Post on 22-Dec-2018
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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
IMAGEM E PALAVRA:
Reflexões sobre o Filme “Moça com Brinco de Pérola do diretor
Peter Webber”
MARIA DAS GRAÇAS GARCIA BUENO DRAGUS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
programa de Pós-Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade de São
Bento, para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob orientação do Professor Doutor
José Carlos Bruni.
Área de Concentração: História da Filosofia
São Paulo – SP
2013
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MARIA DAS GRAÇAS GARCIA BUENO DRAGUS
IMAGEM E PALAVRA:
Reflexões sobre o Filme “Moça com Brinco de Pérola do diretor
Peter Webber”
Dissertação de Mestrado apresentada ao
programa de Pós-Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade de São
Bento, para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob orientação do Professor Doutor
José Carlos Bruni.
Dissertação defendida e aprovada pela
Comissão Julgadora em ____ / Junho / 2013.
MEMBROS DA COMISSÃO JULGADORA:
_____________________________________________________
PROFº DRº JOSÉ CARLOS BRUNI – USP – FSB/SP – ORIENTADOR
_____________________________________________________
PROFª DRª SALY WELLAUSEN – MACKENZIE/SP
______________________________________________________
PROFº DRº FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA – USP – FSB/SP
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Dedico este trabalho à minha família: Nicolai,
meu esposo; Amra, minha filhota; e ao Professor
Doutor Marcelo Martins Bueno UPM
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Querido Mestre
Bruni
Como te sou grata
Tua figura esguia, frágil como um cristal inspira-me o desejo de habitar tua alma como uma
nesga de luz e banhá-la com o meu afeto a qualquer momento e para todo o sempre.
O teu conhecimento conduz o meu ser cansado que se deixa levar pela tua voz repousando-se
no teu saber a acalmar minha mágoa profunda por um tempo que permiti adormecer.
Porém que agora contigo desperta lentamente ao ouvir-te, convertendo-se em pequenas
chamas que ao derreterem a cera que as alimenta estão a desenhar em minha alma com suas
lágrimas um espelho d‟água que recebe as palavras que dizes como pétalas brancas que nele
se banham serenas a reluzir a tua sabedoria.
Meu espírito agradece e reverencia tua generosidade ao compartilhá-la comigo que, sem o
saber, está a inundar tudo que sou de emoção e alegria.
Muito obrigado.
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Agradecimentos
Ao Professor Doutor José Carlos Bruni por ter me incentivado a realizar esta dissertação,
abordando a linguagem cinematográfica como alavanca e estimulo para eu expressar meus
conhecimentos e sentimentos pela arte como aquela que pode através do amor apaziguar
nossas almas.
A Professora Doutora Saly Wellausen, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que
alicerçou meus conhecimentos filosóficos ao depositar na minha pessoa confiança ao doá-los
como grande mestra em minha graduação e que hoje me permitiu compartilhar com ela esses
momentos de estudos prazerosos na obtenção do meu objetivo. Meus agradecimentos por ter
aceito o convite dessa Instituição.
Ao Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva por sua contribuição enriquecedora nas aulas
e na qualificação pela generosidade com que se debruçou sobre meu trabalho incentivando os
desencadeamentos para a sua finalização.
Aos professores, funcionários e colegas dessa Instituição por toda a dedicação e confiança em
mim depositadas, que tornaram a minha permanência nessa casa motivo de orgulho e reflexão
para chegar a este momento inesquecível em minha vida.
Agradeço também as afilhadas queridas Alexandra Swerts Leandro, Célia Martins da Costa e
as amigas, ouvintes generosas, Ana Maria Simian, Maria José Moraes Rosa Ramos e Magda
Pittas do Canto Dattelkremer.
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Resumo
São muitos os questionamentos sobre as artes nos dias de hoje. Questões aparentemente sem
respostas. Coube-nos refleti-las sobre a arte da pintura em conjunto com uma linguagem atual,
dinâmica e desafiadora: o cinema. Sendo assim, procuramos nessa dissertação analisar que a
arte em quaisquer manifestações e em nosso caso, o cinema que usamos como uma das
alavancas também do seu arcabouço pictórico, demonstrar que a pintura de Vermeer
desabrochou no século passado para o grande público enquanto uma suspensão dos
sentimentos do artista Vermeer, sobre o qual Webber diretor do filme Moça com Brinco de
Pérola revelou através da qualidade desta pintura com a imagem cinematográfica e a palavra.
Conduziu-nos a nos reconhecermos em qualquer momento histórico. Graças a Heidegger, a
nosso ver, esse reconhecimento se dá por meio da interação que descobrimos ter com a obra
de arte, ou seja, que dela fazemos parte.
Palavras-chaves: Peter Webber, Martin Heidegger, Jan Vermeer e Moça com Brinco de
Pérola.
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Abstract
Today, there are many questions about the arts. Questions that have no answers. We have to
reflect on the art of painting, jointly with the current language, dynamics and challenges: the
cinema. Thus, we analyze in this thesis that art in all it‟s manifestations and in our case, we
use the cinema as one of the levers for it‟s pictorial framework, to demonstrate that Vermeer‟s
paintings flourished in the past century for the general public as a suspension of the feelings
of the artist “Vermeer”, on which Webber, the director of the film Girl with a Pearl Earring,
revealed the quality of this painting through the cinematic image and the word. It led us to
recognize ourselves in any historical moment.
Thanks to Heidegger, as we see it, this recognition is through the interaction with the painting
and discover, in other words, that we are part of it.
Key-words: Peter Webber, Martin Heidegger, Jan Vermeer and Girl with a Pearl Earring.
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SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................
12
Capítulo 1: Narrativa do Filme......................................................................
18
1.1 – A Felicidade Suspensa............................................................................ 18
1.2 – A Chegada...............................................................................................
19
1.3 – A Primeira Noite.....................................................................................
19
1.4 – A Jovem Patroa......................................................................................
20
1.5 – A Dama sem Rosto.................................................................................
21
1.6 – O Flerte....................................................................................................
22
1.7 – Os Vizinhos.............................................................................................
22
1.8 – O Parto....................................................................................................
23
1.9 – O Galanteador Soberbo.........................................................................
24
1.10 – A Expectativa........................................................................................
26
1.11 – O Banquete............................................................................................
27
1.12 – A Matriarca..........................................................................................
28
1.13 – O Constrangimento..............................................................................
28
1.14 – O Lar.....................................................................................................
29
1.15 – A Observadora......................................................................................
30
1.16 – O Encontro............................................................................................
30
1.17 – O Desabafo............................................................................................
31
1.18 – Vermeer.................................................................................................
32
1.19 – A Caixa..................................................................................................
32
1.20 – A Jovem Inimiga...................................................................................
34
1.21 – O Godê de Tinta Branca......................................................................
35
10
1.22 – Um Conto Campesino.......................................................................... 35
1.23 – Há Cores nas Nuvens...........................................................................
36
1.24 – Um Pequeno Anel a Enfeitar-lhe o Dedo...........................................
37
1.25 – O Bondoso Senhor................................................................................
38
1.26 – As Novas Ordens..................................................................................
39
1.27 – A Jovem não está Contente.................................................................
40
1.28 – Capelas de Oração................................................................................
41
1.29 – Tanneke.................................................................................................
42
1.30 – Os Namorados......................................................................................
42
1.31 – O Atrevimento......................................................................................
43
1.32 – A Vingança............................................................................................
44
1.33 – O Batel...................................................................................................
45
1.34 – O Galanteador Ardiloso.......................................................................
46
1.35 – Os Mexericos.........................................................................................
47
1.36 – O Alivio..................................................................................................
48
1.37 – A Modelo...............................................................................................
49
1.38 – A Perfídia..............................................................................................
50
1.39 – O Fascínio..............................................................................................
51
1.40 – A Curra.................................................................................................
52
1.41 – O Pedido................................................................................................
53
1.42 – A Pérola.................................................................................................
54
1.43 – O Defloramento....................................................................................
54
1.44 – A Dor da Jovem Mãe...........................................................................
55
1.45 – A Partida...............................................................................................
57
1.46 – O Bem, o Belo e o Bom.........................................................................
58
11
1.47 – A Declaração......................................................................................... 58
Capítulo 2: O Desvelamento...........................................................................
60
Conclusão.........................................................................................................
71
Bibliografia......................................................................................................
83
Ficha Técnica do Filme...................................................................................
84
Ficha Técnica da Poesia..................................................................................
84
Anexo I – Quadro “Moça com Brinco de Pérola”........................................
85
Anexo II – Quadro “Um par de Botas”.........................................................
86
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Introdução
A linguagem visual e a linguagem oral são o ponto de partida em nossa reflexão sobre a arte.
Para tanto elegemos como o objeto empírico de nossa pesquisa a obra cinematográfica do
diretor alemão Peter Webber “Moça Com Brinco de Pérola”. A produção do filme se deu na
última década do século passado a partir da adaptação do livro de mesmo nome da escritora
americana Tracy Chevalier.
Esse título se refere a uma obra do artista plástico Jan Vermeer realizada no ano
de1665. Na técnica do óleo sobre tela a medir 45 x 40 cm, é também conhecida como
A Menina do Turbante (ou A Menina do Brinco de Pérola).1
A imagem é tão subjetiva quanto à palavra. Porém a inseparabilidade delas no contexto em
que estamos a investigar depende do nosso interesse visual que é despertado por aquilo que
vemos. A narrativa do filme expressa a relação tensa do pintor com a modelo. Relação essa
permeada pela convivência doméstica entre eles, uma vez que a jovem do quadro trabalha
como serviçal para a família do artista.
Uma obra onde as palavras expressam o absolutamente necessário entre os personagens, está
a realçar o diálogo visual entre eles que convida o espectador a dele participar mergulhando-o
na atmosfera envolvente e misteriosa da história. Tudo aos poucos acontece por meio das
cenas que estão sempre a destacar o primeiro plano dos protagonistas num palco
minuciosamente elaborado como pano de fundo para a narrativa. Nesse sentido o diretor
trabalha a linguagem visual intensamente de acordo com a linguagem pictórica de Vermeer.
Essa linguagem deixa transparecer a alma do artista, o seu olhar. A maneira como Vermeer ao
olhar quaisquer que fossem o objeto dos seus quadros a estabelecer uma composição peculiar
para ele e por isso mesmo tão distinta da composição dos outros mestres da pintura flamenga
da época:
Mas Vermeer, ao invés dos seus predecessores, vê a realidade como um mosaico de
superfícies coloridas – ou talvez mais exatamente, ele transforma a realidade num
mosaico quando a transpõe para tela... Este jogo de formas dá à obra de Vermeer uma
qualidade singularmente moderna na arte do século XVII. Como adquiriu? Sabemos
muito pouco a seu respeito, exceto que nasceu em Delft em 1632 e lá viveu e
trabalhou até à sua morte, aos quarenta e três anos em 1675. Algumas das suas obras
acusam a influência de Carel Fabritius, o mais brilhante dos discípulos de Rembrandt;
1SCHNEIDER, Norbert. Vermeer 1632 -1675 Emoções Veladas. [tradução Carlos Souza de Almeida, Portugal] edição
original Koln: TaschenVerlag GmbH, 2010, p.69.
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outras sugerem o seu contacto com a Escola de Utrecht. Mas nada disto explica
realmente a gênese do seu estilo, tão ousadamente original que o seu gênio apenas há
um século foi reconhecido.2
Todas as cenas do filme obedecem a esse rigor composicional do artista, levando o
observador ao vê-las, cena por cena, conhecedor ou não da obra de Vermeer, a desfrutar de
seu conjunto, ainda que fictício no desenrolar do drama, graças ao cuidado do diretor que ao
elaborar as cenas incorpora o arsenal estético de Vermeer.
Webber constrói uma narrativa a partir do olhar de Vermeer. O enquadramento das cenas
expressa a linguagem construtiva dos ambientes internos e externos das casas e seus
arredores, típicos temas abraçados pelos pintores de então, porém a maneira como Vermeer o
faz em suas obras revela uma diagonalidade da luz a sugerir a tridimensão das figuras, sem
que na verdade ela exista enquanto um exercício de perspectiva esmerado. A perspectiva é
apenas sugerida pelo claro e escuro que limita a escala de tons. O primeiro plano em seus
quadros sobrepõe a tudo o mais. Neles os fundos são um complemento necessário para o
equilíbrio dos elementos a narrar uma história como pretexto do seu arcabouço estético.
Assim, em seus quadros tudo parece se destacar. O espaço de Vermeer é estranho porque sua
perspectiva existe ao mesmo tempo em que parece não existir. O artista cria em suas obras
uma ilusão de perspectiva e não a sua representação perfeita no objeto.
Webber consegue a nosso ver, transmitir a partir do olhar do artista a comunhão da linguagem
visual, isto é, da imagem com a linguagem oral, ou seja, da palavra. O olhar e os gestos dos
protagonistas são absolutamente reveladores e falam conosco. Redescobrimos na linguagem
visual dos atores a palavra que não é dita, mas que está ali, na expressão da cena, a nos
imprimir uma sensação inquietante que reclama verbalizarmos o que vemos. Na verdade nos
deparamos nesse redescobrir com uma síntese da imagem e da palavra na medida em que uma
e outra estão inseparáveis.
A inseparabilidade absoluta entre imagem e palavra nos leva a analisar que, apesar do silêncio
eloquente das cenas precisamos recorrer à linguagem oral, isto é a palavra não só como um
simples registro do que vemos, mas como algo que descobrimos em nós mesmos e estamos a
sentir (catarse). Precisamos ouvir esse algo, escrever esse algo. Essa urgência que reclama o
uso da palavra é impactante, pois somente por meio dela é que há o reconhecimento do ser da
2JANSON, H. W. História da Arte; [ tradução de J. A. Ferreira de Almeida, Maria Manuela Rocheta Santos, e colaboração
de Jacinta Maria Matos]. 5ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 534.
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coisa, daquilo que não é dito, mas que passa então a existir se verbalizado por ela, pela
palavra. Há, dessa maneira, o reconhecimento do ser, ou seja, da presença da coisa, daquilo
que não é dito, mas que passa então a existir se verbalizado pela palavra. Essa possibilita por
meio da representação, a presença, a aproximação da coisa enquanto ela mesma, para nós. A
percepção da coisa, ou seja, d‟ela mesma nos remete a ALETHEIA dos gregos (pré-
socráticos), ou seja, a presença da coisa nela mesma. Com a linguagem oral, ou seja, a palavra
se dá a aproximação da coisa enquanto ela mesma. Na obra de arte, por meio da linguagem
visual há a representação da invisibilidade do ser, pois o objetivo da obra de arte a nosso ver é
revelar o ser por meio de uma imagem que o nomeia, (nomeia por assim dizer o ser) com a
presença do mesmo, a cumprir assim a sua finalidade.
No entanto, sob uma abordagem semiótica comparativa temos também que refletir sobre a
permutabilidade entre imagem – palavra – imagem. Ao descrever as cenas do filme o fazemos
da maneira como elas são projetadas em nossa retina e em nosso consciente. Achamos
estimulante devolver para a imagem palavras produzidas por ela que, ao existirem geram uma
nova imagem em nosso consciente. Dessa maneira o imaginário visual é reproduzido mais
uma vez, só que agora no sentido inverso por meio do imaginário lingüístico, literário se for
escrito ou simplesmente oral se for dito, porém ambos estimulados pela palavra. Esse registro
determinante do ser, da coisa como ela é, a depender da leitura particular de cada indivíduo
pode se apresentar mais pobre, mais rico ou diferente.
Uma obra prima visual pode incitar a um escritor uma obra prima literária, como uma poesia
pode incitar uma obra prima visual, que pode ser ou não representada. Para o espectador essa
tríade imagem-palavra-imagem, está a gerar uma terceira, uma quarta imagem, porém sempre
renovadas pela linguagem visual em seu consciente e assim sucessivamente. Nesse
movimento constante a complexidade da palavra nos leva a pensar a sua subjetividade, na
medida em que ela é decisiva e determinante para o imaginário linguístico a internalizar nessa
dinâmica imagem- palavra-imagem a percepção visual.
Para formas simples, arquetipais como, por exemplo, as formas geométricas, nominá-las
parece mais fácil. No entanto em situações quando se trata de obras de arte, onde a matéria
expressiva visual é diferente da oralidade que existe sobre elas, há uma impossibilidade de
uni-las. Dessa maneira podemos explicar as críticas herméticas e não inteligiveis que muitas
vezes são usadas para descrever algumas obras de arte visuais. A nosso ver a linguagem
visual que essas obras expressam sugere um hiato, um enorme vazio a gerar um paradoxo:
elas falam por si só quando não têm nada a dizer.
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Por outro lado não podemos esquecer as imagens que substituem mil palavras e que uma
palavra em certo contexto pode valer por mil imagens, como por exemplo, a poesia de
Federico Garcia Lorca.
A carga emocional que acompanha as cenas do filme submete a palavra a uma forma e um
relevo particular. Na projeção de algumas cenas pretendemos demonstrar como a nosso ver
essa inseparabilidade imagem e palavra se dá sob a ótica de Webber a compartilhar conosco
seu repertório visual refinado e envolvente.
A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger e Marcas do Caminho são os textos
selecionados por nós para demonstrar através deles a linguagem cinematográfica trabalhada
por Peter Weber nessa produção de extraordinária beleza. O diretor nos leva a pensar o ser
como o substrato da película desvendado por ele através da imagem onde as palavras ditas
expressam o essencialmente necessário. A teatralidade das cenas a englobar objetos, pessoas,
paisagens em momentos dos mais diversos nos revelam a clareira do ser de Heidegger que
ele, Peter Weber, nos desvela, porem sempre como algo inapreensível a resguardar-se na
sombra que o projeta a nos escapar instigantemente.
Até o final da década de 30 Martin Heidegger tinha uma posição sobre a linguagem, como um
discurso do mundo e isso está muito claro em seu livro Ser e Tempo. Para Heidegger o mundo
é o lugar do surgimento dos significados. Sobre ele só podemos ter um conceito porque algo
aparece como tal, isso quer dizer que as palavras nascem na medida em que as coisas
aparecem. O mundo é o campo da gênese das palavras que obedecem a uma historicidade
delas próprias. A linguagem do cotidiano se desvincula do fenômeno. Em Ser e Tempo ele
devolve as palavras o poder que elas têm, da ligação que têm com as coisas. Devolve as
palavras para as suas bases fenomenológicas.
O Dasein, ou seja, o ser aí expressa o homem como mais um animal que apenas tem a
racionalidade diferente dos outros animais. Por ter a posse da faculdade da fala se legitima
como ser racional. Questionar essa capacidade é acentuar a vizinhança entre homem e
linguagem.
Já no final da década de 40 ele retoma um campo mais arejado, mais solar sobre a linguagem,
pois começa a pensar o mundo como acontecimento poético. É quando ele tenta pensar como
o mundo acontece e não como o mundo aparece. Como surgem os horizontes do mundo. É
quando ele pensa na saída dos horizontes significativos a que estamos habituados.
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No discurso poético a palavra surge inaugural, inédita, como surge originariamente o mundo,
como o mundo acontece. A linguagem poética estabelece a concretude dos acontecimentos do
mundo em geral, portanto, a essência dessa linguagem poética, da própria poesia é a voz
propriamente do originário mundo. Para Heidegger a arte em geral dá voz a acontecimentos
históricos na medida em que ela (pode sintetizar) sintetiza uma época. Ele se põe a pensar o
espaço epocal como um lugar que é o lugar da poesia na constituição da linguagem. O que
data o mundo são os seus enunciados poéticos porque têm um fundamento histórico
sentimental.
Em Heidegger temos a linguagem como Discurso do Mundo a expressar suas bases
fenomenológicas, mas também temos como Discurso do Mundo o surgimento do significado
desse Mundo como acontecimento poético. A morada do ser é a linguagem do ser aí humano.
Sua essência é a reunião do acontecimento apropriativo, é o tomar parte do acontecimento da
linguagem. Esse lugar é a clareira, nela se tem clareza e obscuridade. É o pensar a partir dos
acontecimentos históricos, em geral a historicidade desse espaço. Qual é então o lugar da
linguagem em nossa dissertação palavra e imagem? O lugar da linguagem é a do
desvelamento e do velamento do que é vago. É a clareira poética. A linguagem não acontece
internamente, mas no lugar onde mora o ser, onde há o acontecimento do que é, onde as
coisas se dão! Tudo o que acontece numa época e é época, a nosso ver e para o autor, uma
medida do tempo histórico. A época é um conjunto de ontologias regionais para Heidegger,
que se relacionam nesse espaço que denominamos epocal. Neste espaço são os entes que se
diferenciam dando, porém uma ordem do ser da totalidade que envolve todos os entes. Nessa
clareira onde tudo acontece, quando ela se diz ela nunca se esgota, nunca esgota o que diz, e
se o faz se coloca no lugar da tensão daquilo que não é dito a estabelecer o acontecimento
apropriativo da palavra muda.
O aí é estruturado pela determinação da nossa visão. A nosso ver o ser humano se apropria do
que vê que é posto por aquilo que é visto. Sendo assim o que é posto passa a fazer parte do
Dasein.
A essência do humano é o ser humano como lugar do acontecer poético-apropriante
deste apelo destinal. No ser o lugar do acontecer deste apelo, é que o ser homem chega
propriamente ao seu ser, isto é, ao humano. Neste sentido, toda obra de arte como
lugar da verdade diz respeito ao lugar do humano como obra-de-arte, isto é, como o
desvelar do humano.3
3De CASTRO, Manuel Antônio. In: HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Apresentação. A arte, o originário e a
verdade. São Paulo: Edições 70, 2010, p. XX.
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A citação acima é determinante para a compreensão da narrativa do filme a seguir, pois a
nosso ver toda a obra de Webber está a anunciar um ser histórico que se constitui pela
apropriação de todos os seres que a compõem e vão se desvelando na medida em que o nosso
ser se redescobre neles.
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Capítulo 1: Narrativa do Filme
1.1- A Felicidade Suspensa
Sobre a mesa legumes descansam. Desordenadamente espalhados ao redor do castiçal de uma
vela só, esperam a artífice que os desnudará. Enquanto isso, sob fachos de luz que adentram
pelas duas vidraças e uma porta semi-aberta do humilde cômodo, enfeitam a rústica
plataforma que os sustentam, enchendo de cores a pequena sala de alimentos. Um turbante
envolve a cabeça da menina-moça que levemente recurvada se concentra na tarefa de
distribuir as rodelas coloridas que seus dedos finos cortam cuidadosamente num rito hábil e
preciso espalhando-as sobre a porcelana branca. A leveza das formas arredondadas num
arranjo delicado veste-a como um bordado. Cada cor encontra seu espaço e todas enfeitam a
modesta louça com o requinte próprio da beleza e do frescor que a natureza exala. Nessa
atmosfera acolhedora e prazerosa de uma lida doméstica a jovem se depara com um novo
destino a cumprir.
