henriques josé henriques o direito internacional e a constituição de ...

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HENRIQUES JOSÉ HENRIQUES O DIREITO INTERNACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE MOÇAMBIQUE: ENCONTROS E DESENCONTROS À LUZ DO PLURALISMO JURÍDICO GLOBAL Tese com vista à obtenção do grau de Doutor em Direito, na especialidade em Direito Público Orientador: Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Dezembro de 2015

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  • HENRIQUES JOS HENRIQUES

    O DIREITO INTERNACIONAL E A CONSTITUIO DE MOAMBIQUE:

    ENCONTROS E DESENCONTROS LUZ DO PLURALISMO JURDICO

    GLOBAL

    Tese com vista obteno do grau de Doutor

    em Direito, na especialidade em Direito Pblico

    Orientador:

    Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

    Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

    Dezembro de 2015

  • HENRIQUES JOS HENRIQUES

    O DIREITO INTERNACIONAL E A CONSTITUIO DE MOAMBIQUE:

    ENCONTROS E DESENCONTROS LUZ DO PLURALISMO JURDICO

    GLOBAL

    Tese com vista obteno do grau de Doutor

    em Direito, na especialidade em Direito Pblico

    Orientador:

    Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia

    Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

    Dezembro de 2015

  • I

    DECLARAO ANTI-PLGIO

    Eu, Henriques Jos Henriques, declaro por minha honra que o texto apresentado

    da minha exclusiva autoria e que toda a utilizao de contribuies ou textos alheios est

    devidamente referenciada.

    Dezembro de 2015

    O declarante

    ______________________________

    (Henriques Jos Henriques)

  • II

    AGRADECIMENTOS

    Esta tese tornou-se uma realidade graas ao contributo de muitas pessoas singulares e

    colectivas, a quem endereo, do fundo do corao, os meus mais sinceros

    agradecimentos:

    minha querida e estimada esposa, companheira de luta, Maria Albertina, pelo

    apoio, incentivo e sacrifcios para que este estudo fosse uma realidade;

    Aos meus filhos, Ntsay, Lucy e Kristus, pela compreenso e privao do amor e

    carinho do pai pelas longas ausncias;

    Aos meus pais, Jos Henriques e Ntsay Maria, que lutaram para dar aos seus

    filhos aquilo que lhes fora negado a instruo;

    Ao meu orientador Professor Catedrtico Jorge Bacelar Gouveia, meu mui amigo

    e irmo que, pelo seu altrusmo, colocou todos os meios disposio para que este

    estudo, por ele incentivado e acarinhado chegasse a bom termo;

    Ao meu primeiro e eterno orientador Professor Doutor Antnio Manuel Hespanha,

    paciente, atento e incansvel na conduo da primeira parte desta pesquisa,

    fazendo deste trabalho sua batalha;

    Ao Sr. Prof. Doutor Joo Leopoldo da Costa, por ter depositado confiana nas

    minhas capacidades e pela pacincia e esperana de ver esta batalha vencida;

    Ao Sr. Dr. Salim Omar, que esteve sempre ao meu lado incentivando, apoiando e

    disponibilizando todo o seu acervo humano, material e bibliogrfico para o xito

    deste estudo;

    Ao Sr. Prof. Doutor Armando Csar Dimande, que sempre esperou e soube

    incentivar-me com as necessrias dispensas do servio para que as pesquisas

    fossem feitas;

  • III

    Ao Sr. Prof. Doutor Gildo Manuel Espada, pelo companheirismo, estmulo,

    partilha de ideias, exemplo do esprito de entrega e dedicao ao trabalho e

    sobretudo por ter-se disponibilizado para a reviso do texto desta tese;

    Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito

    da Universidade Eduardo Mondlane e ao Instituto Superior de Cincias e

    Tecnologia de Moambique, que me abriram as portas, acolheram-me e fizeram-

    me crescer;

    Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), que me concedeu

    a bolsa de estudos para o doutoramento;

    s pessoas que partilharam connosco as suas opinies, saber, disponibilizaram

    informao preciosa para o estudo desta temtica, nomeadamente: Sr. Dr. Salim

    Omar, Sr. Dr. Paulo Comoane, Sr. Dr. Samuel Levi, Sr. Prof. Doutor Eng. Pedro

    Sing Sang, Sr. Eng. M. Alvarinho e Sr. Dr. Manuel Castiano.

