Formas Do Nada - Paulo Henriques Britto

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Livro de poesia contemporânea Brasileira

Transcript of Formas Do Nada - Paulo Henriques Britto

Para Santuza

Sumário

Lorem ipsumCircularOficinaPoética práticaTríptico com hotel e sireneLimiarHorácio no BaixoCinco sonetos frívolosBiographia literariaApêndiceEcce homoFogo-fátuoPequeno manual de retórica

Man in a chairFábulaCave canemSeis sonetos soturnosLagniappeBiscuitCarrosselPar délicatesseCançãoEleáticaTrês peças dispépticasQuatro bagatelasTrês autotraduçõesMosaicoUma lendaMadrigalInstant replay

PósEnvoi

Nota do editor

formas do nada

Lorem ipsum

“Venham”, diz ele, “que eu lhesofereçosinéreses, cesuras, hemistíquiose muito mais, e em troca só lhespeçosofríveis simulacros de sentido.

Venham, que a noite é sólida esolícita,e aguarda apenas o momento exatode nos servir a suprema delícia,como um garçom anódino ehierático.”

Porém apelos tantos, tão melífluos,atraem tão só máscaras sem rosto,cascas vazias e rabiscos pífios.

Tudo resulta apenas neste dístico:Ninguém busca a dor, e sim seuoposto,e todo consolo é metalinguístico.

Circular

Neste mesmo instante, em algumlugar,alguém está pensando a mesmacoisaque você estava prestes a dizer.Pois é. Esta não é a primeira vez.

Originalidade não tem vezneste mundo, nem tempo, nem lugar.O que você fizer não muda coisaalguma. Perda de tempo dizer

o que quer que você tenha a dizer.

Mesmo parecendo que desta vezalgo de importante vai ter lugar,não caia nessa: é sempre a mesmacoisa.

Sim. Tanto faz dizer coisa comcoisaou simplesmente se contradizer.Melhor calar-se para sempre, emvezde ficar o tempo todo a alugar

todo mundo, sem sair do lugar,dizendo sempre, sempre, a mesmacoisaque nunca foi necessário dizer.Como faz este poema. Talvez.

Oficina

iEscrever, mas não por ter vontade:escrever por determinação.Não que ainda haja necessidade(se é que já houve) deautoexpressão,

ou sei lá qual carência faminta:toda veleidade dessa espécieestando de longa data extinta,resta o desejo (que se não cresce

por outro lado também não míngua)

de estender frágeis teias de aranhatecidas com os detritos da língua.

Uma ocupação inofensiva:quem cai na teia sequer se arranha.(E a maioria dela se esquiva.)

ii

Umas às vezes aparecemsem nem ter sido convocadas.Não têm razão, origem, nadaque se calcule, pese ou meça.

E mesmo assim elas se impõemcom a força de quem não admitecontra-argumentos nem limites,

nem desculpas, nem exceções.

Há que deixá-las entrar sempre,por dever de hospitalidadee temor supersticioso:

pois não se bole impunementecom a contingência, com o acaso,esses deusinhos perigosos.

iii

Música ingrata, música orgulhosa,capaz de se enquistar nos intestinosmais íntimos da mais agreste prosa

em cálculos duros e cristalinos,à revelia de quem desejavaum rio de sentidos retilíneos,

colocando aqui e ali uma trava,revelando aquilo que nada temde relevante, turvando o que estava

mais límpido, enviesando o queninguémvai desvirar, desviando da rotao que não devia nunca ir além

do rotineiro, música que brotaonde a palavra era pra ser maisbruta.

iv

Tudo se perde, nada se aproveita,eu sei. Porém a impressãopermanece:alguma (pouca) coisa que foi feitapode talvez merecer uma espéciede não exatamente eternidade,mas mais que o imediatoesquecimento.Será ilusão? Será pura vaidade?Bem provável. Sendo assim, mecontentocom o vago prazer (se é mesmoprazer)de rabiscar num caderno, ao acaso,o que talvez jamais venha a ser lido

por mais ninguém. Nem por mim.Escreveré preciso. Por quê? Não vem aocaso.E faz sentido? Não. Não fazsentido.

v

Por só dispor destas palavras.Não outras. As que se ambiciona,mais plenas, mais prenhas, pejadasde algum sentido além da somados meros significados

das partes — essas, não. E simnada mais do que um somatório

de peças discretas (tão indiscretas,tantas vezes) que ora

caem constrangedoramenteaquém do alvo, ora de talmodo extrapolam o pensamento —

Nem mesmo destas, no finaldas contas. A coisa vai mal.