As mãos pálidas e queimadas do pai entrelaçam com as mãos brancas da filha o azulejo dado
por ele a ela num abraço cúmplice. Seus dedos compartilham na cerâmica branca de delicados
desenhos azuis, a testemunha do amor que têm um pelo outro. O presente frágil juntamente
com o livro onde a sabedoria inspirada pela fé, dado por sua mãe com a convicção de uma
protestante fervorosa, são o tesouro valioso da casa paterna que acompanham a jovem Griet
em sua nova vida.
Naquela tarde sobre a estrela de oito pontas desenhada no centro da cidade de Delft entre os
canais que perfazem a sua silhueta, Griet encontra a direção que sinaliza o caminho para a
nova morada. A casa na qual cumprirá os deveres de serviçal que ajudarão nos dividendos
precários de sua família, provocados pela invalidez do seu pai ao subtrair-lhe a visão uma
explosão de um dos fornos da oficina, onde fazia e desenhava azulejos.
Com passadas curtas e firmes sob a roda da saia de linho rústico a roçar-lhe os pés, Griet se
dirige ao novo lar através das ruas ensolaradas de outono e dos corredores altos ladeados de
pequenos retângulos ocres que sombreiam as veredas do solar dos papistas.
19
1.2 – A Chegada
Quatro meninas brincam e enfeitam a soleira da porta com seus cachos dourados e ruivos.
Sopram bolhas de sabão que refletem o arco Iris das suas vidas compondo um cenário alegre e
despreocupado como convém à infância. Recebem a forasteira com a segurança própria
daqueles que desde cedo conhecem o seu lugar e rapidamente lhes asseguram o dela. São as
filhas do mestre Vermeer.
Uma robusta mulher de formas redondas abundantes, de face rosada, com olhos bisbilhoteiros
e de expressão atrevida, rudemente convida a jovem a entrar. Tanneke, com a minúscula
autoridade que lhe cabe, apresenta os apetrechos da casa: no pátio interno a sol aberto, a
bomba do poço que prove a água de beber deixando claro que para a lavagem das roupas a
água do canal daquela parte da cidade é boa o bastante, na lavanderia, soda, os potes de louça,
os baldes de estanho, os tachos de cobre, a caldeira, o esfregão, a vassoura, na cozinha... e
tudo o mais da lida doméstica que doravante são o repertório das tarefas cotidianas que a
aguardam. Indica-lhe o porão como dormitório. Com gestos ligeiros, na sala de alimentos, a
criada retira da mesa, onde, esclarece, devem fazer as refeições com as crianças, um
cachorrinho que descansa. Apresenta-lhe os demais cômodos da moradia e a que se destinam.
No andar superior de maneira reverente e medrosa aquele que lhe caberá limpar, o ateliê de
seu patrão no qual não entram, pois o senhor está trabalhando.
1.3– A Primeira Noite
Com a mão direita apóia-se na parede escorregadia e com a outra segura uma lamparina
equilibrando com dificuldade a pequena trouxa que envolve o seu tesouro e uma muda de
roupa de touca branca impecável acompanhada de um pente para prender-lhe os cabelos,
Griet desce vagarosamente os degraus acanhados do quarto. Sentada na cama acomoda os
pertences que retira do humilde embrulho. Apoiado verticalmente na madeira tosca pela
umidade coloca o azulejo querido, depois o livro e as roupas. Junto com os objetos
adormecidos sob a sombra visível do abandono a jovem se depara surpresa, numa prateleira
apertada, com um quadro onde uma madona chorosa de mãos pequenas demais sustenta a
cabeça do filho supliciado.
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Com o semblante melancólico daquele que adivinha sua sorte, prepara-se para passar a noite.
Cansada demais, não consegue pensar direito sobre a mulher que chora a sua frente, nem
tampouco sobre tudo que esse lugar novo e estranho nela desperta. Principalmente a porta
semi-serrada do estúdio onde uma nesga de luz transpassa ao corredor sombrio algo de
encantado, mas dele só um pedacinho. Ouve passos vindos do assoalho sobre sua cabeça,
interrogando-os com os olhos pesados, adormece.
1.4– A Jovem Patroa
O trabalho não cessa. É complicado e doloroso carregar a água que alimenta o tacho de cobre
areado e fervente cheio de roupas e com uma pinça de madeira longilínea, a enchê-lo sempre
de movimentos circulares alimentando-o com soda para limpá-las. A queimadura das mãos
provocada pelo vapor da água e pelos escorregões traiçoeiros no manuseio da
madeira,sinalizam, na brancura da pele, na palma das mãos e entre os dedos de Griet as
feridas que brotam da aspereza do ofício.
No pátio interno as meninas e o irmãozinho caçula, ainda de colo, brincam próximos a uma
vaquinha leiteira um pouco maior que elas a lhes decorar, dadivosa, o recreio barulhento.
Galinhas e patos zanzam no terreiro uma dança cotidiana ciscando com alvoroço os grãos que
Tanneke lhes joga. Griet esfrega o lençol escovando as manchas que reclamam seu esforço.
Subitamente na soleira da porta vê a jovem patroa. Com secura ela repreende o seu
cumprimento e legitima a sua posição com um olhar de desdém e de rebaixamento a recém-
chegada.
De vasta cabeleira amarela amarrada em longa e grossa trança por uma fita azul sobre o
pescoço alvo que brota de um colo onde, um decote do mesmo tom, o enche de sensualidade
imprevista, eis a moldura de um rosto redondo de larga testa com traços delicados,
comprometidos, porém, pelo inchaço de uma gestação a rebentar. A jovem patroa segurando
um molho de chaves a tilintar seu poder, com passos lentos e pesados ao som de uma ave
assustada, conduz Griet ao andar de cima. Com certa dificuldade a moça a segue segurando o
pesado balde de estanho com água e o desajeitado esfregão. Atrás delas, indiscreta, Cornélia,
a segunda das filhas, as acompanha.
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Dirigem-se para o corredor que leva ao quarto que abriga o ateliê. Titubeia, não consegue
expressar-se sobre o ofício do marido. Manda a jovem entrar. Insiste. Ela caminha pelo
pequeno e estreito corredor em direção a porta quase aberta. Ao entrar percorre com os olhos
atentos o ambiente procurando adivinhar os objetos obscurecidos pelas sombras. Ordena-lhe
que entre e levante as persianas. Recomenda que ao limpá-lo, nada tire do lugar. Não ousa
com a filha adentrar um pouco mais no cômodo. Suas cabeças hesitantes, a beira da porta
atrás de um laço da pesada cortina de veludo cor de sena natural, a protegê-las, interrogam o
espaço sob os raios de luz das janelas, que despidas uma a uma, irradiam um segredo que,
sabem, não lhes pertence, como invasoras de um santuário onde suas preces não são
eloquentes. Retiram-se.
1.5– A Dama sem Rosto
Com cuidado os dedos de Griet deslizam o pano branco na barra fixa da parede para limpá-la,
para descobri-la, para compreendê-la. É como se ela adivinhasse, porém, sem o saber, que a
partir daquele instante vai começar a fazer parte de um segredo. A convite dele próprio, vai
comungar da sua intimidade, aos poucos, bem devagar, como requer esse lugar onde ele se
refugia.
Passeia em volta da modelo de madeira clara sem face e de braços abertos um pouco maior
que ela. Está absorta. Temendo incomodá-la em sua pose elegante, de mansinho com a ponta
do pano de tirar pó, espana a madeira em volta da pele branca de arminho decorada com
pontinhos pretos que são a gola da túnica da misteriosa mulher. A sua frente um espelho, de
enquadramento perfeito para ela e a dama sem rosto. Olham-no como a um quadro pendurado
que, indiscreto, revela seus pensamentos. Sobre a mesa um pequeno envelope retangular com
o sinete por abrir. Levanta com delicadeza sua parte superior para limpar a poeira, repetindo o
gesto com a inferior. Ao virar-se descobre como que por encanto de quem se trata a dama sem
rosto. Num quadro, ei-la! Altiva, de perfil e em pé com os braços em saudação, numa sala
atrás de uma mesa, olha para um lugar distante, ao longe, através da vidraça que a ilumina,
um lugar que é só dela. É tão real a senhora distintamente vestida, que a jovem se transporta
àquele cenário indagando com os olhos o que ela vê.
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Subitamente o arrasto de uma cortina lhe traz de volta. É surpreendida por uma mulher, de
traje negro, com uma gola branca de goma impecável portando um crucifixo pendurado pouco
acima da cintura, de pele assustadoramente alva, um rosto qual uma máscara, segurando um
cachimbo entre os dedos escarnados, de olhos pequeninos e de expressão severa.
Cumprimenta-a com a arrogância de matriarca. Diz-lhe: “você não é a primeira que esquece
os bons modos ao olhar os quadros dele”. Faz-lhe uma confidência: “acha que está pronto?
três meses e mais três meses até ele ficar satisfeito”. Com a certeza da sua lealdade, reclama a
diligência nos afazeres despertando-a do encantamento em que o quadro a mergulhava.
1.6– O Flerte
No mercado de carnes o burburinho ruidoso. Cabeças de porco, carneiros, vitelas, línguas,
vísceras, o vermelhidão do sangue misturado a brancura das cabeças expostas que parecem
aguardar mãos diligentes para acariciá-las numa frigideira borbulhante. Os açougueiros
preocupados em vender rapidamente sua mercadoria antes que estrague... Com Tanneke e as
meninas mais velhas Griet se mistura a gente animada que vai comprar as carnes para a
refeição do dia. Paul de cabeleira castanha sob um gorro triangular dobrado ao meio de cor
ocre, de bigodes salientes e com um facão afiado para o ofício, as recebe efusivo. Dá-lhes a
língua de boi e as costeletas habituais e se admira com a recusa da nova e graciosa criada que
ao cheirá-las diz não estarem frescas. Ordena a Pieter, seu filho, um belo rapaz, embora
franzino, de cabelos longos embaixo de uma touca de lã amarrados em um rabo de cavalo
sobre os ombros, olhos azuis penetrantes e gestos experientes, para trocá-las. Um furtivo
flerte naquela paisagem diferente anima o jovem, quem sabe, a namorar a bonita Griet.
1.7– Os Vizinhos
Debruçada sobre o canal a esvaziar, como de costume, a água do balde, Griet se surpreende
com os latidos de uns cachorros negros enormes e ameaçadores tanto quanto seus condutores.
Alardeiam a todos a desgraça dos vizinhos da casa ao lado, enquanto outros homens de negro,
fiscais da bancarrota, se apressam para vigiá-los e despi-los de tudo que têm. Enchem o barco
ancorado num leito do mar em frente à casa, de móveis, candelabros, prataria, copos de
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cristais e estanhos, porcelanas sob os olhares e gestos desesperados dos antigos donos que
inutilmente tentam salvar algum bem a despeito da humilhação a que estão expostos. Todos
olham. Tanneke lastima a degradante cena e avisa-lhe para ter cuidado com a jovem patroa
que odeia assuntos de dinheiro. Afirma que certamente ela será afetada por esse desastroso
acontecimento.
No jantar iluminado por duas velas, cada uma num canto da pequena sala de alimentos,
pendentes sobre a prateleira de madeira rústica entre panelas, potes, conchas e escumadeiras
dependuradas embaixo dela e acima da mesa redonda, Tanneke, as crianças e Griet fazem a
última refeição do dia. Escutam em silêncio os apelos apavorados da jovem senhora ao esposo
para acelerar a feitura do quadro encomendado. Temerosa da ruína, que porventura pode lhes
bater a porta, suas súplicas confirmam o desarranjo que a experiência dramática dos antigos
vizinhos lhe impregnou. Quanto mais ela implora, mais ela se sente a mercê da vontade dele,
que cansado das suas queixas exageradas, sai da casa para um passeio noturno.
Na prosa costumeira depois do jantar, mais propriamente no monólogo da faladeira Tanneke,
a beira do fogão de lenha aceso, ainda a ferver algum caldo ou simplesmente água e a
aquecer-lhes as mãos, Griet fica sabendo que certa vez, algumas jóias da jovem patroa foram
vendidas para saldar dívidas da casa. Por causa disso, ela quebrou quase toda a porcelana
chinesa e tentou destruir um dos preciosos quadros do patrão. Nunca mais pôs os pés no
ateliê. O patrão é calado, mas tem temperamento forte.
Em sua última tarefa daquele dia revelador, varre a sala de alimentos. Com a cabeça
levemente inclinada comandando os movimentos verticais da vassoura que limpam o
ambiente, ao som da melodia baixa e ritmada que entoam, como que um acalanto de dormir,
percebe um vulto a espiá-la ao lado da cortina que aberta, arremessa-o frontalmente ao seu
olhar. É o patrão. Inclinando-se o cumprimenta. Regressara. Ele se vai ao interior da casa tão
subitamente como chegou.
1.8– O Parto
De repente desperta. Os gemidos da senhora lhe avisam que tem de se apressar. Sobe
rapidamente. Na friagem a alavanca do poço parece resistir ao seu comando. Água e mais
água para o trabalho de parto. Ao som de uma prece estranha que invoca a mãe de Deus,
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providencia mais um balde de água e mais panos. “Seis bebês, por que ela tem de fazer tanto
escândalo?” alguém reclama.
Senta-se nos degraus do porão, tapa os ouvidos, exausta daquele dia que insiste em não
terminar, daquela noite tão breve. O cansaço, não há nada a fazer contra ele, não há mais
tempo para repousar. Ouve o choro do recém-nascido. Finalmente...
Cumpre a rotina. Ao levar água para a jovem senhora, ouve uma voz em tom de reza. Recua
atrás da porta. Curiosa vê o dossel, no cômodo principal da casa. Um ancião pronunciando
palavras incompreensíveis abençoa o bebê ao jogar-lhe água sobre a cabecinha enrugada. A
mãe recostada ao travesseiro, numa túnica de cor verde com os cabelos amarelos presos num
coque fofo, o segura com encanto e alegria. Tem uma expressão de contentamento, do dever
bem cumprido, de vitória. Estão rodeados pelas meninas, por Tanneke que carrega o
penúltimo filho no colo e o patrão. O ar é festivo. O menino é batizado. É então, surpreendida
pela mãe da jovem patroa. Com um olhar de orgulho e apreensão lhe ordena que leve uma
carta ao patrono do seu mestre, Sr. Pieter van Ruijven.
1.9– O Galanteador Soberbo
Uma barca pequena, própria para o tráfego no canal conduz Griet para o lado oposto do solar
dos papistas. As águas sob o ritmo das ondas provocadas pelo remador entoam uma música
repousante. Abrem-se os portões da residência. Griet nunca vira uma casa tão grande, com
tantos serviçais e que partilha de um pedaço do mar só para ela.
Pieter van Ruijven a recebe sentado. Sua mesa coberta por uma alcatifa é repleta de papéis, de
pequenos e grandes objetos que a enfeitam. Os acessórios de uma escrivaninha sobre ela dão-
lhe o ar de uma mesa de negócios e de dinheiro. A sala tem toda sorte de ricos objetos
decorativos que sinalizam a elevada estirpe da qual faz parte. Escultura de bronze, porcelana
chinesa, candelabros de prata, castiçais de ouro e estanho. Uma corujinha e um falcão
empalhados lhe fazem companhia, sobre suportes de mármore numa estante as suas costas.
Mobiliário pesado de madeira negra, tapetes, quadros nas paredes e em cavaletes apropriados
para eles. Tudo muito bem distribuído numa aparente balbúrdia que respira poder e bom
gosto.
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O homem a sua frente de cabeleira negra, bigodes muito bem aparados, barba e cavanhaque
curtos como convém aos de sua classe social, com um corpanzil enfiado numa roupa de corte
irrepreensível, olhos negros aviltantes, de fala grossa e sonora, lê a carta. Comenta a astúcia
da velha em tê-lo como convidado de honra na festa de nascimento, combinando-a com a
exibição do quadro encomendado por ele. Bem sabe, ela espera que na ocasião ele faça outra
encomenda. Aceita o convite. Impõe regras: desde que seja uma festa a sua altura e não uma
cerveja com biscoitos.
Percebe o atordoamento contido da jovem entre tanto luxo. Não faz cerimônia ao elogiar seus
bonitos olhos. Pergunta-lhe o nome. Ela o sussurra. Ele o repete murmurando como a saborear
uma delícia. Fala-lhe com orgulho de seu mestre: “o melhor pintor de Delft”. Diz que ele o
pintou. Levanta-se.
Retira o pano azul que cobre um quadro no cavalete imponente. Mostra-o a ela. “Talvez este
vá ser o meu epitáfio”. No quadro é aquele que faz a corte a uma dama sentada com um
bonito vestido de cetim vermelho. Ela empunha uma taça de vinho. Sorri e apronta-se para
aceitar o convite lascivo sugerido pelas mãos e os lábios úmidos do homem sedutor que
sussurra ao seu ouvido.
A tímida Griet enrubesce quando o atrevido homem, de propósito a constrangê-la, narra-lhe
os sentimentos que a simples moça experimentou ao posar como uma dama envolta nos
requintes que tal classe proporciona. Pergunta-lhe sugerindo se ela já havia se imaginado
trajando tão rico vestido, portando tanta beleza e luxo, despertando admiração e desejo.
Afirma com a certeza mundana, própria de um amante vulgar, o prazer que saboreou ao
desfrutar do deslumbramento da moça do quadro ao vê-la feliz naquele cenário emprestado.
Na cozinha, sob a luz das vidraças da janela ao fundo na direção da mesa, Tanneke atarefada,
com suas mãos gorduchas e ligeiras a bater um molho para temperar o caldo da sopa a
borbulhar em dois caldeirões sobre o fogão a lenha, apressa-se para contar a Griet com
despeito e indignação sobre a moça do quadro. Que oportunidade para falar dela. Conta-lhe
sem pudor que tinha uma palidez esverdeada até chegar a casa. Era empregada do Sr. van
Ruijven, que a embebedou como a um ganso e a colocou naquele vestido vermelho para
posar. “Toda vestida como uma dama”4. Certamente o vestido não lhe serviu por muito
tempo, disse, enquanto untava duas galinhas peladas, acariciando-as como se fossem as mãos
4Cena do filme textual, segundo legenda.
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do amante a percorrer a carne fresca e lambuzada por sua saliva, da infeliz moça. Antes
mesmo de a tinta secar, ela já carregava um feto dele. Sentindo-se desafiada pela petulância
desse homem, arregaça as mangas e afirma estar pronta para preparar um jantar grandioso.
Um banquete.
1.10– A Expectativa
Os preparativos do jantar são estafantes. Griet e Tanneke trabalham arduamente. São muitas
as providências. Os talheres de prata em fila indiana e as baixelas reluzem depois de um
polimento artesanal. As taças de cristais nas mãos de Tanneke, agradecidas, cintilam beleza e
requinte. Os delicados desenhos azuis das travessas e dos pratos de porcelana chinesa estão
salientes após o banho na água fresca do poço. A toalha de linho branco e os guardanapos
bordados sob a goma e o passamento do ferro em brasa são um campo de lírios pronto para
decorar a mesa com elegância sob os protestos de Griet a espantar o bichano da família que
teima em se deitar sobre eles, enquanto aguardam a noite festiva. As vidraças das janelas
descortinam a paisagem de fora com mais nitidez. O assoalho sob os tapetes escovados exala
o perfume da madeira do campo. Os degraus da fachada da casa, impecavelmente lavados
demonstram o desvelo e os cuidados que requer tal celebração.
A matriarca não poupa gastos. É uma empreitada valiosa. Cestos de vime adentram
carregados de legumes e frutas. Um leitão corre atordoado sob as cordas do seu vendedor para
o abate no terreiro. Dele tudo se aproveita. As aves chegam mortas prontas para serem
depenadas, exceto o belo cisne branco, é claro. A mesa da cozinha está repleta dos
ingredientes que a sabedoria de Tanneke transformará em iguarias. Orgulhosa do seu ofício os
assados, cozidos e sobremesas vão tomando forma decorando a cozinha, exalando cheiros
convidativos e salivantes por toda a casa. Uma caricia e um tapinha no aspic revelam o seu
contentamento.
Pieter traz a carne fresca do mercado, que falta para engrossar o caldo do primeiro prato. Com
ternura e humor cobra da bela Griet um sorriso. Embora cansada e assustada com tanto ainda
por fazer, não consegue negá-lo ao jeito brincalhão e doce do rapaz.
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1.11– O Banquete
As tochas com seus fachos gigantes, orgulhosas rasgam a noite de clarões que refletem nas
águas negras sua dança misteriosa e imponente. Clareiam e enobrecem ainda mais a beira do
canal do solar dos papistas.
A adornar o canal, o arco da ponte. Destaca um barco que sob a noite, como os demais,
navega. Ao aproximar-se dos degraus da parede de pedras, polidas pelo tempo, encosta. Leva
o convidado de honra e os seus para a casa que transluz nas janelas o dourado das chamas que
a ilumina. É a residência dos Vermeer. Como convém ao protocolo a matriarca e anfitriã
Sra.Thins recebe com cerimônia a reverência teatral do Mestre van Ruijven. Adentram.
Griet enche outra jarra d‟água. Olha curiosa a sala de jantar através das vidraças reluzentes
pelos tons de amarelo que brotam dos lustres e dos castiçais. Os convidados, sob a luz das
pequeninas lamparinas distribuídas pela mesa, transparecem o contentamento e a satisfação
que inspiram tal momento. As mãos de uma das serviçais, empregada só para a ocasião,
fazem entrar na sala, magnífico, em sua plumagem branca decorada com raminhos verdes e
laranjas em majestosa silhueta, o cisne, símbolo da inocência e da esperança a coroar a
celebração. Apressa-se, pois há muito a fazer.
Na mesa retangular, própria para banquetes, os convivas estão alinhados de acordo com o
costume. Às cabeceiras, de um lado está a Sra.Thins toda de preto em sua bonita gola branca
plissada. Do outro o Sr. Vermeer. Entre eles amigos e vizinhos ladeiam a jovem mãe.
Deslumbrante num vestido laranja com uma curva a desenhar-lhe os ombros numa barra de
cetim verde levemente caída sobre eles a destacar, no pescoço alvo, um colar de pérolas que
brilham acompanhadas dos brincos, quais duas gotas brancas singelas. Emoldura sua cabeça
um coque pouco saliente enfeitado por pequeninas fitas, como que a seguir as folhinhas
coloridas do cisne alvissareiro. Esboça um sorriso natural num semblante belo, claramente
aliviado pelo cumprimento do dever, enquanto o Sr. van Ruijven faz aos seus ouvidos um
elogio galante.
Sua esposa e filha ao lado dele, trajam vestidos claros tendo por sobre os ombros mantilhas
acetinadas a realçar-lhes os pescoços esguios com suavidade. Respiram a altivez e a
sobriedade das mulheres da sua estirpe.
