Woolf, Virginia. Mrs Dalloway

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UmaintroduçãoaMrs.DallowayVirginiaWoolfÉDIFÍCIL–TALVEZIMPOSSÍVEL–aumescritordizerqualquercoisasobresuaobra.Tudooqueeletemadizer,jádissedamaneiramaiscompleta,damelhormaneiraquelheépossível,nocorpodoprópriolivro.Senãoconseguiudeixarclarooquepretendiadizer,époucoprovávelqueconsiganumprefácioounumposfáciodealgumaspáginas.Eamentedoautortemoutracaracterísticaquetambéméavessaaintroduções.Éinóspitaparasuacriacomouma

pardocacomseusfilhotes.Depoisqueasavezinhasaprendemavoar,têmdevoar;quandosaemdoninho,amãecomeçatalvezapensaremoutraprole.Damesmaforma,depoisdeimpressoepublicado,umlivrodeixadeserpropriedadedoautor;esteoconfiaaocuidadodosoutros;todaasua

atençãoédemandadaporalgumnovolivro,quenãosóexpulsaopredecessordoninho,comotambémcostumadenegrirsutilmenteo

caráterdooutroemcomparaçãoaodelemesmo.Éverdadequeoautor,sequiser,podenoscontaralgumacoisadesiedesuavidaquenãoestánoromance;eéalgoquedevemosincentivar.Poisnãoexistenadamaisfascinantedoqueseenxergaraverdadeportrás

daquelasimensasfachadasdeficção–issoseavidafordefatoverdadeiraeseaficçãofordefatofictícia.Eprovavelmentealigaçãoentreambasédeextremacomplexidade.Livrossãofloresoufrutaspendentesaquiealinumaárvorecomraízesprofundasnaterradenossosprimeirosanos,denossasprimeirasexperiências.Mas,aquitambém,paracontaraoleitoralgumacoisaquesuaimaginaçãoepercepçãoaindanãodescobriu,seria

necessárionãoumprefáciodeumaouduaspáginas,esimumaautobiografiaemumoudoisvolumes.Devagar,comcuidado,oautorselançariaaotrabalho,desenterrando,desnudando,e,mesmodepoisde

trazertudoàsuperfície,aindacaberiaaoleitordecidiroqueimportariaeoquenãoimportaria.Assim,quantoaMrs.Dalloway,aúnicacoisapossívelnomomentoétrazeràluzalgunspequenosfragmentos,depoucaoutalveznenhumaimportância:porexemplo,queSeptimus,quedepoissetornao

duplodela,nãoexistianaprimeiraversão;equeMrs.Dalloway,originalmente,iasemataroutalvezapenasmorrernofinaldafesta.Essesfragmentossãohumildementeoferecidosaoleitor,naesperançadeque,

comooutrasmiudezas,possamserúteis.Mas,setemosdemasiadorespeitopeloleitorpuroesimplesparalhe

apontaroquedeixoupassaroulhesugeriroquedeveprocurar,podemosfalardemodomaisexplícitoaoleitorquedespiusuainocênciaesetornoucrítico.Pois,aindaquesedevaaceitaremsilêncioacrítica,sejapositivaou

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negativa,comoolegítimocomentárioaqueconvidaoatodapublicação,devezemquandoaparecealgumaafirmaçãoquenãoserefereaosméritosoudeméritosdolivroequeoescritorsabequeéequivocada.ÉumaafirmaçãodessasquesetemfeitosobreMrs.Dallowaycomfrequência

suficienteparamerecertalvezumaobjeção.Disseramqueolivroerafrutodeliberadodeummétodo.Disseramqueaautora,insatisfeitacomaformadeficçãoemvoganaépoca,decidirapedir,tomaremprestado,roubaroumesmocriaroutraformaprópria.Mas,atéondeépossívelserhonestosobreomisteriosoprocessomental,osfatossãooutros.Insatisfeita,aescritorapodiaestar;massuainsatisfaçãosedirigiabasicamenteànatureza,pordarumaideiasemlheproverumacasaondepudesse

morar.Osromancistasdageraçãoanteriornãoajudarammuito–aliás,porquehaveriamdeajudar?Evidentemente,amoradaeraoromance,masele

pareciaconstruídosobreoprojetoerrado.Aessaressalva,aideiacomeçou,comocomeçaaostraouocaracol,asecretarumacasaprópria.Eassimprocedeusemnenhumrumoconsciente.Ocaderninhoqueabrigavaumatentativademontarumprojetologofoiabandonadoeolivrocresceu

diaadia,semanaasemana,semprojetonenhum,excetooqueeradeterminadoacadamanhãnaatividadedeescrever.Desnecessáriodizer

queaoutramaneira–construirumacasaedepoismorarnela,desenvolverumateoriaeentãoaplicá-la,comofizeramWordsworthe

Coleridge–éigualmenteboaemuitomaisfilosófica.Mas,nopresentecaso,foinecessárioantesescreverolivroedepoisinventarumateoria.Se,porém,assinaloestepontoespecíficodosmétodosdolivropara

discussão,épelarazãocitada:porquesetornoutemadecomentárioentreoscríticos,enãoporquemereçaatençãoemsi.Pelocontrário,quantomaisbem-sucedidoométodo,menosatençãoeleatrai.Oqueseesperaéqueoleitornãodediquenenhumpensamentoaométodoouàfaltademétododolivro.Oquelhedizrespeitoéapenasoefeitodolivrocomoumtodoemsuamente.Destaquestão,amaisimportantedetodas,eleéumjuizmuitomelhordoqueoescritor.Naverdade,tendotempoeliberdadepara

moldarsuaprópriaopinião,aofimeaocaboeleéumjuizinfalível.Éaele,então,queaescritoraentregaMrs.Dallowayesaidotribunalconfiantede

queoveredito,sejaamorteimediataoualgunsanosmaisdevidaeliberdade,emqualquerdoscasosserájusto.

Londres,junhode1928

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Mrs.Dalloway

MRS.DALLOWAYdissequeelamesmairiacomprarasflores.PoisLucyestava com todoo serviçoprogramado. Iamretirarasportas

dos gonzos; os homens da Rumpelmayer’s estavam para chegar. Alémdisso,pensouClarissaDalloway,quemanhã– frescacomodeencomendaparacriançasnapraia.Que divertimento! Que mergulho! Pois tinha sido esta a impressão

quando, com um leve ranger dos gonzos, que podia ouvir agora, haviaescancarado as portas francesas e mergulhado no ar livre em Bourton.Quefresco,quecalmo,maistranquilodoqueeste,claro,eraoardemanhãcedo; como o tapa de uma onda; o beijo de uma onda; frio e cortante emesmo assim (para uma mocinha de dezoito anos, como era na época)solene,sentindo,comosentiualidepéàportaaberta,quealgoprodigiosoestava para acontecer; olhando as lores, as árvores com a névoa sedissipandoeasgralhassubindoedescendo;depé,olhando,atéquePeterWalsh falou: “Cismando entre as plantas?” – foi isso? – “Pre iro gente acouves- lores”– foi isso?Deve ter faladoduranteodesjejumnumdiaemqueelasaiuàvaranda–PeterWalsh.EstavaparavoltardaÍndianumdiadesses, em junho ou julho, não lembrava bem, pois as cartas dele eramprodigiosamente insípidas; eram seus ditos que a pessoa lembrava; osolhos, o canivete, o sorriso, o jeito irritadiço e, quandomilhões de coisastinham desaparecido totalmente – que estranho! –, alguns ditos comoaqueledascouves.Ela se retesou um pouco no meio- io, esperando o furgão da Durtnall

passar. Uma mulher encantadora, pensou Scrope Purvis (conhecendo-acomo as pessoas conhecem seus vizinhos de porta emWestminster); umtoque de pássaro nela, de gaio, azul-esverdeado, leve, vivaz, emboraestivesse com mais de cinquenta anos, e muito pálida desde a doença.Ficoualipousada,semover,esperandoparaatravessar,muitoaprumada.Pois,morandoemWestminster–quantosanosagora?maisdevinte–,a

pessoa sente mesmo em pleno trânsito, ou acordando à noite, Clarissatinha amaior convicção, uma solenidade ou silêncio especial; uma pausaindescritível; uma ansiedade (mas podia ser o coração dela, afetado,disseram,pelagripe)antesdesoaroBigBen.Pronto!Bateu.Primeiroumaviso, musical; então a hora, irrevogável. Os círculos de chumbo sedissolveram no ar. Como somos tolos, pensou atravessando a VictoriaStreet.Poissóoscéussabemporqueagentetemtantoamorporela,cuida

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tanto dela, trata com jeito, constrói, desmonta, recria toda ela a cadainstanteemnossavolta; easmulheresmaisdesmazeladas,maisabatidaspela desgraça, sentadas nos degraus das portas (sua ruína a bebida)fazemamesmacoisa;nãohá,sentiucomamaiorconvicção,comotratá-laspordecretoparlamentarporcausadaquelamesmíssimarazão:elasamama vida. No olhar das pessoas, no andar ondulante, no passo irme ouarrastado;nagritariaetumulto;nascarroças,automóveis,ônibus,furgões,homens-cartaz gingando e arrastando os pés; nas bandas e realejos; namarcha,norefrãoenaestranhacantoriaagudadealgumaviãoláemcimaestavaoqueelaamava:avida,Londres,estemomentodejunho.Pois eram os meados de junho. A guerra tinha acabado, exceto para

aquelescomoMrs.Foxcroftnaembaixadananoiteanteriorconsumindo-seporqueaquelebomgaroto foimortoeagoraovelhosolar terádepassarparaumprimo;ouLadyBexboroughqueinaugurouumbazarbeneficente,dizem, com o telegrama na mão, John, seu favorito, morto; mas tinhaacabado; graças aos céus – tinha acabado. Era junho. O rei e a rainhaestavamnopalácio. E por todaparte, embora fosse ainda tão cedo, haviauma vibração, um bulício de cavalos a galope, de tacadas de críquete;Lord’s,Ascot,Ranelaghe todososdemais;envoltosnamalhamaciadoarmatinalcinza-azulado,que,conformeodiaavançasse,iriasedesprenderetraria a seus gramados e campos de críquete os cavalos vigorosos, cujaspatasdianteirasmal tocavamo soloe já saltavam,os rapazesanimadoseasmoças risonhas em suasmusselinas transparentes que,mesmo agora,depois de dançar a noite toda, estavam levando seus absurdos cãesfelpudos para um passeio; e mesmo agora, a esta hora, velhas viúvasdiscretasdirigiamseuscarrosatodavelocidadeemmissõesmisteriosas;eos comerciantes ajeitavam nas vitrines seus diamantes e pedras defantasia,seusadoráveisbrochesverde-marantigosemengastesdoséculoXVIII para atrair americanos (mas é preciso economizar, não comprarcoisas de impulso para Elizabeth), e ela também, amando aquilo comoamava com uma paixão absurda e iel, fazendo parte daquilo, pois suafamíliatinhapertencidoàcortenaépocadosGeorges,elatambémnaquelamesma noite ia brilhar e refulgir; ia dar sua festa. Mas que estranho,entrando no parque, o silêncio; a neblina; o zumbido; os patos felizesnadandodevagar;ospelicanosbamboleando;equemseriaaquelequeseaproximava deixando às costas os edi ícios do governo, muito decoroso,portando uma pasta de documentos com o brasão real impresso, quemsenãoHughWhitbread,seuvelhoamigoHugh–oadmirávelHugh!–Bomdiaparavocê,Clarissa!–disseHughbastanteexuberante,poisse

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conheciamdesdecrianças.–Aondevocêestáindo?–AdoropassearemLondres–disseMrs.Dalloway.–Realmentemelhor

doquepassearnocampo.Eles tinham acabado de chegar – infelizmente – para ver os médicos.

Outrosvinhamparaverquadros;parairaoteatro;parasaircomas ilhas;os Whitbread vinham para “ver os médicos”. Vezes sem conta ClarissatinhavisitadoEvelynWhitbreadnumacasadesaúde.Evelynestavadoentedenovo?Evelynandavamuitoindisposta,disseHugh,sugerindocomumaespéciededilataçãoouin lamentodopeitomuitobemrevestido,másculo,extremamenteelegante,perfeitamenteestofado(eleandavasempremuitobem-vestido,quaseatédemais,masprovavelmenteprecisavaandarassim,com seu pequeno emprego na corte), que suamulher estava com algumproblema interno, nada de sério, o que Clarissa Dalloway, como velhaamiga, entenderia plenamente sem precisar entrar em detalhes. Ah sim,disse, que pena; e se sentiu muito solidária e ao mesmo tempoestranhamente cônsciade seu chapéu.Nãoerao chapéu certoparausardemanhãcedo,era?PoiscomHughelasempresesentia,enquantoelesedespedia levantando o chapéu com certo exagero e assegurando-lhe queelapareciaumamocinhadedezoitoanos,eclaroqueiriaàsuafestahojeànoite,Evelyn faziaquestão absoluta, sóque talvez se atrasasseumpoucoporcausadafestanopalácioàqualtinhadelevarumdosgarotosdeJim–aoladodeHughelasempresesentiaumpoucoinadequada;umameninadeescola;masafeiçoadaaele,emparteporqueoconheciadesdesempre,mas também achava que era uma boa pessoa à sua maneira, emboraRichard icasse quase louco de exasperação com ele, e, quanto a PeterWalsh,nuncaaperdoaraatéhojeporgostardele.ElapodialembrarcenaapóscenaemBourton–Peterfurioso;Hughnão

à sua altura, claro, de maneira nenhuma, mas não um imbecil rematadocomoPeterachava;nãoummerojanota.Quandosuavelhamãequeriaqueele interrompesse uma caçada ou a levasse a Bath, ele ia, sem umapalavra;erarealmentedesprendido,edizer,comodiziaPeter,queelenãotinha coração, nem cérebro, nemnada alémdasmaneiras e da educaçãode um cavalheiro inglês, era apenas seu querido Peter num de seusacessos; e ele podia ser insuportável; podia ser impossível; mas umacompanhiaadorávelparapassearnumamanhãcomoesta.(Junho tinha feito brotarem todas as folhas das árvores. As mães de

Pimlico amamentavam os ilhos. Mensagens trafegavam da Armada aoAlmirantado.ArlingtonStreetePiccadillypareciamesquentaropróprioardoparque e erguer suas folhas comcalor, combrilho, emondasdaquela

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divina vitalidade que Clarissa amava. Dançar, andar a cavalo, tinhaadoradotudoaquilo.)Pois podiam icar separados durante séculos, ela e Peter; ela nunca

escreveu uma única carta e as dele não tinham a menor graça; mas derepente lhe ocorria, se ele estivesse comigo agora, o que diria? – algunsdias, algumas cenas trazendo-o de volta calmamente, sem a velhaamargura; o que talvez fosse a recompensa por ter gostado de alguém;voltavam no meio do St. James’s Park numa bela manhã – realmentevoltavam.MasPeter–pormaislindoquefosseodia,elindasasárvores,agrama, ameninade cor-de-rosa –Peternunca vianadadaquilo. Poria osóculos, se ela dissesse; e olharia. O que o interessava era a situação domundo; Wagner, a poesia de Pope, o caráter das pessoas, sempre, e osdefeitosdaalmadela.Comoelecaçoavadela!Comodiscutiam!Iriasecasarcom um primeiro-ministro e se postaria no alto de uma escadaria; aperfeitadamadesociedade,foicomoelefalou(elatinhachoradonoquartoporcausadisso),tinhaasqualidadesdaperfeitadamadesociedade,disseele.Assim ela ainda se pegava discutindo no St. James’s Park, ainda

concluindoquetinhafeitobem–emaisdoquebem–emnãosecasarcomele. Pois no casamento precisa existir uma pequena liberdade, umapequenaindependênciaentreaspessoasquevivemjuntasnamesmacasadia após dia; coisa que Richard lhe dava, e ela a ele. (Onde estava eleagora, por exemplo? Em algum comitê, ela nunca perguntava qual.) MascomPeter tudotinhadeserdividido; tudopartilhado.Eera intolerável,e,quandohouveaquelacenanojardinzinhojuntoàfonte,elatevederompercom ele ou sairiam destruídos, ambos arrasados, tinha certeza; emboraduranteanos tivessecarregadodentrodesi comouma lechacravadanocoraçãoador,aangústia;eentãoohorrordoinstantequandoalguémlhecontouduranteumconcertoqueeletinhasecasadocomumamulherqueconheceranonavioindoparaaÍndia!Elanuncaesquecerianadadaquilo!Fria,desalmada,umapuritana,disse-lheele.Nuncaconseguiriaentenderoquantoelegostavadela.Masaquelas indianasdecertoentendiam–umaspatetastolas,bonitinhas,frívolas.Eelaestavasecompadecendoàtoa.Poisestava muito feliz, garantiu-lhe ele – plenamente feliz, embora nuncativesse feito nada de destaque; sua vida inteira tivesse sido um fracasso.Issoaindadespertavaraivanela.Tinhachegadoaosportõesdoparque.Ficoualiummomento,olhandoos

ônibusemPiccadilly.Agora ela não falaria de ninguémnomundo, não diria que era isso ou

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aquilo. Sentia-se muito jovem; ao mesmo tempo indizivelmente velha.Penetrava em tudo como uma faca; ao mesmo tempo estava de fora,observando. Tinha uma sensação constante, enquanto olhava os táxis, deestar fora, longe,muito longenomar e sozinha; sempre tinha a sensaçãode que era perigoso, perigosíssimo vivermesmo que fosse um único dia.Não que se achasse inteligente ou muito especial. Como conseguiraatravessar a vida com os iapos de instrução que Fräulein Daniels lhesdera, não fazia ideia. Não sabia nada; nem línguas, nem história; agorararamenteliaalgumlivro,excetomemóriasnacama;emesmoassimparaelaeraabsolutamenteabsorvente;tudoisso,ostáxispassando;enãodiriadePeter,nãodiriadesimesma,souisso,souaquilo.Seu único dom era conhecer as pessoas quase por instinto, pensou

voltandoaandar.Seapunhamnumasalacomalguém,arqueavaodorsocomoumgato;ouronronava.DevonshireHouse,BathHouse,acasacomacacatua de porcelana, outrora tinha visto todas elas acesas; e lembravaSylvia, Fred, Sally Seton – tanta gente, e dançando a noite toda; e oscarroções seguindo pesados para o mercado; e voltando de carro paracasapeloparque.LembravaqueumaveztinhaatiradoumamoedanolagoSerpentine.Maslembrartodoslembravam;oqueelaamavaeraisso,aqui,agora,àsuafrente;asenhoragordadentrodotáxi.Entãoqueimportânciatinha,perguntouasimesma,seguindoparaaBondStreet,queimportânciatinhaseinevitavelmentedeixariadeexistir;setudoissoiriacontinuarsemela;ressentia-secomaquilo,ounãoseriaumconsolocrerqueamorteerao imabsoluto?masquedealgumamaneira,nasruasdeLondres,no luxoere luxodascoisas,aqui,ali,elasobrevivia,Petersobrevivia,viviamumnooutro,ela fazendoparte,não tinhadúvidanenhuma,dasárvoresdecasa;dacasade lá, feia, todaesparramadacomoera; fazendopartedepessoasque nunca conheceu; estendida como uma névoa entre as pessoas quemais conhecia, que a erguiam em seus galhos como vira as árvoresergueremanévoa,masqueseespraiavasempremaisemais,suavida,elamesma.Mas comoqueestava sonhandoenquantoolhavapela vitrinedaHatchards’? O que estava tentando recuperar? Que imagem de umabrancaauroranocampo,enquantolianolivrocomaspáginasabertas:

NãotemasmaisocalordosolNemasirasdoinvernofurioso.

Essaépocarecentedaexperiênciadomundotinhacriadoemtodoseles,homens e mulheres, um poço de lágrimas. Lágrimas e dores; coragem eresistência; uma conduta perfeitamente correta e estoica. Pense-se, por

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exemplo, na mulher que ela mais admirava, Lady Bexborough,inaugurandoobazar.AlihaviaPasseiosediversõesde Jorrocks;haviaEsponjaensaboada,as

Memórias de Mrs. Asquith e Safáris na Nigéria, todos com as páginasabertas. Eram sempre tantos livros; mas nenhum que parecesseplenamente adequado para levar a Evelyn Whitbread em sua casa desaúde. Nada que servisse para entretê-la e fazer com que aquelamulherzinha indescritivelmente mirrada parecesse cordial, ao entrarClarissa, pelo menos por um instante; antes que começassem a usualconversa interminável sobre as indisposições femininas. Como desejavaisso –que aspessoasparecessemcontentesquando ela entrava, Clarissapensou,eseviroueretomouadireçãodaBondStreet,aborrecida,porqueerauma tolice ter segundas intençõespara fazer as coisas.Muitomelhorse fosse uma daquelas pessoas como Richard que faziam as coisas pelasprópriascoisas,enquantoela,pensouesperandoparaatravessar,metadedo tempo fazia as coisas nãopura e simplesmente, nãopor elasmesmas,masparaqueaspessoaspensassemissoouaquilo; idioticetotalsabiaela(e então o guardade trânsito ergueu amão) pois nuncaninguémnotavanem por um instante. Oh se ela pudesse ter sua vida de volta! pensouparandonacalçada,pudesseteratéoutraaparência!Seria,emprimeirolugar,morenacomoLadyBexborough,comumapele

de pergaminho enrugado e belos olhos. Seria, como Lady Bexborough,lenta e majestosa; mais para robusta; interessada em política como umhomem;comumacasadecampo;muitodigna,muitosincera.Emvezdisso,parecia um varapau; tinha um rosto miúdo ridículo, bicudo como de umpássaro. Bom porte tinha, isso era verdade; e mãos e pés bonitos; e sevestiabem,considerando-sequegastavapouco.Masagoraessecorpoqueela portava (parou para olhar uma pintura holandesa), esse corpo, comtodas as suas qualidades, muitas vezes parecia nada – absolutamentenada. Tinha a sensação estranhíssima de ser invisível, de não ser vista;ignorada; agora não existindomais casamento, não existindomais ilhos,mas apenas esse avanço surpreendente ebastante solene comos outros,subindo a Bond Street, sendo Mrs. Dalloway; nem sequer mais Clarissa;sendoMrs.RichardDalloway.Bond Street a fascinava; Bond Street de manhã cedo na estação da

temporada;suasbandeirasesvoaçando;suaslojas;semestardalhaço;semespalhafato;sóumapeçadetweednalojaondeopaidelacompraraseusternosporcinquentaanos;algumaspérolas;salmãonumabarradegelo.“Ésóisso”,disseela,olhandoapeixaria.“Ésóisso”,repetiu,parandoum

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momento diante da vitrine de uma loja de luvas onde, antes da guerra,podiam-se comprar luvas quase perfeitas. E seu velho tio Williamcostumavadizerqueumadamaseconhecepelossapatosepelasluvas.Elesevirounacamaumamanhã,nomeiodaguerra.Disse:“Jáchega”.Luvasesapatos; ela tinha paixão por luvas; mas sua ilha, sua Elizabeth, não seimportavaminimamentecomluvasousapatos.Minimamente, pensou, continuando a subir a Bond Street até uma loja

quelhereservava loresquandodavaumafesta.NaverdadeElizabethsóseimportavamesmocomseucachorro.Acasainteiraestamanhãcheiravaa alcatrão. Mesmo assim, melhor o pobre Grizzle do que Miss Kilman;melhor cinomose, alcatrão, tudo aquilo do que icar en iada num quartoabafado com um livro de orações! Melhor qualquer outra coisa, estavapropensaadizer.Maspodiaserapenasumafase,comodiziaRichard,quetodas asmocinhas atravessam. Podia estar se apaixonando.Mas por quepela Miss Kilman? a qual tinha sofrido muito, claro; era preciso dar osdescontospor causadisso, eRicharddiziaque ela eramuito capaz, tinhauma inteligência realmente histórica. De qualquer forma as duas eraminseparáveis, e Elizabeth, sua própria ilha, ia à comunhão; e como sevestia, como tratava as pessoas que vinham almoçar, não se importavanemumpouco,sabendoporexperiênciaqueoêxtasereligiosoendureciaas pessoas (as causas também endureciam); embotava os sentimentosdelas, pois Miss Kilman faria qualquer coisa pelos russos, morreria defome pelos austríacos, mas em privado in ligia uma autêntica tortura, detão insensível que era, usando uma gabardine verde. Ano após ano elausava aquela gabardine; transpirava; nunca icava na sala cincominutossemfazervocêsentirasuperioridadedelaeainferioridadesua;comoelaera pobre, como você era rica, como ela morava num cortiço semtravesseiro, cama, tapeteouoque fosse, todaaalmacorroídaporaquelamágoa incrustada nela, a demissão da escola durante a guerra – pobrecriatura infelizeamargurada!Poisnãoeraelaqueseodiava,masa ideiadela, que sem dúvida tinha reunido em si muita coisa que não era MissKilman; tinhasetornadoumdaquelesespectrosquecombatemosànoite;umdaquelesespectrosquemontamemnossascostasenossugammetadedosangue,dominadoresetirânicos;poissemdúvidanumoutrolancedosdados, se tivesse saído o preto e não o branco, ela teria amado MissKilman!Masnãonestemundo.Não.Irritava-a, porém, ter esse monstro brutal girando a seu redor! ouvir

gravetos se quebrando e sentir cascos encravados nas profundezasdaquela loresta atravancada de folhas, a alma; nunca estar contente

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plenamente, ou plenamente segura, pois a qualquer instante o bruto seagitaria,esseódio,oqual,sobretudodesdeadoença,tinhaopoderdefazê-la se sentir esmagada, ferida na espinha dorsal; causava-lhe dor ísica, etodo o prazer na beleza, na amizade, em se sentir bem, em ser amada efazer da casa um refúgio aprazível se abalava, estremecia e se vergavacomosehouvessemesmoummonstrocavandonasraízes,comosetodaapanópliadocontentamentonãopassassedeegoísmo!esseódio!Bobagem,bobagem!exclamouconsigomesma,passandopelasportasde

moladaMulberry’s,afloricultura.Ela avançou, leve, alta, muito aprumada, para ser imediatamente

cumprimentada por Miss Pym, de cara redonda como um botão, cujasmãoseramsempredeumvermelhovivo,comose icassemnaáguageladajuntocomasflores.Havia lores:esporas-dos-jardins,ervilhas-de-cheiro,pencasdelilases;e

cravos,montes de cravos. Havia rosas; havia íris. Ah sim – e inspirou nojardimterrestreodoceperfumeenquantoconversavacomMissPymquelhe era agradecida por uma ajuda e a considerava bondosa, pois forabondosa anos atrás; muito bondosa, mas parecia mais velha, este ano,virando a cabeça de um lado e outro entre as íris, as rosas e os cachospendentes de lilases com os olhos semicerrados, inspirando, depois doalvoroço da rua, o perfume delicioso, o frescor maravilhoso. E então,abrindo os olhos, tão frescas como lençóis de babados recém-lavados edobradosemcestasdevimepareciamasrosas;eescuroseempertigadososcravosvermelhos,sustentando irmesascorolas;etodasaservilhas-de-cheiro se derramando em seus vasos, roxas intensas, brancas de neve,pálidas – como se fosse ao anoitecer e moças de vestidos de musselinasaíssem para colher ervilhas-de-cheiro e rosas depois de indar omagní icodiadeverão,comseucéuquasenegrodetãoazul,suasesporasdos jardins, seuscravos, seuscopos-de-leite;eeraaquelemomentoentreasseiseassetehorasemquetodasas lores–rosas,cravos,íris,lilases–fulguram; brancas, roxas, vermelhas, alaranjado-escuro; todas as loresparecem se incandescer sozinhas, levemente, puramente nos canteirosenevoados; e como ela amava as mariposas branco-acinzentadas indo evindoarodopiarsobreasvalerianas,sobreasprímulasdoanoitecer!E quando começou a acompanhar Miss Pym de vaso em vaso,

escolhendo, bobagem, bobagem, disse a si mesma, mais e mais branda,como se essa beleza, esse perfume, essa cor, e Miss Pym gostando dela,con iando nela, fossem uma onda que ela deixava encobri-la e derrotaraquele ódio, aquele monstro, derrotá-lo totalmente; e a onda estava a

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erguê-la,erguê-laquando–oh!umadetonaçãonarualáfora!– Céus – disse Miss Pym, indo à vitrine olhar, voltando e dando um

sorriso de desculpas com as mãos cheias de ervilhas-de-cheiro, como seaqueles automóveis, aqueles pneus dos automóveis, fossem todos culpadela.

OestouroviolentoquefezMrs.DallowaysesobressaltareMissPymiràvitrine e se desculpar provinha de um automóvel que guinara para acalçada bem em frente à Mulberry’s. Os passantes que naturalmentepararameolharammal tiveramtempodeverumrostodamaisaltíssimaimportância no estofado cinza-pomba, antes que uma mão masculinapuxasse a cortina e não houvesse mais nada para ver além de umquadradodecinzapomba.Mesmoassimimediatamentecomeçaramacircularosrumoresdesdeo

centro da Bond Street até a Oxford Street de um lado e a perfumariaAtkinson’s do outro, passando invisíveis, inaudíveis, como um rápido véudenuvemnascolinas,epousandocomalgodamesmasúbitasobriedadeeserenidade de uma nuvem nos rostos que um segundo antes estavamtotalmente descompostos. Mas agora tinham sido roçados pela asa domistério; tinham ouvido a voz da autoridade; o espírito da religião seespalharacomosolhosbemvendadoseabocamuitoaberta.Masninguémsabia de quem era o rosto que fora entrevisto. Do príncipe de Gales, darainha,doprimeiro-ministro?Dequemeraorosto?Ninguémsabia.Edgar J.Watkiss, levando no ombro o cano de chumbo enrolado, disse

emvozalta,comicamente,claro:–Ocáerrodoprimero-menistro.SeptimusWarrenSmith,queseviaimpedidodepassar,ouviu.Septimus Warren Smith, com cerca de trinta anos, rosto pálido, nariz

pontudo, de sapatos marrons e um sobretudo surrado, com olhoscastanho-escuros que tinham aquele ar de apreensão que deixaapreensivosatéosmaiscompletosestranhos.Omundoergueuseuchicote;ondedescerá?Tudo tinha se imobilizado. A vibração dos motores soava como uma

pulsação irregular batendo pelo corpo inteiro. O sol icouextraordinariamente quente porque o carro tinha parado na frente davitrine da Mulberry’s; senhoras de idade no segundo andar dos ônibusabriramassombrinhaspretas;umasombrinhaverdeaqui,umavermelhaaliseabriramcomumpequenoestalido.Mrs.Dalloway,indoàvitrinecomos braços cheios de ervilhas-de-cheiro, olhou para fora com a carinha

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rosadafranzidanumainterrogação.Todosolhavamoautomóvel.Septimusolhava. Os rapazes apeavam das bicicletas. O trânsito aumentava. E láestava o carro parado, com as cortinas fechadas, e nelas uma estampacuriosa que parecia uma árvore, pensou Septimus, e essa convergênciagradualdetudoparaumfococentraldiantedeseusolhos,comosealgumhorror tivesse a lorado quase à super ície e estivesse prestes a explodirem chamas, o aterrorizou. O mundo oscilava, estremecia e ameaçavaexplodiremchamas.Soueuqueestoubloqueandoocaminho,pensou.Nãoera ele que estava sendo olhado e apontado; não estava plantado ali,enraizadonacalçada,paraumafinalidade?Masqualfinalidade?– Vamos, Septimus – disse a esposa, uma mulher miúda, de olhos

grandesnumrostoovalamarelado;umamoçaitaliana.Mas a própria Lucrezia não conseguiu se conter e olhou o automóvel

comaestampadaárvorenas cortinas.Eraa rainhaalidentro–a rainhaindoàscompras?O motorista, que antes estava abrindo alguma coisa, girando alguma

coisa,fechandoalgumacoisa,voltouaoassento.–Vamos–disseLucrezia.Masomarido,poisagoraestavamcasados faziaquatro,cincoanos,deu

umsalto,seassustouedissezangado,comoseelaotivesseinterrompido:–Estábem!As pessoas decerto notaram; as pessoas decerto viram. As pessoas,

pensouela,olhandoamultidãoque itavaoautomóvel;aspessoasinglesas,com seus ilhos, seus cavalos e suas roupas, que de certa forma elaadmirava;masagoraeram“aspessoas”,porqueSeptimus tinhadito“Voumematar”;coisahorríveldesedizer.Eseo tivessemouvido?Elaolhouamultidão.Socorro,socorro!,queriagritarparaasmulhereseosajudantesdos açougues. Socorro! Ainda no último outono ela e Septimus tinhamicado no Embankment embrulhados na mesma capa e, como Septimusestavalendoumjornalemvezdeconversar,elaoarrancoudesuasmãose riu bem na cara do velho que estava olhando!Mas o fracasso a genteesconde.Tinhadelevá-lodaliparaalgumparque.–Agoravamosatravessar–disseela.Tinha direito ao braço dele, mesmo insensível. Deu a ela, que era tão

simples, tão espontânea, com apenas vinte e quatro anos, sem amigos naInglaterra,quetinhadeixadoa Itáliaporcausadele,deuaelaumpedaçodeosso.Oautomóvel comas cortinas fechadaseumarde reserva inescrutável

avançouparaPiccadilly, aindaobjetodeolhares, aindaagitandoos rostos

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dosdoisladosdaruacomomesmosombriosoprodeveneraçãofossepelarainha, pelo príncipe ou pelo primeiro-ministro, ninguém sabia. O rostomesmo,sótrêspessoastinhamvistoporalgunssegundos.Agoraatéosexoestava emdiscussão.Mas não havia dúvida de que a grandeza estava alidentro;agrandezaestavapassando,oculta,pelaBondStreet,apenasaumpalmo de distância dos comuns dos mortais que agora, pela primeira eúltimavez,podiamestarnoalcancedavozdamajestadedaInglaterra,dosímbolo duradouro do Estado que será descoberto pelos antiquaristascuriosos,aoexaminarasruínasdotempo,quandoLondres forumatrilhacoberta de mato e todos os que se apressam na rua nesta manhã dequarta-feira não passaremde ossos com algumas aliançasmisturadas aopó e as obturações de ouro de inúmeros dentes estragados. Então sesaberádequemeraorostonoautomóvel.Provavelmenteéa rainha,pensouMrs.Dalloway, saindodaMulberry’s

comsuas lores;arainha.Eporumsegundoelaadotouumardeextremadignidade parada ao lado da loricultura à luz do sol enquanto o carroavançavapassoapasso,comsuascortinasfechadas.Arainhaindoaalgumhospital;arainhainaugurandoalgumbazarbeneficente,pensouClarissa.A aglomeração estavamedonhapara aquelahoradodia. Lord’s,Ascot,

Hurlingham, qual seria? perguntou-se, pois a rua estava bloqueada. Aclassemédiabritânicamalacomodadanosegundoandardosônibuscompacotesesombrinhas,sim,eatécompelesnumdiacomoeste,era,pensouela,maisridículadoquesepodia imaginar,mais insólitadoquequalqueroutracoisaque jáexistiunomundo;eaprópriarainhaparada;aprópriarainha sem conseguir passar. Clarissa icou retida num lado da BrookStreet; Sir John Buckhurst, o velho juiz, do outro, com o carro entre eles(Sir John aplicara a lei com rigor durante anos e gostava de mulhereselegantes) quando o motorista, inclinando-se bem de leve, disse oumostroualgoaoguardadetrânsito,quesaudou,ergueuobraço,empinoua cabeça e mandou o ônibus se afastar para o lado e o carro passou.Devagar,muitosilencioso,seguiuseucaminho.Clarissa adivinhou; Clarissa entendeu, claro; tinha visto algo branco,

mágico, circular, namão do lacaio, um disco com um nome inscrito – darainha,dopríncipedeGales,doprimeiro-ministro?–que,porforçadeseupróprio esplendor, comoquea fogoabriupassagem (Clarissa viuo carrodiminuindo,desaparecendo),parairrefulgirentrecandelabros,medalhasreluzentes, peitos enfunados com folhas de carvalho, Hugh Whitbread etodososseuscolegas,oscavalheirosdaInglaterra,aquelanoitenoPaláciode Buckingham. E Clarissa, ela também, dava uma festa. Retesou-se um

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pouco;assimsepostarianoaltodesuaescadaria.O carro tinha ido embora,mas deixara uma leve ondulação que corria

porentre lojasde luvas, chapelariasealfaiatariasdosdois ladosdaBondStreet.Durante trinta segundos todas as cabeças estiveram inclinadasnamesmadireção–paraavitrine.Escolhendoumpardeluvas–deviamseraté o cotovelo oumais acima, amarelo-claro ou cinza-pálido? – as damaspararam; terminada a frase, algo tinha acontecido. Algo tão ín imo emocorrências isoladas que nenhum instrumentomatemático,mesmo capazde registrar abalos na China, conseguiria captar sua vibração; masdescomunal em sua inteireza e comovente em seu apelo geral; pois emtodas as chapelarias e alfaiatarias desconhecidos se entreolharam epensaram nos mortos; na bandeira; no Império. Num bar de uma ruaafastada um morador das colônias insultou a Casa de Windsor, o queprovocoualtercações,quebradeiradecoposdecervejaeumtumultogeralcujos ecos foramressoar estranhamentenaoutra calçadaaosouvidosdemoçascomprandopeçasíntimasbrancasenfeitadascomalvíssimasrendaspara seus enxovais. Pois a agitação de super ície do carro passando,quandocedeu,tocouemalgomuitoprofundo.Deslizando por Piccadilly, o carro virou na St. James’s Street. Homens

altos,homensde ísicorobusto,homenselegantescomseusfraques,faixasbrancas e cabelos esticados para trás que, por razões di íceis dedeterminar, estavam de pé à janela da sacada do White’s com as mãosatrásdas abasdo fraque, olhandopara fora, perceberam instintivamenteque ali passava a grandeza, e a luz pálida da presença imortal incidiusobre eles como havia incidido sobre Clarissa Dalloway. De imediatoaprumaram-seaindamais, tiraramasmãosde trásepareciamprontosaacompanharsuasoberana,senecessáriofosse,atéabocadocanhão,comooutrora tinhamfeitoseusantepassados.Osbustosbrancoseasmesinhasao fundo cobertas de exemplares do Tatler e sifões de água gasosapareciamaprovar; pareciam indicar os trigais ondulantes e os solares daInglaterra; e devolveram o leve zumbido do motor do carro como asparedesdeumaconchaacústicadevolvemumavozúnicaqueseexpandeeganhasonoridadecomopoderdetodaumacatedral.MollPrattdexalecomsuas loresnacalçadadesejoutudodebomaoqueridomenino(eraopríncipedeGales comcerteza) ebemqueatirariaopreçodeumcanecodecerveja–umramalhetederosas–naSt.James’sStreetporpuraalegriae desdémpela pobreza se não tivesse visto que o guarda estava de olhonela,desencorajandoa lealdadedeumavelhairlandesa.AssentinelasemSt.James’sbateramcontinência;opolicialdarainhaAlexandraaprovou.

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Enquanto isso, umapequenamultidão tinha se reunidonos portões doPaláciodeBuckingham.Desatentos,masconfiantes,gentepobretodoseles,esperavam; olhavam para o palácio com a bandeira esvoaçando; paraVitória,avultandoemseupedestal,admiravamsuafonteemcascata,seusgerânios;apontavamosautomóveisnoMall,primeiroeste,depoisaquele;desperdiçavam emoção à toa com plebeus saindo para dar uma volta decarro; guardavam de novo seu tributo para mantê-lo intato enquanto ocarropassava,edepoismaisoutro;eotempointeirodeixavamorumorseacumular nas veias e vibrar nos nervos das pernas à ideia da realezaolhandoparaeles;arainhase inclinando,opríncipesaudando;à ideiadavida celestial divinamente concedida aos reis; dos camaristas e dasmesurasprofundas;davelhacasadebonecasdarainha;daprincesaMarycasada com um inglês, e o príncipe – ah! o príncipe! que puxou tanto,diziam,aovelhoreiEdward,masmuitomaismagro.OpríncipemoravaemSt.James’s;masquemsabeapareceriademanhãparavirvisitaramãe.FoioqueSarahBletchleydissecomonenênocolo,tamborilandocomo

pé como se estivesse na cerca de sua própria casa em Pimlico, masmantendoosolhosnoMall,enquantoEmilyCoatesexaminavaasjanelasdopalácio e pensava nas arrumadeiras, nas inúmeras arrumadeiras, nosquartos,nos inúmerosquartos.Acrescidadeumcavalheirode idadecomum terrier escocês, de homens desocupados, a multidão aumentava. OmiúdoMr. Bowley, que tinha aposentos noAlbany e era hermeticamentelacrado nas fontesmais profundas da vidamas podia ser deslacrado derepente, de maneira imprópria, sentimental, por esse tipo de coisa –mulherespobresesperandoparaverarainhapassar–mulherespobres,criancinhas bonitas, órfãos, viúvas, a guerra – tsc tsc – realmente estavacomlágrimasnosolhos.Umabrisaondeandosempretão tépidapeloMallentre as árvores esguias, pelos heróis de bronze, fez adejar algumabandeira dentro do peito britânico deMr. Bowley e ele ergueu o chapéuquandoocarroapontounoMalleomanteveerguidoenquantoocarroseaproximava; e deixou que as mães pobres de Pimlico se comprimissemjuntodele,esemantevemuitoaprumado.Ocarroavançava.De repenteMrs.Coatesolhouparao céu.O somdeumaviãoperfurou

sinistramente os ouvidos da multidão. Lá vinha ele acima das árvores,soltandofumaçabrancaportrás,queseespiralavaesetorcia,naverdadeescrevendo alguma coisa! traçando letras no céu! Todos olharam para oalto.Precipitando-se de ponta, o avião subiu reto, fez uma curva, acelerou,

mergulhou, subiu, e em tudo o que fazia, para onde fosse, atrás dele

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ondulavaumagrossafaixapregueadadefumaçabrancaqueseespiralavaeseencaracolavaemletrasnocéu.Masquaisletras?UmCeraaquilo?umE, depois um L? Duravam apenas um instante; então se moviam, sedissolviam,seapagavamnocéu,eoaviãodisparavaeseafastavadenovo,emoutrotrechodocéu,começavaaescreverumF,umI,umOtalvez?–Glaxo–disseMrs.Coatesnumavoztensa,cheiadeadmiração, itando

oalto,eonenê,deitadorígidoemseusbraços,fitavaoalto.– Kreemo – murmurou Mrs. Bletchley, como uma sonâmbula. Com o

chapéuabsolutamenteimóvelnamão,Mr.Bowley itavaoalto.CáembaixonoMall as pessoas estavamparadas olhandoo céu. Enquanto olhavam, omundointeiro icouemsilênciocompleto,eumbandodegaivotascruzouocéu, primeiro uma gaivota na frente, depois as outras, e nesse silêncio epaz extraordinária, nessa palidez, nessa pureza, os sinos bateram onzevezes,osomdesaparecendoaospoucosláentreasgaivotas.O avião virou, acelerou e se precipitou exatamente onde queria, veloz,

livre,comoumpatinador––ÉumE–disseMrs.Bletchley–ouumbailarino––Étoffee–murmurouMr.Bowley–(eo carroentroupeloportãoeninguémolhou), edesligandoa fumaça

afastou-se cada vez mais, e a fumaça se desvaneceu e foi se reunir aoscontornosbrancosevolumososdasnuvens.Tinha ido embora; estava atrás das nuvens. Não havia som algum. As

nuvens às quais tinham se unido as letras E, G ou L se deslocavamlivremente, como que destinadas a ir do Ocidente para o Oriente numamissão da maior importância que jamais seria revelada, emboracertamentefosseissomesmo–umamissãodamaiorimportância.Entãoderepente,comoumtremsaindodeumtúnel,oaviãosaiuemdisparadadasnuvens,osomperfurandoosouvidosdetodosnoMall,noGreenPark,emPiccadilly, na Regent Street, no Regent’s Park, e a faixa de fumaça seespiralou atrás e ele mergulhou, subiu e escreveu uma letra depois daoutra–masquepalavraestavaescrevendo?LucreziaWarrenSmith,sentadaaoladodomaridonumbancodoBroad

WalknoRegent’sPark,olhouparacima.– Olhe, olhe, Septimus! – exclamou ela. Pois dr. Holmes lhe tinha dito

paradistrairomarido(quenãotinhaabsolutamentenadadegraveanãoserumapequenaindisposição)comcoisasexteriores.Ora, pensou Septimus, olhando para cima, estão sinalizando paramim.

Naverdadenãocompalavrasmesmo; istoé,aindanãosabia lera língua;

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maserabastanteclara,essabeleza,essarequintadabeleza,eseusolhosseencheram de lágrimas enquanto ele olhava as palavras de fumaça seenlanguescendoe sedissolvendono céue emsua inesgotável caridadeerisonhabondadelheconcedendoformasdebelezainimaginável,umaapósaoutra,esinalizandosuaintençãodelhefornecerpornada,parasempre,sóparaolhar,belezaemaisbeleza!Aslágrimaslheescorriampelaface.Era toffee; estavam anunciando balas toffee, disse uma babá a Rezia.

