Post on 01-Feb-2018
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Exu, Xarpi e outras trocas sobre ontologias enigmáticas1
Samuel da Silva Lima - FEBF/ UERJ, Rio de Janeiro
RESUMO
Antes de ser conhecida como “maravilhosa”, o solo da cidade do Rio de Janeiro já
exibia contendas, inclusive com muitas delas sendo simbolizadas como guerras.
Dos combates entre os tupinambás, portugueses e franceses, para a política genocida do
Estado, muitas práticas foram/ são marginalizadas, sobretudo pelos esclarecidos olhares
conservadores, provenientes durante a colonização ocidental, e que mantém a tensão nas
ressignificações contemporâneas permitidas com a modernidade.
Quando nos aproximamos dos saberes e práticas presentes na cultura do “ser carioca”,
percebemos que suas ações discriminadas parecem mostrar certo parentesco umas com
as outras. A entidade Exu, conhecida no desfecho de uma série de características acerca
da imprevisibilidade, evidencia situações também recorrentes no universo da escrita
Xarpi como, por exemplo, os frequentes históricos de violência sobre corpos envolvidos
com tais atividades.
O respectivo texto irá relatar como as eminentes posições Exu e Xarpi são tratadas, com
foco no impacto entre o corpo normativo e o corpo que quebra a normatividade.
PALAVRAS-CHAVE: EXU, XARPI e ENIGMA
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA.
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“Mal se acende a luz
Nasce o grão das ilusões
Nas mãos do sonhador
A natureza pões
Maravilhosos dons
E faz da vida
Dia de graça
E faz do tempo
A cura da desgraça
Faz da paixão
Essa magia
Depois envolve o dia
Na escuridão”
(Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro – “Mãos vazias”)
Primeiramente, saudamos e pedimos licença para Exu2, este que principia o discurso e
se comunica sobre os cosmos da cultura ioruba3, vigente nas diversas práticas afro
brasileiras e em outras denominações pelo globo4. Com presença marcada na música5,
2 No respectivo texto, a palavra “Exu” será escrita com a letra “x” pois, geralmente, esta é a forma usada
pelo cotidiano popular da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, também escreveremos e posicionaremos
(de maneira sucinta) algumas outras formas de invocar Exu.
3 A palavra “Exu”, que na pesquisa será escrita com a letra “x”, em ioruba, é escrita com dois acentos de
crases, e com a letra “s” – Èsù.
4 Por Exemplo, em Cuba, Exu é conhecido como Eleguá. Informações presentes em “Histórias do Okú
Lái Lái”. Disponível em:
<http://olorum.lendas.orixas.nom.br/ebooks/004_africaculturaafrobrasileira.pdf>. Acesso em: 20 set.
2016.
5 Por exemplo, a gira “Sino da Igrejinha” (“Seu tranca rua/ Que é dono da gira”), gravada por Martinho
da Vila em 1974, no disco “Canta Canta, Minha Gente” (presente no compilado de canções que recebeu o
nome de “Festa de Umbanda”) - segue o link da gravação do sambista: “MARTINHO DA VILA -
FESTA DE UMBANDA”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8EAqazbPiRU >.
Acesso em: 19 set. 2016. Gêneros musicais mais contemporâneos como o funk carioca, também exibem
homenagens as figuras de Exú. Por exemplo, nos versos do MC Cidinho General (da dupla Cidinho e
3
literatura6, e em outras elaborações, iremos trazer neste texto Exu como gerador do
movimento que permite a vida, em uma inicial reflexão sobre as energias de
encruzilhadas, caracterizadas por metáforas e relações com o campo metafísico, que se
contrapõe à linearidade moderna da compreensão ocidentalista – percurso estimulante
vital para as provocações que serão expostas aqui.
Exu, é aquele que dá vida “ao que estava morto ou não nasceu”. (SIMAS, p. 15, 2014).
Mesmo não sendo a própria realidade, pois precede a ela, Elegbara7, senhor da
irreverência, das artimanhas, sempre astuto, inteligente, malicioso e generoso, se torna a
possibilidade para o acontecer do impossível, ao mesmo tempo em que deplora os
sobressaltos advindos de uma segurança acumulativa, já que é inaugurador do acaso,
rompendo com qualquer plano minuciosamente elaborado. Exu, “Mensageiro atrevido
cutucado ao pé do ouvido”8, re-cria a vida com os seus recados através de metáforas
dinamizadoras de fluxos, que são enxergadas pelas posições reacionárias, limitadas,
confortadas no jogo de “cartas marcadas”9, como uma representação do mal/ mau,
diabólica.
Doca): “Sou Cidade de Deus/ Fã de Bezerra, filho de Zé/ Malandro é malandro, e mané é mané, quem
é, é/ Quem não é mete o pé” - “MC Cidinho - Um montão na hora da guerra fugiu”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7VCQvHjamnM>. Acesso em: 19 set. 2016.
6 Como “Macunaíma” (de Mário de Andrade) e “Dona Flor e seus dois maridos” (de Jorge Amado), obras
que tem como protagonistas personagens que são filhos de Exu.
7 O orixá Exu é conhecido pelo globo por outros nomes como Eleguá, Elegbára e Eleguara, como
sempre, nomes referenciados aquele que é senhor dos caminhos. Informações no texto “ELEGBARA: O
SENHOR DOS CAMINHOS”. Disponível em: <http://ifanilorun.com.br/?page_id=4662>. Acesso em:
04 de out. 2016.
8 Verso do poema de Nelson Maca no vídeo “Salgado Maranhão e Nelson Maca – Duas Gramáticas” –
AUTORES EM CENA (2015). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rPINn3LislY>.
Acesso em: 04 de out. 2016.