Poética prática

A realidade é um calhamaçoinsuportável?Tragam-me então resumos.A vida que se leva é um filmeinassistível?Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusõesmalignasde um demiurgo escroto?O corpo não é preciso, e o espíritoé impreciso:eu não é um nem outro.

Anda inconveniente a tal da poesia,a significar?Nada como um bom significantevaziopara abolir o azar.

Tríptico com hotel e sirene

i

Esta avenida, os prédioscomplacentesque resistiram a uma e outra guerra:o tempo deles é o instante presente

em que escrevo, e mais nenhum.Nada esperam.Dedicam-se à serena operaçãode preencher um pedaço de terra

com aquela absoluta perfeição

dos que, não tendo opção, jamaishesitam.(Aqui deve haver alguma lição,

dessas que inspiram mudanças navida,feito algum tronco truncado deApolo.Mas tudo permanece na avenida

como antes — exceção feita a umsolode sirene, dissonante e insistente,ao qual não chega a oferecerconsolo

a luz que se acendeu no prédio em

frente.)

ii

Esta é a hora inaugural da noite.Toda a energia esbaldada do diaagora se recolhe compungidapor trás de persianas. Seis e oito.

Escurece. Os prédios olham deesguelhapro trânsito feroz, domesticadoa custo. Uma sirene desgrenhadase esvai, desafinando. Seis e meia.

Alguém no quarto ao lado liga umrádio.

No corredor, uma risada breveresponde a um inaudívelcomentário.

Mais risos soltos: a noite promete.Lá fora está escuro — estamos emmaio,o inverno se aproxima. Quase sete.

iii

Hotel. Sexto andar. Desúbito, a sirene — risco

vermelho na tarde.

Limiar

Uma geografia de dúvidaslhe percorria todo o firmamento:serão serafins? será músicaisso que martela incessantementee não consegue arrebentar?As perguntas se dissipam no ar.

E um cardume de coroláriosatravessava-lhe o desfiladeiro:então isto é aquilo, e o contráriosó é verdade do princípio ao meioetc. Isso proporcionava-lheprazer não pouco, e uma penca de

álibis.

Definitivamente, sou,ele pensou, com a magnificênciade um pterossauro em pleno voo.O saber é sua própria recompensa,como a virtude, concluiu.E viu que isso era bom. Depoisdormiu.

Horácio no Baixo(Odes i, 11)

Tentar prever o que o futuro tereservanão leva a nada. Mãe de santo,mapa astrale livro de autoajuda é tudo a mesmamerda.O melhor é aceitar o que de bom oumauacontecer. O verão que agora iniciapode ser só mais um, ou pode ser oúltimo —vá saber. Toma o teu chope,

aproveita o dia,e quanto ao amanhã, o que vier élucro.

Cinco sonetos frívolos

i

Hoje acordei bem prático,sofístico,sem pudores de lógica e moral,fechado em mim, feito uma ostra,um dísticoou uma pedra (mas não filosofal).Devia haver mais dias como este,livres de compromissos com doismilanos de ocidentalismo, a nordeste,a sul, a sotavento do Brasil

ou do que quer que seja.Simplesmenteser, sim, mas contingência pura, só,nada que deixe um rastro ouexcedenteem sangue, fezes, páginas ou pó.Dias de amarrar barbante ao redordo nada, e capturar um deus menor.