  • IV

    O DIREITO INTERNACIONAL E A CONSTITUIO DE MOAMBIQUE:

    ENCONTROS E DESENCONTROS LUZ DO PLURALISMO JURDICO

    GLOBAL

    NDICE

    AGRADECIMENTOS ....................................................................................................II

    NDICE ......................................................................................................................... IV

    Lista de Siglas e Acrnimos .......................................................................................... IX

    RESUMO ................................................................................................................... XIII

    ABSTRACT ............................................................................................................... XVI

    INTRODUO............................................................................................................... 1

    1. Apresentao do Tema ....................................................................................... 1

    2. Justificao da escolha do Tema ......................................................................... 3

    3. Objectivos .......................................................................................................... 5

    3.1. Objectivos gerais: ............................................................................................ 5

    3.2. Objectivos especficos: .................................................................................... 5

    4. Mtodos e tcnicas do Trabalho .......................................................................... 7

    5. Estrutura e Contedo do Trabalho ...................................................................... 8

    PARTE I O Direito Internacional e o Pluralismo Jurdico ........................................... 12

    Captulo I O Pluralismo Jurdico em Geral .......................................................... 13

    1.1. Consideraes Preliminares sobre o Pluralismo Jurdico ............................... 13

    1.2. Da Emergncia e dos Desafios do Pluralismo tnico e Scio-

    Antropolgico.. ................................................................................................... 22

    1.3. O Pluralismo Jurdico em Contextos Coloniais .............................................. 28

    1.3.1. As regras de reconhecimento das ordens jurdicas no espao colonial . 48

    1.3.2. Os usos e costumes dos nativos na sociedade colonial ......................... 49

    1.3.3. O Direito Privado Especial na sociedade colonial ................................ 54

    1.3.4. As normas religiosas na sociedade colonial ......................................... 55

    1.3.5. O Direito da Famlia e Sucesses ........................................................ 56

    1.4. Pluralismo Jurdico em Contextos Ps-Coloniais........................................... 58

    1.5. A Reflexo sobre o Pluralismo Jurdico e a Nova Ordem Jurdica Global ..... 74

    1.6. Uma Construo Jurdico-Terica adequada ao Pluralismo Jurdico e as

    Ordens Jurdicas Plurais O realismo de Herbert L. Hart ....................................... 86

    Captulo II Globalizao e os Estados Ps-Nacionais .......................................... 91

  • V

    Captulo III As Ordens Jurdicas Internacionais e o Direito Internacional

    Global.. ............................................................................................................. 107

    3.1. A Ordem Jurdica das Instituies Transnacionais e a Globalizao

    Econmica ........................................................................................................ 115

    3.2. Os Desafios da Globalizao Econmica Liberal e o Direito Internacional .. 123

    Captulo IV O Direito Internacional das Ordens Jurdicas Privadas ou no-oficiais

    e o Direito Internacional Global............................................................................ 131

    4.1. A Lex Mercatria e o Direito Internacional Global ...................................... 131

    4.1.1. A auto-regulao telecomunicativa servidores e operadores ........... 136

    4.1.2. Os sindicatos e o processo de auto-regulao legislativa .................... 143

    4.1.3. Os desafios da Lex Mercatria e o Direito Internacional Global ........ 149

    4.2. Direito Internacional dos Direito Humanos e a Ordem Jurdica Global ........ 159

    4.2.1. Os Desafios do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Ordem

    Jurdica Global ............................................................................................... 168

    4.3. Direito Internacional Humanitrio e a Ordem Jurdica Global ..................... 197

    4.3.1. Direito ou dever de ingerncia e o Direito Internacional

    Humanitrio ............................................................................................ 199

    4.3.2. Os Desafios do Direito Internacional Humanitrio e a Ordem Jurdica

    Global ......................................................................................................... 206

    4.4. Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional Global ........ 217

    4.4.1. Os Desafios dos Movimentos Migratrios e o Direito Internacional

    Global.221

    4.5. Direito Internacional do Desenvolvimento e a Ordem Jurdica Global......... 231

    4.5.1. Os Desafios das Normas Internacionais da Ajuda ao Desenvolvimento e

    a Ordem Jurdica Global ................................................................................. 242

    4.5.2. A legitimidade das normas internacionais de ajuda ao desenvolvimento

    ou humanitrias impostas aos pases beneficirios como condio elegibilidade

    para a ajuda .................................................................................................... 270

    4.6. Direito Internacional Regional e a Ordem Jurdica Global ........................... 277

    4.6.1. Os Desafio do Direito de Integrao Regional e o Direito Internacional

    Global ......................................................................................................... 279