Juntascomeçaramasoletrart...o...f...–K...R...–disseababá,eSeptimusaouviudizer“cáerre”pertodeseu

ouvido, em tom profundo, macio, como um órgão suave, mas com umaasperezanavozcomodeumgafanhoto,quelhearranhoudeliciosamenteacolunaesubindoporelaenviouaocérebroondassonorasque,batendo,sequebraram. Descoberta maravilhosa, de fato – que a voz humana emcertascondiçõesatmosféricas (poiséprecisosercientí ico,acimade tudocientí ico) possa dar vida às árvores! Felizmente Rezia lhe pôs amão nojoelho com um tremendo peso, de forma que ele cedeu sob aquele peso,paralisado, do contrário o movimento dos olmos subindo e descendo,subindoedescendocomtodasas folhas iluminadasea cor sea inandoese espessando do azul ao verde de uma onda cava, como penachos nacabeçadoscavalos,plumasnacabeçadasdamas,tãoorgulhosossubiamedesciam, tão soberbos, o teria enlouquecido. Mas não ia enlouquecer.Fechariaosolhos;nãoveriamais.Maselasacenavam;asfolhasestavamvivas;asárvoresestavamvivas.E

estandoligadaspormilhõesde ibrasaseucorpo,alinobanco,asfolhasosopravamparafrenteeparatrás;quandooramoseestendia,eletambémfaziaamesmacoisa.Ospardaisesvoaçando,subindoedescendoasfontesem escadinha faziam parte do desenho; o branco e o azul, listrados degalhos negros. Sons formavam harmonias com premeditação; os espaçosentreeleseramtãosigni icativosquantoossons.Umacriançachorou.Umabuzina ao longe respondeu devidamente. Todo o conjunto signi icava onascimentodeumanovareligião–– Septimus! – disseRezia. Ele teveum sobressalto violento.Aspessoas

decertonotaram.–Vouatéafonteejávolto–disseela.Pois não aguentava mais aquilo. Dr. Holmes podia dizer que não era

nada. Preferia mil vezes que ele estivesse morto! Não conseguia icarsentada a seu lado quando estava com aquele olhar tão ixo, sem vê-la etornando tudo terrível; céu e árvore, crianças brincando, puxandocarrinhos,soprandoapitos, levandotombos;tudoeraterrível.Eelenãoia

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se matar; e ela não podia contar para ninguém. “Septimus andatrabalhandodemais”–eraomáximoquepodiadizeràmãe.Amarnosfazsolitários, pensou ela. Não podia contar a ninguém, agora nemmesmo aSeptimus, e olhando para trás viu-o sentado sozinho com seu sobretudosurrado, no banco, encurvado, olhando ixo. E era covardia um homemdizerque ia sematar,masSeptimus tinhacombatido;eracorajoso;agoranãoeraSeptimus.Elapôs suagargantilhade renda.Pôso chapéunovoeelenãonotou;eerafelizsemela.Nadapoderiafazê-lafelizsemele!Nada!Era um egoísta. Os homens são assim. Pois ele não estava doente. Dr.Holmesdissequeelenãotinhanada.Elaestendeuamãodiantedesi.Veja!Aaliançadecasamentoescorregava–de tantoqueela tinhaemagrecido.Eraelaquesofria–masnãotinhaninguémaquemcontar.Longe estavam a Itália, o casario branco, a sala onde suas irmãs se

sentavam fazendo chapéus, e todas as noites as ruas apinhadasde gentepasseando,rindoalto,nãosemimortascomoaspessoasdaqui,espremidasem carrinhos de inválidos, olhandomeia dúzia de lores feias especadasemvasos!–Pois vocêsdeviamver os jardinsdeMilão –disse emvoz alta.Mas a

quem?Não havia ninguém. Suas palavras se apagaram. Assim se apaga um

rojão.Asfagulhas,depoisderiscarocaminhonanoite,rendem-seaela,aescuridão desce, despeja-se sobre o contorno das casas e das torres; asladeiras desoladas se atenuam e somem. Mas, embora desaparecidas, anoite está repleta delas; roubadas de cor, vazias de janelas, existem compesomaior,espalhamoquealuzclaradodianãoconseguetransmitir–apreocupação e a ansiedade das coisas aglomeradas lá na escuridão;amontoadas na escuridão; privadas do alívio que traz o amanhecerquando,banhandodebrancoe cinzaasparedes,marcandocadavidraça,erguendo a névoa dos campos, mostrando as vacas castanho-avermelhadas pastando pací icas, tudo se enfeita mais uma vez para oolhar;existedenovo.Estousozinha;estousozinha!,exclamoujuntoàfontenoRegent’sPark ( itandoo indianoesuacruz), como talvezàmeia-noite,quando todas as fronteiras somem, o campo reverte à sua forma antiga,como os romanos o viram ao desembarcar, estendendo-se nublado, e osmontesnãotinhamnomeeosriosserpenteavamnãosabiamparaonde–assim era a escuridão dela; quando de repente, como se tivesse seprojetadoumsuporteeelasubisseali,dissequeeraamulherdele,casadaanosatrásemMilão,amulherdele,enunca,nuncacontariaqueeleestavalouco! Virando, o suporte tombou; ela caiu, cada vezmais fundo. Pois ele

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foi,pensouela–foi,comotinhaameaçado,sematar–seatirardebaixodeumacarroça!Masnão;láestavaele;aindasentadosozinhonobanco,comseu sobretudo surrado, as pernas cruzadas, olhando ixo, falando emvozalta.Oshomensnãodeviamcortarárvores.ExisteumDeus.(Eleanotavatais

revelações no verso de envelopes.) Mudar o mundo. Ninguém mata poródio. Anunciar isso (escreveu). Esperou. Escutou. Um pardal pousado nagradedooutroladochilreouSeptimus,Septimus,quatrooucincovezesemseguida e, prolongando as notas, continuou a cantar fresco e penetrantecom palavras em grego que não existe crime e, juntando-se a ele outropardal,cantaramemvozprolongadaepenetrantecompalavrasemgrego,entre árvores na campina da vida na outra margem de um rio ondecaminhamosmortos,quenãoexistemorte.Existia sua mão; existiam os mortos. Coisas brancas se condensavam

atrás das grades do outro lado. Mas ele não ousava olhar. Evans estavaatrásdasgrades!–Oquevocêestáfalando?–disseReziadesúbito,sentandoaseulado.Interrompidodenovo!Elaviviainterrompendo.Longe das pessoas – deviam ir para longe das pessoas, ele disse

(erguendo-senumsalto),atéali, já,ondehaviacadeirassobumaárvoreeo longo declive do parque descia como um tecido verde sob um dosselmuito alto forrado de fumos azuis e rosados, e havia uma trincheira decasas irregulares distantes numa neblina de fumaça, o trânsito zumbianum círculo, e à direita animais pardacentos estendiam o longo pescoçosobreapaliçadadozoológico,uivando,bramindo.Láelessesentaramsobumaárvore.–Olhe– ela implorou, apontandoumgrupinhodemeninos carregando

estacasdecríquete,umdosquaisarrastavaospés,giravanoscalcanharesearrastavaospéscomosefosseumpalhaçonoteatrodevariedades.–Olhe–elaimplorou,poisdr.Holmeslhetinhaditoparafazê-loprestar

atençãonascoisasreais,iraumteatrodevariedades,jogarcríquete–erao jogo ideal,dissedr.Holmes,umótimo jogoaoar livre,o jogo idealparaseumarido.–Olhe–elarepetiu.Olhe, ordenou-lhe o além, a voz que agora se comunicava com ele que

eraomaiordetodaahumanidade,Septimus,recentementelevadodavidaparaamorte,oSenhorquevierarenovarasociedade,quejaziacomoumacoberta, um manto branco tocado apenas pelo sol, para semprepreservado, sofrendo para sempre, o bode expiatório, o eterno sofredor,

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maselenãoqueriaisso,dissegemendoeafastandocomumgestodamãoaquelesofrimentoeterno,aquelasolidãoeterna.–Olhe–elarepetiu,poiselenãodeviaficarfalandosozinhoforadecasa.– Oh, olhe – implorou a ele. Mas o que havia para olhar? Alguns

carneiros.Só.O caminho para a estação de metrô do Regent’s Park – podiam lhe

indicar o caminho para a estação de metrô do Regent’s Park – MaisieJohnsonqueriasaber.TinhachegadodeEdimburgofaziaapenasdoisdias.–Nãoporaqui,porlá!–exclamouRezia,acenandodelado,paraqueela

nãovisseSeptimus.Osdoispareciamesquisitos,pensouMaisieJohnson.Tudopareciamuito

esquisito.EmLondrespelaprimeiravez,vindoparatrabalharcomotionaLeadenhall Street, e agora passando pelo Regent’s Park de manhã, estecasal sentado lhedeuum susto e tanto; amoçaparecendo estrangeira, ohomem parecendo esquisito; tanto, que mesmo bem velhinha ainda ialembrare emsuas recordações ia tilintaraquele seupasseionoRegent’sParknumabelamanhãdeverão cinquentaanosantes.Pois tinhaapenasdezenoveanose inalmente conseguiraoquequeria, virparaLondres; eagora como era esquisito, esse casal a quem ela tinha perguntado ocaminho,eamoçaseassustoueacenoubrusca,eohomem–elepareciaesquisitíssimo; brigando, talvez; separando-se de initivamente, talvez;havia alguma coisa, ela sabia; e agora todo esse povo (pois voltou para oBroadWalk),asfontesdepedra,as loresespecadas,osvelhoseasvelhas,na maioria inválidos em carrinhos – tudo, depois de Edimburgo, pareciatão esquisito. E Maisie Johnson, ao se juntar àquele povo avançandodevagar, penosamente, com o olhar perdido, a face tocada pela brisa –esquilosseencarapitandoesealisando,bandosdepardaisesvoaçandoembusca de farelos, cães ocupados com as grades, ocupados entre si,enquantooartépidoesuaveosenvolviaeemprestavaalgodeexcêntricoe pací ico ao olhar ixo indiferente com que recebiam a vida – MaisieJohnson sentiu claramentequedevia exclamarOh! (pois aquele rapaznacadeiratinhalhedadoumsustoetanto.Haviaalgumacoisa,elasabia.)Horror! horror! queria gritar. (Tinha deixado a família; bem que

avisaramoqueiaacontecer.)Por que não tinha icado em casa? exclamou retorcendo a bolinha em

cimadagradedeferro.Aquelamoça,pensouMrs.Dempster(queguardavacrostasdepãopara

osesquilosemuitasvezesalmoçavanoparque),aindanãosabedenada;erealmenteachavamelhor serumpouco irme,umpouco lenta,umpouco

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moderada nas próprias expectativas. Percy bebia. Bom, melhor ter ilho,pensouMrs.Dempster.Tinhasidodi ícil,enãopodiaevitarumsorrisoaover uma moça como aquela. Você vai se casar, pois é bem bonitinha,pensouMrs.Dempster.Case,eaívocêvaisaber.Oh,cozinhareassimpordiante.Todohomemtemsuasmanias.Masquemsabeseeuteriaescolhidoexatamente isso se tivesse como saber antes, pensou Mrs. Dempster, esentiuvontadedesussurrarumapalavrinhaaMaisieJohnson,desentirobeijodapiedadenafaceenrugadadorostovelhoegasto.Poisfoiumavidadura,pensouMrs.Dempster.Oquenãoentregaraaela?Asrosas,ocorpo,ospéstambém.(Elaretraiuasmassasinchadasedisformessobasaia.)Rosas, pensou sardônica. Tudo bobagem, meu bem. Pois realmente,

somandotudo,comer,bebereacasalar,osdiasbonseosdiasruins,avidanão tinha sido mera questão de rosas, e mais, vou lhe dizer, CarrieDempster não trocaria seu destino pelo de nenhumamulher emKentishTown!Mas,imploravaela,piedade.Piedade,pelaperdadasrosas.PiedadeeraoquepediaaMaisieJohnson,aoladodoscanteirosdejacinto.Ah, mas aquele avião! Mrs. Dempster não tinha sempre sonhado em

conhecer o estrangeiro? Tinha um sobrinho, um missionário. Subiu eacelerou. Ela sempre ia nadar emMargate, sem perder a terra de vista,mas não tinha paciência com mulheres que sentiam medo da água. Fezuma curva emergulhou. Sentia o estômago se revoltar. Subiu de novo. Opilotodeveserumrapazvalente,apostouMrs.Dempster,eseafastoumaise mais, rápido, sumindo, mais e mais o avião se afastou em disparada;sobrevoandoGreenwich e todos osmastros; a ilhota de igrejas cinzentas,St.Pauleasoutrasatéque,nosdois ladosdeLondres, estenderam-seoscampos e matas castanhas onde tordos intrépidos saltitando ousados,relanceando ligeiros, agarravam o caracol e batiam com ele numa pedra,uma,duas,trêsvezes.Mais e mais o avião se afastou, até não restar senão uma faísca

brilhante; uma aspiração; uma concentração; um símbolo (foi o quepareceu a Mr. Bentley, aparando vigorosamente sua faixa de grama emGreenwich)daalmadohomem;desuadeterminação,pensouMr.Bentleydandoavoltanocedro,desairdeseucorpo,iralémdesuacasa,pormeiodo pensamento, de Einstein, da especulação, da matemática, da teoriamendeliana–oaviãoseafastouemdisparada.Então, enquanto um homem inde inível de ar abatido carregando uma

maletadecouroparounosdegrausdaSt.Paul’sCathedralehesitou,poisládentrooquehaveria,qualbálsamo,qualacolhida,quantassepulturascomestandartes drapejando, símbolos de vitórias não sobre exércitos, mas

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sobre,pensouele,aqueleespíritoimportunodebuscadaverdadequemedeixa agora sem situação de inida, emais do que isso, a catedral oferececompanhia,pensouele, convida-nosa ingressarnumasociedade;grandeshomenspertencemaela;mártiresmorreramporela;porquenãoentrar,pensou ele, depor essamaleta de couro recheada de pan letos diante deum altar, uma cruz, o símbolo de alguma coisa que se elevou além daprocura, da busca, do amontoamento apressado de palavras, e se tornoupuro espírito, desencarnado, espectral – por que não entrar? pensou, eenquantohesitavaoaviãosobrevoouLudgateCircus.Era estranho; estava parado. Não se ouvia um único som por sobre o

trânsito.Sempiloto,parecia;voandoporseulivre-arbítrio.Eagora,fazendouma curva para subir mais e mais, cada vez mais alto, como algo seelevando emêxtase, empurodeleite, soltoupor trás uma fumaçabrancaemplanovertical,escrevendoumT,umO,umF.

–Oqueelesestãoolhando?–perguntouClarissaDallowayàcriadaqueabriuaporta.Ovestíbuloda casaestava frio comoumacripta.Mrs.Dalloway levoua

mãoaosolhos,e,quandoacriadafechouaportaeelaouviuoroçagardassaias de Lucy, sentiu-se como uma freira que abandonou o mundo e sesente envolvida pelos véus familiares e pela resposta a antigas preces. Acozinheira assobiava na cozinha. Ouviu o clique damáquina de escrever.Erasuavida,e,inclinandoacabeçasobreamesadovestíbulo,curvou-seàin luência,sentiu-seabençoadaepuri icada,dizendoasimesma,enquantopegava o bloco com o recado do telefonema, que momentos assim sãobotõesnaárvoredavida, loresdaescuridãosãoeles,pensouela(comosealguma rosa encantadora tivesse lorido apenas para seus olhos); jamaisacreditou em Deus; razão aindamaior, pensou ela pegando o bloquinho,para retribuir em vida cotidiana a criados, sim, a cães e canários,principalmente aomarido Richard, que era a base disso tudo – dos sonsalegres, das luzes verdes, da cozinheira ainda assobiando, pois Mrs.Walker era irlandesa e assobiava o dia inteiro –, para retribuir por essedepósito secreto de momentos deliciosos, pensou erguendo o bloquinho,enquantoLucyaseuladotentavaexplicarque–Mr.Dalloway,sinhora–Clarissaleunobloquinhoderecados:“LadyBrutondesejasaberseMr.

Dallowayvaialmoçarcomelahoje”.–Mr.Dalloway,sinhora,mandouavisarquevaialmoçarfora.– Oh céus – disse Clarissa e tal como pretendia Lucy partilhou seu

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desapontamento(masnãoaaguilhoada);sentiuoacordomútuo;entendeuaalusão;pensoucomoeraoamorentreaaristocracia;tingiuseufuturodeserenidade;etomouasombrinhadeMrs.Dalloway,tratando-acomoumaarma sagrada entregue por uma deusa depois de se desincumbirhonrosamentenocampodebatalha,ecolocounoporta-guarda-chuvas.–Nãotemasmais–disseClarissa.Nãotemasmaisocalordosol;poiso

choque de Lady Bruton convidando Richard para almoçar sem ela fezestremeceromomento emque tinha sedetido, comoumaplantano leitodo rioquando sente o choquedeum remoaopassar e estremece: assimelaseabalou:assimelaestremeceu.Millicent Bruton, cujos almoços eram tidos como extraordinariamente

divertidos, não a convidara. Nenhum ciúme vulgar poderia separá-la deRichard.Maselareceavao tempo,e lianorostodeLadyBruton,comosefosse um marcador entalhado em pedra impassível, o de inhamento davida;comosuaparceladiminuíaanoaano;quãopoucoamargemquelherestava ainda era capaz de se ampliar, de absorver, como nos anos dejuventude, as cores, os sabores, os tons da existência, de forma que elaocupava toda a sala ao entrar, e muitas vezes sentia, quando paravahesitanteporummomentonasoleiradesuasaladevisitas,umaansiedadedeliciosa, tal comosedeteriaummergulhadorantesdesaltarenquantoomarsesombreiaeseiluminasobele,easondasqueameaçamsequebrar,mas apenas se fendemdelicadamente na super ície, rolam, ocultame tãologocaemincrustamasalgasdepérolas.Pôsobloconamesadovestíbulo.Começouasubirdevagaraescada,a

mão no corrimão, como se tivesse saído de uma festa, na qual ora umamigo ora outro tivesse reverberado o brilho de seu rosto, de sua voz;tivesse fechadoaporta, saído, icado sozinha,uma igura isolada contraanoiteapavorante,oumelhor,paraserexata,contraoolhardessaprosaicamanhãdejunho;suavecomobrilhodaspétalasdeumarosaparaalguns,sabia,esentiu,quandoparouàjanelaabertadaescadaquedeixavaentraras persianas batendo, os cães latindo, deixava entrar, pensou de repentesentindo-seenrugada,envelhecida,ressequida,orilhar,oinflar,oflorescerdo dia, lá fora de casa, fora da janela, fora de seu corpo e cérebro queagorafraquejavam,vistoqueLadyBruton,cujosalmoçoseramtidoscomoextraordinariamentedivertidos,nãoaconvidara.Comouma freira se recolhendo ouuma criança explorandouma torre,

elasubiuaescada,parouàjanela,chegouaobanheiro.Láestavaolinóleoverdeeumatorneirapingando.Láestavaumvazionocoraçãodavida;umquarto no sótão. Asmulheres deviam tirar seus belos trajes. Aomeio-dia

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deviamsedespir.En iouoal inetenaalmofadinhaepôsochapéuamarelode plumas em cima da cama. Os lençóis estavam limpos, bem esticadosnuma larga faixa branca de lado a lado. Cada vez mais estreita era suacama.AvelatinhaqueimadoatéametadeeelaseafundaranaleituradasMemóriasdobarãoMarbot.Tinha lidoa retiradadeMoscouaté tardedanoite. Pois as sessões na Câmara eram tão longas que Richard insistia,depoisdadoença,quedeviadormirsemser incomodada.Erealmenteelapreferia ler a retiradadeMoscou. Ele sabia disso. Assimo quarto era nosótão; a cama estreita; e ali deitada lendo, pois dormiamal, não poderiaafastar uma virgindade preservada desde o parto que aderia a ela comoumlençol.Muitograciosanamocidade,derepentechegouummomento–por exemplo, no rio sob as matas em Clieveden – em que, por algumacontração desse espírito frio, ela se negara a ele. E então emConstantinopla, e outra vez emais outra vez. Podia ver o que lhe faltava.Nãoerabeleza;nãoera inteligência.Eraalgocentralquepermeava tudo;algoquentequerompiasuper ícieseondulavaofriocontatoentrehomeme mulher, ou entre mulheres. Pois isso ela podia perceber vagamente.Ressentia-se, tinhaumescrúpuloadquiridosabemoscéusonde,ou,comosentia ela, enviado pela Natureza (que é invariavelmente sábia); mesmoassim às vezes não conseguia resistir a se render ao encanto de umamulher,nãoumamoça,deumamulherconfessando,comotantasvezeslhefaziam, algum apuro, alguma leviandade. E fosse por piedade, ou pelabeleza delas, ou porque eramais velha, ou algum acaso – como um leveperfumeouumviolinona casa ao lado (tão estranho é o poder dos sonsemcertosmomentos),elaentãosentia indubitavelmenteoquesentiamoshomens.Apenasporuminstante;maseraosu iciente.Eraumarevelaçãosúbita,umcoloridocomoumruborqueapessoatentavacontrolareentão,aosealastrar,cediaàexpansãodele,ecorriaatéaorlamaisdistantee láicava a fremir e a sentir omundo se aproximando, dilatado com algumaassombrosa signi icação, alguma pressão de arrebatamento, que fendiasua inamembranaejorravaetransbordavacomumalívioextraordináriosobre as gretas e as chagas. Então, durante aquele instante, ela via umailuminação; uma mecha incendiando a sarça; um sentido interno quaserevelado.Masopróximo se afastava; oduro amolecia. Tinha acabado– oinstante.A tais instantes (commulheres também)opunham-se (enquantopousava o chapéu) a cama, o barãoMarbot, a vela pelametade. Deitadadesperta,ochãorangia;acasaacesaseescureciadesúbito,eseerguesseacabeçaouviriaoestalodamaçanetaquecomamaiordelicadezapossívelRichardsoltara,oqualentãosubiaaescadadeslizandodemeiase tantas

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vezesdeixavacairabolsadeáguaquenteepraguejava!Comoelaria!Mas essa questão do amor (pensou tirando o casaco), isso de se

apaixonar por mulheres. Veja-se Sally Seton; sua relação nos velhostemposcomSallySeton.Nãotinhasidoamor,afinal?Estava sentadano chão – foi aquela suaprimeira impressãode Sally –

estava sentada no chão comos braços rodeando os joelhos, fumando umcigarro. Onde teria sido? Na casa dos Manning? Dos Kinloch-Jones? Emalgumafesta(onde,nãosabiaaocerto),poistinhaumaclaralembrançadeperguntar ao homem que estava com ela, “Quem é aquela?”. E ele tinharespondido,editoqueospaisdeSallynãosedavam(como icouchocadacomaquilo – que os pais de alguémbrigassem!).Mas naquela noite todanão conseguiu tirar os olhos de Sally. Era uma beleza extraordinária dotipoqueelamaisadmirava,morena,olhosgrandes,comaquelaqualidadeque,comonãotinha,sempreinvejara–umaespéciedeabandono,comosepudessedizerqualquercoisa, fazerqualquercoisa;qualidademuitomaiscomumemestrangeirasdoqueem inglesas.Sally semprediziaque tinhasangue francês nas veias, um antepassado estivera comMaria Antonieta,fora decapitado, deixara um anel de rubi. Talvez naquele verão tivessevindo icar emBourton, entrandodemaneira totalmente inesperada semumcentavonobolso,umanoitedepoisdo jantar, e transtornando tantoapobre tia Helena que ela jamais a perdoou. Tinha ocorrido alguma brigapavorosa em casa. Ela não tinha literalmente nenhum centavo naquelanoiteemquechegara–empenharaumbrocheparavir.Tinhafugidonumimpulso.Ficaramacordadasatéamadrugadaconversando.FoiSallyqueafez sentir, pela primeira vez, como era protegida a vida emBourton.Nãosabianadasobresexo–nadasobreproblemassociais.Tinhavistoumavezum velho que caíramorto num campo – tinha visto vacas logo depois deparir suas crias. Mas tia Helena nunca gostava de discutir coisa alguma(quando Sally lhe deuWilliamMorris, teve de ser embrulhado em papelpardo).Lá icavam,horasehoras, conversandonoquartodelanoaltodacasa, conversando sobre a vida, como iriam reformar omundo. Queriamfundar uma sociedade para abolir a propriedade privada, e atéescreveramumacarta,quenãofoienviada.AsideiaseramdeSally,claro–mas logoela icou igualmenteentusiasmada– liaPlatãonacamaantesdodesjejum;liaMorris;liaShelleyatodahora.O poder de Sally era espantoso, seu talento, sua personalidade. Havia

aquele seu jeito com as lores, por exemplo. Em Bourton sempre tinhamvasinhosformaisaolongodetodaamesa.Sallysaía,colhiamalvas,dálias–todasas espéciesde loresquenunca seviam juntas– cortavaos talos e

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punhaascorolasboiandoemtigelinhasd’água.Oefeitoeraextraordinário– quando se entrava para jantar na hora do crepúsculo. (Claro que tiaHelena achava uma crueldade tratar as lores daquelamaneira.) Um diaelaesqueceuaesponjaeatravessouocorredornua.Aquelacriadavelhaerabugenta, Ellen Atkins, icou resmungando: “E se algum dos cavalheirostivesse visto?” De fato chocava mesmo as pessoas. Era uma desmiolada,diziapapai.Acoisaestranha,olhandopara trás,eraapureza,a integridadedeseu

sentimento por Sally. Não era como o sentimento por um homem. Eratotalmentedesinteressado,ealémdissotinhaumaqualidadequesópodiaexistirentremulheres, entremulheres recém-saídasdaadolescência.Eraprotetor,doladodela;brotavadeumasensaçãodeestaremligadas,deumpressentimento de algo fadado a separá-las (elas sempre falavam docasamento comoumacatástrofe), que levavaa esse cavalheirismo, a essesentimentoprotetormuitomaisde seu ladodoquedo ladode Sally. Poisnaquelesdiaselaeratotalmenteestouvada;faziaascoisasmaisidiotasporbravata; andava de bicicleta no parapeito do terraço; fumava charutos.Absurda, ela era – muito absurda. Mas o encanto era irresistível, pelomenosparaela,tantoquelembravaqueficavaparadanoquartonoaltodacasa segurando a caneca de água quente namão e falando em voz alta:“Elaestásobesteteto...Elaestásobesteteto!”.Não, as palavras agora não signi icavam absolutamente nada para ela.

Nãoconseguiacaptarsequerumecodaantigaemoção.Maspodialembrarque gelava de excitação e se penteava numa espécie de êxtase (agora ovelho sentimento começava a lhe voltar, enquanto retirava os grampos,colocava-osnotoucador,começavaasepentear),comasgralhassubindoedescendo a se exibir na luz rosada do entardecer, vestia-se e descia asescadassentindoaocruzarosaguãoque“sefosseparamorreragoraseriaagora omomentomais feliz”. Era este seu sentimento – o sentimento deOtelo,eelaosentiu,tinhacerteza,comaintensidadecomqueShakespearepretendia queOtelo o sentisse, tudo porque estava descendo para jantarcomumvestidobrancoparaencontrarSallySeton!Elavestiaumagazerosa–erapossívelaquilo?Elaparecia,pelomenos,

pura luz, radiante, como algum pássaro ou balão que tivesse entrado avoareseprendesseporuminstantenumarbustoespinhoso.Masquandoagenteama(eoqueeraissosenãoamor?)nadaémaisestranhodoqueacompletaindiferençadosoutros.TiaHelenafoicaminhardepoisdojantar;papai icou lendoo jornal. PeterWalshpodia estar por lá, e a velhaMissCummings também; JosephBreitkopf certamente estava, pois vinha todos

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osverões,pobrevelho,passarsemanasesemanas,e ingialeralemãocomela,masnaverdadetocavapianoecantavaBrahmssemteramenorvoz.Tudo isso era apenas um pano de fundo para Sally. Ela estava de pé

juntoà lareirafalando,naquela lindavozquefaziatodasassuaspalavrassoaremcomoumacarícia,compapai,quemuitoacontragostocomeçaraase sentir atraído (ele nunca esqueceu que tinha lhe emprestado um deseus livros e depois foi encontrá-lo encharcado no terraço), quando desúbito ela disse, “Que pena icar aqui dentro!” e todos saíram para oterraço indo de uma ponta a outra. Peter Walsh e Joseph BreitkopfcontinuaramcomWagner.ElaeSally icaramumpoucomaisatrás.Entãoveio omomentomaismaravilhoso de toda a sua vida passando por umaurnadepedra com lores. Sallyparou; colheuuma lor; deu-lheumbeijona boca. O mundo inteiro podia virar de ponta-cabeça! Os outrosdesapareceram;aliestavaelasozinhacomSally.Esentiuqueganharaumpresente,embrulhado,comarecomendaçãodeguardá-loassim,semolharo que era – um diamante, algo in initamente precioso, embrulhado, que,enquantocaminhavam(decáparalá,deláparacá),elaabriu,ouobrilhoseirradiou,arevelação,osentimentoreligioso!–quandoovelhoJosephePeterapareceramnafrentedelas:–Contemplandoasestrelas?–perguntouPeter.Foi como bater de frente num muro de granito na escuridão! Foi

chocante;foihorrível!Não para ela. Sentiu apenas como Sally já estava sendo agredida,

maltratada; sentiu a hostilidade dele; seu ciúme, sua determinação deinvadir o companheirismo delas. Tudo isso ela viu como se vê umapaisagem ao clarão de um raio – e Sally (nunca ela a admirou tanto!)bravamente não se deupor vencida. Riu. Fez o velho Joseph lhe dizer osnomes das estrelas, coisa que ele gostava de fazer commuita seriedade.Elaouviuosnomesdasestrelas.“Oh esse horror!” disse consigo mesma, como se soubesse o tempo

inteiroquealgoiriainterromper,iriaamargarseumomentodefelicidade.Enoentanto,a inal,quantoelaveioalhedevermaistarde.Sempreque

pensava nele pensava nas brigas que tinham por alguma razão – talvezporqueprecisassetantodaboaopiniãodele.Aeledeviaalgumaspalavras:“sentimental”, “civilizado”;elas irrompiamdiariamenteemtodaasuavidacomo se ele estivesse a protegê-la. Um livro era sentimental; sentimentaluma atitude perante a vida. “Sentimental” talvez fosse ela por estarpensandonopassado.Oqueelepensaria,indagou-se,quandovoltasse?Quetinhaenvelhecido?Elediria,ouelaoveriapensando,aovoltar,que

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tinha envelhecido? Era verdade. Desde a doença, seus cabelos tinhamficadoquasetotalmentebrancos.Deixandoobrochenamesa,teveumespasmosúbito,comose,enquanto

divagava,asgarrasgeladastivessemtidoocasiãodesecravarnela.Aindanão era velha. Acabara de entrar nos cinquenta e dois anos. Faltavammeses e meses para completá-los. Junho, julho, agosto! Cada qualcontinuavaquaseinteiro,e,comoqueparapegaragotaquecaía,Clarissa(indoatéotoucador)mergulhounopuroâmagodomomento,imobilizou-o,ali–omomentodestamanhãdejunhoemquehaviaapressãodetodasasoutrasmanhãs,olhandooespelho,o toucadore todosos frascosdenovo,recolhendo a totalidade de si num único ponto (enquanto se olhava noespelho), vendo o rosto rosa delicado da mulher que ia dar uma festanaquelamesmanoite;deClarissaDalloway;desiprópria.Quantosmilhõesdevezestinhavistoseurosto,esemprecomamesma

contração imperceptível! Franzia os lábios quando se olhava no espelho.Eraparadarumponto,umapontaaorosto.Aquelaeraela–pontiaguda;como uma lecha; de inida. Aquela era ela quando algum esforço, algumchamado para ser ela mesma unia as partes, apenas ela sabia quãodiferentes, quão incompatíveis e assim compostas unicamente para omundocomoumsócentro,umsódiamante,umasómulherquesesentavaem sua sala de visitas e criava umpontode encontro, uma radiação semdúvida para algumas vidas monótonas, um refúgio ao qual viriam ossolitários, talvez; ajudara jovens que lhe eram agradecidos; tentara sersempreamesma,nuncamostrandonenhumsinaldetodososseusoutroslados – defeitos, ciúmes, vaidades, suspeitas, como essa de Lady Brutonnão a convidar para almoçar; o que, pensou ( inalmente penteando ocabelo),éabsolutamentevil!Agora,ondeestavaovestido?Seus vestidos de noite estavam pendurados no armário. Clarissa,

mergulhando a mão na maciez, tirou delicadamente o vestido verde e olevou até a janela. Estava rasgado.Alguém tinhapisadonabarra. Sentiranafestadaembaixadaumrepuxãonapartedecimaentreaspregas.Àluzarti icial o verde brilhava, mas agora perdia a cor ao sol. Ia consertá-lo.Suas criadas estavam ocupadas demais. Ia usá-lo esta noite. Pegaria aslinhas, a tesoura, o–oquêmesmo?–odedal, claro, e iriaparaa saladevisitas, pois também precisava escrever e ver se as coisas em geralestavammaisoumenosemordem.Estranho, pensou, parando no patamar e compondo aquela forma de

diamante,aquelaúnicapessoa,estranhocomoasenhoradacasaconheceomomento,oclimadeseular!Levessonssubiamemespiraispelopoçoda

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escadaria;oruge-rugedeumesfregão;pancadinhas;batidas;vozerioaoseabrir a porta da frente; uma voz repetindo uma mensagem no porão; otinidoda prata numabandeja; prata polida para a festa. Era tudopara afesta.(ELucy,entrandonasalacomabandejaestendida,pôsoscandelabros

enormesnacornijadalareira,oescríniodepratanocentro,virouodel imde cristal para o relógio. Viriam; icariam; falariamnos tons afetadosqueelasabia imitar,damasecavalheiros.Entretodos,suasenhoraeraamaisencantadora – senhora da prata, das toalhas, da porcelana, pois o sol, aprata, as portas retiradas dos gonzos, os homens da Rumpelmayer’s lhedavamuma sensação, enquanto colocavao estilete depapéis em cimadamesa marchetada, de algo realizado. Vejam! Vejam! disse, falando paraseusvelhosamigosdapadaria,onde tinha tidoseuprimeiroempregoemCaterham, espiando o espelho. Ela era Lady Angela, acompanhando aprincesaMary,quandoMrs.Dallowayentrou.)–Oh,Lucy–disse–aprataestálinda!–Ecomofoi–dissevirandoodel imdecristalpara icarreto–comofoi

apeçaontemànoite?– Oh, tiveram de sair antes do inal! – disse ela. – Tinham de estar de

voltaàsdez!–disseela.–Entãonãosabemoqueaconteceu–disseela.–Parece muito azar – disse ela (pois seus criados podiam icar até maistarde,selhepedissem).–Parecemesmoumapena–disseela,pegandoaalmofadavelha e surradano centrodo sofá epondonosbraçosdeLucy,dandoumleveempurrãozinhoeexclamando:– Leve isso embora! Dê para Mrs. Walker com meus cumprimentos!

Leveembora!–exclamou.E Lucy parou à porta da sala de visitas, segurando a almofada, e

perguntou, muito tímida, corando levemente, se não podia ajudar aconsertarovestido.Mas, disseMrs. Dalloway, ela já tinhamuito o que fazer,muitomesmo

semajudarnaquilo.– Mas obrigada, Lucy, oh, obrigada – disse Mrs. Dalloway, e obrigada,

obrigada, continuou dizendo (sentando no sofá com o vestido sobre osjoelhos, a tesoura, as linhas), obrigada, obrigada, continuou dizendo emgratidãoporseuscriadosemgeralporajudá-laaserassim,aseroqueelaqueria, gentil, de coração generoso. Seus criados gostavam dela. E agoraessevestido–ondeestavaorasgão?eagoraen iaro ionaagulha.Eraumdeseusvestidosfavoritos,umSallyParker,quaseoúltimoqueelafez,quepena,poisSallyagoraestavaaposentada,moravaemEaling,eseeu tiver

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um tempinho, pensou Clarissa (mas nuncamais teria um tempinho), vouvisitá-la em Ealing. Pois era uma igura e tanto, pensou Clarissa, umaverdadeira artista. Inventava pequenos detalhes originais; mas seusvestidos nunca icavam esquisitos. Dava para usá-los em Hat ield; noPalácio de Buckingham. Ela os usara em Hat ield; no Palácio deBuckingham.A serenidade baixou sobre si, calma, contente, enquanto a agulha,

puxandosuavementeo iodesedaatéapausadelicada,reuniaeprendiaas pregas verdes, muito de leve, na faixa da cintura. Assim num dia deverãoasondas se ajuntam, se avolumame caem; se ajuntame caem;eomundointeiroparecedizer“ésóisso”emtommaisemaispesado,atéqueo coração dentro do corpo deitado ao sol na praia diz também, é só isso.Nãotemasmais,dizocoração.Nãotemasmais,dizocoração,entregandoseufardoaalgummar,quesuspiracoletivamenteportodasasdores,eserenova, começa, se ajunta, deixa cair. E apenas o corpo ouve a abelhapassando;aondaquebrando;ocãolatindo,muitolongelatindolatindo.– Céus, a campainha da frente! – exclamou Clarissa, detendo a agulha.

Surpresa,escutou.–Mrs.Dallowaymereceberá–disseosenhornovestíbulo.–Ohsim,a

mimelareceberá–repetiu,afastandoLucydeladocommuitagentilezaecorrendo escada acima cada vez mais depressa. – Sim, sim, sim –murmurava enquanto corria escada acima. – Vai me receber. Depois decincoanosnaÍndia,Clarissavaimereceber.–Quem–oquê–indagouMrs.Dalloway(pensandoqueeraumabsurdo

ser interrompida às onze da manhã no dia em que ia dar uma festa),ouvindo passos na escada. Ouviu uma mão na porta. Tentou esconder ovestido, como uma virgem protegendo a castidade, respeitando aprivacidade.Entãoamaçanetademetalsemoveu.Entãoaportaseabriueentrou–porumsegundoelanãoconseguiulembrarcomoelesechamava!tão surpresa estava em vê-lo, tão alegre, tão tímida, tão absolutamenteatônita que Peter Walsh viesse inesperadamente vê-la de manhã! (Nãotinhalidoacartadele.)–Ecomovaivocê?–dissePeterWalsh,realmentetremendo; tomando-

lhe as duas mãos; beijando-lhe as duas mãos. Ela envelheceu, pensou,sentando. Não vou comentar nada, pensou, pois ela envelheceu. Ela estámeolhando, pensou, um súbito embaraço se apossandodele, embora lhetivessebeijadoasmãos.Pondoamãonobolso,tirouumgrandecaniveteeabriualâminaatéomeio.Exatamente o mesmo, pensou Clarissa; o mesmo olhar esquisito; o

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mesmo terno xadrez; um pouco alterado o rosto, um poucomais magro,maisenxuto,talvez,maseleparecemuitíssimobem,erealmenteomesmo.– Que maravilhoso ver você de novo! – ela exclamou. Estava com o

canivetenamão.Issoétãodele,pensouela.Ele só tinha chegado à cidade na noite anterior, disse; teria de ir

imediatamente para o campo; e como ia tudo, como estavam todos –Richard?Elizabeth?–Eoqueéissotudo?–disseapontandoocaniveteparaovestidoverde.Estámuitobemvestido, pensouClarissa; e no entanto critica sempre a

mim.Aquiestáelaconsertandoovestido;consertandoovestidocomosempre,

pensouele; aquiestáela sentadaduranteesse tempo todoquepasseinaÍndia; consertandoo vestido; distraindo-se; indo a festas; indo e voltandodaCâmaraetodooresto,irritando-secadavezmais,agitando-secadavezmais,poisnãoexistenadapiornomundoparaalgumasmulheresdoqueocasamento,pensouele;eapolítica;etendoummaridoconservador,comoo admirável Richard. Assim é que é, assim é que é, pensou fechando ocanivetenumestalo.–Richardestámuitobem.Richardestánumcomitê–disseClarissa.E abriu a tesoura e perguntou se ele se importaria que ela acabasse o

queestavafazendonovestido,poistinhamumafestanaquelanoite.– Para a qual não vou convidá-lo – disse ela. – Meu querido Peter! –

disseela.Maseradeliciosoouvi-ladizeraquilo–meuqueridoPeter!De fato,era

tudotãodelicioso–aprataria,ascadeiras;tudotãodelicioso!Porquenãoiaconvidá-loparaafesta?eleperguntou.Oraclaro,pensouClarissa,eleéencantador!absolutamenteencantador!

Agoralembrocomosemprefoiimpossíveldecidir–eporquea inaldecidinãomecasarcomele,indagou-se,naqueleverãohorrível?– Mas é tão extraordinário que você tenha vindo esta manhã! – ela

exclamou,pousandoasmãos,umasobreaoutra,novestido.–Você lembra –disse ela – comoas venezianas costumavambater em

Bourton?– Batiam sim – disse ele, e lembrou os desjejuns que tomou sozinho,

muitoconstrangido,comopaidela;quetinhamorrido;eelenãoescreveraaClarissa.Masnunca tinhasedadobemcomovelhoParry,aquelevelhofrouxoelamuriento,opaideClarissa,JustinParry.–Gostariadetermedadomelhorcomseupai–disseele.–Maselenuncagostavadenenhumque...denenhumdenossosamigos

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– disse Clarissa; e teve vontade de morder a língua por lembrar dessamaneiraaPeterqueelequeriasecasarcomela.Claro que queria, pensou Peter; quase partiu meu coração também,

pensouele; e icouesmagadodedor, aqual subia comouma luavistadeumterraço,lividamentebelacomaluzdodianaufragado.Nuncamesentitão infeliz, pensou ele. E como se estivesse sentado naquele terraçoinclinou-seumpoucoparaClarissa;estendeuamão;ergueuamão;deixoucair. Ali acima deles estava ela, aquela lua. Ela também parecia estarsentadacomelenoterraço,aoluar.–AgoraédeHerbert–disseela.–Nãotenhoidomais–disseela.Então,talcomoacontecenumterraçoaoluar,quandoapessoacomeçaa

sentirvergonhaporjáestarentediada,masapesardisso,enquantoaoutraestácalada,muitoquieta,olhandotristementea lua,nãosentevontadedefalar,mexeopé,pigarreia,notaalgumavolutade ferronapernadeumamesa, agita uma folha, mas não diz nada – era o que agora fazia PeterWalsh.Poisporquevoltarassimaopassado?pensouele.Porque fazê-lopensarnaquilodenovo?Porquefazê-losofrer,quandoelaotorturarademaneiratãoinfernal?Porquê?– Lembra o lago? – perguntou ela, numa voz brusca, sob a pressão de

uma emoção que lhe tomou o peito, enrijeceu osmúsculos da garganta econtraiu seus lábios num espasmo ao dizer “lago”. Pois era uma criançaatirando pão aos patos, entre os pais, e ao mesmo tempo uma mulheradulta vindo até os pais que estavam junto ao lago, carregando sua vidanos braços que, conforme se aproximava deles, ia crescendo, crescendoentre os braços, até se tornar uma vida inteira, uma vida completa, quedepôsdiantedelesedisse:“Foiissooqueeu izdela!Isso!”.Eoquetinhafeito dela? O quê, realmente? sentada ali costurando nessa manhã juntocomPeter.ElaolhouparaPeterWalsh;seuolhar,atravessandotodoaqueletempo

e aquela emoção, alcançou-o hesitante; pousou nele lacrimoso; e subiu evoouparalonge,comoumpássaroqueencostanumramo,sobeevoaparalonge.Comtodaasimplicidadeenxugouosolhos.– Lembro sim – disse Peter. – Sim, sim, sim – disse ele, como se ela

trouxesseàsuper íciealgoqueoferiadecididamenteàmedidaquesubia.Pare!Pare!queriagritar.Poisnãoeravelho;suavidanãoestavaacabada;não, demaneira nenhuma.Mal tinha entrado nos cinquenta. Conto a ela,pensou, ou não? Queria desafogar tudo aquilo. Mas ela era fria demais,pensou; costurando, com a tesoura; Daisy pareceria vulgar ao lado deClarissa.Eelamejulgariaumfracasso,oquesoumesmonaacepçãodeles,

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pensou; na acepção dos Dalloway. Oh sim, não tinha nenhuma dúvida arespeito;eraumfracasso,comparadoa tudo isso–amesamarchetada,oestilete incrustado, o del im e os candelabros, as capas das cadeiras e asvaliosas gravuras antigas inglesas – ele era um fracasso! Detesto apretensão da história toda, pensou; coisa de Richard, não de Clarissa;tirando que ela se casou com ele. (Nesse instante Lucy entrou na sala,trazendopratasemaispratas,eencantadora,esbelta,graciosapareciaela,pensou, enquanto se curvava para depor a prataria.) E tem sido isso otempointeiro!pensou;semanaapóssemana;avidadeClarissa;enquantoeu–pensou;ederepentetudopareceuseirradiardele;viagens;passeiosacavalo;brigas;aventuras;partidasdebridge; casosamorosos; trabalho;trabalho, trabalho! e abriu inteiramente o canivete – seu velho canivetecomcabodechifrequeClarissapodia jurarqueteveduranteessestrintaanos–ecerrouopunhoporcimadele.Que hábito extraordinário era aquele, pensou Clarissa; sempre

brincando comumcanivete. Sempre fazendo apessoa se sentir, também,frívola;cabeçaoca;umasimples tagarela tola,comocostumava fazer.Maseu também,pensouela, e, pegandoa agulha, convocou, comouma rainhacujos guardas tenham caído no sono deixando-a desprotegida (ela tinhasido apanhada totalmente de surpresa por essa visita – icaratranstornada) e assim qualquer um pode entrar e itá-la deitada sob osarbustos se curvando sobre ela, convocou em seu auxílio as coisas quefazia;ascoisasqueapreciava;omarido;Elizabeth;elamesma,emsuma,aquem Peter mal conhecia agora; todas elas, para que viessem ederrotassemoinimigo.–Bem,eoquevocêtemfeito?–perguntouela.Antesqueseinicieuma

batalha,éassimqueoscavalosescarvamosolo;agitamacrina;aluzbrilhaem seus lancos; encurvam o pescoço. Assim Peter Walsh e Clarissa,sentados ladoa ladonosofáazul,desa iavamumaooutro.As forçasdelese aqueciam e se debatiam. Reuniu de diversos quadrantes as maisvariadascoisas;louvores;acarreiraemOxford;seucasamento,doqualelanão sabia absolutamente nada; o quanto ele tinha amado; e cumpridoplenamentesuatarefa.–Milhõesdecoisas!–eleexclamou,e,pressionadopelacongregaçãode

forças que agora arremetiam por vários lados dando-lhe a sensação aomesmotempoassustadoraeextremamenterevigorantedeserarremetidoao ar sobre os ombros de pessoas que não conseguiamais ver, levou asmãosàtesta.Clarissaestavasentadacomascostasmuitoretas;prendeuarespiração.

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– Estou apaixonado – disse, mas não a ela, e sim a alguém que seergueranoescurodeformaquenãohaviacomotocareteriadedepositarsuaguirlandasobrearelvanoescuro.– Apaixonado – repetiu, agora falando um tanto seco para Clarissa

Dalloway–apaixonadoporumamoçanaÍndia.Tinhadepositadosuaguirlanda.Clarissapodiafazeroquequisessecom

ela.– Apaixonado! – disse ela. Que ele em sua idade fosse sugado sob a

gravatinhaborboletaporaquelemonstro!Etemopescoçodescarnado;asmãos vermelhas; e é seis meses mais velho do que eu! seu olhar lhedevolveu o que via; mas no coração ela sentiu, mesmo assim; ele estáapaixonado.Eletemisso,elasentiu;estáapaixonado.Mas o egoísmo indomável que vence de initivamente as hostes que se

opõemaele,orioquedizavante,avante,avante;muitoembora,admiteele,possanãoexistirnenhumametaparanós,aindaassimavante,avante;esseegoísmo indomável trouxe colorido a suas faces; tornou a isionomia delamuito jovial;muitorosada;comosolhosmuitobrilhantesenquanto icavaali sentada com o vestido sobre os joelhos, e a agulha com o io de sedaverdeestendido,tremendoumpouco.Eleestavaapaixonado!Nãoporela.Poralgumamulhermaisjovem,claro.–Equeméela?–perguntou.Agoraessaestátua temdeserbaixadadesuasalturasedepostaentre

eles.–Umamulhercasada, infelizmente–disseele–;amulherdeummajor

doexércitoindiano.E comuma curiosadoçura irônica ele sorriu aodepô-la dessamaneira

ridículadiantedeClarissa.(Mesmoassim,eleestáapaixonado,pensouClarissa.)–Elatem–continuoucalmamente–dois ilhospequenos;ummeninoe

umamenina;evimconsultarmeusadvogadossobreodivórcio.Aíestão!pensouele.Façaoquequisercomeles,Clarissa!Aíestão!Ede

segundo em segundo parecia-lhe que a mulher do major do exércitoindiano (sua Daisy) e seus dois ilhinhos se tornavam cada vez maisadoráveis conforme Clarissa os olhava; como se ele tivesse acendido umrojãozinhonumpratoeumalindaárvoretivesseseerguidonorevigorantearsalinodaintimidadedeles(poisemalgunsaspectosninguémoentendiaou compartilhava seus sentimentos como Clarissa) – a maravilhosaintimidadedeles.Ela o adulou; ela o fezde tolo, pensouClarissa;modelando amulher, a

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esposa do major do exército indiano, a três talhos de um canivete. Quedesperdício!Quedesatino!Durante todaavidaPeter tinha feitopapeldetolo como agora; primeiro sendo desligado de Oxford; depois casando-secom a moça no navio para a Índia; agora a esposa de ummajor – davagraçaspornãotersecasadocomele!Mesmoassim,eleestavaapaixonado;seuvelhoamigo,seuqueridoPeterestavaapaixonado.– Mas o que você vai fazer? – perguntou. Oh, os advogados e

procuradores,Mr. Hooper eMr. Grateley de Lincoln’s Inn, iam cuidar detudo,disseele.Eagoraestavaaparandoasunhascomocanivete.Emnomedoscéus,deixeessecaniveteempaz!exclamouparasimesma

numairritaçãoincontrolável;erasuatolainformalidade,suafraqueza,suafaltadequalquer sombrade ideiadoqueos outrospodiam sentir, que aaborrecia, sempre a aborrecera; e agora naquela idade, que coisa maistola!Sei de tudo isso, pensou Peter; sei o que estou contrariando, pensou,

passando o dedo pela lâmina do canivete, Clarissa e Dalloway e todo oresto;mas voumostrar a Clarissa – e então para sua absoluta surpresa,subitamentearremessadoporaquelas forças incontroláveis, arremessadoao ar, ele rompeu em lágrimas; chorou; chorou sem a menor vergonha,sentadonosofá,aslágrimascorrendopelasfaces.E Clarissa se inclinara para frente, tomara sua mão, atraíra-o para si,

beijara-o–naverdade sentirao rostodeleno seuantesque conseguisseabater as plumas prateadas que se ostentavam como capim dos pampasnuma ventania tropical em seu peito, as quais, cedendo, deixaram-nasegurandoamãodele,dandotapinhasno joelhoesesentindoaoreclinarpara trásextraordinariamenteàvontadecomeleedecoração leve,e lheveionumestalo: seeu tivessemecasadocomele, teriaessaalegriaodiatodo!Estava tudo acabado para ela. Tinha um lençol bem esticado e a cama

eraestreita.Tinhasubidosozinhaàtorredeixando-osacolheramorasaosol.Aportasefechara,eláentreopódorebococaídoeapalhadosninhoscomopareciadistanteapaisagem,ecomoossonschegavamfracosefrios(lá em Leith Hill, ela lembrava) e Richard, Richard! exclamou, como umadormecidoquedespertadenoiteeestendeamãonoescuroembuscadeauxílio.AlmoçandocomLadyBurton,voltou-lheàmemória.Elemedeixou;estousozinhaparasempre,pensou,enlaçandoasmãosnosjoelhos.PeterWalshtinhase levantado,atravessaraasalaatéa janelaeestava

de costas para ela, enxugando o rosto com um grande lenço colorido.Imperioso, seco, desolado parecia ele, as omoplatas magras erguendo

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levementeopaletó;assoprandoruidosamenteonariz.Leve-mecomvocê,pensouClarissanumimpulso,comoseeleestivessesaindoimediatamentepara uma longa viagem; e então, no instante seguinte, foi como se agoraumapeçaemcincoatosmuitoenvolventeeempolgantetivesseseacabadoeelativessevividoaliumaexistência inteira, tivesse fugido, tivessevividocomPeter,eagorativesseseacabado.Agoraerahoradeir,e,talcomoumamulherjuntasuascoisas,ocasaco,

asluvas,obinóculodeteatroeselevantaparasairdoteatroeirembora,elaseergueudosofáefoiatéPeter.E era tremendamente estranho, pensou ele, como ela ainda tinha o

poder, conforme se aproximava tilintando, farfalhando, ainda tinha opoder, conforme atravessava a sala, de fazer a lua, que ele detestava, seerguernoterraçoemBourtonnocéudeverão.–Diga-me–disse ele tomando-apelosombros. –Vocêé feliz, Clarissa?

Richard...Aportaseabriu.–EisminhaElizabeth–disseClarissaemtomemotivo,histriônico,talvez.–Comovai?–disseElizabethavançando.O som do Big Ben batendo ameia hora se alargou entre eles com um

vigorextraordinário, comoumrapaz forte, rude, indiferente, exercitando-seemcírculoscomseusmudoshalteresdechumbonasmãos.–Olá,Elizabeth!–exclamouPeter,en iandoolençonobolso,indorápido

até ela, dizendo “Até mais, Clarissa” sem a olhar, saindo rápido da sala,descendoasescadascorrendoeabrindoaportadovestíbulo.–Peter,Peter!–gritouClarissa,seguindo-oatéaentrada.–Minhafesta!

Não esqueça minha festa hoje à noite! – gritou, tendo de erguer a vozsobre o rugir lá de fora, e, abafada pelo trânsito e pelo som de todos osrelógiosbatendo,suavozgritando“Nãoesqueçaminhafestahojeànoite!”sooufina,fracaemuitodistanteenquantoPeterWalshfechavaaporta.

Não esqueçaminha festa, não esqueçaminha festa, disse PeterWalshenquanto descia os degraus até a rua, falando ritmicamente consigomesmo,emcompassocomo luirdosom,osomforteesonorodoBigBenbatendo a meia hora. (Os círculos de chumbo se dissolveram no ar.) Ohessasfestas,pensouele;asfestasdeClarissa.Porqueeladáessasfestas?pensouele.Nãoqueacensurasse,enemaessa igurade fraquecomumcravonalapelavindoemsuadireção.Apenasumapessoanomundopodiaestar como ele estava, apaixonado. E ali estava, esse felizardo, o próprio,re letido na vitrine de uma loja de automóveis na Victoria Street. Toda a

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Índiaseestendiaatrásdele;planícies,montanhas;epidemiasdecólera;umdistritoduasvezesmaiorqueaIrlanda;decisõesquetomarasozinho–ele,PeterWalsh;oqualagoraestavaapaixonadorealmentepelaprimeiravezna vida. Clarissa tinha se endurecido, pensou; e icado um pouquinhosentimental para compensar, suspeitava ele, olhando os grandesautomóveiscapazesdefazer–quantosquilômetrosporlitro?Poiseletinhauma queda para a mecânica; inventara um arado em seu distrito,encomendaracarrinhosdemãodaInglaterra,masosculesnãousavam,edetudoissoClarissanãofaziaamenorideia.Amaneira como ela disse “Eisminha Elizabeth!” – aquilo o aborreceu.