9 Estar presente em uma circunstância que já tem seu final decidido previamente.
4
Mas, quando enxergamos Exu como aquilo que nunca “abaixou a cabeça”10 para o
“bem”, ou que disse “sim” quando era “não”, e disse “não” quando era “sim”, facultado
no processo de restrição daquilo que se funda na existência de bases diferentes, a
demonização que criminaliza a entidade e suas extensões perde forças, e tem sua
realidade civilizadora ameaçada pela ambivalência enigmática comum nessas energias
afro-diaspóricas. As atitudes endiabradas, estas que mostram um autêntico
ressurgimento que acontece depois de desfrutarmos o “benefício de realizar esta descida
aos verdadeiros Infernos” (FANON, p. 26, 2008), nos leva para uma zona estéril onde,
diferentemente da sociedade ocidental - dominadora do campo emotivo e controladora/
formadora da conscientização -, age na ideia de razão que não é separada da emoção.
As lógicas que exibem a necessidade de dominar o corpo, esta que queremos criticar
neste texto, se mostram em uma realidade de tratamento diferenciado sobre certos
corpos, sobretudo com aqueles que são ontologicamente despojados, de universos
oriundos da diaspórica superfície do lado “derrotado”. Estamos falando dos ancestrais
escravizados indígenas e africanos, ou melhor, os primeiros corpos a serem colonizados
na formação do Brasil: estes que hoje realizam práticas e saberes ligados aos corpos que
se envolvem em atividades tradicionais da afro-diáspora (como os que reverenciam a
entidade Exu) e da cultura popular (que vamos ver sequentemente com a cultura Xarpi),
fenômenos que tem como maior público descendentes dessa colonização.
Figura 1 – imagem de Exu Lúcifer catalogada para venda.
Fonte: site Ebay11.
10 Expressão que referencia algo que não se adequa a alguma coisa ou alguém.
11 “Exu Lúcifer Estátua Do Brasil Quimbanda, A Umbanda, a Candomblé”. Disponível em:
<http://www.ebay.com/itm/Exu-Lucifer-Statue-From-Brasil-Quimbanda-Umbanda-Candomble-
/151859621315>. Acesso em: 8 de out. 2016.
5
Diferentemente da subjetividade moderna e suas forças que almejam encontrar na
gramática o desvelo do enigma, essas epistemes não mostram a fixação de querer
encontrar a clara “resposta para tudo”, a dita “humanidade esclarecida”, eliminadora de
condutas vivenciadas de outras racionalidades, não hegemônicas. (COELHO, 2015).
Assim, podemos lembrar de outra ação que cutuca o corpo de forma, digamos,
prioritariamente imagética, em uma trajetória com pouco mais de 4 (quatro) décadas de
existência, provocações e crimes12 sobre os patrimônios privados e públicos, a
piXação13: denominação brasileira para definir aquela grafia misteriosa e proibida,
exposta em uma superfície especialmente urbana, através de um fenômeno que contém
diversos signos linguísticos e de sociabilidade, o que leva a ressignificações próprias em
cada território.
Conhecida no estado do Rio de Janeiro como Xarpi - palavra piXar ao contrário, é o
dialeto usado entre os piXadores para identificar suas práticas e seus praticantes, ou
seja, Xarpi é a piXação, e ser Xarpi é ser piXador, sempre no singular -, empiricamente,
podemos dizer que esse fenômeno é uma prática popular juvenil carioca, que habita
obras inconclusas, em atos simbólicos, vistos como antisimbólicos quando apresentados
nos “cartões postais”, ou seja, na paisagem diversificada de belezas naturais e favelas,
envolvendo o conhecimento carioca da “malandragem das ruas”, em uma “utopia
romântica” que revela desejos de viver no maravilhoso. Imagem de uma estetização
paisagística abstrata que oculta desigualdades sócio espaciais delicadas contidas na
distribuição de bens (equipamentos e serviços públicos) entre os diferentes bairros e
regiões do espaço urbano da dita “cidade maravilhosa”, e que revelam conflitos dados
nas diferenças socioculturais e econômicas:
Os morros, planícies, manguezais e margens de rios e lagoas
habitados pelas comunidades populares, ganharam
12 O estado do Rio de Janeiro, em articulação com seus municípios, decretou em 2014 a “Política Estadual
de Antipichação”. Disponível em:
<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/0f2335f8b010f23d83
257c6000645557?OpenDocument#_Section1>. Acesso em: 01 de ago.2016.
13 Apesar de ser usada na língua portuguesa com “ch”, iremos escrever a palavra (e suas derivações, por
exemplo: piXar) com a letra “X” maiúsculo, em afinidade com o trabalho de Gustavo Coelho em
PiXação: Arte e Pedagogia como Crime (2009), onde submete a grafia de Massimo Canevacci no livro
Culturas eXtremas (2005).
6
historicamente significados muito distintos dos atribuídos à
cidade maravilhosa. Eles representam uma paisagem a ser
negada, algo que macula o culto ao maravilhoso da paisagem
carioca. Os signos da natureza estilizada e os lugares da
sociedade desigual se encontram e se afrontam: são símbolos e
antissímbolos, em duelo na paisagem urbana, revelando
distinções de ordem sociocultural e economia. (BARBOSA,
2012, p. 31).