    4.7. Direito Internacional Penal e o Direito Internacional Global ....................... 287

    4.7.1. Os Desafios do Direito Internacional Penal e a Ordem Jurdica

    Internacional Global ....................................................................................... 292

    Parte II O Direito Constitucional Internacional de Moambique ............................... 318

    Captulo V A Evoluo do Direito Internacional na Constituio de

    Moambique ..................................................................................................... 319

    5.1. A Relevncia do Direito Internacional no Direito Estadual .......................... 319

    5.2. A Constituio da Repblica Popular de Moambique de 1975 ................... 324

    5.3. A Constituio da Repblica de Moambique de 1990 ................................ 329

    5.4. A Constituio da Repblica de Moambique de 2004 ................................ 332

    5.4.1. A reafirmao do desenvolvimento e a consolidao da Democracia. 334

  • VI

    5.4.2. A consagrao do caracter soberano do Estado .................................. 336

    5.4.3. A reafirmao e consolidao do Estado de Direito Democrtico ...... 337

    5.4.4. A reafirmao do respeito e das garantias dos direitos e liberdades

    fundamentais .................................................................................................. 342

    5.4.5. O aprofundamento das garantias e limitaes dos direitos e

    liberdades.. ................................................................................................. 345

    Captulo VI O Direito Internacional na Constituio de Moambique de 2004 .. 348

    6.1. A Insero e a Posio do Direito Internacional no Direito Moambicano... 348

    6.2. A Incorporao do Direito Internacional no Ordenamento Jurdico

    Moambicano ....................................................................................................... 351

    6.2.1. As regras constitucionais e o processo de incorporao ..................... 351

    6.2.1.1. A incorporao dos Tratados Internacionais ...................................... 351

    6.2.1.2. A incorporao dos Acordos Internacionais ....................................... 353

    6.3. A Validade do Direito Internacional e a sua Posio Hierrquica no Direito

    Moambicano ....................................................................................................... 358

    6.3.1. A posio hierrquica do Direito Internacional no ordenamento jurdico

    moambicano ................................................................................................. 358

    Captulo VII - O Pluralismo Jurdico no Direito Constitucional de Moambique .. 362

    7.1. Caracterizao e evoluo do pluralismo jurdico no Direito Constitucional de

    Moambique......................................................................................................... 362

    7.2. O pluralismo das fontes no constitucionalismo moambicano ..................... 378

    7.3. O pluralismo normativo, judicial e institucional na resoluo de conflitos os

    mecanismos de articulao ................................................................................... 397

    7.3.1. O reconhecimento e as limitaes constitucionais do pluralismo jurdico em

    Moambique......................................................................................................... 397

    7.3.2. Os desafios sobre os mecanismos institucionais e processuais de articulao

    entre os tribunais e demais instncias de composio de interesses e de resoluo de

    conflitos ............................................................................................................... 400

    7.4. Os desafios da internacionalizao do pluralismo jurdico no Direito

    Moambicano ....................................................................................................... 409

    Captulo VIII O Direito Internacional e o Direito de Moambique..................... 413

    8.1. Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito de Moambique .... 413

    8.2. Direito Internacional Econmico e o Direito de Moambique ......................... 432

    8.2.1. Encontros e desencontros entre o Direito Interno e o Direito

    Internacional Econmico - na Primeira Repblica .......................................... 435

    8.2.1.1. O Plano Estatal Central (PEC) e o Plano Prospectivo e Indicativo (PPI) e

    o Direito Internacional Econmico ................................................................. 438

    8.2.1.2. A legislao sobre interveno e nacionalizao e o Direito

    Internacional Econmico ................................................................................ 440

    8.2.1.3. A legislao sobre intervenes e nacionalizaes no sector financeiro,

    econmico e empresarial ................................................................................ 446

  • VII

    8.2.1.4. A Legislao sobre o Sector Empresarial e Cooperativo .................... 450

    8.2.1.4.1. A Legislao sobre o Sector Empresarial do Estado.450

    8.2.1.4.2. A Legislao sobre o Sector Cooperativo..455

    8.2.2. Encontros e desencontros entre o Direito Interno e o Direito

    Internacional Econmico - na Segunda Repblica .......................................... 458

    8.2.2.1. As Normas Internacionais das Instituies de BWs e FMI e de

    Cooperao Bilateral e Multilateral e a Legislao Econmica

    Moambicana ......................................................................................... 458