Por que não “Eis Elizabeth” simplesmente? Era insincera. E Elizabethtambémnãogostou.(Osúltimostremoresdagrandevozretumbanteaindaabalavam o ar em seu redor; a meia hora; ainda cedo; ainda só onze emeia.)Poiseleentendiaosjovens;gostavadeles.SemprehaviaalgofrioemClarissa, pensou. Sempre teve, mesmo quando mocinha, uma espécie detimidez, que na meia-idade se torna convencionalismo, e então tudo seacaba, tudo se acaba, pensou, olhando bastante melancólico nasprofundezas vítreas, e se indagando se a teria incomodado ao visitá-lanaquelahora; subitamente tomadodevergonhapor ter sidoum tolo;porter chorado; ter sido emotivo; ter-lhe contado tudo, como sempre, comosempre.Quandoumanuvemcobreosol,osilênciocaisobreLondres,ecaisobre

a mente. O esforço cessa. O tempo oscila no mastro. Ali paramos; aliicamos.Rígido,apenasoesqueletodohábitosustentaaestruturahumana.Onde não há nada, disse PeterWalsh a simesmo; sentindo-se esvaziado,totalmente vazio por dentro. Clarissa me recusou, pensou ele. Ficou alipensando,Clarissamerecusou.Ah,disseSt.Margaret’s,comoumadamadandoumarecepçãoqueentra

na saladevisitasnoexatomomentoemquebateahoraeencontra seusconvidadosjáalipresentes.Nãoestouatrasada.Não,sãoexatamenteonzee meia, ela diz. No entanto, embora esteja absolutamente certa, sua voz,sendoa vozda an itriã, reluta em impor sua individualidade.Algumadorpelopassadoaretém;algumapreocupaçãopelopresente.Sãoonzeemeia,ela diz, e o som de St. Margaret’s desliza nos recessos do coração e seenterraemanéis emais anéis sonoros, comoalgumacoisavivaquequerseentregar, sedispersar,estar, comum frêmitodeprazer, emrepouso–comoaprópriaClarissa,pensouPeterWalsh,debrancodescendoaescadaaobaterdahora.ÉaprópriaClarissa,pensou,comumaemoçãoprofundaeuma lembrançaextraordinariamenteclara,noentantoenigmática, como

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seessesinotivesseentradonasalaanosatrás,ondeestavamsentadosemalgum momento de grande intimidade, e tivesse passado de um para ooutroedepoispartissecarregandoomomento,comoumaabelhaeomel.Masquesala?Quemomento?Eporqueele se sentiu tãoprofundamentefeliz enquanto o sino batia as horas? Então, enquanto o som de St.Margaret’s se enfraquecia, ele pensou, ela estava doente, e o somexpressava fraqueza e sofrimento. Era o coração, lembrou ele; e o súbitovolumedaúltimabadaladadobroupelamortequesurgiudesurpresanomeiodavida,Clarissacaindoondeestava,emsuasaladevisitas.Não!Não!ele gritou. Ela nãomorreu!Não estou velho, gritou e subiu aWhitehall apassosfirmes,comosealiseestendesse,vigoroso,infindável,seufuturo.Não estava velho, duro ou seco, nem um pouco. Quanto a se importar

comoquediziamdele–osDalloway,osWhitbreadeseuscírculos,nãoseimportavaminimamente–minimamente(emborafosseverdadequeteria,uma hora ou outra, de ver se Richard não o ajudaria a arranjar algumemprego).Caminhandoapassoslargos,olhando ixo,eleencarouaestátuado duque de Cambridge. Tinha sido dispensado de Oxford – verdade.Tinha sido um socialista, em certo sentido um fracasso – verdade.Mas ofuturo da civilização, pensou ele, está nas mãos de rapazes assim; derapazes como ele era, trinta anos atrás; com seu amor por princípiosabstratos; encomendando livros que lhes eram enviados de Londres atéum pico nos Himalaias; lendo ciências; lendo iloso ia. O futuro está nasmãosderapazesassim,pensou.Umrufarcomoorufardefolhasnumbosqueveioportrás,ecomeleum

farfalhar, um tamborilar surdo e constante, que ao envolvê-lo cadenciouseus pensamentos em rigoroso compasso, subindo Whitehall,involuntariamente. Jovens de uniforme, carregando armas, marchavamolhando em frente, marchavam, de braços rígidos, e no rosto umaexpressão como as letras de uma legenda na base de uma estátuaenaltecendoodever,agratidão,alealdade,oamorpelaInglaterra.É, pensou Peter Walsh, começando a acompanhar o passo, um ótimo

treinamento. Mas não pareciam robustos. Eram fracotes na maioria,garotos de dezesseis anos, que amanhã poderiam estar atrás do balcãocom tigelas de arroz ou barras de sabão. Agora portavam intocados peloprazer sensual ou pelas preocupações diárias a solenidade da coroa quetraziam de Finsbury Pavement até a tumba vazia. Tinham prestadojuramento.Otrânsitorespeitava;osfurgõesrecebiamordensdeparar.Nãoconsigoacompanhá-los,pensouPeterWalsh,conformemarchavam

Whitehall acima, e com segurança continuavam amarchar, passando por

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ele, passando por todos, imperturbáveis, como se uma única vontademovesse pernas e braços de maneira uniforme, e a vida, com suasvariedades,suasirreticências,tivessesidoenterradasobumpavimentodemonumentos e coroas e embalsamadapeladisciplinanumcadáver rígidomasdeolhar ixo.Devia-serespeitar;podia-serir;masdevia-serespeitar,pensouele.Lávãoeles,pensouPeterWalsh,parandonabeiradacalçada;e todas as estátuas enaltecidas, Nelson, Gordon, Havelock, as imagensnegras, as imagensespetacularesdegrandes soldadosdepéolhandoemfrente, como se eles também tivessem feito a mesma renúncia (PeterWalsh sentiu que, ele também, tinha feito a grande renúncia), sendoesmagadospelasmesmastentaçõesealcançando inalmenteumolhar ixode mármore. Mas o olhar ixo Peter Walsh não desejava para si, demaneiranenhuma,emborapudesserespeitá-loemoutros.Podiarespeitá-lo em garotos. Eles ainda não conhecem os problemas da carne, pensou,enquanto os garotos em marcha desapareciam na direção do Strand –passeipor tudo isso,pensouatravessandoa ruaeparando soba estátuade Gordon, Gordon a quem venerava quando menino; Gordon de pé,sozinho, com uma perna erguida e os braços cruzados – pobre Gordon,pensou.EsimplesmenteporqueninguémsabiaaindaqueeleestavaemLondres,

anãoserClarissa,eaterra,depoisdaviagem,aindalhepareciaumailha,aestranhezadeestarsozinho,vivo, ignorado,àsonzeemeianaTrafalgarSquare tomou conta dele. O que é isso? Onde estou? E por que, a inal,alguémageassim?pensou,odivórciolheparecendoumpurodisparate.Eseu espírito baixou e se aplainou como um pântano, e três grandesemoções se apoderaram dele; a compreensão; uma imensa afeição pelahumanidade; e inalmente, como se resultasse delas, um prazer raro eirreprimível; como sedentrode seu cérebro corressem cortinas puxadaspor outra mão, persianas se abrissem, e ele, não tendo nada a ver comaquilo,aindaassimseencontrassediantedeavenidasintermináveispelasquais, se quisesse, poderia vaguear. Fazia anos que não se sentia tãojovem.Tinha escapado! era absolutamente livre – como acontece quando o

hábitocedeeamente,feitoumachamadesprotegida,sedobraeseinclinae parece prestes a se desprender de seu suporte. Faz anos que nãomesintotãojovem!pensouPeter,escapando(apenas,claro,porcercadeumahora) a ser exatamente o que era, e se sentindo como uma criança quecorreláforaevê,aocorrer,avelhababáacenandonajanelaerrada.Masela é extraordinariamente atraente, pensou, quando, atravessando a

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Trafalgar Square na direção doHaymarket, apareceu uma jovemque, aopassar pela estátua de Gordon, pareceu, pensou Peter Walsh (sensívelcomo era), soltar véu após véu, até se tornar a exata mulher que elesempre teve em mente; jovem, mas majestosa; alegre, mas discreta;morena,masencantadora.Aprumando-se e brincando furtivamente com o canivete de bolso ele

saiu atrás para seguir essamulher, essa excitação quemesmo de costasparecialançarsobreeleumaluzqueosligava,queoindividualizava,comose o tumulto aleatório do trânsito tivesse sussurrado com as mãos emconchaonomedele,nãoPeter,masseunomeíntimocomquesechamavamentalmente. “Você”, disse ela, apenas “você”, dizendo-o com suas luvasbrancas e seus ombros. Então o longo manto ino que o vento agitavaenquanto ela passava pela Dent’s na Cockspur Street se abriu com umabondade envolvente, uma ternura melancólica, como braços que seabrissemparaacolherocansado–Mas ela não é casada; é jovem; muito jovem, pensou Peter, o cravo

vermelho que vira em seus trajes quando atravessou a Trafalgar Squareardendo de novo nos olhos dele e ruborizando os lábios dela. Mas elaesperava no meio- io. Tinha uma dignidade própria. Não era mundana,comoClarissa;nãoerarica,comoClarissa.Seria,perguntou-sequandoelaretomou o passo, respeitável? Espirituosa, com uma linguinha a iada,pensou (pois a gente precisa inventar, precisa se permitir um pouco dediversão),umhumorserenoefresco,umhumorpenetrante;nãoruidoso.Ela andou; atravessou; ele a seguiu. A última coisa que queria era

importuná-la. Mesmo assim, se ela parasse, ele diria “Vamos tomar umsorvete”,elediria,eelaresponderiacomtodaasimplicidade“Vamos”.Mas outras pessoas se interpuseramna rua, obstruindo-o, ocultando-a.

Ele foi atrás; ela se desviou. Tinha cor nas faces, zombaria nos olhos; eleera um aventureiro, temerário, pensou Peter, rápido, ousado, de fato(tendo chegado da Índia na noite anterior) um bucaneiro romântico,indiferente a todas essas malditas etiquetas, robes amarelos, cachimbos,varas de pesca, nas vitrines das lojas; e à respeitabilidade e a festas e avelhoselegantescomfaixasbrancassoboscoletes.Eleeraumbucaneiro.Elaprosseguia,passandoPiccadilly,subindoaRegentStreet,àfrentedele,seumanto,suasluvas,seusombroscombinandocomasfranjaseas itaseos boás de plumas nas vitrines para compor o espírito de elegância eexcentricidadequesaíadaslojasparacintilardebilmentenasruas,comoaluz de uma lâmpada que transpõe bruxuleante as sebes na escuridão danoite.

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Risonha e encantadora, ela tinha atravessado o cruzamento da OxfordStreetcomaGreatPortlandStreetevirounumadas travessas,eagora,eagora ia se aproximando o grande momento, pois agora ela diminuiu opasso,abriuabolsa,ecomumolharemsuadireção,masnãoparaele,umolharquesedespedia,resumiatodaasituaçãoealiquidavatriunfalmente,parasempre,en iouachavenafechadura,abriuaportaedesapareceu!Avoz de Clarissa dizendo, Não esqueça minha festa, Não esqueça minhafesta, cantouemseusouvidos.A casa eraumadaquelas casas vermelhassimples, tendo do lado de fora cestas de lores de aparência vagamenteimprópria.Tinhaseacabado.Bem, minha diversão eu tive; tive sim, pensou ele, olhando ao alto as

cestas oscilantes de gerânios pálidos. E estava esmigalhada em átomos –suadiversão,poismetadeerainventada,comomuitobemsabia;inventada,essaescapadelacomamoça;inventada,comoseinventaamelhorpartedavida, pensou – inventando a si; inventando a ela; criando umentretenimento delicioso, e alguma coisamais.Mas estranho era, emuitoverdadeiro; tudo isso que nunca se podia partilhar – esmigalhado emátomos.Deumeia-volta; subiu a rua pensando em encontrar algum lugar para

sentar, até dar a hora de Lincoln’s Inn – a hora de Mr. Hooper e Mr.Grateley. Aonde iria? Tanto faz. Então o Regent’s Park. Suas botas nacalçadabatiam“tantofaz”;poiseracedo,muitocedoainda.Era também uma manhã magní ica. Como a pulsação de um coração

perfeito, a vida batia perfeita nas ruas. Sem tenteios – sem hesitação.Girandoeguinando,preciso,pontual,silencioso,ali,exatamentenoinstantecerto, o automóvel parou à porta. Amoça, commeias de seda e plumas,evanescente,masparaelenãoespecialmenteatraente(poistinhatidosuaaventura), desceu. Mordomos impecáveis, chow-chows fulvos, vestíbulosde losangos brancos e pretos com cortinas brancas ondulando, Peter viupela porta aberta e aprovou. Uma magní ica realização em seu gênero,a inal, Londres; a temporada; a civilização. Vindo como vinha de umarespeitável família anglo-indiana que administrava fazia pelo menos trêsgeraçõesosnegóciosdeumcontinente (éestranho,pensou,o sentimentoquetenhoarespeito,desgostandodaÍndia,doimpérioedoexércitocomodesgostava), haviamomentos em que a civilização,mesmo dessa espécie,parecia-lhe cara como um bem pessoal; momentos de orgulho pelaInglaterra;pormordomos;porchow-chowsemoçascheiasdesegurança.Bastante ridícula, mas aqui está ela, pensou. E os médicos, empresários,mulheres capazes, todos cuidando de seus afazeres, pontuais, alertas,

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robustos, pareciam-lhe admiráveis, bons sujeitos, a quem se poderiacon iar a vida, companheiros na arte de viver, capazes de entender. Noinal das contas, o espetáculo era realmente muito aceitável; e ele sesentariaàsombraeiriafumar.HaviaoRegent’sPark.Sim.QuandocriançapasseavanoRegent’sPark–

esquisito,pensou,comocontinuammevoltandoasmemóriasdeinfância–consequência de ter visto Clarissa, talvez; pois as mulheres vivemmuitomaisnopassadodoquenós,pensou.Elasseapegamalugares;eospais–umamulhersempretemorgulhodopai.Bourtoneraumlugarbonito,umlugarmuitobonito,masnuncaconseguimedarbemcomovelho,pensou.Umanoitehouveumacenatremenda–umadiscussãosobrealgumacoisa,oquê,nãoconseguialembrar.Política,provavelmente.Sim, ele se lembrava do Regent’s Park; a alameda reta e comprida; a

casinhaondevendiambalõesnaesquerda;umaestátuaabsurdacomumainscrição em algum lugar. Procurou um lugar vazio. Não queria queviessemincomodá-lo(sentindo-seumpoucosonolento)paraperguntarashoras.Umababágrisalhaeidosa,comumbebêadormecidonocarrinho–eraomelhorquepoderiaencontrar;sentou-senaoutrapontadobancoaoladodaquelababá.É uma moça de ar esquisito, pensou de repente lembrando Elizabeth

quandoentrounasalae icouaoladodamãe.Crescida;bemcrescida,nãopropriamente bonita;mais para graciosa; e não deve termais de dezoitoanos.ProvavelmentenãosedábemcomClarissa. “EisminhaElizabeth”–aquele tipo de coisa – por que não “Eis Elizabeth” simplesmente? –tentando ingir,comoamaioriadasmães,queascoisassãooquenãosão.Elaconfiademaisemseuencanto,pensou.Abusadele.A densa fumaça agradável do charuto desceu fresca pela garganta;

soltou-a em anéis que enfrentavam bravamente o ar por um instante;azuis,circulares–voutentartrocarumapalavraasóscomElizabethhojeànoite,pensou–entãocomeçaramaseestreitaremfeitiosdeampulhetaease a ilar; feitios estranhos que assumem, pensou. De repente fechou osolhos,ergueuamãocomesforçoeatiroulongeapontagrossadocharuto.Uma grande escova macia passou varrendo sua mente, levando galhosinquietos, vozes infantis, passos arrastados e gente andando, e o trânsitozunindo, o trânsito aumentando e diminuindo. Foi se afundando entre aspenaseasplumasdosono,afundou-seetudoseamorteceu.

AbabágrisalharetomouseutricôenquantoPeterWalsh,aseu ladonobanco aquecido, começava a roncar. Com seu vestido grisalho, as mãos

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nummovimento incansávelmas tranquilo, parecia a guardiã dos direitosdos adormecidos, uma daquelas presenças espectrais que se erguem aolusco-fusco nas matas feitas de céu e de ramagens. O viajante solitário,frequentador de veredas, perturbador de samambaias, devastador defunchosselvagens,erguendoosolhosdesúbito,vêa iguragigantescanofinaldatrilha.Talvez ateu por convicção, é tomado de surpresa por momentos de

extraordináriaexaltação.Nãoexistenadaforadenós,anãoserumestadode espírito, ele pensa; um desejo de consolo, de alívio, de algo exterior aesses pigmeus infelizes, esses seres, homens e mulheres, débeis, feios emedrosos. Mas, se ele pode concebê-la, de alguma maneira ela existe,pensa, e avançandona trilha comosolhospostosno céuenas ramagensrapidamente dota-as de feminilidade; vê com assombro a solenidade queadquirem;amajestade,quandoagitadaspelabrisa,comquenumsombrioadejodasfolhasdispensamcaridade,compreensão,absolvição,eentão,desúbitoarremessando-seaoalto,dãoàpiedosamisericórdiadeseuaspectoumardeembriaguezdescontrolada.Taissãoasvisõesqueoferecemgrandescornucópiastransbordantesde

frutas ao viajante solitário, oumurmuram em seus ouvidos como sereiasvagando ociosas pelas ondas verdes domar, ou são atiradas a seu rostocomoramalhetesderosas,ousobemàsuper íciecompálidasfacesqueospescadoresdebatendo-senooceanotentamalcançar.Tais são as visões que incessantemente lutuam sobre, corremao lado,

postam-sediantedacoisareal;muitasvezesdominandooviajantesolitárioe retirando-lhe o sentido da terra, o desejo do retorno e dando-lhe emtrocaumapazgeral, comose (assimpensaeleenquantoavançana trilhada loresta) toda essa febre de viver fosse a própria simplicidade; emiríadesdecoisassefundissemnumacoisasó;eessa igurafeitadecéueramagenstivessesealçadodomarrevolto(estávelho,agoracommaisdecinquenta)comoumaformasugadadasondaselevadaaoaltoeládecimavertesse com suas mãos magni icentes a compaixão, a compreensão, aabsolvição.Assim,pensaele,possaeununcavoltaràluzdalâmpada;àsaladeestar;possaeununcaacabarmeulivro;nuncaesvaziarmeucachimbo;nunca tocar a campainha para Mrs. Turner vir limpar; e possa eucaminharatéaquela iguragrandiosa,quenumgestobruscodacabeçameergueráemsuas faixasde luzepossaeu ser impelidonumsoproparaonadacomtodooresto.Taissãoasvisões.Oviajantesolitáriologochegaaooutroladodamata;e

lá,vindoàportacomosolhosprotegidos,provavelmenteparaescrutarseu

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retorno, sobasmãosempala, comoaventalbrancoondulando,estáumamulher de idade que parece (tão poderosa é essa enfermidade) buscarpelo deserto um ilho perdido; procurar um cavaleiro destruído; ser aigura da mãe cujos ilhos morreram nas batalhas do mundo. Assim,enquantooviajante solitárioavançapela ruadaaldeiaondeasmulherestricotam e os homens cavam o jardim, o anoitecer parece pressago; asigurasse imobilizam;comosealgumaugustodestino,porelasconhecido,aguardado sem medo, estivesse prestes a varrê-las para a aniquilaçãocompleta.Na casa entre coisas comuns, o guarda-louças, a mesa, o parapeito da

janela com seus gerânios, de repente a silhueta da dona da pensão,curvando-se para tirar a toalha, abranda-se com a luz, encantadoremblema que apenas a lembrança de frios contatos humanos nos proíbeabraçar.Elapegaageleia;guarda-anoarmário.–Maisnadaparaestanoite,senhor?Masaquemoviajantesolitáriodáresposta?

AssimababáidosatricotavacuidandodonenêadormecidonoRegent’sPark. Assim Peter Walsh roncava. Ele acordou num extremo repente,dizendoconsigo:“Amortedaalma”.–BomDeus!–disseconsigoemvozalta,espreguiçando-seeabrindoos

olhos.–Amortedaalma.Aspalavrasseligavamaalgumacena,aalgumasala,aalgumpassadocomqueestevesonhando.Ficoumaisclaro;acena,asala,opassadocomqueestevesonhando.Foi emBourtonnaquele verão, no começodos anos 90, quando estava

tão perdidamente apaixonado por Clarissa. Havia muita gente, rindo efalando,emtornodeumamesaapósochá,easalaestavabanhadadeluzamarela edensade fumaçados cigarros.Estavam falandodeumhomemque tinha se casado com a empregada, um dos idalgos vizinhos, nãolembravaonomedele.Tinhase casadocomaempregada, eelavieraemvisita a Bourton – uma visita horrível, aquela. Ela estava absurdamenteenfeitada, “como uma cacatua”, tinha dito Clarissa, arremedando-a, e nãoparava de falar. E falava, falava, sem parar. Clarissa arremedava. Entãoalguém disse – foi Sally Seton – faria alguma verdadeira diferença sesoubessemqueelatinhatidoumacriançaantesdecasar?(Naquelesdias,emgruposdemoçase rapazes, eraousadodizer aquilo.)Ele aindapodiaver Clarissa, corando muito; contraindo-se de certa forma; dizendo: “Oh,nuncamais vou conseguir falar comela!”. Com isso todoogrupo sentadoemvoltadamesadechápareceuvacilar.Foimuitoincômodo.

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Nãoa culparapor se incomodar como fato,poisnaqueles temposumajovemcomacriaçãoqueelatevenãosabianada,masfoisuamaneiraqueo irritou; descon iada; dura; arrogante; puritana. “A morte da alma.” Eletinha dito aquilo instintivamente, rotulando o momento como costumavafazer–amortedaalmadela.Todosvacilaram;quandoelafalou,todospareceramsecurvareentãose

reergueramcomoutroar.ElepôdeverSallySeton,comoumacriançaquetivesse feito alguma travessura, inclinando-se para frente, muitoruborizada, querendo falar, mas com medo, e Clarissa realmenteamedrontavaaspessoas.(ElaeraamelhoramigadeClarissa,sempreporali, uma criatura atraente, graciosa, morena, com fama naqueles dias degrande ousadia, e ele costumava lhe dar charutos, que ela fumava noquarto, e fora noiva de alguém ou tinha brigado com a família, e o velhoParry detestava igualmente os dois, o que era um grande vínculo.) EntãoClarissa,aindacomardeofendidacomtodoseles,selevantou,deualgumadesculpaesaiu,sozinha.Quandoabriuaporta,entrouaquelecãofelpudoenormequecorriaatrásdoscarneiros.Elaseatirousobreele,entregou-seaarroubos.EracomosedissesseaPeter–erainteiramentedestinadoasi,elesabia–“Euseiquevocêmeachouabsurdaporcausadaquelamulheragora há pouco; mas veja como eu sou extraordinariamente afável; vejacomoeugostodomeuRob!”.Elessempretiveramesseestranhopoderdesecomunicarsempalavras.

Elasabiaclaramentequeeleacriticava.Entãofaziaalgomuitoóbvioparasedefender, comoaquela festa como cachorro –masnuncao enganava,ele sempre enxergava através dela. Não que dissesse alguma coisa, demaneira nenhuma; apenas icava sentado com ar carrancudo. Era assimquegeralmentesuasbrigascomeçavam.Ela fechou a porta. E logo ele icou profundamente deprimido. Tudo

aquilopareciainútil–continuarapaixonado;continuarabrigar;continuara fazer as pazes, e ele foi passear sozinho, entre galpões e cocheiras,olhando os cavalos. (O lugar era muito humilde; os Parry nunca forammuito ricos;mas sempre havia tratadores e empregados nos estábulos –Clarissaadoravamontar–eumvelhococheiro–comoeraonomedele?–uma velha ama, Moody, Goody, um nome assim, que iam visitar numasalinhacommontesdefotografias,montesdegaiolasdepassarinhos.)Foiumanoitehorrível!Ele foi icando cadavezmais triste, não só com

aquilo; com tudo. E não podia vê-la; não podia lhe explicar; não podiaresolver. Sempre havia gente em torno – ela continuava como se nãotivesse acontecido nada. Este era seu lado diabólico – essa frieza, essa

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insensibilidade, algo muito profundo nela, que ele sentira mais uma vezesta manhã conversando com ela; uma impenetrabilidade. Mas os céussabemoquantoeleaamava.Elatinhaalgumestranhopoderdetocarnosnervosdapessoa,deconverterosnervosemcordassensíveis,tinhasim.Elechegarapara jantarbastanteatrasado,devidoaumaideia idiotade

querersefazernotar,esentaraaoladodavelhaMissParry–tiaHelena–irmãdeMr. Parry, que supostamentepresidia àmesa. Lá estava ela comseu xale de caxemira branca, com a cabeça recortada contra a janela –umadamatemível,masbondosacomele,poisencontraraparaelaalgumaslores raras, e ela era uma grande botanista, saindo a campo com botasgrossaseumacaixapretadealumínioatiracolo.Sentouaoladodela,enãoconseguiufalar.Tudopareciapassarvelozmenteporele; icousentadoali,comendo. E então a meio do jantar obrigou-se a olhar Clarissa do outroladodamesa.Elaestavaconversandocomumrapazàsuadireita.Eleteveumarevelaçãosúbita.“Elavaisecasarcomaquelehomem”,disseconsigomesmo.Nemsequersabiaonomedele.Pois foinaquelatarde,naquelamesmatarde,queDallowayapareceu;e

Clarissa o chamou de “Wickham”; foi assim que tudo começou. Alguém otrouxera; e Clarissa entendeu mal o nome. Apresentou-o a todos comoWickham. Finalmente ele disse “Meu nome é Dalloway!” – foi esta suaprimeiravisãodeRichard–umbelorapaz,umpoucodesajeitado,sentadonumaespreguiçadeiraefalandodeimpulso“MeunomeéDalloway!”.Sallynão deixou escapar; depois disso sempre o chamava de “Meu nome éDalloway!”.Eleera tomadoporrevelaçõesnaquelaépoca.Esta–queelasecasaria

com Dalloway – foi fulminante – esmagadora no momento. Havia umaespécie – como dizer? – uma espécie de naturalidade nasmaneiras delacom ele; algo maternal; algo gentil. Estavam falando de política. Durantetodoojantareletentouescutaroqueestavamdizendo.DepoislembravaquetinhaficadoaoladodacadeiradavelhaMissParry

na sala de visitas. Clarissa apareceu, com suas maneiras perfeitas, comoumaverdadeiradamadandoumarecepção,equisapresentá-loaalguém–falava como se nunca tivessem se visto antes, o que o enfureceu. Noentanto,mesmo então ele a admiroupor isso. Admirou sua coragem; seuinstintosocial;admirouseupoderdedarandamentoàscoisas.“Aperfeitadamadesociedade”,disse-lhe,aoqueelaseretraiudevez.Maselefezdepropósito.Fariaqualquercoisaparaferi-la,depoisdevê-lacomDalloway.Assim ela o deixou. E ele teve a sensação de que estavam todos unidosnumaconspiraçãocontraele–rindoefalando–portrásdesuascostas.Lá

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icou ele ao lado da cadeira de Miss Parry como se fosse entalhado emmadeira, falandode loressilvestres.Nunca,nuncatinhasofridodeformatãoinfernal!Decertoesqueceu-seatémesmode ingirqueestavaouvindo;por im despertou; viu Miss Parry um tanto desconcertada, um tantoindignada,comosolhossalientesencarando-o ixamente.Elequasegritouque não conseguia prestar atenção pois se sentia no inferno! As pessoascomeçavamasairdasala.Ouviufalarememmandartrazerascapas;queestava friono lago,eassimpordiante.Estavamindopasseardebarcoaoluar–umadasmaluquicesdeSally.Eleaouviadescrevendoalua.Etodossaíram.Deixaram-nototalmentesó.–Vocênãoquerircomeles?–dissetiaHelena–pobresenhora!–tinha

adivinhado.EelesevirouealiestavaClarissaoutravez.Elatinhavoltadopara pegá-lo. Ele se sentiu conquistado por sua generosidade – suabondade.–Venha–disseela.–Estãoesperando.Ele nunca se sentira tão feliz em toda a vida! Sem uma palavra se

reconciliaram. Desceram ao lago. Ele teve vinte minutos de plenafelicidade.Avozdela,oriso,ovestido(algo lutuante,branco,carmesim),avivacidade, o espírito de aventura; ela fez todos desembarcarem eexplorarema ilha; assustouuma galinha; riu; cantou. E o tempo todo, elesabiamuitíssimobem,Dallowayestavaseapaixonandoporela;elaestavaseapaixonandoporDalloway;masparecianãoterimportância.Nadatinhaimportância. Estavam sentados no chão e conversavam – ele e Clarissa.Entendiam-se, um lia os pensamentos do outro sem qualquer esforço. Eentãonumsegundoacabou-se.Disseconsigomesmoquandoentravamnobarco, “Ela vai se casar com aquele homem”, num tom apagado, semnenhumressentimento;maseraumacoisaóbvia.DallowayiasecasarcomClarissa.Dallowayremoudevolta.Nãodissenada.Masdealgumaformaquando

oviramsair, saltandonabicicletaparapedalar trintae cincoquilômetrospelasmatas, bamboleando pela trilha, acenando amão e desaparecendo,obviamente sentiu, instintivamente, tremendamente, intensamente, tudoaquilo;anoite;oromance;Clarissa.Mereciatê-la.Quantoasimesmo,eleeraabsurdo.SuasexigênciasaClarissa(viaisso

agora)eramabsurdas.Pedia coisas impossíveis. Fazia cenas terríveis.Elaainda o aceitaria, talvez, se tivesse sido menos absurdo. Assim pensavaSally. Ela lhe escreveu longas cartas naquele verão; como tinham faladodele; como o elogiara; comoClarissa se abriu em lágrimas! Foi um verãoextraordinário–cartas,cenas,telegramas–chegandoaBourtondemanhã

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cedo, vagueando por ali até que os criados acordassem; tetê-à-têtesapavorantes com o velhoMr. Parry no desjejum; tiaHelena intimidadoramas bondosa; Sally arrastando-o para conversar na horta; Clarissa decamacomdordecabeça.A cena inal, a cena terrível que ele acreditava ter sido a coisa mais

importantedetodaasuavida(podiaserumexagero–masmesmoassimeracomorealmentepareciaagora),aconteceuàs trêsda tardedeumdiaquentíssimo.Foiporcausadeumaninharia–Sallynoalmoçodizendoalgosobre Dalloway e chamando-o de “Meu nome é Dalloway”; nisso derepenteClarissa se enrijeceu, se ruborizou, deumamaneiramuito sua, evociferou ríspida “Chega dessa brincadeira sem graça”. Foi só isso; maspara ele foi como se tivesse dito “Estou apenasme divertindo com você;tenho um compromisso com Richard Dalloway”. Assim ele entendeu.Passou noites sem dormir. “Tinha de acabar de umamaneira ou outra”,disse consigo mesmo. Enviou-lhe um bilhete por intermédio de Sallypedindo para encontrá-lo na fonte às três. “Aconteceu algo muitoimportante”,escrevinhounofinal.A fonte icava no meio de um bosquezinho, distante da casa, com

arbustoseárvoresaoredor.Láelafoi,atéantesdahora,eosdois icaramdepécomafonteentreeles,ochafariz(estavaquebrado)gotejandoáguasemcessar.Comoas imagenssegravamnamente!Porexemplo,omusgoverde-vivo.Elanãosemovia.–Medigaaverdade,medigaaverdade–elecontinuavadizendo.Sentia

comoseacabeçafosseestourar.Elapareciacontraída,petri icada.Nãosemovia.–Medigaaverdade–repetiu,quandoderepenteapareceuacabeçado

velho Breitkopf carregando o Times; olhou para eles; abriu a boca; foiembora.Nenhumdosdoissemoveu.–Medigaaverdade–repetiu.Ele sentiu que estava atritando contra algo isicamente duro; ela era

in lexível. Era como ferro, comopedra, rígida até amedula. E quando eladisse “Não adianta. Não adianta. Acabou” – depois de ter ele falado porhoras, parecia, comas lágrimas correndopelo rosto – foi como se ela lhetivessedadoumtapanacara.Elasevirou,largou-o,foiembora.–Clarissa!–gritou.–Clarissa!Maselanãovoltou.Estavaacabado.Elefoiemboranaquelanoite.Nunca

maisaviu.

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Foihorrível,exclamouele,horrível,horrível!Mesmo assim, o sol era quente. Mesmo assim, a gente superava as

coisas.Mesmoassim,avidaarranjavaumjeitodesomarumdiaaooutro.Mesmo assim, pensou bocejando e começando a perceber – o Regent’sParknãotinhamudadoquasenadadesdequeeramenino,anãoserpelosesquilos –mesmo assim, provavelmente havia compensações – quando apequenaEliseMitchell, que estava catandopedrinhaspara acrescentar àcoleção de pedrinhas que ela e o irmão estavam montando em cima dalareiranoquartodebrincar,soltouaquelepunhadoemcimadojoelhodababáesaiudenovonumacarreiradesabalada trombandonaspernasdeumasenhora.PeterWalshriualto.MasLucreziaWarrenSmithestavadizendoasimesma,Écruel;porque

devo eu sofrer? perguntava enquanto descia pelo BroadWalk. Não; nãoaguentomais, estava dizendo, tendo deixado Septimus, que não eramaisSeptimus, a dizer coisas duras, cruéis, maldosas, a falar sozinho, a falarcom um morto, no banco lá adiante; quando a criança numa carreiradesabaladatrombounela,seestatelounochãoedesandouachorar.Aquilo era até reconfortante. Colocou a menina de pé, espanou o

vestidinho,deu-lheumbeijo.Masdeseuladoelanãotinhafeitonadaerrado;tinhaamadoSeptimus;

tinha sido feliz; tinha tidoumabela casa, e lá aindamoravamsuas irmãs,fazendochapéus.Porqueeladeviasofrer?A criança voltou correndo para a babá, e Rezia viu como era

repreendida, como era consolada e aninhada no colo pela babá quedeixarao tricô,eohomemdearbondoso lhedavao relógioparaabriredistraí-la –maspor que ela devia icar exposta? Por quenão foi deixadaemMilão?Porquesertorturada?Porquê?Levemente ondeados pelas lágrimas, a alameda, a babá, o homem de

cinza, o carrinho de criança subiam e desciam diante dos olhos. Era seudestinoserabaladaporessetorturadormalévolo.Masporquê?Eracomoumaaveseabrigandosobapequenaconcavidadedeumafolha,quepiscaaosolquandoafolhasemove;assusta-seaoestalidodeumgalhinhoseco.Ela estava exposta; estava cercada pelas árvores enormes, pelas nuvensimensas de um mundo indiferente, exposta; torturada; e por que deviasofrer?Porquê?Franziuocenho;bateuopé.TinhadevoltardenovoatéSeptimus,pois

era quasehorade iremver SirWilliamBradshaw. Precisava voltar e lhedizer, voltar até ele sentado ali na cadeira verde sob a árvore, falandosozinho ou com aquele morto Evans, que ela só tinha visto uma vez

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rapidamente na loja. Parecera um homem calmo e tranquilo; um grandeamigodeSeptimus,etinhamorridonaguerra.Masessascoisasacontecemcomtodos.Todostêmamigosquemorreramnaguerra.Todosrenunciamaalguma coisa quando se casam. Ela tinha renunciado à sua casa. Tinhavindomoraraqui,nestacidadehorrível.MasSeptimussepermitiapensarem coisas horríveis, como ela também poderia, se tentasse. Ele tinha setornadocadavezmaisestranho.Diziaquehaviapessoas falandopor trásdas paredes do quarto. Mrs. Filmer achava aquilo esquisito. Ele tambémviacoisas–tinhavistoacabeçadeumavelhanomeiodeumasamambaia.Enoentantopodiaserfelizquandoqueria.ElesforamaHamptonCourtnosegundo andar de um ônibus, e estavam plenamente felizes. Todas aslorezinhas vermelhas e amarelas despontavamna relva, como lâmpadaslutuantes disse ele, e falaram, conversaram, riram, inventaram histórias.Derepenteeledisse: “Agoravamosnosmatar”,quandoestavam juntoaorio, e ele o itou comumolhar que ela tinha visto em seus olhos quandopassavaumtremouumônibus–umolharcomosealgoofascinasse;eelasentiu que ele se afastava e o segurou pelo braço. Mas indo para casaestava totalmentecalmo– totalmente sensato.Conversoucomelapara sematarem;eexplicouqueaspessoaserammás;quevia como inventavammentirasquandopassavamnarua.Conheciatodosospensamentosdelas,disseele;conheciatudo.Conheciaosignificadodomundo,disseele.Entãoquandochegaramelemalconseguia icardepé.Deitounosofáe

pediuqueela lhesegurasseamãoparanãocair,cair,gritouele,entreaschamas! e viu rostos nas paredes rindo dele, chamando-o de nomesnojentos horríveis, e mãos apontando em volta do biombo. E no entantoestavamtotalmentesozinhos.Maselecomeçouafalaralto,respondendoaalguém,discutindo, rindo,gritando,empolgando-see fazendocomqueelaanotasse as coisas. Um absurdo total aquilo; sobre a morte; sobre MissIsabelPole.Elanãoaguentavamais.Iavoltar.Agora ela estava perto dele, podia vê-lo itando o céu, murmurando,

fechandoasmãos.Enoentantodr.Holmesdissequenãohavianadacomele. Então o que tinha acontecido – por que ele se ausentara, então porque,quandoelasentouaseulado,elesesobressaltou,franziuocenho,seafastoueapontouparasuamão,pegousuamão,olhou-aaterrorizado?Era porque ela tinha tirado a aliança de casamento? “Minha mão

emagreceumuito”,eladisse;“guardeinabolsa”,falouaele.Ele soltou amão dela. O casamento tinha se acabado, pensou ele, com

angústia, com alívio. O cordão estava cortado; ele se ergueu; estava livre,como estava decretado que ele, Septimus, o senhor dos homens, estaria;

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sozinho(vistoqueaesposatinhajogadoforaaaliançadecasamento;vistoque ela o deixara), ele, Septimus, estava sozinho, convocado à frente detodos os homens para ouvir a verdade, para conhecer o signi icado, queagora inalmente, depois de todos os labores da civilização – gregos,romanos,Shakespeare,Darwineagoraelemesmo–seriareveladoemsuainteireza a... “A quem?”, perguntou em voz alta, “Ao primeiro-ministro”,responderamasvozesque lhe farfalhavamà cabeça.O segredo supremodevia ser contado ao ministério; primeiro, que as árvores estão vivas;depois, não existe crime; depois, o amor, o amor universal, murmurou,arfando,tremendo,extraindopenosamenteessasverdadesprofundasqueexigiam, tão fundo estavam, tão di íceis eram, um esforço imenso paraenunciar,mas omundo estava inteiramente transformado por elas, parasempre.Não crime; amor; repetiu, procurando a papeleta e o lápis, quandoum

terrier escocês farejou suas calças e ele se assustou num paroxismo demedo.Estavavirandoumhomem!Nãopodiaolharaquiloacontecendo!Erahorrível, terrível ver um cachorro virar homem! Logo o cachorro saiutrotando.Océueradivinamentemisericordioso,in initamentebenévolo.Poupou-o,

perdoousuafraqueza.Masqualeraaexplicaçãocientí ica(poiséprecisoser cientí ico acima de todas as coisas)? Por que ele podia enxergaratravésdoscorpos,verofuturo,quandooscachorrosvirarãohomens?Eraa onda de calor, provavelmente, operando num cérebro que se izerasensível ao longo de eras de evolução. Falando cienti icamente, a carnetinhasefundidocomomundo.Seucorpotinhasemaceradoatérestaremapenas as ibras nervosas. Estendia-se como um véu em cima de umapedra.Apoiouascostasnacadeira,exausto,mas irme.Apoiou-sedescansando,

esperando,antesdeinterpretardenovo,comesforço,comangústia,paraahumanidade. Apoiou-se lá no alto, sobre as costas do mundo. A terravibravasobele.Floresvermelhasbrotavamdacarne;suasfolhasrijaslhefarfalhavamàcabeça.Amúsicacomeçoua ressoarcontraaspedrasaquiemcima.Éabuzinadeumcarronarualáembaixo,murmurou;masaquiem cima ela colidia de pedra empedra, dividia-se, reunia-se em choquessonoros que se erguiam em colunas lisas (que amúsica fosse visível erauma descoberta) e se tornava um hino, um hino agora voluteado pelalautadeumpastorzinho(Éumvelhotocando lautimporunstrocadosaolado da taberna,murmurou) que, enquanto omenino icava parado, saíaborbulhandodesua lauta,eentão,conformeelesubiacadavezmaisalto,

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formavaseudelicado lamentoenquantoo trânsitopassava láembaixo.Aelegia dessemenino toca entre o trânsito, pensou Septimus. Agora ele seretira lá no alto entre as neves, e em torno dele pendem rosas – asespessas rosas vermelhas que crescem na parede de meu quarto,lembrou-se.Amúsicaparou.Eleganhouseustrocados,contouefoiparaapróximataberna.Mas ele mesmo continuou no alto de sua pedra, como ummarinheiro

afogadonoaltodeumapedra.Debruceinabeiradadobarcoecaí,pensou.Afundei no mar. Estive morto, e no entanto agora estou vivo, mas medeixemdescansar,suplicou(estavadenovofalandosozinho–erahorrível,horrível!); e assimcomo, antesdedespertar, as vozesdas aves eos sonsdas rodas repicam e chilreiam numa estranha harmonia, aumentam eaumentam,eoadormecidosesentepuxadoparaasmargensdavida,eletambémsesentiapuxadoparaavida,osolesquentandocadavezmais,osgritossoandomaisalto,algotremendoprestesaacontecer.Tinhaapenasdeabrirosolhos;mashaviaumpesosobreeles;ummedo.

Concentrou-se; fez força; olhou, viu o Regent’s Park diante de si. Longasfaixasdeluzdosolondulavamaseuspés.Asárvoresacenavam,brandiam.Acolhemos,omundopareciadizer;aceitamos;criamos.Abeleza,omundoparecia dizer. E como para prová-lo (cienti icamente) em qualquer lugarqueeleolhasse,ascasas,asgrades,osantílopesseesticandoporcimadascercas, a beleza brotava instantaneamente. Observar uma folhatremulando ao sopro do vento era uma alegria extraordinária.No céu aoaltoandorinhasmergulhando,guinando,arremetendocáe lá,emvoltasemais voltas, mas sempre com um controle perfeito como se estivessempresasporelásticos; eos insetos subindoedescendo;eo solmanchandooraesta,oraaquelafolha,debrincadeira,ofuscando-acomumourosuavedepurobomhumor;edenovoalgumrepique(podiaserabuzinadeumcarro) ressoando divinamente nos ios de capim – tudo isso, calmo esensatocomoera,feitodecoisascomunscomoera,eraagoraaverdade;abeleza,queeraagoraaverdade.Abelezaestavaportodaparte.–Estánahora–disseRezia.Apalavra“hora”fendeusuacápsula;despejousuasriquezassobreele;

e de seus lábios, como cascas, como aparas de umaplaina, sem ser ele afazê-las, caíram palavras duras, brancas, imperecíveis, e voaram paraocuparseus lugaresnumaodeaoTempo;umaode imortalaoTempo.Elecantou.Evansrespondeudetrásdaárvore.OsmortosestavamnaTessália,cantouEvans, entre asorquídeas. Lá esperaramaté terminar a guerra, eagoraosmortos,agoraopróprioEvans–

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–Pelo amordeDeus, não venha! – Septimus gritou. Pois ele nãopodiaolharosmortos.Mas os ramos se separaram.Umhomemde cinza estavamesmo vindo

na direção deles. Era Evans! Mas não tinha lama no corpo; não tinhaferimentos; não tinha mudado. Preciso contar ao mundo todo, gritouSeptimus, erguendo a mão (conforme o morto de terno cinza seaproximava), erguendo a mão como alguma igura colossal que duranteeras lamenta sozinha no deserto o destino do homem comprimindo asmãosna testa, sulcosdedesesperonas faces, e agoravêa luznaorladodesertoquesealargae incidena iguranegracomo ferro (eSeptimussesoergueudacadeira)e,comlegiõesdehomensprostradosatrásdesi,ele,oenormepranteador,poruminstanterecebenafacetodoo––Massoutãoinfeliz,Septimus–disseRezia,tentandofazê-losentar.Osmilhõeslamentavam;porerastinhamsecompadecido.Iasevirar, ia

lhesfalardentrodepoucosinstantes,apenasmaisalgunsinstantes,dessealívio,dessaalegria,dessarevelaçãoespantosa––Ahora,Septimus–repetiuRezia.–Quehorassão?Ele estava falando, estava começando, esse homem deve ter notado.

Estavaolhandoparaeles.– Vou lhe dizer a hora – disse Septimus muito lento, muito apático,

sorrindomisteriosamenteparaomortodeternocinza.Enquantosorriaalisentado,bateuoquarto–umquartoparaomeio-dia.Eissoéserjovem,pensouPeterWalshaopassarporeles.Terumacena

horrorosa– apobremoçaparecia absolutamentedesesperada–nomeioda manhã. Mas do que se tratava? Ficou imaginando; o que o rapaz desobretudo esteve lhe dizendo para que ela icasse assim; em que apurohorríveltinhamsemetido,paraambospareceremtãodesesperadosassimnumabelamanhãdeverão?AcoisadivertidaemvoltarparaaInglaterra,depois de cinco anos, era que, pelo menos nos primeiros dias, as coisasaparecem como se nunca ninguém as tivesse visto antes; amantesdiscutindosobumaárvore;avidadomésticafamiliardosparques.Londresnunca tinha lhe parecido tão encantadora – a brandura das distâncias; ariqueza; o verdor; a civilização, depois da Índia, pensou, atravessando ogramado.Essa suscetibilidade a impressões tinha sido sua ruína, sem dúvida.

Ainda nessa idade tinha, como ummenino oumesmo umamenina, essasoscilaçõesdehumor;bonsdias,mausdias,semqualquerrazãoquefosse,felicidade diante de um rosto bonito, franco pesar à vista de uma feiosa.Depoisda Índia, claro,osujeitoseapaixonavapor todasasmulheresque

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visse. Havia frescor nelas; mesmo as mais pobres se vestiam melhor doquecincoanosatrás,semdúvida;easeuveramodanuncatinhacaídotãobem; as longas capas negras; a esbelteza; a elegância; e então o hábitodelicioso e aparentemente universal da maquilagem. Todas as mulheres,mesmo as mais respeitáveis, tinham um ino veludo de rosas cultivadas;lábiostalhadosacinzel;caracóisdenanquim;haviadesenho,arte,portodaparte; semdúvidaocorreraalgumaespéciedemudança.Oqueos jovenspensavamarespeito?perguntou-sePeterWalsh.Aqueles cinco anos – 1918 a 1923 – tinham sido, suspeitava ele, de

alguma maneira muito importantes. As pessoas pareciam diferentes. Osjornais pareciam diferentes. Agora, por exemplo, num dos semanáriosrespeitáveis havia um homem escrevendo abertamente sobre vasossanitários. Isso não se poderia fazer dez anos atrás – escreverabertamentesobrevasossanitáriosnumsemanáriorespeitável.Etambémisso de tirar um potinho de ruge ou uma esponja de pó de arroz e semaquiarempúblico.Abordodonaviovoltandoparacasahaviamontesderapazesemoças–pensavaespecialmenteemBettyeBertie–coqueteandomuitoabertamente;amãe idosasentadacomseu tricôolhando,namaiorindiferença. Amoça parava e empoava o nariz na frente de todos. E nãoeramnoivos;sósedivertindo;nenhumamágoadenenhumdoslados.Durafeitoaço,eraela–BettyNãoseidoquê–masdeboacepa.Dariaumaótimaesposaaostrinta–iriacasarquandolheconviessecasar;casarcomalgumricaçoemorarnumcasarãopertodeManchester.Quem era mesmo que tinha feito isso? perguntou-se Peter Walsh,

virandoeentrandonoBroadWalk–casoucomumricaçoemoravanumcasarão perto deManchester? Alguém que lhe tinha escrito ultimamenteuma carta longa e efusiva sobre “hortênsias azuis”. Foi por ter vistohortênsias azuis que ela pensou nele e nos velhos tempos – Sally Seton,claro! Era Sally Seton – a última pessoa nomundo que se esperaria quefosse casar com um ricaço emorar num casarão perto deManchester, adoida,aousada,aromânticaSally!Mas de toda aquela turma antiga, os amigos de Clarissa – Whitbread,

Kindersley, Cunningham, Kinloch Jones – Sally era provavelmente amelhor. De qualquer modo tentava pegar as coisas pelo lado certo. Dequalquer modo viu quem era Hugh Whitbread – o admirável Hugh –quandoClarissaeosdemaisestavamaseuspés.“Os Whitbread?”, ele ainda podia ouvi-la. “Quem são os Whitbread?