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1.12– A Matriarca
Um pequeno tilintar numa taça de cristal chama a atenção de todos para a matriarca que em pé
os saúda. Com distinção faz um breve discurso onde celebra o nascimento seguro do pequeno
Franciscus, bem como celebra a outro nascimento: mais uma obra prima concluída por seu
genro o Sr. Johannes Vermeer. Um breve suspense. A confidência dos olhares trocados pela
matriarca e o artista convida ao gesto esperado por todos. Ela descerra o pano que veste o
quadro no cavalete elegante.
A tela envolta por moldura negra respira a dignidade que sua protagonista expressa. As
palmas e as exclamações levam Griet a olhar, com cuidado, para o seu patrão. Ele as recebe
com naturalidade e não deixa transparecer emoção. O Sr. van Ruijven após bebericar um gole
de vinho, como que a inspirá-lo, para sem reservas fazer as observações como seu dono e
senhor, levanta-se.
Com olhar levemente circunspecto, Vermeer ouve as suas provocações. Com elas, soberbo, o
Sr. van Ruijven observa a ilustre mulher de olhar distante com sincera admiração. Brinca e
pergunta ao pintor sobre a cor que dela irradia. Ele sustenta como sendo a apropriada. O
exímio observador não lhe faz recriminações, de modo algum.
Ao responder a jovem mãe que solicita sua opinião ansiosa, insinuando-a, quase como um
veredicto, o faz ao elogiar a obra com reverência numa entonação que só a beleza é capaz de
inspirar, quando é extraordinária e envolvente. Sua voz sonora e altiva, porém, faz troça ao
reconhecer tamanha qualidade e perfeição, quase que um desperdício, dedicados a pintar sua
esposa Emile, como quiçá, uma mulher inteligente.
1.13– O Constrangimento
A distinta mulher e sua filha são surpreendidas por insinuação jocosa. O olhar da senhora por
sobre o prato, enquanto, o marido escorrega os dedos pelos seus cabelos e fronte, deixa
transparecer a ofensa aviltante, qual dor fina e aguda de um punhal a penetrar-lhe o peito
traiçoeiramente.
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Com a vivacidade e a experiência a lhes coroar os dias, a Sra. Thins desvia a atenção de todos
para si. Indaga ao Sr.van Ruijven, com esperança discreta, sobre seus futuros planos, para
outro quadro, que dispense as duras horas para posar que lhe subtraíram a companhia de sua
amável esposa Emile.
Para a perplexidade dos convidados e o seu desconforto, ouve do homem resposta inesperada.
Como se ele houvesse aguardado todo o jantar por esse momento. Com ares de absoluta
normalidade, não mede palavras a surpreender os anfitriões. Diz já ter encomendado obra de
um novo pintor que veio de Amsterdã. “Foi aprendiz de Rembrandt van Rjyn, mas quem não
é hoje em dia? Uma cena em alegre companhia à luz de velas, já que luz de velas é o forte
dele”.
Saboreia com os olhos a expressão de medo e preocupação que vislumbra na matriarca e a
decepção que como nuvem negra deita a sombrear o semblante da jovem mãe.
Griet vê, com alivio, que o arrogante homem, porém, não consegue em momento algum
amedrontar o seu patrão. Nem sequer ao afrontá-lo sem escrúpulos, numa extrema tentativa.
De qualquer maneira deixa seu toque perverso a macular noite tão grandiosa.
Na manhã fria e cinzenta, a chuva derrama gotas grossas, qual uma ressaca depois da festa, a
anunciar estação inclemente. Tanneke, ainda sonolenta, com movimentos desajeitados a
proteger-se dela numa improvisada manta preta, despeja no canal os restos da noite anterior.
As crianças brincam dentro da casa. Deslizam os dedos pelas janelas, contornando nelas a
escorrer as formas que os pingos desenham nas vidraças encharcadas. Falam e riem a alegrar
o dia melancólico.
1.14– O Lar
Griet adentra no ateliê para limpá-lo. Caminha pelo assoalho. Ao longe, o choro de
Franciscus, soa como uma música interminável. Seus passos a dirigem para as janelas
embaçadas pela água da chuva. O ateliê está escuro. Os trovões sinalizam que o mau tempo
está longe de passar. A escorregar os dedos nos vitrais transparentes, percebe, ao tocá-los,
empoeirados.
As senhoras da casa comungam da intimidade num recanto acolhedor do cômodo principal.
Estão a desfrutar horas de convívio. Atrás da mesa de estar, em frente à lareira ladeada por
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quadros religiosos onde luz e trevas destacam as figuras santificadas a contrastar com o
pomposo busto em mármore de deusa grega sobre um aparador, estão a trocar confidências.
Compõem personagens de uma pintura aristocrática, num enquadramento perfeito que
expressa o prazer que sentem ao compartilharem entre si a tranqüilidade do lar, mesmo sendo
ela tão frágil. Os dedos alvos e finos da senhora Thins alinham os cabelos presos da filha num
gesto autoritário, mas carinhoso. Numa túnica verde sobre uma saia vermelha que se confunde
com as chamas a aquecer o recinto, a jovem senhora parece absorta naquele momento
reconfortante.
1.15– A Observadora
Com reverência e cuidado Griet pede-lhe permissão para lavar as janelas do ateliê. Sua
pergunta lhe parece desnecessária. Atônitas, porém, mãe e filha encaram a jovem, como se a
descobri-la numa falta, quando afirma que ao fazê-lo pode alterar a luz. Com dificuldade a
disfarçar o embaraço, a jovem patroa consente.
Sobre a mesa descansa o tacho com a água que a embebedar o pano lava com pequenos
movimentos as formas geométricas das vidraças no ateliê. Griet os repete com precisão,
seguindo-lhes os finos contornos até que os grãos de poeira misturados à água não as
embacem.
A observar, silencioso através da porta sob a cortina escura a esconder seu vulto, aquele rito
metódico, onde os gestos desenham no espaço delicadas formas, seu patrão adentra a sala,
surpreendendo-a.
1.16– O Encontro
Encabulada e sem jeito ouve sua ordem para permanecer parada ao lado de uma folha
entreaberta tocando-a de leve sem o pano de lavar. Obedece sem entender muito bem o que
está acontecendo. Griet solta o pano que lhe cai rente aos pés. Com eles o esconde atrás da
saia, retirando-o da cena como a adivinhar que a maculava. Por segundos fica nessa posição.
Sente-se enrubescer. Com voz grave, num tom baixo, seu patrão manda-lhe sair da sala.
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Protegida por um xale de tosca lã de cor cinza-azulado a cobrir-lhe os ombros, caminha
ligeira sob a saia recoberta por um avental a disfarçar-lhe o uso. A balançar-lhes as pregas
mimosas em direção ao templo, Griet segue nas ruas barulhentas com as pessoas, que como
ela, vai à igreja, a demonstrar a Deus o agradecimento por suas vidas e suplicar-Lhe
compaixão pelas necessidades. Atravessa a ponte que a enfeitar o canal, estreita a distância
entre as ruas que o margeiam. Ao chegar senta-se entre seu pai e sua mãe. Trajam as melhores
roupas a homenagear o Senhor. As toucas e golas brancas contrastam com as vestimentas
escuras da platéia devota, como flocos de neve a iluminar a noite. Com eles desfruta das
palavras de conforto que escutam do emissário de Deus a louvá-Lo por estarem seguros nessa
passagem pela terra.
Ao olhar sem querer a porta, vê surpresa Pieter encostado nela. Bonito em trajes de domingo a
esperar paciente. Na saída alegre de todos, após o ofício religioso, onde amigos se
confraternizam a desfrutar desse convívio social agradável, apresenta aos pais o jovem rapaz.
Nervosa se confunde ao apresentá-lo como o filho do nosso açougueiro. Corrige, do
açougueiro da família.
A mãe, a perceber a sua timidez, cordialmente o acolhe ao elogiar seu trabalho. Orgulhosa
recebe com distinção o galanteio do jovem a filha ao contar ser ela a mais exigente das
freguesas. Com um pretexto qualquer conduz o marido e o filho mais novo em outra direção.
Deixa o casal a sós. Comenta com o marido que na idade dela, ele e Griet já deviam esperar
por isso.
Andam sobre a calçada de pedra na paisagem fria da manhã. Ela responde com rudeza mansa
as palavras do jovem a cortejar-lhe respeitoso. Descobre que é católico.
1.17– O Desabafo
Com movimentos firmes a esfregar o chão de pedras da sala de alimentos, Griet espanta-se,
quando subitamente a ponta prateada da negra bengala da matriarca lhe interrompe a tarefa.
Ao levantar-se a saúda como de hábito e vê a expressão abatida da velha mulher a lhe falar
sem rodeios sobre o patrão. Seus penetrantes olhos azuis, quais duas contas de vidro, parecem
querer vazar-lhe a alma como a procurar algo. Diz que ele já começou um novo quadro para o
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qual não tem comprador. Não a deixa vê-lo, fala ressentida. Mas pelo menos está trabalhando
de novo, costuma levar mais tempo para recomeçar, suspira a velha senhora com altivez.
1.18– Vermeer
O artista a vestir um jaquetão da cor marrom escuro desbotado sobre uma camisa do mesmo
tom, com os lisos cabelos castanhos desalinhados caídos um pouco abaixo dos ombros, de
olhos negros atentos a perscrutar uma aparição, sentado ao cavalete, seus braços não esboçam
nenhum gesto. Seu semblante preocupado demonstra a concentração que o trabalho reclama.
Olha o manequim em pé composto por cabeça de madeira com rosto jovial de mulher, envolto
por uma touca a esconder-lhe os cabelos. A vestir roupa vistosa ele segura com uma das mãos
a folha da janela semi-aberta, olhando-a pensativo com a cabeça levemente reclinada em sua
direção. Com a outra mão segura alça da jarra de cobre que repousa delicada numa bandeja de
metal brilhoso, a guardar pequena distância de uma caixa de madeira clara com a tampa
aberta a exibir forro de veludo carmim. Estão a posar sobre um tapete de seda com estamparia
floral vermelha a cobrir a mesa que os ampara. A composição em diagonal sugerida pela
posição dos elementos, a enriquecer a cena, não parece entusiasmar seu autor. É a mesma
cena que pediu à jovem criada para posar, mas não tem a mesma graça, a mesma beleza, o
mesmo frescor.
1.19– A Caixa
Griet vê curiosa adentrar a casa, carregada por dois homens, uma caixa retangular de madeira
clara e lustrosa com um orifício saliente. Pesada, os carregadores, desajeitados a transportam
com cuidado ao subirem as escadas que levam ao ateliê. Ela os segue discreta com os olhos,
enquanto está a varrer a pequena sala do hall da escadaria.
Chega ao ateliê para limpá-lo. Não consegue evitar a curiosidade que a inspira essa caixa tão
diferente. É grande, ocupa largo espaço da mesa. Não sabe dizer se é bonita, é estranha.
Como que a adivinhar seus pensamentos, após observá-la furtivo, o patrão vai ao seu
encontro. Não espera por ele àquelas horas. Procura sempre ter o cuidado de limpar o ateliê
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quando ele não está trabalhando. Desenvolto e sem meias palavras lhe diz que a caixa se
chama câmara escura. Embaraçada pelo comportamento dele, Griet não sabe como deve se
comportar. No entanto, seu tom de voz, grave, baixo e seguro, lhe deixam mais a vontade e
atenta para ouvir as explicações que ele espontaneamente lhe dá.
Levanta a tampa da caixa, a sugerir que ela olhe lá dentro. Ela o faz. De repente sua cabeça
está ao lado da dele e ambas cobertas pelo robe de chambre que o veste, numa intimidade que
só os casais compartilham no leito amoroso. Ela não pode permitir. Ela sabe que tem de
recuar dessa aproximação, mas não consegue. A sombra tem o seu propósito. Num passe de
mágica ela vê a cena do quadro sob seus olhos em tamanho menor, como se estivesse num
palco encolhido... Está magnetizada pelo quadro que veio para dentro da caixa e.pelo calor
que o rosto dele exala, pelo seu cheiro doce almiscarado, pela respiração tão próxima a sua
face e ouvido, pelo cabelo que roça a sua touca, pelos corpos tão juntos através das roupas
encostadas.
Ouve sua voz a perguntar se ela consegue ver. Sente seu olhar penetrante a reforçar a
pergunta. Ao virar-se para responder defronta-o, olhar moreno e bonito a penetrar-lhe a alma.
Levanta rapidamente a cabeça. Assustada derruba o pano acetinado que lhes guardou tanta
intimidade. Seu patrão lhe pergunta o que viu. Responde sem jeito que viu o quadro. Com um
impulso olha novamente na caixa, não compreende como ele foi parar lá dentro.
Com a delicadeza do mestre a ensinar seu oficio qual revelação perturbadora ao aprendiz
atencioso, Vermeer, lhe mostra a lente no orifício saliente. Explica que por meio dela os raios
de luz refletidos no canto da sala a iluminar a cena do quadro vão para dentro da caixa e o
reproduz.
Griet, ainda perplexa, se surpreende atenta e curiosa a guardar uma ansiedade para a tudo
compreender. Indaga-lhe se o quadro é real. Ele lhe responde que é uma imagem, uma
imagem feita de luz. As mangas largas da camisa branca dançam ao ritmo da sua fala mansa e
dos dedos roliços a desvendar-lhe pouco a pouco, os segredos da caixa misteriosa. Com
atrevimento contido, ela lhe pergunta se a caixa lhe mostra o que pintar.
Sua resposta é antecipada por um riso curto, irreverente e sincero a contagiar o ambiente e a
encantá-la pela naturalidade imprevista que por meio dele, lhe dá esse homem uma atenção
jamais imaginada por ela. Descobre nele um ralo bigode sobre seus lábios finos que abrigam
dentes alvos como um cordão cintilante a iluminar-lhe a pele morena do rosto, saliente agora,
pelas bochechas a revelar duas covinhas graciosas.
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Com os cabelos desarranjados, o dorso envolto pela brancura do pano a cobrir-lhe o peito e
com os olhos a passear pela sala, como que a procura do tom certo para ao responder, selar
esse encontro extravagante e agradável, afirma-lhe descontraído que a caixa o ajuda.
Timidamente ao ouvi-lo ela esboça um sorriso franco e maroto de contentamento por partilhar
dessa confidência e por ter, ainda que não muito claramente, descoberto a serventia da
enigmática caixa.
1.20– A Jovem Inimiga
O dia está claro. O sol aquece a manhã levemente fria. Seu calor convida as meninas a brincar
despreocupadas no pátio interno. Estão a saudar espontaneamente essas últimas horas
ensolaradas do outono a se despedir. Griet sentada na soleira da porta, tendo por companhia
um cachorrinho contente a banhar-se ao sol, descontraída, areia a sopeira de prata, última peça
da baixela da jovem patroa, que ainda está a polir. Seus dedos percorrem-na insistentes em
fazê-la reluzir.
Os raios de sol aprovam seu empenho e a aplaudem fazendo realçar a brancura prateada das
pregas na formosa travessa. Ao movimentá-la para testar seu brilho, Griet vê contente seu
reflexo nos lençóis brancos dependurados como bandeiras a celebrar dia de glória e quase ao
mesmo tempo a saltar pelas paredes de tijolos vermelhos da casa a enfeitar seus contornos. As
meninas gritam e pulam a pegar aquela mancha luminosa que passeia entre elas a lhes escapar
veloz conduzida pelas suas mãos brincalhonas. Por instantes compartilham consigo a
brincadeira inocente.
De repente o patrão ao abrir uma das janelas do estúdio, ralha enérgico com Cornélia pela
algazarra atordoante. A mãe ordena-lhes que entrem. Ao fundo o saçaricar das galinhas no
terreiro soa o canto monótono do dia a dia. Faz-se um barulho abafado, como a declarar
punição inclemente. Griet levanta-se a assuntar o presságio. Depara-se com Cornélia de
propósito a borrar com lama um dos lençóis a secar. Sua desforra denuncia o castigo
impiedoso a criada que lhe causou a reprimenda paterna. Indignada Griet a esbofeteia. Tanto
trabalho a deriva de uma menina caprichosa.
Ao recolher-se a noite, vê a balburdia em que estão os seus pertences. Desgostosa e infeliz
abriga em suas mãos machucadas as duas metades a que foi reduzido o azulejo amado.
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Acaricia-o como a adivinhar o desprezo com que foi tocado. A tentar em vão reunir suas
partes como fora outrora, escuta a risada galhofeira do algoz a comemorar sua humilhação.
1.21– O Godê de Tinta Branca
Bem cedo adentra ao estúdio. Está desolada. Depara-se com o patrão a pintar. Desculpa-se.
Ele pede que fique. Observa-o a pincelar. Seu braço apóia-se num aparador comprido e fino
de madeira com uma extremidade sobre a sua perna, enquanto que a outra extremidade tem
uma trouxinha na ponta a proteger a tela do seu toque. A ponta redonda do chumaço dos pelos
do pincel está a pintar a trama da seda pequeníssima da alcatifa garbosa a cobrir a mesa
conferindo-lhe esplendor. Seu gesto minucioso é delicado e firme como requer o oficio.
Para a sua surpresa ele lhe pede para encher o godê de metal de tinta branca. Insegura ela
obedece. Ao fazê-lo maneja a espátula a encher o recipiente como a preparar poção alquímica
que se desmanchará nas mãos do seu senhor.
1.22– Um Conto Campesino
Na manhã fria a pradaria dos campos de Delft, respira preguiçosa sob as nuvens amareladas
do inverno a esconder-lhes o sol. O rio qual um espelho reflete a natureza que o margeia a
registrar as horas do tempo. O murmúrio ao longe de um rebanho a pastar embala o dia de
descanso. Os pequenos flocos de neve se derramam sobre o jovem casal a forrar-lhes o
caminho e a testemunhar indiscretos conversa de namorados.
Pieter em seu traje caprichado de domingo caminha ao lado de Griet a prosear amoroso.
Ladeados pelos troncos das árvores despidas a expor seus galhos majestosos que estão a se
olhar no rio como a estudar a nova roupagem, compõem com elas a paisagem bucólica. São
coadjuvantes de um conto campesino. Passeiam pela a estrada, companheira solene dos casais
a guardar em si o despertar da aurora e a perpetuá-la em seus corações como as planícies da
Holanda, quão a perder de vista são aos olhos.
Ele quer aproximar-se, abraçá-la, envolvê-la. A fazer rodeios pergunta-lhe sobre seus cabelos.
Ao tentar tocá-los sob a touca, ela se esquiva como a guardar preciosa intimidade. Diz ao
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jovem que sua mãe a espera. Ele responde tranqüilo que a senhora sabe onde ela está a
insinuar sua aprovação.
1.23– Há Cores nas Nuvens
No dia seguinte bem cedo, Griet a olhar o quadro no cavalete, pensativa, interroga-o curiosa.
A cena lhe parece diferente, incompleta, alguma coisa nela não combina. Ao entrar no
estúdio, o pintor a perceber a expressão preocupada em seu rosto, para facilitar a conversação
pergunta-lhe se está olhando para o quadro. Alheia aos afazeres que a esperam, responde-lhe
que nada está com a cor certa.
Naturalmente como se já esperasse por essa observação, a explicar-lhe os desdobramentos da
técnica do glaci, valioso recurso pictórico, a deixar transparecer sutilmente a sombra na luz,
convida-a para ir até a janela.
Ao abrir uma das suas folhas, o ar da manhã inunda de brisa o ambiente a perfumá-lo
refrescante. Encostado na vidraça com um dos braços a se apoiar na ombreira da janela,
atencioso manda-a olhar para as nuvens e pergunta-lhe de que cor elas são. Espera paciente
pela resposta da jovem, tão meiga e bela a respirar a ingenuidade das virgens que a guardar
tão bem seus tesouros, sem o saber, os ofertam sinceras àqueles que as encantam.
Griet ao ver o céu parece a ele se transportar como se o visse pela primeira vez. De mansinho
ela responde como à acompanhar o tempo que a metamorfosear as nuvens em formas e cores
desiguais com elas passeia ao sabor do vento. Diz-lhe que há cores nas nuvens. “Agora você
entende”, ele fala com carinho contido a manifestar agrado pela sua descoberta. Contente por
ter compreendido ela esboça um sorriso discreto e agradecido ao firmamento.
Desde então, a janela da sala de alimentos guarda seu olhar a passear pelo céu a descobrir-lhe
a dança vagarosa das nuvens, testemunhas silenciosas da emoção que experimentou ao ouvi-
lo falar tão próximo. Tão próximo que seu hálito se misturou ao frescor da manhã a exalar um
perfume que lhe encheu o coração de alegria. Tanneke, porém sempre está a despertar-lhe
intrometida dos seus pensamentos.
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1.24– Um Pequeno Anel a Enfeitar-lhe o Dedo
Numa manhã já muito fria bem cedo Griet e seu patrão sobem os degraus da estreita escada ao
fundo no cômodo, que conduz ao sótão. Ao tirar o jaquetão azul e a descansá-lo num prego na
parede, Vermeer se dirige à mesa retangular a dobrar as mangas brancas da camisa para
protegê-las da poeira colorida que está a dormir em sua madeira. Na mesa há algumas
vasilhas de metal, potes de cerâmica e espátulas pontudas. Destacam-se, porém, recipientes
triangulares de vidro de pé alinhados por uma armação comprida apropriada. Cada um deles
tem uma espécie de “areia” de cor diferente. Com empenho, o artista pausadamente vai
desvendando a jovem sua misteriosa alquimia. Devagar a brincar com os pigmentos em suas
mãos habilidosas lhe diz seus nomes. Eles escorregam por entre seus dedos roliços quais
pedacinhos das folhas avermelhadas que se esparramam pelo chão nos campos manchados
pelas cores do outono. Potes brancos de cerâmica guardam pedras frágeis de cores e tamanhos
diferentes como as conchas na beira do mar. De cada uma ele extrai o pigmento para fazer a
cor. Têm líquidos com cheiros estranhos em vidros redondos e gorduchos, pequenos e
grandes com conta-gotas gigante, mas que não são tintas. Ele deixa claro que com eles se
misturam os pigmentos que vão resultar nas tintas.
Griet atenta ouve e observa seus gestos a indicar a serventia de cada coisa. Estranhamente não
se sente embaraçada. Ao contrário, se sente a vontade e quer guardar na memória tudo que ele
está a dizer. O pintor dedicado explica-lhe como os pigmentos são moídos. Mostra o moedor
de pilão e como usá-lo para moer as pedras. Ela repara um pequeno anel a enfeitar-lhe o dedo
indicador esquerdo.
Pede-lhe que tente moer um pedaço quebrado de carvão de preto profundo que está sobre a
mesa. Hesitante ela obedece. Ao girar o pilão não consegue fazê-lo direito, pois não tem força
nas mãos o bastante. Ele lhe diz para usar a força dos ombros.