    8.2.2.2. A Legislao sobre Alienaes e Privatizaes .................................. 460

    8.2.2.3. Legislao sobre o Sistema Financeiro .............................................. 462

    8.2.2.4. A Legislao sobre a Actividade Seguradora e de Fundo de Penses . 475

    8.2.2.5. Aviso n. 10/GBM/2007, de 25 de Maio e o Aviso n. 4/GBM/2012, de

    26 de Dezembro, Extenso dos Servios Financeiros s Zonas Rurais e as

    Normas Internacionais - "Acess to Finance Challenge Fund" (AFCF). ........... 479

    8.2.2.6. A Regulamentao e Procedimentos no mbito da SADC Committee

    of Central Banks Governors (CCBG-SADC) e a Legislao sobre o Sistema

    Financeiro Moambicano ............................................................................... 481

    8.2.2.7. Quadro Legal sobre Anti-Corrupo e o Direito Internacional ........... 485

    8.2.2.8. Quadro Legal sobre Polticas Econmicas e de Investimentos e o Direito

    Internacional Econmico ................................................................................ 503

    8.2.2.9. A Legislao Comercial e o Direito Internacional .............................. 509

    8.2.2.10. Legislao Fiscal e Aduaneira e o Direito do Comrcio

    Internacional.. ............................................................................................. 528

    8.2.2.10.1. As medidas ou normas impostas pelo Programa de Reabilitao

    Econmica como condio para a ajuda estrutural aos investimentos em

    Moambique e o Direito Internacional ............................................................ 528

    8.2.3. Direito Internacional do Trabalho e o Direito de Moambique .......... 558

    8.2.3.1. Legislao laboral moambicana e o Direito Internacional do

    Trabalho ..................................................................................................... 561

    8.2.4. O Direito Internacional Penal e o Direito de Moambique .......................... 579

    8.2.4.1. A Constituio da Repblica Popular de Moambique de 1975 e o

    Direito Internacional Penal ............................................................................. 580

    8.2.4.2. As polticas neoliberais da economia do mercado (1985) e o direito

    Internacional Penal ......................................................................................... 586

    8.2.4.3. O Novo Cdigo Penal (Lei n. 35/2014, de 31 de Dezembro) e o Direito

    Internacional Penal ......................................................................................... 594

  • VIII

    8.2.5. O Direito Internacional de Integrao Regional e o Direito de Moambique

    ......................................................................................................................599

    Captulo IX Para uma Ideia do Direito Constitucional e Internacional na Nova Ordem

    Jurdica Global ............................................................................................................ 611

    9.1. A diversificao e a expanso do Direito Internacional e a nova ordem jurdica

    internacional ......................................................................................................... 611

    9.2. Os desafios das ideias ou dos modelos de interao das ordens jurdicas no

    Direito Internacional Global ................................................................................. 628

    9.3. Os desafios da ideia de constitucionalizao e a evoluo do Direito

    Internacional Global ............................................................................................. 642

    9.4. A ideia de um quadro jurdico de acoplamentos estruturais e operativos entre o

    Direito Internacional e o Direito Interno ............................................................... 649

    Concluses .................................................................................................................. 654

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 665

    OBRAS DE REFERNCIA ................................................................................. 665

    LEGISLAO ............................................................................................................ 679

    1. Legislao Internacional ................................................................................. 679

    2. Legislao de Organizaes e Instituies Transnacionais. ............................. 681

    3. Legislao Moambicana ................................................................................. 683

    PERIDICOS ............................................................................................................. 690

    OUTRAS FONTES ..................................................................................................... 698

  • IX

    Lista de Siglas e Acrnimos

    ACNUR Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (UNHCR).

    ALENA - Estados Unidos de Amrica, Canad e Mxico.

    ANSI - American National Standards Institutes.

    APRM - African Peer Review Mechanism.

    ASEAN - Pases de sia do Sul e do Este.

    BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento (Banco Mundial)

    BM Banco de Moambique.

    BSI - British Standards Institution.

    CEDEAO - Communaut conomique des tats de l'Afrique de l'Ouest.

    CE Comunidade Europeia.

    CEDH Corte Europeia dos Direitos Humanos.

    CFI Cooperao Financeira Internacional.

    CICV Comit Internacional da Cruz Vermelha.

    CIDH Corte Interamericana dos Direitos Humanos.

    CIJ Cour International de Justice.

    CPLP - Comunidade dos Pases de Lngua Oficial Portuguesa.

    CRM Constituio da Repblica de Moambique.

    CRP Constituio da Repblica Portuguesa.

    CRPM Constituio da Repblica Popular de Moambique.