Vendedoresdecarvão.Comerciantesrespeitáveis.”Hugh ela detestava por alguma razão. Ele não pensava emnada a não

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ser na própria aparência, dizia ela. Devia ter sido duque. Teria dado umjeitode se casar comumadasprincesasda corte.E evidentementeHughtinha o mais extraordinário, o mais espontâneo, o mais sublime respeitopela aristocracia britânica entre todos os seres humanos que ele tinhavisto na vida. Mesmo Clarissa tinha de admitir isso. Oh, mas era tãoafetuoso, tão altruísta, desistia de ir caçar para agradar à velha mãe –lembravaasdatasdosaniversáriosdastiaseassimpordiante.Sally,justiçasejafeita,enxergavaatravésdetudoaquilo.Umadascoisas

queelemelhor lembrava eraumadiscussãonumdomingodemanhãemBourton sobre os direitos das mulheres (aquele assunto antediluviano),quandode repenteSallyperdeuapaciência, icou furiosaedisse aHughqueelerepresentavatudooquehaviademaisdetestávelnavidadaclassemédia inglesa. Disse-lhe que o considerava responsável pela situação d’“aquelaspobresmoçasemPiccadilly”–Hugh,operfeitocavalheiro,pobreHugh! – jamais homem algum pareceu tão horrorizado! Ela fez depropósito,dissemaistarde(poiselescostumavamseencontrarnahortaetrocarobservações).“Elenãolianada,nãopensavanada,nãosentianada”,ele ainda podia ouvi-la naquela vozmuito enfática que iamuito além doqueelaimaginava.UmtratadordeestábulostinhamaisvidaemsidoqueHugh,diziaela.Eraumexemplarperfeitodoalunode internato,diziaela.Nenhum país poderia tê-lo produzido a não ser a Inglaterra. Ela estavarealmentemaldosa,poralgumarazão;tinhaalgumareclamaçãocontraele.Tinha acontecido alguma coisa – ele esqueceu o que era – no salão defumar. Insultara-a–beijara-a? Incrível!Ninguémacreditounumapalavracontra Hugh, claro. Quem acreditaria? Beijar Sally no salão de fumar! Seainda fosse alguma Honourable Edith ou Lady Violet, talvez; mas nãoaquelaSallymaltrapilhasemumtostãodeseu,sempaioumãejogandoemMonteCarlo.PoisentretodasaspessoasqueeleconheciaHugheraomaisesnobe – o mais obsequioso – não, ele não bajulava propriamente. Erapedantedemaisparaisso.Acomparaçãoóbviaeraumcriadodeprimeiraclasse – alguém que ia atrás carregando as malas; de con iança paraenviar telegramas – indispensável às damas de sociedade. E tinhaencontradoseuemprego–casaracomsuaHonourableEvelyn;conseguiraalgum pequeno cargo na corte, cuidava das adegas do rei, lustrava asivelasdossapatosimperiais,circulavadecalçõesefolhosderenda.Comoavidaéimplacável!Umpequenoempregonacorte!Tinha se casado com essa dama, aHonourable Evelyn, emoravampor

aqui, achava ele (olhandoas casaspomposasquedavamparaoparque),pois tinha almoçado uma vez ali numa casa que, como todos os bens de

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Hugh, tinha algo que nenhuma outra casa seria capaz de ter – armáriospara lençóisoucoisaparecida.Vocêtinhadeireolhar–sempretinhadepassar um tempo enorme admirando o que fosse – armários de lençóis,fronhas,móveisantigosdecarvalho,quadros,queHughtinhaencontradoporumabagatela.MasàsvezesMrs.Hughserevelava.Eraumadaquelasmulherzinhasobscurasedesinteressantesqueadmiramgrandeshomens.Era quase insigni icante. Então de repente ela dizia algo totalmenteinesperado – algo arguto. Eram os resquícios do grande estilo, talvez. Ocarvão era um pouco forte demais para ela – espessava a atmosfera. Eassimláelesmoravam,comseusarmáriosdelençóis,seusvelhosmestres,suasfronhascomacabamentosderenda,provavelmentenafaixadecincoou dez mil por ano, enquanto ele, que era dois anos mais velho do queHugh,mendigavaumemprego.Aoscinquentae trêsanos, tinhadevire lhespedirqueopusessemno

escritório de alguma secretaria, que lhe arranjassem algum emprego deauxiliardeensinodelatimaospirralhos,àdisposiçãodealgummandarimnumescritório,algoquedesseumasquinhentas librasanuais;poisseelefosse se casar com Daisy, mesmo com sua pensão, jamais conseguiriamviver com menos. Whitbread provavelmente poderia lhe arranjar; ouDalloway. Não se importava em pedir a Dalloway. Era ótimo sujeito; umpouco limitado; um pouco tapado; sim; mas ótimo sujeito. Em qualquercoisaqueseocupasse,agiasempredemaneirapráticaesensata;semumpingo de imaginação, sem uma faísca de gênio, mas com a inexplicávelprecisão de sua espécie. Podia ter sido um aristocrata rural –desperdiçava-senapolítica. Ficava em suamelhor forma ao ar livre, comcãesecavalos–comosesaiubem,porexemplo,quandoaquelecachorrãopeludo de Clarissa icou preso numa armadilha e teve a pata meioarrancada,eClarissaquasedesmaioueDallowaycuidoudetudo;enrolouem faixas, fez talas; disse a Clarissa quenão fosse tola. Eradissoque elagostavanele, talvez–eradissoqueelaprecisava. “Agora,minhaquerida,não seja tola. Segure aqui – solte ali”, o tempo inteiro conversando comocachorrocomosefosseumserhumano.Mascomoelaconseguiaengolirtodasaquelascoisassobrepoesia?Como

ela podia deixá-lo discorrer sobre Shakespeare? Sério e solene, RichardDallowaysepunhacategóricoediziaquenenhumhomemdecentedeverialer os sonetos de Shakespeare pois era como ouvir pelo buraco dasfechaduras(alémdisso,nãoeraumarelaçãoqueeleaprovasse).Nenhumhomem decente deixaria a esposa visitar a irmã de uma esposa falecida.Inacreditável! A única coisa a fazer era bombardeá-lo com amêndoas

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açucaradas – era durante o jantar. Mas Clarissa se embebia em tudoaquilo; pensava que era tão honesto da parte dele; tão independente dapartedele;sabemoscéusseelanãooconsideravaoespíritomaisoriginalquehaviaconhecido!Aquele era um dos laços entre Sally e ele. Havia um jardim por onde

costumavam andar, um recinto cercado, com roseiras e couves- loresgigantes – ele podia lembrar Sally arrancando uma rosa, parando paraexclamar à beleza das folhas das couves ao luar (era extraordinária avividezcomquetudolhevoltava,coisasemquenãotinhapensadoduranteanos), enquanto lhe implorava, meio de brincadeira, claro, que raptasseClarissa, que a salvasse dos Hugh e dos Dalloway e de todos os outros“perfeitos cavalheiros” que iriam “sufocar sua alma” (ela escrevia muitapoesianaquelaépoca),convertê-laemmeradamadesociedade,encorajarseu mundanismo. Mas devia-se fazer justiça a Clarissa. De qualquermaneira jamais se casaria comHugh.Ela tinhaumanoçãoabsolutamenteclara do que queria. Suas emoções estavam todas à super ície. No fundo,elaeramuitoarguta–umajuízadecarátermuitomelhordoqueSally,porexemplo, e apesar disso puramente feminina; com aquele domextraordinário, aquele dom de mulher, de construir um mundo próprioondequerqueestivesse.Elaentravanumasala;paravaàporta,comoeleaviramuitasvezes,easalarepletadegente.MaseraClarissaque icavanalembrança. Não que fosse notável; nem bonita, em absoluto; não havianada de pitoresco nela; nunca dizia nada especialmente brilhante; aliestava,porém;aliestavaela.Não,não,não!Elenãoestavamaisapaixonadoporela!Apenassesentia,

depoisdevê-lanaquelamanhã,entresuastesourasesedas,preparando-separaafesta,incapazdeafastaropensamentodela;continuavavoltandosem parar, como alguém adormecido num vagão de trem oscilando e seencostando nele; o que não era estar apaixonado, claro; era pensar nela,criticá-la,voltar,depoisdetrintaanos,atentarentendê-la.Acoisaóbviaaseurespeitoeraqueeramundana;preocupava-sedemaiscomaposição,asociedade,apresençanomundo–oqueemcertosentidoeraverdade;elamesma tinha reconhecido o fato. (Você sempre conseguia que elaadmitisse, se se desse ao trabalho; era honesta.) O que diria era quedetestava desleixados, molengas, fracassados, provavelmente como elemesmo; pensava que as pessoas não tinham o direito de vaguear por aídesocupadas; precisavam fazer alguma coisa, ser alguma coisa; e essasgrã- inas, essas duquesas, essas velhas condessas respeitáveis que apessoa encontrava na sala de visitas de Clarissa, que a ele pareciam

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indizivelmente distantes de qualquer coisa que tivesse um iapo deimportância,paraelarepresentavamalgoreal.LadyBexborough,disseelaumavez,nãoperdiaalinha(comoaprópriaClarissa;elanuncasepermitiarelaxaremnenhumsentidodotermo;eraretacomouma lecha;umpoucorígida, na verdade). Dizia que elas tinham uma espécie de coragem quequanto mais envelhecia mais respeitava. Em tudo isso havia muito deDalloway,claro;muitodoespíritoimbuídodeinteressepúblico,doImpériobritânico, da reforma tributária, o espírito da classe dirigente, que tinhacrescido nela, como é a tendência que aconteça. Com o dobro dainteligência dele, ela tinha de enxergar as coisas pelos olhos dele – umadas tragédias da vida conjugal. Com suas ideias próprias, ela precisavaestar sempre citandoRichard– como senãobastasse ler oMorningPostde uma única manhã para saber nos mínimos detalhes o que Richardpensava! Essas festas, por exemplo, eram todas para ele, ou para a ideiaque ela fazia dele (para fazer justiça a Richard ele teria sido mais feliznumavidaruralemNorfolk).Elaconverteuasaladevisitasnumaespéciedelocaldeencontro;tinhaumtalentoparaaquilo.Quantasvezeseleavirapegar algum rapaz ainda cru, torcê-lo, virá-lo, despertá-lo; pô-lo a andar.Umaquantidadein initadegentesemgraçaseaglomeravaaoredordela,claro.Masapareciamalgumaspessoasinesperadas;umartistaàsvezes;àsvezesumescritor;umpovoexcêntriconaquelaatmosfera.Eportrásdissotudoestavaaqueletrabalhomiúdodevisitar,deixarcartões,sergentilcomas pessoas; correr de lá para cá com ramalhetes de lores, presentinhos;fulana estava indo à França – precisava de uma almofada in lável; umaverdadeira drenagem de sua energia; toda aquela movimentaçãointerminável quemantinham asmulheres de sua categoria;mas ela agiacomautenticidade,poruminstintonatural.Muito curiosamente, ela era uma das pessoas mais céticas que ele

conhecia, e possivelmente (era uma teoria que costumava inventar paraexplicá-la, tão transparente em alguns aspectos, tão inescrutável emoutros),possivelmentediziaasimesma:Comosomosumaraçacondenada,acorrentada a um navio se afundando (sua leitura favorita quandomocinha eramHuxley eTyndall, e eles gostavammuito dessasmetáforasnáuticas), como a coisa toda é uma brincadeira demau gosto, vamos, detodomodo, cumprir nossa parte; vamos aliviar os sofrimentos de nossoscompanheiros de prisão (Huxley outra vez); vamos enfeitar a masmorracom lores e almofadas; vamos ser os mais decentes que pudermos.Aquelesru iões,osdeuses,nãovãotertudodojeitoquequerem–poissuaideiaeraqueosDeuses,quenuncaperdiamumaocasiãodeferir,frustrar,

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estragarasvidashumanas, icavamseriamentedesconcertadosse,apesardetudo,vocêsecomportassecomoumadama.AquelafaseveiologoapósamortedeSylvia–aquelecasohorrível.Veraprópriairmãmortadevidoàquedadeumaárvore(tudoporculpadeJustinParry–tudopordescuidodele) diante de seus olhos, uma moça também no auge da vida, a maisdotada delas, Clarissa sempre dizia, era o que bastava para amargurar apessoa. Mais tarde deixou talvez de ser tão categórica; pensava que osdeuses não existiam; ninguém tinha culpa; e assim desenvolveu essareligiãodosateístasdefazerobempeloprópriobem.E ela gozava imensamente a vida, claro. Estava em sua natureza gozar

(embora,sóoscéussabem,elativessesuasreservas;eraummeroesboço,muitas vezes sentia, que mesmo ele, depois de todos aqueles anos,conseguiafazerdeClarissa).Emtodocasonãohaviaamarguranela;nadadaquele senso de virtude moral que é tão desagradável nas mulheresbondosas. Gozava praticamente tudo. Se você andasse com ela no HydePark,aquieraumcanteirodetulipas,aliumacriançanumcarrinho,acoláalgum pequeno drama absurdo que ela transformava na motivação domomento.(Muitoprovavelmenteteriaidofalarcomaquelecasal,setivesseachadoqueeraminfelizes.)Tinhaumsensodehumorqueerarealmenteapurado,masprecisavadegente,sempregente,paratrazê-loàtona,comoresultado inevitável de que consumia seu tempo, almoçando, jantando,dandoessassuasfestasincessantes,falandobobagens,dizendocoisasquenãopretendia,embotandoo iodoespírito,perdendoodiscernimento.Láse sentava à cabeceiradamesadando-se ao in inito trabalhode entreteralgum velho tonto que podia ser útil a Dalloway – eles conheciam aspessoasmaispavorosamentemaçantesdaEuropa–ouentravaElizabethetudo devia ceder lugar a ela. Estava num colégio, na fase do silêncio naúltima vez em que ele esteve lá, uma jovem de olhos redondos e rostopálido, sem nada damãe, uma criatura quieta, apática, que tomava tudocomo natural, deixava a mãe lhe dar toda aquela atenção e então dizia:“Posso ir agora?”, como uma menina de quatro anos; saindo, explicavaClarissa com aquela mescla de divertimento e orgulho que o próprioDalloway parecia lhe despertar, para ir jogar hóquei. E agora Elizabethtinha“debutado”,provavelmente;julgava-oumvelhofóssil,riadosamigosda mãe. Bom, que seja. A compensação por envelhecer, pensou PeterWalsh,saindodoRegent’sParkesegurandoochapéunamão,eraapenasisso; as paixões continuam fortes como sempre,masumadelas ganhou –enfim!–opoderqueacrescentaosaborsupremoàexistência–opoderdepegaraexperiênciaegirá-lalentamenteàluz.

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Eraumacon issãoterrível,esta(pôsdenovoochapéu),masagora,aoscinquentae trêsanos,praticamentenãoseprecisavamaisdaspessoas.Aprópriavida,cadamomentoseu,cadagotasua,aqui,nesteinstante,agora,ao sol, no Regent’s Park, bastava. Até sobrava, na verdade. Uma vidainteira, agora que a pessoa tinha adquirido esse poder, era curta demaispara explorar todo o sabor; para extrair cada grama de prazer, cadanuance de signi icado; os quais eram muito mais sólidos do quecostumavam ser, muito menos pessoais. Era impossível que algum diavoltasseasofrertantoquantoClarissaofizerasofrer.Porhorasafio(Deusqueiraquesepossamdizeressascoisassemserouvido!),porhorasediasafioelenãopensouemDaisy,emmomentoalgum.Podia ser que então estivesse apaixonado por ela, lembrando a dor, a

tortura, a paixão extraordinária daqueles dias? Era uma coisa totalmentediferente–umacoisamuitomaisagradável–poisdefato,claro,agoraeraelaqueestavaapaixonadaporele.Efoitalvezporissoque,quandoonaviorealmentezarpou,elesentiuumalívioextraordinário,quandooquemaisqueriaeraestarsozinho; icouirritadoaovertodasaspequenasatençõesdela–charutos,bilhetes,umamantadeviagem–emsuacabine.Sefossemhonestos, todos diriam amesma coisa; depois dos cinquenta a gente nãoquer outras pessoas em volta; não quer continuar a dizer às mulherescomo são bonitas; é o que diria amaioria dos cinquentões, pensou PeterWalsh,sefossemhonestos.Mas e esses espantosos acessosde emoção– romper em lágrimas esta

manhã,oqueeraaquilo?OqueClarissateriapensadodele?teriapensadoprovavelmentequeeraumtolo,enãopelaprimeiravez.Eraociúmequeestavanofundodaquilo–ociúmequesobreviveatodasasoutraspaixõesda humanidade, pensou Peter Walsh, segurando o canivete aberto. Elaandava encontrando omajor Orde, disse Daisy na última carta; disse depropósito, ele sabia; disse para enciumá-lo; ele podia vê-la franzindo atestaenquantoescrevia, imaginandooquepoderiadizerparamagoá-lo;eno entanto não fazia nenhuma diferença; ele icou furioso! Todo essetranstornodeviràInglaterraeconsultaradvogadosnãoeraparasecasarcomela,eraparaimpedi-ladesecasarcomqualqueroutro.Eraissoqueotorturava, foi issoque se apossoudelequandoviuClarissa tão calma, tãoserena,tãoconcentradaemseuvestidoouoquefosse;percebendooqueela podia ter lhe poupado, ao que ela o reduzira – um velho ridículolamurientoe choramingas.Masasmulheres,pensou fechandoo canivete,não sabemo que é a paixão.Não sabemo que signi ica para os homens.Clarissaerafriacomoumcristaldegelo.Ficousentadaalinosofáaolado

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dele, deixou que lhe pegasse a mão, deu-lhe um beijo no rosto – Estavaagoranocruzamento.Um som o deteve; um som trêmulo e frágil, uma voz brotando e se

erguendo sem direção, sem vigor, sem começo nem im, luindo fraca eagudanaausênciadequalquersignificadohumanoem

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eeumfahumsofoosweetooeemoo–

a voz sem idade nem sexo, a voz de uma fonte antiga jorrando da terra;quesaía,logonooutroladodaestaçãodemetrôdoRegent’sPark,deumaigura trêmula e alta, como um tubo de vapor, como uma bombaenferrujada, como uma árvore batida pelo vento perpetuamente despidadefolhasquedeixaoventosubiredescerpelosgalhoscantando

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eeumfahumso

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foosweetooeemoo

eoscilaechiaegemenabrisaeterna.Atravessandotodasasidades–quandoacalçadaeramato,quandoera

pântano,atravessandoaidadedalongapresaedomamute,atravessandoaidadedaaurorasilenciosa–amulher–poisestavadesaia–alquebradacomamãodireitaestendida,aesquerdaseapertandonalateral,aliestavacantandoo amor–o amorque tinhaduradoummilhãode anos, cantavaela,oamorqueprevalece,emilhõesdeanosatrásseuamado,queestavamortofaziaséculos,passeara,cantarolavaela,aseuladoemmaio;masnocursodasidades,longascomodiasdeverão,eardentes,lembravaela,semnada alémde ásteres vermelhos, ele se fora; a gigantesca foice damortevarreraaquelasenormescolinas,equandoen impousouacabeçabrancae imensamente idosa na terra, agora uma mera escória de gelo, elaimplorou aos deuses que depusessem a seu lado um maço de urzepúrpura,noaltodesuasepulturaqueeraacariciadapelosúltimosraiosdoúltimosol;poisentãoapeçadouniversoestariaterminada.Enquantoa cançãoantigabrotavae seerguianooutro ladodaestação

demetrô do Regent’s Park, a terra ainda parecia verde e lorida; ainda,emborasaídadeumabocatãorude,ummeroburaconaterra, lamacentotambém, emaranhado de raízes ibrosas e matos entrançados, ainda avelha canção brotando borbulhante, encharcando as raízes nodosas dein initas idades, esqueletos e tesouros, luía em regatos pela calçadadescendotodaaMaryleboneRoad,indoparaEuston,fertilizando,deixandoumrastroúmido.Ainda lembrando como outrora em algum maio primevo ela passeara

comseuamado,essabombaenferrujada,essavelhaalquebradacomumamão estendida para algumas moedas, a outra apertando a lateral, aindaestaria lá emdezmilhõesdeanos, lembrandocomooutrorapassearaemmaio, por onde agora corre o mar, com quem não importava – era umhomem,ahsim,umhomemqueaamara.Masapassagemdasidadestinhaembaçado a claridade daquele antigo dia de maio; as lores de pétalasbrilhantes estavam brancas e argênteas de geada; e ela não via mais,quandolheimplorava(comoimplorouagoramuitoclaramente)“ itameusolhos com teus doces olhos”, ela não via mais olhos castanhos, suíçasnegras ou um rosto bronzeado, mas apenas uma igura indistinta, umaigura de sombra, para a qual, como frescor de pássaro dos anciões, elaaindachilreava“dá-metuamãoedeixa-meapertá-ladeleve”(PeterWalshnãopôdedeixardedarumamoedaàpobrecriaturaaoentrarnotáxi),“e

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se alguém vir, o que importa?” perguntou ela; e o punho se apertou nalateral, e sorriu, embolsando seu xelim, e todos os olhos inquisitivos eperscrutadorespareceramseapagar,easgeraçõespassando–acalçadaestava repleta de uma classe média afobada – desapareceram, comofolhas, para ser pisadas, embebidas emaceradas, convertidas em húmusporaquelafonteeterna–

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eeumfahumsofoosweetooeemoo.

–Pobrevelha–disseReziaWarrenSmith.Oh,pobrecoitada!disse,esperandoparaatravessar.Esechovesseànoite?Eseopai,oualguémqueativesseconhecidoem

diasmelhores,passassealiporacasoeavisseparadanasarjeta?Eondeeladormiaànoite?Alegre, quase jovial, o io invencível do som se espiralou no ar como o

fumo da chaminé de uma casinha, espiralando-se pelas faias claras esaindo como um penacho de fumo azul entre as folhas mais altas. “E sealguémvir,oqueimporta?”Desdequese sentia tão infeliz, fazia semanase semanas,Reziaandava

dandosignificadosàscoisasqueaconteciam,àsvezesquasesentiavontadedepararaspessoasnarua,separecessemgentis,bondosas,sópara lhesdizer “Sou infeliz”; e essa velha cantando na rua “se alguém vir, o queimporta?” lhe trouxe a súbita certeza de que tudo icaria bem. Iamconsultar Sir William Bradshaw; ela achou que o nome dele soava bem;curariaSeptimusnahora.Ehaviatambémacarroçadeumcervejeiro,eoscavalos cinzentos tinhamcerdasdepalha espetadas entre a cauda; haviaplacaresdenotícias.Eraumailusãomuitoboba,serinfeliz.Entãoelesatravessaram,Mr.eMrs.SeptimusWarrenSmith,ehaveria,

a inal, alguma coisa que chamasse a atenção para eles, alguma coisa queizesse um passante suspeitar eis aqui um rapaz que traz em si amaiormensagem domundo e é, além disso, o homemmais feliz domundo, e omais desgraçado? Talvez andassem mais devagar do que os outros, ehouvesse algo hesitante, arrastado, no andar do homem,mas o que teriade mais natural para um escriturário, que fazia anos que não vinha aoWest Endnumdia de semananesse horário, do que icar olhando o céu,olhandoisso,aquiloeaquilooutro,comosePortlandPlace fosseumsalãoonde ele tivesse entrado estando a família fora, estando os candelabrosenvoltos em sacos de lona impermeável, e a governanta, ao deixarentrarem longas faixas de luz empoeirada que pousam nas poltronasvaziasde aparência esquisita, ao levantarumapontadas longas cortinas,explica aos visitantes como émaravilhoso aquele lugar; quemaravilhoso,masaomesmotempo,pensaele,queestranho.Olhandobem, podiamesmo ser umescriturário,mas de boa categoria;

pois usava botasmarrons; asmãos eram cultivadas; o per il também – oper ilanguloso,denarizcomprido, inteligente, sensível,masnãoos lábios

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no conjunto, pois eram frouxos; e os olhos (como tendema ser os olhos),olhos apenas; castanho-escuros, grandes; assim, no todo, ele era um casoinde inido, nem uma coisa nem outra; podia acabar com uma casa emPurley e um automóvel, ou continuar alugando aposentos em ruelasafastadasdurante a vida toda; umdaqueles homens semi-instruídos, quese instruíram sozinhos e cuja instrução é toda ela adquirida em livrostirados nas bibliotecas públicas, lidos à noite depois do expediente, porrecomendaçãodeautoresconhecidosconsultadosporcarta.Quanto às outras experiências, as solitárias, pelas quais as pessoas

passam sozinhas, em seus quartos, em seus escritórios, andando peloscamposepelasruasdeLondres,eletinha;saíradecasa,aindamenino,porcausa da mãe; porque ela mentia; porque ele desceu para o chá pelaquinquagésimavezsemterlavadoasmãos;porquenãovianenhumfuturoparaumpoetaemStroud;eassim,tomandoairmãzinhacomocon idente,tinha ido para Londres deixando um bilhete absurdo, como escrevem osgrandeshomenseomundo lêmais tardequandoahistóriadesuas lutassetornoufamosa.Londres tinhaengolidomuitosmilhõesde jovenschamadosSmith;nem

pensavaemnomesdebatismofantásticoscomoSeptimuscomqueospaishaviampretendidodistinguirseus ilhos.MorandonaEustonRoad,houveexperiências e mais experiências, que em dois anos transformaram umrostoovalrosadoinocentenumrostomagro,contraído,hostil.Masdetudoissooqueomaisobservadordosamigospoderiadizeranãoseroquedizum jardineiro quando abre a porta da estufa demanhã e encontra umanova lor em sua planta: Floresceu; loresceu da vaidade, da ambição, doidealismo, da paixão, da solidão, da coragem, da preguiça, as sementesusuais que,misturadas (numquarto na EustonRoad), o izeram tímido egaguejante,o izeramansiosoemseaprimorar,o izeramseapaixonarporMissIsabelPole,dandoaulasnaWaterlooRoadsobreShakespeare.ElenãopareciaKeats?perguntava-seela;ere letiuquepoderialhedar

aprovarAntônioeCleópatraeosdemais;emprestou-lhelivros;escreveu-lhe fragmentos de cartas; acendeu-lhe aquele fogo que arde apenas umavez na vida, sem calor, bruxuleando numa chama rubro-douradain initamente etérea e imaterial sobre Miss Pole, Antônio e Cleópatra eWaterloo Road. Ele a achava linda, julgava-a irrepreensivelmente sábia;sonhavacomela;escrevia-lhepoemasque,ignorandootema,elacorrigiaatintavermelha;eleaviu,numanoitecerdeverão,andandoporumapraçacom um vestido verde. “Floresceu”, diria o jardineiro se tivesse aberto aporta; quer dizer, se tivesse entrado em qualquer noite dessa época, e o

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encontrasse escrevendo; encontrasse-o rasgando o que havia escrito;encontrasse-oterminandoumaobra-primaàstrêshorasdamanhãe logosaindo às pressas para percorrer as ruas, visitar igrejas, jejuar num dia,beber emoutro, devorar Shakespeare,Darwin,A história da civilização eBernardShaw.Haviaalgonoar,Mr.Brewersabia;Mr.Brewer,chefedosescriturários

na Sibleys & Arrowsmiths, leiloeiros, avaliadores, corretores de terras eimóveis;haviaalgonoar,pensavaele,esendopaternalcomseusrapazes,tendoemaltíssimoapreçoascapacidadesdeSmitheprofetizandoque,emdez ou quinze anos, chegaria à poltrona de couro na sala interna sob aclaraboia comas caixasdedocumentos ao redor, “se conservar a saúde”,dizia Mr. Brewer, e este era o perigo – ele parecia fraco; aconselhavafutebol, convidava-o para jantar e estava pensando numa maneira derecomendar um aumento de salário quando aconteceu algo quetranstornoumuitosdoscálculosdeMr.Brewer, levouseus jovenscolegasmais capazes e por im, tão intrometidos e insidiosos eram os dedos daguerra europeia, esmigalhou uma estátua de gesso de Ceres, abriu umrombonoscanteirosdegerâniosedestroçoucompletamenteosnervosdacozinheiranaresidênciadeMr.BreweremMuswellHill.Septimus foi um dos primeiros a se apresentar como voluntário. Foi à

França para salvar uma Inglaterra que consistia quase inteiramente empeçasdeShakespeareeemMissIsabelPoledevestidoverdeandandoporuma praça. Lá nas trincheiras a mudança que Mr. Brewer desejavaquando aconselhou o futebol se produziu instantaneamente; eledesenvolveu virilidade; foi promovido; atraiu a atenção, na verdade aafeiçãodeseuo icial,denomeEvans.Eramcomodoiscãesbrincandonumtapete da lareira; um mascando um pedaço de papel, rosnando,abocanhando, dando uma mordiscada, de vez em quando, na orelha domaisvelho;ooutrodeitadosonolento,pestanejandoaofogo,erguendoumapata, virando e rugindo de bom humor. Tinham de estar juntos, decompartilhar, brigar entre si, discutir entre si.Mas quando Evans (Rezia,quesóo tinhavistoumavez,diziaqueera“umhomemquieto”,umruivorobusto,caladonacompanhiademulheres),quandoEvansfoimorto, logoantesdoarmistício,naItália,Septimus,longedemostrarqualqueremoçãoou reconhecer que ali estava o im de uma amizade, congratulou-se porsentir muito pouco e muito sensatamente. A guerra o ensinara. Erasublime. Tinha atravessado todo o espetáculo, a amizade, a guerraeuropeia, a morte, fora promovido, ainda não tinha trinta anos e estavadestinado a sobreviver. Estava bem ali. As últimas bombas não o

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acertaram. Olhava-as explodindo com indiferença. Quando veio a paz eleestava emMilão, aquartelado na casa de um estalajadeiro com um pátio,lores em bacias, mesinhas ao ar livre, ilhas fazendo chapéus, e comLucrezia,a ilhamaisnova,elenoivounumanoitecerquandofoiassaltadopelopânico–dequenãoconseguiasentir.Poisagoraquetudohaviaseacabado,apazestavaassinadaeosmortos

enterrados, ele tinha, principalmente ao anoitecer, esses súbitos assaltosde medo. Não conseguia sentir. Quando abria a porta da sala onde asmoças italianas estavam sentadas fazendo chapéus, conseguia vê-las;conseguiaouvi-las;estavampassando iosdearameentrecontascoloridasempires; estavamvirandomoldes de entretela de um lado e de outro; amesaestavatodacobertadeplumas,lantejoulas,sedas,faixasespalhadas;tesouras batiam secas na mesa; mas algo lhe faltava; ele não conseguiasentir.Aindaassim,tesourasbatendo,moçasrindo,chapéussendofeitosoprotegiam; tinha a segurança garantida; tinha um refúgio.Mas nãopodiaicarsentadoalianoitetoda.Haviamomentosemqueacordavademanhãcedo.Acamaestavacaindo;eleestavacaindo.Ohapesardastesouras,daluzdalâmpada,dasentretelas!PediuemcasamentoLucrezia,amaisnovadasduas,aalegre,afrívola,comaquelesdedinhosdeartistaquelevantavaedizia“Estátudoneles”.Seda,plumas,tudoganhavavidaneles.– O chapéu é omais importante – ela dizia quando saíam juntos. Cada

chapéuquepassava,elaexaminava;eacapa,ovestido,oportedamulher.As malvestidas, as vestidas com exagero ela estigmatizava, nãobrutalmente,maiscomgestos impacientesdasmãos, comoumpintorqueafasta de si alguma inocente impostura óbvia e gritante; e então, comgenerosidade, mas sempre crítica, ela aprovava alguma balconista quehavia dado um toque galante em seu chapeuzinho, ou louvava semreservas, com conhecimento pro issional e entusiástico, uma damafrancesadescendodesuacarruagem,comchinchilas,mantos,pérolas.– Lindo! – murmurava, cutucando Septimus para que olhasse. Mas a

belezaestavaatrásdeumpaineldevidro.Mesmoosabor (Reziagostavade sorvetes, chocolates, coisasdoces)não tinhagostopara ele. Pousava axícaranamesinhademármore.Olhavaaspessoasláfora;pareciamfelizes,reunindo-senomeiodarua,gritando,rindo,discutindopornada.Masnãoconseguiasaborear,nãoconseguiasentir.Naconfeitariaentreasmesaseos garçons falantes vinha-lhe o medo terrível – não conseguia sentir.Conseguia raciocinar; conseguia ler, Dante por exemplo, com toda afacilidade(“Septimus,deixeolivro”,diziaRezia,fechandodelicadamenteoInferno), conseguia somar a conta; o cérebro estavaperfeito; entãodevia

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serculpadomundo–quenãoconseguissesentir.– Os ingleses são tão calados – dizia Rezia. Gostava disso, dizia ela.

Respeitava esses ingleses, e queria ver Londres, os cavalos ingleses, osternos de alfaiataria, e lembrava que haviam lhe dito que as lojas erammaravilhosas,umatiaquesecasaraemoravanoSoho.Talvezfossepossível,pensouSeptimus,olhandoaInglaterrapelajanela

do trem quando saíam de Newhaven; talvez fosse possível que omundoemsinãotivessesignificado.No escritório promoveram-no a um cargo de considerável

responsabilidade.Estavamorgulhososdele;tinhasidocondecorado.– Você cumpriu seu dever; cabe a nós... – começouMr. Brewer; e não

pôde concluir, tão agradável era aquela sua emoção. Ocuparam ótimosaposentosnaTottenhamCourtRoad.Aqui ele voltou a abrir Shakespeare. Aquela coisa de menino de se

inebriar com a linguagem – Antônio e Cleópatra – tinha murchadototalmente.ComoShakespeareabominavaahumanidade–pôrroupas,terilhos, a sordidez da boca e do ventre! Agora se revelava a Septimus; amensagemocultanabelezadaspalavras.Osinalsecretoqueumageraçãopassa disfarçadamente à seguinte é a repugnância, o ódio, o desespero.Dante,amesmacoisa.Ésquilo(traduzido),amesmacoisa.Reziasentavaàmesa guarnecendo chapéus. Guarnecia chapéus para as amigas de Mrs.Filmer;guarneciachapéusporhoras.Pareciapálida,misteriosa,comoumlírio,afogado,sobaágua,pensouele.–Osinglesessãotãosérios–diziaela,abraçandoSeptimus,encostando

afacenadele.OamorentrehomememulhererarepulsivoparaShakespeare.Acoisa

da cópula com aquele seu im era sórdida para ele. Mas, dizia Rezia, elaprecisavaterfilhos.Estavamcasadosfaziacincoanos.Iam juntos à Tower, ao Victoria and Albert Museum; juntavam-se à

multidão para ver o rei abrir o Parlamento. E havia as lojas – lojas dechapéus, lojas de roupas, lojas com malas de couro na vitrine, onde elaparavaeficavaolhando.Masprecisavaterummenino.Precisavaterum ilhocomoSeptimus,diziaela.Masninguémpodiaser

comoSeptimus;tãogentil;tãosério;tãointeligente.ElanãoconseguirialertambémShakespeare?Shakespeareeraumautordifícil?perguntavaela.Não se podem trazer ilhos a um mundo como este. Não se pode

perpetuaro sofrimentoouaumentara raçadessesanimais sensuais,quenão têm emoções duradouras, apenas caprichos e vaidades, agitando-osnumturbilhãooradeumlado,oradeoutro.

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Ele a observava cortando, modelando, como se observa um pássarosaltitar, esvoaçar na grama, sem ousar mexer um dedo. Pois a verdade(melhordeixá-lana ignorância)équeos sereshumanosnão têm fé,nembondade, nem caridade além do que sirva para aumentar o prazer domomento. Caçam em bandos. Seus bandos exploram o deserto edesaparecemguinchandonosermos.Abandonamoscaídos.Usamcaretaspregadasnacara.HaviaBrewernoescritório,debigodeencerado,al inetede gravata de coral, faixa branca e emoções agradáveis – por dentro sófrieza e viscosidade– seus gerâniosdestruídosna guerra – osnervosdesua cozinheira destroçados; ou Amelia Nãoseidoquê passando as xícarasdecháàscincoemponto–umaharpiazinhaesconsa,escarninha,obscena;e os Toms e Berties com seus peitilhos engomados deixando pingargrandesgotasdevício.Nuncaviamosdesenhosqueele fazianocaderno,nuscomsuasgrosserias.Narua,osfurgõespassavamroncandoporele;abrutalidadeestrondeavanosplacares;homenseramapanhadosemminas;mulheresqueimavamvivas; eumavezuma ilamutiladade lunáticosemtreinamento ou exibição para o divertimento do populacho (que ria alto)des ilou, acenou a cabeça e sorriu passandopor ele, naTottenhamCourtRoad, cada qual com certo ar de desculpa, mas ainda assim em triunfo,infligindosuadesgraçairremediável.Eeleéqueenlouquecia?AocháRezialhecontouquea ilhadeMrs.Filmerestavaesperandoum

bebê. Ela não podia envelhecer sem ter ilhos! Estava muito solitária,estava muito infeliz! Chorou pela primeira vez desde que se casaram. Àdistância ele ouviu seus soluços; ouviu precisamente, percebeudistintamente;comparouaosomdeumpistão.Masnãosentiunada.Sua esposa estava chorando, e ele não sentia nada; apenas a cada vez

que ela soluçava dessa profunda, dessa silenciosa, dessa desesperadamaneira,eledesciamaisumdegraudentrodopoço.Por im, num gesto melodramático que adotou mecanicamente e com

plena consciência de sua insinceridade, deixou cair a cabeça sobre asmãos. Agora tinha se rendido; agora outros deviam ajudá-lo. Deviam virajudá-lo.Elecedeu.Nada conseguia recobrá-lo. Rezia o pôs na cama. Mandou chamar um

médico–dr.HolmesdeMrs.Filmer.Dr.Holmesoexaminou.Elenãotinhaabsolutamente nada, disse dr. Holmes. Oh, que alívio! Que homem bom,quehomemgentil!,pensouRezia.Quandoelesesentiaassim, iaao teatrodevariedades,dissedr.Holmes.Tiravaumdiadefolgacomaesposaeiamjogargolfe.Porquenãotentarduaspastilhasdebrometodissolvidasnumcopo d’água na hora de deitar? Essas casas velhas de Bloomsbury, disse

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dr. Holmes, dando pancadinhas na parede, muitas vezes são cheias debelos painéis de madeira, que os proprietários fazem a asneira deempapelar. Outro dia mesmo, visitando um paciente, Sir Algumacoisa deQualquercoisa,emBedfordSquare–Então não havia desculpa; não tinha absolutamente nada, exceto o

pecado pelo qual a natureza humana o condenara à morte; que ele nãosentia. Não se importara quando Evans foi morto; aquilo foi o pior; mastodososoutroscrimeserguiamsuascabeçasemoviamodedoacusadoretroçavam e escarneciam ao pé da cama nas primeiras horas da manhãdiantedocorpoprostradoquejaziapercebendosuadegradação;comosecasara com a esposa sem a amar;mentira-lhe; seduzira-a; ultrajaraMissIsabel Pole, e estava tão empustulado e marcado pelo vício que asmulheres estremeciam ao vê-lo na rua. O veredito da natureza humanaparatalcanalhaeraamorte.Dr. Holmes veio outra vez. Grande, de cores sadias, bem-apessoado,

batendo levemente as botas, olhando-se no espelho, pôs tudo aquilo delado – dores de cabeça, insônia, medos, sonhos – sintomas dos nervos enada mais, disse ele. Se dr. Holmes visse que tinha perdido nem quefossem só duzentos gramas de seus setenta e três quilos, pedia à esposamais um prato de mingau no desjejum. (Rezia devia aprender a fazermingau.) Mas, continuou ele, a saúde é muito uma questão de controlepessoal. Procure interesses externos; escolha algum passatempo. AbriuShakespeare–AntônioeCleópatra;empurrouShakespearedelado.Algumpassatempo, disse dr. Holmes, pois não devia ele sua excelente saúde (etrabalhavacomoqualqueroutroemLondres)aofatodesempreconseguirse desligar dos pacientes e se entreter commóveis antigos? E que lindopente,selhepermitissedizer,Mrs.WarrenSmithestavausando!Quandoomaldito imbecilveiooutravez,Septimusserecusouavê-lo.É

mesmo? disse dr. Holmes, com um sorriso amável. De fato precisou darnaquelaencantadorasenhorinha,Mrs.Smith,um leveempurrãoamistosoparapassaraoladoeentrarnoquartodeseumarido.–Entãovocêestánumacrise–disseem tomamável, sentandoao lado

do paciente. Tinha realmente falado em se matar para a esposa, tãomocinha, estrangeira, não era? Isso não dava a ela uma ideia muitoestranhadosmaridosingleses?Umhomemnãoteriatalvezumaobrigaçãocomaprópriaesposa?Nãoseriamelhorfazeralgumacoisaemvezdeficarna cama? Pois ele tinha quarenta anos de experiência nas costas; eSeptimus podia acreditar em sua palavra – ele não tinha absolutamentenada.EnapróximavezemqueviesseesperavaencontrarSmithdepée

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sem deixar aquela encantadora senhorinha sua esposa preocupada comele.Anaturezahumana,emsuma,partiuparacimadele–abestarepulsiva,

comasnarinasvermelhascomosangue.Holmespartiuparacimadele.Dr.Holmes vinha regularmente todos os dias. Depois que você tropeça,escreveuSeptimusnoversodeumcartão-postal,anaturezahumanaparteparacimadevocê.Holmesparteparacimadevocê.Aúnicachancedelesera fugir sem queHolmes soubesse; para a Itália – para qualquer lugar,qualquerlugar,longededr.Holmes.Mas Rezia não conseguia entendê-lo. Dr. Holmes era um homem tão

bom. Interessava-se tanto por Septimus. Só queria ajudá-los, dizia ele.Tinha quatro ilhos pequenos e a convidara para o chá, contou ela aSeptimus.Assim estava abandonado. Omundo inteiro clamava:mate-se,mate-se,

por nós. Mas por que haveria de se matar por eles? A comida eraagradável; o sol, quente; e issode sematar, como faria, comuma facademesa, de uma maneira nojenta, aos borbotões de sangue – cheirando ocanodegás?Estavafracodemais;malconseguiaergueramão.Alémdisso,agora que estava totalmente sozinho, condenado, abandonado, comosozinho está quem está à beira da morte, havia um luxo naquilo, umisolamento repleto de sublime; uma liberdade que os apegados não têmcomo conhecer. Holmes tinha vencido, claro; a besta com as narinasvermelhastinhavencido.MasnemopróprioHolmesconseguiriaencostarnestaúltimaruínavagandoperdidano imdomundo,nesteproscrito,quevolvia o olhar para as regiões habitadas, que jazia, como ummarinheiroafogado,napraiadomundo.Foinaqueleinstante(Reziatinhaidoàscompras)queocorreuagrande

revelação. Uma voz falou por trás do biombo. Evans estava falando. Osmortosestavamcomele.–Evans,Evans!–gritou.Mr. Smith estava falando sozinho, gritou a criadinha Agnes para Mrs.

Filmer na cozinha. “Evans, Evans!”, tinha dito ele quando entrou com abandeja.Eladeuumsalto,ahsedeu.Edesceuasescadascorrendo.E Rezia chegou, com suas lores, e atravessou o quarto, e pôs as rosas

numvaso, como sol batendodiretamentenelas, e sepôs a rir, saltitandopeloquarto.Precisaracomprarasrosas,disseRezia,deumpobresujeitonarua.Mas

jáestavamquasemortas,disseajeitandoasrosas.Então havia um homem lá fora; Evans, provavelmente; e as rosas, que

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Rezia disse que estavam quasemortas, tinham sido colhidas por ele noscampos da Grécia. Comunicação é saúde; comunicação é felicidade.Comunicação,murmurouele.–Oquevocêestádizendo,Septimus?–perguntouRezia,desvairadade

terror,poiseleestavafalandosozinho.ElamandouAgnesircorrendochamardr.Holmes.Seumarido,disseela,

estavalouco.Malareconhecia.–Suabesta!Suabesta!–gritouSeptimus,vendoanaturezahumana,isto

é,dr.Holmes,entrarnoquarto.–Ora,ora,oque temosaqui?–dissedr.Holmesno tommaisafáveldo

mundo.–Falandobobagensparaassustarsuaesposa?Mas ele lhe daria algo para dormir. E se eram ricos, disse dr. Holmes,

olhando ironicamente ao redor do quarto, que fossem então a HarleyStreet; se não con iavam nele, disse dr. Holmes, já não parecendo tãobondoso.

Eram exatamente doze horas; doze pelo Big Ben; cuja badalada foilutuando até toda a zona norte de Londres; fundiu-se às de outrosrelógios, mesclou-se leve e etérea com as nuvens e iapos de fumaça emorreu lá longe entre as gaivotas – bateram as doze enquanto ClarissaDallowayestendiaovestidoverdenacamaeosWarrenSmithdesciamaHarley Street. Às doze era o horário da consulta deles. Provavelmente,pensou Rezia, era a casa de SirWilliam Bradshaw com o carro cinza nafrente.(Oscírculosdechumbosedissolveramnoar.)Defatoera–ocarrodeSirWilliamBradshaw;baixo,potente,cinzacom

iniciais lisas entrelaçadas no painel da porta, como se as pompas daheráldica fossem incongruentes por ser este homem o auxiliadorespiritual,osacerdotedaciência;e,talcomoocarroeracinza,dentrodele,para combinar com sua suavidade sóbria, amontoavam-se peles cinza,mantas cinza-prateadas, para manter sua senhoria aquecida enquantoaguardava. Pois muitas vezes Sir William percorria noventa ou cemquilômetros de estrada, para ir visitar no campo os ricos, os a litos, quepodiampagarosenormeshonoráriosqueSirWilliammuitodevidamentecobrava pela consulta. Sua senhoria esperava com asmantas nos joelhosuma hora ou mais, reclinada, às vezes pensando no paciente, às vezes,desculpavelmente, no muro de ouro, aumentando minuto a minutoenquantoesperava;omurodeouroqueaumentavaentreelese todasasmudançaseansiedades(elaasenfrentaracombravura; tinhamtidosuas

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lutas),atésesentirseguranumoceanocalmo,ondesopramapenasventosagradáveis; respeitada, admirada, invejada, sem lhe restar praticamentenada a desejar, embora lamentasse sua robustez; grandes jantares todasas quintas-feiras para os colegas de pro issão; um ocasional bazarbene icentepara inaugurar; cumprimentosà realeza;muitopouco tempo,infelizmente, com o marido, cujo trabalho não parava de aumentar; ummenino indo bem em Eton; gostaria de uma ilha também; ocupações,porém, não lhe faltavam; a assistência infantil; o atendimento aosepilépticosemconvalescença;afotogra ia,deformaque,sehouvesseumaigreja sendo construída, ou uma igreja sendo demolida, ela dava umagorjetaaosacristão,pegavaachaveetiravafotos,quepraticamentenãosedistinguiamdotrabalhodeumprofissional,enquantoesperava.Sir William também já não era jovem. Tinha trabalhado muito;

conquistara sua posição pormérito próprio (sendo ilho de um pequenocomerciante);amavaapro issão; faziabela iguranascerimôniase falavabem–coisas,todaselas,quenaépocaemquerecebeuotítulodecavaleirolhe conferiam um ar pesado, um ar cansado (sendo o movimento doconsultório tão incessante, as responsabilidadeseprivilégiosdapro issãotão exigentes), cansaço este que, junto com seus cabelos grisalhos,acentuava a extraordinária distinção de sua presença e lhe dava a fama(damáximaimportânciaparaatenderacasosdenervos)nãosódegrandeperíciaeprecisãoquase infalívelnodiagnóstico,masdeempatia;de tato;de compreensão da alma humana. Ele viu na hora em que entraram nasala (os Warren Smith, chamavam-se eles); teve certeza no instante emque viu o homem; era um caso de extrema gravidade. Era um caso decompleto colapso – completo colapso ísico e nervoso, com todos ossintomas em estágio avançado, certi icou-se em dois ou três minutos(anotando as respostas às perguntas, murmuradas discretamente, numafichacor-de-rosa).Quantotempofaziaquedr.Holmesoatendia?Seissemanas.Receitouumpoucodebrometo?Dissequenãoeranada?Ahsim(esses

clínicosgerais!,pensouSirWilliam.Passavametadedo tempodesfazendosuasasneiras.Algumaseramirreparáveis.)–Serviucomgrandedistinçãonaguerra?Opacienterepetiuapalavra“guerra”emtominterrogativo.Estavaatribuindoapalavrassigni icadossimbólicos.Umsintomasérioa

serregistradonaficha.–Aguerra?–perguntouopaciente.Aguerraeuropeia,aquelapequena

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arruaça de colegiais com bombinhas? Tinha servido com distinção?Realmentenãolembrava.Naguerraemsitinhafracassado.–Sim,eleserviucomamaisaltadistinção–garantiuReziaaomédico–;

foipromovido.– E eles têm a mais alta opinião a seu respeito no escritório? –

murmurou sir William, relanceando a carta de Mr. Brewer escrita emtermos muitos generosos. – De forma que não tem nada a preocupá-lo,nenhumproblemafinanceiro,nada?Ele cometera um crime pavoroso e tinha sido condenado àmorte pela

naturezahumana.–Eu...Eu–começou–cometiumcrime––Elenãofeznada,nadadeerrado–garantiuReziaaomédico.QueMr.

Smith esperasse um minutinho, disse Sir William, pois falaria com Mrs.Smith na sala ao lado. Seumarido estava gravemente enfermo, disse SirWilliam.Ameaçousematar?Oh,ameaçousim,exclamouela.Masnãopretendia,disse.Claroquenão.

Era apenas uma questão de repouso, disse Sir William; de repouso,repouso, repouso; um longo repouso na cama. Havia uma casa muitoagradável no campo onde seria tratado com toda a atenção. Longe dela?perguntou. Infelizmente sim; os seres mais queridos não são adequadospara nós quando estamos doentes. Mas ele não estava louco, estava? SirWilliamdissequenuncafalavaem“loucura”;chamavadefaltadesensodeproporção. Mas seu marido não gostava de médicos. Não aceitaria ir.Sucinto e afável, Sir William lhe explicou o estado do caso. Ele tinhaameaçadosematar.Nãohaviaalternativa.Eraumaquestãodelei.Ficariana cama numa bela casa no campo. As enfermeiras eram excelentes. SirWilliam iria visitá-lo uma vez por semana. Se Mrs. Warren Smith sesentisseplenamenteseguradequenãotinhamaisperguntasafazer–elenuncaapressavaseuspacientes–,voltariamaomarido.Elanãotinhamaisnadaaperguntar–nãoaSirWilliam.Assimvoltaramaomaisexaltadoserdahumanidade;aocriminosoque

enfrentava seus juízes; à vítima exposta nas alturas; ao fugitivo; aomarinheiro afogado; ao poeta da ode imortal; ao Senhor que passara davida àmorte; a SeptimusWarren Smith, que estava sentado na poltronasobaclaraboia itandouma fotogra iadeLadyBradshawnumvestidodecorte,murmurandomensagenssobreabeleza.–Tivemosnossapequenaconversa–disseSirWilliam.–Eledizquevocêestámuito,muitodoente–gemeuRezia.– Estávamos combinando que você deve ir para uma casa – disse Sir

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William.–UmadascasasdeHolmes?–escarneceuSeptimus.O sujeitodavauma impressãodesagradável. Poishavia emSirWilliam,

ilho de comerciante, um respeito natural pela educação e pelaindumentária, que o desleixo exasperava; e ainda, mais profundamente,havia em SirWilliam, que nunca tivera tempo para a leitura, um rancor,muitoentranhado, contrapessoascultivadasqueentravamemsua salaesugeriam que os médicos, cuja pro issão exerce uma tensão constantesobretodasasmaisaltasfaculdades,nãosãohomensinstruídos.– Uma de minhas casas, Mr. Warren Smith – disse ele –, onde o

ensinaremosarepousar.Ehaviasómaisumacoisa.Ele tinha plena certeza de que quandoMr.Warren Smith estava bem

eraoúltimohomemdomundoaquererassustaraesposa.Masele tinhafaladoemsematar.–Todosnóstemosnossosmomentosdedepressão–disseSirWilliam.Depois que você cai, repetiu Septimus consigo mesmo, a natureza

humana parte para cima de você.Holmes e Bradshawpartempara cimadevocê.Exploramodeserto.Precipitam-seguinchandonosermos.Aplicamotornoeocavalete.Anaturezahumanaédesapiedada.–Àsvezeslhevêmimpulsos?–perguntouSirWilliam,comolápisnuma

fichacor-de-rosa.Nãoeradesuaconta,disseSeptimus.–Ninguémvivesóparasimesmo–disseSirWilliam,relanceandoafoto

desuaesposaemvestidodegala.–Eháumacarreirabrilhanteàsuafrente–disseSirWilliam.Estavaali

a carta de Mr. Brewer na mesa. – Uma carreira excepcionalmentebrilhante.Mas e se confessasse? E se comunicasse? Então o deixariam em paz,

Holmes,Bradshaw?–Eu...Eu...–gaguejou.Masqualeraseucrime?Nãoconseguialembrar.–Sim?–SirWilliamoincentivou.(Masestavaficandotarde.)Amor,árvores,nãoexistecrime–qualerasuamensagem?Nãoconseguialembrar.–Eu...Eu...–Septimusgaguejou.– Tente pensar o mínimo possível sobre si mesmo – disse SirWilliam

afável.Realmentenãoestavaemcondições.