Ao cobrir suas mãos com as dele para demonstrar a maneira precisa de fazer o movimento,
Griet sente seu corpo estremecer. Ao seu toque ela experimenta uma emoção que a arrepia a
lhe produzir uma mistura de prazer e constrangimento, uma alegria diferente, perturbadora,
que não conhecia. Precisa se esquivar. A retirar as mãos abruptamente do moedor olha seu
patrão admirada.
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Sem jeito ele não fala nada. O rosto da jovem a respirar uma beleza pueril e sedutora, deixa-o
paralisado. Ele vira a cabeça a disfarçar emoção na direção da mesa, mas volta a olhá-la.
Retira-se devagar como a se desculpar pelo atrevimento, porém mais do que nunca a querer
estreitar nas mãos sua cabeça rosada, a passear os dedos naquela pele bonita e tão clara como
claro é o seu olhar a encará-lo confusa e desobediente.
1.25– O Bondoso Senhor
O céu derrama flocos de algodão a congelar a paisagem da cidade de Delft num instantâneo
melancólico. As águas do canal estão a dormir sob o espelho fosco que as cobre
imobilizando-as num sono profundo indiferentes àqueles que nelas estão a deslizar tentando
adivinhar-lhes o sonho.
A proteger-se do frio a vaquinha leiteira devora uma refeição apetitosa, a acompanhar com
sua cabeça malhada os movimentos de Griet a recolher do varal as roupas, quais espantalhos
de vidro improvisados numa pose vertical a guardar com lealdade a estação severa.
Ouve a jovem patroa chamá-la. Atende prontamente. Sentada numa das mesas do cômodo
principal, com os cabelos desgrenhados, o rosto abatido por conta de horas insones, ainda a
trajar túnica de dormir, está a reclamar com impropérios de sua mãe, enquanto rabisca num
papel a encomenda de um balsamo para o recém-nascido que está a berrar incomodado
rejeitando o seio da ama de leite, que inutilmente tenta acalmá-lo. A jovem senhora ao
descobrir a falta de fundos para o pagamento do remédio, decidida ordena para por na conta
do esposo.
Pela vidraça a paisagem é desoladora. A neve inclemente sinaliza o rigor do tempo fora da
casa. Griet a cobrir-se com seu xale de lã cinza-azulado estuda o percurso doloroso que tem
de vencer até chegar à botica. É surpreendida, porém pelo seu patrão a pedir-lhe também que
lhe traga umas cores. Dá-lhe um papel com o pedido. Sua esposa não precisa saber, diz-lhe
confidente. Com uma das mãos a tocar com carinho seu ombro, censura o xale que o encobre
como sendo fino demais para protegê-la. Um barulho estridente denuncia Cornélia a seguir-
lhes os passos. Vermeer ao voltar-se em direção ao estúdio passa pela pequena espiã
imprimindo-lhe a insignificância da sua presença.
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Griet caminha sob a neve a decorar-lhe os ombros, cautelosa. Embrulhada em seu xale não
consegue, porém aquecer-se do vento frio a dificultar sua respiração e a congelar-lhe a alma.
Pouca gente está nas ruas. Só mesmo alguns mercadores em trânsito para as suas casas de
negócio. O chão está liso e traiçoeiro. A botica fica do outro lado do canal e os degraus da
ponte são estreitos e altos. Seus calçados de inverno estão gastos demais e requerem passos
firmes, mas cuidadosos para não escorregarem.
Ao chegar mal consegue respirar. A sala é grande e aquecida. Ela está a guardar prateleiras
até o teto cheias de potes e tigelas de cerâmica, garrafas de todos os tamanhos e vidros
diferentes. Tem no centro uma mesa de carvalho negro com objetos iguais aos das prateleiras.
O boticário é um senhor já velho de barba e cabelos brancos compridos a roçar-lhes a gola
branca pequeninha contrastando com a vestimenta preta que o cobre da cabeça aos pés. Tem
uma feição bondosa, no alto da cabeça, bem no meio dela, repousa um pano redondo um
pouco maior que um pires de chávena da mesma cor da sua roupa. Guardou um livro que
estava a folhear e diligente pôs-se a preparar os pedidos. Com o cenho franzido absorto em
sua tarefa meticulosa, ele delicadamente com uma colher de madeira pequena despeja com
precisão no vidro a “areia” de cor azul berrante não desperdiçando sequer nenhum grão.
1.26– As Novas Ordens
De volta a casa, Griet segue para o atelier. Lá seu patrão pergunta se ela trouxe o pedido.
Responde-lhe com um gesto afirmativo da cabeça. Em seguida ele diz que ela pode misturar
as cores. Surpresa, mas segura ela afirma não ter tempo. Ele ordena imperativo que ela arrume
tempo.
Bem antes de raiar o dia, silenciosa e protegida pela escuridão, Griet furtiva a clareá-la com
uma lamparina, sobe as escadas do porão, a passar receosa por Tanneke e a ama de leite,
adormecidas, meio que amontoadas num canto arranjado da sala de alimentos ao lado da
cozinha. Segue ligeira na direção do ateliê, a ouvir os apelos da jovem mãe a ama de leite para
acudir Franciscus acompanhada das queixas de Tanneke que não consegue mais dormir
direito pela falta de sossego.
Sobe as escadas que dão para o ateliê, sem fazer barulho o mais rápido que pode. Alcança a
chave sobre a sua porta num canto da parede escondida e adentra ao estúdio. Lá finalmente
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em paz vence os degraus até o sótão e se põe a preparar as tintas conforme aprendera com ele
de um jeito que ela jamais conseguirá esquecer. De repente experimenta uma sensação
reconfortante e acalorada como anunciar-lhe o segredo do qual ela faz parte, cuja história
conhece somente essas paredes límpidas do sótão a protegê-la, generosas. Ao longe os galos
saúdam a aurora a triunfar sobre as trevas.
1.27– A Jovem não está Contente
No cômodo principal, sob um lustre holandês com seis grandes braços finos e curvados a
enobrecer a atmosfera aconchegante de uma reunião familiar, na qual todos compartilham
momentos preciosos de convívio harmonioso, a família Vermeer parece alegre e descontraída
em torno da jovem mãe que se prepara para fazer uma visita, num passeio vespertino, ao lado
do esposo.
A mirar-se no espelho octogonal sobre uma das mesas quadradas a compor um dos ambientes
no grande cômodo, coberta por um tapete aveludado em tons de verde e dourado, a servir-lhe
de penteadeira, está fascinante. Próximos dela estão Franciscus no berço coberto por manta de
lã acetinada a balançar os braçinhos para o casal de irmãos que brincam com ele alegremente.
Ao seu lado Cornélia a observa com veneração, ao mesmo tempo em que a remexer na caixa
de jóias passeia os dedos no colar de pérolas a fasciná-la. A mãe lhe repreende carinhosa o
gesto curioso. A jovem patroa está contente. Com os cabelos amarelos presos num coque
perfeito envolto por uma trança com fina fita branca a transpassá-la inteirinha e deixando
pequeninas mechas caírem sobre a fronte a suavizar-lhe a tez aristocrática, está a prender nas
orelhas pérolas brancas, quais duas gotas grossas de chuva perpetuadas em mimo tão valioso.
Em cima dos ombros uma capinha de linho protege o vestido do pó de arroz a lhe acetinar a
pele sob a esponja macia. As cinco velas acesas do candelabro de cobre sobre a mesa a realçar
o brilho dos seus olhos castanhos transformam-na numa beleza altiva no auge do encanto que
respira a sua formosura.
Tanneke e Griet estão próximas, na mesa de jantar um pouco recuada ao fundo do cômodo a
dobrar as toalhas engomadas que guardam ligeiras no armário. A aproveitar o momento
encorajador Tanneke reclama da ama de leite sob um pretexto qualquer a insinuar seu desejo
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de voltar a dormir no porão. A jovem senhora lhe diz não ser possível já que ele se destina a
Griet.
Com naturalidade o patrão, a trajar roupa de passeio, aparentemente entretido num jogo de
dados com a filha mais velha, sentados na beira do dossel decorado com lençóis e cortinados
estampados sobre cetim vermelho, às costas da esposa, intervém. A interceder por Tanneke
sugere que a jovem criada pode passar a dormir no sótão e assim antes de descer, limpar o
estúdio, todas as manhãs. Uma sombra de desapontamento macula o rosto da jovem mãe.
Argumenta com ele sobre a caixa de jóias que sempre fica no estúdio.
Ele levanta-se. A roçar-lhe a face e ao acariciar-lhe o pescoço e os ombros seduzindo-a
amoroso e a admirar sua beleza no espelho fiel, lhe entrega a chave do ateliê a assegurar-lhe
seu poder sobre ele. Desarmada a senhora consente.
Griet não consegue disfarçar o sorriso contido. Freneticamente se apressa a guardar os panos
dobrados como a refugiá-los no armário. Tanneke a perceber seus movimentos interroga-a
perplexa com um olhar malicioso.
Cornélia a assuntar o desconforto sem saída da mãe olha o pai com raiva e ciúmes. A deslizar
os dedos no pente de tartaruga planeja vingança cruel à criada maldita.
1.28– Capelas de Oração
O sótão é luminoso e aquecido. Na manhã seguinte Griet acorda com a claridade a banhá-la
festiva. As vigas em diagonal a sustentar o telhado desenham em seu interior capelas de
oração, a lhe produzir uma sensação de conforto e acolhimento. Com alívio ela descansa seus
pertences no balcão estreito das paredes brancas. Elas estão a proteger a memória do amor
entre pai e filha guardada no ladrilho partido, doravante, seguro entre elas. Em sua roupa
ainda de dormir, com passos lentos a jovem se encaminha a mesa dos pigmentos. Com
tranqüilidade e feliz se põe a cumprir sua tarefa.Ao descer para o estúdio observa
cuidadosamente a tela no cavalete a esperar seu mestre. Há algo nela a incomodá-la. O
cenário lhe parece exprimido, tudo no quadro está apertado. A tentar descobrir o que a está
sufocando, com uma das mãos a cobrir uma cadeira da cena obtém sua resposta.
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1.29– Tanneke
O crepúsculo é precoce na estação rigorosa. Griet no fim da tarde está a recolher as roupas
secas no varal do pátio interno. Cornélia e a irmã mais velhana companhia dos patos e do
cãozinho brincalhão estão a jogar argolas num folguedo breve a se despedirem da tarde. A
noite vagarosa se espicha pelo quintal a resguardá-lo indolente. Tanneke sentada no degrau da
porta e porcamente com um gravetinho desfiado a limpar as unhas e a coçar um dos ouvidos
com ele, avisa a jovem criada que no dia seguinte não precisa ir ao mercado de peixes, pois a
patroa não lhes suporta o cheiro quando esta grávida.
Atônita Griet recua num breve gesto a tentar absorver a notícia estapafúrdia a lhe soar como
uma traição inesperada. Cornélia ardilosa observa. Tanneke não se faz de rogada. A vomitar
sua experiência mundana, de propósito e despudorada em monossilábico comentário atribui
aos homens serem os donos de um desejo insaciável só satisfeito por meio do coito onde
alcançam o gozo que lhes é de direito.
1.30– Os Namorados
Na manhã seguinte Griet a atravessar o cômodo principal, vê com desgosto o patrão a
namorar a esposa. Sentada ao clavecino ela está a tocar uma partitura romântica. Vermeer
desliza as costas das mãos por sobre o pescoço alvo da mulher debaixo dos cabelos amarelos
soltos a decorar-lhe o rosto. Ambos estão absortos pela melodia como um fundo musical a
registrar horas felizes. Ele não consegue deixar de abraçá-la envolvendo-a enquanto acaricia
os seios cobertos pela túnica verde a demonstrar seu desejo. Sussurra-lhe ao ouvido palavras
de amor e quando o faz olha a jovem criada que passa devagar como de propósito a afrontá-la
e também a expressar sua vontade de tê-la em seus braços. Ela ouve a voz doce da esposa a
responder-lhe amorosa.
No domingo Griet está a passear com Pieter pelos campos. Correm por eles a desfrutar horas
despreocupadas e alegres. Ao alcançá-la ele toma seu rosto em suas mãos e devagar busca
seus lábios. Ela não resiste. Não tem porque evitar. Ela também quer saber como é se
abandonar aos carinhos de alguém quando se é amada por ele. A lembrança da intimidade dos
patrões e do olhar dele a inspirar-lhe um desejo proibido e a indignar-lhe com sua afronta
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deixa-a a vontade para ceder aos encantos do jovem, numa mistura de descoberta e prazer
pela vingança intima que alivia seu coração. Aos poucos Peter a beija com a delicadeza do
amante sonhador até que suas bocas selam o encontro com o último beijo apaixonado do
rapaz.
1.31– O Atrevimento
De volta ao atelier Griet observa o quadro atentamente. Tem de libertar a cena, a mulher lhe
parece encurralada entre a mesa e a cadeira. Decidida ao olhar para os elementos que
compõem o cenário, hesitante retira a cadeira que está a sufocá-lo. Aliviada finalmente a mesa
surge com o esplendor do tapete a forrá-la e tudo agora parece respirar. Até os azulejos que
dão acabamento à barra entre a parede e o piso lhe agradecem a ousadia. Inesperadamente
adentra ao estúdio a jovem senhora. Encara Griet a fuzilá-la. Certamente passava por perto e
ouviu o arrastar da cadeira. A criada retira-se discreta enquanto a senhora procura com o olhar
alguma falta para censurá-la.
À noite antes de recolher-se no sótão com uma das mãos levanta o pano a cobrir a tela no
cavalete. Repara que seu senhor acatou sua sugestão atrevida. Alegre se sente cúmplice desse
ofício num diálogo mudo a lhe permitir e respeitar sua opinião.
Na manhã seguinte está com o patrão no sótão a preparar os pigmentos. Ao lado dele macera
a areia de azul berrante que lhe entregara o boticário, misturando-a com água que gota a gota
converte o lápis-lazúli em tempera. Cuidadosamente Griet movimenta a espátula como se
estivesse mergulhada naquela cor a desvendar seus mistérios. Ele faz o mesmo com o amarelo
pálido, misturando-o, porém com linhaça. As espátulas em mãos experientes dançam solenes
na feitura das cores, obedientes as suas ordens até as tintas terem uma consistência
apropriada. Como godês as conchas do mar guardam as misturas valiosas até repousarem na
paleta onde darão alma à criação do artista. Ele lhe pergunta por que mexeu a cadeira. Ela lhe
explica convicta e sem rodeios o motivo. Ele não faz comentário como se já soubesse a
resposta. Num breve momento suas mãos repousam lado a lado. Ela o olha com doçura. A
corresponder esse olhar pueril ele a olha com fascinação. A beleza de Griet o atormenta e
seduz. Ouvem vozes vindas do atelier a chamá-la imperativamente. Ele desce primeiro.
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1.32– A Vingança
O trovão lá fora anuncia tempestade como que a adivinhá-la também dentro da casa. A
senhora Thins ao lado da filha, sem dizer uma só palavra reforça a gravidade da situação
quando a esposa conta ao marido o desaparecimento de um de seus pentes de tartaruga a
insinuar a jovem criada como a responsável. Cornélia soberba a encara vitoriosa. De repente o
mundo de Griet desmorona sob a acusação infame. Griet pede socorro ao Vermeer.
Prontamente obedece a jovem dama dos seus sonhos. Não pode perdê-la. Desvairado ele
investiga todos os recantos e os cômodos da casa a remexê-los sem piedade. Do hall da
escadaria a sala de alimentos, passando pelo vestíbulo dele e da esposa, aos esconderijos do
grande cômodo até o dormitório das crianças. As mulheres atordoadas e confusas o
acompanham fazendo coro com os gritos da ave assustada pelo movimento desnorteante que
ele produz. Escancara os armários, esvazia os cestos, sacode os potes e os derruba das
prateleiras, balança os travesseiros, desarruma as camas, revira os colchões até que finalmente
sobre um deles nas dobras de um lençol amarrotado, envolto num lenço e justamente na cama
de Cornélia encontra o bonito pente. Seu tom de voz expressa à reprovação ao grave gesto da
filha.
Altiva e sem derramar uma lágrima Cornélia estende as duas mãos para receber o castigo
merecido. A avó com uma vara de marmelo as açoita por quatro vezes, como cabe educar
uma matriarca no auge do seu domínio. A mãe não pode intervir.
No grande cômodo naquela tarde instala-se um tribunal. O patrão de um mutismo devastador
para a esposa sentado ao lado da sogra à mesa de estar em frente à lareira acompanha com a
matriarca o seu andar desnorteado que, arrependida e perplexa tenta manchar a reputação de
Griet. Seus olhos em brasa queimam a lançar-lhes faíscas com ódio e sua boca destila um
veneno que goteja sobre a jovem todo o seu desespero ao atribuir-lhe atrevimento, lerdeza e
ingratidão, alegando que a contratou por caridade. No entanto a velha senhora a guardar a
sabedoria de um juiz experiente conduz a situação injusta e embaraçosa a argumentar que
com mais uma criança a caminho precisam de ajuda adicional. Repreende Griet que de cabeça
levemente inclinada ao lado da atônita Tanneke, a tudo vê e ouve como se estivesse dentro de
um pesadelo que insiste em não terminar. A distinta senhora cobra-lhe mais ligeireza nas
tarefas advertindo-a com severidade e muda de assunto completamente. Ela aproveita a
ocasião para comunicar que têm de convidar mestre Van Ruijven para uma visita, pois seu
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genro precisa de uma nova encomenda. Ordena as criadas que voltem ao trabalho. A jovem
mãe também sai raivosa. Vermeer encara a sogra com desconforto, a saber, que tem de aturar
mais uma vez criatura tão insolente.
1.33– O Batel
As águas do canal àquelas horas do dia estão despertas. A festejar a vigília conduzem o batel
da família Van Ruijven que a tremular seu brasão em estandartes imponentes lhes conferem
distinção e nobreza.
A luz do meio dia aquece e ilumina a sala a saudar os convivas com elegância. As mesas do
grande cômodo improvisam plataforma longilínea que forrada por uma toalha de linho branco
bordada com fios de seda da mesma cor respira beleza e altivez. Os copos e as taças de
cristais, a porcelana branca e os talheres de prata revelam o almoço festivo a regalar os
convidados. Numa cabeceira está mestre Van Ruijven tendo a sua direita a jovem mãe e a
matriarca a sua esquerda, na outra cabeceira está Vermeer tendo à sua esquerda um vizinho e
à direita Cornélia ao lado da irmã mais velha. A Sra. Emile e a filha a representar com
galhardia o papel que lhes cabe ladeiam a Sra. Thins.
Os vestidos claros das mulheres com as cabeças enfeitadas pelos cabelos delicadamente
penteados salientam com discrição suas silhuetas maduras e joviais a compor a mesa com
requinte. Contrastam com a matriarca que em seu traje escuro circunspecto de gola de linho
branca engomada e lisa como convém a essa hora do dia, está a lhe conferir sabedoria e
astúcia.
Mestre Van Ruijven de cavanhaque empinado a vestir pantalonas escuras acompanhadas de
gibão de cetim verde musgo com bordados em seda sobre uma camisa de linho branca de
babados e mangas bufantes, está a rasgar elogios as filhas do artista ao mesmo tempo em que
sem nenhum pudor repara na beleza da jovem mãe a devorá-la com os olhos. É bem verdade,
ela está magnífica. Seu rosto sob os cabelos presos com mechas soltas atrás da cabeça realça
uma pele acetinada com o viso róseo das fêmeas prenhas nos primeiros dias. A trajar um
vestido de cetim verde adornado por um decote a desnudar-lhe o colo e os ombros, exibe uma
cruz qual uma estrela de pequeninas pedras preciosas num cordão de veludo que rivalizam
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com os brincos de pérolas brancas a iluminá-la, transformando-a numa imagem sedutora de
um conto das mil e uma noites.
1.34– O Galanteador Ardiloso
A velha senhora aproveita os ditirambos do patrono a convertê-los em pretextos sábios para
obter seu propósito. Com eloqüência a destacar seu refinamento e bom gosto como amante
submisso a uma dama que o arrebata sobre tudo o mais, após um tênue suspense revela a
todos o seu nome: a arte. Segura lhe afirma que a arte o fará ter um lugar na história como um
dos seus patronos mais fiéis. O genro fita-lhe desconcertado. Lisonjeado e preso em armadilha
sutil o homem cede à dona de retórica tão convincente. A elogiar seu talento persuasivo com
um deboche arrogante, mas bem humorado pergunta-lhe o que quer. A senhora não deixa por
menos e lhe diz que quer uma pintura em grupo, a sugerir no primeiro momento ele, sua
esposa e filha passando rapidamente depois a sugerir com seus amigos, ou ainda em alegre
companhia com vinho em volta de uma mesa farta com muita música e dança. O Sr. Van
Ruijven a interrompe convicto do que ele quer: um quadro com várias figuras, uma reunião
alegre, mas não um retrato de família e a lamentar o tédio de ter que posar por várias horas
deseja que no quadro haja algo em que ele possa repousar os olhos.
Grosseiramente enlaça a cintura de Griet que a servir a mesa está ao seu lado. Aturdida ela
derruba tudo que carrega. Todos estão estupefatos. Com descaramento o homem ainda a
segurar a jovem criada dirige-se ao artista que, num ímpeto havia se levantado da cadeira a
registrar seu protesto e pronto para esbofetear o autor do gesto infame se não fossem as
circunstâncias a impedi-lo veementes, é claro. Perplexa a jovem mãe encara o marido
ultrajada a censurar-lhe o desatino do seu gesto e o constrangimento a que foi exposta por ele.
Van Ruijven, como se nada houvesse provocado argumenta para o artista que Griet deve estar
no quadro, que este deve ser simplesmente uma cena de taverna, diferente do que ele sempre
pinta. Nela a moça pode servi-lo, ademais reforça obstinado, que dificuldade há em pintar
uma moça bonita. Griet agachada a recolher os pratos despedaçados no chão a lhes parecer os
pedaços da sua alma, humilhada pelo vexame a que foi submetida o ouve perguntar indecente:
“Posso tê-la?” Vermeer o olha num misto de revolta, indecisão e raiva por sentir-se
encurralado. A Sra. Thins a adivinhar-lhe os pensamentos fita-o com um olhar suplicante.
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1.35– Os Mexericos
O canal ainda adormecido reluta em acordar sob o espelho que a quebrar-se nas mãos dos
barqueiros estão a rasgar-lhes uma passagem. Até parece que seus cacos agoureiros
assinalam o dia atribulado que assolará a alma da jovem criada. O mercado de carne está a
fervilhar de gente na manhã friorenta.
Griet sob os olhares mexeriqueiros das mulheres a cochicharem sobre ela enquanto está a
passar fingindo indiferença é abordada por Paul. Ele lhe põe a par dos comentários maliciosos
que estão a alimentá-las, graças à cozinheira de Van Ruijven que espalhou que Griet será
pintada pelo artista junto com o seu patrão. Pergunta-lhe se ela sabe o que aconteceu com a
criada que já fora pintada com ele. Ela não responde e se defende argumentando que ele não
deve dar ouvidos aos mexericos. Sem jeito ao voltar à lida Paul afirma que não acredita no
falatório e que dirá ao filho que ela perguntou por ele, sutilmente dando a entender a moça
que ao alertá-la o fez por causa do seu namoro com o rapaz. Pieter ao vê-la adia a sua entrega.