    DHA Department of Humanitarian Affairs, da ONU.

    DIP Direito Internacional Pblico.

    DUAT Direito de Uso e Aproveitamento de Terra.

  • X

    DUDH Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    ed edio.

    Ed Editora.

    EFTA - European Free Trade Association.

    etc. et cetera.

    FAO Food and Agriculture Organization (Organizao das Naes Unidas para a

    Alimentao e a Agricultura).

    FMI Fundo Monetrio Internacional.

    FNUAP Fundo das Naes Unidas para a Populao (UNFPA).

    FRELIMO Frente de Libertao de Moambique.

    GATT General Agreement on Tariffs and Trade.

    GIFiM Gabinete de Informao Financeira de Moambique.

    HAD Human Affairs Department, da ONU.

    HCR High Comissioner for the Refugees (ACNUR, da ONU).

    HIV _ Human Immnodeficiency Virus.

    IAEA International Atomic Energy Agency (AIEA).

    IBRD International Bank for Reconstruction and Development (BIRD).

    IBWs - Instituies da Bretton Woods.

    ICSID International Centre for the Settlement of Investment Disputes (Centro

    Internacional para Arbitragem de Controvrsias sobre Investimentos, do Banco Mundial

    CIECI.

    IMF International Monetary Fund (FMI).

    ITIE - Iniciativa de Transparncia na Industria Extractiva.

    ITU - Unio Internacional das Telecomunicaes.

    MDGs Millennium Development Goals.

    MCNET Mozambique Community Network.

    MERCOSUL Mercado Comum do Sul (Aliana dos pases da Amrica Latina).

    MSF Mdicins Sans-Frontires.

    NAFTA North America Free Trade Area.

  • XI

    NATO North Atlantic Treaty Organization.

    NEPAD - Declarao da Nova Aliana para o Desenvolvimento de frica.

    NIC - Normas Internacionais de Contabilidade.

    NIRF - Normas Internacionais de Relato Financeiro.

    OCDE Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico.

    ODM Objectivos de Desenvolvimento do Milnio (Millennium Development Goals

    MDG).

    OECD Organization for the Economic Cooperation and Development (OCDE).

    OECE Organizao Europeia de Cooperao Econmica (em Ingls: OEEC, actual

    OCDE).

    OIC Organizao Internacional do Comrcio.

    OIM Organizao Internacional para a Migrao.

    OIR Organizao Internacional para os Refugiados.

    OIT Organizao Internacional do Trabalho.

    OJM Organizao da Juventude Moambicana.

    OMC Organizao Mundial do Comrcio.

    OMS Organizao Mundial da Sade.

    OMM Organizao da Mulher Moambicana.

    ONGs Organizaes no-governamentais.

    ONG Organizao no-governamental.

    ONU Organizao das Naes Unidas.

    OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte.

    OTM Organizao dos Trabalhadores de Moambique.

    OUA Organizao da Unidade Africana.

    PARPA - Plano de Aco da Reduo da Pobreza Absoluta.

    PEC - Plano Econmico Central.

    PGC-NIRF - Plano Geral de Contabilidade - Normas Internacionais de Relato Financeiro

    PNB Produto Nacional Bruto.

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento.

  • XII

    PNUE Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente.

    PPI - Plano Prospectivo e Indicativo.

    PRE - Programa de Reabilitao Econmica.

    PRSP - Poverty Reduction Strategy Papers.

    TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias.

    TJUE _Tribunal da Justia da Unio Europeia (anterior TJCE).

    TNC Transnational Corporation (empresa transnacional).

    TUE Tratado da Unio Europeia.

    UA Unio Africana (substitui a Organizao da Unidade Africana - OUA).

    UIT Unio Internacional das Telecomunicaes.

    UN United Nations.

    UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization

    (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura).

    UNHCR United Nations High Commissioner for Refugees (ACNUR).

    UNICEF United Nations Childrens Fund (Fundo das Naes Unidas para a Infncia).

    RSA Repblica da frica do Sul.

    SADC - Southern African Development Community.

    TORs Termos de Referncias.

    WB Banco Mundial.

    WTO World Trade Organization (OMC).

  • XIII

    RESUMO

    O estudo analisa o Direito Internacional e a Constituio de Moambique:

    encontros e desencontros luz do Pluralismo Jurdico Global. Esta anlise reflexiva vai

    confluir no problema da internacionalizao do Direito na sociedade contempornea, ou

    seja, a interaco entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional luz do

    pluralismo jurdico global.