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Havia mais alguma coisa que quisessem lhe perguntar? Sir Williamtomariatodasasprovidências(murmurouaRezia)eavisariaaelaentreascincoeasseisdatarde.–Deixemtudoameucargo–disseeleeosdispensou.Nunca, nuncaRezia tinha sentido tanta angústia na vida! Tinha pedido

ajudae foraabandonada!Ele lhes falhara!SirWilliamBradshawnãoeraumserbondoso.Só o motor ligado daquele carro devia custar um dinheirão, disse

Septimusquandosaíramàrua.Elaseagarrouaseubraço.Tinhamsidoabandonados.Masoquemaiselaqueria?A seus pacientes ele dedicava três quartos de hora; e se nesta ciência

exigente que lida com o que, a inal, ignoramos totalmente – o sistemanervoso, o cérebro humano – ummédico perde seu senso de proporção,como médico ele falha. Saúde, precisamos ter; e saúde é proporção;portanto, quando um homem entra em sua sala e diz que é Cristo (umdelíriocomum)etemumamensagem,comoamaioriadelestem,eameaça,como costumam fazer, se matar, você invoca a proporção; recomendarepouso na cama; repouso na solidão; silêncio e repouso; repouso semamigos, sem livros, semmensagens; repouso por seismeses; até que umhomemqueentroupesandocinquentaquilossaiacomoitenta.A proporção, a divina proporção, deusa de Sir William, ele a adquiriu

percorrendo hospitais, pescando salmões, gerando um ilho único emHarleyStreetcomLadyBradshaw,que tambémpescavasalmõese tiravafotosquepraticamentenãosedistinguiamdotrabalhodeumpro issional.Adorando a proporção, SirWilliam não só prosperava pessoalmentemasfazia prosperar a Inglaterra, isolava seus lunáticos, impedia nascimentos,punia o desespero, impedia que os desajustados propagassem suasopiniõesenquantonãopartilhassem,elestambém,seusensodeproporção– o dele, se eram homens, o de Lady Bradshaw se eram mulheres (elabordava,tricotava,passavaquatronoitesdasemanaemcasacomo ilho),deformaquenãosóoscolegasorespeitavameossubordinadosotemiam,como também os amigos e parentes de seus pacientes sentiam por ele amais fervorosagratidãopor insistirqueessesproféticosCristoseCristas,queprofetizavamo imdomundoouavindadeDeus, tomassem leitenacama, como ordenava Sir William; Sir William com seus trinta anos deexperiência nesses tipos de casos e seu instinto infalível, isso é loucura,issoésenso;seusensodeproporção.Mas a Proporção tem uma irmã, menos sorridente, mais temível, uma

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deusaagoramesmoempenhada–nocalorenasareiasdaÍndia,nalamaenospântanosdaÁfrica,nasperiferiasdeLondres,emqualquer lugar,emsuma, onde o clima ou o demônio tenta os homens para perderem averdadeiraféqueéadelaprópria–agoramesmoempenhadaemdestruiros santuários, esmagar os ídolos e erguer no lugar deles seu própriosemblante severo. Conversão é seu nome e ela se banqueteia com avontade dos fracos, gostando de impressionar, de impor, adorando seuspróprios traços estampados na face do populacho. EmHyde Park Cornerpõe-se a pregar em cima de um tonel; amortalha-se de branco e comopenitente disfarçada de amor fraterno percorre fábricas e parlamentos;oferece auxílio,masdeseja poder; comgestobrutal afasta do caminhoosdissidentesoudescontentes;distribuisuabênçãoàquelesque,erguendoaface, de seus olhos recolhem submissos a luz para o próprio olhar. Estadama também (Rezia Warren Smith adivinhou) tinha sua morada nocoração de sir William, embora dissimulada, como costuma fazer, sobalgumdisfarceaceitável; algumnome respeitável; amor,dever, altruísmo.Como ele trabalhava – como mourejava para angariar fundos, divulgarreformas, fundar instituições!Masaconversão,deusadi ícildecontentar,preferesangueatijolos,emuitohabilmentesebanqueteiacomavontadehumana.Porexemplo,LadyBradshaw.Quinzeanosatrástinhasucumbido.Nãoeranadaquesepudesseapontar;não tinhaocorridonenhumacena,nenhumaruptura;apenasosoçobrolento,oafundamentodesuavontadena dele. Doce era seu sorriso, pronta sua submissão; o jantar emHarleyStreet, com oito ou nove pratos, para dez ou quinze convidados,pro issionais liberais, era calmo e cortês. Somente quando a noiteavançava, um levíssimo embotamento, ou desconforto talvez, umacontraçãonervosa,umdesazo,umtropeço,umembaraçoindicavam,oqueera realmente penoso de se acreditar – que a pobre dama mentia.Antigamente,muito tempo atrás, ela apanhava salmões à vontade: agora,rápida em atender ao anseio que tão untuosamente avivava o olhar domarido pelo domínio, pelo poder, ela se paralisava, se reprimia, serestringia, sediminuía, se retraía,mal sedeixava ver: de formaque, semsaberprecisamenteoque tornavaanoitedesagradáveleprovocavaessapressãonoaltodacabeça(quepodiamuitobemseratribuídaàconversapro issional ou à fadiga de um grande médico cuja vida, dizia LadyBradshaw,“nãoédeleesimdeseuspacientes”),eramesmodesagradável:de forma que os convidados, quando o relógio batia as dez horas,inspiravam o ar da Harley Street até com enlevo; alívio este, porém, queeranegadoaseuspacientes.

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Lánasalacinza, comosquadrosnaparedeeosmóveisvaliosos, sobaclaraboia de vidro fosco, eles aprendiam o grau de suas transgressões:encolhidos na poltrona, viam-no realizar, para o bem deles, um curiosoexercício comos braços, que estendia e num ímpeto incava de novo nosquadris, para provar (se o paciente fosse obstinado) que SirWilliam eradono de suas ações, coisa que o paciente não era. Alguns fracos cediam;soluçavam, submetiam-se; outros, inspirados sabem os céus por qualloucura destemperada, chamavam-lhe na cara de sórdido impostor;questionavam, ainda mais impiamente, a própria vida. Viver para quê?,indagavam. Sir William replicava que a vida era boa. Sem dúvida LadyBradshaw com plumas de avestruz pendia acima da lareira, e quanto asuasrendaseramdozemilaoano.Masanós,protestavameles,avidanãoestendeu tanta liberalidade. Ele concordava. Faltava-lhes o senso deproporção.EseDeusa inalnãoexistir?Eleencolhiaosombros.Emsuma,isso de viver ou não viver não é assunto nosso? Mas nisso eles seenganavam. SirWilliam tinhaumamigo emSurrey e lá ensinavamoqueSir William admitia francamente ser uma di ícil arte – um senso deproporção.Alémdissohaviaaafeiçãofamiliar;ahonra;acoragem;eumacarreira brilhante. Todas elas encontravam em Sir William um bravodefensor. Se falhassem, ele tinha em seu apoio a polícia e o bem dasociedade, que, observava com muita calma, providenciariam, lá emSurrey, que esses impulsos antissociais, alimentados principalmente pelafaltadebomsangue, fossemmantidossobcontrole.Eentãoesgueirava-sede seu esconderijo e subia ao trono aquela deusa cujo desejo ardente évencer a oposição, gravar indelevelmente nos santuários dos outros aimagemdesimesma.Nus, indefesos,osexaustos,ossolitáriosrecebiamamarcadavontadedeSirWilliam.Elearremetia;devorava.Encarceravaaspessoas.EraessasomadedecisãoehumanidadequetornavaSirWilliamtãocaroaosparentesdesuasvítimas.Mas ReziaWarren Smith, descendo aHarley Street, exclamou que não

gostavadaquelehomem.Cortando e fatiando, dividindo e subdividindo, os relógios da Harley

Streetmordiscavamodiadejunho,aconselhavamasubmissão,defendiamaautoridadeeapontavamemcoroasvantagenssupremasdeumsensodeproporção,atéqueapilhadotempotinhadiminuídotantoqueumrelógiocomercial,penduradonuma lojanaOxfordStreet,anuncioucomalegriaecordialidade,comosefosseumprazerparaossenhoresRigbyeLowndesdaremainformaçãográtis,queeraumaemeia.Olhandoparao alto, via-seque cada letradonomedeles representava

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uma hora; subconscientemente, a pessoa se sentia grata a Rigby eLowndes por darem uma hora rati icada por Greenwich; e essa gratidão(assim ruminava Hugh Whitbread, demorando-se na frente da vitrine)naturalmente depois adotava a forma de comprar meias ou sapatos naRigby e Lowndes. Assim ele ruminava. Era seu hábito. Não ia a fundo.Roçava super ícies; as línguasmortas, as vivas, a vida emConstantinopla,Paris, Roma; montar, caçar, jogar tênis eram coisas do passado. Osmaliciosos diziam que agora ele montava guarda no Palácio deBuckingham,usandocalçõesemeiasdeseda–aquê,ninguémsabia.Mascumpria com extrema e iciência. Boiara na nata da sociedade inglesadurante cinquenta e cinco anos. Conhecera primeiros-ministros. Seusafetos eram considerados profundos. E se era verdade que não tinhaparticipado de nenhum dos grandesmovimentos da época nem ocuparacargos importantes, cabia-lhe o crédito de uma ou duas reformasmodestas;amelhoriadosabrigospúblicoseraumadelas;outra,aproteçãodas corujas emNorfolk; as criadas tinhammotivos para lhe ser gratas; eseunomeno imdascartasaoTimes,pedindofundos,apelandoaopúblicopara proteger, preservar, limpar a sujeira, diminuir o fumo e eliminar aimoralidadedosparques,impunharespeito.Tinha também uma igura imponente, parando por um instante

(enquanto o som da meia hora se extinguia) para examinar com olharcrítico, conhecedor, as meias e sapatos; impecável, sólido, como secontemplasse o mundo de certa altura e se vestisse de acordo; masentendia as obrigações que a posição, a riqueza, a saúde acarretam e,mesmo quando não havia a menor necessidade, observavameticulosamente pequenas cortesias, formalidades antiquadas, queconferiam qualidade a suas maneiras, algo a ser imitado, algo pelo qualseria lembrado,poisnuncairiaalmoçar,porexemplo,comLadyBruton,aquem conhecia nesses vinte anos, sem levar um ramalhete de cravos namãoesemperguntaraMissBrush,secretáriadeLadyBruton,peloirmãonaÁfricadoSul,comoque,poralgumarazão,MissBrush,emboracarentede todos os atributos do encanto feminino, se ressentia tanto que dizia“Obrigada,estásedandomuitobemnaÁfricadoSul”,enquantofaziameiadúziadeanosqueeleestavasedandomuitomalemPortsmouth.Lady Bruton, pessoalmente, preferia Richard Dalloway, que chegou no

mesmoinstante.Naverdadetinhamseencontradonaporta.Lady Bruton preferia Richard Dalloway, claro. Era feito de material

muito mais ino. Mas não deixaria que depreciassem o pobre e queridoHugh. Nunca poderia esquecer a gentileza dele – de fato ele tinha sido

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admiravelmentegentil–elanãolembravabememqueocasião.Mastinhasido – admiravelmente gentil. De qualquer forma, a diferença entre umhomem e outro não é grande coisa. Ela nunca tinha visto sentido emdissecaraspessoas,comofaziaClarissaDalloway–dissecá-lase juntá-lasdenovo;não,emtodocaso,aossessentaedoisanosdeidade.Elapegouoscravos de Hugh com seu sorriso austero e anguloso. Não vinha maisninguém, disse. Chamara-os com uma falsa desculpa, para que aajudassemasairdeumadificuldade––Masantesvamoscomer–disseela.E entãopelasportasdemolas começouuma requintadamovimentação

silenciosanãonecessariamentedesimplescriadasdetoucaeavental,masde donzelas ataviadas de branco, iniciadas num rito de mistério ougrandioso ilusionismopraticadopelasdamasdesociedadeemMayfairdauma e trinta às duas, quando, a um aceno demão, o trânsito cessa e emseulugarsurgeessaprofundailusão,emprimeirolugarsobreacomida–quenãosepagueporela;eentãoqueamesasearrumeespontaneamentecom cristais e pratarias, toalhinhas, molheiras com calda de frutasvermelhas;películasdecremecastanhoservemdemáscaraarodovalhos;emensopadosnadamfrangosempedaços;corado,indomado,ardeofogo;e com o vinho e o café (sem que se pague por eles) elevam-se alegresvisõesdiantedeolhospensativos;olhossuavementemeditativos;olhosaosquais a vida se mostra melodiosa, misteriosa; olhos agora estimulados anotarcordialmenteabelezadoscravosvermelhosqueLadyBruton(cujosmovimentos eram sempre angulosos) havia posto ao ladode seuprato, atalpontoqueHughWhitbread,sentindo-seempazcomtodoouniversoeaomesmotempocompletamentesegurodesuaposição,disse,pousandoogarfo:–Nãoficariamencantadoresemsuasrendas?Miss Brush se ressentiu profundamente com essa familiaridade.

Considerava-o um sujeito mal-educado. Ela divertia Lady Bruton, queachavagraça.LadyBrutonergueuoscravoseseguroucomcertarigidez,numaatitude

muito parecida com a do general segurando o rolo de pergaminho noquadro a suas costas; icou parada, enlevada. O que ela era agora dogeneral, bisneta? tataraneta?, perguntou-se Richard Dalloway. SirRoderick, Sir Miles, Sir Talbot – era isso. Era admirável como naquelafamíliaasemelhançasetransmitiaàsmulheres.Elamesmapodiatersidoumageneraladosdragões.ERichardserviriasobseucomando,demuitobom grado; sentia o maior respeito por ela; alimentava essas noções

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românticassobredamasidosasdealtaposição,ebemquegostaria,desuamaneira bem-humorada, de trazer alguns conhecidos seus, uns jovensfanáticos, para almoçar com ela; como se uma igura daquelas pudessesurgirentreafáveisentusiastasdeumbomchá!Eleconheciaaterradela.Conhecia sua gente. Havia uma parreira, ainda em produção, sob a qualLovelace ou Herrick – ela mesma nunca leu uma única palavra de umpoema, mas assim diziam – havia se sentado. Melhor esperar para lhescolocar a questão que a incomodava (tratava-se de fazer um apelo aopúblico; se sim, em que termos e assim por diante), melhor esperar atéterminaremo café, pensouLadyBruton; e então repôs os cravos ao ladodoprato.–EClarissa,comovai?–perguntouabruptamente.Clarissa sempredizia queLadyBrutonnão gostavadela.De fato, Lady

Bruton tinha a fama de se interessar mais pela política do que pelaspessoas; de falar como um homem; de ter mexido alguns pauzinhos emalguma intriga notória dos anos 1880, que agora começava a sermencionada emmemórias. Certamente havia uma recâmara em sua salade visitas, e uma mesa naquela recâmara, e uma fotogra ia em cimadaquela mesa do general Sir Talbot Moore, agora falecido, que tinharedigidoali(umanoitenosanos80)napresençadeLadyBruton,comseuconhecimento, talvez a seu conselho, um telegrama ordenando que astropasbritânicasavançassememcertaocasiãohistórica.(Elaconservavaacaneta e contava o episódio.) Assim, quando perguntava sem muitacerimônia “E Clarissa, como vai?”, os maridos tinham di iculdade empersuadir as esposas, e de fato, por mais devotados que fossem, elesmesmos secretamente icavam em dúvida sobre o interesse dela emmulheresquevoltaemeiasepunhamnocaminhodosmaridos,impediam-nosdeaceitarcargosnoestrangeiroetinhamdeser levadasao litoralnomeio do ano parlamentar para se recuperar de alguma gripe. Mesmoassimsuapergunta, “EClarissa, comovai?”, eravista infalivelmentepelasmulheres como um sinal de alguém que lhes quer bem, de umacompanheira quase silenciosa, cujas manifestações (meia dúzia talvezdurante toda uma vida) signi icavam o reconhecimento de algumacamaradagem feminina que ia além dos almoçosmasculinos e unia LadyBruton e Mrs. Dalloway, que raramente se encontravam e, quando seencontravam, era com indiferença e mesmo hostilidade, num vínculosingular.–EncontreiClarissanoparquehojedemanhã–disseHughWhitbread,

mergulhando no ensopado, ansioso em se render este pequeno tributo,

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pois lhebastavaviraLondrese logoencontrava todomundo;masvoraz,umdoshomensmaisvorazesquetinhavistonavida,pensouMillyBrush,que observava os homens com retidão in lexível e era capaz de umadevoção perpétua, em especial a seu próprio sexo, sendo nodosa, seca,angulosaeinteiramentedespidadeencantosfemininos.– Sabemquemestá na cidade? – disse LadyBruton, pensandonela de

repente.–Nossovelhoamigo,PeterWalsh.Todos sorriram. Peter Walsh! E Mr. Dalloway icou genuinamente

contente,pensouMillyBrush;eMr.Whitbreadsópensavaemseufrango.Peter Walsh! Todos os três, Lady Bruton, Hugh Whitbread e Richard

Dalloway, lembraram a mesma coisa – como Peter esteve perdidamenteapaixonado;forarejeitado;tinhaidoparaaÍndia;nãoseacertou;fezumavariedadedecoisas;eRichardDallowaytinhatambémumenormeapreçopelobomevelhocamarada.MillyBrushviuaquilo;viuumaprofundidadeno castanho de seus olhos; viu-o hesitar; considerar; o que a interessou,como sempre lhe interessava Mr. Dalloway, pois o que ele estavapensando,refletiuela,sobrePeterWalsh?Que Peter Walsh tinha sido apaixonado por Clarissa; que voltaria

diretamentepara casadepois do almoço e iria ver Clarissa; que lhe diriacomtodasasletrasqueaamava.Sim,diria.MillyBrushantigamentequaseteriaseapaixonadoporessessilêncios;e

Mr. Dalloway era sempre tão con iável; e um grande cavalheiro também.Agora,aosquarentaanos,bastavaLadyBrutonmenearouviraracabeçaum pouco bruscamente e Milly Brush entendia o sinal, por mais queestivessemergulhada nessas re lexões de um espírito desinteressado, deumaalma incorruptaqueavidanãopoderia enganar,porqueavidanãolheofereceraqualquer adornodomais ín imovalor; cacho, sorriso, lábio,face, nariz, nada; absolutamente nada; bastava Lady Bruton menear acabeçaePerkinsrecebiainstruçõesdetrazerlogoocafé.–Sim;PeterWalshvoltou–disseLadyBruton.Eravagamentelisonjeiro

para todos eles. Voltara, derrotado, vencido, para suasmargens seguras.Mas ajudá-lo, re letiram, era impossível; havia alguma falha em seucaráter. HughWhitbread disse que certamente era possível recomendarseunomeaalguém.Franziua testacomargrave, importante,à ideiadascartasqueescreveriaaoschefesdegabinetedogovernosobre“meuvelhoamigo,PeterWalsh”,eassimpordiante.Masnão levariaanada–anadapermanente,devidoaocaráterdele.– Problema com alguma mulher – disse Lady Bruton. Todos tinham

adivinhadoqueeraissoqueestavanofundo.

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– Mas – disse Lady Bruton, ansiosa em abandonar o assunto –ouviremostodaahistóriadopróprioPeter.(Ocaféestavademorandomuitoparavir.)– O endereço? – murmurou Hugh Whitbread; e logo surgiu um

encrespamentonaondagrisdeobsequiosidadequebanhavaLadyBrutondiaapósdia,recolhendo,interceptando,envolvendo-anumtecido inoqueamortecia golpes, atenuava interrupções e estendia pela casa em BrookStreet uma ina tela onde as coisas se alojavam e eram escolhidas comprecisão, comrapidezpelogrisalhoPerkins, queestava comLadyBrutontodos esses trinta anos e agora anotava o endereço; estendeu-o a Mr.Whitbread, que tirou sua agenda de bolso, ergueu as sobrancelhas e,en iando-o entre documentos damais alta importância, falou que diria aEvelynqueoconvidasseparaalmoçar.(ElesestavamesperandoMr.Whitbreadterminarparatrazeremocafé.)Hugh eramuito lento, pensou Lady Bruton. Estava engordando, notou.

Richard sempre semantinha emplena forma. Estava icando impaciente;todo o seu ser estava se encaminhando resolutamente, irresistivelmente,varrendo com decisão toda essa ninharia desnecessária (Peter Walsh eseuscasos),paraaqueletemaqueconcentravasuaatenção,enãoapenassuaatenção,masaquela ibraqueeraopróprioesteiodesuaalma,aquelaparte essencial de si sem a qual Millicent Bruton não seria MillicentBruton; aquele projeto de emigração e assentamento para jovens deambosossexosnascidosdefamíliasrespeitáveiscomboasperspectivasdeprosperidade no Canadá. Estava exagerando. Talvez tivesse perdido seusensodeproporção.Paraosoutros,aemigraçãonãoeraoremédioóbvio,a concepção sublime. Não era para eles (não para Hugh ou Richard, oumesmoparaadevotadaMissBrush)o liberadordoegoísmocontido,queuma mulher marcial forte, bem nutrida, de boa origem, de impulsosdiretos, sentimentos francos e pouco poder de introspecção (simples edireta–porqueaspessoasnãopodiamser todaselassimplesediretas?,perguntavaela)sentecrescerdentrodesi,passadaajuventude,eprecisaprojetar sobre algum objeto – pode ser a Emigração, pode ser aEmancipação;mas,sejaqualfor,esseobjetoemtornodoqualsederramaa cada dia a essência de sua alma se torna inevitavelmente prismático,cintilante,parecendoemparteumespelho,emparteumapedrapreciosa;oraciosamenteocultadocasoosoutroszombemdele;oraorgulhosamenteexibido.Emsuma,aEmigraçãosetornaraemlargamedidaLadyBruton.Mas ela precisava escrever. E uma única carta ao Times, costumava

dizer a Miss Brush, custava-lhe mais do que organizar uma expedição à

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África do Sul (o que ela tinha feito na guerra).Depois de umamanhãdebatalha, começando, rasgando, recomeçando, reconheceu a inutilidade desuacondiçãofemininacomojamaissentiraemqualqueroutraocasiãoesevoltou grata à lembrança de Hugh Whitbread, que possuía – ninguémduvidariadisso–aartedeescrevercartasaoTimes.Um ser de constituição tão diferente da sua, com tal domínio da

linguagem;capazdepôrascoisasdojeitoqueoseditoresgostavam;tinhapaixões que não podiam ser quali icadas de simples voracidade. Muitasvezes Lady Bruton suspendia seu juízo sobre os homens por respeito àmisteriosaconsonânciaqueeles,masnenhumamulher,mantinhamcomasleisdouniverso;sabiamcomopôrascoisas;sabiamoquedizer;deformaque,seRichardaaconselhasseeHughescrevesseporela,tinhacertezadeque o resultado seria bom. Assim deixou que Hugh comesse seu su lê;perguntou pela pobre Evelyn; esperou até que se pusessem a fumar eentãodisse.–Milly,vocêtrariaospapéis?EMissBrush foi, voltou; pôspapéisnamesa; eHugh tirou sua caneta-

tinteiro; sua caneta-tinteiro prateada, que estava em serviço fazia vinteanos,disseele,desrosqueandoa tampa.Aindaestavaemperfeitaordem;mostrara-a aos fabricantes; não havia razão, disseram eles, para quealgum dia se estragasse; o que de certa forma era mérito de Hugh, eméritodos sentimentosque sua canetaexpressava (assimsentiuRichardDalloway) quando Hugh começou a traçar cuidadosamente letrasmaiúsculas loreadas na margem, e assim maravilhosamente deu àalgaravia de Lady Bruton o sentido, a gramática que o editor do Times,sentiu Lady Bruton, observando a maravilhosa transformação, teria derespeitar.Hugheralento.Hugherapersistente.Richarddiziaquesedeviaarriscar. Hugh propôs modi icações por respeito aos sentimentos daspessoas, os quais, disse um tanto asperamente quando Richard riu,“deviam ser levados em conta”, e leu “como, por conseguinte, somos daopiniãodequeostemposestãomaduros...ajuventudeexcedentedenossapopulaçãoemcrescimentoconstante...oquedevemosaosmortos...”,oqueRichardachavaqueerasóencheçãodelinguiçaeconversa iada,masnãofazianenhummal, claro,eHughcontinuouaarrolaremordemalfabéticasentimentos da mais alta nobreza, espanando a cinza do charuto de seucolete e de vez em quando recapitulando o avanço que tinham feito atéque, inalmente,leuorascunhodeumacartaqueLadyBrutonsentiucomtoda certeza que era uma obra-prima. O que ela queria dizer podia soardaquelamaneira?

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Hughnãopodiagarantirqueoeditorfossepublicar;masiriaencontraralguémnahoradoalmoço.ComissoLadyBruton,queraramentefaziaalgumacoisagraciosa,enfiou

todos os cravos deHugh dentro do decote do vestido e, arrojando-lhe asmãos,exclamou“Meuprimeiro-ministro!”.Nãosabiaoque teria feitosemos dois. Levantaram-se. E Richard Dalloway foi como de hábito dar umaolhada no retrato do general, pois pretendia, desde que tivesse ummomentodefolga,escreverumahistóriadafamíliadeLadyBruton.EMillicentBruton tinhamuitoorgulhoda família.Maspodiamesperar,

podiam esperar, disse ela, olhando o quadro; querendo dizer que suafamília, de militares, governadores, almirantes, tinha sido de homens deação,quehaviamcumpridoseudever;eoprimeirodeverdeRicharderacomseupaís,maseraumbelorosto,disseela;e todosospapéisestavamprontosparaRichardemAldmixtonnomomentoemquechegasseahora;ogovernotrabalhista,queriadizer.–Ah,asnotíciasdaÍndia!–exclamouela.E então, enquanto estavamno saguãopegando luvas amarelasdo vaso

na mesa de malaquita e Hugh oferecia a Miss Brush com uma cortesiatotalmentedesnecessáriaalgumingressosobrandoououtragentileza,queela detestava domais fundo do coração e corava com um rubor intenso,RichardsevirouparaLadyBruton,comochapéunamão,edisse:– Teremos sua presença em nossa festa hoje à noite? – ao que Lady

Bruton reassumiu a imponência que a redação da carta havia abalado.Talvez sim; talvez não. Clarissa tinha uma energia maravilhosa. Festasaterrorizavam Lady Bruton.Mas estava icando velha. Foi o que sugeriu,depéàportadecasa;bonita;muitoereta;enquantoseuchowseestendiaatrás dela e Miss Brush desaparecia no fundo com as mãos cheias depapéis.E Lady Bruton subiu num passo solene, majestoso, até seu quarto,

deitou,umbraçoestendido,nosofá.Suspirava,roncava,nãoqueestivessedormindo,apenassonolentaepesada,sonolentaepesada,comoumcampode trevos ao sol neste dia quente de junho, com as abelhas voando emtorno e as borboletas amarelas. Ela sempre voltava àqueles campos emDevonshire,ondetinhasaltadoosriachosmontadaemsuaéguaPattycomseusirmãosMortimereTom.Ehaviaoscães,haviaosratos;haviaopaieamãenogramadoàsombradasárvores,comascoisasdocháaoarlivre,eos canteiros de dálias, as malvas-rosa, o capim-dos-pampas; e eles,diabinhos, sempre metidos em alguma traquinagem! Esgueirando-se devoltaparaosarbustos,paranãoservistos, todosemporcalhadosdevidoa

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algumatravessura.Oqueavelhababáfalavadosvestidosdela!Oh céus, lembrou – era quarta-feira em Brook Street. Aqueles bons

camaradas, Richard Dalloway, HughWhitbread, iam percorrer nesse diaencaloradoas ruascujo rugido lhesubiaalideitadanosofá.Tinhapoder,posição, fortuna.Tinhavividona linhade frentede seu tempo.Tinha tidobons amigos; tinha conhecido os homens mais capazes de sua época.Londresmurmurantea luíaatéela,esuamão,apoiadanoencostodosofá,ondulavaalgumbastãoimagináriocomoseusavóspodiamterempunhado,e empunhando-o ela parecia, sonolenta e pesada, estar comandandobatalhões em marcha para o Canadá, e aqueles bons camaradaspercorrendo Londres, aquele território deles, aquele pequeno tapete,Mayfair.Eseafastavamcadavezmais,estandoligadosaelaporum io ino(visto

que tinham almoçado com ela) que se estenderia cada vezmais, se fariacadavezmais inoenquantopercorriamLondres; comosenossosamigosestivessemligadosanossocorpo,depoisdealmoçarmoscomeles,porumio inoque (enquantodormitavaali) se tornavanebulosocomo somdossinos,batendoashorasouchamandoaoserviço,comoo iodeumaaranhaque ica embaçadode gotas de chuva e, sobrecarregado, se verga. Assimeladormiu.ERichardDallowayeHughWhitbreadhesitaramnaesquinadaConduit

StreetnoexatoinstanteemqueMillicentBruton,deitadanosofá,deixouoio se romper; roncava. Ventos contrários se batiamna esquina.Olharamumavitrine;nãoqueriamcomprarnemconversar,massedespedir,sóquecomventoscontráriossebatendonaesquina,comoqueseafundandonasmarés do corpo, duas forças se encontrando num redemoinho, manhã etarde, elespararam.Umplacardenotícias levantouvoo, vistoso, de iníciocomoumapipa,entãoparou,despencou, lutuou;eovéudeumadamaseergueu. Toldos amarelos estremeciam. A rapidez do trânsito matinaldiminuiu, e carroças solitárias chocalhavam despreocupadas pelas ruassemivazias. Em Norfolk, em que Richard Dalloway estava pensandovagamente, um vento morno e suave soprava as pétalas; misturava aságuas;eriçavaoscapins loridos.Camponesesfazendofeno,quetinhamseinstalado sob as sebes para descansar do trabalhomatinal, descerravamcortinas de folhas verdes; afastavam globos trêmulos de cicutárias paraverocéu;oazul,ofirme,ofulgurantecéudeverão.Cientedequeolhavaumacanecajaimitadepratacomduasalças,eque

HughWhitbread admirava condescendente, comaresde conhecedor, umcolarespanholcujopreçopensavaemperguntarcasoEvelyngostassedele

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–mesmoassimRichardestavaentorpecido;nãoconseguiapensarnemsemexer.Avidatinhaarremessadoessesdespojosàpraia;asvitrinescheiasde pedras de imitação, e a pessoa icava ali parada com a letargia dosvelhos,duracomarigidezdosvelhos,olhando.EvelynWhitbreadiagostardeteressecolarespanhol–iasim.Deuumbocejo.Hughestavaentrandonaloja.–Temtodarazão!–disseRichard,acompanhando.Sabemoscéusqueelenãoqueria ircomprarcolarescomHugh.Maso

corpo tem suasmarés.Manhã e tarde se encontram. Impelido comoumafrágilchalupaentrefundasefundascorrentezas,obisavôdeLadyBruton,comsuamemóriaesuascampanhasnaAméricadoNorte,foiencobertoesoçobrou.EMillicentBruton também.Afundou.Richardnão se importavaminimamente comoque aconteceria comaEmigração; comaquela carta,seoeditorpublicariaounão.OcolarpendiaentreosdedosadmiráveisdeHugh. Que dê a umamoça, se precisa comprar joias – a qualquermoça,qualquer moça na rua. Pois a futilidade desta vida atingiu Richard comviolência – comprar colares para Evelyn. Se ele tivesse um ilho, diria,Trabalhe,trabalhe.MastinhasuaElizabeth;adoravasuaElizabeth.– Gostaria de ver Mr. Dubonnet – disse Hugh com a concisão de seu

traquejo mundano. Parecia que esse Dubonnet tinha as medidas dopescoçodeMrs.Whitbread,ou,aindamaisestranho,conheciaasopiniõesdela sobre joias espanholas e a quantidade de suas posses nessa linha(coisaqueHughnãoconseguia lembrar).RichardDallowayachavaaquilotudo tremendamente esquisito. Pois nunca dava presentes a Clarissa,exceto um bracelete dois ou três anos atrás, que não tinha sido umsucesso.Elanuncaousou.Doía-lhelembrarqueelanuncaousou.Eassimcomoo iodeumaaranhasolitáriadepoisdevaguearporaquieporaliseprende à ponta de uma folha, o espírito de Richard, recuperando-se daletargia, deteve-se agora na esposa, Clarissa, a quem PeterWalsh amaratão apaixonadamente; e Richard tinha tido uma súbita visão durante oalmoço;dela;desiedeClarissa;davidajuntos;epuxouparasiabandejadejoiasantigase,pegandoantesumbroche,depoisumanel,“Quantocustaeste?”,perguntou,masnãocon iavanoprópriogosto.Queriaabriraportadasalaeentrarestendendoalgumacoisa;umpresenteparaClarissa.Masoquê?Hughporémestavacomacordatoda.Indizivelmentepomposo.Talseria,depoisdecompraraquidurantetrintaecincoanos,seratendidoporaltoporummerorapazolaquenãoentendianadadoo ício.PoisDubonnet,pelo visto, estava ausente, e Hugh não ia comprar nada enquanto Mr.Dubonnet não se decidisse a estar presente; ao que o jovem corou e se

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curvou numa leve curvatura correta. Estava tudo perfeitamente correto.Mas Richard não conseguiria dizer aquilo nem que fosse para salvar aprópriavida!Porqueessaspessoasaguentavamaquelainsolênciadanada,ele não conseguia entender. Hugh estava se tornando um imbecilinsuportável.RichardDallowaynãoconseguiaaguentarmaisdemeiahoraemsuacompanhia.E,agitandoochapéu-cocoemdespedida,Richardvirouna esquina da Conduit Street ansioso, sim, muito ansioso, em percorreraquele iodearanhadaligaçãoentresieClarissa;iriadiretamenteatéela,emWestminster.Masqueriaentrarcomalgumacoisanamão.Flores?Sim,flores,poisnão

con iava em seu gosto para joias; qualquer quantidade de lores, rosas,orquídeas,paracomemoraroqueera,a inaldecontas,umacontecimento;esse sentimento em relação a ela quando falaram de Peter Walsh aoalmoço;enuncafalavamdisso;emanosnuncatinhamfaladodisso;oque,pensou ele, agarrando suas rosas vermelhas e brancas (um vastoramalheteempapelde seda), éomaiorerrodomundo.Chegaumahoraem que não se pode falar; sente-se timidez demais em falar, pensou,embolsando o troco de um ou dois xelins, saindo com seu enormeramalhete junto ao corpo rumo a Westminster, para falar com todas asletras (ela podia pensar o que quisesse), estendendo suas lores, “Eu teamo”. Por que não? Realmente era um milagre pensar na guerra e nosmilharesdepobressujeitos,comtodaavidapelafrente,enterradosjuntos,jámeioesquecidos;eraummilagre.AquiestavaelepercorrendoLondrespara dizer a Clarissa com todas as letras que a amava. Coisa que nuncaninguém diz realmente, pensou. Em parte por preguiça, em parte portimidez. E Clarissa – era di ícil pensar nela; exceto em impulsos, comonoalmoço, quando ele a viu com toda a clareza; a vida toda deles. Parounocruzamento; e repetiu – sendo simples por natureza, e incorrupto, poistinha marchado e dado tiros; sendo persistente e obstinado, tendodefendido os oprimidos e seguido seus instintos na Câmara dos Comuns;tendo preservado a simplicidade, mas ao mesmo tempo se tornandobastante calado, bastante formal – repetia que era um milagre ter secasadocomClarissa;ummilagre–suavidatinhasidoummilagre,pensou;hesitandoematravessar.Masdefatoseusangueferviaaovercriaturinhasde cinco ou seis anos atravessando sozinhas a Piccadilly. O guarda deviaterparado imediatamenteo trânsito.Elenão tinha ilusões sobre apolíciadeLondres.Naverdade,estavareunindoprovasdeseusabusos;eaquelesverdureiros,nãodeviamdeixarqueparassemseus carrinhosnas ruas; eas prostitutas, bomDeus, a culpa não era delas, nem dos jovens,mas de

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nosso sistema social abominável e assim por diante; tudo isso eleconsiderava, podia-se vê-lo a considerar, grisalho, obstinado, limpo,asseado,enquantoatravessavaoparqueparadizeràesposaqueaamava.Poiseleiriadizercomtodasasletras,quandoentrassenasala.Porqueé

uma pena enorme nunca dizer o que se sente, pensou atravessando oGreenParkeobservandocomprazerquefamíliasinteiras,famíliaspobres,se estendiam à sombra das árvores; bebês agitando as perninhas,mamando; sacos de papel espalhados pelo chão, que poderiam serfacilmente recolhidos (se alguém reclamasse) por algum daquelessenhores gordos de uniforme; pois ele era da opinião de que todos osparques e todas as praças nos meses de verão deviam ser abertos àscrianças (a grama do parque corava e desbotava, iluminando as mãespobres deWestminster e seus bebês de gatinhas, como se por baixo semovesse uma lâmpada amarela). Mas o que se poderia fazer pelasandarilhas como aquela pobre criatura, deitada apoiando-se no cotovelo(comosetivessese jogadonaterra, livredetodosos laços,paraobservarcomcuriosidade,paraespecularcomousadia,paraconsiderarasrazõeseosporquês,atrevida,delínguasolta,humorada),elenãosabia.Portandoaslorescomoumaarma,RichardDallowayseaproximoudela;concentradopassouporela;mesmoassimhouvetempoparaumafaíscaentreeles–elariu à vista dele, ele sorriu de bom humor, considerando o problema damulher andarilha; não que tenham trocado alguma palavra. Mas elecontariaaClarissaqueaamava,comtodasas letras.Antigamentesentiraciúmes de PeterWalsh; ciúmes dele e de Clarissa.Mas ela tinha lhe ditovárias vezes que izera bem em não se casar com Peter Walsh; o que,conhecendoClarissa,eraumaverdadeevidente;elaqueriaapoio.Nãoquefossefraca;masqueriaapoio.Quanto ao Palácio deBuckingham (comouma velha prima-dona diante

da plateia toda de branco) não se pode negar uma certa dignidade,considerouele,nemdesprezaralgoque,afinal,representaparamilhõesdepessoas (uma pequenamultidão esperava no portão para ver o rei sair)um símbolo, por absurdo que seja; uma criança com uma caixinha deblocos teria feitomelhor,pensouele;olhandoomemorialàrainhaVitória(que ele lembrava com seus óculos com aros de tartaruga passando porKensington),seupedestalbranco,suamaternidadetransbordante;maselegostava de ser governado pela descendente de Horsa; gostava dacontinuidade; e daquele senso de transmitir as tradições do passado. Foiumagrandeépocaparaseviver.Defato,suavidaeramesmoummilagre;quenãoseenganassea respeito;aquiestava,novigordavida, indopara

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suacasaemWestminstercontaraClarissaqueaamava.Felicidadeéisso,pensou.É isso, disse, ao entrar noDean’s Yard.OBigBen estava começando a

bater, primeiro o aviso, musical; então a hora, irrevogável. Almoços aconviteestragamatardeinteira,pensou,aproximando-sedaporta.O som do Big Ben inundou a sala de visitas de Clarissa, onde estava

sentada, sempre tão aborrecida, à sua escrivaninha; preocupada,aborrecida. Era plenamente verdade que não tinha convidado EllieHendersonparaafesta;mastinhasidodepropósito.AgoraMrs.Marshamescrevia: “Ela tinha dito a Ellie Henderson que pediria a Clarissa – Elisequeriatantovir”.MasporqueteriadeconvidartodasasmulheressemgraçadeLondres

para suas festas? Por queMrs.Marsham tinha de interferir? E lá estavaElizabeth fechada esse tempo todo com Doris Kilman. Não conseguiaimaginarnadamaisnauseante.Oraçãoaestahoracomaquelamulher.Eosomdosino inundouasalacomsuaondademelancolia;querecuoueseavolumou outra vez para avançar de novo, quando ouviu, distraindo-se,algoapalpando,algoraspandoàporta.Quemaessahora?Três,ohcéus!Játrês!Poiscomdignidadeelimpidezacabrunhanteorelógiobateuastrês;eelanãoouviumaisnada;masamaçanetadaportagiroueentrouRichard!Que surpresa! Entrou Richard, estendendo lores. Ela tinha se negado aele,umavezemConstantinopla; eLadyBruton, cujosalmoçoseram tidoscomoextraordinariamentedivertidos,nãoaconvidara.Eleestendia lores– rosas, rosas vermelhas e brancas. (Mas não conseguiu dizer que aamava;nãocomtodasasletras.)Mas que encantador, disse ela, pegando suas lores. Ela entendeu;

entendeusemele falar; suaClarissa.Pôsas rosasemvasosnacornijadalareira. Que lindas eram, disse. E foi divertido? perguntou. Lady Brutontinha perguntado por ela? Peter Walsh estava de volta. Mrs. Marshamtinha escrito. Devia convidar Ellie Henderson? Aquela mulher Kilmanestavaláemcima.–Vamossentarcincominutinhos–disseRichard.Tudo parecia tão vazio. Todas as cadeiras estavam contra a parede. O

que tinham andado a fazer? Oh, era para a festa; não, ele não tinhaesquecidoa festa.PeterWalshestavadevolta.Ohsim;elaovira.Eele iatratardeumdivórcio;eestavaapaixonadoporalgumamulherdelá.Enãotinhamudadoemnada.Láestavaela,consertandoovestido...–PensandoemBourton–disse.– Hugh estava no almoço – disse Richard. Ela também o encontrara!

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Bem,estava icandoabsolutamente insuportável.ComprandocolaresparaEvelyn;maisgordodoquenunca;umimbecilinsuportável.–Emeocorreu“Eupodiatercasadocomvocê”–disseela,pensandoem

Peter sentado ali com sua gravatinha borboleta; com aquele canivete;abrindo,fechando.–Sempredomesmojeitoquevocêconhece.Estavam falandodelenoalmoço,disseRichard. (Maselenãoconseguia

lhe dizer que a amava. Segurou-lhe a mão. Felicidade é isso, pensou.)Estiveramescrevendouma cartaparaoTimesparaMillicentBruton. ErasóparaissoqueHughservia.–EnossaqueridaMissKilman?–perguntouele.Clarissaachouasrosas

absolutamente adoráveis; primeiro amontoadas bem junto; agora por simesmascomeçandoaseseparar.–Kilmanchegabemnahoraemqueacabamosdealmoçar–disseela.–

Elizabethficavermelha.Asduassetrancam.Imaginoqueestejamrezando.BomDeus!Elenãogostavadaquilo;masessascoisaspassamsozinhas.–Numagabardinecomumasombrinha–disseClarissa.Elenãotinhadito“Euteamo”;massegurouamãodela.Felicidadeéisso,

éisso,pensou.– Mas por que teria eu de convidar todas as mulheres sem graça de

Londres para minhas festas? – disse Clarissa. E se Mrs. Marsham desseumafesta,elaéqueiaescolherosconvidados?–PobreEllieHenderson–disseRichard;eraumacoisamuitoestranha

comoClarissasepreocupavacomsuasfestas,pensouele.MasRichardnãofaziaideiadoaspectodeumsalão.Porém–oqueeleia

dizer?Se ela se preocupava tanto com essas festas ele não ia deixar dá-las.

QueriatersecasadocomPeter?Masprecisavair.Precisava ir, disse ele, levantando-se. Mas icou parado um momento

comosefossedizeralgumacoisa;eela icouimaginando:oquê?Porquê?Aliestavamasrosas.–Algumcomitê?–perguntouelaquandoeleabriaaporta.–Armênios–disse;outalvezfosse–Albaneses.E há uma dignidade nas pessoas; uma solidão;mesmo entremarido e

mulher um abismo; e que se deve respeitar, pensou Clarissa, olhando-oabriraporta;poisnãosepoderompê-la,outomá-la,contraavontadedele,aomarido, semperder a própria independência, o respeito por si – algo,afinal,inestimável.Elevoltoucomumtravesseiroeumacoberta.–Umahoraderepousocompletodepoisdoalmoço–disse.Esaiu.

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Bemdelemesmo!Continuariadizendo“Umahoraderepousocompletodepois do almoço” até o inal dos tempos, porque certa vez um médicotinha recomendado. Era bem dele mesmo levar ao pé da letra o que osmédicosdiziam;partedesuadivinaeadorávelsimplicidade,queninguémtinha a tal ponto; o que lhe permitia ir e fazer as coisas enquanto ela ePeter gastavam o tempo se bicando. Ele já estava a meio caminho daCâmara dos Comuns, de seus armênios, de seus albaneses, tendo-ainstalado no sofá, olhando as rosas dele. E as pessoas diziam, “ClarissaDallowayémimada”.Ela se importavamuitomaiscomsuas rosasdoquecom os armênios. Perseguidos, mutilados, mortos de frio, vítimas dacrueldadeedainjustiça(elatinhaouvidoRichardrepetirinúmerasvezes)–não,elanãoconseguiasentirnadapelosalbaneses,ouseriamarmênios?masamavasuas lores (issonãoajudavaosarmênios?)–asúnicas loresquesuportavavercortadas.MasRichardjáestavanaCâmaradosComuns;em seu comitê, tendo resolvido todas as di iculdades dela. Mas não;infelizmente não era verdade. Ele não entendeu as razões para nãoconvidar Ellie Henderson. Ela convidaria, claro, como ele queria. Já quetinhatrazidootravesseiro,iasedeitar...Mas–mas–porquesesentiaderepente, por nenhuma razão que conseguisse perceber,desesperadamenteinfeliz?Comoalguémquedeixoucairalgumapérolaoudiamantenagramaeagoraseparaasfolhascrescidascomtodoocuidado,paraesse lado,paraooutro, eprocuraaquieali emvão,epor imespiaentreasraízes,elaprosseguiaentreumacoisaeoutra;não,nãoeraSallySetondizendoqueRichardnuncaentrarianoministérioporquetinhaumcérebro de segunda classe (aquilo lhe voltou à lembrança); não, não seimportava com isso; nem era o que fazer com Elizabeth e Doris Kilman;esteseramfatos.Eraumasensação,algumasensaçãodesagradável,talvezmais cedo; algo que Peter tinha dito, junto com alguma depressão delamesma,noquarto,tirandoochapéu;eoqueRichardtinhaditosesomaraàquilo,masoqueeletinhadito?Aliestavamasrosasdele.Asfestasdela!Era isso! As festas dela!Os dois erammuito injustos ao criticá-la, os doiserammuitoinjustosaorirdelaporcausadasfestas.Eraisso!Eraisso!Bem, como ela ia se defender? Agora que sabia o que era, sentia-se

plenamente feliz. Eles pensavam, ou pelo menos Peter pensava, que elagostavadeseimpor;quegostavadeestarcercadadegentefamosa;nomesimportantes; que era simplesmente uma esnobe, em suma. Bem, Peterpodia pensar assim. Richard simplesmente achava tolo da parte delagostar da excitação pois sabia que lhe fazia mal ao coração. Era infantil,pensava ele. E os dois estavam totalmente errados. Ela gostava era

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simplesmentedavida.–Éporissoquefaçoisso–disse,falandoemvozalta,àvida.Como estava deitada no sofá, enclausurada, liberada, a presença dessa

coisa que ela sentia ser tão óbvia ganhou existência ísica; envolta emmantossonorosvindodarua,ensolarada,comhálitoquente,sussurrando,soprandoascortinas.Massuponha-sequePeterdissesseaela, “Sim,sim,mas suas festas – qual é o sentido de suas festas?” a única coisa que elapoderia dizer era (e não podia se esperar que alguém entendesse): Elassão uma oferenda; o que soava terrivelmente vago.Mas quem era Peterpara decidir que a vida era sempre uma coisa simples? – Peter sempreapaixonado,sempreapaixonadopelamulhererrada?Eseuamor,oqueé?podia lheperguntar. E sabia sua resposta; que é a coisamais importantedo mundo e nenhuma mulher conseguiria entender. Pois muito bem. Ealgumhomemconseguiriaentenderoqueelaqueriadizer?sobreavida?NãoconseguiaimaginarPeterouRichardsedandoaotrabalhodeoferecerumafestaporqualquerrazãoquefosse.Maspara irmais fundo,alémdoqueaspessoasdiziam(eesses juízos,

comoeramsuper iciais,comoeramfragmentários!)agoraemsuaprópriamente,oquesigni icavaparaelaessacoisaquechamavadevida?Ah,eramuito esquisito. Aqui estava fulano em South Kensington; alguém ali emBayswater; e mais alguém, digamos, em Mayfair. E ela sentiacontinuamente a existência deles; e sentia que desperdício; e sentia quepena;esentiaahsepelomenospudessemsereunir;entãoelaagia.Eeraumaoferenda;juntar,criar;masparaquem?Umaoferendapelaprópriaoferenda,talvez.Dequalquerforma,eraseu

presente.Elanãopossuíamaisnadaquetivesseamenorimportância;nãopensava, não escrevia, nem sequer tocava piano. Confundia armênios eturcos;amavaosucesso;detestavaodesconforto;precisavaserapreciada;falavamontanhasdeabsurdos:eatéagora,selheperguntassemoqueeraoEquador,elanãosabia.Mesmoassim,aestediaseseguiriaoutro;quarta,quinta,sexta,sábado;

pois a pessoa acordava de manhã; via o céu; andava no parque;encontravaHughWhitbread;entãoderepenteentravaPeter;entãoessasrosas; era o su iciente.Depois daquilo, como era inacreditável amorte! –queaquilotivessedeterminar;eninguémnomundotodosaberiaoquantoelatinhaamadoaquilotudo;quanto,cadainstante...Aportaseabriu.Elizabethsabiaqueamãeestavadescansando.Entrou

muito silenciosa. Ficou absolutamente imóvel. Será que algum mongolhavia naufragado na costa deNorfolk (como diziaMrs. Hilbery), tinha se

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misturado com as senhoras Dalloway, talvez cem anos atrás? Pois osDalloway, em geral, tinham cabelos claros; olhos azuis; Elizabeth, pelocontrário,eramorena;tinhaolhoschinesesnumrostopálido;ummistériooriental;eragentil,atenciosa,calada.Quandocriança, tinha tidoumsensode humor perfeito; mas agora aos dezessete, por quê, Clarissa nãoconseguianemde longeentender, tinhase tornadomuitoséria; comoumjacinto revestido de verde brilhante, combotões levemente coloridos, umjacintoquenãoconheceraosol.Ela icou absolutamente imóvel e olhou a mãe; mas a porta estava

entreaberta, e do outro lado da porta estava Miss Kilman, como sabiaClarissa;MissKilmanemsuagabardineouvindotudooquedissessem.Sim,MissKilmanestavanopatamareusavaumagabardine;mas tinha

suasrazões.Primeiro,erabarata;segundo,tinhamaisdequarentaanos;ea inal não se vestia para agradar. Era pobre, além do mais;degradantemente pobre. Do contrário não estaria aceitando serviços degente como os Dalloway; de gente rica, que gostava de ser bondosa. Mr.Dalloway, para lhe fazer justiça, tinha sido bondoso. Mas Mrs. Dallowaynão.Tinhasidomeramentecondescendente.Elaprovinhadamaisindignadetodasasclasses–osricoscomumlevevernizdecultura.Tinhamcoisascaras por toda parte; quadros, tapetes, montes de criados. ConsideravaquetinhaplenodireitoaqualquercoisaqueosDallowayfizessemporela.Tinhasidolograda.Sim,apalavranãoeraexagero,poiscertamenteuma

moça tem direito a alguma espécie de felicidade, não? E ela nunca tinhasidofeliz,porsertãodesajeitadaetãopobre.Eentão, justoquandopodiater tidoumachancenaescoladeMissDolby, veioaguerra; enunca foracapaz de mentir. Miss Dolby considerou que ela se daria melhor compessoasquetivessemamesmaopiniãosobreosalemães.Tevedesair.Eraverdade que a família era de origem alemã; o sobrenome se escreviaKiehlman no século XVIII; mas seu irmão tinha sido morto. Eles ademitiram porque ela não iria ingir que os alemães eram todos vilões –sendo que ela tinha amigos alemães, sendo que os únicos dias felizes desua vida tinham sido na Alemanha! E a inal conhecia história. Teve deaceitarqualquercoisaqueconseguisse.Mr.Dallowayaencontraraquandotrabalhava para os Amigos. Tinha-lhe permitido (e aquilo foi realmentegenerosodapartedele)daraulasdehistóriaàsua ilha.Etambémfezumpequeno curso de extensão e assim por diante. Então Nosso Senhor serevelara a ela (e aqui sempre curvava a cabeça). Tinha visto a luz doisanos e três meses atrás. Agora não invejava mulheres como ClarissaDalloway;compadecia-sedelas.