Chama-a preocupado. A reforçar o discurso paterno, Griet a não querer ouvi-lo segue em
retirada. Ele insiste e ela recua. O jovem deixa-lhe claro que entende que ela é uma criada e
que por isso mesmo não tem muita escolha, no entanto pede-lhe para não se deixar prender
por um mundo ao qual ela não pertence. Indignada e mostrando-se ofendida afirma que jamais
cederia a mestre Van Ruijven. O jovem, porém esclarece que não está falando do mestre Van
Ruijven. Perplexa com as palavras de Pieter, como se ele houvesse descoberto o seu segredo,
e a temer que ele veja seus pensamentos, vira-se a ir embora. Ele também segue a cumprir seu
dever aliviado por ter tido essa conversa com a moça mesmo que o preço a pagar por ela seja
muito caro. Ama a jovem com sinceridade, mas não é ingênuo.
Griet caminha pensativa ainda não acreditando no que ouviu. Tampouco fez as compras. Há
de arranjar uma desculpa. Ao chegar a casa em sua porta se depara com o patrão e mestre Van
Ruijven. Sua cabeça coberta com chapéu de abas redondas e largas levemente arrebitadas e a
trajar pantalonas com um gibão vermelho pálido da mesma cor do seu rosto rechonchudo
estão a anunciar um pavão que se aprontou para a dança sedutora. Os cabelos lisos sobre os
ombros e a pele branca como uma mortalha na face de Vermeer denunciam o desconforto
desse encontro inesperado com ela. Sem rodeios mestre Van Ruijven a saúda dizendo que
sentiu a sua falta, ou melhor, que ambos sentiram, a embaraçá-la ainda mais. Conta-lhe
acidamente que sabe dos seus préstimos ao artista ajudando-o no atelier. A insinuar-lhes a
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velha história de mestre e criada como uma melodia que todos conhecem, diz que doravante
ambos podem praticar juntos mais a vontade depois do que combinou com o pintor. Ao ir
embora, faz a jovem leve reverência como um pretexto para poder encará-la bem de perto
apesar de o seu rosto estar resguardado pela touca branca a defendê-la lealmente. Ela olha o
seu patrão interrogando-o sobre o que ouviu embora saiba que ele nada tem de explicar-lhe
como a expressão em seu rosto lhe confirma.
1.36– O Alivio
Numa das manhãs, como de costume Griet está a varrer o atelier. Seu patrão adentra. Ela o
cumprimenta com uma reverência a lhe perguntar o que fazer. Ele lhe diz que já começou
uma pintura em grupo e que ela não precisará pousar com mestre Van Ruijven. Aliviada ela
agradece reconhecida. A trair seus sentimentos ele a olha sem jeito numa mistura de desejo e
atordoamento. Deseja poupá-la das suas palavras, ao mesmo tempo em que reconhece ser por
causa do ardiloso homem, que pode lhe dizer que deve pintá-la sozinha. E o diz. Ele não pode
negar a si mesmo o contentamento vergonhoso que sente por poder perpetuar a sua beleza,
ainda que seja para criatura tão sórdida. Queria fazê-lo para si, possuí-la através das suas
mãos ao pintá-la e tê-la sempre para contemplar, para alegrar os olhos a repousá-los em sua
formosura pueril a encantá-lo com o frescor da aurora que respira aquela pele branca
sonhando com ela a cobrir-lhe o seu corpo a possuí-lo e arrebatá-lo com sua alma para
sempre. Ela a parecer enxergar seus pensamentos, o compreende.
Naquela tarde, no grande cômodo na mesa de estar forrada por toalha de cetim amarelo a
abrigar os apetrechos que a decoram com elegância tendo a sua volta imagens e quadros
religiosos a conviver em harmonia com os deuses pagãos em mármore a enobrecer o
ambiente, está a destacar o semblante austero e preocupado da matriarca que sentada em pose
altiva retira do pequeno ataúde de carvalho entalhado as parcas moedas que são o pagamento
da jovem criada pelos seus serviços. Ao fazê-lo adverte-a com eloqüência que sua filha não
deve saber da feitura deste outro quadro no estado em que ela está. Inesperadamente Griet
ouve a velha senhora lhe contar o destino do quadro e a aconselhá-la não ousar contrariar o
seu dono. Diz-lhe que ela é apenas uma mosca em sua teia e arremata num desabafo fortuito
“todos somos”.
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Após o jantar, Griet está no canal a despejar os restos da refeição. Suas ondas produzem um
som melancólico convidando um sonhador para nele se acalentar. Ao dirigir-se a porta do
pátio interno é abordada pelo pintor. Furtivo em trajes de passeio noturno com um chapéu
negro a encobrir-lhe quase toda a face e com um xale de lã a proteger-lhe os braços, como
uma aparição saída de um conto macabro lhe diz que ela deve começar a posar na manhã
seguinte. Assustada ela responde que não é possível, pois tem trabalho a fazer. Ele lhe diz que
ela arrume um jeito.
1.37– A Modelo
O artista não encontra um meio para começar seu trabalho. Os pincéis o incomodam, não
consegue comandá-los no esboço da jovem que sentada à sua frente está despojada de si
mesma e para ele. Porém a musa dos seus sonhos o confunde e inibe. Griet a perceber sua
hesitação procura acomodar-se na cadeira a buscar uma posição mais confortável. Ele a olha
fascinado, ao mesmo tempo em que tenta descobrir uma maneira de desvencilhar-se desse
fascínio para então possuir esse rosto imaculado ao pintá-lo sob a regência do amor que a
beleza dessaVenus lhe inspira. Pede-lhe para arranjar a touca, dobrá-la para melhor ver seu
rosto. Em seguida pede-lhe para tirá-la. Griet insinua um gesto de obediência, mas volta atrás,
dizendo-lhe que não pode fazê-lo. Não justifica sua recusa, simplesmente fica calada. Ao
perceber sua determinação Vermeer lhe diz que há uns lenços no quarto ao lado que lhe serve
de dispensa. Ela para lá se dirige a retirar a touca e a soltar os cabelos para cobri-los com um
pano de cor azul celestial e outro de cor amarelo pálido. Ele não resiste e a tudo vê a observá-
la secretamente por meio da porta entreaberta. Como a sentir seu olhar escondido ela volta-se
em direção a porta a descobri-lo invasivo. De repente sua intimidade mais preciosa foi
revelada a esse homem por conta de um acaso indiscreto. Doravante o artista partilha com ela
o segredo dos seus cabelos vermelhos ondulados e longos até a altura dos seios. Cabelos de
que ela se orgulha tanto e que guarda para o leito daquele a quem se entregará completamente.
Mas não faz mal, se sente possuída por ele de um jeito diferente ao dos seus sonhos.
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1.38– A Perfídia
A jovem esposa com cabelos soltos sob uma trança a emoldurá-los delicadamente, encara
desgostosa mestre Van Ruijven que veio a casa para uma visita. A bebericar goles de cerveja
na companhia da jovem mãe no grande cômodo à mesa de estar, insinua maldosamente o
gosto do pintor por mulheres jovens. Diz-lhe que gostaria de surpreendê-lo no exercício de
sua tarefa. A jovem senhora retruca a relembrá-lo que ele mesmo diz ser entediante. Ele
concorda quando se trata dele ou da esposa a posarem, mas insiste em querer fazê-lo quando o
artista está a pintar uma beldade sozinho com ela no estúdio. Ela lhe diz então, que ele terá de
esperar, pois seu marido só faz um quadro de cada vez. Com um tom alcoviteiro a passear os
dedos pelo rosto e cabelos de Cornélia que a acompanhar a mãe está a ouvi-lo alegre e
atenciosa, Van Ruijven goteja sem piedade mais veneno na alma da pobre mulher. Compraz-
se em alfinetá-la, alimentando-lhe os ciúmes cuidando de relembrá-la que ela já não é mais
tão jovem e atraente. A jovem mãe ao olhar para o teto a ouvir os passos do esposo deixa
transparecer em sua face insegurança e temor.
No grande cômodo naquela noite, enquanto Griet prepara a mesa para o jantar os fantasmas
da jovem patroa parecem dispostos a assombrá-la. Com o baralho a tentar distrair-se não
consegue, porém deixar de perceber o desassossego do marido que sentado em frente à lareira
está a acompanhar os gestos da criada. Reclama ao esposo sua ajuda para nela fechar um
colar. Ele desperto de um torpor a atende num misto de constrangimento e contrariedade
como se pego numa pecha. A velha senhora a fumar seu cachimbo sentada próxima ao casal a
tudo observa em silencio. Vermeer volta ao seu lugar e com uma das mãos a passear nervosa
pela fronte e pelos cabelos não consegue esconder o rosto atordoado por ter que participar
desse rito cotidiano, outrora tão agradável, que agora lhe pesa aos ombros com a presença de
Griet a cumprir sua tarefa narcotizando-o por completo. Não consegue evitar, olha-a
novamente. A moça retribui sem jeito com um olhar ligeiro enquanto repousa os talheres
sobre a mesa. O semblante da esposa é triste, apesar da toilete impecável para a ocasião, ao
perceber o flerte do marido que descobre ser mais forte do que ele. Ralha com a empregada
por sua vagareza. Griet se apressa a sair da sala. Vermeer não suportando o clima tenso em
momento tão inapropriado se levanta. Inesperadamente também se retira dizendo estar no
estúdio até a hora do jantar. Os olhos da jovem patroa traduzem indignação e revolta.
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1.39– O Fascínio
Na manhã seguinte no atelier, Griet despojada do seu tempo está a ofertá-lo inteiramente ao
artista. Sua pele branca, os olhos fixos em seu semblante arrebatam-no, tamanha beleza a
entregar-se incondicional às suas mãos reclamando a sua alma para possuí-la completamente.
Ele obedece. Pede a jovem para abrir um pouco a boca e umedecer os lábios, uma vez, mais
uma, outra vez mais, quantas são necessárias para que ele possa aos poucos, bem devagar
entrar docemente nesse camafeu de marfim que o embriaga. Os lábios róseos umedecidos pela
saliva a prepará-los para o desabrochar são como os botões das flores banhadas pelo orvalho
que despertam sob os raios de sol a penetrá-las do firmamento. Ao longe as vozes das crianças
soam como uma melodia a coroar a intimidade dos enamorados.
Naquela noite no grande cômodo no recanto da sala de estar próxima a lareira, que a arder
pelas achas acalora o ambiente num clima discreto e confortável, a velha senhora a desfiar um
rosário mudo juntamente com o casal está a desfrutar da atmosfera de um lar aparentemente
harmonioso. Aguardam o jantar solene de todas as noites. Griet está a lhes servir o vinho
tinto como de costume. Vermeer a remexer na caixa de jóias da esposa escolhe um brinco de
pérola para completar a toilete elegante da mulher. Ela orgulhosa de sua beleza e incentivada
pela atitude cordial do marido a lhe parecer admirá-la põe a jóia envaidecida. Porém, para seu
desgosto ouve do artista comentário sobre o propósito do seu gesto a argumentá-lo para a
jovem criada com uma naturalidade insolente, como se a moça fizesse parte da intimidade
familiar. Ultrajada a jovem patroa chama-o pelo nome em tom suplicante a registrar o
desprezo que experimenta. Griet retira-se encabulada.
As manhãs são ainda muito frias, mas naquela o calor da discussão de Griet com o artista
aquece o ar. Agitado ele quer que ela use uma pérola para equilibrar a composição. Ela não
quer. Argumenta que não tem orelhas furadas e que já o viu pintar sem precisar recorrer a
artifícios. Ele insiste que não tem como adivinhar como ela ficaria com o brinco. Ela sustenta
que a jovem patroa vai descobrir. A parecer correr o risco, ele é imperativo e como última
tentativa para persuadi-la lhe mostra o quadro. Griet o olha embasbacada, não esperava por
esse gesto intempestivo. Encaminha-se para a tela devagarzinho a ver-se de um jeito que ela
jamais pensou que alguém a visse. Diz ao artista que ele olhou dentro dela. Descobre em seu
íntimo que ele já está dentro dela. Ele atendeu o seu pedido secreto. Aflito Vermeer observa a
reação da jovem ao seu apelo desesperado, a sua declaração sincera.
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1.40– A Curra
Mestre Van Rujven sob o pretexto das encomendas que fez ao artista, vez por outra visita a
residência dos Vermeer. Costuma passear pela casa como se fosse sua a bisbilhotar a lida
doméstica. Não deixa de acompanhar com os olhos de um predador os passos de Griet que
atarefada não se dá conta do malfeitor que se apronta para o abate. No pátio interno ela está a
estender as últimas peças de roupa branca no varal, que perfazem corredores de um labirinto
imaculado. Subitamente é surpreendida pelo leão voraz que a valer-se de sua força subjuga a
esquálida presa. Ela tenta desvencilhar-se, mas não consegue. As mãos do homem a
imobilizam. Ele quer vê-la, enquanto, em vão ela tenta fugir. Agarra seu queixo a encará-la
frontalmente. Seus bafos de cerveja misturados ao suor do seu rosto causam náuseas na jovem
que apavorada não consegue desviar os olhos dessa figura demoníaca, a insinuar a relação do
pintor com ela numa intimidade descabida. O homem devorando-a com os olhos profere
insultos recheados de malícia. A encará-la feroz e valendo-se do seu poder reclama-a por
direito, pois ela está sendo pintada porque ele assim o quis. De repente ela consegue libertar-
se e corre em direção à porta da rua. As aves do quintal batem as asas desesperadas a
compartilhar o medo da jovem impotente. O barulho atrai Cornélia à janela que pela vidraça a
tudo passa a assistir impassível. Ele a alcança. Ela debate-se ferida, seu pescoço lateja a
pressão violenta do algoz. Sucumbindo ao corpanzil que a espreme contra o muro, tem suas
pernas presas pelas dele enquanto sente uma das mãos do homem abrir seu corpete e devassar
a blusa, ao mesmo tempo em que a outra mão passeia os dedos por suas coxas entre as pregas
da saia buscando-lhe o sexo. Não tem mais forças. Seus seios já estão quase à mostra, ela
pensa que tudo está perdido quando ouve a voz da jovem patroa a gritar-lhe o nome com
insistência. Van Ruijven interrompe a curra maldita. Frustrado ordena o silêncio da jovem a
ameaçá-la de que se não obedecê-lo perderá o emprego. Raivoso e contrariado está a
praguejar por conta da inveja que sente do artista por tê-la no atelier. Recompondo-se
rapidamente se dirige ao encontro da jovem patroa dando-lhe uma desculpa qualquer por sua
ausência imprevista. Griet custa a creditar em tudo que viveu. Está aterrorizada, vexada,
confusa e machucada. Ela toda está a tremer como galhos a deriva de um vendaval, mas está
pregada ao chão, não consegue sair do lugar. Demora em ordenar as idéias. Cornélia a
observá-la em silêncio, retira-se devagar da janela como a cúmplice perversa da armadilha
vergonhosa.
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Na madrugada do outro dia, antes do sol raiar, a vestir sua roupa costumeira e apenas
com a meia touca a cobrir-lhe os cabelos, Griet já está a preparar os pigmentos no sótão. Não
conseguira dormir, seu corpo dolorido não encontrou descanso no colchão de palha,
companheiro acolhedor do repouso noturno, mas que agora a dividir com ela sua humilhação
não consegue ampará-la o bastante em sua calada dor. Trabalhar conclui a jovem é o melhor a
fazer apesar do pescoço latejante como chagas abertas a relembrar-lhe o pesadelo. De repente
ela se detém a olhar a mesa forrada com as cores e os apetrechos do seu ofício emprestado
nesse santuário que sempre está a proteger-lhe como sentinela leal. Por um momento sente
medo, medo de ter que um dia ir embora e saber que nunca mais verá aquele lugar tão
importante para ela. Saber que nunca mais estará na companhia do patrão a trabalhar com ele
na intimidade das tarefas diárias sempre a surpreendê-la com uma lição diferente. Saber que
não mais dará a sua opinião sobre a composição dos quadros com a naturalidade que os seus
olhos lhe mandam dizê-lo. Saber que não mais viverá com o pintor esses momentos nos quais
ele é só seu nesse mundo onde apenas os dois habitam.
1.41– O Pedido
Os passos da velha senhora a despertam dos seus pensamentos. O vestuário negro a confunde
com as sombras da mansarda e escancara sua palidez de mortalha. O olhar da mulher quais
duas contas de vidro reflete como um cristal a aflição da sua alma, o medo da ira do mecenas
se o artista o contrariar, as dívidas, a ruína... Griet escuta sua voz e sustenta aquele olhar como
a enxergar uma miragem não conseguindo acreditar no que ouve. Estranhamente a orgulhosa
senhora não lhe ordena nada apenas lhe faz um pedido. Griet não consegue recusá-lo, sua
natureza servil lhe impõe o cumprimento desse dever mesmo não sendo ele sua obrigação.
Prontamente naquela tarde vai à botica e encomenda ao bondoso senhor um láudano para
desinfetar a orelha.
No meio da manhã do dia seguinte, a jovem está a limpar o borralho da lareira quando a
senhora Thins se aproxima. A velha mulher lhe entrega as pérolas dizendo-lhe que a filha
passará o dia fora e que este é o momento para ela posar com os brincos como quer o artista.
Bem sabe a matriarca que a sorte está lançada.
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1.42– A Pérola
Em frente ao artista Griet está pronta para posar. Com os panos na cabeça, naquela manhã,
seu rosto lhe parece mais iluminado do que nunca. Ele vê sobre a mesa as pérolas e
acompanha com os olhos emocionados os dedos da jovem a umedecer a orelha para furá-la. A
chama da vela irradia calor e brilho a iluminar a pele branca para hospedar a gota preciosa. A
adivinhar os pensamentos do pintor ela retira do pequeno estojo de costura uma agulha e lhe
pede para fazê-lo. Gentilmente, porém não disfarçando seu desejo e emoção Vermeer queima
a ponta da agulha e perfura a carne macia. O gemido da jovem transparece sua entrega e dor
ao gesto firme do homem a rasgar-lhe a carne, a macular de carmim sua alma transformando-
a em mulher. Comovido ele limpa o sangue da orelha tentando aliviar-lhe a dor. Compartilha-
a ao roçar de leve sua cabeça na dela enquanto enlaça discreto seu ombro. Com a devoção do
amante toma das mãos de Griet a pérola e a penetra fundo consumido pelo encanto e pelo
prazer dessa beleza que agora se torna dele, e que é só para ele. Uma lágrima desliza pela face
da jovem. Ele tenta secá-la com a mão a escorregar os dedos para os lábios carnudos e róseos
levemente entreabertos. Griet os oferece a ele. Ligeiro, porém ele se esquiva em direção ao
cavalete. Lá, somente lá pode desfrutar da oferta dessa imagem que o reclama para si. Pede a
Griet para virar a cabeça e não o ombro. Essa posição lhe é a perfeita. Sua visão da jovem é
plena e o comove ao vislumbrar o encantamento que inspira a beleza e a perfeição. Agora sim
pode eternizá-la, e ao fazê-lo entregar-lhe a sua alma, submeter-lhe seu corpo e ofertar-lhe sua
vida.
1.43– O Defloramento
A noite já não é tão fria e os ventos mornos trazidos pela maresia anunciam a primavera que
em breve como uma renda estará a enfeitar os prados de Delft. Após o jantar Griet se apressa
a correr para encontrar Pieter na taverna onde se reúnem os vendedores de carne do outro lado
do canal. Ofegante a jovem ao encontrá-lo toma o rapaz pelas mãos que surpreso a
acompanha se desvencilhando dos bebedores de cerveja e da algazarra alegre do ambiente.
Com ele Griet se refugia num beco familiar, próximo da taverna, que guarda as carícias, as
juras e os segredos dos namorados. E pela primeira vez ela se entrega ao jovem com toda a
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força do seu coração e o desejo do seu corpo. Sua alma fora possuída pelo artista, tão fundo
quanto as suas lágrimas de dor. Agora precisa entregar seu corpo e consumar esse amor
secreto com aquele que a deseja e espera mais que tudo por isso, sendo sem o saber o
simulacro da sua vontade. Feliz o amante a recebe com delicadeza e ardor.
Ao observá-la carinhoso a ajeitar a roupa Pieter faz planos para o futuro. Ela o ouve com
ternura e não faz promessas, dá-lhe um beijo delicado a roçar a ponta do seu nariz no dele
grata por sua sinceridade e confiança.
Naquela manhã ao contrário das demais, antes de cumprir suas tarefas no sótão Griet devolve
a velha senhora no grande cômodo o par de brincos. A matriarca sentada a pensar preocupada
os recebe em silêncio. Seus olhos, porém transparecem surpresa e interrogação pelo gesto da
jovem, pois não sabe ao certo se seu pedido teve tempo para ser atendido. De qualquer
maneira ela espera que sim, que nem tudo esteja perdido. Cornélia a vigiar os passos de Griet
sorrateiramente a tudo assiste.
1.44– A Dor da Jovem Mãe
No atelier Griet está a colocar os pigmentos convertidos em tintas na palheta. Ao deslizar as
mãos pelas cordas do clavecino colocado no atelier para servir de modelo a um dos quadros,
ouve a voz alterada da jovem patroa que a subir as escadas em companhia da mãe se
encaminha para o estúdio. Encostada no clavecino, um calafrio percorre a espinha de Griet
quando a jovem patroa adentra ao recinto. Desgrenhada seus gestos e palavras soam-lhe como
os tambores a anunciar o tiro impiedoso ao traidor em desgraça. A mulher geme alto sua
indignação e desespero. Sentindo-se traída pela mãe e pelo marido seu rosto se contorce na
aflição da descoberta a demonstrar o inchaço dos olhos congestionados lavados pela dor.