Protagonizada majoritariamente por jovens oriundos de espaços populares - estes da cor
da pele preta, pobres financeiramente e moradores das favelas, subúrbios ou outros
loteamentos que sofrem estereótipos e enquadramentos subalternizadores -, podemos
lembrar que a piXação sofre com a amputação de suas formas corporais, materiais,
vinculares, interpretativas, estabelecidas em seus variados perfis sociais, renegadores do
viver a vida sem fruição. Essas restrições genocidas se posicionam como uma complexa
continuação colonizadora presente nas ressignificações modernas, estas de elementos
que objetivam civilizar os corpos, inclusive com bases racistas que objetivam
exterminar os que não se enquadram. Sendo assim, queremos lembrar de dois casos que
ocorreram na cidade do Rio de Janeiro entre 2015 e 2016, envolvendo os universos Exu
e Xarpi: uma menina de 11 anos de idade, que foi apedrejada na cabeça após sair de
uma festa de candomblé14; e 3 (três) jovens grafiteiros, que foram torturados por
apoios15 - trabalhadores que fazem a segurança nas ruas dos centros dos bairros e
14 Notícia completa, de título “Vítima de intolerância religiosa, menina de 11 anos é apedrejada na cabeça
após festa de Candomblé”. Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/vitima-de-
intolerancia-religiosa-menina-de-11-anos-apedrejada-na-cabeca-apos-festa-de-candomble-
16456208.html>. Acesso em: 21 set. 2016.
15 Segurança privada comumente encontrada nos médios e grandes comércios dos centros das cidades e
bairros brasileiros, e que são conhecidos por condutas questionáveis, em práticas muito parecida com o
que o Rio de Janeiro conhece por milicianos – nomeação generalizada de pessoas que participam de
grupo paramilitares (ex policiais, ex bombeiros, vigilantes, ex agentes penitenciários), que tem como
prática a extorsão de moradores e comerciantes, em troca da garantia de proteção, através de um controle
armado e do controle de muitos serviços, como a venda de gás, por exemplo. Informações no texto “As
milícias de verdade”. Disponível em: <http://super.abril.com.br/comportamento/as-milicias-de-verdade>.
Acesso em: 07 out. 2016.
7
cidades brasileiras -, depois de serem confundidos com piXadores, no Centro da cidade
do Rio de Janeiro16.
Podemos perceber que nos dois casos aconteceu o agir que operou prioritariamente pelo
julgo, e sucessivamente por ações que feriram, humilharam, almejaram a destruição do
corpo, quando racionalizou a validade do sentido, apenas como algo que possamos
justificar, tratando como transgressão outras racionalidades não padronizadas. Neste
momento, as energias que escapam da dimensão voluntária e cognitiva das consciências
conservadoras, são posicionadas como “coisa nenhuma” ou até mesmo algo
perigosamente mortal. A falácia: “não contém os traços necessários de uma religião”,
dita por um Juiz Federal17; a opinião de um pastor: “Eu sinto algo estranho sobre
aquele continente”18; ou a ameaça emergente que sai da boca de um agente de
segurança privada, “Se tú olhar pra mim, eu vou estourar a sua cara!”19, evidenciam
uma ditadura julgadora que traduz20 figuras, metáforas, louvações, práticas e saberes de
corpos unicamente como errantes. Essa situação também mostra a insuficiência de
aproximação com estruturas que se posicionam de forma impermeável aos sistemas
filosóficos, estes que, como na entidade Exu e na cultura Xarpi, são marcados pela
16 Situação ocorrida em janeiro de 2016. Matéria com o título “Vídeo mostra agressão a jovens no Centro
do Rio”. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/01/video-mostra-agressao-
jovens-no-centro-do-rio.html>. Acesso em: 21 set. 2016.
17 Informações na notícia de título “Umbanda e candomblé não são religiões, diz juiz federal”.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-umbanda-e-candomble-nao-sao-
religioes-diz-juiz-federal.shtml>. Acesso em: 07 out. 2016.
18 Falas do pastor, presidente da Igreja Assembleia de Deus Catedral do Avivamento, Conferencista
Internacional, escritor, cantor e deputado federal Marco Feliciano, no programa Antenados, da Boas
Novas TV – Link (entre 8’ e 35’’ – 12’ e 47’’): “Antenados Pergunta - Marco Feliciano - 07-03-2016”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ztQnNz5ytnY>. Acesso em: 21 set. 2016.
19 Matéria sobre o vídeo que circulou na internet, e que já comentamos aqui. Vídeo “Grafiteiros
confundidos com Pixadores são agredidos no Centro do Rio de Janeiro”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=KC25kwPFj3Y> (em 50’’segs.). Acesso em: 07 out. 2016.
20 Como em “Traduttore traditore” do provérbio italiano, no sentido de trair a palavra, em nome de algo
que seja considerado melhor. In: “Nota do Tradutor”, no livro “Pele negra, mascaras brancas”, de Frantz
Fanon (2008), obra que iremos nos referenciar em seguida.
8
presença do que “não se quer ver... pois vê-la e entende-la seria conferir-lhe uma
legitimidade que ela ‘não deveria’ ter.”. (MAFFESOLI, p. 77 a 78, 2004).
Figura 2 – o Xarpi Pifil, e a frase “Favela pediu lazer: ganhou UPP”, exposta em um muro no Largo da
Carioca (Centro do Rio de Janeiro – RJ).
Fonte: Foto - Samuel Lima.
O que nos interessa nessa profunda questão são as síncopes desses universos, ou seja, a
dissimulação que surge nas práticas, saberes e dizeres orientados por racionalidades de
outras visões de mundo, assentadas em princípios cosmológicos, junto a relação do
indivíduo com o tempo-espaço, em perspectivas que se opõem à racionalidade
ocidental, frente às redes de relações, negócios e atravessamentos da composição de um
determinado contexto social. Luiz Rufino dá um alerta para as ações que criminalizam
não só a figura de Exu, como outras ambivalências afro-diaspóricas. Ele lembra que o
termo macumba/ macumbeiro (a) usado comumente em histórias com traços de matrizes
africanas, ao mesmo tempo é empregado na sentença de declarações ignorantes,
preconceituosas e violentas sobre as manifestações tradicionais do candomblé,
umbanda, jongo (RUFINO, p. 75, 2014).