ii

De vez em quando o mundo fazsentido.Questão de ângulo, de na hora exatanão se atentar pra página do livrosupostamente sendo lido, a faca

com que se vai cortar o que mereceser cortado — e, em vez, levantar avistanão pra ver algo, e sim como quemquer selembrar de uma coisa há muitoesquecida,

só que não há nada a lembrar, a nãosera suma importância de não se ternada a lembrar, nada que valha apena

sacrificar esse momento únicoe inteiramente vazio em que omundo

faz sentido. Ou parece. Pelo menos.

iii

Mesmo o mais sólido somesem deixar nenhum vestígio,sem nem se ter (como exige ocostume) lhe dado um nome.

E, como sempre, o sentido —que se dá a posteriori,antes que se deteriorede todo o mal percebido —

não capta mais que um minúsculoângulo do evento únicoque só durou um segundo.

Entrementes, coisas maissurgem, somem, num zás-trás,e agora já é outro o mundo.

iv

Até onde a vista alcançaé real todo o visível.Como dançarina e dançaformam um todo indistinguível,

assim também não há esperançade se atingir algum nívelem que uma e outra substânciase separem, dando alívio

à consciência inquietantede que no próximo instanteo erro vai ser dissipado.

Não vai. O logro é absoluto.Melhor relaxar os músculose aproveitar o espetáculo.

v

Súbito? Não. A coisa morre àmíngua,um risco vira traço e o traço, ponto.Por exemplo: uma manhã dedomingo, amesa posta pro café, tudo prontopra não se fazer nada — ou então

a noite de uma terça-feira inane,sob o quebranto da televisão —mas isso não importa; que se daneo tempo, e o lugar também (umboteco?o elevador?) — pois chegou aofinalum processo previsível, perverso,trivial, que reduziu o universoa uma bolinha de papel, da qualvocê se livra com um peteleco.

Biographia literaria

i

Lembranças pouco nítidas,provavelmentefalsas. Imagens que se ordenamsegundo uma lógica indecifrável,talvez inexistente. Mãos queacenam,

uma porta entreaberta — não,fechada —uma criança que não reconheço:ou seja, muito pouco mais que nada.

É tudo que me resta do começo

disso que agora pensa, fala e senteque pode ser denominado “eu”.Claro que houve um instante crucial

em que esses cacos mal eporcamentecolaram-se. E pronto: deu no quedeu.Já é alguma coisa. Menos mal.

ii

Não volta mais, aquele voo cegorumo ao que nunca esteve lá, porémsó surge em pleno ar. E não renego

a rota tonta que segui. Ninguémse faz em linhas retas. Todo portoa que se chega é a meta desejada.E o caminho tomado, por maistorto,acaba sempre sendo a exata estradaa dar naquilo que, afinal, se é.Assim, todo e qualquer passado, atéo que se esqueceria, se pudesse,vai pouco a pouco virando umaespéciede bala que se chupa com deleite,mesmo se azeda. Isso, chupe.Aproveite.

iii

Corpo agora perdidoalém de todo anseiolá onde nem vestígiodo perdido desejo

lá onde o que é lembrançade palavras e atosentre ódios e ânsiase demais artefatos

esvai-se por completo.Corpo antes inteirotão tangível concreto

quase fictício agora,névoa sem cor nem cheiroonde nem mais memória.

iv

Acrescentar ao mundo um morto amaisé só o que a vida garante. O restoé risco, é vai da valsa. Tanto fazimprovisar ou decorar o texto,ser pedra ou imitar os animais,

correr atrás de lucro ou prejuízo.Dá no que der. E, seja lá o que for,terá sido o necessário, o preciso,o que tinha que ser. O mais é dor,gozo, embromação, falta de juízo,

você naquela foto, a boa ideia,

o sábado que não choveu, a suéteramarela perdida, três e meia,um telefonema, eu não disse? etc.