    Ao reflectir-se sobre as mudanas polticas, econmicas e sociais de ento,

    conclui-se que, por um lado, o constitucionalismo j no se coaduna e nem se satisfaz s

    com a estrutura do espao jurdico estatal (nacional) e sua ordem jurdica. Por outro lado,

    o Direito Internacional no est mais limitado s questes conexas grande poltica

    internacional.

    O fenmeno da globalizao emergente criou um desafio ao Direito Internacional

    quanto a ideia de uma sincronizao pluralista e policntrica do Direito que pudesse

    respeitar a diversidade ou a especificidade jurdica, dentro do pluralismo jurdico global.

    A ideia de Direito Internacional de ento entrou em crise por no conseguir a unidade e a

    coeso dentro do sistema jurdico global.

    Esta crise impulsionada pela fora policntrica da globalizao ditou a

    diversificao e a expanso do Direito Internacional. Esta diversificao imps a

    constituio e fortalecimento de vrios regimes jurdicos internacionais autnomos, a

    multiplicao de rgos de resoluo de conflitos internacionais e a emergncia de uma

    nova configurao normativa.

    Com o surgimento de novas instncias de produo jurdica internacionais e

    globais, o debate sobre a internacionalizao do Direito impe-se como uma necessidade

    urgente, no mbito do processo de globalizao e do pluralismo jurdico global.

    O grande debate, hoje, sobre esta temtica, descentrou-se do Direito Internacional

    Geral e coloca-se no mbito da nova ordem jurdica internacional global. O debate sobre

    a internacionalizao do Direito tomou duas vertentes: uma sobre o protagonismo das

  • XIV

    novas instncias de produo jurdica internacionais e globais autnomas e a sua

    influncia na construo do ordenamento jurdico internacional global. Outra vertente a

    dos blocos econmicos e polticos regionais e das organizaes e instituies de ajuda

    humanitria e de desenvolvimento sob o mesmo prisma.

    Este debate vem fazer ressurgir o velho ou o novo problema da interaco entre o

    Direito Internacional e o Direito Constitucional na nova ordem jurdica internacional

    global, ou seja, o problema da internacionalizao do Direito nacional.

    Constata-se que algumas normas internacionais emanadas de instncias de

    produo jurdica internacional autnomas, no mbito da globalizao hegemnica, so

    impostas directamente aos cidados e Estados, s vezes sem o conhecimento destes, da

    sua existncia.

    A aco destas instncias ou agentes pode ser considerada como um fenmeno

    bloqueante e destrutivo dentro das ordens jurdicas nacionais? Estas normas so impostas

    aos cidados e aos Estados no s como estratgias ou meios de operacionalizao de

    fluxos, para o sucesso do processo de globalizao e do desenvolvimento econmico,

    mas tambm, s vezes, para fins pouco claros e dentro de interesses econmicos difusos.

    Com a entrada em aco dos novos regimes jurdicos internacionais, o

    relacionamento com o Direito nacional descentralizou-se, criando assim um

    policentrismo, onde cada regime procura chamar a si a centralidade.

    Este fenmeno tem gerado conflitos dentro do Direito nacional e entre os vrios

    regimes jurdicos. Constata-se que cada regime jurdico possui as suas regras especficas

    de internacionalizao do Direito.

    O Direito nacional face a esta diversidade deve atender s vrias regras distintas e

    as vezes contraditrias. Vezes h em que a mesma matria fica sujeita a mais de uma

    internacionalizao por regimes jurdicos diferentes e atravs de regras distintas para o

    efeito.

    A proliferao de vrios regimes e agentes na internacionalizao do Direito tem

    fragilizado as polticas e as medidas de proteco e de produo normativa nos Estados

    perifricos por causa da sobreposio e complexidade do fenmeno.

  • XV

    Nesta nova ordem jurdica global, infelizmente, assiste-se o fenmeno da

    hegemonia legislativa internacional protagonizada pelas grandes potncias face aos

    imperativos da globalizao.

    Este fenmeno inslito, vivido na sociedade global, tem traduzido em prticas

    anti-constitucionais e anti-democrticas na criao e internacionalizao do Direito nos

    pases perifricos.

    O estudo parte da anlise da relao entre o Direito Internacional e a Constituio

    de Moambique e retorna ao debate sobre o problema da relao entre o Direito

    Internacional e o Direito Nacional, no mbito da nova ordem jurdica internacional

    global.

    Palavras-chave: 1. Direito Internacional. 2. Pluralismo Jurdico. 3. Direito Nacional. 4.