É nesse sentido que Exu tem seu endeusamento considerado como errado por devotos
de outras denominações de crenças em nosso cotidiano. O resultado dessas
conscientizações violentas está presente no largo histórico de casos de intolerâncias e/
ou racismos, inclusive em espaços institucionais21 e sobre os lugares de resistência - os
terreiros, por exemplo, ainda enfrentam os múltiplos ataques, como o que aconteceu no
caso da Mãe Gilda de Ogum, morta após a publicação do jornal Folha Universal22
21 No curta-documentário “Intolerâncias da Fé”, podemos acompanhar alguns desses casos, como os que
acontecem em escolas públicas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=usHFttOTDcY>.
Acesso em: 21 set. 2016.
22 Veículo jornalístico da Igreja Universal do Reino de Deus.
9
(edição com 1372000 exemplares, distribuídos gratuitamente entre 26 de setembro e 2
de outubro de 1999), trazia na capa o título “Macumbeiros, charlatões, lesam o bolso e
a vida de clientes”. O veículo de comunicação desmantelou uma imagem de Mãe Gilda,
ilustrando-a com uma tarja preta em seus olhos, “normalmente” usada para não
identificar alguém que está envolvido em crimes. Após essa exposição, a casa de Mãe
Gilda foi invadida e destruída por religiosos neopentecostais, onde ela sofreu seu
primeiro enfarto, e que depois disso, em 21 de janeiro de 2000, a mãe de santo veio a
falecer23.
Esse contexto de intransigências se dá em um “longo processo de trocas, diálogos,
negociações, imposições e resistência entre os sistemas religiosos africanos e os de
origem cristã, como o catolicismo e, mais recentemente, o neopentecostalismo”
(SILVA, p. 18, 2015). Até as primeiras décadas do século XX, tudo que estava
associado à cultura negro-africana (o samba, a capoeira, o jongo, a feijoada, a umbanda,
o candomblé), não foi legitimado para representar o Brasil, e sim criminalizado.
(SILVA p.154, 2015). Mesmo que o candomblé e a umbanda estejam dentro da
autonomia de diversas instituições e ações legislativas consolidada ao longo dos séculos
XX e XXI, é inegável que ainda hoje as relações umbilicais entre os terreiros e outros
espaços de produção e de sociabilidade afro-diaspórica - seja pela cultura, arte, ou algo
do tipo -, mostra que “andar de branco” é um ato de coragem. No Rio de Janeiro, a dita
“misericórdia” que aparecem nos discursos dos fanáticos religiosos, estes que se
mostram devotados pela verdade única, não exibe uma prática de compaixão, nem
mesmo o público infantil, já que é o estado com mais casos de denúncias de intolerância
religiosa contra crianças24.
Essa eterna tensão “colonizador versus colonizado” acontecem na cidade do Rio de
Janeiro antes mesmo de nascer o primeiro carioca, a partir de diversas contendas dos
23 Informações sobre o caso de Mãe Gilda, e a posição da oficialidade do Governo Federal em 2007,
determina que o dia da morte de Mãe Gilda deve ser o Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa.
Disponível em: <http://www.secom.ba.gov.br/2015/01/123313/Homenagem-a-Mae-Gilda-marca-Dia-de-
Combate-a-Intolerancia-Religiosa.html>. Acesso em: 21 set. 2016.
24 Informações na matéria “Rio é o estado com mais casos de intolerância religiosa contra crianças” –Disponível em:
<http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-06-18/rio-e-o-estado-com-mais-casos-de-intolerancia-
religiosa-contra-criancas.html>. Acesso em: 21 set. 2016.
10
exploradores, conquistadores e moradores nativos, nos conflitos entre tupinambás,
portugueses e franceses. Em “Rio antes do Rio” (2016), livro que tem como foco a
formação da cidade do Rio de Janeiro pelo ponto de vista dos “vencidos”, através do
mergulho no nebuloso e energético passado “carioca” que ainda iria acontecer. Diante
de várias provocações memoriais e desconstruções realizadas pelo autor Rafael Freitas
da Silva, uma delas destaca a origem do próprio nome carioca, que na ideia de base
ocidental - privilegiadora da visão dos colonizadores europeus -, tem como significado
“casa do homem branco”, ação que exalta a figura dos navegantes, dos primeiros
colonos, dos capitães, dos padres jesuítas, enfim, dos “conquistadores”/ aniquiladores,
ao mesmo tempo em que anula a vida nativa dos originais povos que lá viviam, antes da
chegada das grandes navegações.
Rafael lembra que Jean de Léry, um dos primeiros a elaborar uma fonte sobre a história
da cidade do Rio de Janeiro - anteriormente à sua fundação, que só veio acontecer em
1565 -, mostra uma hipótese sobre o significado de kariók (carioca) diferente, pois a
expressão teria a denominação de “a casa dos carijós”, entendimento que sempre foi
desprezado, com o argumento que seria improvável o uso desse sentido por parte dos
tupinambás, já que o nome tinha relação com uma tribo inimiga. (SILVA, p. 98, 2016).
Esse julgar histórico, que despreza os conflitos, ao mesmo tempo que exalta a força
corpórea e epistêmica colonizadora, exclui a outra parte da ambivalência que ainda está
intrinsecamente no “ser” carioca: filhos e filhas de índias escravizadas, e um pouco mais
tarde, de outras mulheres escravizadas, trazidas da África, e que aqui foram/ são
esquartejadas, estupradas e ignoradas pelo conceito a-histórico de “democracia racial”,
uma das bases racistas que se estabeleceu no Rio de Janeiro, em outras partes do Brasil
e (porque não) do mundo.