v

Céu azul. Cores vivas. Você rindode alguma coisa ou alguém que estáà esquerdado fotógrafo. É talvez domingo.É claro que essa sensação de perda

não está na foto, não — não está naimagemextremamente, absurdamente nítida.E se fosse menor a claridade,ou se estivesse sem foco, ou

tremida,

ou se fosse em sépia, ou preto ebranco,talvez a foto não doesse tanto?Você, às gargalhadas. O motivo

você não lembra. A foto é muitoboa.Naquele tempo você ria à toa,você lembra. Você ainda era vivo.

vi

Até aqui a corda não rompeu,os ossos aguentaram, e a cabeça —até que em definitivo anoiteça

e tudo se resolva enfim em breu,a cabeça vai tocando, fazendoa transubstanciação de coisa emtextoque é o seu único métier. De resto,prossegue cozinhando em fogo lentoessa tão adiada refeiçãoa que ela sequer será convidada.Paciência. Haverá tempo de sobrapra se dedicar à contemplaçãoda folha em branco e outras formasdo nada.Depois, com sorte, restará umaobra.

vii

Nada disso foi do jeito que eu quis.Se fosse como eu quis, não haveriade ser tão sofrido, tão infeliz.Mas eu — o eu que sou — eu nãoseria.

Assim, não me lamento. Até mesintocomo quem tem não o que foipedido,e sim o que, guiado pelo instinto,não pelo querer, teria querido.

O que de mais duro a vida me deu— que dura mais quanto mais mecustoudele me acostar, e torná-lo meu —

o que não escolhi, mas meescolheu,é o que, ao fim e ao cabo, mais eusou.Não é o eu que eu me quis. Mas soueu.

viii

Já se aproxima aquele tempo durode se colher o que ninguém plantou.Sim, a coisa deu nisso. Eis o futuro,exatamente o que se esperava. Ou

o exato oposto. Tudo faz sentido,ainda que não, talvez, um que se

entenda,um que possa sequer ser entendidonos termos de um passado agoralenda.

Sim. E no entanto essa lenda, essafábulasem moral nenhuma, é você.Emborasó um esforço de desmemória,tábula

rasa de si, leve ao que se perdeu,revele o que resta. Vamos, é agoraou nunca. Repita comigo: “Eu”.

Apêndice

Uma palavra transcritaou vírgula acrescentada:a súmula de uma vida(que, afinal, foi mais que nada).

No entanto, esse espaço mínimoacomoda grossos tomos —só que de interesse ínfimopra todos nós que não os fomos.

Pra nós, que estamos de fora,basta uma linha (pulada,é claro, numa leitura

um pouco mais apressada).

Ecce homo

Não ser quem não se é é coisatrabalhosa.Exige a disciplina austera erigorosa

de quem, achando poucosimplesmente ser,requer o luxo adicional de parecer.

As essências enganam, e o eu é tãoescassoque há que ocupar com algumacoisa tanto espaço,

e nada como a negação da negaçãopra efetuar tão delicada operação.

E pronto: está completo. O homemmais o androide,imune a suave mari magno eSchadenfreude,

ser e não ser na mais perfeitasintonia.Use e abuse. A coisa vem comgarantia.

Fogo-fátuo

Nenhuma solução se ofertaonde problema não havia.(Cada porta estava abertae cada sala vazia.)

E no entanto a consciênciabuscava alguma resposta.(Estava cheia a despensae a mesa estava posta.)

Como livrar-se do estigmade se saber terminável?(A inexistência do enigma

é uma ausência insuportável.)

Pequeno manual de retórica

1. Contei a mesma históriano mínimo mil vezes.A lua semioculta atrás da nuvem:um olho semicerrado.

2. Reclamei, esbravejei,esperneei, ameacei.O vento atravessava a noitecomo uma faca repartindo umaromã.

3. Sem outra opção, recorri àjustiça.

A qual, além de cega, escuta mal.A chuva desabou na avenidadeserta,gargarejando nos bueiros entupidos.

4.Agora só confionas minhas próprias mãosA manhãnasceu morta.