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Compadecia-se e desprezava-as do fundo do coração, ali parada notapetemacio,olhandoavelhagravuradeumameninacomumregalonasmãos.Comtodoesse luxo,queesperançahaviadeummelhorestadodascoisas? Em vez de se deitar num sofá – “Minha mãe está descansando”,tinha dito Elizabeth – ela devia estar numa fábrica; atrás de um balcão;Mrs.Dallowayetodasasoutrasgrã-finas!Amarga e ardente,Miss Kilman tinha entrado numa igreja dois anos e

três meses atrás. Ouvira o reverendo Edward Whittaker pregando; osmeninoscantando;viraas luzessolenesdescendo,ese foiamúsicaouseforamasvozes(elamesmasozinhaànoiteencontravaconsolonumviolino;mas o som era excruciante; não tinha nenhum ouvido para música), ossentimentosardenteseturbulentosqueferviamejorravamnelatinhamseaplacadoao se sentar ali, e começara a chorar copiosamente, e foi visitarMr.WhittakeremsuaresidênciaemKensington.EraamãodeDeus,disseele. O Senhor lhe mostrara o caminho. Então agora, sempre que ossentimentos ardentes e dolorosos ferviam dentro dela, esse ódio a Mrs.Dalloway, essa raiva contra omundo, ela pensava emDeus. Pensava emMr.Whittaker.Àirasesucediaacalma.Umdocesaborlheenchiaasveias,oslábiosseabriame,paradacomouma iguratemívelnopatamaremsuagabardine, elaolhou comserenidade irmee sinistraparaMrs.Dalloway,quesaíacomafilha.Elizabethdissequetinhaesquecidoasluvas.IssoporqueMissKilmane

suamãeseodiavammutuamente.Nãosuportavaverasduasjuntas.Subiucorrendoasescadasparaprocurarasluvas.Mas Miss Kilman não odiava Mrs. Dalloway. Pousando seus olhos

grandescordegroselhaemClarissa,observandoseurostomiúdorosado,o corpo delicado, o ar de elegância e frescor, Miss Kilman sentiu, Tola!Simplória!Vocêquenãoconheceadornemoprazer;quedesperdiçasuavidacomninharias!Eentãosubiudentrodesiumdesejoincontroláveldevencê-la; de desmascará-la. Se conseguisse derrubá-la, isso a acalmaria.Masnão erao corpo; era a almae seu escárnioque elaqueria subjugar;fazer sentir seu domínio. Se ao menos conseguisse fazê-la chorar; seconseguissedestruí-la;humilhá-la; levá-la a se ajoelhar exclamando,Vocêtemrazão!MasestaeraavontadedeDeus,nãodeMissKilman.Seriaumavitóriareligiosa.Assimfulminava,fulguravaseuolhar.Clarissaestavarealmentechocada.Umacristã,esta–estamulher!Esta

mulher lhe tinha tirado a ilha! Ela em contato com presenças invisíveis!Pesada, feia, vulgar, sem graça nem bondade, ela conhecia o sentido davida!

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–EstálevandoElizabethàsStores?–perguntouMrs.Dalloway.Miss Kilman disse que sim. Ficaram ali paradas.Miss Kilman não ia se

mostrar simpática. Sempre tinha trabalhado para viver. Tinha um vastoconhecimentodehistóriamoderna. Ela separavaumaparcela tão grandedeseusmagrosrendimentosparaascausasemqueacreditava;aopassoqueestamulhernãofazianada;nãoacreditavaemnada;criarasua ilha–masaquiestavaElizabeth,quasesemfôlego,alindamenina.Então estavam indo às Stores. Estranho, enquanto Miss Kilman estava

parada ali (e parada estava, com o poder e a força taciturna de algummonstropré-históricoparaumaguerraprimeva), comoacadasegundoaideiadesimesmadiminuía,comooódio(queeracontraas ideias,nãoaspessoas)cedia,comoperdiasuamaldade,seutamanho,tornava-seacadasegundo simplesmente Miss Kilman, numa gabardine, a quem Clarissa,bemsabemoscéus,gostariadeajudar.Aessedefinhamentodomonstro,Clarissariu.Despedindo-se,riu.Láseforamjuntas,MissKilmaneElizabeth,descendoasescadas.Numimpulsosúbito,numaangústiaviolenta,poisestamulherestavalhe

tirandoafilha,Clarissaseinclinounocorrimãoegritou:–Nãoesqueçaafesta!Nãoesqueçanossafestahojeànoite!Mas Elizabeth já tinha aberto a porta da frente; havia um furgão

passando;elanãorespondeu.Amor e religião! pensou Clarissa, voltando para a sala de visitas,

tiritando de novo. Como são detestáveis, detestáveis! Pois agora que ocorpodeMissKilmannãoestavaàsuafrente,acabrunhava-a–aideia.Ascoisas mais cruéis do mundo, pensou, vendo-as desajeitadas, ardentes,dominantes, hipócritas, furtivas, invejosas, in initamente cruéis einescrupulosas, envoltas numa gabardine, no patamar; amor e religião.Tentara alguma vez converter alguém? Não queria que cada qual fossesimplesmentequemera?Eolhoupelajanelaavelhasenhoradooutroladosubindo as escadas. Que subisse as escadas se quisesse; que parasse;então que fosse, como Clarissa costumava vê-la, até o quarto, abrisse ascortinasedesaparecessedenovoaofundo.Dealgumaformaaquiloeradeserespeitar–aquelavelhaolhandopelajanela,totalmenteinconscientedeser observada. Havia algo de solene nisso – mas o amor e a religiãodestruiriamaquilo,oquequerque fosse,aprivacidadedaalma.AodiosaKilmanadestruiria.Enoentantoeraumavisãoque lhedavavontadedechorar.O amor também destruía. Tudo o que era bonito, tudo o que era

verdadeiro desaparecia. Tome-se Peter Walsh agora. Havia um homem,

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encantador, inteligente, com ideias a respeito de tudo. Se você quisessesaberdopapa,digamos, oudeAddison, ouapenas conversar à toa, comoeramaspessoas,oquesigni icavamascoisas,Peter sabiamelhordoqueninguém.FoiPeterqueaajudou;Peterquelheemprestouseuslivros.Masvejaasmulheresqueeleamava–vulgares,triviais,banais.PenseemPeterapaixonado–eleveiovê-ladepoisdetodosessesanos,edoqueelefalou?De si mesmo. Paixão horrível! pensou ela. Paixão degradante! pensou,pensandoemKilmanesuaElizabethindoatéasArmyandNavyStores.OBigBenbateuameiahora.Comoeraextraordinário,estranho,sim,comoventeveravelhasenhora

(eram vizinhas fazia tantos anos) se afastar da janela, como se estivesseligadaàquelesom,àquelacorda.Gigantescocomoera,tinhaalgoavercomela.Emmeioàscoisascomunsodedodescia,descia,dandosolenidadeaomomento.Ela eraobrigadapor aquele som, foi como imaginouClarissa, asemover,air–masaonde?Clarissatentouacompanhá-laquandoseviroue desapareceu, e ainda conseguiu ver apenas sua touca branca semovendo no fundo do quarto. Para que credos, orações, gabardines? se,pensou Clarissa, aquele é o milagre, aquele é o mistério; aquela velhasenhora, queria dizer, que podia ver indo da cômoda ao toucador. Aindaconseguia vê-la. E o mistério supremo que Kilman podia dizer quesolucionara, ou Peter podia dizer que solucionara, mas Clarissa nãoacreditava que nenhum deles tivesse a mais leve sombra de ideia desolucionar, era simplesmente este: aqui havia um aposento; ali outro. Areligiãosolucionavaisso,ouoamor?Amor – mas então o outro relógio, o relógio que sempre batia dois

minutos depois do Big Ben, entrou numpasso arrastado com seu regaçocheio demiudezas, que despejou como se fossemuito correto que o BigBencomtodasuamajestadeestabelecessea lei, tãosolene, tão justa,maselatambémprecisavalembrarascoisinhasmaisvariadas–Mrs.Marsham,EllieHenderson,taçasparasorvetes–asmaisvariadascoisinhasentraramde roldão,deatropelo,dançandonaesteiradaquelabatida soleneque seestendiacomoumafaixadeouronomar.Mrs.Marsham,EllieHenderson,taçasparasorvetes.Tinhadetelefonarimediatamente.Loquaz,alvoroçado,orelógioatrasadosoou,vindonaesteiradoBigBen,

comseuregaçocheiodequinquilharias.Açoitadas,batidaspeloataquedascarruagens, pela brutalidade dos furgões, pelo avanço voraz demiríadesde homens angulosos, de mulheres vaidosas, pelas cúpulas e torres deescritóriosehospitais,asúltimasrelíquiasdesseregaçocheiodemiudezaspareceram sequebrar, comoos borrifos deumaonda exaurida, contra o

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corpodeMissKilmanparandoporuminstantenaruaparamurmurar“Éacarne”.Era a carne que ela devia controlar. ClarissaDalloway a insultara. Isso

elaesperava.Masnãohavia triunfado;nãohaviadominadoa carne.Feia,desajeitada, Clarissa Dalloway tinha rido dela por causa disso; e tinhareatiçadoosdesejosdacarne,poiselase importavacomaaparênciaquetinhaaoladodeClarissa.Enempoderiaterfaladocomofalou.Masporquequererseparecercomela?Porquê?DesprezavaMrs.Dallowaydofundodocoração.Nãoeraséria.Nãoeraboa.Suavidaeraumatramadevaidadee falsidade. E no entanto Doris Kilman fora vencida. Na verdade, estevemuitopertodeestouraremlágrimasquandoClarissaDallowayriudela.“Éacarne,éacarne”,murmurou(tendoohábitodefalarsozinha),tentandosubjugar esse sentimento doloroso e turbulento enquanto percorria aVictoriaStreet.RezouaDeus.Nãopodiadeixardeserfeia;nãotinhameiosde comprar roupas bonitas. Clarissa Dalloway tinha rido – mas elaconcentrariaospensamentosemoutracoisaatéchegaràcaixadocorreio.Em todo caso tinha conseguido Elizabeth. Mas ia pensar em outra coisa;pensarianaRússia;atéchegaràcaixadocorreio.Como deve estar agradável no campo, disse ela lutando, como lhe

dissera Mr. Whittaker, contra aquela raiva violenta ao mundo que adesdenhara, zombara dela, excluíra-a, a começar por essa indignidade –ter-lhein ligidoessecorporepelentequeninguémsuportavaver.Pormaisque mudasse o penteado, a testa icava como um ovo, calva, branca.Nenhumaroupa lhecaíabem.Podiacomprarqualquercoisa.Eparaumamulher,claro,issosigni icavanuncaconhecerosexooposto.Nuncaseriaaprimeira para ninguém. Às vezes ultimamente tinha a impressão de que,tirando Elizabeth, ela vivia apenas para suas refeições. Seus confortos; ojantar;ochá;abolsadeáguaquenteànoite.Masépreciso lutar;vencer;ter fé em Deus. Mr. Whittaker tinha dito que ela existia para umainalidade. Mas ninguém sabia a agonia que era! Ele disse, apontando ocruci ixo, que Deus sabia.Mas por que devia ela sofrer enquanto outrasmulheres, como Clarissa Dalloway, escapavam? O conhecimento vem pormeiodosofrimento,disseMr.Whittaker.Tinha passado a caixa do correio, e Elizabeth havia entrado no fresco

departamento de tabaco das Army and Navy Stores enquanto ela aindamurmurava consigo mesma o que Mr. Whittaker tinha dito sobre oconhecimento que vinha por meio do sofrimento e da carne. “A carne”,murmurou.Quedepartamentoelaqueria?interrompeuElizabeth.

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–Combinações–disseabruptaeseguiuretoatéoelevador.Subiram.Elizabethaguiavaporaquieporali;guiava-aabstraídacomo

estava, como se fosse uma criança grande, um navio de guerra di ícil demanobrar. Ali estavam as combinações, castanhas, recatadas, listradas,frívolas,sólidas,fúteis;eelaescolheu,emsuaabstração,comarsolene,eaatendenteachouqueeraumalouca.Elizabeth se indagava, enquanto embrulhavam o pacote, em que Miss

Kilman estaria pensando. Deviam ir tomar chá, disse Miss Kilman,animando-se,recompondo-se.Foramaochá.ElizabethseindagavaseMissKilmanestariacomfome.Erasuamaneira

de comer, de comer com intensidade, então de olhar seguidamente paraumpratodeboloscobertosdeglacênamesaaolado;eentão,quandoumasenhoraeumacriançasesentarameacriançapegouobolo,MissKilmaniria realmente se importar? Sim, Miss Kilman realmente se importou.Queriaaquelebolo–ocor-de-rosa.Oprazerdecomererapraticamenteoúnicoprazerpuroquelherestava,eaténissoeralograda!Quando as pessoas são felizes, tinha dito a Elizabeth, elas têm uma

reservaàqualpodemrecorrer,aopassoqueelaeracomoumarodasempneu (gostavamuito dessasmetáforas) que levava um solavanco a cadapedregulho– foioquedissedepoisdaaula,depéao ladoda lareiracomsuasacoladelivros,sua“mochila”,dizia,numaterçademanhã,depoisquea aula tinha terminado. E falou também sobre a guerra. A inal, existiaquem discordasse que os ingleses estavam invariavelmente certos.Existiam livros. Existiam reuniões. Existiam outros pontos de vista.Elizabeth gostaria de vir com ela ouvir fulano de tal? (um senhor deaspecto absolutamente extraordinário). Então Miss Kilman a levou aalguma igreja em Kensington e tomaram chá com um sacerdote.Emprestara-lhe seus livros. Direito,medicina, política, todas as pro issõesestãoabertasàsmulheresdesuageração,disseMissKilman.Masquantoasimesma,suacarreiraestavatotalmentearruinada,eeraculpasua?BomDeus,disseElizabeth,não.EsuamãeapareciadizendoquechegaraumgrandecestodeBourton,e

MissKilmangostariadealgumas lores?ComMissKilmanelaerasempremuito,muitogentil,masMissKilmanespremiatodasas loresnummaço,enãotrocavaqualqueramenidade,eoque interessavaaMissKilmandavatédioàsuamãe,eMissKilmaneelajuntaseramterríveis;eMissKilmanseabespinhava e icava muito banal, mas Miss Kilman era tremendamenteinteligente.Elizabethnunca tinhapensadonospobres.Eles tinhamtudooque queriam – suamãe tomava o desjejum na cama todos os dias; Lucy

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levava a ela; e gostava de mulheres de idade porque eram duquesas edescendiamdealgumlorde.MasMissKilmandisse(numadaquelasterçasdemanhãdepoisdeterminaraaula):“MeuavôtinhaumalojadetintasemKensington”. Miss Kilman era totalmente diferente de qualquer outrapessoaqueelaconhecia;faziaagentesesentirtãopequena.MissKilmanpegououtraxícaradechá.Elizabeth,comseuporteoriental,

seu mistério inescrutável, estava sentada perfeitamente reta; não, nãoqueria mais nada. Procurou as luvas – as luvas brancas. Estavam sob amesa. Ah, mas não podia ir! Miss Kilman não deixaria que fosse! essajovem,tãobonitaqueeraessamocinha,aquemamavasinceramente!Suamãolargaseabriuesefechousobreamesa.Mastalvezfosseumpoucobanal,sentiuElizabeth.Erealmentegostaria

deir.MasdisseMissKilman:–Aindanãoterminei.EntãoElizabethesperaria,claro.Masestavameioabafadoaquidentro.– Você vai à festa hoje à noite? – perguntou Miss Kilman. Elizabeth

achava que sim; suamãe queria que ela fosse. Não devia deixar que asfestas a absorvessem, disse Miss Kilman, apalpando o último pedaço deumabombadechocolate.Nãogostavamuitode festas, disseElizabeth.MissKilmanabriu aboca,

projetou levemente o queixo para frente e engoliu o último pedaço dabombadechocolate,entãolimpouosdedosegirouaxícaraagitandoochá.Estavaprestesasedesfazerempedaços,sentiu.Eraterrívelaagonia.Se

conseguisse pegá-la, se conseguisse agarrá-la, se conseguisse torná-latotalmentesuaeparasempre,edepoismorrer;erasóoquequeria.Masicar aqui sentada, incapaz de pensar em qualquer coisa para dizer; verElizabethsevoltandocontraela;serconsideradarepulsivaatémesmoporela – era demais; não podia suportar isso. Os dedos grossos seencurvaram.– Nunca vou a festas – disse Miss Kilman, apenas para impedir que

Elizabethfosseembora.–Aspessoasnãomeconvidamparafestas–enomomentoemquedisseissopercebeuqueeraesseegoísmoacausadesuaperdição;Mr.Whittaker tinha advertido;masnão conseguia evitar. Tinhasofridotãopavorosamente.–Porquemeconvidariam?–disse.–Soubanal,souinfeliz.Sabiaqueeraumaidiotice.Maseramtodasaquelaspessoaspassando–

pessoas com seus embrulhos a desprezá-la – que a faziamdizer isso. NoentantoeraDorisKilman.Tinhaseudiploma.Eraumamulherqueabrira

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caminho no mundo. Seu conhecimento de história moderna era mais doquerespeitável.–Não tenhopenademim–disseela. –Tenhopena–queriadizer “de

suamãe”,mas não, não poderia, não para Elizabeth. – Tenhomuitomaispenadeoutraspessoas.Como uma criatura muda levada até uma porteira para alguma

inalidadedesconhecidaeque icaaliansiandoemfugiragalope,ElizabethDalloway continuava sentada em silêncio. Miss Kilman teria mais algo adizer?– Não se esqueça de mim – disse Doris Kilman; sua voz tremulou. A

criatura muda rumou direto para o inal do campo num galopeaterrorizado.Amãograndeseabriuesefechou.Elizabeth virou a cabeça. A atendente veio. Tinham de pagar no caixa,

disse Elizabeth e saiu, arrancando-lhe, sentiu Miss Kilman, as própriasentranhas do corpo, estirando-as enquanto atravessava o salão, e então,com uma torcedura inal, inclinando a cabeça com muita cortesia, foiembora.Ela tinha ido embora. Miss Kilman continuou sentada à mesa de

mármoreentreasbombas,atingida,uma,duas,trêsvezesporchoquesdedor. Tinha ido embora. Mrs. Dalloway triunfara. Elizabeth tinha idoembora.Abelezatinhaidoembora;ajuventudetinhaidoembora.Assim continuou sentada. Levantou, passou cambaleando entre as

mesinhas, oscilando levemente de um lado e outro, e alguém veio atrásdela com sua combinação, e ela perdeu o caminho, e icou cercada porbaúsdeviagemespeciaisparaaÍndia;aseguirseviuentreacessóriosdegrávidaseroupinhasdebebês;porentretodasasmercadoriasdomundo,perecíveis e duráveis, presuntos, lores, itens de drogaria e papelaria, decheiros variados, ora doces, ora ácidos, vagueou ela; viu-se entãovagueando com o chapéu torto, a cara muito vermelha, de corpo inteironumespelho;eporfimsaiuparaarua.A torredacatedraldeWestminsterseerguiadiantedela, amoradade

Deus.Nomeiodotrânsito,aliestavaamoradadeDeus.Obstinadarumoucomseuembrulhoparaaqueleoutrosantuário,aabadia,onde,erguendoasmãos empirâmide na frente do rosto, sentou ao lado daqueles outrostambém vindos ao refúgio; os iéis vários e sortidos, agora, enquantoerguiamasmãosna frentedo rosto,despidosdeposição social,quasedesexo; mas, depois de baixar as mãos após a reverência instantânea,inglesesdeclassemédia,homensemulheres, algunscomvontadedever

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asfigurasdecera.MasMiss Kilmanmanteve sua pirâmide na frente do rosto. Ora estava

abandonada; ora tinha companhia. Da rua chegavam novos iéis parasubstituir os que perambulavam, e ali continuava, enquanto as pessoasolhavamorecintoepassavamaoladodotúmulodoSoldadoDesconhecido,continuava vedando os olhos com os dedos e tentava nessa duplapenumbra, pois a luz na abadia era incorpórea, ascender acima dasvaidades,dosdesejos,dascomodidades,parase livrardoódioedoamor.Suasmãossecontraíram.Parecialutar.EnoentantoparaoutrosDeuseraacessível e o caminho até Ele era suave. Mr. Fletcher, aposentado, doTesouro, Mrs. Gorham, viúva do famoso jurisconsulto, chegavam-se a Elecomsimplicidade,eterminadaaoraçãorecostavam-senobanco,gozavamamúsica (o órgão ressoava docemente) e viamMiss Kilman na ponta dobanco, rezando, rezando, e, como ainda estava no perímetro do mesmomundo terreno deles, solidarizavam-se com ela como uma alma quefrequentava o mesmo território; uma alma feita de substância imaterial;nãoumamulher,umaalma.Mas Mr. Fletcher precisava ir. Teve de passar por ela e, sendo

impecavelmente asseado, não pôde evitar uma leve a lição diante dodesmazelodapobresenhora;ocabelocaído;opacotenochão.Elanãolhedeu logo passagem. Mas, enquanto ele icou ali olhando em torno, osmármores brancos, os vitrais cinzentos e os tesouros acumulados (poissentia imenso orgulho da abadia), o tamanho, a robustez e a força dela,mexendo os joelhos de vez emquando (tão árduo o acesso a seuDeus –tãoardentesseusdesejos),oimpressionaram,comotinhamimpressionadoMrs.Dalloway(nãoconseguiuafastaropensamentodelanaquelatarde),oreverendoEdwardWhittakereElizabethtambém.EElizabethesperavaumônibusnaVictoriaStreet.Eratãobomestarna

rua.Pensouquetalveznãoprecisasseirjáparacasa.Eratãobomestaraoarlivre.Entãopegariaumônibus.Edesdejá,mesmoaliparada,comsuasroupas muito bem cortadas, estava começando... As pessoas estavamcomeçando a compará-la a álamos, à aurora, a jacintos, gazelas, arroios,lírios dos jardins; o que lhe tornava a vida um fardo, pois preferiamuitomaisficarempazàvontadenocampo,mascomparavam-naalírios,etinhade ir a festas, e Londres era tão triste em comparação à vida em paz nocampocomopaieoscachorros.Os ônibus vinham correndo, paravam, seguiam – caravanas

espalhafatosas, reluzindo com tinta vermelha e amarela. Mas qual deviatomar?Nãotinhapreferência.Claro,nãoseforçaria.Tendiaàpassividade.

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Faltava-lheexpressão,masseusolhoserambonitos,chineses,orientais,e,como sua mãe dizia, com ombros tão bonitos e com porte tão ereto, erasempreumavisãoencantadora;eultimamente,sobretudoànoite,quandoestava interessada, pois nunca parecia empolgada, parecia quase bela,muito majestosa, muito serena. No que podia estar pensando? Todos oshomens se apaixonavam por ela, e ela realmente sentia um tremendoenfado.Poisestavacomeçando.Suamãepodiaver–osgalanteiosestavamcomeçando.Queelanãoseimportassemuito–porexemplo,comasroupas– às vezes aborrecia Clarissa, mas talvez fosse melhor assim com todosaquelescãezinhoseporquinhos-da-índiatendocinomose,eaquilolhedavaencanto. E agora havia essa amizade esquisita com Miss Kilman. Bem,pensava Clarissa pelas três horas da madrugada, lendo o barão Marbotpoisnãoconseguiadormir,issodemonstraqueelatemcoração.De repenteElizabethavançoue subiu comgrandeagilidadenoônibus,

na frentede todomundo.Pegouumassentonoandardecima.Acriaturaimpetuosa – um navio pirata – deu um tranco, arrancou; ela teve de sesegurar na barra para se irmar, pois era mesmo um navio pirata,temerário, inescrupuloso, impondo-se implacavelmente, desviando-seperigosamente, audazmente pegando um passageiro, ou ignorando umpassageiro, espremendo-se feito uma enguia e se en iando arrogante porentreotráfegoeentãoinvestindoinsolentecomtodasasvelasenfunadasWhitehallacima.EconcedeuElizabethumúnicopensamentoàpobreMissKilman, que a amava sem ciúme, para quem tinha sido uma gazela ao araberto, uma lua na clareira da loresta? Era umadelícia se sentir livre. Eera tão delicioso o ar fresco. Antes estava abafado demais nasArmy andNavy Stores. E agora parecia uma cavalgada, essa investida Whitehallacima;eacadamovimentodoônibusobelocorponocasacocordegazelarespondialivrementecomoumginete,comoa iguradeproadeumnavio,poisabrisaadesalinhavaligeiramente;ocalorlhedavaàsfacesopalordamadeira pintada de branco; e seus belos olhos, sem olhos para cruzar,itavamemfrente,vazios,brilhantes,comaincrívelinocênciadoolhar ixodeumaescultura.OquetornavaMissKilmantãodi ícilerafalarsempresobreospróprios

sofrimentos.Eteriarazão?Seoqueajudavaospobresera fazerpartedealgumcomitêetodososdiasdedicarhorasehorasdetempo(quasenuncao via emLondres), seupai fazia isso,Deus sabe – se era isso o queMissKilmanentendiacomosercristão;maseratãodi ícilsaber.Oh,gostariadeirumpoucoadiante.Maisumpêni, era isso, atéoStrand?Estáaquimaisumpêni,então.IriaatéoStrand.

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Ela gostava de gente doente. E todas as pro issões estão abertas àsmulheresdesuageração,diziaMissKilman.Entãopodiasermédica.Podiaserfazendeira.Osanimaisvivemadoecendo.Podiatermilacresemanterempregados.Iriavisitá-losemseuschalés.AliestavaSomersetHouse.Erapossível ser um ótimo fazendeiro – e isso,muito estranhamente, emboraMiss Kilman tivesse uma parte nisso, devia-se quase inteiramente aSomersetHouse. Parecia tão esplêndido, tão sério, aquele grande edi íciocinzento. E ela gostava da sensação de gente trabalhando. Gostavadaquelasigrejas,comomoldesdepapelcinzento,enfrentandoacorrentezado Strand. Aqui era totalmente diferente de Westminster, pensou,descendo na Chancery Lane. Era tão sério; era tão empenhado. En im,queriaterumapro issão.Iasermédica,fazendeira,possivelmenteentrarianoParlamentoseachassenecessário,tudoporcausadoStrand.Ospésdaquelaspessoasempenhadasemseusafazeres,asmãospondo

pedra por pedra, os espíritos eternamente ocupados não com conversastriviais (comparar mulheres a álamos – o que era bastante gentil, claro,mas muito tolo), mas com questões de navios, de negócios, de leis, degoverno, e tudo isso tão imponente (estava noTemple), alegre (ali o rio),piedoso(alia igreja), lhedespertavama irmedeterminação,dissessesuamãe o que quisesse, de ser fazendeira ou médica. Mas, claro, era meiopreguiçosa.E eramuitomelhor não comentar nada. Parecia tão tolo. Era o tipo de

coisaqueàsvezesacontecia,quandoapessoaestavasozinha–osedi íciossem os nomes dos arquitetos, as multidões de gente voltando da cidadetinham mais poder do que todos os clérigos de Kensington, do quequalquerlivroqueMissKilmantinhalheemprestado,paraestimularoquejazia latente, amorfo e tímido nos areais da mente a subir à super ície,comoumacriançaesticandoosbraçosderepente;eraapenasisso,talvez,umsuspiro,umesticardosbraços,umimpulso,umarevelação,queexerceseusefeitosparasempre,eentãodesciadenovoparaosareais.Tinhadeir para casa. Tinha de se arrumar para o jantar.Mas que horas eram? –ondehaviaumrelógio?Olhou a Fleet Street. Deu alguns passos na direção de St. Paul’s,

timidamente, como se entrasse na ponta dos pés, explorando uma casaestranha à noite com uma vela, no medo de que o dono de repenteescancare a porta do quarto e pergunte o que está fazendo ali, e nãoousava entrar nas ruelas esquisitas, nas travessas tentadoras, tal comonuma casa estranha não ousaria abrir portas que podiam dar para umdormitórioouparaasaladevisitasoulevardiretamenteàdespensa.Pois

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nenhumDallowayvinhaaoStrandnodiaadia;elaeraumapioneira,umaextraviada,aventurando-se,confiando.Em muitos aspectos, sentia sua mãe, ela era extremamente imatura,

ainda uma criança, apegada a bonecas, a chinelos velhos; um perfeitobebê; e isso era encantador. Mas havia na família Dalloway, claro, atradição do serviço público. Abadessas, reitoras, diretoras, dignitárias, narepúblicadasmulheres– semserbrilhantes,nenhumadelas, estavam lá.Avançou um pouco mais na direção de St. Paul’s. Ela gostava dacordialidade, da fraternidade feminina, da maternidade, da fraternidademasculinadessealvoroço.Parecia-lhebom.Obarulhoera tremendo;ederepente ouviram-se cornetas (os desocupados) clangorando, retumbandono alvoroço; música militar; como se fossem pessoas marchando; e noentantoseestivessemamorrer–tivessealgumamulhersoltadoseuúltimosuspiro, e quem estivesse velando, abrindo a janela do quarto onde elaacabava de cumprir aquele ato de suprema dignidade, olhasse a FleetStreet ali embaixo, aquele alvoroço, aquela música militar lhe subiriatriunfante,consoladora,indiferente.Nãoeraconsciente.Nãohavianelanenhumreconhecimentodasorteou

sina de ninguém, e por essa própria razão,mesmo para os que velavamentorpecidososúltimostremoresdeconsciêncianorostodosmoribundos,eraconsoladora.Oesquecimentodasgentespodiaferir,aingratidãodelaspodiacorroer,

masessavoz,brotandointerminavelmente,anoapósano,abarcariaoquequer que fosse; esse juramento; esse furgão; essa vida; essa procissão;envolveria e levaria todos eles, como na torrente tumultuada de umageleiraogeloprendeumalascadeosso,umapétalaazul,algunscarvalhosevairolandocomeles.Mas era mais tarde do que pensava. Sua mãe não gostaria que ela

estivessevagueandosozinhaassim.VoltouparaoStrand.Umalufadadevento(apesardocalor,ventavabastante)soprouumvéu

ino e negro sobre o sol e por sobre o Strand.Os rostos descoloriram; osônibus de repente perderam o brilho. Pois embora as nuvens fossem deum branco montanhoso que a gente podia se imaginar com umamachadinha talhando em lascas sólidas, com largas vertentes douradas,gramadosde jardinscelestiaisnos lancose tivessemtodaaaparênciadeum casario permanente ali reunido para a assembleia dos deuses porsobre omundo, havia entre elas ummovimento incessante. Trocavam-sesinais,quando,comoparaexecutaralgumplanojátraçado,oraumtoposeencolhia, oraumbloco inteirodedimensõespiramidaisque semantivera

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em posição inalterável avançava para o meio ou gravemente conduzia aprocissãoparaumnovo ancoradouro. Por ixasqueparecessemem seuspostos,descansandoemperfeitaunanimidade,nadapodiasermaisfresco,maislivre,maissensívelàsuper íciedoqueasuper íciebrancacomoneveouabraseadadeouro;erapossívelnumátimomudar,avançar,dissolverasolene reunião; e apesar da grave ixidez, da solidez e da robustezacumulada,enviavamàterraoraluz,orasombra.Calmaeágil,ElizabethDallowaysubiunoônibusdeWestminster.Indo e vindo, acenando, sinalizando, assim pareciam a luz e a sombra,

que tornavam ora a parede cinza, ora as bananas amarelo-brilhantes,tornavamoraoStrandcinza,oraosônibusamarelo-brilhantes,aSeptimusWarrenSmithdeitadonosofádasala;olhandooourolíquidobrilhareseapagarcomaassombrosasensibilidadedealgumacriaturavivanasrosas,nopapeldeparede.Láforaasárvoresarrastavamsuasfolhascomoredespelasprofundezasdoar;osomdaáguapreenchiaasala,eentreasondasvinham as vozes de pássaros cantando. Todas as potestades despejavamseus tesouros sobre ele, e suamão jazia ali no encosto do sofá, tal comovira jazeramãoenquantosebanhava, lutuavasobreasondas,enquantolá longenapraiaouviaoscães latindoe latindo lá longe.Não temasmais,dizocoraçãodentrodopeito;nãotemasmais.Nãotinhamedo.A todo instanteaNaturezaassinalavacomalgumsinal

risonhocomoaquelamanchadouradacirculandonaparede–ali,ali,ali–sua decisão de mostrar, brandindo suas plumas, agitando suas tranças,enfunandoseumantodeumladoeoutro,lindamente,semprelindamente,esepostandopertoparasussurrarentreasmãosemconchaaspalavrasdeShakespeare,osignificadodela.Rezia,sentadaàmesagirandoumchapéunasmãos,observava-o;viu-o

sorrindo.Erafeliz,então.Masnãosuportavavê-loasorrir.Aquilonãoeracasamento; ser marido não era parecer tão estranho assim, sempre sesobressaltando, rindo, icando sentado horas e horas em silêncio, ouagarrando-a e dizendo-lhe para escrever. A gaveta damesa estava cheiadaqueles escritos; sobre a guerra; sobre Shakespeare; sobre grandesdescobertas; que não existia morte. Nos últimos tempos ele andava seexcitando de repente sem nenhuma razão (e os dois, dr. Holmes e SirWilliam Bradshaw, diziam que a excitação era a pior coisa para ele), eacenava as mãos e gritava que sabia a verdade! Sabia tudo! Aquelehomem, o amigo dele que foimorto, Evans, tinha vindo, disse ele. Estavacantandoatrásdobiombo.Elaanotouenquantoelefalava.Algumascoisaseram muito bonitas; outras simples absurdos. E ele icava sempre se

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interrompendo, mudando de ideia; querendo acrescentar alguma coisa;ouvindoalgumacoisanova;ouvindocomamãoerguida.Maselanãoouvianada.E uma vez encontraram a mocinha que arrumava o quarto lendo um

desses papéis entre acessos de riso. Que dó terrível. Pois aquilo fezSeptimus gritar contra a crueldade humana – como eles se dilacerammutuamente.Oscaídos,disse,dilaceram.“Holmesparteparacimadenós”,dizia, e inventava histórias sobre Holmes; Holmes comendo mingau;HolmeslendoShakespeare–pondo-searugirderisoouderaiva,poisdr.Holmes parecia representar algo horrível para ele. “Natureza humana”,chamava-lhe.Ehaviaasvisões.Tinhaseafogado, costumavadizer,e jazianumpenhascocomasgaivotasgritandoporcima.Olhavapelabeiradadosofá para o mar abaixo. Ou ouvia música. Na verdade era apenas umrealejo ou algum homem gritando na rua. Mas “Lindo!” costumavaexclamar,easlágrimascorriampelasfaces,oqueparaelaeraacoisamaispavorosa de todas, ver um homem como Septimus, que tinha combatido,que era corajoso, chorando. E icava deitado ouvindo até que de repentegritavaqueestavacaindo,caindo,entreaschamas!Elachegouaprocuraras chamas, tão vívido era. Mas não havia nada. Estavam sozinhos noquarto. Era um sonho, dizia-lhe, e assim inalmente o acalmava, mas àsvezeselaficavaassustadatambém.Suspiravaenquantocosturava.Seususpiroeraternoeencantador,comooventonamataaoanoitecer.

Ora pousava a tesoura; ora se virava para pegar alguma coisa na mesa.Uma leve mexida, uma leve amassada, uma leve pancadinha construíamalgumacoisaalinamesaàqualestavacosturando.Porentreoscíliospodiaver seu vulto borrado; seu corpo miúdo escuro; o rosto e as mãos; osmovimentos até a mesa, para pegar um carretel ou procurar (tinhatendênciadeperder as coisas) a seda.Estava fazendoumchapéupara ailha casada de Mrs. Filmer, chamada – ele tinha esquecido como sechamava.–ComosechamaafilhacasadadeMrs.Filmer?–perguntou.– Mrs. Peters – disse Rezia. Estava com medo que icasse pequeno

demais, disse segurando-o de frente. Mrs. Peters era graúda; mas nãogostavadela.ErasóporqueMrs.Filmertinhasidotãoboacomeles–“Medeuuvashojedemanhã”,disse–queReziaqueriafazeralgumacoisaparamostrarqueestavamagradecidos.Tinhaentradonasalanaoutranoiteeencontrou Mrs. Peters, que achava que eles estavam fora, tocando ogramofone.– Verdade? – perguntou ele. Estava tocando o gramofone? Estava; ela

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tinhacontadoparaelenaquelahora;tinhaencontradoMrs.Peterstocandoogramofone.Ele começou a abrir os olhos com muito cuidado, para ver se havia

realmente um gramofone ali. Mas as coisas reais – as coisas reais eramexcitantes demais. Precisava ter cuidado. Não iria enlouquecer. Primeiroolhou as revistas demoda na prateleira de baixo, então gradualmente ogramofone com a boca verde. Nada podia ser mais de inido. E então,reunindo coragem, olhou o aparador; o prato de bananas; a gravura darainhaVitória e o príncipe consorte; na cornija da lareira, como vaso derosas. Nenhuma dessas coisas se mexia. Todas estavam paradas; todaseramreais.–Elatemumalínguamaldosa–disseRezia.–OqueMr.Petersfaz?–perguntouSeptimus.–Ahn–disseRezia,tentandolembrar.AchavaqueMrs.Filmertinhadito

queeracaixeiro-viajantedealgumaempresa.–AgoramesmoeleestáemHull–disseela.“Agoramesmo!”Disse issocomseusotaqueitaliano.Foicomoeladisse.

Semicerrou os olhos para enxergar apenas um pouco do rosto dela porvez, primeiro o queixo, então o nariz, então a testa, caso estivessedeformado ou tivesse alguma marca terrível. Mas não, ali estava ela,perfeitamente natural, costurando, com os lábios franzidos que asmulherestêm,aatitude,aexpressãomelancólica, quando estão costurando. Mas não havia nada terrível nele,assegurouasimesmo,olhandoumasegundavez,umaterceiravezparaorosto, asmãosdela,poisoquehaviadeassustadoroudesagradávelnelasentada ali à plena luz do dia, costurando? Mrs. Peters tem uma línguamaldosa.Mr.PetersestavaemHull.Porque,então,fúriaseprofecias?Porquefugir lageladoeproscrito?Porqueserlevadopelasnuvensatremere a soluçar? Por que buscar verdades e entregar mensagens se Reziaestavaalisentadaprendendoosal inetesnafrentedovestidoeMr.Petersestava em Hull? Milagres, revelações, agonias, solidão, quedas no mar,descidas entre as chamas, tudo se extinguira, pois, enquanto observavaRezia guarnecendoo chapéudepalhaparaMrs.Peters, tinha a sensaçãodeumacolchadeflores.–ÉpequenodemaisparaMrs.Peters–disseSeptimus.Era a primeira vez em dias que ele estava falando como de costume!

Claro que era – absurdamente pequeno, disse ela.MasMrs. Peters tinhaescolhidoaquele.Tirou-odesuasmãos.Dissequeeraumchapéudemicoderealejo.

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Como ela icou alegre com aquilo! Fazia semanas que não riam juntosassim, fazendoentresi troçadosoutros, comoumcasal.Oqueelaqueriadizer era que seMrs. Filmer entrasse, ouMrs. Peters ou qualquer outrapessoa,nãoiriaentenderdoqueelaeSeptimusestavamrindo.–Pronto–disseela,prendendocomal ineteumarosanumdosladosdo

chapéu.Nuncatinhasesentidotãofeliz!Nuncanavida!Mas assim icava ainda mais ridículo, disse Septimus. Agora a pobre

mulher ia parecer um leitão numa feira. (Ninguéma fazia rir tanto comoSeptimus.)Oque ela tinhano cestode costura?Tinha itas e contas, borlas, lores

arti iciais. Despejou-as em cima da mesa. Ele começou a juntar coresavulsas – pois embora ele não tivessemão jeitosa, não conseguisse fazersequer um embrulho, tinha um olho maravilhoso, e muitas vezes estavacerto,àsvezesabsurdo,claro,masàsvezesmaravilhosamentecerto.–Elateráumbelochapéu!–murmuroupegandoumacoisinhaeoutra,

Rezia ajoelhada ao lado, espiando por cima de seu ombro. Agora estavapronto – quer dizer, a montagem; ela devia dar os pontos. Mas tivessemuito,muitocuidado,disseele,paradeixarbemdojeitoqueeletinhafeito.Então sepôs a costurar.Enquanto costurava, elepensou, faziaumsom

como uma chaleira na grelha; borbulhando, murmurando, sempreocupada, os dedinhos a ilados e irmes en iando e empurrando; a agulhafaiscando reta. O sol podia chegar e ir embora, nas borlas, no papel deparede, mas ele ia esperar, pensou, esticando os pés, olhando a meiaenroladanapontadosofá;iaesperarnesselugaraquecido,nesserecantodearparado,aoqualàsvezesagentechegaaoanoitecernafímbriadeumbosque,quando,devidoaumadepressãonosolooualgumadisposiçãodasárvores (é preciso ser cientí ico acima de tudo, cientí ico), o calor semantémeoarbateemnossafacecomoaasadeumpássaro.–Aquiestá–disseRezia,girandoochapéudeMrs.Petersnapontados

dedos. – Por ora está bom. Mais tarde... – a frase sumiu pingapingando,comoumbatoquecontentedeestargotejando.Eramaravilhoso.Nuncaeletinhafeitonadaquelhedessetantoorgulho.

Eratãoreal,eratãoconcreto,ochapéudeMrs.Peters.–Vejasó–disseele.Sim, ela sempre icaria feliz em ver aquele chapéu. Ele tinha voltado a

serquemera, tinhadado risadas.Tinham icado juntosa sós.Ela sempreiriagostardaquelechapéu.Elefalouqueexperimentasse.–Mas devo icar tão esquisita! – exclamou, correndo para o espelho e

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olhandoprimeirodeumlado,depoisdooutro.Entãotirou-odenovonumsupetão,poisalguémbateuàporta.SeriaSirWilliamBradshaw?Jáestavamandandoalguém?Não!eraapenasameninacomojornalvespertino.Então aconteceu o que sempre acontecia – o que acontecia todas as

noitesnavidadeles.Amenina icouchupandoopolegaràporta;Reziasepôsdejoelhos;Reziaarrulhouedeuumbeijo;Reziatirouumsaquinhodedoces da gaveta damesa. Pois era assimque sempre acontecia. Primeiroumacoisa,depoisoutra.Assimelaconstruía,primeiroumacoisaedepoisoutra.Dançando,saltandopelasalaláforamasduas.Elepegouojornal.OSurreytinhaperdido,leu.Haviaumaondadecalor.Reziarepetiu:oSurreytinhaperdido.Haviaumaondadecalor,incluindoissonabrincadeiracoma neta de Mrs. Filmer, ambas rindo, falando ao mesmo tempo, nabrincadeira delas. Estava muito cansado. Estava muito feliz. Ia dormir.Fechouosolhos.Mas logoquedeixoudeenxergarqualquercoisaossonsdabrincadeira icarammais fracosemaisestranhosepareciamgritosdegenteprocurandosemencontrar,passandoadianteeseafastandomaisemais.Perderam-no!Despertounumterror.Oqueviu?Opratodebananasnoaparador.Não

havia ninguém ali (Rezia tinha levado a menina à mãe; era hora dedormir).Era isso:estarsozinhoparasempre.Estefoiodestinoanunciadoem Milão quando entrou na sala e viu as moças cortando moldes deentretelacomsuastesouras;estarsozinhoparasempre.Estavasozinhocomoaparadoreasbananas.Estavasozinho,expostono

altodessaeminênciadesolada;estendido–masnãonotopodeumacolina;nãonumrochedo;nosofádasaladeestardeMrs.Filmer.Easvisões,osrostos, as vozes dos mortos, onde estavam? Havia um biombo na frentedele, com juncos negros e andorinhas azuis. Onde antes tinha vistomontanhas, onde tinha visto rostos, onde tinha visto beleza, havia umbiombo.–Evans!–gritou.Nãohouveresposta.Umratoguinchou,ouumacortina

farfalhou.Eramasvozesdosmortos.Paraelerestavamobiombo,obaldede carvão, o aparador. Iria encará-los, o biombo, o balde de carvão e oaparador...masReziairrompeunasalatagarelando.Tinha chegado uma carta. Os planos de todos tinhammudado. No im

Mrs.Filmernãopoderia irparaBrighton.NãohaviatempodeavisarMrs.Williams,erealmenteReziaachavaaquilomuito,muitoaborrecido,quandoseuolharcaiunochapéuepensou...talvez...seela... izesseumpouquinho...Suavozseextinguiunumamelodiacontente.

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–Ohdanada!–exclamou(eraumabrincadeiradeles,eraapragadela);a agulha tinha se quebrado. Chapéu, menina, Brighton, agulha. Elaconstruía;primeiroumacoisa,entãooutra,iaconstruindo,costurando.Ela queria que ele dissesse se mudando a rosa o chapéu melhorava.

Sentounapontadosofá.Agoraestavamplenamentefelizes,dissederepente,pousandoochapéu.

Pois agora podia lhe dizer qualquer coisa. Podia dizer o que lhe viesse àcabeça. Foi quase a primeira coisa que tinha sentido em relação a ele,naquelanoiteno café quando entrou com seus amigos ingleses. Ele tinhaentrado,comalgumatimidez,olhandoaoredor,eaopendurarseuchapéutinha caído. Isso ela lembrava. Sabia que era inglês, embora não umdaquelesinglesesrobustosquesuairmãadmirava,poissemprefoimagro;mas tinhaumbelo frescor;e comonarizcomprido,osolhosbrilhantes,ojeito de sentar um pouco encurvado, ele lhe parecia, tinha dito muitasvezes, um jovem falcão, naquela primeira noite em que o viu, quandoestavam jogando dominó, e ele entrou – um jovem falcão, mas com elasempre muito gentil. Nunca o vira bravo ou bêbado, apenas às vezessofrendocomessaguerraterrível,masmesmoassim,quandoelaentrava,ele punha tudo aquilo de lado.Qualquer coisa, qualquer coisa domundo,qualquer pequeno aborrecimento no trabalho, qualquer coisa quequisessecomentarelalhedizia,eeleentendiaimediatamente.Nemmesmosuafamíliaeraassim.Sendomaisvelhodoqueelaesendotãointeligente–como era sério, querendo que ela lesse Shakespeare antes de conseguirsequer lerumahistorinhainfantileminglês!–sendotãomaisexperiente,elepodiaajudá-la.Eela,também,podiaajudá-lo.Mas agora esse chapéu. E depois (estava icando tarde) Sir William

Bradshaw.Ficoucomasmãosnacabeça,esperandoqueeledissessesegostavaou

não do chapéu, e enquanto estava sentada ali, esperando, olhando parabaixo, ele podia sentir o espírito dela, como um pássaro, caindo de galhoem galho, e sempre pousando muito irme; podia seguir seu espírito,enquanto ela sentava ali numadaquelasposesdescontraídas e relaxadasquelhevinhamnaturalmente,e,aqualquercoisaqueeledissesse,elalogosorria,comoumpássaropousandofirmecomtodasasgarrasnoramo.Mas ele lembrava. Bradshaw disse: “os seres mais queridos não são

adequadosparanósquandoestamosdoentes”.Bradshawdissequedeviaaprenderarepousar.Bradshawdissequedeviamficarseparados.“Devia”,“devia”,porque“devia”?QuepodertinhaBradshawsobreele?–QuedireitotemBradshawdemedizer“deve”?–perguntou.

