gorro) .
PATRICIA :_ Mas você a inda quer ser escr i tor?
GABRIEL :_ S im. Eu quer ia poder escrever . Mas se i
que não posso .
PATRICIA :_ O que acontece?
GABRIEL :_ É apenas mui ta coisa . Eu não cons igo
mais . Eu es tou f icando com pena dos meus amigos por
causa desses conselhos forçados só pra tentar aca lmar um
pouco essa paranóia doent ia que se in t rometeu aqui na
minha pele .
PATRICIA :_ Você a inda tem a v ida in te i ra pe la f rente .
GABRIEL :_ I sso mesmo. Saber que a inda tenho a v ida
in te i ra pe la f rente acabou se tornando meu maior medo.
Aquele t rac inho ent re o ano de nasc imento e o ano da
mor te que aparece nos túmulos e nas b iograf ias fo i a p ior
coisa que já me aconteceu.
PATRICIA :_ Não fa la ass im; você , que é tão d i ferente .
Eu se i que a inda pode fazer a lguma coisa .
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GABRIEL :_ Eu posso ser d i ferente para as pessoas que
v ivem de je i to t r iv ia l . Mas eu não cons igo entender
minha d i ferença , o que me torna a lguém es t ranho ent re o
banal e o incomum. Eu mesmo tenho a per fe i ta
consciência dessa pessoa especia l que eu poder ia es tar
sendo, ah s im, tenho mesmo, mas essa consciência não
pode compreender se es tá pensando de modo
pr inc ipalmente d i ferente ou s implesmente normal . Eu
quer ia ser ass im que nem você . O je i to que você leva sua
v ida f ica fazendo de mim uma pessoa melhor , en tende?
(GABRIEL avança em PATRICIA e a bei ja de maneira
s igni f ica t iva , nada demasiada, to lerante e “ teatral” ,
Escr i tora :_ e ten ta sugá- la o quanto puder o que e la é .
PATRICIA não move e não sente nada. Nada mesmo) .
(Longa pausa. Música) .
GABRIEL :_ Eu não consegui ser banal e não consegui
pôr para fora o que me faz ia ser tão incomum. Então o
que sobrou? Esse f racasso que , não tendo mais em quem
se espelhar , admira os f racassados . Os que vencem amam
os vencedores . Eu me contento com quem f racassa . F ico
ass is t indo o tempo enquanto tenho a conf iança segura que
essa v ida vai te rminar . E ass im é que é o f i lme “as
horas” . Essa coisa ent re o poder do tempo e a esperança
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de ser a lguém. F ica desvendando a cada momento nem
“quem é você” , mas “o que é você” . O que é você , Pat i?
Você vai esperando o seu amado e enquanto i sso procura
ar rumar coisas para se d is t ra i r . I sso é v ida . A longa
espera para morrer , ou para acabar logo com tudo ou para
v iver do je i to que quiser para sempre . E eu acho que t ive
a opor tunidade de nascer para ver como é boni to a lguém
viver ass im.
(PATRÍCIA chora) .
GABRIEL (como se es t ivesse marchando, indo para a
janela , sentando na beira , levantando as pernas e
segurando os joe lhos , de ixando seu corpo ocupando o
menor espaço poss íve l ) :_ Af inal o que você acha que eu
es tou fazendo aqui , conversando com você , Pat i? Eu
es tou apenas esperando tudo o que exis te i r embora . Eu
es tou esperando as horas passarem de uma vez para tudo
o que eu v iv i de ixar essa rea l idade . Eu quer ia é es tar
escrevendo. Sabe , escrever é a permissão para você
conseguir ent rar em s i mesmo. E escrevendo eu poder ia
colocar todas as minhas dores . Eu quer ia es tar
escrevendo sobre tudo. Eu quer ia escrever como fo i o seu
d ia hoje , a tex tura desse chão, o je i to que a luz i lumina a
c idade , quais são as cores mais encantadoras , quais são
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os pensamentos que v ivem encos tados nas pessoas . Mas
eu f racasse i , minha l inda .
Escr i tora:_ Ela é l inda e es ta a f irmat iva é como um
car imbo de conf irmação. Pois e le a inda t inha idade de
chamar uma mulher de l inda e fazê- la sent ir -se bem.
Af inal um homem com mais de c inqüenta anos como
Richard, ao d izer “minha l inda” a uma moça, ser ia como
as palavras de um pai , uma dedicação paterna. Mas a um
rapaz como Gabr ie l , um e logio recompensador , um
convi te à v ida .
(PATRÍCIA não consegue. Es tá es tá t ica) .
(LÚCIO chega; tenta encontrar o que es tá
acontecendo) .
GABRIEL (para s i ) :_ Eu não posso mais cont inuar
es t ragando sua v ida . E não acredi to que duas pessoas
foram mais fe l izes do que nós fomos . (Treme de medo.
Fecha os o lhos com as mãos . Inc l ina-se) .
LÚCIO (de o lhos fechados , na conf iança, num
sussurro) :_ Isso mesmo.
(GABRIEL se arremessa janela abaixo) .
PATRÍCIA (num lamento profundo) :_ Ai , meu deus do
céu! Ai , meu deus! Vamos chamar uma ambulânc ia!
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Vamos descer lá em baixo, por favor! Ai , que é i sso?
Meu deus! Lúcio , porque e le fez i sso? O que é i sso? O
que é i sso tudo? Porque você es ta a í parado que nem um
id io ta , Lúcio?
LÚCIO :_ Deixa d isso , Pat r íc ia . Não prec isa fazer nada .
Escr i tora:_ Aos l e i t ores que a inda permanecem nes t e l i v ro ,
a t é a f rase de Lúc io posso cons iderar a obra t e rminada. Aos
que qu i serem saber o porquê daque le su i c íd io por opção ,
hes i t o expl i car t anto de modo reservado quanto de modo
panorâmico e f r í g ido , poi s não t enho coragem em d i s secar
aque la mor te . Porque a lguém prec i sa morrer para os ou t ros
darem mai s va lor a v ida . E e le morreu por e l e s . E ganhou a
recompensa de sent i r na pe l e o que é se r um ar t i s ta
imor ta l i zado pe la mor t e de opção par t i cu lar . Com medo de
descobr i r a v ida , f i nalmen te encará- la face -a- face , a segui r
amá- la e depo i s de i xá- la de l ado. E l e t inha que morrer por
causa do que acon teceu an tes , do que acontec ia agora e do
que ia acon tecer depo i s . Por causa do tempo . Por causa do
amor . Por causa das horas .
VICTOR STEINBERG MOTTA nasceu
em Campinas , São Paulo , em 1985. Ator
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formado pelo Conservatór io Car los Gomes ,
escreve desde os 13 anos . Aos 15 escreveu
a peça A Chuva , publ icada em 2002 e
recebeu a medalha Car los Gomes pela
Câmara Munic ipal de Campinas “pelos
re levantes serv iços pres tados nos campos
da cul tura e da ar te” . Es ta é sua segunda
obra tea t ra l .
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