Man in a chair(Lucian Freud)

Esperar sentado, mas semrelaxar os músculos. Mãostensas nas coxas como quemprestes a se levantar. Não

como quem, à espera, descansa.E sim como se encurraladona cadeira. Sem esperançasnem expectativas. Sentado

na cadeira como quem nãoespera exatamente nada.

Sem certezas, com exceçãoda única, e indesejada.

Fábula

Um pensamento pensadoaté a total exaustãotermina por germinarno mesmo exato lugarsua exata negação.

Enquanto isso, uma ideiatrauteada numa flautafaz uma cidade erguer-se —é claro, sem alicerces,mas ninguém dá pela falta.

Cave canem

Um homem e seu rancorcaminham à beira-mar.É uma relação de amornascida pra perdurar.

Não se desgasta com o temponem enfraquece com a idade.Trata-se de um sentimentosem prazo de validade,

à prova de mal-entendidose imune a desencontros:pois um foi feito à medida

e à imagem exata do outro.

Seguem pelo calçadão,lado a lado, até que somem.O rancor é como um cão,melhor amigo do homem.

Seis sonetos soturnos

i

A qualquer hora, o que se chamavidapode mudar da água pro vinho. Ouvice--versa. Cada palavra proferida —uma sentença grave, uma tolice —pode retornar feito um bumeranguecapaz de destruir o que encontrar.E nada que se funde em carne esangueescapa dessas bólides de ar:

o amor e demais estados de graça,reputações, ações, fazendas, gado,longos corredores, salas de espera—tudo à mercê do que afinal nãopassade ar comprimido, aos poucosexalado,que logo se dissipa na atmosfera.

ii

E de repente a coisa aconteceu.Mas não tal qual se haviaimaginado:detalhes há que nem sequer o medomais abjeto é capaz de antecipar.

Por isso o sentimento prometidohá tanto tempo, e com tantaminúcia,chegada a hora, não se concretiza,e assim ao que vem falta essavolúpia

das paixões temperadas comcuidado,porém um certo desapontamentoembota sua precisão de lâmina,

e desse modo um travo de desânimoturva e amortece vergonhosamentea dor tão longamente antecipada.

iii

E durma-se com um barulho desses,engulam-se os sapos necessários.Resolução? Final feliz? Esquece.Por outro lado, tudo está bem claro,

nada é ambíguo, e nas entrelinhasé só espaço em branco. Noves fora,não há saída. A coisa não termina.A hora chega, e ainda não é a hora,

ou já é tarde e Inês é morta. Não,não adianta mais. E no entantohá que seguir em frente, sempre.Mãos

à obra, sim. Conforme ocombinado.Igual à outra vez: táticas, planos,metas. É claro que vai dar errado.

iv

Caminhos que só levam comcertezaa caminhos que dão na estaca zero.Nada de novo. A única surpresaé constatar que mesmo o desespero,

a vaga mariposa persistenteque não se mexe nem com a luzacesa,termina se tornando simplesmente

uma espécie de enfeite sobre amesa,

feito esses porta-fotos digitaisem que a paisagem muda pouco apouco,talvez escurecendo mais e mais,

como se anoitecesse — quandoentãose percebe, como quem leva umsoco,que a tela mergulhou na escuridão.

v

As coisas sempre podem piorar.

Não há limite para o abismoestreitoque se abre justamente no lugaronde a relação entre causa e efeitoparece indicar que a crosta é maisdurae é mais remoto o risco de ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, umavezdesmascarada a aparência enganosade integridade e estrita solidez,a mente busca uma saída honrosae com algo assim por fim secontenta:Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temermais nada,expõe um novo flanco à próximaporrada.

vi

Podia, sim, ter sido de outro jeito,só que não foi. É fato consumado,acabou. O que está feito, está feito,nada mais há a fazer. Certo ouerrado,

foi desse modo que eu agi. Penseique era o melhor. Não — não pramim. Pra mimera a pior saída. E agora sei

que pros outros foi ainda pior. Sim.

A cada dia fica mais difícilsair e ter conversas como esta,que não levam a nada. Mas por quê,

afinal, estou aqui, neste edifício,no meio desta gente, nesta festa?Este poema não é pra você.