Enfrentando a matriarca sua boca espuma revolta ao acusá-la de cúmplice em tantas mentiras,
a condenar o desrespeito a que foi submetida em sua própria casa. O artista adentra ao
estúdio. Em frente ao marido ela lhe diz que não há mais nada a esconder dela e lhe pede para
ver o quadro. Ele nega seu pedido a argumentar que ele não tem sentido. Ultrajada ela
sustenta que não é estúpida, como ele quer a todos fazer crer, como se ela fosse incapaz de ver
um quadro. Ao olhar Griet a aponta como uma analfabeta que é a dizer que a criada sim é
estúpida e ignorante. A Senhora Thins em pânico, temerosa pelo estado interessante da filha,
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tenta acalmá-la, enquanto obstinada ela insiste em saber por que ele não quer que ela veja o
quadro. Vermeer argumenta que é só mais um trabalho e que irá embora em alguns dias e ela
nunca precisará vê-lo. A velha senhora reforça as palavras do genro a dizer que os quadros
são apenas encomendas e que não têm importância. Indiferente a observação da mãe,
encarando o esposo lhe pergunta se é verdade que Griet usou as suas pérolas. O silêncio do
homem confirma sua suspeita. Ferida como se um punhal lhe rasgasse a alma, encosta sua
fronte na dele segurando-lhe a cabeça com as mãos a gemer de dor baixinho enquanto o
censura pela resposta inacreditável. Volta a insistir para que ele lhe mostre o quadro. Ele tenta
poupar-lhe o dissabor. Novamente imperativa ela exige. Vencido ele retira do cavalete um
trabalho em andamento. Ao fazê-lo a imagem de Griet para o desespero da jovem mãe, como
um espectro de horror lhe aparece por entre os vãos da madeira a assombrá-la sem
misericórdia. Colocando o quadro da jovem criada sobre eles descerra o pano que o cobre
mostrando-o a mulher. Arrepiada ela mal acredita no que vê. O retrato de Griet lhe é obsceno.
Obsceno por tudo que representa. Sua juventude perdida, as dores do parto que não lhe dão
trégua, sua beleza esvaindo-se a cada criança que gera concebida no calor de um carinho
interesseiro até o prazer indiferente do marido aos seus sentimentos mais íntimos, saber-se
uma parideira a deriva da sorte, a legitimar a virilidade do companheiro frente a todos e sem
nenhum reconhecimento do mesmo à sua lealdade, o que lhe é mais claro do que nunca nesse
momento, quando é exposta ao vexame dessa vergonha que está a viver. Suplicante pergunta
ao artista porque nunca a pintou. Ele lhe responde que ela não entende. O olhar da jovem mãe
perplexo pelo descaso na resposta lhe interroga se a criada entende. A quietude do artista a
enlouquece de vez. Ela agarra uma espátula. Desesperada e convicta dirige-se ao quadro para
destruí-lo, para fazê-lo sangrar pela sua ira e desgraça, para destruir aquela beleza que seduziu
seu homem ao ponto de transformar a ela e ao seu lar em um palco de marionetes. O artista a
impede e uma luta breve enlaça o casal. Atrás da cortina Cornélia a tudo presencia. Seus
mexericos frutificaram.
Desarmada a jovem esposa a escorar a face transtornada na camisa do pintor, solta um grito
que ecoa como uivo de um animal ferido em agonia de morte. Levantando a cabeça arrasada e
confusa seu mundo desmoronou. Olhando então para Griet vai até ela. A silenciar um choro
embargado na garganta, um choro contido pela urgência do seu ato derradeiro, expulsa-a da
casa com toda força do seu ser.
Griet obedece, para seu próprio espanto, com altivez. Um breve olhar ao pintor que o
corresponde envergonhado e outro a encarar a jovem patroa enquanto se dirige à porta, selam
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o desfecho dramático. Em seu íntimo, porém a faz saboreá-lo como uma vitória fugaz, pelo
terror que vê impregnado no olhar da mulher a denunciar que mais forte que seu ódio é a sua
derrota por saber que nunca foi capaz de despertar no marido o fascínio embriagador que a
beleza e o frescor da juventude o fizeram devotar a ela seu talento, sua lealdade e seu amor.
1.45– A Partida
O silêncio naquela tarde é devastador. A jovem criada apronta seus pertences numa modesta
sacola de pano preta que os protege para deixar a casa. Ao passar pelo corredor que leva a
saída dirige um breve olhar à ave brincalhona que estranhamente está calada e a Tanneke que
por um momento interrompe sua tarefa numa despedida muda.
Griet não pode, no entanto retirar-se sem se despedir do atelier e tudo que ele representa. Sobe
os degraus bem devagar que conduzem a ele num gesto metódico para o rito final. Bem sabe
que se não for por conta do acaso jamais tornará a ver o homem que roubou sua alma e
transformou-a em mulher, que a fez sentir um encantamento e a experimentar a felicidade
como nunca pensou que pudesse, que lhe segredou um mundo a cada dia diferente como são
diferentes umas das outras as conchas do mar. Uma nesga de luz irradia a magia desse
encanto pela fresta da porta entreaberta. Sua mão deseja abri-la, mas só consegue tocá-la e
escorregá-la na madeira como se acariciasse o rosto querido do homem que ela sabe estar lá
dentro compartilhando seu desejo e sua dor. Uma profunda tristeza faz gemer dos seus lábios
um soluço abafado a rolar dos olhos duas lágrimas de amor. O som lento dos tamancos a
encaminha para os degraus. Vermeer os ouve e mais que nunca quer alcançá-la, mas não
pode, não deve. Ela interrompe seus passos e volta a cabeça em direção a porta na esperança
de vê-lo pela última vez. Um breve instante espera. Então, decidida desce os degraus a
cumprir seu destino.
Os ares da primavera aquecem levemente o crepúsculo. As águas do canal dançam sob as
marolas dos barcos a buscar os ancoradouros para o repouso noturno. Griet caminha serena
pelas ruas até alcançar a ponte que divisa a esquina dos papistas do outro lado da cidade. Ao
atravessá-la logo alcança a estrela de oito pontas no centro de Delft. Sobre ela a jovem para
como a refletir sobre tudo que viveu tudo que sofreu, mas não pode esconder de si mesma a
felicidade que sentiu. Aquele fim de tarde para Griet é o renascimento de outra jovem. Ela
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agora guarda consigo não só os tesouros da casa paterna que regressam seguros, mas os
tesouros da sua alma que guardará sempre na lembrança na memória do seu coração juvenil o
seu desabrochar para mocidade.
1.46– O Bem, o Belo e o Bom
Na sala iluminada pelos raios de sol da primavera a realçar as tramas dos tapetes que forram o
assoalho de pedras, sustenta uma cadeira qual trono aristocrático a acomodar seu senhor em
tarefa esplêndida. Fascinado Van Rujven olha com adoração a obra que repousa imponente no
cavalete a ofertar-lhe o seu encanto. A jovem pueril de olhos aveludados com um ponto de luz
sob a face arrebata-lhe a soberba convertendo-a em submissão e reverência. O elegante senhor
a trajar um hobe de chambre lilás sobre camisa de seda alva, tão alva como sua face
impecável sob os cabelos penteados com esmero a descansar as mãos sobre as pernas com os
dedos cruzados numa posição respeitosa está sentado ao lado da mesa recoberta por alcatifa
acetinada a destacar bichos empalhados em poses solenes. Ele os tem como companheiros
leais quando está a olhar comovido a obra de arte sedutora que o magnetiza esmagando-o pela
sua beleza. O rosto de mestre Van Rujven transparece o reencontro com sua própria alma ao
contemplá-la e o seu suspiro a docilidade dos sentimentos que nela se abrigam. Sentimentos
que não se perderam, mas que apenas afloram por meio do belo a resgatar-lhe a bondade e a
compaixão, como testemunho eloquente e secreto do mais íntimo do seu ser.
1.47– A Declaração
O sol inunda de luz o pequeno pátio interno. O saçaricar das galinhas soa uma melodia festiva
a comemorar o regresso da jovem à casa paterna. Absorta em sua tarefa doméstica, Griet se
surpreende com a chegada de Tanneke e levanta-se cordial para recebê-la. A velha criada
aliviada por encontrar a moradia com um olhar curioso a saudá-la despachada entrega-lhe um
pequeno embrulho. Demora-se por um breve instante a dar a missão por cumprida e logo se
retira ligeira.
59
Griet recolhe-se a sala de alimentos e observa entre seus dedos ainda marcados pela antiga
lida o lenço de linho com o sinete de Vermeer a vedá-lo com nobreza. Ao abri-lo
devagarzinho vai descobrindo os retalhos dos panos que envolveram seus cabelos. Ao
desenrolar o retângulo azul maravilhada e perplexa vê os brincos de pérola. Aos seus olhos
elas lhes parecem mais brilhosas e lindas do que nunca. Comovida Griet as devolve aos panos
segurando-as com toda força do seu ser. Uma alegria invade seu coração. Tem certeza das
lágrimas de amor que ele também chorou na sua partida, límpidas como os pingos da chuva a
exalar na primavera o perfume das flores. Agora ele dá a ela suas lágrimas a confirmar o amor
que sentem um pelo outro e que estará sempre presente em suas vidas por meio das gotas
preciosas a selar suas almas enamoradas.
60
Capítulo 2: O Desvelamento
Heidegger em suas obras nos revela um poder de articulação com o mundo que a obra de arte
tem, na medida em que ele mergulha na fenomenologia da obra, estabelecendo nesse
movimento hermenêutico através da compreensão da totalidade do fenômeno e da sua
reflexão sobre ele o pensamento entre parte e todo historicamente constituído que se dá no
tempo da obra.
O lugar da arte, segundo o autor, se revela no discurso poético originário do mundo que só
acontece por meio dela, da arte, porque ela permite e é a abertura do mundo. A arte dá lugar à
determinação de seu próprio tempo através da obra que aparece a partir do particular para o
todo. O particular pelo desvelamento do horizonte do sentido que ela possui e o todo pelo
historicamente constituído na sua narrativa, da obra de arte.
A filosofia da arte é onde a arte tem lugar na constituição histórica, é uma expressão do
horizonte hermenêutico do espaço, é o existencial dos sapatos do camponês de Van Gogh e
Griet de Peter Webber a descascar uma cebola rodeada de legumes a decorar-lhe a mesa numa
materialidade tão absoluta que a subverter a realidade da coisa, do todo, transcende nosso
olhar pelo gesto particular e pela postura da jovem que nos convida a amar na imanência tudo
que a cerca. Eis a descrição da cena:
„Sobre a mesa legumes descansam. Desordenadamente espalhados ao redor do castiçal de
uma vela só, esperam a artífice que os desnudará. Enquanto isso, sob fachos de luz que
adentram pelas duas vidraças e uma porta semi-aberta do humilde cômodo, enfeitam a rústica
plataforma que os sustentam, enchendo de cores a pequena sala de alimentos. Um turbante
envolve a cabeça da menina-moça que levemente recurvada se concentra na tarefa de
distribuir as rodelas coloridas que seus dedos finos cortam cuidadosamente num rito hábil e
preciso espalhando-as sobre a porcelana branca. A leveza das formas arredondadas num
arranjo delicado veste-a como um bordado. Cada cor encontra seu espaço e todas enfeitam a
modesta louça com o requinte próprio da beleza e do frescor que a natureza exala. Nessa
atmosfera acolhedora e prazerosa de uma lida doméstica a jovem se depara com um novo
destino a cumprir.‟5
5 („ ‟) Estas aspas em negrito referem-se às citações da narrativa do filme.
61
A fenomenologia suspende o que a coisa é porque nós achamos que ela é, mas abre o espaço
do mundo da obra de arte para que as coisas que nela estão se mostrem como elas são.
A linguagem é expressão, manifestação de pensamentos e experimentação do homem com o
próprio acontecimento das coisas. Para Heidegger ver não é só o olhar comum. A filosofia
começa quando questiona o que vê, que as coisas são marcadas por um ato daquilo que vemos
e nos perguntamos e questionamos sobre elas...
O que Heidegger faz é questionar a obviedade! A linguagem é a experiência de que algo
acontece e ela a linguagem participa desse acontecimento. O que importa para Heidegger é
conduzir a linguagem onde ela, a linguagem, se essencía. Essência em Heidegger é verbo.
Esse verbo essenciar é o SER da linguagem para Heidegger. Linguagem é o verbo “essenciar”
que não é nome nem é atributo, portanto, a linguagem se faz linguagem porque ela acontece
como tal. O filme de Webber é o lugar onde a linguagem fala por meio das imagens
inspiradas nas obras de Vermeer: é o vir a nós e somos o que nós vemos, porém ver não é
constatar a presença das coisas, há mais na visão da constatação das coisas verdadeiras que
estão além da obviedade. É o ser no espaço de abertura num espaço que esteja
incessantemente aberto como campo que se abre com a existência. Existir significa liberar
abertura, no entanto esse espaço não é dado simplesmente, esse espaço é dado pela questão
que ele nos mostra e quando nós a questionamos. Ver é estar aberto para a mostração dos
entes.
A linguagem na arte se dá nessa experiência para além da palavra nominal. Não é o filme em
si, mas o que acontece nele. E Webber adota esse essenciar da linguagem de Heidegger
transformando o filme em um único ser.
Pensar arte como o lugar onde o tempo acontece é o que Webber faz. O tempo que aparece no
filme nos demonstra através dos afazeres do cotidiano de uma serviçal as relações que esses
estabelecem entre os protagonistas e a essência do diálogo dessa obra com o espectador no
desvelamento do conjunto das imagens a revelar o ser em cada objeto, em cada movimento,
em cada palavra não dita, na expressão da natureza a incorporar-se no contexto teatral tão
perfeitamente que nos leva a dele fazer parte como a sombra do nosso ser a passear pela
história interagindo com ela. É como se estivéssemos ali, testemunhas de nós mesmos a nos
redescobrir capazes de um amor adormecido por tudo que é simples, que não sugere
deslumbramento, mas um renascimento desse amor à beleza que dá vida e luz ao inanimado,
62
ao trivial outrora despercebido a nos mostrar que estamos nele, que fazemos parte dele como
o grão de areia banhado pelo mar.
A linguagem na arte se dá nessa experiência para além da palavra nominal. Não é o filme em
si, mas o que acontece no filme originário de uma obra de pintura, do quadro de Vermeer que
inspirou sua realização. Escrever um roteiro e executá-lo num filme é ler, escutar, imaginar e
ver a dinâmica do quadro para a realização das coisas. A história é o conteúdo do quadro, da
obra de arte e o filme é o que ela é. As personagens do drama têm uma lei, um princípio, uma
determinação que conosco conversam e nos fazem protagonistas da época. A linguagem se
essencía onde a ação das personagens do filme acontece. Sendo assim, existem as coisas que
com as personagens acontecem na linguagem porque ela, a linguagem, as deixa aparecer por
meio da imanência a revelar suas almas inquietas.
A historicidade do filme transcende o tempo e espaço que lhe cabem, ela, a sua historicidade
transborda para além do fenômeno na abertura, que somente em Heidegger se dá através da
obra de arte.
É quando nos colocamos na posição da obra de arte que conversa conosco, mas conosco
dentro dela. Entramos nela, de fora para dentro. Estamos nela e aí podemos ouvi-la e
compartilhar sua existência como um ser que ao outro ao abraçá-la se transforma em um só.
Esse é o caminho da abertura que a palavra poética na obra de arte de Vermeer, segundo
Heidegger nos presenteia por meio do seu acontecimento apropriativo apreendido por Webber
em seu filme.
Toda vigília ou desvelo só é se for Ereignis, o acontecer poético-apropriante ou
verdade. A constância do originário [wesen] como verdade é o amor originante. O
desvelo é um deixar acontecer do saber como sabor do saber amoroso.6
É no acontecimento apropriativo, segundo Heidegger, que se designa um fato, é quando ele se
dá, quando a história acontece determinante a requisitar a linguagem como originária da
palavra poética, pois a palavra poética é a repetição necessária da época desse fato. O
acontecimento apropriativo é o espaço da morada do ser onde os entes habitam nesse fato. Ele
vê na morada do ser o que nele aparece dela por meio do seu conhecimento, que é o saber, por
6 De CASTRO, Manuel Antônio. In: HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Apresentação. A arte, o originário e a
verdade. São Paulo: Edições 70, 2010, p. XXIII.
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isso dela se apropria e é essa linguagem que nos permite ver e participar do mundo que o
filme diz. É no acontecimento apropriativo que se tem o conhecimento do ver e do próprio
acontecimento onde as coisas aparecem, o modo de ser delas, como elas, as coisas acontecem
em nós. Ver é estar aberto para o qual aparece o que pode ser visto. Assim, a essência da
linguagem, é o saber, logo é ser do ente.
O espectador na tradição é o que dá forma à matéria. A própria arte dá condições para que ele
o faça. A nossa história é uma pretensão de quem a faz e quem a faz decide o que faz, por isso
é tão difícil para o movimento heideggeriano suspender a tradição do que está pronto (da
coisa), pois ela é a nossa tradição.
A obra de arte para Heidegger dita o que ela é, é um ditado poético, é a voz da própria obra e
é preciso escutá-la. O diretor Webber nos transporta ao seu filme de tal forma que nos
deparamos como se fossemos os pigmentos e as próprias mãos daqueles que os manipulam.
(...) Geralmente podemos observar, que todo ente é, mas sempre o fazemos de
habitual, sem nos atermos ao fato e logo esquecer. Mas o que existe de mais
corriqueiro e habitual do que o fato de que o ente é? Na obra, o fato de que ele é
enquanto tal é, ao contrário, o extraordinário. O acontecimento do seu ser-criado não
permanece vibrando simplesmente na obra, mas aquilo que responde pelo seu
acontecimento, ou seja, o que faz com que ela seja o que é, está projetando-a e
mantendo-a incessantemente projetada. Quanto mais essencialmente a obra se
manifesta, mais clara se torna sua singularidade, definidora do que ela é, no lugar de
não ser. Quanto mais essencialmente se manifesta a matéria na abertura, mais estranha
e única se torna a obra. Na pro-dução da obra se encontra esta oferenda: “que ela
seja”. 7
A própria tradição não dá conta sobre o que a coisa é e paradoxalmente não experimentamos
as coisas porque ao termos contato com elas nem sequer as notamos. A arte trata das coisas
por mais abstrata que ela a arte seja. Ela contém elementos que são elementos coisais. Para
demonstrá-los recorremos ao filme, na cena descrita abaixo, como à pintura de Van Gogh dos
sapatos do camponês que Heidegger ilustra para implodir os conceitos da tradição da coisa,
Webber também o faz ao renová-los no originário da obra de arte de Vermeer. E ao renová-
los a confiabilidade do ser – utensílio em sua obra de arte, no filme, aparece.
O ser-utensílio do utensílio foi encontrado. Mas como? Não através de uma descrição
e comentário de um utensílio-sapato realmente existente; não através de um relato
sobre o processo da fabricação de sapatos; também não através da observação de uma
real utilização do utensílio-sapatos que aconteceu aqui e lá, mas, sim, somente através
do fato de que nos colocamos diante do quadro de van Gogh. Este falou. Na
7 DUARTE, Rodrigo (org). O Belo Autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: UFMG, 1997. In: Heidegger:
trecho de “A Origem da Obra de Arte”; tradução: Maria José Rago Campos. p, 227.
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proximidade da obra estivemos repentinamente em outro lugar diferente do que
habitualmente costumamos estar.
A obra de arte deu a conhecer o que o utensílio-sapatos é em verdade.8
„Numa manhã já muito fria bem cedo Griet e seu patrão sobem os degraus da estreita escada
ao fundo no cômodo, que conduz ao sótão. Ao tirar o jaquetão azul e a descansá-lo num prego
na parede, Vermeer se dirige à mesa retangular a dobrar as mangas brancas da camisa para
protegê-las da poeira colorida que está a dormir em sua madeira. Na mesa há algumas
vasilhas de metal, potes de cerâmica e espátulas pontudas. Destacam-se, porém, recipientes
triangulares de vidro de pé alinhados por uma armação comprida apropriada. Cada um deles
tem uma espécie de “areia” de cor diferente. Com empenho, o artista pausadamente vai
desvendando a jovem sua misteriosa alquimia. Devagar a brincar com os pigmentos em suas
mãos habilidosas lhe diz seus nomes. Eles escorregam por entre seus dedos roliços quais
pedacinhos das folhas avermelhadas que se esparramam pelo chão nos campos manchados
pelas cores do outono. Potes brancos de cerâmica guardam pedras frágeis de cores e tamanhos
diferentes como as conchas na beira do mar. De cada uma ele extrai o pigmento para fazer a
cor. Têm líquidos com cheiros estranhos em vidros redondos e gorduchos, pequenos e
grandes com conta-gotas gigante, mas que não são tintas. Ele deixa claro que com eles se
misturam os pigmentos a resultar nas tintas.
Griet atenta ouve e observa seus gestos a indicar a serventia de cada coisa. Estranhamente não
se sente embaraçada. Ao contrário, se sente a vontade e quer guardar na memória tudo que ele
está a dizer. O pintor dedicado explica-lhe como os pigmentos são moídos. Mostra o moedor
de pilão e como usá-lo para moer as pedras. Ela repara um pequeno anel a enfeitar-lhe o dedo
indicador esquerdo.
Pede-lhe que tente moer um pedaço quebrado de carvão de preto profundo que está sobre a
mesa. Hesitante ela obedece. Ao girar o pilão não consegue fazê-lo direito, pois não tem força
nas mãos o bastante. Ele lhe diz para usar a força dos ombros.
Ao cobrir suas mãos com as dele para demonstrar a maneira precisa de fazer o movimento,
Griet sente seu corpo estremecer. Ao seu toque ela experimenta uma emoção que a arrepia a
lhe produzir uma mistura de prazer e constrangimento, uma alegria diferente, perturbadora,
8HEIDEGGER, Martin. A Origem da Origem da Obra de Arte. [tradução Idalina Azevedo e Manoel Antonio de Castro].
São Paulo: Edições 70, 2010, p 85.
65
que não conhecia. Precisa se esquivar. A retirar as mãos abruptamente do moedor olha seu
patrão admirada.‟
Usando a fenomenologia que é uma condição negativa que suspende as teorias prévias,
Heidegger reforça que a linguagem não é expressão enquanto veículo de manifestações de
transformações, mas a linguagem é o lugar onde as coisas acontecem e isso se dá na obra de
arte como o espaço que se abre para elas acontecerem. Elas, as coisas estão animadas por
Webber, por si mesmas pelos sentimentos que elas, as coisas, detêm e se oferecem ao artista
Vermeer como aquele que do mundo delas faz parte ao reconhecê-las sempre como alminhas
pequeninas que passeiam sob seu olhar nos convidando, ao nosso olhar a pertencer a sua
natureza.
No filme de Webber há embate e confiabilidade porque o que ele vê na obra de Vermeer se
diz como tal ao projetá-lo. Webber é cúmplice de Vermeer embora não seja seu
contemporâneo. Ao projetar a história de amor do artista pelo belo eleva a tradição de uma
família burguesa no seu desenrolar, onde na terra que provê o seu sustento da mesma enlaça
os protagonistas como aquela que ao abrigar a intimidade das suas vidas lhe garante a
sobrevivência. Nos pigmentos existe toda a experiência do seu uso, da própria terra que os
origina, mas eles não são só utensílio. Manipulá-los é prazeroso e desafiador se não
responderem aos objetivos que lhes cabem: as cores. Há uma relação amorosa do artista com
eles e deles para com o artista que não desaparece quando alcançado seu objetivo. A
confiabilidade do ofício é decisiva para que se obtenha o resultado almejado, que não
significa só fazer as cores, mas parar para o repouso diminuto e ao mesmo tempo olhar para
tudo que os rodeiam, a ele próprio, o artista, a aprendiz, os pigmentos, o sótão e serem vistos
por estes. Assim também o é no mundo do camponês de Van Gogh que ganha voz para que o
tempo se faça tempo e seja a sua verdade, a verdade dos sapatos do camponês na obra de
arte9. Cada passo seu aponta para a resistência da confiabilidade em seu caminhar que é tenso
e a obra de arte se põe como verdade da historicidade que ela nos abre no tempo que a
determina, bem como a alquimia das cores determina a dramaticidade da história contida
nelas que tornarão real o tempo da obra de arte que estabelece na pintura de Vermeer a
verdade da obra nela revelada.