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–Éporquevocêfalouemsematar–disseRezia.(Felizmente,agoraelapodiadizerqualquercoisaaSeptimus.)Então estava no poder deles!Holmes e Bradshaw tinhampartido para

cimadele!Abestacomasnarinasvermelhasestavafarejandoemtodososlocais secretos! Podia dizer “deve”! Onde estavam seus papéis? as coisasquetinhaescrito?Ela lhetrouxeseuspapéis,ascoisasqueeletinhaescrito,ascoisasque

ela tinha escrito para ele. Despejou-as em cima do sofá. Olharam juntos.Diagramas, desenhos, pequenos homens emulheres brandindo paus nosbraços,comasas–eramasas?–nascostas;círculostraçadoscommoedasmenores emaiores –o sol e as estrelas; precipícios ziguezagueantes comalpinistas subindo amarrados namesma corda, exatamente como facas egarfos; trechosdemarcomrostinhosrindoacimadoquepareciamtalvezserondas:omapadomundo.Queime-os!exclamouele.Agoraosescritos;que os mortos cantam atrás dos arbustos de azaleias; odes ao Tempo;conversas com Shakespeare; Evans, Evans, Evans – suas mensagensdentre osmortos; não cortar árvores; contar ao primeiro-ministro. Amoruniversal:osignificadodomundo.Queime-os!exclamouele.MasReziapôsasmãosemcima.Algunserammuitobonitos,elaachava.

Iaamarrá-los(poisnãotinhaenvelope)comumafitadeseda.Mesmo que o levassem, disse ela, iria com ele. Não podiam separá-los

contraavontadedeles,disseela.Ajeitando-os pelas beiradas para icar retos, ela recolheu os papéis e

amarrou o maço quase sem olhar, sentada perto, sentada ao lado dele,pensou, como se estivesse com todas as suas pétalas abertas. Era umaárvoreflorindo;eporentreseusramosfitavaorostodeumlegislador,quehavia alcançadoum santuário onde ela não temia ninguém; nemHolmes;nem Bradshaw; um milagre, um triunfo, o maior e derradeiro.Cambaleante viu-a subir a escada aterrorizante, carregando Holmes eBradshaw, homens que nunca pesavam menos de setenta e três quilos,quemandavamasesposasàcorte,homensqueganhavamdezmilporanoe falavamemproporção; que divergiamnos vereditos (poisHolmesdiziaumacoisa,Bradshawoutra),enoentantoeramjuízes;queembaralhavama visão e o aparador; não viam nada claro e no entanto decidiam, noentantopuniam.Sobreeleselatriunfou.– Pronto! – disse. Os papéis estavam amarrados. Ninguém ia mexer

neles.Iaguardá-los.E, disse ela, nada iria separá-los. Sentou ao lado dele e o chamou pelo

nomedaquelefalcãooucorvoque,sendotraquinasegrandedestruidorde

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lavouras,eraprecisamenteele.Ninguémpoderiasepará-los,disseela.Então levantou para ir ao quarto e preparar as coisas deles, mas

ouvindovozesnoandardebaixoepensandoque talvez fossedr.Holmesemvisita,desceucorrendoparaimpedirquesubisse.Septimuspodiaouvi-lafalandocomHolmesnaescada.–Minhacarasenhora,venhocomoamigo–diziaHolmes.–Não.Nãovoudeixarquevejameumarido–disseela.Podia vê-la, como uma pequena galinha, com as asas estendidas

barrandoapassagemdele.MasHolmesperseverava.–Minhacarasenhora,permita-me...–disseHolmes,afastando-adelado

(Holmestinhaumaconstituiçãovigorosa).Holmesestavasubindoaescada.Holmesiairromperpelaporta.Holmes

iadizer:“Umacrise,hein?”.Holmesiapegá-lo.Masnão;nemHolmes;nemBradshaw.Levantandoa cambalear,de fato saltandonumpéedepoisnooutro, considerou a bela faca de pão lisa de Mrs. Filmer com “Pão”entalhadonocabo.Ah,masnãosedeviaestragá-la.Ogás?Masagoraeratardedemais.Holmesestavavindo.Navalhapoderiausar,masRezia,quesemprefaziaaqueletipodecoisa,tinhaguardado.Restavaapenasajanela,a grande janela da pensão de Bloomsbury; a questão cansativa,problemática e um tantomelodramática de abrir a janela e se atirar porela. Era a ideia de tragédia deles, não sua nem de Rezia (pois ela estavacomele).HolmeseBradshawgostavamdaquele tipodecoisa. (Sentounoparapeito.)Masiaesperaratéoúltimoinstante.Nãoqueriamorrer.Avidaera boa. O sol, quente. Afora os seres humanos? Descendo a escada emfrenteumvelhoparoueofitou.Holmesestavaàporta.– Isso é para você! – exclamou e se arremessou vigorosamente,

violentamentesobreasgradesdaáreadeMrs.Filmer.–Ocovarde!–gritoudr.Holmes,irrompendopelaporta.Reziacorreuà

janela,viu;entendeu.Dr.HolmeseMrs.Filmerseabalroaram.Mrs.Filmerpegouapontadoaventalefezcomqueelacobrisseosolhosatéoquarto.Houveumagrandecorrerianasescadas.Dr.Holmesentrou–brancofeitoum lençol, tremendodecimaabaixo, comumcoponamão.Eladevia sercorajosa e tomaralguma coisa, disse ele (Oqueera?Algodoce), pois seumarido estava horrivelmentemachucado, não ia recuperar a consciência,ela não devia vê-lo, devia ser poupada ao máximo possível, teria oinquérito para enfrentar, pobre moça. Quem poderia ter previsto? Umimpulsorepentino,ninguémtinhaamenorculpa(disseeleaMrs.Filmer).Eporquediabosfezaquilo,dr.Holmesnãoconseguiaimaginar.Parecia-lhe enquanto bebia aquela coisa doce que estava abrindo

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grandes janelões, saindo para algum jardim. Mas onde? O relógio estavabatendo – uma, duas, três: como era sensato o som; comparado a todosesses sussurros e baques surdos; como o próprio Septimus. Estavaadormecendo.Maso relógio continuoubatendo,quatro, cinco, seis, eMrs.Filmer abanando o avental (não iam trazer o corpo aqui dentro, iam?)parecia fazer parte daquele jardim; ou uma bandeira. Uma vez ela tinhavistoumabandeiraondulandodevagarnummastroquandoestevecomatia em Veneza. Assim eram saudados os homens mortos em batalha, eSeptimus tinha atravessado a guerra. Suas lembranças eram na maioriafelizes.Ela pôs o chapéu e correu pelos trigais – onde podia ter sido? – até

alguma colina, em algum lugar perto domar, pois havia barcos, gaivotas,borboletas;sentaramnumpenhasco.EmLondres,também,lásesentavame,meioentresonhos,veio-lhepelaportadoquartoosomdachuvacaindo,sussurros, agitações entre espigas secas, a carícia do mar, como lheparecia, escavando-os em sua concha arqueada e murmurando a eladeitada na praia, espargindo-se, sentia, como uma lorada esvoaçantesobrealgumatumba.–Elemorreu–dissesorrindoparaapobrevelhaqueavelavacomseus

cândidos olhos azul-claros itos na porta. (Não iam trazê-lo aqui dentro,iam?) Mas Mrs. Filmer reagiu. Oh não, oh não! Já o estavam levandoembora.Nãodeveriamavisá-la?Umcasaldeveria icarjunto,pensavaMrs.Filmer.Mastinhamdefazercomoomédicodisse.–Deixe-adormir–dissedr.Holmes,sentindo-lheopulso.Elaviuolargo

contornoescurodeseucorpocontraajanela.Entãoaqueleeradr.Holmes.

Umdostriunfosdacivilização,pensouPeterWalsh.Éumdostriunfosdacivilização, enquanto soava a pequena sineta da ambulância. Rápida,asseada, a ambulância corria para o hospital, tendo recolhidoinstantaneamente, humanitariamente, algum pobre coitado; alguémgolpeadonacabeça,derrubadopeladoença,atropeladotalvezumoudoisminutosatrásnumdessescruzamentos,comopodiaaconteceraqualquerum.Issoeracivilização.Impressionava-ovoltandodoOriente–ae iciência,a organização, o espírito comunitário de Londres. Toda carroça oucarruagemseafastavadeladoporcontaprópriaparadeixaraambulânciapassar. Talvez fosse mórbido; ou não seria pelo contrário tocante, orespeito que mostravam por essa ambulância com a vítima dentro –homensafobadosseapressandodevoltaaolar,porémmomentaneamentepensando à passagem dela em alguma esposa; ou possivelmente como

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seriafácilquefossemelesmesmosaestarali,estendidosnumamacacomum médico e uma enfermeira... Ah, mas icar pensando era mórbido,sentimental, a gente logo começava a evocar médicos, cadáveres; umapequena centelha de prazer, uma espécie de volúpia, também, diantedaquela impressão visual, era um alerta para não prosseguir mais comaqueletipodecoisa–fatalparaaarte,fatalparaaamizade.Verdade.Enoentanto, pensou Peter Walsh, enquanto a ambulância virava a esquina,emboraapequenasinetase izesseouvirnaoutraruaeaindaadianteaoatravessar a Tottenham Court Road, retinindo constantemente, tal é oprivilégio da solidão; na privacidade a pessoa pode fazer o que quiser.Podiachorarseninguémvisse.Tinhasidoacausadesuaperdição–essasuscetibilidade – na sociedade anglo-indiana; não chorar, ou rir, na horacerta.Tenhoissoemmim,pensouparandoaoladodacaixadocorreio,queagora podia se dissolver em lágrimas. Por quê, só os céus sabem.Provavelmente alguma espécie de beleza, e o peso do dia, o qual, acomeçar por aquela visita a Clarissa, o esgotara com seu calor, suaintensidade e o gotejar de uma impressão após a outra caindo naqueleporão onde paravam, profundas, escuras, e ninguém jamais saberia. Emparteporessarazão, seusigilo, completoe inviolável,avida lhepareceraum jardim desconhecido, cheio de curvas e cantos, surpreendente, sim;realmenteespantosos, essesmomentos;maisumseaproximandodeleaoladoda caixade correio na frente doBritishMuseum,mais umdaquelesmomentos em que as coisas se juntavam; essa ambulância; e a vida e amorte.Eracomosefossesugadoparacima,paraalgumtetomuitoaltoporaquela onda de emoção, e o resto de si, como uma praia espargida deconchas brancas, icasse nu. Tinha sido a causa de sua perdição nasociedadeanglo-indiana–essasuscetibilidade.UmavezClarissa, indocomeleaalgum lugarnosegundoandardeum

ônibus,Clarissapelomenosàsuper íciecomovendo-setão facilmente,oraemdesespero,oracomamaioralegria,puravibraçãonaquelesdiasetãoboacompanhia,apontandopequenascenas,palavras,pessoasbizarrasdoaltodeumônibus,poiscostumavamexplorarLondresevoltarcomsacolasrepletas de preciosidades do mercado das pulgas – Clarissa tinha umateorianaquelesdias–tinhammontesdeteorias,sempreteorias,comotêmos jovens.Eraparaexplicarosentimentode insatisfaçãoque tinham;nãoconhecer as pessoas; não ser conhecidos. Pois como poderiam seconhecer? As pessoas se encontravam todos os dias; depois não se viampor seis meses, ou por anos. Era insatisfatório, concordavam, como aspessoaspoucoseconheciam.Maseladisse,sentadosnoônibussubindoa

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Shaftesbury Avenue, ela se sentia em todas as partes; não “aqui, aqui,aqui”;ebateunoencostodoassento;masemtodasaspartes.FezumgestoparaaShaftesburyAvenue.Elaeratudoaquilo.Entãoparaconhecê-la,oua qualquer um, deviam-se procurar as pessoas que os completavam; emesmooslugares.Tinhaa inidadesestranhascomgentecomquemnuncatinhafalado,algumamulhernarua,algumhomematrásdeumbalcão–emesmo árvores ou celeiros. Aquilo terminou numa teoria transcendentalque, com seu horror àmorte, lhe permitia crer ou dizer crer (apesar detodo o seu ceticismo) que, sendo nossas aparições, a parte de nós queaparece, tãomomentâneas comparadas à outra, à parte nossa que não évista e que se espraia amplamente, a parte não vista poderia sobreviver,serrecuperadadealgumamaneiraestandoainda ligadaaestaouàquelapessoa, ou mesmo frequentando certos lugares, após a morte. Talvez –talvez.Revendo aquela longa amizade de quase trinta anos sua teoria

funcionava até agora. Breves, cortados, dolorosos que tivessem sido seusencontrosefetivos,esomandosuasausênciaseinterrupções(estamanhã,por exemplo, entrou Elizabeth, como uma potranca de longas pernas,bonita, calada, bem na hora em que estava começando a falar comClarissa),oefeitodelessobresuavidaeraimensurável.Haviaummistérionaquilo. Recebia-se um grãozinho a iado, agudo, incômodo – o encontroefetivo; não raro horrivelmente doloroso;mesmo assim, na ausência, noslocais mais improváveis, ele loria, se abria, desprendia seu perfume, sedeixavatocar,provar,permitiaqueseolhasseemtorno,secaptassetodaasensaçãodacoisaeseentendesse,depoisdepassaranosesquecido.Assimela tinha vindo a ele; a bordo do navio; nos Himalaias; sugerida pelascoisasmais díspares (tal como Sally Seton, pateta generosa, entusiástica!pensou nele ao ver hortênsias azuis). Ela o in luenciara mais do quequalquer outra pessoa que conhecia. E sempre lhe aparecendo dessamaneira sem que ele quisesse, calma, com ar de dama, crítica; ouarrebatadora,romântica,evocandoalgumcampooucolheita inglesa.Via-ageralmente no campo, não em Londres. Uma cena após a outra emBourton...Tinha chegado ao hotel. Percorreu o saguão, com seus conjuntos de

poltronasesofásavermelhados,suasplantasdefolhasemriste,parecendoressequidas.Pegouachavenoquadrodaportaria.A jovematendente lheentregou algumas cartas. Subiu as escadas – viu-a mais em Bourton, noverãopassado, quandopassou lá uma semana, oumesmoumaquinzena,comofaziamaspessoasnaquelesdias.Primeironoaltodealgumacolinalá

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icava ela, asmãos segurando os cabelos, a capa esvoaçando, apontando,gritando para eles – Via o Severn lá em baixo. Ou num bosque,esquentandoachaleira–muitodesajeitadacomosdedos;ovaporfazendomesurasaosoprarnorostodeles;seurostinhorosadoseentremostrando;pedindoáguaaumavelhanumacabana,queveioatéaportaparavê-lospartir.Iamsempreapé;osoutros,dirigindo.Elaachavaumtédioandardecarro, detestava todos os animais, exceto aquele cachorro. Percorriamquilômetrosde estradas. Paravapara se orientar, guiava-ode volta a umpontoatravessandoocampo;eotempotododiscutiam,falavamdepoesia,falavamdaspessoas,falavamdepolítica(naépocaeraumaradical);nuncanotando coisa alguma exceto quando parava, exclamava a uma paisagemou a uma árvore, e fazia-o olhar também; e então retomavam,atravessando campos de restolho, ela indo à frente, comuma lor para atia, nunca se cansandode andar apesardo corpodelicado; até chegaremdevoltaaBourtonnoanoitecer.Então,depoisdojantar,ovelhoBreitkopfabria o piano e cantava sem voz nenhuma, e eles se afundavam naspoltronas,tentandonãorir,massempreestourandoerindo,rindo–rindopor nada. Achavam que Breitkopf não veria. E então de manhã,saracoteandoparacimaebaixocomoumalavandiscanafrentedacasa...Oh era uma carta dela! Esse envelope azul; era a letra dela. E teria de

ler. Aqui estava mais um daqueles encontros, fadados a ser dolorosos!“Comofoiencantadorvê-lo.Tinhadelhedizer.”Sóisso.Mas icou transtornado. Irritado. Queria que não tivesse escrito. Vindo

coroar seus pensamentos, era como uma cutucada nas costelas. Por queela não o deixava em paz? A inal, tinha se casado com Dalloway e viviaplenamentefelizcomeleessesanostodos.Esses hotéis não são consoladores. Longe disso. Inúmeras pessoas

tinhampenduradoseuschapéusnessesganchos.Atéasmoscas,seagentefosse pensar, tinham pousado no nariz de outras pessoas. Quanto àlimpezatãoostensiva,nemera limpeza,eramaisnudez, frigidez;algoquetinha de ser. Alguma árida matrona fazia suas rondas ao amanhecercheirando,inspecionando,fazendoascriadasdenarizazuladoesfregaremincansavelmente,comoseopróximohóspede fosseumapostadecarneaserservidanumatravessaimpecavelmentelimpa.Paradormir,umacama;para sentar, umapoltrona;paraescovarosdentes ebarbearo rosto,umcopo, um espelho. Livros, cartas, pijamas, se espalhavam naimpessoalidadedosestofadoscomoimpertinências incongruentes.EeraacartadeClarissaqueo faziaenxergar tudo isso. “Encantadorvê-lo.Tinhadefalar!”Dobrouopapel;afastou-odelado;nadaofariareler!

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Paraqueaquelacartalhechegasseàsseishoras,eladeviatersentadoeescrito logo que ele saiu; tinha posto o selo; tinha mandado alguém aocorreio.Era,comodizem,bemojeitodela.Ficoutranstornadacomavisitadele.Tinhasentidoprofundamente;poruminstante,aobeijaramãodele,devia ter lamentado, até invejado, possivelmente lembrado (pois viu suaexpressão) algo que ele havia dito – que mudariam o mundo se ela secasassecomele,talvez;aopassoqueagoraeraisso;eraameia-idade;eraa mediocridade; então obrigou-se com sua vitalidade indômita a afastartudoaquilodelado,poishavianelaum iodevidadeuma irmeza,deumaresistência, de um poder de superar os obstáculos e permitir queprosseguisse triunfante como ele nunca tinha visto igual. Sim; mas logoviriaumareaçãodepoisqueelesaiudasala. Ia lamentar tremendamentepor ele; iria pensar o que podia fazer para agradá-lo (sempre aquémdaúnicacoisa)epodiavê-lacomaslágrimascorrendopelasfacesindoatéaescrivaninhaetraçandorápidoaquelaúnicalinhaqueeleiriaencontraràsuaespera...“Encantadorvê-lo!”Eerasincera.PeterWalshagoratinhadesamarradoasbotas.Mas não teria dado certo, o casamento deles. A outra coisa, a inal, veio

muitomaisnaturalmente.Era estranho; era verdade; muita gente sentia isso. Peter Walsh, que

tinhasesaídoapenasmedianamente,ocuparaoscargosusuaisadequados,era apreciado, mas tido como um pouco excêntrico, dava-se ares – eraestranho que ele tivesse, sobretudo agora que era grisalho, um arsatisfeito;umardereserva.Eraissoqueofaziaatraenteàsmulheres,quegostavamdasensaçãodequenãoeratotalmenteviril.Haviaalgoincomumemtornodele,ouportrásdele.Podiaserquefosselivresco–nuncavinhaemvisitasempegarolivrodamesa(agoraestavalendo,comoscadarçosarrastando no chão), ou que fosse um cavalheiro, o que se mostrava nojeito como batia as cinzas do cachimbo e na maneira como tratava asmulheres. Pois era encantador e totalmente ridículo com que facilidadequalquermoçasemumpingodejuízoeracapazdefazê-locomernapalmadamão.Masporcontaeriscopróprio.Querdizer,emboraelepudessesersempre tão fácil, e de fato com sua jovialidade e boa educação umacompanhiafascinante,eraapenasatécertoponto.Eladiziaalgo–não,não;elelogopercebia.Nãoaceitariaaquilo–não,não.Epodiafalaremvozaltae se sacudir e gargalhara algumapiadaentrehomens.Eraomelhor juizdeculináriana Índia.Erahomem.Masnãoo tipodehomemquesedeviarespeitar – o que era uma bênção; não como o major Simmons, porexemplo; de maneira nenhuma, pensava Daisy quando, apesar dos dois

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filhospequenos,punha-seacompará-los.Tirouasbotas.Esvaziouosbolsos.ComocanivetesaiuumafotodeDaisy

na varanda; Daisy toda de branco, com um fox terrier no colo; muitoencantadora, muito morena; a melhor foto sua que tinha visto. A coisasurgiu, a inal, tão naturalmente; muito mais naturalmente do que comClarissa. Sem bulha. Sem confusão. Semmelindres nem amolações. Tudotranquilo. E amoçamorena, adoravelmente bonita na varanda exclamou(podiaouvi-la)Claro, claroque lhedaria tudo! gritou (não tinhaomenorsensodediscrição),tudooqueelequisesse!gritou,correndoparaele,semsepreocupar comquemestivesseolhando.E tinhaapenasvinteequatroanos.Etinhadoisfilhos.Orapois,pois!Pois tinhamesmo semetido numa enrascada na idade dele. E isso lhe

ocorriaquando forçosamenteacordavaànoite.Esesecasassem?Poreleestaria muito bem, mas e ela? Mrs. Burgess, boa amiga que não erafofoqueira,àqualtinhacon idenciado,achavaqueessaausênciadeleindoàInglaterra,apretextodeveralgunsadvogados,poderiaservirparaqueDaisyreconsiderasse,pensassenoquesigni icavaaquilo.Aquestãoeraaposição dela, disseMrs. Burgess; a barreira social; a renúncia aos ilhos.Uma hora dessas seria uma viúva com um passado vagueando pelossubúrbios ou, mais provável, inclassi icável (você sabe, disse ela, comoicam essas mulheres, pintadas demais). Mas PeterWalsh reagiu a tudoaquilo. Ainda não pretendia morrer. De qualquer forma, ela precisavadecidir por si; julgar por si, pensou ele, andando de meias pelo quarto,alisandoacamisasocial,poistalvezfosseàfestadeClarissa,outalvezfosseaalgumteatro,ou talvez icasse lendoumlivromuito interessanteescritoporumsujeitoqueconheciadeOxford.Esede fatoseaposentasse,eraoqueiriafazer–escreverlivros.IriaaOxfordeescarafunchariaaBodleian.Em vão a moça morena, adoravelmente bonita corria até a ponta doterraço; em vão acenava-lhe a mão; em vão exclamava que não seimportava minimamente com o que as pessoas diziam. Ali estava ele, ohomemque para ela era tudo nomundo, o cavalheiro perfeito, o homemfascinante,oserilustre(esuaidadenãofaziaamenordiferençaparaela),andandodemeiasnumquartodehotelemBloomsbury,sebarbeando,selavando, continuando, enquanto pegava um caneco, pousava a navalha, aescarafuncharaBodleianeencontraraverdadenumaouduaspequenasquestões que o interessavam. E icaria conversando com quem fosse, eentão passaria a se atrasar cada vez mais para o almoço, e faltaria aoscompromissos; e quandoDaisy, como fazia, fosse lhe pedir um beijo, nãoatenderia às expectativas (embora fosse genuinamente devotado a ela) –

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em suma, talvez fosse melhor, como disse Mrs. Burgess, que ela oesquecesse,ousimplesmente lembrassecomoeleeraemagostode1922,umafiguradepénocruzamentoaoentardecer,quesetornacadavezmaisdistanteconformeocabrioléseafasta, levando-asolidamenteinstaladanobanco traseiro, embora de braços estendidos. E conforme vê a iguradiminuir e desaparecer, ainda continua a gritar que faria qualquer coisanomundo,qualquercoisa,qualquercoisa,qualquercoisa...Elenuncasoubeoquepensavamosoutros.Eracadavezmaisdi ícilse

concentrar.Ficavaabsorto;ocupadocomseusprópriospensamentos;orasério, ora alegre; dependendo de mulheres, com o espírito ausente, ohumor oscilante, cada vez menos capaz (assim pensou enquanto sebarbeava) de entender por que Clarissa não poderia simplesmenteencontrarumalojamentoparaelesesergentilcomDaisy; introduzi-lanasociedade.Eaíelepoderia–poderiaoquê?poderiavagueare lanar(nomomento estava de fato empenhado em separar várias chaves, váriospapéis), investir e experimentar, icar em paz, em suma, bastando a simesmo;porémeraclaroqueninguémdependiatantodosoutroscomoele(abotoouocolete);tinhasidoestaacausadesuaperdição.Nãoconseguiaevitar os salões masculinos, gostava de coronéis, de golfe e de bridge,gostavaprincipalmentedoconvíviocomasmulheres,dadelicadezadesuacompanhia, da lealdade, da audácia, da grandeza em amar que, emborativesse seus reveses, pareciam-lhe (e o rosto moreno, adoravelmentebonitoestavaemcimadosenvelopes)tãoabsolutamenteadmiráveis,florestãoesplêndidasacrescernasuper íciedavidahumana,enoentantonãoconseguiaatenderàsexpectativas,sendosemprepropensoaenxergaraoredordascoisas(Clarissatinhaminadodefinitivamentealgumacoisanele),a se cansar commuita facilidadedadevoçãomuda e a querer variedadeno amor, embora fosse icar furioso caso Daisy amasse algum outro,furioso!poiseraciumento, incontrolavelmenteciumentopor índole.Sofriatormentos!Masondeestavaocanivete;orelógio;ossinetes;acarteira,eacarta de Clarissa que não ia reler mas gostava de lembrar, e a foto deDaisy?Eagoraaojantar.Estavamcomendo.Sentadosamesinhasentrevasos, com trajes formaisou informais, com

xales e bolsas ao lado, com o ar de falsa compostura, pois não estavamacostumadosa tantospratosno jantar;edecon iança,poispodiampagarpor ele; e de cansaço, pois tinham passado o dia todo percorrendoLondres, comprando, vendo os pontos turísticos; e com sua curiosidadenatural, pois olharam em torno e para cima quando o cavalheiro de boa

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aparênciaeóculoscomarosdetartarugaentrou;ecomsuaboanatureza,pois icariam contentes em fazer algum pequeno favor, como emprestarum horário de trens ou partilhar alguma informação útil; e seu desejo,pulsandoneles,percorrendo-ossubterraneamente,deestabeleceralgumaligação nem que fosse apenas o local de nascimento (Liverpool, porexemplo) em comum ou amigos com o mesmo nome; com seus olharesfurtivos,silênciosestranhosesúbitosretraimentosparao isolamentoeasbrincadeiras familiares; lá estavam sentados jantando quandoMr.Walshentroueocupouseulugaraumamesinhapertodacortina.Nãoporquetivesseditoalgumacoisa,poisestandosozinhosópoderiase

dirigir ao garçom; era seu jeito de olhar o cardápio, de apontar com oindicador algum vinho em particular, de se aproximar da mesa, de sededicarcomseriedade, semgula,ao jantar,que lheconquistouorespeitodeles;oqual,tendoseconservadomudodurantegrandepartedarefeição,encandeou-seàmesaondeestavamosMorrisquandoouviramMr.Walshdizer ao inal da refeição, “peras Bartlett”. Por que ele falou em tom tãocomedido,mascomtanta irmeza,comoardeumdisciplinadordentrodeseusdireitos que eram fundadosna justiça, nemo jovemCharlesMorris,nemCharlespai,nemMissElaine,nemMrs.Morrissabia.Masquandoeledisse“perasBartlett”,sentadosozinhoàmesa,sentiramquecontavacomoapoiodelesemalgumareivindicação legítima;erapaladinodeumacausaqueabraçaramimediatamente,demodoqueseusolhoscruzaramosdelecom solidariedade, e quando todos chegaram à sala de fumar aomesmotempo,tornou-seinevitávelumaconversaamenaentreeles.Nada muito profundo – apenas que Londres estava lotada; tinha

mudado em trinta anos; que Mr. Morris preferia Liverpool; que Mrs.Morris tinha ido à exposição de lores deWestminster, e que todos elestinham visto o príncipe de Gales. No entanto, pensou Peter Walsh,nenhuma famílianomundopode se compararaosMorris; absolutamentenenhuma; e as relações entre eles são perfeitas, e não se importam umpingo com as classes superiores, e gostam do que são, e Elaine está sepreparando para o negócio da família, e omenino ganhou uma bolsa deestudosemLeeds,eavelhadama(quetemmaisoumenosamesmaidadedele)temmaistrês ilhosemcasa;eelestêmdoiscarros,masMr.Morrisainda conserta botas nos domingos: é soberbo, é absolutamente soberbo,pensouPeterWalsh,balançando-seumpoucoparatráseparafrentecomseu copo de licor na mão entre as poltronas vermelhas felpudas e oscinzeiros, sentindo-se muito satisfeito consigo mesmo, pois os Morrisgostavam dele. Sim, gostavam de um homem que dizia “peras Bartlett”.

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Gostavamdele,podiasentir.Iria à festa de Clarissa. (Os Morris saíram; mas se encontrariam de

novo.) Iria à festa de Clarissa, porque queria perguntar a Richard o queestavam fazendona Índia – os trapalhões conservadores. E o que andamarmando?Emúsica...Ahsim,easimplesprosa.Poisestaéaverdadesobrenossaalma,pensouele,nossoser,quecomo

um peixe habita as profundezas dos mares e se arqueia entreobscuridadesparapassarentreasmassasdealgasgigantes,porespaçostremeluzentesdesol,avançandoparaoinescrutávelfrio,escuro,profundo;desúbitodisparaàsuper ícieebrincanasondasencrespadaspelovento;isto é, tem uma necessidade imperiosa de se roçar, de se atritar, de seincendiar,proseando.Oqueogovernopretendia–RichardDallowaydeviasaber–fazeremrelaçãoàÍndia?Comoocairdatardeestavamuitoquenteeosjornaleirospassavamcom

cartazesproclamandoemenormes letrasvermelhasquehaviaumaondade calor, colocaram-se cadeiras de vime à entrada do hotel e lá,bebericando, fumando, sentavam-se alguns cavalheiros. Peter Walsh sesentouali.Apessoapodiaimaginarqueodia,odialondrino,estavaapenascomeçando.Comoumamulherquetiraseuvestidoestampadoeoaventalbrancoparaseenfeitardeazulepérolas,odiasetrocava,tiravaostrastes,punha uma gaze, se trocava para a noite, e com o mesmo suspiro desatisfação que solta uma mulher, deixando cair as anáguas no chão, eletambém desprendia a poeira, o calor, a cor; o trânsito diminuía; osautomóveis,tinindo,dardejando,sesucediamàmarchalentaepesadadosfurgões;eaquiealientreadensafolhagemdaspraçaserguia-seumaluzintensa.Renuncio,pareciadizeratarde indando,enquantoempalideciaedesfalecia nas cúpulas e proeminências, recurvadas, pontiagudas, doshotéis, escritórioseblocosde lojas, estoudesfalecendo, começavaadizer,estoudesaparecendo,mas Londres não ia permitir, e avançava com suasbaionetasaocéu,prendia-a,obrigava-aasersuacompanheiradefesta.Pois a grande revolução do horário de verão de Mr. Willett tinha

ocorrido após a última visita de Peter Walsh à Inglaterra. O entardecerprolongadoeranovidadeparaele.Erainspirador,porém.Poisenquantoosjovenspassavamcomsuaspastasdedocumentos,numatremendaalegriade estar livres, e também com um orgulho silencioso de palmilhar estafamosa calçada, uma espécie de alegria, barata, sem valor, se se quiser,mas mesmo assim arrebatadora, coloria suas faces. E se vestiam bem;meias cor-de-rosa; belos sapatos. Agora teriam duas horas no cinema.Aguçava-os, re inava-os, essa luz azul amarelada do entardecer; e nas

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folhas do parque brilhava lúrida, lívida – como se tivessem mergulhadonas águas do mar – a silhueta de uma cidade submersa. Ele icouassombradopelabeleza;eraencorajadoratambém,poisenquantooanglo-indiano de retorno se sentava por direito (conhecia montes deles) noOriental Club recapitulando biliosamente a ruína do mundo, aqui estavaele, jovem como sempre; invejando aos jovens o verão da vida e todo oresto,econ irmandonaspalavrasdeumamoça,nosrisosdeumacriada–coisas intangíveis que não havia como pegar – sua impressão daquelamudançaem todaa acumulaçãopiramidalqueemsua juventudepareciairremovível. Havia exercido pressão, tinha acachapado, sobretudo asmulheres, como aquelas lores que a tia Helena de Clarissa costumavaprensar entre folhas de mata-borrão com um dicionário Littré por cima,sentada junto à lâmpada depois do jantar. Agora tinha morrido. Soube,Clarissa lhe contou, que perdera uma das vistas. Parecia tão adequado –umadasobras-primasdanatureza–queavelhaMissParryrecorresseaovidro. Morreu como um passarinho numa geada agarrado ao galho.Pertencia a uma época diferente, mas sendo tão completa, tão inteira,sempreavultarianohorizonte,brancacomogesso,elevada,comoumfarolmarcando alguma etapa de passagem nessa longa, longuíssima viagemaventurosa, nessa in indável – (procurou uma moeda para comprar umjornal e saber do jogo entre Surrey e Yorkshire; tinha estendido umamoedadessasmilhõesdevezes–Surreytinhaperdidooutravez)–nessain indávelexistência.Masocríquetenãoeraummerojogo.Ocríqueteeraimportante. Nunca deixava de ler sobre o críquete. Leu primeiro osresultadosentreasúltimasnotícias,depoisocalordodia;depoisumcasode assassinato. Ter feito as coisas milhões de vezes enriquecia, emborafossepossíveldizerquelhesremoviaasuper ície.Opassadoenriquecia,aexperiência também, e tendo gostado de uma ou duas pessoas, e assimtendoadquiridoopoderquefaltaaosjovens,depararaomeio,defazeroque se quer, de não se importar um tico com o que dizem as pessoas eproceder sem nenhuma grande expectativa (deixou o jornal na mesa esaiu), o que porém (e foi pegar o chapéu e a capa) não era totalmenteverdade em relação a ele, não hoje à noite, pois aqui estava ele sepreparando para ir a uma festa, em sua idade, na crença de que estavaprestesaterumaexperiência.Masqual?Abeleza,emtodocaso.Nãoabelezabrutadoolhar.Nãoabelezapurae

simples–aBedfordPlacedandonaRussellSquare.Aretaeovazio,claro;a simetriadeumcorredor;mas tambémas janelas acesas, umpiano, umgramofonetocando;umasensaçãodeprazeroculta,massurgindovezpor

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outraquando,pela janelasemcortina,pela janelaaberta,veem-segruposàmesa, jovens circulando devagar, conversas entre homens e mulheres,criadas olhando a rua ociosas (estranhos comentários faziam, depois determinaroserviço),meiassecandoemalgumabeiradaalta,umpapagaio,algumasplantas.Absorvente,misteriosa,dein initariqueza,estavida.Enagrande praça de onde os táxis arrancavam e guinavam tão rápido, haviacasaissedemorando,namorando,seabraçando,abrigadossobaramagemdeumaárvore; aquilo era comovente; tão silenciosos, tão absortos, que agente passava, discretamente, timidamente, como diante de algumacerimônia sagrada que seria um sacrilégio interromper. Aquilo erainteressante.Eassimatéaluzeoresplendor.Seusobretudoleveseabriaaovento,caminhavacomseuandardeuma

peculiaridade indescritível, inclinava-se um pouco para a frente,cambaleava de um lado e outro, com as mãos nas costas e os olhos umpouco ainda comode um falcão; cambaleava por Londres, rumandoparaWestminster,observando.Entãotodomundoestava jantandofora?Aquiumlacaioabriaasportas

para dar passagem a uma dama idosa de ar festeiro, com sapatos deivelas e trêsplumas roxasde avestruzno cabelo.Abriam-seportasparadamasembrulhadasfeitomúmiasemxales loridosdecoresvivas,damascoma cabeçadescoberta.E, emrespeitáveisquarteirões compequeninosjardins à frente e colunas de gesso ao fundo, apareciam mulhereslevemente envoltas, compentes no cabelo (tendo subido às pressas paraver as crianças); estando os homens à espera delas, com as capas seabrindo ao vento, e o motor dava a partida. Todos estavam saindo. Comtodasessasportasqueseabriam,adescidapelasescadas,omotordandoapartida,pareciaqueLondres inteiraembarcavaembotesancoradosnamargem, lançando-se às águas, como se toda a cidade lutuasse numafestança. E por Whitehall deslizavam, laminada de prata como parecia,deslizavamas aranhas, e tinha-se uma sensaçãodemosquitinhos voandoaoredordaslâmpadasvoltaicas;estavatãoquentequeaspessoas icavamparadas por ali conversando. E aqui em Westminster havia um juizaposentado, provavelmente, sentado com ar resoluto à porta de sua casatododebranco.Anglo-indianoprovavelmente.Eaquiumtumultodemulheresbrigando,embriagadas;aquiapenasum

policial e casas avultando, casas altas, casas com cúpulas, igrejas,parlamentos,eoapitodeumvapornorio,umgritooconublado.Masestaera a rua dela, esta, de Clarissa; táxis velozes viravam a esquina, comoágua nos píeres de uma ponte, reunindo-se ali, parecia-lhe, porque

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estavamtrazendoaspessoasàsuafesta,àfestadeClarissa.A torrente fria de impressões visuais agora lhe faltou como se o olhar

fosseumaxícaratransbordandoedeixandoorestoescorrerpelasparedesde porcelana sem registrar. O cérebro agora devia despertar. O corpoagoradeviasecontrair,entrandonacasa,nacasailuminada,ondeaportapermanecia aberta, onde os automóveis paravam e mulheres cintilantesdesciam; a alma devia se dispor bravamente a resistir. Abriu a grandelâminadocanivete.

Lucydesceu correndo as escadas a todapressa, depois deuma rápidaentradinhanasaladevisitasparaalisarumacapa,endireitarumacadeira,pararuminstanteesentirquequalquerumqueentrasseiriapensarqueasseio, que brilho, que belos cuidados, quando vissem a bela prata, osferros de cobre da lareira, as capas novas das cadeiras e as cortinas dechintz amarelo: avaliou cada peça; ouviu um vozerio; as pessoas já vindodojantar;tinhadeirvoando!O primeiro-ministro viria, disseAgnes: era o que tinha ouvido dizerem

na sala de jantar, disse ela, entrando com uma bandeja de taças. Teriaimportância, teria alguma importância, um primeiro-ministro amais ou amenos? Não fazia nenhuma diferença a essa hora da noite para Mrs.Walker entre os pratos, panelas, escorredores, frigideiras, galantinas defrango, sorveteiras, cascas de pão aparadas, limões, terrinas de sopa etigelas de pudim que, por mais que fossem lavadas na pia da área deserviço, pareciam se amontoar em cima dela, na mesa da cozinha, nascadeiras, enquanto o fogo ardia e rugia, as luzes elétricas brilhavam e aceia ainda estava por servir. A única coisa que ela sentiu foi que umprimeiro-ministro a mais ou a menos não fazia a menor diferença paraMrs.Walker.Asdamasjáestavamsubindoasescadas,disseLucy;asdamasestavam

subindo, uma a uma, Mrs. Dalloway vindo por último e quase sempremandandoalgumrecadoàcozinha,“MeuamoràMrs.Walker”foiumdelesuma noite. Na manhã seguinte reveriam os pratos – a sopa, o salmão; osalmão, Mrs. Walker sabia, como sempre mal assado, pois ela sempreicava nervosa com o pudim de creme e o deixava a Jenny; e assimacontecia, o salmão icava sempremal assado.Mas algumadamade belopenteadoejoiasdepratatinhadito,disseLucy,sobreaentrada,foimesmofeita em casa? Mas era o salmão que aborrecia Mrs. Walker, enquantobatia as tigelas sem parar e empurrava os tampadores e puxava ostampadoresno fogão;eveioumaexplosãode risoda salade jantar;uma

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voz falando; então outra explosão de riso – os cavalheiros se divertindodepois que as damas tinham se retirado. O tocai, disse Lucy, entrandonumacorrida.Mr.Dallowaytinhapedidootocai,dasadegasdoimperador,oTokayImperial.Ele passou pela cozinha. Por cima do ombro Lucy comentou que Miss

Elizabethestavaumencanto;nãoconseguiadespregarosolhosdela;comseu vestido cor-de-rosa, usando o colar queMr.Dalloway tinha lhe dado.Jenny que não esquecesse o cachorro, o fox terrier de Miss Elizabeth, oqual, como mordia, teve de icar trancado e podia, pensou Elizabeth,precisardealgumacoisa.Jennyquenãoesquecesseocachorro.MasJennynãoiasubircomtodasaquelaspessoasporlá.Jáhaviaumcarronaporta!Jáestavamtocandoacampainha–eoscavalheirosaindanasaladejantar,tomandotocai!Pronto, estavam subindo as escadas; aquele era o primeiro a chegar, e

agora viriam cada vez mais rápido, de modo que Mrs. Parkinson(contratadanasfestas)iadeixaraportadosaguãoentreaberta,eosaguãoicaria cheio de cavalheiros esperando ( icaram esperando, alisando ocabelo) enquanto as damas tiravam suas capas na saleta da passagem;onde Mrs. Barnet as ajudava, a velha Ellen Barnet, que esteve com afamíliadurantequarentaanosetodososverõesvinhaajudarasdamas,elembravaasmãesquandoerammeninas,eemboramuitodespretensiosade fatoapertavam-seasmãos;dizia “milady”muito respeitosamente,mastinha um jeito bem-humorado, olhando as jovens damas e sempre comgrande tato ajudando Lady Lovejoy, que estava com algumproblema emseucorpete.Enãopodiamdeixardesentir,LadyLovejoyeMissAlice,quelhes fora concedido algum pequeno privilégio em matéria de escova epenteporconheceremMrs.Barnet–“trintaanos,milady”,completouMrs.Barnet. As damas jovens não usavam ruge, disse Lady Lovejoy, quandoestavam em Bourton nos velhos tempos. E Miss Alice não precisava deruge, disse Mrs. Barnet, olhando-a carinhosamente. Ali se sentava Mrs.Barnet, na saleta do vestiário, afagando as peles, alisando os xalesespanhóis,arrumandoapenteadeiraesabendoperfeitamente,apesardaspelesedosenfeitesbordados,quaiseramdamas inasequaisnãoeram.Aqueridavelhota,disseLadyLovejoy, subindodevagaras escadas, a velhaamadeClarissa.EentãoLadyLovejoyseempertigou.“LadyeMissLovejoy”,disseaMr.

Wilkins (contratadonas festas). Ele tinha umporte admirável, quando securvava e se endireitava, curvava e se endireitava e anunciava comabsolutaimparcialidade“LadyeMissLovejoy...SirJohneLadyNeedham...

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MissWeld...Mr.Walsh”. Seu porte era admirável; sua vida familiar deviaser irrepreensível, exceto que parecia impossível que um ser de lábiosesverdeadosefacesescanhoadasfossealgumavezsepôraperdercomoaborrecimentodeterfilhos.–Queprazervê-lo!–diziaClarissa.Diziaissoatodos.Queprazervê-lo!

Estavaemseupiormomento–efusiva, insincera.Foiumgrandeerrovir.Deviater icadoemcasalendoseulivro,pensouPeterWalsh;deviateridoaummusical;deviaterficadoemcasa,poisnãoconhecianinguém.Ohcéus, iaserumfracasso;umfracassocompleto,sentiuClarissaatéa

medula dos ossos quando o caro velho lorde Lexham icou ali sedesculpandopelaesposaquetinhaapanhadoumresfriadona festaaoarlivre do Palácio de Buckingham. Podia ver Peter com o rabo do olho,criticando-a, ali, naquele canto. Por que, a inal, ela fazia essas coisas?Porque procurar os píncaros e arder numa fogueira? Tomara que aconsumisse mesmo! Que se izesse em cinzas! Melhor qualquer coisa,melhorbrandiratochaearremessá-laàterradoqueminguarede inharcomoumaEllieHenderson!EraextraordináriocomoPeteradeixavanesseestadosimplesmentevindoe icandonumcanto.Elefaziaenxergar-seasimesma; exagerar. Era idiota. Mas por que ele veio, então, apenas paracriticar? Por que sempre tomar, nunca dar? Por que não arriscar seupequenopontodevista?Estavaalivagueando,edeviairfalarcomele.Masnão tinha ocasião. A vida era isso – humilhação, renúncia. O que lordeLexhamestavadizendoeraquesuaesposanãoquisvestirsuaspelesparaafestaaoarlivreporque“minhaquerida,vocêsdamassãotodasiguais”–Lady Lexham tendo pelo menos setenta e cinco anos! Era um encantocomoosdoissemimavam,aquelevelhocasal.Realmentegostavadovelholorde Lexham.Realmente achava que era importante, aquela sua festa, esesentiapéssimaemsaberqueestavasaindotudoerrado,tudoum iasco.Qualquer coisa, qualquer explosão, qualquer horror era melhor do quegente vagueando à toa, se encorujandonum canto comoEllieHenderson,semnemseimportaremendireitarascostas.Suavementeacortinaamarelacomtodasasavesdoparaísoseenfunou

efoicomoseentrasseumarevoadadeasasnasalae logosaísse,eentãose desin lou. (Pois as janelas estavam abertas.) Havia ar encanado?perguntava-se Ellie Henderson. Ela era propensa a resfriados. Mas nãofaziamal se amanhãestivesse espirrando; eranasmoças comosombrosnus que ela pensava, ensinada como fora a pensar nos outros pelo paiidoso, um inválido, último vigário de Bourton,mas agora falecido; e seusresfriados nunca lhe atacavam o peito, nunca. Era nas moças que ela

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pensava,asmocinhascomseusombrosnus,elamesmasempretendosidomiúda, com cabelo ralo e corpo magro; embora agora, com mais decinquenta, uma luminosidade suave estivesse começando a transparecer,algo que se depurara sob a forma de distinção após anos de abnegação,mas ainda obscurecido, perpetuamente, por sua penosa atuação depobreza,seumedopânico,quebrotavadeumarendadetrezentaslibrasesuasituaçãodedesamparo(nãoganhavaumcentavo)eissoafaziatímidae a cada anomais desquali icada para encontrar gente bem-vestida quefazia esse tipo de coisa todas as noites da temporada, simplesmentedizendo a suas empregadas “vou usar isso e aquilo”, enquanto EllieHenderson saiu nervosa às pressas e comprou umas lores rosadasbaratas,meiadúzia,eentãojogouumxaleporcimadovestidopretovelho.Poiso convitepara a festadeClarissa tinha chegadodeúltimahora.Nãoicoucontentecomaquilo.TinhaumaespéciedesensaçãodequeClarissanãopretendiaconvidá-lanesteano.E por que haveria? De fato não havia nenhuma razão, exceto por se

conhecerem desde sempre. Na verdade eram primas. Mas tinham seafastado naturalmente, sendo Clarissa tão requisitada. Para ela era umacontecimentoiraumafesta.Jáeraumdivertimentoetantoverasroupasbonitas.AquelaalinãoeraElizabeth,crescida,comumpenteadoelegante,de vestido cor-de-rosa? E não teria mais do que dezessete anos. Estavabonita,muito bonita.Mas pelo visto agora asmoças não debutavammaisde branco, como costumava ser. (Devia memorizar tudo para contar aEdith.) As moças usavam vestidos retos, muito justos, bem acima dostornozelos.Nãoficavabem,pensouela.Assim, coma vista fraca, EllieHenderson esticava o pescoço, e não era

tanto ela que se importava em não ter ninguém para conversar (nãoconhecia quase ninguém ali), pois todos ali lhe pareciam muitointeressantes para observar; políticos, provavelmente; amigos deRichardDalloway;mas era o próprioRichardque achavaquenãopodia deixar apobrecriaturaparadaalisozinhaanoitetoda.–E então,Ellie, comoomundovem lhe tratando?–disse comseu jeito

amável, e EllieHenderson, icandonervosa e corando e sentindoque eraextraordinariamente gentil da parte dele vir e conversar com ela, dissequedefatomuitagenteeramaissensívelaocalordoqueaofrio.–É,defato–disseRichardDalloway.–Defato.Masoquemaisdizer?–Olá,Richard–dissealguémtomando-opelocotovelo,e,bomDeus,era

o velho Peter, o velho PeterWalsh. Estava encantado em vê-lo – sempre

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umprazervê-lo!Nãotinhamudadonada.Eláforamjuntosatravessandoasala, trocando tapinhas afetuosos, como se não se vissem fazia muitotempo, pensou Ellie Henderson, observando-os, certa de que conhecia orosto daquele homem. Um homem alto, de meia-idade, olhos bastantebonitos, de óculos, fazendo lembrar John Burrows. Edith certamentesaberia.A cortina com sua revoadade avesdoparaíso se enfunououtra vez. E

Clarissaviu–viuRalphLyonafastá-laparatrásecontinuarfalando.Entãoa inal não era um fracasso! agora tudo ia sair bem – sua festa. Tinhacomeçado.Tinhadadoapartida.Masaindaestavanovainãovai.Tinhadecontinuarporali.Aspessoaspareciamchegarnumaavalanche.Coronel e Mrs. Garrod... Mr. Hugh Whitbread... Mr. Bowley... Mrs.

Hilbery...LadyMaryMaddox...Mr.Quin...entoavaWilkins.Ela trocavaseisou sete palavrinhas com cada um, e seguiam, entravam nos salões;entravam em algo, não no nada, visto que Ralph Lyon tinha afastado acortina.E no entanto, para ela, mais parecia um esforço. Não estava se

divertindo. Era como ser – simplesmente qualquer um, parado ali;qualquer um podia fazer aquilo; e no entanto esse qualquer um lhedespertavaumpoucodeadmiração,nãopodiadeixardesentirqueela,dealgumamaneira, tinha feito isso acontecer, que issomarcava uma etapa,estepilarnoqualsesentiatransformada,poismuitoestranhamentetinhaesquecidosuaaparência,massesentiacomoumaestaca incadanoaltodesua escadaria. Toda vez que dava uma festa tinha essa sensação de seralgumaoutra coisa enão elamesma, e que todos eramde certamaneirairreais; muito mais reais de outra maneira. Em parte, pensava, era porcausa das roupas, emparte por saíremda rotina, emparte pelo cenário;era possível dizer coisas que não se diriam de nenhuma outra maneira,coisasquedemandavamumesforço;possívelirmuitomaisfundo.Masnãoparaela;nãoainda,pelomenos.–Queprazervê-lo!–disse.CarovelhosirHarry!Eleconheciatodos.Eoqueeratãoestranhonaquiloeraasensaçãoquesetinhaconforme

iam subindo as escadas umdepois do outro,Mrs.Mount e Celia,HerbertAinsty,Mrs.Dakers–oh,eLadyBruton!–Queimensagentilezasuaemvir!–disse,eerasincera–eraestranho

como se sentia a pessoa parada ali vendo chegarem, chegarem, algunsmuitovelhos,alguns...Quem?LadyRosseter?MasquemeraessatalLadyRosseter?–Clarissa!