Lagniappe

Enough. Sometimes a thing goes onfor muchtoo long — so long, in fact, it’s hardto tellwhether it’s good or bad. No matterwhich,it’s time to stop. Of course, whenthere’s a will —but the spirit willing? (Never mindthe flesh.) Well, it’s tragedy first,then farce,or maybe it’s the other way around.You never know. Not that it makes

much difference,or anyone could care less. All thesame,enough is enough. And once can bemorethan enough — yes, can be, in fact,one timetoo many, more than you or I couldbear.One might as well call it a day (ornight).Or else hang on, and just sit tight.And wait.

Biscuit

Felicidade frágil,que se equilibra male mal (ainda que ágil)no contrafactual

e no mais-que-imperfeitodo que ganha sentidoquando não tem mais jeitoe o prazo está vencido.

Então todo obstáculovira finalidade:é o fim do espetáculo,

frágil felicidade.

Carrossel

Noite dentro da noite,acúmulo de desastres,noite em que a consciência —essa fábrica de catástrofes —

gira em torno de sicomo um cão e seu raboperseguindo o pesadelodesde o início encontrado.

Par délicatesse

Veleidade de serque nunca chega a vontadee se instala com prazeronde o que é jamais cabe,

contentamento aplacadocom tudo que é incompleto,que antes mesmo do atose satisfaz com o projeto

e recusa a própria vidapor pura falta de espaço.(Não havendo tentativa

como pode haver fracasso?)

Canção

Havendo necessidade,claro que é sempre possíveldesfazer o nunca feito,desdizer o jamais dito.

Fingir não é nada difícilquando a própria realidadeé, de todas as hipóteses,a que é mais indesejada.

Não se vexe de negaruma simples negativa:menos com menos dá mais.

Há coisas piores na vida.

Eleática

A quintessência do seré estar no mesmo lugarexato, sem se mexer,até o mundo piscar.

O mundo, porém, não pisca,e a imobilidade cansa.Daí que um dia se arriscaum tímido passo de dança,

e eis então o resultado,a lógica consequência:ser (isto é, estar) condenado

a mil anos de imanência.

Mas tem gente que até gosta,e diz (e eu não contradigo)que a condição opostaé que seria o castigo.

Três peças dispépticas

i

É aqui mesmo, sim.Você era esperado.E por falar nisso,chegou atrasado.

Não peça desculpas:não adianta nada.O atraso serácontabilizado.

Não há a menor dúvida;

é este o endereço.Mas fique sabendo:tudo aqui tem preço.

Não esteja à vontade.A casa não é sua.E se não gostar,por ali é a rua.

Já vai? É melhorsair pelos fundos.A sua partidaserá esquecidaem cinco segundos.

ii

Foi sem querer. Nossa intenção eraa mais puraimaginável. Mil perdões. Agora étarde,e o que foi feito, feito está. A vida édura.Compartilhamos vossa dor. Masdeus nos guardede ter que dividir convosco —tinha graça! —o muito que lucramos com vossadesgraça.

iii

Não fosse por issopor outra seria.

Não tem, desde o início,teleologia

nem origem, causaou motivação.Avança sem pausarumo à conclusão,

a qual é um fimsem finalidade.E termina assim.Pronto. Já vai tarde.

Quatro bagatelas

i

Todas as soluções são boas,menos a que você escolher.Escolha, sim. (Mesmo que doa,dá uma espécie de prazer.)

ii

Nenhuma explicaçãoentre o pé e a mão.Transcendência nenhumaentre o sabugo e a unha.

Ao corpo, masmorra sem porta,pouco importa que você morra.

iii

Viver momento a momentocom a insensatez dos insetosque arremetem impávidoscontra o real da vidraçaobedecendo sem tréguaà lógica imperturbávelque trazem em suas entranhas.

iv

Vida sempre rascunho, folha sem

pauta,pasto de lacunas e rasuras,risco sobre risco, pré--texto de nada.