    Globalizao. 5. Constituio de Moambique.

  • XVI

    ABSTRACT

    The study analyzes the "International Law and the constitution of Mozambique:

    Consensus and dissent in the light of the Global Legal pluralism". This reflective analysis

    will converge in the problem of the internationalization of law in contemporary society,

    i.e., the interaction between International Law and the Constitutional Law in the light of

    the global legal pluralism.

    After reflecting on past political, economic and social changes, it is concluded

    that, on the one hand, constitutionalism is neither limited nor satisfied only with the

    structure of the state legal space (national) and its legal order. On the other hand,

    International Law is no longer limited to issues related to global international policy.

    The phenomenon of emerging globalization has created a challenge to the

    international law as to the idea of a pluralist synchronization and polycentric notion of

    Law that could respect the legal diversity or legal specificity, within the global Legal

    Pluralism. The older idea of International Law entered into crisis for not having achieved

    the unity and cohesion within the global legal system.

    This crisis driven by the polycentric force of globalization dictated the

    diversification and the expansion of international law. This diversification has imposed

    the constitution and strengthening of various autonomous international legal regimes, the

    multiplication of organs of international conflicts resolution and the emergence of a new

    normative configuration.

    With the emergence of new instances of international and global legal production,

    the debate on the internationalization of Law imposes itself as an urgent need, in the

    framework of the globalization process and the global legal pluralism.

    The great debate today, on this theme, departed from general International Law

    and is set in the context of the new global international legal order. The debate on the

    internationalization of law took two aspects: one on the protagonism of new instances of

    autonomous global and international legal production and its influence in the construction

    of the global international legal order. Another aspect is that of regional economic and

  • XVII

    political blocks and of organizations and institutions of humanitarian aid and

    development, under the same prism.

    This debate brings back the old or new problem of interaction between

    International Law and the Constitutional Law in the new global international legal order,

    i.e., the problem of internationalization of national law.

    In fact, some international rules emanating from autonomous international legal

    production organs, within the framework of hegemonic globalization, are imposed

    directly to citizens and States, sometimes without knowledge of such rules, or of its

    existence.

    The action of these organs or agents can be considered as a latching and

    destructive phenomenon within the national legal orders? These rules are imposed on

    citizens and States not only as strategies or means of operationalization of flows, for the

    success of the process of globalization and economic development, but also, sometimes,

    for unclear purposes and within wide range economic interests.

    With the introduction of the new international legal regimes, the relationship with

    National Law has decentralized, thus creating a polycentrism, where each regime seeks to

    draw to itself the protagonism.

    This phenomenon has created conflicts within National Law and between the

    various legal systems. It is noted that each legal regime has its specific rules of

    internationalization of law.

    The National Law, in the face of this diversity, must meet several distinct rules

    and sometimes contradictory. There are times when the same matter is subject to various

    internationalizations by different legal regimes and through distinct rules to that effect.

    The proliferation of various regimes and agents in the internationalization of Law

    has weakened the policies and measures of protection and rule production in peripheral

    States because of the overlap and complexity of the phenomenon.

    In this new global legal order, unfortunately, we are witnessing the phenomenon

    of international legislative hegemony led by the major powers with regard to the demands

    of globalisation.

  • XVIII

    This unusual phenomenon, lived in the global society, is translated into anti-

    constitutional and anti-democratic practices in the creation and internationalization of law

    in peripheral countries.

    The study starts from the analysis of the relationship between international law

    and the constitution of Mozambique and returns to the debate on the problem of the

    relationship between International and National Law, in the framework of the new global

    international legal order.

    Keywords: 1. International Law. 2. Legal pluralism. 3. National law. 4. Globalisation.

    5. Constitution of Mozambique.

  • 1

    INTRODUO

    1. Apresentao do Tema

    O pluralismo jurdico global constitui um fenmeno emergente dentro da

    sociedade contempornea. Este fenmeno plural coevo da prpria socializao

    humana e faz parte da prpria essncia do homem.

    Esta realidade intrnseca ao homem esteve sempre presente na sua convivncia e

    no seu relacionamento com o outro: o ser plural ou o ser multifacetado. Muito embora

    a riqueza humana esteja na sua diferena, esta riqueza tem sido, s vezes, motivo de

    constrangimentos e problemas de coexistncia dentro da sociedade.

    A Antropologia e a Sociologia, muito cedo, se preocuparam em desvendar esta

    forma de ser e estar do homem na sociedade. O Direito como uma realidade social e

    humana surge para estabelecer a interaco entre as vrias formas e manifestaes de ser

    e estar plurais do homem na sociedade.