O cinema é o espaço do qual alguém lembrou o passado e o faz presente, a torná-lo
repentinamente real. Confrontar com a sua negatividade é reconduzir o horizonte
9ibid, p 79.
66
hermenêutico do tempo às suas bases fenomenológicas que nasce da liberação da
desconstrução do que já é estabelecido.
O que clama Vermeer a pintar, o que o interpela? Vermeer vê e o que vê, esse se diz como tal
quando ele pinta. O que é visto por ele é como é visto por si mesmo. A palavra está ali, a
palavra que não é dita, mas simplesmente nos fala através da imagem do si mesmo da obra de
Vermeer sob o olhar penetrante e revelador de Webber, a partir do próprio filme seguindo
uma indeterminação originária acompanhada da existência poética que se abre no espaço da
obra de arte. É como Webber que ao projetar suas imagens o faz a observar o tempo da
pintura do artista que nos aparece permanentemente a nos sombrear em suas cenas como se lá
estivéssemos cúmplices de todos os detalhes. Estamos dentro da cena, dela participamos e
deliberamos como se adivinhássemos seus desdobramentos ao mesmo tempo nos
surpreendendo com eles. Essa é a mágica da historicidade da obra de arte que se renova
constantemente, pois abre o espaço para que a coisa apareça no embate do mundo da coisa,
em cada cena e em todas as cenas como um todo. Griet, o pintor, os pigmentos são a
confluência e ausência de tudo ao redor deles inclusive da nossa “presença”.
(...) das Seinlassen que é “deixar que o ente seja o que ele „é‟”, através do
comportamento do Dasein, que é o de se colocar na abertura do ente em totalidade e,
dessa forma, eksisitir. Das Seinlassen não significa, portanto, nenhum subjetivismo,
mas propõe uma nova relação entre o homem e a verdade. A necessária intervenção
humana para guardar, proteger, (contemplar) a obra não é senão o desvelamento da
obra, ou seja, da sua verdade: Guardá-la é permitir que ela seja o que ela é. A obra não
existe sem o homem no sentido de que a verdade não existe sem o Dasein: não porque
o homem possa criar o sentido das coisas, mas porque ele é o único revelador desse
sentido. (N. do T.)10
O filme de Webber como uma obra de arte a partir de um quadro mantém uma conexão com
os que o contemplam tão forte, mesmo o diretor sabendo que ao ser contemplado em sua obra
(no filme) tenha que entender a demora por parte do espectador para penetrar na sua verdade,
pois o ser criado pelo filme se faz presente em seu caráter de obra a reunir nas imagens e
pouquíssimos diálogos a palavra que o desvenda no ente a formatá-lo como algo que
aparentemente se representa, mas que aparece aos poucos em sua essência na medida em que
os guardiões que o contemplam passam a dele fazerem parte porque vão penetrando na
abertura do ente que acontece na obra.
10
DUARTE, Rodrigo (org). O Belo Autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: UFMG, 1997, in: Heidegger:
trecho de “A Origem da Obra de Arte”; tradução: Maria José Rago Campos. p, 228-229.
67
Aquele que contempla, portanto, o guardião da obra, segundo Heidegger sabe que o
conhecimento não é uma simples representação de algo, mas como conhecedor verdadeiro do
ente sabe o que busca em seu interior, ou seja, a sua desocultação, o seu desvelamento. E esse
caráter do ser-criado por Webber em consonância com Vermeer nos magnetiza e nos revela a
nós mesmos como coadjuvantes das imperfeições e perfeições dos seus protagonistas.
Como gostaríamos de dizer a bela Griet que o amor de Vermeer por ela é pela beleza
estonteante da sua alma refletida na singeleza da sua face, dos seus gestos, da sua reverência
contida e levemente atrevida por ele, homem enigmático e que lhe parece cúmplice dos seus
desejos. Nunca poderemos fazê-lo a não ser como sombras guardiãs de nós mesmos a
compartilhar com ambos suas alegrias furtivas, apreensões e angústias.
O desespero que ele experimenta ao pedido de socorro por uma grave falta que é atribuída a
jovem expressa seu medo e o risco de perder aquela visão cotidiana que encanta sua vida
desde a sua chegada. Abruptamente seu ser desconcerta o zelo doméstico, afronta a hierarquia
e com sua interferência rude e objetiva a cuidar de amparar a jovem desnorteada com a
calúnia arrebatadora e decisiva para sua permanência na casa, desmorona a ardilosa acusação.
A alma do artista repousa e nós descansamos aliviados na verdade do seu sentimento. A alma
transparece o ser na verdade do amor. “A realidade peculiar da obra só é atingida quando esta
é contemplada no acontecimento da verdade que ela mesma promoveu.”11
Em nossa
dissertação é o acontecer poético-apropriante ou verdade do amor, o amor originante de
Vermeer pela beleza da alma da jovem serviçal que a transparecer em seu rosto sua
fragilidade é como a brisa invisível que o acaricia e revigora. É o saber do amor que sente por
essa beleza que faz da obra de Vermeer significar o filme uma obra prima do diretor Webber.
A cena abaixo esclarece nossa analise:
„Na manhã seguinte está com o patrão no sótão a preparar os pigmentos. Ao lado dele macera
a areia de azul berrante que lhe entregara o boticário, misturando-a com água que gota a gota
converte o lápis-lazúli em têmpera. Cuidadosamente Griet movimenta a espátula como se
estivesse mergulhada naquela cor a desvendar seus mistérios. Ele faz o mesmo com o amarelo
pálido, misturando-o, porém com linhaça. As espátulas em mãos experientes dançam solenes
na feitura das cores, obedientes as suas ordens até as tintas terem uma consistência
apropriada. Como godês as conchas do mar guardam as misturas valiosas até repousarem na
11
ibid. p, 230.
68
paleta onde darão alma à criação do artista. Ele lhe pergunta por que mexeu a cadeira. Ela lhe
explica convicta e sem rodeios o motivo. Ele não faz comentário como se já soubesse a
resposta. Num breve momento suas mãos repousam lado a lado. Ela o olha com doçura. A
corresponder esse olhar pueril ele a olha com fascinação. A beleza de Griet o atormenta e
seduz. Ouvem vozes vindas do atelier a chamá-la imperativamente. Ele desce primeiro.
O trovão lá fora anuncia tempestade como que a adivinhá-la também dentro da casa. A
senhora Thins ao lado da filha, sem dizer uma só palavra reforça a gravidade da situação
quando a esposa conta ao marido o desaparecimento de um de seus pentes de tartaruga a
insinuar a jovem criada como a responsável. Cornélia soberba a encara vitoriosa. De repente o
mundo de Griet desmorona sob a acusação infame. Griet pede socorro ao Vermeer.
Prontamente obedece a jovem dama dos seus sonhos. Não pode perdê-la. Desvairado ele
investiga todos os recantos e os cômodos da casa a remexê-los sem piedade. Do hall da
escadaria a sala de alimentos, passando pelo vestíbulo dele e da esposa, aos esconderijos do
grande cômodo até o dormitório das crianças. As mulheres atordoadas e confusas o
acompanham fazendo coro com os gritos da ave assustada pelo movimento desnorteante que
ele produz. Escancara os armários, esvazia os cestos, sacode os potes e os derruba das
prateleiras, balança os travesseiros, desarruma as camas, revira os colchões até que finalmente
sobre um deles nas dobras de um lençol amarrotado, envolto num lenço e justamente na cama
de Cornélia encontra o bonito pente. Seu tom de voz expressa à reprovação ao grave gesto da
filha.‟
O espaço existencial do ser-criado é o espaço da obra de arte que na sua origem se sustenta a
nos permitir penetrar em sua abertura a nos desvelar o seu e o nosso ser. O Dasein humano é
o veículo dessas sustentações em permanente crise. O espaço da confiabilidade do oficio do
pintor a derramar-se no filme numa perfeição extrema, não impera sozinho porque a obra de
arte não se esgota enquanto produção, não uma produção fabril, porém aquela que requer a
terra como seu espaço interno para o mundo na natureza tendo a terra como superfície e ponto
vital. Esse ponto vital é a nossa articulação com a própria superfície do filme onde tudo
acontece e ao mesmo tempo com ponto nenhum, uma vez que se trata de uma ficção, mas tão
absolutamente real que nosso ser se desprende e incorpora a historicidade da obra animando a
marionete das coisas.
Essa historicidade serve a qualquer lugar, a qualquer tempo, em qualquer época, pois o
combate entre confiabilidade e terra diz respeito à diferença ontológica na linguagem poética.
69
É a diferença ontológica dessa linguagem que presente no filme está tentando pensar: o ser
não é um ente e nunca o será por isso sua abrangência historial, ou seja, a história do ser no
mundo.
A totalidade acontece em como essa diferença ontológica poética se mostra, quando surge um
mundo, uma base, uma sustentação, um suporte para que ela aconteça sobre o abismo, sobre
um espaço desprovido de fundamento. Todo mundo histórico é desprovido de fundamento,
ele não é confiável como mostra a diferença entre ser e ente. A confiabilidade é um espaço
refratário da arte. É um lugar onde acontece sua determinação absoluta que a diferencia da
ciência, porque é um lugar muito peculiar, pois ele abre um espaço para que as coisas
apareçam. O combate estabelece uma tensão que resiste a essa confiabilidade num embate
permanente, porém que permite ao homem que habita sobre a terra que é a sua casa, ser a
terra o espaço da sua e da nossa transcendência por experimentarmos sempre essa fragilidade
a nos compelir para o fortalecimento do ser.
Sempre a partir da imanência se dá o horizonte de aparição total que não tem limites
demarcados, mas dentro da obra de arte nos impele a transcendência que convive com aquilo
que não é familiar, mas é confiável e está ali a nos desafiar.
A cena descrita abaixo é bem reveladora dessa imanência a despertar na jovem criada em cada
tarefa a realizar a descoberta do inusitado em si mesma frente um mundo diferente que a
intriga e fascina. Ao transportar-se para o quadro da senhora desconhecida entra nele e tenta
enxergar o que a senhora desconhecida vê quando se interroga sobre o que ela vê e a nossa
sombra guardiã encontra resposta, mas não ousamos revelá-la, inapreensível como nós, nossa
sombra fugidia está no espelho a nos mostrar incompreensível o que vemos, pois não somos o
que vemos no espelho, mas o que sabemos ser de nós mesmos. Estamos com Griet de fora
para dentro do quadro e de toda a cena trabalhada por Webber a nos sorver.
„Passeia em volta da modelo de madeira clara sem face e de braços abertos um pouco maior
que ela. Está absorta. Temendo incomodá-la em sua pose elegante, de mansinho com a ponta
do pano de tirar pó, espana a madeira em volta da pele branca de arminho decorada com
pontinhos pretos que são a gola da túnica da misteriosa mulher. A sua frente um espelho, de
enquadramento perfeito para ela e a dama sem rosto. Olham-no como a um quadro pendurado
que, indiscreto, revela seus pensamentos. Sobre a mesa um pequeno envelope retangular com
o sinete por abrir. Levanta com delicadeza sua parte superior para limpar a poeira, repetindo o
gesto com a inferior. Ao virar-se descobre como que por encanto de quem se trata a dama sem
70
rosto. Num quadro, ei-la! Altiva, de perfil e em pé com os braços em saudação, numa sala
atrás de uma mesa, olha para um lugar distante, ao longe, através da vidraça que a ilumina,
um lugar que é só dela. É tão real a senhora distintamente vestida, que a jovem se transporta
àquele cenário indagando com os olhos o que ela vê.
Subitamente o arrasto de uma cortina lhe traz de volta. É surpreendida por uma mulher, de
traje negro, com uma gola branca de goma impecável portando um crucifixo pendurado pouco
acima da cintura, de pele assustadoramente alva, um rosto qual uma máscara, segurando um
cachimbo entre os dedos escarnados, de olhos pequeninos e de expressão severa.
Cumprimenta-a com a arrogância de matriarca. Diz-lhe: “você não é a primeira que esquece
os bons modos ao olhar os quadros dele”. Faz-lhe uma confidência: “acha que está pronto?
três meses e mais três meses até ele ficar satisfeito”. Com a certeza da sua lealdade, reclama a
diligência nos afazeres despertando-a do encantamento em que o quadro a mergulhava.‟
Esse espaço refratário se quebra quando nos absorve de fora para dentro. Nele estamos
mergulhados e por ele somos possuídos. Dito isso, encontramos no filósofo Heidegger os
caminhos que acreditamos sustentar essa dissertação. Sendo assim em nossa conclusão
procuramos demonstrá-los.
71
Conclusão
Quando estamos numa sala de exibição cinematográfica a expectativa pelo espetáculo nos
surpreende como se fossemos crianças a esperar um presente.
Suavemente as luzes vão escurecendo o recinto e a majestade da tela nos convida a fixá-la a
nos magnetizar pelo poder mágico que inspira.
Adentramos lentamente por seus emaranhados como se o nosso ser suspenso abandonasse
nosso corpo fatigado que a repousar numa cadeira deixa-se levar ao abandoná-lo e passa a
incorporar a história que vislumbra.
Certamente essa experiência acontece quando nos identificamos com o filme que pela
segunda ou terceira vez estamos a rever já livres da primeira expectativa que nos levou a ele
apenas pela curiosidade, mas que satisfeita, descoberto o encantamento da magia do filme nos
faz dele a usufruir mais e mais, uma vez que nos deixamos absorver por ele.
O espaço mágico do filme nos anuncia a sua atemporalidade nos fazendo dela participar.
Indiferentes ao nosso próprio tempo ele está a nos transmitir seu espaço epocal que a nós se
abre pelo conjunto das imagens que nos acolhem e nos permitem dele participar num diálogo
permanente sussurrado pelas palavras inaudíveis que falam através do drama e do todo que o
permeia. Essa obra de arte cinematográfica se abre para nós a desnudar-se inteira como o ser
que é para nos fazer dele cúmplices e coadjuvantes.
A pergunta do ser não é metafísica, porque vem depois de todas as obras de antes e de depois
de Aristóteles. “‟O que é metafísica?‟ De imediato, porém, toda questão que pergunta pelo
„ser‟, inclusive a que pergunta pela verdade do ser, deve ser introduzida como uma pergunta
„metafísica‟”. 12
O Dasein visto como o ser da morada do homem na terra é equivocado, pois
é uma interpretação da metafísica onde ela é a definição da condição humana como ser
racional na qual a técnica domina o homem, é o próprio ente visto pelos gregos depois de
Sócrates.
12
HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. (tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein; revisão
Marco Antônio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 334-5.
72
Na descrição da cena da câmara escura fica bem claro para nós a verdade do ser no utensílio
que é dignificado pelo homem e apropriado por Webber a traduzir a linguagem heiddegeriana
em sua obra a nosso ver:
„(Griet)... Chega ao ateliê para limpá-lo. Não consegue evitar a curiosidade que a inspira essa
caixa tão diferente. É grande, ocupa largo espaço da mesa. Não sabe dizer se é bonita, é
estranha.‟ “Dito de modo simples, o pensar é o pensar do ser”.13
É a palavra direta do pensamento que pertence ao ser. Griet ao ver o ente que é a caixa, o
pensar dela é o do ser, isso é fundamental na fenomenologia de Heidegger, é o pensar do ser.
Esse tem um nome a revelar seu propósito, que é o de existir como uma câmara escura, mas
que a nosso ver sempre terá como essência o ser do ente que é uma caixa. Abaixo segue a
descrição da cena da câmara escura:
„Como que a adivinhar seus pensamentos, após observá-la furtivo, o patrão vai ao seu
encontro. Não espera por ele àquelas horas. Procura sempre ter o cuidado de limpar o ateliê
quando ele não está trabalhando. Desenvolto e sem meias palavras lhe diz que a caixa se
chama câmara escura. Embaraçada pelo comportamento dele, Griet não sabe como deve se
comportar. No entanto, seu tom de voz, grave, baixo e seguro, lhe deixam mais a vontade e
atenta para ouvir as explicações que ele espontaneamente lhe dá. Levanta a tampa da caixa, a
sugerir que ela olhe lá dentro. Ela o faz. De repente sua cabeça está ao lado da dele e ambas
cobertas pelo hobe de chambre que o veste, numa intimidade que só os casais compartilham
no leito amoroso. Ela não pode permitir. Ela sabe que tem de recuar dessa aproximação, mas
não consegue. A sombra tem o seu propósito. Num passe de mágica ela vê a cena do quadro
sob seus olhos em tamanho menor, como se estivesse num palco encolhido. Está magnetizada
pelo quadro que veio para dentro da caixa e pelo calor que o rosto dele exala, pelo seu cheiro
doce almiscarado, pela respiração tão próxima a sua face e ouvido, pelo cabelo que roça a sua
touca, pelos corpos tão juntos através das roupas encostadas.‟ “Tomar diligência por uma
„coisa‟ ou por uma „pessoa‟, em sua essência, significa amá-la, querê-la. Pensado de modo
originário, esse querer significa: presentear o ser”. 14
É o amor que sente pela beleza de Griet que Vermeer oferece à jovem, ao ser embriagante de
beleza que o seduz. Ela recebe o seu presente por meio dos sentidos que lhes são aguçados
pela proximidade dele a fazê-la desejá-lo secretamente como se cometesse um pecado que só
13
ibid, p. 329. 14
Ibid, p. 329
73
a sua consciência pertence, permitido pela presença da câmara escura, assim continuamos a
narração da mesma cena:
„Ouve sua voz a perguntar se ela consegue ver. Sente seu olhar penetrante a reforçar a
pergunta. Ao virar-se para responder defronta-o, olhar moreno e bonito a penetrar-lhe a alma.
Levanta rapidamente a cabeça. Assustada derruba o pano acetinado que lhes guardou tanta
intimidade. Seu patrão lhe pergunta o que viu. Responde sem jeito que viu o quadro. Com um
impulso olha novamente na caixa, não compreende como ele foi parar lá dentro. Com a
delicadeza do mestre a ensinar seu oficio qual revelação perturbadora ao aprendiz atencioso,
Vermeer, lhe mostra a lente no orifício saliente. Explica que por meio dela os raios de luz
refletidos no canto da sala a iluminar a cena do quadro vão para dentro da caixa e o reproduz.
Griet, ainda perplexa, se surpreende atenta e curiosa a guardar uma ansiedade para a tudo
compreender. Indaga-lhe se o quadro é real. Ele lhe responde que é uma imagem, uma
imagem feita de luz. As mangas largas da camisa branca dançam ao ritmo da sua fala mansa e
dos dedos roliços a desvendar-lhe pouco a pouco, os segredos da caixa misteriosa. Com
atrevimento contido, ela lhe pergunta se a caixa lhe mostra o que pintar. Sua resposta é
antecipada por um riso curto, irreverente e sincero a contagiar o ambiente e a encantá-la pela
naturalidade imprevista que por meio dele, lhe dá esse homem uma atenção jamais imaginada
por ela. Descobre nele um ralo bigode sobre seus lábios finos que abrigam dentes alvos como
um cordão cintilante a iluminar-lhe a pele morena do rosto, saliente agora, pelas bochechas a
revelar duas covinhas graciosas. Com os cabelos desarranjados, o dorso envolto pela brancura
do pano a cobrir-lhe o peito e com os olhos a passear pela sala, como que a procura do tom
certo para ao responder, selar esse encontro extravagante e agradável, afirma-lhe descontraído
que a caixa o ajuda.‟
É em “virtude” da capacidade do querer que alguma coisa pode propriamente
ser. Essa capacidade é o “possível” no querer. É a partir desse querer que o
ser é capaz do pensar. (...) O ser como o elemento é a “força silenciosa” da
capacidade que quer, isto é, do possível.15
Tem-se aqui a palavra que não é dita sobre o amor, mas a sua representação como ser no ser
de Griet hesitante sobre tudo que viu. E ele com todo amor que o move a segredar-lhe sobre o
misterioso instrumento do seu ofício qual alquimia do néctar a exalar o perfume dos campos.
Vermeer quer presentear à jovem seu amor e o faz na medida em que aos pouquinhos lhe vai
desvendando os segredos da sua arte porque em Griet percebe o ser desprendido de tudo e
15Ibid, p. 329
74
pronto para receber com alegria e pureza o que de mais profundo ele guarda dentro de si o
amor a beleza. E esse ser belo que inusitadamente cruza seu caminho e lhe mostra disposição
de lhe ofertar seu encanto, mesmo sem o saber, desperta no artista a emoção incontrolável de
possuí-lo como que para reter sua essência, que inapreensível em cada obra que faz, está ali
ao seu alcance, vivo, pulsando um resplendor que o atordoa o magnetiza e fere. Sim o belo
está ali, ele é possível, mas escorregadio. Um ser abstrato, perfeito e inominável.
A apropriação do mundo é uma apropriação simbólica, é uma suposta metafísica. Apropriação
é diferente de dominação, pois essa representa a técnica que deve calcular os elementos que
vão dominar o objeto, a categoria deles. Na técnica há a destruição. Ela é o calculo que
destrói. Nela há a manipulação, o programado para se poder dominar. A pergunta que se tem
que fazer é sobre a verdade do ser.
Para Heidegger tem-se que refletir sobre tudo que é trazido para o ser. Para ele a filosofia que
os gregos faziam não era uma filosofia da natureza, mas tudo o que diz respeito ao Dasein
humano, ou seja, não foi a água enquanto água que preocupou Tales, mas o mundo humano
que para Tales é líquido, é úmido, o que significa ser isto um acontecimento apropriativo do
mundo. O ser estando aí, é o ser que o homem vive mediado por um símbolo qualquer porque
a palavra remete a alguma coisa que implica uma relação com o humano, ela é a captação do
ser. Essa apropriação simbólica, a forma pela qual esse simbólico é trazido é a disposição
primeira, originária e primordial. É a relação do Dasein com o ser que já é a sua existência
com o próprio homem, ou seja, o mundo humano.
Tudo que é inanimado no filme sob nosso olhar comprometido com o esquecimento do trivial
cotidiano, os objetos que nos cercam e nos são invisíveis passam a ter vida na medida em que
são extensões das personagens que lhes tocam das maneiras mais variadas e diferentes
impregnando-os de força e dignidade. Isso se dá porque confiamos na sua utilidade, não como
mero utensílio, mas pelo caráter que detêm em sua função a narrar a historicidade do filme
que sem o inanimado não aconteceria. A obra de arte nos coloca para dentro da coisa da obra
em obra e ao ser dessa coisa em obra na obra de arte que nos incorpora. Essa transcendência
que reveste o objeto inanimado, não se dá porque ele se descreve ao contar uma história, mas
porque ele se faz pela harmonia do conjunto narrado por Peter Webber. O objeto é a extensão
da personagem que o anima e o dignifica.16
16
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Origem da Obra de Arte. [tradução Idalina Azevedo e Manoel Antonio de Castro].