Três autotraduções

(lorem ipsum)i

“Come”, he says, “and I will giveyou kennings,trochees, caesurae, hemistichs toburn;meaning is all I ask you in return,or if not meaning, then the next bestthing.

Come when the night is solid andsolicitous

like an ancient and hieratic maîtred’,awaiting the time that’ll suit us to aTto serve us a feast most ample andluscious.”

But such entreaties are to no avail;and vacuity is all that comes of it,worthless scribbling, words likeempty shells.

And it all boils down to a singledistich:No one seeks pain, but ratherpain’sopposite,and solace is always

metalinguistic.

(two grotesque sonnetettes)ii

The house is asleep. This object orcreatureerupts in the parlor with the utmostviolence,rolls on the ceiling, hangs from thefixtures,lording it over the dark and thesilence.

The family awakes. Our braveOdradeklies folded like a fan into its own

neckin a drawer with no distinguishingfeature.

iii

Here’s the latest version of the real.Not half as comely in figure or infaceas last year’s issue, which for all itsappealwithin six months had sunk withouta trace.

This new one sags like an emptypurse,a bat of sorts, all clammy wings and

squeals.And yet it flies. We could havedone far worse.

Mosaico

Os dias a amontoar-secomo se rumo a um sentido,algo que se assemelhassea uma meta, ou um destino,

mas formando (sem sabê-lo,claro — o que sabem os dias?)uma estrutura em relevo,espécie de marchetaria,

com padrão indecifrável(por não seguir um projeto),mas assim mesmo um resguardo,

um remédio contra o medo

de nada haver — nem padrão,nem projeto, nem destino —no mundo, nada senãoo amontoar-se dos dias.

Uma lenda

Os formulários foram todospreenchidosem sete vias, todas elas registradas.As testemunhas rubricaram cadapágina.

Ninguém podia imaginar asconsequências.Todas as partes envolvidasconcordavamque não se havia omitido nenhumtrâmite.

No céu, as nuvens prometiam chuvaforte,contrariando as previsões oficiais.Alguém notou que parecia havermais pássaros

que de costume, ou eram ospássaros de sempreanormalmente alvoroçados nessatarde.Ninguém achava que pudesse haverum vínculo

entre dois planos tão diversos — sóque havia,como depois ficou bem claro. Masna hora

só se pensava em lucros, projeções,alvíssaras.

Pois bem. Naquela noite, todos nósdormimoso sono não direi dos justos, masdaquelesque examinaram com cuidado cadacláusula

e consultaram os oráculos devidose só depois é que assinaram naslacunas.Mas na manhã seguinte as coisascomplicaram-se.

Uma neblina indevassável impedia

que se enxergasse o outro lado daavenida.Alguma coisa acontecera com asárvores,

pois não havia folha alguma emgalho algum.Antes das nove já tocavam ostelefones.Inicialmente eram consultas, vagasdúvidas;

depois, reclamações, protestosveementes;por fim, imprecações, insultos,ameaças.E uma pedrada na vidraça foi o

símbolo

mais que concreto do que havia deocorrer.Em desespero, enviamos cincofaxesao Grande Templo, e a resposta foio silêncio.

Do céu caía não exatamente chuva,mas mesmo assim nos pareceu queo mais prudenteera entregar aos deuses e à equipejurídica

o que restasse do nossoempreendimento,

e abandonar a sede enquanto haviatempo.Como nas ruas não passavam maisveículos,

saímos pelos fundos, armados, a pé,com a intenção de escapulir pelafronteira.Porém a menos de cem metros doedifício

nos capturaram com a maiorfacilidadee nos levaram à pirâmide maispróxima.O altar, o fogo, a faca, o sacerdotee o público

já estavam todos prontos para osacrifício.

Madrigal

Desista: não vai dar certo.O mundo é o mesmo de sempre,desejo é uma coisa cega.Desista, enquanto é tempo.

As mãos não sabem o que pegam,os pés vão aonde não sabem.As cartas estão marcadas:vai dar desgraça na certa.