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Aquela voz! Era Sally Seton! Sally Seton! depois de todos esses anos!Avultou entre uma névoa. Pois não era assim que Sally Seton parecia,quandoClarissa segurava a canecade águaquente. Pensarnela sobesteteto,sobesteteto!Nãoassim!Atropelando-se, misturadas, risonhas, as palavras se precipitavam –

passandoporLondres;soubeporClaraHaydon;queoportunidadedevê-la!Entãoresolviaparecer–semconvite...Já era possível pousar a caneca de água quente com muita calma. O

brilhoaabandonara.Aindaassimeraextraordináriovê-laoutravez,maisvelha, mais feliz, menos encantadora. Beijaram-se, primeiro de um lado,depois do outro, junto à porta da sala de visitas, e Clarissa se virou,segurandoamãodeSally,eviuseussalõescheios,ouviuotroardasvozes,viu os candelabros, as cortinas se enfunando e as rosas que Richard lhetinhadado.–Tenhocincogarotosenormes–disseSally.Tinha o egoísmo mais singelo, o desejo mais franco de ser sempre a

primeiranopensamento,eagradouaClarissaqueelaaindafosseassim.– Não acredito! – exclamou iluminando-se de prazer ao pensar no

passado.Mas que pena,Wilkins;Wilkins estava precisando dela;Wilkins estava

anunciando numa voz de autoridade imperiosa, como se todos ospresentes tivessemdeseradvertidoseaan itriãarrancadaà frivolidade,umnome:–Oprimeiro-ministro–dissePeterWalsh.Oprimeiro-ministro?Mesmo?EllieHendersonsemaravilhou.Quecoisa

paracontaraEdith!Não se podia rir a ele. Parecia tão comum. Podia estar atrás de um

balcão e a gente comprando biscoitos – pobre sujeito, todo enfarpeladocom galões dourados! E a bem da justiça, enquanto dava suas voltas,primeiro com Clarissa, então com Richard a escoltá-lo, ele se saiu muitobem.Tentavapareceralguém.Eradivertidodever.Ninguémolhavaparaele. Continuavam a conversar,mas estava absolutamente claro que todossabiam, sentiam até a medula dos ossos, que essa majestade estavapassando; este símbolo de tudo o que defendiam, a sociedade inglesa. AvelhaLadyBruton,eelatambémpareciamuitoelegante,muitoimponenteemsuasrendas,logoveioeseretiraramparaumasaletaquelogopassoua ser espiada, vigiada, e uma espécie de sussurro e agitação claramentepercorreutodos:oprimeiro-ministro!OhSenhordoscéus,oesnobismodos ingleses!pensouPeterWalsh,de

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pé no canto. Como adoravam se enfarpelar de galões dourados e renderhomenagens! Ora! Aquele devia ser – por Júpiter, era mesmo – HughWithbread, farejando os recintos dos grandes, mais gordo, maisencanecido,oadmirávelHugh!Sempre parecia como se estivesse em missão, pensou Peter, um ser

privilegiadomasmuitodiscreto,amealhandosegredosquedefenderiaatéamorte, embora fosse apenas algumaminúscula fofoca ventiladaporumlacaio da corte que amanhã estaria em todos os jornais. Tais eram suasninharias, suas bagatelas, que lhe tinham encanecido os cabelos e oconduzidoàbeiradavelhice,gozandoorespeitoeoafetodetodososquetinhamoprivilégiodeconheceressetipodeinglêsformadonosinternatos.Inevitavelmenteapessoa imaginavacoisasassimsobreHugh;eraoestilodele;oestilodaquelascartasadmiráveisquePeter tinha lidomilharesdevezes do outro lado do oceano no Times, e agradecera a Deus por estarforadaquele burburinhopernicioso,mesmoque fosse apenaspara ouvirtagarelices de babuínos e cules espancando as esposas.Um jovemde tezazeitonada de uma das universidades estava ao lado, muito obsequioso.Esteeleadotaria,iniciaria,ensinariacomoavançarnavida.Poisoquemaislhe agradava nomundo era fazer gentilezas, pôr a palpitar o coração dedamas idosas com a alegria de serem lembradas naquela idade, naquelaa lição de se julgarem totalmente esquecidas, e então ali aparecia oquerido Hugh vindo visitá-las e icando uma hora falando do passado,relembrando miudezas, elogiando o bolo feito em casa, embora Hughpudessecomerboloscomduquesasemqualquerdiaquequisesse,e,pelovisto, provavelmente passava mesmo um bom tempo entregue a essaagradável ocupação. O Juiz Universal, o Todo-Misericordioso poderiadesculpar. PeterWalshnão tinhamisericórdia.Os vilõesprecisamexistir,e,Deussabe,oscafajestesquesãoenforcadosporesmigalharosmiolosdeumamoçanumtremcausammenosmal,aotodo,doqueHughWhitbreade suas gentilezas! Veja-se só a igura, na ponta dos pés, bamboleando-se,curvando-se, insinuando-se, na hora em que o primeiro-ministro e LadyBurton apareceram, convidando o mundo inteiro a ver como ele eraprivilegiadoaodizeralgumacoisa,algumacoisaparticular,aLadyBrutonno momento em que passava. Ela parou. Acenou a bela cabeça idosa.Provavelmenteestavaaagradecê-loporalgumamostradeservilismo.Elatinha seus aduladores, pequenos funcionários em cargos do governo quecorriamparalheprestarpequenosserviços,emtrocadosquaislhesdavaalmoço.MaselavinhadoséculoXVIII.Estavaemseupapel.E agoraClarissa escoltava seuprimeiro-ministropela sala, emproando-

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se,fulgindo,comaimponênciadeseuscabelosgrisalhos.Estavadebrincose um vestido de sereia verde prateado. Parecia repousar nas ondas atrançar os cabelos, tendo ainda aquele dom; ser; existir; condensar tudoem si no momento em que passava; virava-se, enroscava a echarpe novestido de alguma outra mulher, soltava, ria, tudo com a mais absolutadesenvoltura e o ar de uma criatura nadando em seu elemento. Mas aidadeaalcançara;mesmocomosereiapodiacontemplarnoespelhoopôrdo sol num entardecer muito claro sobre as ondas. Havia um alento deternura; sua severidade, seu puritanismo, sua rigidez agora tinham seabrandado, e tinha em si, enquanto desejava boa noite e boa sorte aohomem enfarpelado de dourado que estava dando o máximo de si paraparecer importante, uma dignidade inexprimível; uma afetuosidade rara;como se desejasse tudo de bom ao mundo inteiro, e agora, estando nopróprio limite extremo das coisas, tivesse de se retirar. Assim fazia-opensar.(Masnãoestavaapaixonado.)De fato, sentia Clarissa, o primeiro-ministro tinha sido gentil em vir. E,

percorrendoasalacomele,eSallyaliePeteralieRichardmuitosatisfeito,com todas aquelas pessoas bastante inclinadas, talvez, à inveja, ela tinhasentido aquela embriaguez do momento, aquela dilatação das ibras dopróprio coração até parecer que tremia, saturado, a prumo; – sim, masa inal era o que os outros sentiam, aquilo; pois, embora amasse aquilo esentisse formigarearder,aindaassimessasaparências,esses triunfos (oquerido velho Peter, por exemplo, julgando-a tão brilhante) tinham umvazio; estavam a alguma distância, não no coração; e podia ser que elaestivesse envelhecendo, mas não a satisfaziam mais como antes; e desúbito, enquanto olhava o primeiro-ministro descendo as escadas, amoldura dourada do quadro de Sir Joshua com a menina e um regalotrouxeKilmandevolta;Kilmanainimiga.Aquiloerasatisfatório;aquiloerareal. Ah, como a odiava – ardente, hipócrita, corrupta; com todo aquelepoder;sedutoradeElizabeth;amulherquetinhaseinsinuadopararoubare macular (Richard diria: Que absurdo!). Odiava-a: amava-a. Era deinimigosqueagenteprecisava;nãodeamigos–nãoMrs.DurranteClara,Sir William e Lady Bradshaw, Miss Truelock e Eleanor Gibson (que viasubindo as escadas).Deviamencontrá-la se precisassemdela. Estavaporcontadafesta!LáestavaseuvelhoamigoSirHarry.–CaroSirHarry!–disseindoatéosenhorelegantequehaviaproduzido

uma quantidade de quadros ruins maior do que qualquer dupla deacadêmicos em toda a St. John’s Wood (eram sempre animais se

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abeberandoemalgumbanhadoaocrepúsculo,ouindicando,poiseletinhaum estoque de atitudes, com a pata dianteira erguida ou ummovimentodos chifres, “a Aproximação do Estranho” – todas as suas atividades,jantares, corridas, tinham como base os animais se abeberando embanhadosaocrepúsculo).–Doqueestãorindo?–perguntouaele.PoisWillieTitcomb,SirHarrye

HerbertAinstyestavamtodosrindo.Masnão.SirHarrynãopodiacontaraClarissaDalloway(emboragostassemuitodela;naqueleseutipo,julgava-aperfeita e ameaçara pintá-la) suas histórias de cabaré. Gracejou sobre afesta. Sentia falta de seu conhaque. Esses círculos, disse, estavam acimadele. Mas gostava dela; respeitava-a, apesar de seu re inamentoabominável, di ícil, elitista, que tornava impossível pedir a ClarissaDalloway que sentasse em seu colo. E lá vinha aquele fogo-fátuoambulante,aquelafosforescênciavaga,avelhaMrs.Hilbery,estendendoasmãosparaofulgordesuagargalhada(sobreoduqueeadama),aqual,aoouvi-ladooutroladodasala,pareciatranquilizá-lasobreumpontoqueàsvezes a incomodava quando acordavamuito cedo e não queria chamar aempregada para lhe trazer uma xícara de chá: a certeza de que vamostodosmorrer.–Nãoqueremnoscontarashistóriasdeles–disseClarissa.–QueridaClarissa!–exclamouMrs.Hilbery.Estava tãoparecida,disse,

comsuamãequandoaviupelaprimeiravezpasseandonum jardimcomumchapéucinzento.E realmente os olhos de Clarissa se encheram de lágrimas. Sua mãe,

passeandonumjardim!Masquepena,tinhadeir.PoisaliestavaoprofessorBrierly,quedavaaulassobreMilton, falando

comopequeno JimHutton(queera incapazmesmoparauma festacomoestadeescolhergravataecoleteoudeassentarocabelo),emesmoaquiàdistânciaelapodiaverqueestavambrigando.PoisoprofessorBrierlyerauma igura muito esquisita. Com todos aqueles títulos, honrarias, cursosentre ele e os meros escrevinhadores, ele suspeitava imediatamente deuma atmosfera não favorável à sua bizarra composição; o prodígio deconhecimento e de timidez que era; o gélido encanto sem cordialidade; ainocência mesclada ao esnobismo; estremecia se se apercebesse, pelocabelodespenteadodeumadama,pelasbotasdeumjovem,deummundosubterrâneo, sem dúvida muito apreciável, de rebeldes, de jovensardentes; de aspirantes a gênios, e insinuava com um leve aceno dacabeça, com uma fungadela – humpf! – o valor damoderação; de algumleve treinamento nos clássicos para apreciar Milton. O professor Brierly

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(Clarissapodiaver)nãoestavatendoêxitocomopequenoJimHutton(queestava demeias vermelhas, pois as pretas estavam na lavanderia) sobreMilton.Elainterrompeu.DissequeadoravaBach.Huttontambém.Eraesteovínculoentreeles,e

Hutton (péssimo poeta) sempre achou queMrs. Dalloway era de longe amelhor das grandes damas que se interessavam por arte. Era estranhocomoerarigorosa.Emrelaçãoàmúsicaerapuramenteimpessoal.Chegavaaserpedante.Masqueencantadoraaosolhos!Eacasaeratãoagradável,senão fossempelosprofessoresdela.Clarissachegouapensaremtirá-lodaliepô-loaopianonasaladetrás.Poiseletocavamaravilhosamente.–Masobarulho!–disseela.–Obarulho!–Sinaldesucessodeumafesta.Inclinandoacabeçacomcortesia,oprofessorseafastoudelicadamente.–EleconhecetudonomundointeirosobreMilton–disseClarissa.–Mesmo?–disseHutton,queimitariaoprofessoremtodoHampstead;o

professor eMilton; o professor e amoderação; o professor se afastandodelicadamente.Mas precisava ir falar com aquele casal, disse Clarissa, lorde Gayton e

NancyBlow.Não que eles contribuíssem perceptivelmente para o barulho da festa.

Não estavam falando (perceptivelmente) ali parados junto às cortinasamarelas. Logo iriam a outro lugar, juntos; e nunca tinhammuito a dizerem circunstância alguma. Olhavam; e só. Bastava. Pareciam tão asseados,tão sólidos, ela com um leve veludo de pêssego namaquilagem, mas elebemesfregado,enxaguado,comolhosdepássaro,deformaquenenhumabola passaria por ele ou nenhum golpe o pegaria de surpresa. Saltava,rebatia, com precisão, na hora. Os focinhos dos cavalos estremeciam napontadesuasrédeas.Tinhasuashonrarias,seusmonumentosancestrais,seus estandartes na capela da propriedade. Tinha suas obrigações; seusarrendatários; umamãe e irmãs; tinha passado o dia inteiro no Lord’s, eera disso que estavam falando – críquete, primos, ilmes – quando Mrs.Dallowayseaproximou.LordeGaytonaapreciavaimensamente.MissBlowtambém.Tinhamaneirastãoencantadoras.–Queencanto–quedelíciaquevocêsvieram!–disse.ElaadoravaoLord’s;adoravaajuventude,eNancy,vestidaaumpreço

altíssimopelosmaiores artistasdeParis, icava ali como se simplesmentelhebrotassedocorpo,porsisó,umbabadoverde.–Minhaintençãoeraquedançassem–disseClarissa.Pois os jovens não sabiam conversar. E por que haveriam? Gritar,

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abraçar, rodopiar, estar de pé ao amanhecer; levar açúcar aos cavalos;beijar e acariciar os focinhos de lindos chows; e então, vibrando ecorrendo,mergulharenadar.Masosenormesrecursosda língua inglesa,o poder que ela oferece, a inal, de comunicar os sentimentos (naquelaidade,elaePeterteriamdiscutidoanoitetoda),nãoeramparaeles.Iriamse cristalizar jovens. Seriamextremamentebondosos comosempregadosdapropriedade,masapenas,talvez,umtantoinsípidos.–Quepena!–disse.–Euesperavaquedançassem.Quegentileza tãoextraordinária teremvindo!Mas falar emdançar!As

salasestavamlotadas.AliestavaavelhatiaHelenaemseuxale.Quepena,tinhadedeixá-los–

lordeGautoneNancyBlow.AliestavaavelhaMissParry,suatia.PoisMissHelenaParrynãotinhamorrido:MissParryestavaviva.Tinha

mais de oitenta anos. Subiu devagar as escadas com uma bengala. Foiacomodada numa cadeira (Richard tinha providenciado). As pessoas quetinhamconhecidoBurmanosanos70sempreeramlevadasatéela.OndePetertinhaestado?Eramtãoamigos.PoisàmençãodaÍndia,oumesmodoCeilão, seus olhos (só um era de vidro) se aprofundavam lentamente,icavammelancólicos, contemplavam não seres humanos – ela não tinhanenhuma memória terna, nenhuma ilusão orgulhosa sobre vice-reis,generais, motins – eram orquídeas que ela via, e des iladeiros nasmontanhas, e ela mesma carregada às costas de cules nos anos 60 empicos solitários; ou descendo para apanhar orquídeas ( loraçõesdeslumbrantes,nuncavistasantes)quepintavaemaquarela;umainglesaindomável, irritando-se se fosse perturbada pela guerra, soltando, porexemplo, uma bomba bem à sua porta, interrompendo sua profundameditação sobre as orquídeas e sua própria igura percorrendo a Índianosanos60–masaquiestavaPeter.–VenhaconversarcomtiaHelenasobreBurma–disseClarissa.Enoentantoelenãotinhatrocadoumapalavracomelaanoitetoda!–Falaremosmais tarde–disseClarissa, conduzindo-o até a tiaHelena,

emseuxalebranco,comsuabengala.–PeterWalsh–disseClarissa.Onomenãolheevocavanada.Clarissa a convidara. Era cansativo; era barulhento; mas Clarissa a

convidara.Então tinhavindo.EraumapenaquemorassememLondres–Richard e Clarissa. Quando menos pela saúde de Clarissa, seria melhormorarnocampo.MasClarissasempregostoudevidasocial.–EleesteveemBurma–disseClarissa.

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Ah!Nãopôderesistira lembraroqueCharlesDarwin tinhaditosobreseulivrinhoarespeitodasorquídeasdeBurma.(ClarissatinhadeirfalarcomLadyBruton.)Sem dúvida agora estava esquecido, esse seu livro sobre as orquídeas

deBurma,mas teve trêsediçõesantesde1870, contouaPeter.Agora selembravadele.TinhaestadoemBourton (eaabandonara, lembrouPeterWalsh, sem dizer uma palavra na sala de visitas naquela noite quandoClarissaochamouparapassearemdebarco).–Richardaprecioutantooalmoço–disseClarissaaLadyBruton.– Richard foi da maior ajuda possível – respondeu Lady Bruton. –

Ajudou-meaescreverumacarta.Ecomovaivocê?–Oh,muitíssimobem!–disseClarissa.(LadyBrutondetestavadoenças

emesposasdepolíticos.)– E aqui está PeterWalsh! – disse LadyBruton (pois nunca conseguia

pensar em nada para dizer a Clarissa; embora gostasse dela. Tinhainúmeras belas qualidades; mas não tinham nada em comum – ela eClarissa.Teria sidomelhorseRichard tivessesecasadocomumamulhermenos encantadora, que o ajudariamais em seu trabalho. Tinha perdidosua chancedeocuparoministério). –Aqui estáPeterWalsh! – disse ela,trocandoumapertodemãocomaqueleagradávelpecador,aquelesujeitomuito capazquedevia ter feitonomemasnão fez (sempreàs voltas commulheres),e,claro,avelhaMissParry.Velhinhamaravilhosa!Lady Bruton icou ao lado da cadeira de Miss Parry, uma granadeira

espectral, envolta em negro, convidando Peter Walsh para almoçar;cordial; mas sem pequenas amenidades, sem lembrar coisa alguma daloraoufaunadaÍndia.Tinhaestadolá,claro;tinhafrequentadotrêsvice-reis; considerava alguns dos civis indianos uns sujeitos realmenteagradáveis; mas que tragédia andava aquilo – o estado da Índia! Oprimeiro-ministro tinha acabado de lhe contar (a velha Miss Parry,aninhadaemseuxale,poucose importavacomoqueoprimeiro-ministrotinha acabado de lhe contar), e Lady Bruton queria saber a opinião dePeterWalsh, que acabava de voltar, e providenciaria um encontro entreele e Sir Sampson, pois realmente aquilo a impedia de dormir à noite, aloucuradaquilo,amaldade,diria,sendo ilhadeumsoldado.Agoraestavavelha,semmuitaserventia.Massuacasa,seusempregados,suaboaamigaMilly Brush – lembrava-se dela? – estavam todos ali à inteira disposição,pedindo para ser usados se – se pudessem ser de alguma ajuda, en im.PoiselanuncafalavadaInglaterra,masessailhadevarões,essaterratãoquerida,estavaemseusangue(semlerShakespeare),esealgumdiauma

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mulher tivesse usado o elmo e disparado a lecha, tivesse comandadotropas ao ataque, governadohordas bárbaras com indômita justiça e sobum escudo repousasse sem nariz numa igreja, ou tivesse se convertidonumaelevaçãodegramaverdenavertentedealgumaprimevacolina,essamulher seriaMillicentBruton.Privadapelo sexo, eporalguma indolênciatambém, da faculdade lógica (achava impossível escrever uma carta aoTimes),elatinhaaideiadoImpériosempreàmão,edesuaassociaçãocomaquela deusa de armadura adquirira o porte muito aprumado, ocomportamento resoluto, de forma que era impossível imaginá-lamesmona morte separada da terra ou vagueando por territórios onde oestandarte britânico, sob alguma forma espiritual, tivesse deixado dedrapejar.Nãoseringlesamesmoentreosmortos–não,não!Impossível!Mas aquela era LadyBruton? (que conhecia). Aquele era PeterWalsh,

grisalho?perguntou-seLadyRosseter(quetinhasidoSallySeton).Aquelaera a velhaMiss Parry, sem dúvida – a tia velha que costumava ser tãorabugentaquandoesteveemBourton.Nuncaesqueceriaquepassounuapelo corredor eMissParrymandou chamá-la à suapresença!EClarissa!ohClarissa!Sallyapegoupelobraço.Clarissaparouaoladodeles.–Masnãoposso icar –disse. –Voltodepois. Esperem–disseolhando

Peter e Sally. Precisam esperar, queria dizer, até todos os outros iremembora.– Vou voltar – disse olhando seus velhos amigos, Sally e Peter, que

estavam trocando um aperto de mãos, e Sally, sem dúvida lembrando opassado,estavarindo.Mas sua voz estava despojada de sua antiga riqueza estonteante; seus

olhos não eram cintilantes como costumavam ser, quando fumavacharutos, quando atravessava o corredor para pegar a esponja sem umiapo de roupa no corpo, e Ellen Atkins perguntou, E se os cavalheirostivessemencontradocomela?Mas todomundoaperdoava.Surripiouumfrango da despensa porque sentiu fome à noite; fumava charutos noquarto;deixouum livro inestimávelnobarco.Mas todomundoaadorava(exceto talvezpapai). Era seu calor; sua vitalidade – pintava, escrevia.Asvelhasdaaldeiaatéhojenuncadeixavamdeperguntarpor“suaamigadecapavermelhaquepareciatãocheiadevida”.ElaacusouHughWhitbread,ninguém menos que ele (e ali estava ele, seu velho amigo Hugh,conversandocomoembaixadorportuguês),debeijá-lanosalãode fumarcomo castigopordizerque asmulheresdeviam terdireitode voto. Coisadehomemvulgar,disseela.EClarissalembravaquetentarapersuadi-laa

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não o denunciar na hora das rezas em família – o que ela era capaz defazercomsuaousadia,seuestouvamento,seugostomelodramáticodesero centro de tudo e de criar cenas, fadado, Clarissa costumava pensar, aterminaremalgumatragédiahorrível;emsuamorte;seumartírio;epelocontrário tinha se casado, de modo muito inesperado, com um sujeitocareca com um grande ramalhete na lapela que era dono, diziam, defábricasdetecidosdealgodãoemManchester.Etinhacincomeninos!ElaePetertinhamsesentadojuntos.Estavamconversando:pareciatão

familiar–queestivessemconversando.Decerto falavamdopassado.Comeles dois (ainda mais do que com Richard) ela partilhava o passado; ojardim; as árvores; o velho Joseph Breitkopf cantando Brahms semnenhumavoz;opapeldeparededasaladevisitas;ocheirodoscapachos.Partedisso, Sally sempre seria; Peter sempre seria.Masprecisavadeixá-los.AliestavamosBradshaw,dosquaisnãogostava.Devia iratéLadyBradshaw(decinzaeprateado,balançandocomoum

leãomarinhonabeiradadotanque,alardeandoconvites,duquesas,atípicaesposadohomembem-sucedido),deviairatéLadyBradshawedizer...MasLadyBradshawseantecipouaela.– Estamos medonhamente atrasados, cara Mrs. Dalloway; mal nos

atrevíamosavir–disse.E Sir William, com uma aparência muito distinta, o cabelo grisalho e

olhos azuis, concordou; não tinham conseguido resistir à tentação. EstavaconversandocomRichardprovavelmentesobreaqueleprojetode lei,quequeriamquepassassepelaCâmara.Porqueavisãodele,conversandocomRichard, lhe causava uma crispação? Aparentava o que era, um grandemédico. Um homem na absoluta vanguarda de sua pro issão, muitopoderoso,bastantecansado.Poisimaginem-seoscasosquelheapareciam– pessoas nos mais profundos abismos da desgraça; pessoas à beira dainsânia; maridos e mulheres. Tinha de decidir questões pavorosamentedi íceis.Enoentanto–oqueelasentiaeraqueapessoanãogostariaqueSirWilliamvissesuainfelicidade.Não;nãoaquelehomem.–ComovaiseufilhoemEton?–perguntouaLadyBradshaw.Tinhaacabadodeperderseulugarnaequipe,disseLadyBradshaw,por

causa da caxumba. O pai icou aindamais aborrecido do que ele, achavaela,“pois”,disse,“nãopassavadeummeninocrescido”.Clarissa olhou Sir William, conversando com Richard. Não parecia um

menino–demaneiranenhumaummenino.Uma vez ela tinha ido com alguém numa consulta a ele. Tinha sido

plenamentecorreto;extremamentesensato.Mascéus–quealíviosairde

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novo à rua! Havia um pobre coitado soluçando, ela lembrava, na sala deespera. Mas não sabia o que havia nele; o que exatamente lhedesagradava.Richardconcordavacomela,“nãogostavadocheirodele,nãogostava do jeito dele”. Mas era excepcionalmente capaz. Estavamconversando sobre aquele projeto de lei. Era algum caso que SirWilliamestava mencionando, abaixando a voz. Tinha relação com o que estavafalando sobre os efeitos retardados da neurose de guerra. Devia haveralgumacláusulanoprojeto.Diminuindo a voz, puxando Mrs. Dalloway para o abrigo de uma

feminilidade comum, um orgulho comum pelas ilustres qualidades dosmaridos e a triste tendência de trabalharem demais, Lady Bradshaw(pobrepateta–nãosedesgostavadela)murmuravaque,“bemnoinstanteem que estávamos saindo, telefonaram parameumarido, um casomuitotriste. Um rapaz (é isso que Sir William está contando a Mr. Dalloway)tinha se matado. Esteve no exército”. Oh!, pensou Clarissa, no meio deminhafestaapareceamorte,pensouela.Seguiuadiantee entrouna saletaondeoprimeiro-ministroesteve com

Lady Bruton. Talvez houvesse alguém ali. Mas não havia ninguém. Ascadeiras ainda mantinham as marcas do primeiro-ministro e de LadyBruton, ela virada para ele com deferência, ele sentado de frente, comautoridade. Estiveram conversando sobre a Índia. Não havia ninguém. Oesplendordafestacaiuporterra, tãoestranhoeraentrarsozinhaalicomsuaelegância.PorqueosBradshawtinhamdefalardemorteemsuafesta?Umrapaz

tinha sematado.E falavamdissoemsua festa–osBradshaw falavamdemorte.Eletinhasematado–mascomo?Sempreosentianocorpo,quandolhe falavam inesperadamente de um acidente; o vestido ardia, o corpoqueimava.Tinhaseatiradodeumajanela.Ochãoseelevaranumlampejo;destroçando, contundindo, atravessaram-no os varões enferrujados. Lájazia ele com um tum, tum, tum, no cérebro, e então um negrumesufocante.Assimviaela.Masporqueeletinhafeitoaquilo?EosBradshawcomentavamofatoemsuafesta!Umavez ela tinha atiradoumamoedanoSerpentine, nuncanadaalém

disso. Mas ele tinha se lançado com tudo. Continuavam a viver (teria devoltar; as salas ainda estavam cheias; as pessoas continuavam a chegar).Eles (o dia todo esteve pensando em Bourton, em Peter, em Sally), elesenvelheciam. Havia uma coisa que importava; uma coisa, envolta emconversas, des igurada, obscurecida em sua própria vida, que icava apingardiariamentenacorrupção,nasmentiras,naconversa.Issoeletinha

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preservado.Morteeradesa io.Amorteeraumatentativadecomunicar,apessoasentindoaimpossibilidadedealcançarocentroque,misticamente,lhe escapava; a proximidade se desfazia; o arrebatamento se desvanecia;estava-sesó.Haviaumaconchegonamorte.Mas esse rapaz que tinha se matado – mergulhara abraçando seu

tesouro? “se fosseparamorrer agora, seria agora omomentomais feliz”,disseraasimesmaumavez,descendo,debranco.Ou havia os poetas e pensadores. Suponha-se que ele tivesse essa

paixão,etivesseidoaSirWilliamBradshaw,umgrandemédico,masparaelaobscuramentemaligno,semsexooudesejo,extremamentepolidocomasmulheres,mas capazdealguma indescritível violência– forçara alma,era isso – se esse jovem tivesse ido a ele, e Sir William o tivesseimpressionado, daquela maneira, com seu poder, então não poderia terdito (ela realmenteosentiaagora),Avidase fez intolerável;eles fazemavidaintolerável,homensassim?E (ela tinha sentido isso apenas esta manhã) havia o terror; a

incapacidade esmagadora, tendo nossos pais posto em nossasmãos, estavida,paraservividaatéo im,paraserpercorridaserenamente;havianasprofundezasdeseucoraçãoummedoterrível.Mesmoagora,muitasvezesse Richard não estivesse ali lendo o Times, demaneira que ela podia seencolhercomoumpássaroerevivergradualmente,bramiraoaltoaqueleindescritívelprazer,esfregandoumpauzinhonooutro,umacoisanaoutra,teriaperecido.Tinhaescapado.Masaquelerapaztinhasematado.De algumamaneira era sua catástrofe – sua desgraça. Era seu castigo

ver se afundar e desaparecer aqui um homem, ali uma mulher, nessaescuridãoprofunda, e ela obrigada a icar aqui com seu vestidodenoite.Tinha conspirado; tinha trapaceado. Nunca foi totalmente admirável.Desejara o sucesso, Lady Bexborough e todo o resto. E uma vez tinhaandadonoterraçoemBourton.Estranho, incrível; nunca fora tão feliz. Nada seria lento o su iciente;

nada duraria demais. Nenhum prazer podia se igualar, pensou,endireitandoascadeiras,alinhandoum livronaprateleira,aesse imdostriunfosdajuventude,aessaentregaaoprocessodeviver,paradescobri-lo,comumchoquedeprazer,aonascerosol,ao indarodia.Muitasvezesem Bourton, quando todos estavam conversando, tinha ido olhar o céu;vira-o entre os ombrosdaspessoas ao jantar; vira-o emLondresquandonãoconseguiadormir.Foiatéajanela.Eletinha,portolaquefossea ideia,algodelaemsi,essecéudocampo,

essecéudeWestminster.Abriuascortinas;olhou.Oh,masquesurpresa!–

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nasalaem frenteavelhadamaolhavadiretamenteparaela!Estava indopara a cama. E o céu. Será um céu solene, tinha pensado, será um céuescuro, virando a face belamente. Mas ali estava – cinza-pálido,rapidamentepercorridoporvastasnuvensesgarçadas.Eranovoparaela.Oventodeviaestarsoprando.Estavaindoparaacama,nasalaemfrente.Era fascinante observá-la, movendo-se por ali, aquela dama idosa,atravessandoasala,vindoàjanela.Conseguiavê-la?Erafascinante,comaspessoas ainda rindo e exclamando na sala de visitas, observar aquelamulher idosa, totalmente silenciosa, indo para a cama sozinha. Agorafechavaaveneziana.Orelógiocomeçouabater.Orapaz tinhasematado;masnãotinhapenadele;comorelógiobatendoashoras,uma,duas, três,não tinhapenadele, com tudo isso emandamento. Pronto!A velhadamatinha apagado a luz! a casa toda estava agora às escuras com isso emandamento,repetiu,elhevoltaramaspalavras,Nãotemasmaisocalordosol. Precisava voltar a eles. Mas que noite extraordinária! Sentiu-se decerta formamuito parecida com ele – com o rapaz que tinha sematado.Sentiu-se alegre que tivesse feito aquilo; se lançado com tudo enquantoelescontinuavamaviver.Orelógioestavabatendo.Oscírculosdechumbose dissolveram no ar. Mas precisava voltar. Precisava reunir. PrecisavaencontrarSallyePeter.Eentrouvindadasaleta.

– Mas onde está Clarissa? – disse Peter. Estava sentado no sofá comSally. (Depois de todos esses anos realmente não conseguia chamá-la de“Lady Rosseter”.) – Onde a mulher se meteu? – perguntou. – Onde estáClarissa?Sallysupunha,enissoPeterconcordava,quehaviapessoasimportantes,

políticos,quenenhumdosdoisconheciaanãoserpelas fotosdos jornais,comos quais Clarissa tinha de ser gentil, tinha de conversar. Estava comeles.PorémRichardDallowaynãoestavanoministério.Nãotinhasidoumsucesso, pois não? supunha Sally. De sua parte, raramente lia jornais. Àsvezesviaalgumamençãoaonomedele.Masentão–bem,ela levavaumavida muito solitária, nos fundões, diria Clarissa, entre grandescomerciantes, grandes fabricantes, homens, a inal, que faziam coisas. Elatambémtinhafeitocoisas!–Tenhocincofilhos!–disse-lhe.OhSenhordoscéus,comoelatinhamudado!adoçuradamaternidade;o

egoísmotambém.Aúltimavezqueseencontraram, lembravaPeter, tinhasidoentreascouves- loresaoluar,asfolhas“comoásperobronze”disseraela,comseu loreioliterário;etinhacolhidoumarosa.Andaraparacimae

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parabaixocomelenaquelanoitehorrível,depoisdacenajuntoàfonte;eleiapegarotremdameia-noite.Céus,tinhachorado!Eraaquelavelhamaniadele,abrindoumcanivete,pensouSally,sempre

abrindo e fechando um canivete quando se agitava. Tinham sido muitoíntimos,muito,elaePeterWalsh,quandoestavaapaixonadoporClarissa,ehouve aquela cena pavorosa, ridícula por causa de Richard Dalloway noalmoço. Ela tinha chamado Richard de “Wickham”. Por que não chamarRichardde“Wickham”?Clarissatinhaseenfurecido!edefatonuncamaistinham voltado a se ver desde então, ela e Clarissa, não mais que meiadúziadevezestalveznosúltimosdezanos.EPeterWalshtinhaidoparaaÍndia,eelaouvirafalarvagamentequetinhafeitoumcasamentoinfeliz,enão sabia se tinha algum ilho, e não podia lhe perguntar, pois ele tinhamudadomuito.Pareciabastanteenrugado,masmaisbondoso,sentiuela,etinhaumverdadeiroafetoporele,poisestavaligadoàsuajuventude,eelaaindatinhaumpequenovolumedeEmilyBrontëqueelelhedera,equeriaescrever,certo?Naquelesdiaselequeriaescrever.– Você tem escrito? – perguntou-lhe, apoiando amão, suamão irme e

bemmoldada,sobreojoelhodeumamaneiraqueelelembrava.–Nemumapalavra!–dissePeterWalsh,eelariu.Ainda era atraente, ainda uma igura, Sally Seton. Mas quem era esse

Rosseter?Usouduascaméliasnodiadocasamento–erasóissoquePetersabia dele. “Eles têm uma in inidade de empregados, quilômetros deestufas”,escreveuClarissa;algoassim.Sallyadmitiucomumagargalhada.–É,tenhodezmilporano–seantesoudepoisdedescontarosimpostos,

não lembrava, pois omarido, “que você precisa conhecer”, disse ela, “vaigostardele”,disseela,cuidavadetudo.EeraSallyqueandavaesfarrapada.Tinhaempenhadooaneldobisavô

que Maria Antonieta lhe dera – tinha entendido bem? – para ir atéBourton.Ah sim, Sally lembrava; ainda o tinha, um anel de rubi que Maria

Antonieta tinha dado a seu bisavô. Naqueles tempos não tinha um únicotostãodeseu,e iraBourtonsempresigni icavaumtremendoapuro.MasiraBourtontinhasigni icadomuitoparaela–tinhamantidosuasanidade,acreditavaela,tãoinfelizeraemcasa.Masaquiloeracoisadopassado–játinhaacabado,disse.EMr.Parrytinhamorrido;eMissParryaindaestavaviva.Nuncateveumchoquetãograndenavida!,dissePeter.Tinhacertezadequeelatinhamorrido.Eocasamento,supunhaSally,tinhadadocerto?Eaquelamoçamuitobonita,muito composta, eraElizabeth, logoali, juntoàscortinas,decor-de-rosa.

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(Era como um álamo, era como um rio, era como um jacinto, estavapensandoWillie Titcomb. Oh, como seriamuitomelhor estar no campo efazeroquetivessevontade!Podiaouvirseupobrecachorroganindo,tinhacerteza.)NãosepareciaemnadacomClarissa,dissePeterWalsh.–Oh,Clarissa!–disseSally.O que Sally sentia era simplesmente isso. Devia muitíssimo a Clarissa.

Tinham sido amigas, não apenas conhecidas, amigas, e ainda via Clarissatodadebrancoandandopelacasacomasmãoscheiasde lores–atéhojeospésde fumo lhe lembravamBourton.Mas –Peter entendia? – faltava-lhe alguma coisa. Faltava o quê? Tinha encanto; tinha extraordinárioencanto.Masparasersincera(eelasentiaquePetereraumvelhoamigo,um verdadeiro amigo – importava a ausência? importava a distância?Muitas vezes quis lhe escrever,mas rasgou as cartas,masmesmo assimsentia que ele entendia, pois as pessoas entendem sem que se digam ascoisas, comopercebemosaoenvelhecer,eestavavelha, tinha idonaquelatarde ver os ilhos em Eton, onde estavam com caxumba), para serplenamente sincera, então, como Clarissa tinha feito aquilo? – se casadocom Richard Dalloway? um esportista que só gostava de cachorros.Literalmente, quando entrava na sala cheirava a estábulo. E agora tudoisso?Acenoucomamão.Era Hugh Whitbread, passando com seu colete branco, obtuso, gordo,

cegoatudoquevia,excetooamor-próprioeoconforto.–Nãovainosreconhecer–disseSally,erealmentenãotinhacoragem–

entãoaqueleeraHugh!oadmirávelHugh!–Eoqueelefaz?–perguntouaPeter.Engraxava as botas do rei ou contava garrafas emWindsor, disse-lhe

Peter.Peteraindatinhasualínguaa iada!MasSallydeviaserfranca,dissePeter.Aquelebeijo,odeHugh.Na boca, garantiu ela, uma noite no salão de fumar. Ela foi direto até

Clarissanumacessodefúria.Hughnãofaziacoisasassim!disseClarissa,oadmirávelHugh!AsmeiasdeHugheraminvariavelmenteasmaisbonitasqueelatinhavisto–eagoraseufraque.Perfeito.Etinhafilhos?– Todo mundo aqui na sala tem seis ilhos em Eton – disse-lhe Peter,

exceto ele mesmo. Graças a Deus, não tinha nenhum. Nem ilhos, nemilhas,nemesposa.Bem,parecianãoseimportar,disseSally.Pareciamaisjovem,pensouela,doquetodoseles.Mas tinha sido uma tolice, em muitos aspectos, disse Peter, se casar

assim; “uma perfeita pateta, ela”, disse, mas, disse, “tivemos uma épocaesplêndida”, mas como podia ser uma coisa dessas? indagava-se Sally; o

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que ele queria dizer? e que estranho era conhecê-lo emesmo assim nãosaberabsolutamentenadadoque lhetinhaacontecido.Edisseaquilopororgulho?Muitoprovavelmente,poisa inaldeviatersidodesgastanteparaele (embora fosse um excêntrico, uma espécie de duende, de maneiranenhumaumhomemcomum),deviasersolitárionaidadedelenãoterlar,nãoternenhumlugaraonde ir.Masdeviavirpassarumasboassemanascom eles. Claro que iria; adoraria icar com eles, e foi assim que a coisaa lorou.NessesanostodososDallowaynuncaestiveramláumaúnicavez.Tinham convidado várias vezes. Clarissa (pois era Clarissa, claro) não foi.Pois, disse Sally, Clarissano fundoeraumaesnobe– erapreciso admitir,umaesnobe.Eeraissoqueestavaentreelas,tinhacerteza.Clarissaachavaqueelatinhasecasadocomalguémdenívelinferior,poisseumaridoera–ela se orgulhava disso – ilho de ummineiro. Ganhara cada centavo quetinham.Quandopequeno(avozdelatremeu)carregavasacosenormes.(Eassimelapodiacontinuar,sentiuPeter,horasa io;o ilhodemineiro;

aspessoasachavamqueelatinhasecasadocomalguémdenívelinferior;seuscinco ilhos;eaquelaoutracoisa–plantas,hortênsias,lilases,hibiscosraríssimos que nunca davam acima do Canal de Suez, mas ela, com umúnico jardineiro num subúrbio perto de Manchester, tinha canteiros,canteirosinteirosdeles!AtudoissoseesquivaraClarissa,poucomaternalcomoera.)Eraesnobe, ela?Sim, sobmuitosaspectos.Ondeestavaela, esse tempo

inteiro?Estavaficandotarde.– Sim – disse Sally – quando eu soube que Clarissa estava dando uma

festa, sentiquenãopodianãovir–precisava revê-la (eestounaVictoriaStreet, praticamente aqui ao lado). Então simplesmente apareci semconvite.Mas–sussurrou–mediga,queméesta?EraMrs.Hilbery, indo para a porta. Pois como estava icando tarde! E,

murmurou ela, conforme a noite avançava, conforme as pessoas iamembora, encontravam-se velhos amigos; recessos e recantos calmos; e asvistas mais encantadoras. Sabiam, perguntou ela, que estavam cercadosporumjardimencantado?Luzeseárvoreselagoscintilantesmaravilhososeocéu.Apenasalgumasluzesdecorativas,tinhaditoClarissaDalloway,nojardimdos fundos!Maseraumafada!Eraumparque...Enãosabiacomosechamavam,massabiaqueeramamigos,amigossemnome,cançõessemletra, sempre os melhores. Mas eram tantas portas, lugares tãoinesperados,nãoconseguiaencontrarasaída.–AvelhaMrs.Hilbery–dissePeter;masquemeraaquela?aqueladama

junto à cortina a noite inteira, sem falar? Ele reconheceu o rosto; ligou a

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Bourton.Decertoeraaquelaquecortavaroupasdebaixonamesagrandeàjanela?Davidson,eraassimquesechamava?– Oh, aquela é Ellie Henderson – disse Sally. Clarissa era realmente

muitoduracomela.Eraumaprima,muitopobre.Clarissaeraduracomaspessoas.Bastante, disse Peter. Mas, disse Sally com seu jeito emotivo, com um

ímpeto daquele entusiasmo que Peter costumava apreciar nela, porémagora temia um pouco, pois podia se tornar efusiva – como Clarissa eragenerosacomosamigos!equequalidaderaradeseencontrar,ecomoàsvezes à noite ou no dia deNatal, quando recapitulava as bênçãos de suavida, colocava aquela amizade em primeiro lugar. Eram jovens; era isso.Clarissa era pura de coração; era isso. Peter a acharia sentimental. Quefosse.Poistinhavindoasentirqueestaeraaúnicacoisaquevaliaapena–sentir. Inteligência era bobagem. Devia-se simplesmente dizer o que sesentia.–Masnãosei–dissePeterWalsh–oquesinto.Pobre Peter, pensou Sally. Por que Clarissa não vinha conversar com

eles? Era isso o que ele tanto ansiava. Ela sabia.O tempo todo ele estavapensandoapenasemClarissa,eficavabrincandocomocanivete.Avidanãolheparecerasimples,dissePeter.SuasrelaçõescomClarissa

nãotinhamsidosimples.Tinhaestragadosuavida,disseele.(Tinhamsidotão íntimos – ele e Sally Seton, era absurdo não dizer.) A pessoa não seapaixonaumasegundavez,disseele.Eoqueelapodiadizer?Aindaassim,melhor ter amado (mas ele a acharia sentimental – costumava ser tãomordaz). Devia vir e icar com eles em Manchester. Verdade, disse ele.Verdade.Adoraria vir e icar comeles, logo que acabasse de fazer o quetinhaafazeremLondres.EClarissatinhagostadodelemaisdoquejamaisgostoudeRichard,Sally

nãotinhanenhumadúvidaquantoaisso.–Não,não,não!–dissePeter(Sallynãodeviaterditoaquilo–foi longe

demais).Aquelebomsujeito– láestavaelenapontadosalão,expondo,omesmo de sempre, caro velho Richard. Com quem ele estava falando?perguntouSally,aquelehomemdearmuitodistinto?Morandonosfundõescomomorava, tinha uma curiosidade insaciável em saber quem eram aspessoas.MasPeternãosabia.Nãogostavadoardele,disse,provavelmentealgumministro.Detodoseles,Richardlhepareciaomelhor,dissePeter–omaisdesinteressado.–Masoqueelefaz?–perguntouSally.Serviçopúblico,imaginavaela.E

eram felizes? perguntou Sally (ela mesma era extremamente feliz); pois,

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admitia, não sabia nada a respeito deles, apenas saltava direto para asconclusões, como se costuma fazer, pois o que podemos saber mesmosobre as pessoas com as quais convivemos diariamente? perguntou ela.Nãosomostodosprisioneiros?Tinhalidoumapeçamaravilhosasobreumhomemquearranhavaaparededesuacela,esentiraqueassimeraavida– arranhava-se a parede. Exasperando-se com as relações humanas (aspessoas eram tãodi íceis),muitas vezes ia até o jardime extraíade suasloresumapazquehomensemulheresnuncalhedavam.Masnão;elenãogostava de couves; preferia os seres humanos, disse Peter. De fato osjovens são lindos,disseSally, observandoElizabethnooutro ladoda sala.ComoeradiferentedeClarissaquando tinhasua idade!Ele sabiaalgumacoisasobreela?Elanãoabriaaboca.Nãomuito,aindanão,admitiuPeter.Parecia um lírio, disse Sally, um lírio à beira de um lago. Mas Peter nãoconcordavaquenãosabemosnada. Sabemos tudo,disse; ele,pelomenos,sabia.Mas esses dois, sussurrou Sally, esses dois vindo agora (e realmente

precisava ir, se Clarissa não aparecesse logo), esse homem de aparênciadistinta e a esposa de aparência bastante comum que estavam antesconversandocomRichard–oquesepodiasaberdegenteassim?– Que são uns impostores abomináveis – disse Peter, olhando-os com

displicência.Sallyriu.Mas Sir William Bradshaw parou à porta para olhar um quadro.

Procurou no canto o nome do gravurista. Suamulher olhou também. SirWilliamBradshawseinteressavatantoporarte.Quando jovem, disse Peter, a pessoa se sentia empolgada demais para

conhecer os outros. Agora sendo velho, cinquenta e dois anos para serexato (Sally tinha cinquenta e cinco, no corpo, disse ela,mas seu coraçãoeradeumamoçade vinte); agoraque apessoa eramadura, dissePeter,podia observar, podia entender e não se perdia a capacidade de sentir,disse ele. É, é verdade, disse Sally. Ela sentia mais profundamente, maisapaixonadamente,acadaanoquepassava.Issoaumentava,disseele,umapena, talvez, mas a gente devia icar contente com isso – continuava aaumentaraexperiência.HaviaalguémnaÍndia.QueriacontaraSallysobreela. Queria que Sally a conhecesse. Era casada, disse. Tinha dois ilhospequenos. Deviam ir todos a Manchester, disse Sally – precisava lheprometerantesdeiremembora.– Veja Elizabeth – disse ele – ela não sente metade do que sentimos,

aindanão.–Mas – disse Sally, observando Elizabeth indo até o pai – pode-se ver

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que são muito devotados um ao outro. – Sentia pela maneira comoElizabethfoiatéopai.Pois seu pai estivera a olhá-la, enquanto estava conversando com os

Bradshaw,epensaraconsigomesmoqueméaquelamoçaencantadora?Ede repente percebeu que era sua Elizabeth, e que não a reconhecera,parecia tão encantadora em seu vestido cor-de-rosa! Elizabeth tinhasentidooolhardeleenquantoconversavacomWillieTitcomb.Entãofoiatéelee icaramali juntos,agoraquea festa tinhaquase terminado,olhandoaspessoasindoembora,eassalasseesvaziandocadavezmais,comcoisasespalhadas pelo chão. Até Ellie Henderson estava indo embora,praticamenteaúltimaasair,emboraninguémtivessefaladocomela,masquis ver tudo, para contar a Edith. E Richard e Elizabeth estavam bemcontentesquetivesseterminado,masRichardestavaorgulhosoda ilha.Enãotinhaintençãodelhedizer,masnãopôdedeixardelhedizer.Estiveraaolhá-la,disse,etinhaseperguntado,queméaquelamoçaencantadora?eerasuafilha!Elaficoufelizcomisso.Masopobrecachorroestavaganindo.–Richardmelhorou.Vocêtemrazão–disseSally.–Vouláfalarcomele.

Vou me despedir. O que importa o cérebro – disse Lady Rosseterlevantando-se–comparadoaocoração?– Estou indo – disse Peter, mas continuou sentado por um instante. O

que é este terror? O que é este êxtase? pensou consigomesmo. O que éissoquemeenchedeumaemoçãoextraordinária?ÉClarissa,disseele.Poisaliestavaela.

FIM

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VIRGINIAWOOLF

(1882-1941)ADELINEVIRGINIASTEPHENnasceuem25dejaneirode1882,emLondres.FilhadeSirLeslieStephen,historiador,críticoeeditor,edesuasegundaesposa,JuliaPrinsepStephen,notávelpelarenomadabeleza,tevecontatocomomundoliteráriodesdecedo.Aosvinteanosjáeraumacríticaliteráriaexperienteeem1905passouaescreverregularmenteparaoThe

TimesLiterarySupplement.FoinasreuniõesdocélebregrupodeBloomsbury–comoveioaserchamadoocírculodevanguardaintelectualquereuniaescritoreseartistas,desde1904,emLondres–,queconheceuseufuturomarido,ocríticoeescritorLeonardWoolf.Comelefundoua

HogarthPress,em1917,responsávelpelapublicaçãodeautorescomoT.S.Eliot,KatherineMansfield,MáximoGorki,alémdaobracompletade

SigmundFreud.SeusprimeirostrabalhosincluemosromancesAviagem(1915),Noiteedia(1919),OquartodeJacob(1922),Mrs.Dalloway(1925)–livroqueinovouaoapresentarumatramanãolinearquesedesenvolvedentroeforadamentedaspersonagens–,Passeioaofarol(1927)eOrlando

(1928).AsduasprimeirasobrasdeficçãoprepararamoterrenoparaOquartodeJacobeparaosoutrosquevieramdepois:nesteséquea

escritorareinventouanarrativaficcionalmoderna,obtendosucessodepúblicoereconhecimentodacrítica.Noiníciodadécadade30,publicouoromanceAsondas(1931),suaexperiêncialiteráriamaisradical.Esteexperimentalismoextenuouaautora,queencontroudivertimento

relaxantenaescritadeFlush(1933;L&PM,2003),livrocontadoapartirdopontodevistadeumcão.Nesteperíodo,Virginiajáapresentavaumhistóricodesaúdementalfrágil,queculminarianoseusuicídioem1941,quefoiprecedidoporumasériedecolapsosnervosos:primeiro,comamortedamãe,em1895;depois,comofalecimentodopai,em1904;e

novamentelogoapósoseucasamentocomLeonard.