O discurso deturpado da “democracia racial” é uma ação colonial, inscrita através da
forma de governabilidade, em que algumas práticas, como lembra o indiano Homi
Kamat Bhabha:
(...) reconhecem a diferença de raça, cultura e história como
sendo elaboradas por saberes estereotípicos, teorias raciais,
experiência colonial administrativa, e sobre essa base,
institucionaliza uma série de ideologias políticas e culturais
que são preconceituosas, discriminatórias, vestigiais,
arcaicas, “míticas”, e, o que é crucial, reconhecidas como tal.
11
Ao “conhecer” a população nativa nesses termos, formas
discriminatórias e autoritárias de controle político são
consideradas apropriadas. A população colonizada é então
tomada como a causa e o efeito do sistema, presa no círculo
de interpretação. O que é visível é a necessidade de uma
regra dessas, o que é justificado por aquelas ideologias
moralistas e normativas de aperfeiçoamento reconhecidas
como Missão Civilizatória ou o Ônus do Homem Branco.
(BHABHA, p. 125, 2010).
Essa é a lógica eurocêntrica que anula e vela “todo sangue derramado”25 que acontece
na fundação de cidades como a do Rio de Janeiro, através de hostilidades, genocídios, e
outros “produtos do sangue misto”. Uma coleção de fatos francamente aniquiladores,
seja no quadro legislativo ou no julgamento popular da vida, em situações que ocorrem
através da força julgadora, em ideias fechadas presentes no longo percurso de
consolidação do pensamento patriarcal, que exterminam corpos durante toda a
colonização subjetiva e corpórea presente no nosso país, em troca do domínio ocidental.
A primeira parte da música “Mãos vazias”, citado como epígrafe neste texto, onde a
“desgraça” é trocada pela “graça”, depois do nascimento do “grão das ilusões”, nos fez
lembrar do contraditório universalismo moderno e suas lógicas de emancipação que tem
o “bem” como “efeito”, ação de apologia e justificativa de todos os colonialismos e
etnocídios realizados pela ocidentalização do mundo a partir do século XIX, e que
acompanha o cotidiano contemporâneo, assim como estamos exemplificando durante
todo o texto. Com foco na ideia de cultura26 como algo que liga o homem a teias de
significados entrelaçados por ele mesmo (GEERTZ, 2008), tentamos aqui provocar
sucintamente a cidade do Rio de Janeiro em seu caráter “semiótico” (signos), onde
muitas das vezes a cultura mais confunde do que esclarece, na interpretação do ser
25 Parte do verso da música “João do Pulo”, de João Bosco, faixa lançada no álbum “Cabeça de nego”
(1986).
26 Geertz (2008) recupera o conceito de Weber, e acredita que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu. O comportamento é uma ação simbólica, e a ação social (fluxo do
comportamento) faz com que as formas culturais se articulem. O significado das culturas (no plural) surge
no papel que elas desempenham. Esse significado é público, porque a cultura é pública.
12
humano como um enigma completo – por exemplo, apesar de falarem a mesma língua,
pessoas da mesma nacionalidade não se entendem. Deste modo, seguimos as linhas de
provocações sobre as complexas tramas no cotidiano dos discursos realizados pelas
populações em dispersão, através da aproximação com os fios narrativos visíveis e
invisíveis, estes que são entendidos/ vividos nas trajetórias protagonizadas por sujeitos
(as) que operam pela “inteligibilidade de suas práticas, suas redes de saberes, suas
capacidades inventivas e suas formas de organização social” (RUFINO, p. 67, 2014).
Empiricamente, com o foco na ontologia da constituição do ser e das práticas, ao nosso
ver, Exu e Xarpi são análogos epistemologicamente quando os dois fenômenos são
enquadrados na ideia de julgo, ação que esculhamba com o povo de santo, através do
padrão moralista do “justiceiro”, desenvolvido na trajetória das múltiplas facetas do
extermínio, mesma ação genocida presente na vida piXadora, marcada pelos
estereótipos circunstanciais, que recusado as ambivalências presentes nessas atividades
cotidianas, de “reação teórica e política que desafia os modos deterministas ou
funcionalistas de conceber a relação entre o discurso e a política.”. (BHABHA, p. 106,
2010).
Os estereótipos aprisionadores de um mundo dissímil se mostram, por exemplo, nos
graves comentários midiáticos realizados pelos meios de comunicações hegemônicos e
de massa, como os que aconteceram em fevereiro de 2014, quando a âncora do
telejornal “SBT Brasil”, Rachel Sheherazade, fez declarações que infringem os Direitos
Humanos, ao defender a ação de “justiceiros” que espancaram, desnudaram e
amarraram um jovem que estaria furtando pela região do bairro do Flamengo (Zona Sul
carioca). Sheherazade chamou o jovem, negro e (aparentemente) morador de rua de
“marginalzinho”, e explicou que o ocorrido teria sido uma ação de “legítima defesa
coletiva”, explanando que “a atitude dos vingadores” é “compreensível”27. Sheherazade
fomenta ideias sobre o mal/ mau unicamente como algo “pecaminoso”, demoníaco,
logo, não reconhece, como já disse Michel Maffesoli, a importância da “volta aos
místicos”, momento em que algo é considerado como “ruim” por agir completamente
contra a violência totalitária do universalismo moderno: sentimento que coloca em
“segundo plano” a eficiência externa, e protagoniza a eficácia interna, em um saber
27 Afirmação e declaração completa a favor dos justiceiros que violentaram suposto assaltante no vídeo
“Rachel fala sobre o adolescente vítima de ‘justiceiros’ no Rio” - Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=unVIpQHLDwE>. Acesso em: 22 fev. 2016.