São Paulo: Edições 70, 2010, p 85
75
As pérolas o ser-utensílio do utensílio aparecem na imagem que transmite sua relevância para
a obra de arte e o sangue que brota da agulha a furar a orelha da jovem a palavra não dita a
selar essa entrega absoluta como a verdade do ser, onde ambos, artista e modelo se
transformam em um só. O brinco de pérola ao penetrar a orelha de Griet simboliza a força do
amor à beleza da jovem que Vermeer possui naquele momento emocionado. A lhe conferir
vida no quadro a pérola fala por ele desse amor por meio da sua luz a iluminar o rosto da
jovem para todo o sempre. Sim o artista possui sua beleza como sempre o quis
compartilhando-a conosco, guardiões do seu sentimento e espelhos da sua alma. A jovem
mulher sentindo a intensidade desse gesto procura Pieter para impregnar em seu corpo sua
entrega voluntária àquele a quem devota seu verdadeiro amor, proibido, mas límpido como
clara foi a lágrima que derramou de felicidade e de dor.
Assim, Webber nos falou com a sua linguagem refinada desse amor a nos transferir para
aquele momento metafórico e eloquente do filme, onde Vermeer não possui o corpo da
jovem, mas o sopro da sua alma para perpetuá-la em seu ofício. A cena abaixo transcreve o
refinamento da imagem que Webber no mundo de Vermeer está a nos hipnotizar e a
estabelecer com ele a verdade do ser dessa obra de arte que a partir de um quadro o inspirou
ao diretor Webber, a uma transcendência permanente em todo o filme, que repousa sobre a
terra17
:
„Em frente ao artista Griet está pronta para posar. Com os panos na cabeça, naquela manhã,
seu rosto lhe parece mais iluminado do que nunca. Ele vê sobre a mesa as pérolas e
acompanha com os olhos emocionados os dedos da jovem a umedecer a orelha para furá-la. A
chama da vela irradia calor e brilho a iluminar a pele branca para hospedar a gota preciosa. A
adivinhar os pensamentos do pintor ela retira do pequeno estojo de costura uma agulha e lhe
pede para fazê-lo. Gentilmente, porém não disfarçando seu desejo e emoção Vermeer queima
a ponta da agulha e perfura a carne macia. O gemido da jovem transparece sua entrega e dor
ao gesto firme do homem a rasgar-lhe a carne, a macular de carmim sua alma transformando-
a em mulher. Comovido ele limpa o sangue da orelha tentando aliviar-lhe a dor. Compartilha-
a ao roçar de leve sua cabeça na dela enquanto enlaça discreto seu ombro. Com a devoção do
amante toma das mãos de Griet a pérola e a penetra fundo consumido pelo encanto e pelo
prazer dessa beleza que agora se torna dele, e que é só para ele. Uma lágrima desliza pela face
da jovem. Ele tenta secá-la com a mão a escorregar os dedos para os lábios carnudos e róseos
17
ibid, p 105.
76
levemente entreabertos. Griet os oferece a ele. Ligeiro, porém ele se esquiva em direção ao
cavalete. Lá, somente lá pode desfrutar da oferta dessa imagem que o reclama para si. Pede a
Griet para virar a cabeça e não o ombro. Essa posição lhe é a perfeita. Sua visão da jovem é
plena e o comove ao vislumbrar o encantamento que inspira a beleza e a perfeição. Agora sim
pode eternizá-la, e ao fazê-lo entregar-lhe a sua alma, submeter-lhe seu corpo e ofertar-lhe sua
vida.
A noite já não é tão fria e os ventos mornos trazidos pela maresia anunciam a primavera que
em breve como uma renda estará a enfeitar os prados de Delft. Após o jantar Griet se apressa
a correr para encontrar Pieter na taverna onde se reúnem os vendedores de carne do outro lado
do canal. Ofegante a jovem ao encontrá-lo toma o rapaz pelas mãos que surpreso a
acompanha se desvencilhando dos bebedores de cerveja e da algazarra alegre do ambiente.
Com ele Griet se refugia num beco familiar, próximo da taverna, que guarda as carícias, as
juras e os segredos dos namorados. E pela primeira vez ela se entrega ao jovem com toda a
força do seu coração e o desejo do seu corpo. Sua alma fora possuída pelo artista, tão fundo
quanto as suas lágrimas de dor. Agora precisa entregar seu corpo e consumar esse amor
secreto com aquele que a deseja e espera mais que tudo por isso, sendo sem o saber o
simulacro da sua vontade. Feliz o amante a recebe com delicadeza e ardor.
Ao observá-la carinhoso a ajeitar a roupa Pieter faz planos para o futuro. Ela o ouve com
ternura e não faz promessas, dá-lhe um beijo delicado a roçar a ponta do seu nariz no dele
grata por sua sinceridade e confiança.‟
Parece que a história da humanidade pensa e chega a confirmar uma lamentação sobre tudo,
sobre o ser, que mesmo não tendo consciência desse lamento no seu viés histórico se repete e
repete não se cansando dele e recorrente sempre está a causar as chagas que a gera. Para
Heidegger a história precisa de uma coisa mais extensa que lhe dê sentido. Não lhe cabe
apenas definir o homem como animal racional, pois ele deve ser visto de maneira diferente. A
história deve repensar sobre o que é humano, pois ao tratar o homem apenas como animal
racional o está reduzindo a qualquer outro animal que faz parte do planeta apesar da sua
racionalidade. O homem para Heidegger está ligado ao ser que é o homem como tal apesar da
sua racionalidade.
Na metáfora da clareira o autor desenvolve sua reflexão: há a clareira e ela clarifica o homem
que nela chega e o homem passa a ser o ser a partir daí se nela adentrar. Essa clareira significa
onde o homem seria acolhido e protegido. Ela seria o seu hime. Assim, a linguagem se faz
77
mostrar nessa “fortificação”, nessa clareira que atrai o homem, mas não o deixa entrar nela, é
onde acontece o ek-sistir, onde ele, o homem é abandonado, onde o não dito do ser acontece,
onde o ser está em total esquecimento e ele, o homem sabe disso porque experimentou o
convite da clareira. A sombra faz parte de todo o processo da clareira, como nós, enquanto
sombras estamos a compartilhar e a atuar vigilantes nas cenas que compõem o filme de
Webber.
Para Heidegger a existência está no umbral, a essência está na sombra. É essa significação que
o autor dá à existência, é nessa significação que ele quer recuperar o pensar do corpo junto
com a alma. Há de se pensar os dois juntos, pois do contrário não pensamos nenhum deles de
modo correto uma vez que para ele corpo e alma são um só. Ao tentar pensá-los
separadamente a ciência estabelece uma resignificação para o corpo que não dá conta do seu
existir apenas recorrendo à metafísica, uma vez que essa se compromete com o ente, com a
aparência do mesmo nos seus desdobramentos no invisível que ela a metafísica procura
nomear. A metafísica transforma coisas isoladas e não dá o sentido da existência que há em
tudo e tampouco a existência da totalidade humana.
Heidegger procura o sentido da totalidade da existência humana e o busca na sombra, que ao
se projetar no umbral nele se recolhe e ao mesmo tempo a tudo persegue caminhando
indefinidamente, pois a sombra é a essência do ser e como tal inapreensível. Por isso o projeto
da ontologia do homem para Heidegger não é metafísico, porque sua ontologia trata da
origem do homem enquanto corpo e alma numa unidade permanente e indissolúvel.
Vermeer ao criar suas obras se apropria do mundo a sua volta e o transforma em outros seres
a partir da mediação simbólica da pintura da qual faz uso bem como da habilidade técnica
com que manuseia os materiais a servir-lhe como ferramentas para conceber uma nova
realidade que transcende o imanente, o racional e assim não subjuga o homem, mas o
reconhece como uma unidade de corpo e alma a interagir com todo o ser do mundo na terra
que o abriga e a ambos elevar.
Webber transparece em sua obra cinematográfica essa unidade indissolúvel de corpo e alma
que na imanência do cotidiano nos faz mergulhar na relação da jovem criada consigo mesma,
com seu patrão, com tudo e todos que a rodeiam. Assim, suas mãos feridas conferem ao labor
diário determinação e coragem no ofício que desempenham incansavelmente, enquanto que o
convívio doméstico das pessoas da casa se desenrola em torno desse trabalho incessante que é
invisível para elas. Porém aos poucos esse labor vai sinalizando sua presença não por meio
78
das tarefas cumpridas, mas por meio da intensidade com que acontecem especialmente no que
diz respeito às obrigações da jovem criada junto ao atelier a despertar na casa senhorial a
sombra do ser da arte que ao abrigar em sua essência o motivo de sua existência que é a
beleza, a tudo e a todos confunde, perturba e arrebata.
As cenas abaixo descrevem o desespero da jovem patroa em sua dor que por compreender o
fascínio que a criada exerce sobre o marido, não se conforma como a beleza da jovem o torna
refém expondo-a, a ela sua esposa, à humilhação de, além de nunca ter sido pintada por ele
saber que sua pérola serviu de pretexto para o quadro que propiciou a cumplicidade de todos
na casa para que Vermeer obedecesse a um capricho do seu mecenas a favorecer a intimidade
da criada com seu homem desafiando-a como esposa e amante sob seu teto a zombarem dela
como de uma mulher qualquer. Sua dor é inominável, seu ser abriga um ente esfacelado e
derrotado pela vergonha. Por outro lado, mestre Van Rujven admira a obra absolutamente
comovido pelo belo que nele está a despertar os sentimentos mais nobres que até então
adormecidos em seu ser que ao adentrar no quadro se redescobre um ente sereno e capaz de
ser bom.
„No atelier Griet está a colocar os pigmentos convertidos em tintas na palheta. Ao deslizar as
mãos pelas cordas do clavecino colocado no atelier para servir de modelo a um dos quadros,
ouve a voz alterada da jovem patroa que a subir as escadas em companhia da mãe se
encaminha para o estúdio. Encostada no clavecino, um calafrio percorre a espinha de Griet
quando a jovem patroa adentra ao recinto. Desgrenhada seus gestos e palavras soam-lhe como
os tambores a anunciar o tiro impiedoso ao traidor em desgraça. A mulher geme alto sua
indignação e desespero. Sentindo-se traída pela mãe e pelo marido seu rosto se contorce na
aflição da descoberta a demonstrar o inchaço dos olhos congestionados lavados pela dor.
Enfrentando a matriarca sua boca espuma revolta ao acusá-la de cúmplice em tantas mentiras,
a condenar o desrespeito a que foi submetida em sua própria casa. O artista adentra ao
estúdio. Em frente ao marido ela lhe diz que não há mais nada a esconder dela e lhe pede para
ver o quadro. Ele nega seu pedido a argumentar que ele não tem sentido. Ultrajada ela
sustenta que não é estúpida, como ele quer a todos fazer crer, como se ela fosse incapaz de ver
um quadro. Ao olhar Griet a aponta como uma analfabeta que é a dizer que a criada sim é
estúpida e ignorante. A Senhora Thins em pânico, temerosa pelo estado interessante da filha,
tenta acalmá-la, enquanto obstinada ela insiste em saber por que ele não quer que ela veja o
quadro. Vermeer argumenta que é só mais um trabalho e que irá embora em alguns dias e ela
nunca precisará vê-lo. A velha senhora reforça as palavras do genro a dizer que os quadros
79
são apenas encomendas e que não têm importância. Indiferente a observação da mãe,
encarando o esposo lhe pergunta se é verdade que Griet usou as suas pérolas. O silêncio do
homem confirma sua suspeita. Ferida como se um punhal lhe rasgasse a alma, encosta sua
fronte na dele segurando-lhe a cabeça com as mãos a gemer de dor baixinho enquanto o
censura pela resposta inacreditável. Volta a insistir para que ele lhe mostre o quadro. Ele tenta
poupar-lhe o dissabor. Novamente imperativa ela exige. Vencido ele retira do cavalete um
trabalho em andamento. Ao fazê-lo a imagem de Griet para o desespero da jovem mãe, como
um espectro de horror lhe aparece por entre os vãos da madeira a assombrá-la sem
misericórdia. Colocando o quadro da jovem criada sobre eles descerra o pano que o cobre
mostrando-o a mulher. Arrepiada ela mal acredita no que vê. O retrato de Griet lhe é obsceno.
Obsceno por tudo que representa. Sua juventude perdida, as dores do parto que não lhe dão
trégua, sua beleza esvaindo-se a cada criança que gera concebida no calor de um carinho
interesseiro até o prazer indiferente do marido aos seus sentimentos mais íntimos, saber-se
uma parideira a deriva da sorte, a legitimar a virilidade do companheiro frente a todos e sem
nenhum reconhecimento do mesmo à sua lealdade, o que lhe é mais claro do que nunca nesse
momento, quando é exposta ao vexame dessa vergonha que está a viver. Suplicante pergunta
ao artista porque nunca a pintou. Ele lhe responde que ela não entende. O olhar da jovem mãe
perplexo pelo descaso na resposta lhe interroga se a criada entende. A quietude do artista a
enlouquece de vez. Ela agarra uma espátula. Desesperada e convicta dirige-se ao quadro para
destruí-lo, para fazê-lo sangrar pela sua ira e desgraça, para destruir aquela beleza que seduziu
seu homem ao ponto de transformar a ela e ao seu lar em um palco de marionetes. O artista a
impede e uma luta breve enlaça o casal. Atrás da cortina Cornélia a tudo presencia. Seus
mexericos frutificaram.
Desarmada a jovem esposa a escorar a face transtornada na camisa do pintor, solta um grito
que ecoa como uivo de um animal ferido em agonia de morte. Levantando a cabeça arrasada e
confusa seu mundo desmoronou. Olhando então para Griet vai até ela. A silenciar um choro
embargado na garganta, um choro contido pela urgência do seu ato derradeiro, expulsa-a da
casa com toda força do seu ser.
Griet obedece, para seu próprio espanto, com altivez. Um breve olhar ao pintor que o
corresponde envergonhado e outro a encarar a jovem patroa enquanto se dirige à porta, selam
o desfecho dramático. Em seu íntimo, porém a faz saboreá-lo como uma vitória fugaz, pelo
terror que vê impregnado no olhar da mulher a denunciar que mais forte que seu ódio é a sua
80
derrota por saber que nunca foi capaz de despertar no marido o fascínio embriagador que a
beleza e o frescor da juventude o fizeram devotar a ela seu talento, sua lealdade e seu amor.
Na sala iluminada pelos raios de sol da primavera a realçar as tramas dos tapetes que forram o
assoalho de pedras, sustenta uma cadeira qual trono aristocrático a acomodar seu senhor em
tarefa esplêndida. Fascinado Van Rujven olha com adoração a obra que repousa imponente no
cavalete a ofertar-lhe o seu encanto. A jovem pueril de olhos aveludados com um ponto de luz
sob a face arrebata-lhe a soberba convertendo-a em submissão e reverência. O elegante senhor
a trajar um robe de chambre lilás sobre camisa de seda alva, tão alva como sua face impecável
sob os cabelos penteados com esmero a descansar as mãos sobre as pernas com os dedos
cruzados numa posição respeitosa está sentado ao lado da mesa recoberta por alcatifa
acetinada a destacar bichos empalhados em poses solenes. Ele os tem como companheiros
leais quando está a olhar comovido a obra de arte sedutora que o magnetiza esmagando-o pela
sua beleza. O rosto de mestre Van Rujven transparece o reencontro com sua própria alma ao
contemplá-la e o seu suspiro a docilidade dos sentimentos que nela se abrigam. Sentimentos
que não se perderam, mas que apenas afloram por meio do belo a resgatar-lhe a bondade e a
compaixão, como testemunho eloquente e secreto do mais íntimo do seu ser.‟
Heidegger desconstroi a tradição da origem da obra de arte na medida em que pensa sobre o
esquecimento do ser procurando resgatá-lo por meio da liberdade que para ele, somente a obra
de arte pode imprimir ao homem.
A arte para Heidegger não caracteriza o saber, mas faz este filosofo pensar um saber.
Demonstra em seu circulo hermenêutico o espaço da poiesis em que arte, artista e obra
recuperam as possibilidades historiais que ela, a obra de arte desperta em nossa mente a
impregnar nossos sentimentos de emoções à revelia de nossa vontade nos levando assim ao
círculo hermenêutico, e dele fazermos parte e portanto de sua historicidade.
Historicidade esta que mesmo aparentemente temporal está a nos servir a qualquer momento,
a nos libertar atônitos do ente a nos fazer redescobrirmos ser.
Essa é a grandeza do tripé: Vermeer, Heidegger e Webber. Todos em uníssono no espaço da
abertura da poiesis nos subtraem do esquecimento de nós mesmos e nos reconcilia com o
mundo.
Com a leitura que Heidegger faz da Origem da Obra de Arte , a nosso ver, leva Webber a
reconquistar a beleza e a consciência da bondade que temos dentro de nós enquanto ser, a nos
revermos, a nos redescobrirmos em seu filme inspirado por um quadro de Vermeer. Nesse
81
quadro um ponto de luz (a pérola) revela a expressão enigmática para nós do pintor que sua
modelo lhe inspira fazendo o artista a nos ofertar a beleza da jovem modelo que no quadro
parece nos olhar ingenuamente.
Esta oferenda acontece de modo tão determinado que a contagiar Webber, nos faz com seu
filme nesse contagio penetrar. Dessa maneira, Webber está a demonstrar que o afeto é
atemporal e o amor em sua obra, no filme, a fortaleza que pela dor nos faz senhores de um
existir que percorre um espaço de caminho infinito, onde nele somos livres para nos
reconhecermos, nos perdoarmos, nos amarmos ou não.
Um ponto de luz a iluminar um fundo escuro magnetiza nosso olhar hipnotizando-o. Aos
poucos e misteriosamente ele nos mostra uma menina de turbante a nos ofertar sua inocência.
Ela nos contempla com doçura como a nos desvendar a alma. A luz do seu rosto a refletir um
semblante sonhador com lábios entreabertos fala conosco e nossa alma comovida agradece-
lhe a singela e extraordinária beleza que para todo o sempre estará a encantar nossos corações.
Mas acima de tudo, o que nos impressiona é a grandeza desta obra de arte que inspirou Peter
Webber a transformar seu filme numa realidade absorvente para o nosso ser que ao
contemplá-lo nos adentramos no circulo de Heidegger no espaço originário da obra de arte
onde na poiesis incorporamos a arte, o artista, a obra e nós mesmos magicamente.
Ao encerrarmos esta dissertação trazemos para ilustrá-la o trecho final da poiesis de Vinicius
de Moraes da elegia intitulada - O desespero da piedade:
“(...) E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres Castigai minha
alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!
Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta - que o homem não presta, não presta, meu Deus!
Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.
Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
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E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.
Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.
Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados - sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!”
83
Bibliografia
Livros:
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_________________. Que é isto – A filosofia?: Identidade e diferença. [tradução de Ermildo
Stein]. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
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verdade (Apresentação). Por Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010, p. XX.
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SCHNEIDER, Norbert. Vermeer 1632 -1675 Emoções Veladas. [tradução Carlos Souza de
Almeida, Portugal] edição original Koln: TaschenVerlag GmbH, 2010, p.69.
Sites:
http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.jsp?page=1576&lang=en pesquisado em 14/04/13 –
retira da Imagem da obra de Arte de Van Gogh.
http://www.essentialvermeer.com/catalogue/girl_with_a_pearl_earring.html#.UWsVzKKR9U0
pesquisado em 14/04/13 – retira da Imagem da obra de Arte de Jan Vermeer.
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Ficha Técnica do Filme
WEBBER, Peter. Moça Com Brinco De Pérola (Girl With a Pearl Earring) – obra
cinematográfica. Duração: 95 min. Produção: Pathé Pictures e Lions Gate Films. País/ Ano:
Inglaterra/Luxemburgo, 2003.
PATHÉ PICTURES e LIONS GATE FILMS apresentam em associação com UK FILM
COUNCIL uma produção ARCHER STREET/DE LUX produzido com INSIDE TRACK e
FILM FUND LUXEMBOURG: COLIN FIRTH, SCARLLET JOHANSSON, TOM
WILKINSON “GIRL WITH A PEARL EARRING”, JUDY PARFIT, CILLIAN
MURPHY, ESSE JAMES, JOANNA SCANILAN, ALAKINA MANN.
Direção de elenco: LEO DAVIS; Co-Produtores: MATTHEW T. GANNON, JASON
CONSTANTINE; Linha de Produção: GUY TANNAHILL; Composição: ALEXANDRE
DESPLAT; Figurino: DIEN VAN STRAALEN; Maquiagem e Cabelo: JENNY
SHIRCORE; Edição: KATE EVANS; Desenho e Produção: BEM VAN OS; Direção de
Fotografia: EDUARDO SERRA A.F. C. ASC.; Produção Executiva: FRANÇOIS
IVERNEL, CAMERON McCRACKEN, DUNCAN REID, TOM ORTENBERG, PETER
BLOCK, NICK DRAKE, PHILIP ERDDES, DARIA JOVICIC; Co Produção: JIMMY
BARBANT. Baseado na obra de TRACY CHEVALIER; Roteiro: OLIVIA HETREED;
Produzido por ANDY PATERSON, ANAND TUCKER; Dirigido por PETER WEBBER.
PATHÉ PICTURES e LIONS GATE FILMS apresentam em associação com UK FILM
COUNCIL uma produção ARCHER STREET/DE LUX produzido com INSIDE TRACK e
FILM FUND LUXEMBOURG: COLIN FIRTH, SCARLLET JOHANSSON, TOM
WILKINSON “GIRL WITH A PEARL EARRING”, JUDY PARFIT, CILLIAN
MURPHY, ESSE JAMES, JOANNA SCANILAN, ALAKINA MANN.
Ficha Técnica da Poesia
MORAES, Vinicius. Vinicius em Portugal – obra em áudio. Faixa: 07. São Paulo: Selo Festa
– Irineu Garcia, IG 003 – 1969.
http://www.youtube.com/watch?v=K6KoBHXFh-8 (pesquisado em 27/10/2012)
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Anexo I
A Menina do Turbante ou A Menina do Brinco de Pérola, 1665
Jan Vermeer (1632-1675)
Óleo sobre Tela, 45 X 40 cm
Koninklijk Kabinet van Schilderijen Mauritshuis, The Hague
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Anexo II
A Pair of Shoes, 1886
Vincent van Gogh (1853-1890)
Oil on Canvas, 37.5 X 45 cm
Van Gogh Museum, Amsterdam