O mundo é sempre a esmo,desejo é uma porta aberta.Desista, que a vida é incerta.

Ou insista. Dá no mesmo.

Instant replay

A nostalgia pioré a do instante presente —sentir que se vive o agoramas não o suficiente,

desejar tê-lo vividoem vez de o viver no atopra então poder possuí-lona nostalgia de fato.

Pós

Antes era mais fácil — sim, porqueeramais difícil, havia mais em jogo,e o tempo todo se jogava à vera.Precisamente: mais difícil, logo

mais fácil. Porque sempre se sabiade que lado se estava — havialados,então. E a certeza de que algum diatudo teria um significado.

E nós seríamos os responsáveis

por dar nomes aos bois. Havia boisa nomear, então. Coisas palpáveis.Tudo teria solução depois.

Chegou o tempo de depois?Digamosque sim. E no entanto os nomesdadosnão foram, nem um só, os quesonhamos.Talvez porque sonhássemos errado,

talvez porque, enquanto alguns sedavamao luxo de sonhar, outros, insones,imunes, implacáveis, se entregavamà tarefa prosaica de dar nomes

sem antes os sonhar. E, dia feito,agora tudo é fácil. E por issodifícil. Não, a coisa não tem jeito.Nem nunca teve, aliás. Desde oinício.

Envoi

O tempo, que a tudo distorce,às vezes alisa, conserta,e a golpes cegos acerta:

em seu tosco código Morsede instantes sem rumo e roteiroentão dá forma a algo de inteiro.

Não um verso, que em folhaesquivaa gente retoca e remendaaté ser coisa que se entenda,

mas algo que na carne vivase esboça, se traça, se inscrevebem mais a fundo, ainda que breve—

pois todo poema é murmúriofrente ao amor e sua fúria.

Nota do editor

Alguns dos poemas incluídosneste livro foram publicadosanteriormente:

“Lorem ipsum”: Ilustríssima,Folha de S.Paulo, 10 jul. 2011.

“Horácio no Baixo”:Ilustríssima, Folha de S.Paulo, 9jan. 2011.

Poema v da série “Cinco sonetosfrívolos” (com o título “Peteleco”):in Moutinho, Marcelo e Reis-Sá,Jorge (orgs.). Dicionário amoroso

da língua portuguesa. Rio deJaneiro: Casa da Palavra, 2009.

Poema vi da série “Biographialiteraria” (com o título “Até aqui acorda não rompeu”): in Leite, IvanaArruda (org.). 60 tão. São Paulo:Edith, 2011.

“Ecce homo”: Eutomia – RevistaOnline de Literatura e Linguísticaiv, 1, jul. 2011.www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano4-Volume1/poesias/POEMAPAULOHENRIQUESBRITTO.pdf>

“Man in a chair”: Relâmpago23, Portugal, out. 2008, p. 125.

“Pequeno manual de retórica”:Correio das Artes lxi, v. 6, JoãoPessoa, jun. 2010, p. 19.

O poema “Man in a chair” foiinspirado no quadro de mesmotítulo de Lucian Freud, que pode servisto em:<www.museumsyndicate.com/item.php?item=4545>.

Copyright © 2012 by Paulo Henriques BrittoGrafia atualizada segundo o AcordoOrtográfico da Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009. CapaKiko Farkas/ Máquina Estúdio EdiçãoHeloisa Jahn RevisãoAna Maria BarbosaRenata Favareto Callari ISBN 978-85-8086-386-4

Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

Paulo Henriques Britto (Rio deJaneiro, 1951) é professor etradutor. Autor de cinco livros depoemas — Liturgia da matéria(1982), Mínima lírica (1989),Trovar claro (1997), Macau (2003,prêmio Portugal Telecom deLiteratura Brasileira) e Tarde(2007, prêmio Alphonsus deGuimaraens da FundaçãoBiblioteca Nacional) — e deParaísos artificiais (contos, 2004),publicou os quatro últimos pela

Companhia das Letras.