13
incorporado do corpo, em condutas que não passam necessariamente pela
conscientização ou verbalização, garantindo, a longo prazo, a permanência irredutível
das diversas declarações rotineiras, inclusive integrando seu oposto, ou seja, a felicidade
e a infelicidade, o tudo e o nada. (MAFFESOLI, p. 32, 2004).
Figura 3 – imagem dos jovens espancados pelos apoios.
Fonte: print screen a partir do vídeo disponibilizado no YouTube28.
Figura 4 – capa da Folha Universal que circulou entre setembro e outubro de 1999.
Fonte: imagem retirada do site Black Women of Brazil29.
Exu - entidade diaspórica, introdutor da oratória, que se posiciona na imprevisibilidade e
transforma o absurdo em concatenação, que abre e fecha alguma coisa, através de
práticas acolhedoras da imprevisibilidade, realizadas por saberes populares
principiadores “do dinamismo, do movimento, dos caminhos, da comunicação, das
trocas, dos entrecruzamentos, da sexualidade e da ambivalência” (RUFINO, p. 65,
28 “Grafiteiros são Espancados no Rio de Janeiro”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=t58kClQLW3w>. Acesso em: 08 out. 2016.
29 “Mãe Gilda, a symbol of the fight against religious intolerance, to be honored with a bust”. Disponível
em: <https://blackwomenofbrazil.co/2014/12/29/mae-gilda-a-symbol-of-the-fight-against-religious-
intolerance-to-be-honored-with-a-bust/>. Acesso em: 08 out. 2016.
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2014) – e Xarpi – cultura coletiva de práticas que se posicionam antissimbolicamente
através de procedimentos simbólicos, e que opera por práticas estéticas iniciadas e
inacabadas em feitos que são alimentados cotidianamente, o que mantém a veracidade
desse fenômeno como um “lugar de ensaios, em boa medida, inconscientes, de
resistência aos paradigmas desencantados da modernidade.” (COELHO, p. 102, 2015) -,
se entroncam a partir de corpos marginalizados, manifestadores de energias ambiciosas
por desfrutes negados na condução colonizadora moderna, esta que harmoniza os
sentidos da consciência com o esclarecimento aprisionador e anulador de episódios
obscurecidos, nebulosos, misteriosos, enigmaticamente intensos, nascido de atitudes
mais fervorosas do que ponderadas, especialistas em desarranjar a luminosidade
hegemônica do entendimento ocidental.
A própria cultura da piXação, apesar de ser crime, exibe um manancial de saberes,
vivências e artes de fazer, através de uma “escrita fora da escrita”30, e se posiciona,
assim como outras práticas31, com um repertório estético, onde é em si mesmo
catalisador de conhecimento e determinantes da experiência de estar na cidade, a partir
de sua “presença” inexorável e inegável, o que a posiciona como um fenômeno:
... tão ou mais importante que aquilo que se fala dele, tanto o
é que, como pudemos ver, quando indagados sobre as razões
de suas práticas, esses meninos e meninas praticantes lançam
mão frequentemente de metáforas sensoriais, afim de
produzir um feito dessa “presença” em que os ouve,
servindo-se, para isso, mais do enigma da poesia que da
explicação clarificante. Nesse caso, o próprio discurso
pretende funcionar como “presença”, impedindo que a
experiência seja ameaçada por um único sentido, e dando,
para isso, lugar devido à fiscalidade como fator determinante
30 Como bem explicou Gustavo Coelho (2015), sobre a filosofia da linguagem trazida por Maurice
Blanchot.
31 Na tese de Gustavo Coelho, são apresentadas para além da piXação, as culturas dos Bailes Funks de
Galera, das Torcidas Organizadas e das Turmas de Bate-Bola. Disponível em:
<http://vozerio.org.br/Gustavo-Coelho>. Acesso em: 07 out. 2016.
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para uma compreensão composta da cultura. Trata-se,
portanto, menos de saber o que pensam e mais de sentir o que
sentem, recolocando em cena assim a corporeidade, dimensão
negada para a invenção do homem incorpóreo moderno.
(COELHO, p. 111, 2015).
Com isso, podemos suscitar que essas “metáforas sensoriais” vistas na citada tese de
Gustavo Coelho – por exemplo, o cheiro e o barulho da tinta que sai da tala32 -, coloca
em cheque a ideia de que tudo deve ser justificado, pois as tentativas de questionar,
possivelmente, podem nos revelar respostas “sem respostas”. Porque, em certos lugares
e/ ou momentos, nos sentimos livres para rir, gargalhar, chorar, louvar, e em outros não?
Porque, no momento do gol, até o torcedor mais calmo fica imerso e “esquece” a sua
“educação” para colaborar com a torcida, através de berros ofensivos contra a outra
torcida e/ ou time? Porque não conseguimos entender de maneira concisa e segura os
motivos de nossos gritos, no momento do gol (a favor ou contra) de nosso time de
futebol? Os “porquês” mostram uma presença sensitiva, algo que demanda
prioritariamente o corpo, quando grande parte dos motivos sobre “o que fazemos” não
está na “boa” justificativa racional, e sim na negação da ideia de escolha. Com isso,
empiricamente, podemos dizer que respostas como “pra você entender, tem que sentir”,
confirma uma provocação: a aproximação sobre culturas que priorizam o corpo devem
ser feitas para além dos “projetos conscientes” presentes nas bases conceituais
modernas.
Para Gustavo Coelho (2015), as ações que podemos pouco explicar, aquelas que
remetem a sentimentos, suponhamos, do tipo “Não sei como comecei, mas eu faço”33, é
algo pressuposto na relação entre a pessoa e a cultura que ela prática, existente não
somente nas questões racionais, mas também sensoriais, emocionais, o sentir sem
32 Palavra lata ao contrário, é o dialeto usado entre os piXadores para identificar seu principal
instrumento: a tinta spray.
33 Como bem lembra Gustavo Coelho, citando uma das passagens do Xarpi Tatá, no filme “Luz, Câmera,
PICHAÇÃO”. Ele diz: “Eu sou o Tatá, mas na verdade eu sou o João. O Tatá é um modo do João talvez
se divertir, talvez viver algumas aventuras diferentes do cotidiano do João. Eu, como Tatá, desafio
qualquer parada, como João eu não desafio ninguém, compadre. Então é isso, mas nunca deixar o Tatá se
tornar o João. Porque se depender do Tatá, o Tatá não vai querer trabalhar, Tatá só vai querer piXar,
compadre”. (COELHO, p. 119, 2015).
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querer sentir, ou melhor, quando não se domina absolutamente o que se sente, logo,
pode ser capturado, contagiado, submerso nas sensações - estas advindas da dinâmica
do “ser sendo” (expressão de Heidegger, citada por Gustavo Coelho). Tal conduta anti-
domestificadora nos dá pistas através do agir como forma indeterminada do ser, que se
mostra mais permeável, chegando a reconhecer na alteridade algo ativo na sua própria
construção, em energias dadas na circunstância de atividades com fortes características
místicas, estéticas, com outras contextualizações performáticas, expressivas, sonoras,
palavradas, figuradas, como as potências culturais que nascem da trincheira popular,
formada de maneira inexorável na condição humana, e ameaça as possíveis dissoluções
da vida como agente criativo.
A complexa trajetória ontológica do enigma, age prioritariamente como o mistério da
existência, e opera como aquilo que impede a harmonização sobre conhecimento total
das coisas no mundo. Manter as certezas em atemorização é a principal necessidade
para a continuidade da existência das forças enigmáticas. Essa execução é regada e
florescida dia a dia, logo, dá continuidade poética para a cultura, em um vão entre os
fenômenos versus as certezas sobre esses fenômenos, que permite o viver, o falar, o
sentir de algo não revelado, visto como subversor, diante das convicções ameaçadas.
O Xarpi e outros fenômenos pertencentes a “cosmologia ‘rueira’”, quando pensados em
seu vasto repertório de indícios, pode ser provocado por outras reflexões sobre a
subjetividade popular. Dessa forma, podemos reconhecer a cultura Xarpi, não em sua
possível instigação de “dramas”, através de vidas míseras, desventuradas, desgraçadas,
mas sim como um fenômeno autêntico, que se posiciona na prática produtora de
aparições e significações estéticas, que desajustam o regime colonizador mental da
subjetividade moderna, logo, é uma ação que não se enquadra nas lógicas empreendidas
por tentativas explicativas de aprisionamento, como vemos nas aplicações policialescas
oficialmente consolidadas pelo Estado, que mostra uma sensibilidade seletiva, através
de ações que se configuram em divergências no tratamento de alguns sujeitos em
comparação a outros. Para o Xarpi, as intervenções seguem pela dureza oficializada -
através da “Política Estadual de Antipichação” (como já citamos em nota de roda pé) –
não oficializada, em atividades individuais e agrupadas, que mostram um almejo pela
figura do “justiceiro”, estes que operam pelo extermínio daquilo que não se enquadra
nas morais estabelecidas. Diferentemente disso, para outras grafias ou estéticas
imagéticas nos mesmos muros de uma cidade, são tratadas com o combate, a partir de
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um enquadramento benevolente reproduzido e exibido nas ideias e atividades de muitos
projetos sociais, sobretudo naqueles que agem em forma de “curadoria” de atividades
artísticas e/ou de conservação da cidade: o decreto34 de 2014 batizado de GrafiteRio35 -
mobilizado pelo Instituto Eixo Rio36 e assinado pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro -, que dá alguns critérios e diretrizes normativos para as intervenções dos
grafiteiros, liberando postes, colunas, muros, pistas de skate e tapumes de obras para
realizar as intervenções, e proíbe a grafitagem em muros que são considerados
patrimônios históricos, viadutos, fachadas de imóveis públicos e tombados, tudo ligado
a ideia de revitalização de espaços públicos de “alto potencial turístico”, ao mesmo
tempo em que evidencia uma justificativa para atividades violentas sobre aqueles que
não se mostram favoráveis ao contexto hegemônico, dizendo quem pode ser (ou não)
potencializado.
A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e a suas legislações que (“des”) criminalizam
as grafias marginalizadas urbanas, são fundadas no discurso de cidade “Graffiti
Paradise”37, que acaba não legislando sobre o tipo de estética, e sim sobre o tipo de
34 Link oficial da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que explicita do decreto “GrafiteRio” -
Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=4606694>. Acesso em: 07 out.
2016.
35 Link com o decreto GrafiteRio - Disponível em:
<http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1316.nsf/f6d54a9bf09ac233032579de006bfef6/31bf
9681512db5a903257b7300614567?OpenDocument>. Acesso em: 15 fev. 2016.
36 Espaço criado “para potencializar a cena urbana da cidade”. O Instituto Eixo Rio é um grupo que tem a
pretensão de ser a principal plataforma de projetos culturais, e também ser o principal espaço de
desenvolvimento comportamental de jovens talentos na cidade do Rio de Janeiro. Ainda sobre o discurso
do Instituto Eixo Rio, eles acreditam serem “vozes das ruas”, tendo o foco em duas plataformas: a
GaleRio – graffitis espalhados pelos muros da linha 2 do metrô; e a Referência de Sucesso – programa de
mentoring (tutoria, mentor, “apadrinhamento”) financiado pelo “poder público”, com o intuito de
desenvolver jovens que estão cursando a graduação ou algum curso técnico, “preferencialmente oriundos
das camadas populares...”. O grupo ainda contribuiu com a construção da “primeira” galeria municipal de
arte urbana do Rio. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/primeira-galeria-municipal-de-arte-
urbana-do-rio-abre-as-portas-16459172>. Acesso em: 13 mar. 2016.
37 Informações na matéria “Decreto do prefeito Eduardo Paes cria normas para grafite na cidade”.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/decreto-do-prefeito-eduardo-paes-cria-normas-para-grafite-
na-cidade-11645311>. Acesso em: 07 out. 2016.
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ação, ou seja, o sentido do julgamento de “o que está fazendo”, e até “quem está
fazendo”. O decreto não legisla qual superfície o artista/arteiro estaria liberado para sua
prática. Esse equívoco jurídico no GrafiteRio surgi logo no Parágrafo único do Artigo
1º do documento, pois tem como objetivo coibir as pichações:
Parágrafo único. O “PROJETO GRAFITE” estimulado
pelo Poder Público, implementará políticas educacionais e
culturais com a finalidade de inibir a prática de pichações que
criam no ambiente urbano a poluição visual, transformando os
espaços pichados em locais para a pratica do grafite como arte
urbana, possibilitando a identidade artística e cultural aos seus
praticantes.
Com essa realidade, podemos dizer que a mesma instituição que persegue, bate, rouba e
até mata um piXador, é a mesma que licencia uma “pichação do bem”. A “liberação” de
“vanguarda” feita pela prefeitura apenas para algumas superfícies acaba não
amadurecendo a discussão sobre as estéticas gráficas das paredes urbanas, e tão pouco
descriminaliza os praticantes rueiros que tem o spray como instrumento. O resultado de
tal equívoco se dá no cotidiano amputador presente no universo Xarpi, que exibe uma
contraditória justificativa para a cultura política do extermínio de uma juventude que
sofre com um grande índice de homicídios38.
Quando analisamos o movimento, a circulação, a pluralidade da relação pós-colonial
presentes nas ideias do orixá Exu e na cultura Xarpi, podemos contribuir com as
provocações que se debruçam sobre as práticas que operam por elementos
descolonizados, a partir da criação de espaços pelos quais o (a) sujeito subalterno (a)
possa falar e ser ouvido (a). Tal lógica reconhece que não podemos falar pelo corpo
subalternizado, na tarefa de desafiar uma proposta contra essa subalternidade,
oferecendo um espaço de ouvidos para vozes que narram outras racionalidades
38 Segundo dados divulgados em maio de 2015, o maior índice de homicídios no Brasil acontece com o
público jovem (de 12 a 29 anos), pobre, do sexo masculino e da cor negra (perfil da maioria dos
praticantes do Xarpi). Os dados foram divulgados pela Secretaria Nacional de Juventude da Presidência
da República, e contém informações que argumentam sobre uma vulnerabilidade racial, já que o jovem
negro teria 2,5 vezes mais chances de ser morto. Link sobre a divulgação da pesquisa, “Jovem negro tem
2,5 vezes mais chances de ser morto, diz relatório” - Disponível em:
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/jovem-negro-tem-25-vezes-mais-chance-de-ser-morto-diz-
relatorio.html>. Acesso em: 6 out. 2016.
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fenomenais de valores éticos, étnicos, estéticos e independentes, que não se encaixam
na moral cívica, estas que, como Exu e Xarpi, se posicionam em perspectivas
enunciativas, confrontando e desestabilizando o historicismo moderno que achata a
realidade, e enquadra aqueles que não podem ser ouvidos. (SPIVAK, 2010).
Figura 5 - piXação “Exu te ama”.
Fonte: site Monomito – Mitologia, Simbolismo, & o Sagrado39.
Até aqui, podemos dizer que o enigma é o mistério do mistério, nossa parte “in-
conhecível”, como um outro em nós mesmos, através de um princípio ativo de afetos
em potencial, que não se encaixam na racionalidade esclarecedora, condenadora das
ações afro-diaspóricas - por exemplo, quando agem com truculência sobre os corpos
que devotam o orixá Exu, este proprietário da “chave” que abre e fecha os múltiplos
caminhos e fronteiras do tempo-espaço -, e sonegadora de violações violentas (e
possivelmente racistas), como as que acontecem sobre corpos cometedores de crimes
irrisórios como a piXação - cultura que se mostra como problemática, diante das
condenações, reclusões e morte realizadas pelo Estado e sua população diversificada,
que banaliza o ímpeto juvenil, valorizando um muro mais do que uma vida.
39 “EXU TE AMA”. Disponível em: < https://monomito.org/2015/11/04/exu-te-ama/>. Acesso em: 08
out. 2016.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BHABHA, Kamat Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: editora UFMG, 2010.
COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Bate-Bolas e Funkeiros: Poéticas do
Enigma no Reino da Humanidade Esclarecida. In: Revista Visagem – Antropologia
Visual e da Imagem. Rio de Janeiro: UERJ, 2015.
COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Bate-Bolas e Funkeiros: doses do enigma
do reino da humanidade esclarecida. TESE (Doutorado em Educação) UERJ. Rio de
Janeiro, 2015.
FANON, Frantz. “Os condenados da Terra”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. Rio
de Janeiro: LTC, 2008.
RUFINO, Luiz. Histórias e saberes de jongueiros. Rio de Janeiro: Mil Palavras, 2014.
SILVA, Jailson Souza. BARBOSA, Jorge Luiz. FAUSTINI, Marcus. O Novo
Carioca. Rio de Janeiro: Mórula, 2012.
SIMAS, Luiz Antônio. Pedrinhas Miudinhas – ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros.
Rio de Janeiro: Mórula, 2014.
SPIVAK, Gayatri Chakraworty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: editora
UFMG, 2010.
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