    O fenmeno pluralismo inicia com a reflexo sobre a etnicidade, passando pelo

    multiculturalismo e desembocando no pluralismo jurdico. Este fenmeno jurdico

    pluralismo jurdico atravessou vrias fases evolutivas na histria do Direito, desde o

    infra-estatal, intra-estatal, supra-estatal, transnacional, internacional e internacional

    global.

    A reflexo sobre o pluralismo jurdico global, embora actual, no uma temtica

    nova no Direito Internacional. Por causa da sua pluralidade, a cincia jurdica dividiu-o

    dentro de cinco temas principais, a saber: o pluralismo jurdico internacional; o

    pluralismo no mbito dos direitos humanos; o pluralismo das ordens jurdicas autnomas,

    privadas e no-oficiais; o pluralismo no mbito das networks governamentais e no-

    governamentais e transnacionais; o pluralismo dentro dos movimentos migratrios.

  • 2

    O tema objecto do nosso estudo, intitulado Direito Internacional e a Constituio

    de Moambique: encontro e desencontro luz do Pluralismo Jurdico Global, no visa

    estudar os cinco temas inerentes ao pluralismo jurdico global. Para aqueles temas j

    existem vrios estudos e com uma vasta literatura como vamos puder mostrar na reviso

    bibliogrfica.

    O tema objecto deste estudo visa, luz do pluralismo jurdico global, apurar como

    a Constituio de Moambique tm-se relacionado com o Direito Internacional. um

    tema circunscrito ao Direito Moambicano com contornos internacionais.

    Esta temtica, dentro da cincia jurdica, enquadra-se dentro da

    interdisciplinaridade, situando-se na fronteira entre o Direito Constitucional e o Direito

    Internacional.

    A emergncia da globalizao econmica impulsionada pelas polticas neo-liberais

    da economia do mercado criou uma nova ordem jurdica internacional global.

    A dinmica desta nova ordem ditou na arena internacional um pluralismo

    policntrico onde o Direito Internacional deixou de estar limitado s questes conexas

    grande poltica internacional.

    Esta evoluo e desenvolvimento do Direito Internacional permitiram a expanso e

    a especializao do Direito Internacional Geral. Este fenmeno deu origem aos novos

    actores de produo normativa autnomos e privados.

    No mbito da globalizao econmica e de acordo com a reconfigurao

    promovida pela expanso e especializao do Direito Internacional, nos ltimos tempos,

    tm-se constatado que diversas esferas da vida dos cidados tm estado a sofrer

    implicaes directas e indirectas de regras emanadas de instncias de produo jurdica

    internacionais e global.

    Num mundo dominado pela globalizao e pelas integraes internacionais e

    regionais polticas, econmicas e jurdicas, o Direito Internacional directa ou

    indirectamente tem estado a impor-se dentro dos ordenamentos jurdicos nacionais.

    Os encontros e desencontros do Direito Internacional e a Constituio de

    Moambique luz do pluralismo jurdico global visa apurar como a produo jurdica

  • 3

    internacional e global tm-se relacionado com o Direito Moambicano e quais so as

    implicaes directas e indirectas destes encontros e desencontros.

    A temtica sobre a relao entre o Direito Internacional e a Constituio de

    Moambique, para o seu enquadramento e a sua percepo luz do pluralismo jurdico

    global, requereu uma anlise sucinta dos conceitos, assim como a caracterizao do

    pluralismo jurdico e do Direito Internacional nas suas diversas vertentes e etapas

    evolutivas. Esta anlise permitiu um enfoque multifacetado de apreciao do Direito

    Moambicano dentro de trs perspectivas: perspectiva do Direito Constitucional;

    perspectiva do Direito Internacional e; perspectiva do Direito da Integrao Regional.

    A relao entre o Direito Internacional e Direito Nacional constitui uma

    problemtica de inegvel relevncia prtica, no mundo dominado pela globalizao

    hegemnica e dentro da nova ordem jurdica internacional global.

    2. Justificao da escolha do Tema

    O Direito Internacional e a Constituio de Moambique: encontro e

    desencontro luz do Pluralismo Jurdico Global o culminar de uma srie de reflexes

    e estudos sobre o pluralismo, a globalizao e a construo do Direito num espao

    jurdico plural e complexo.

    Esta nsia reflexiva sobre este fenmeno jurdico inicia com o estudo sobre

    Minorias tnicas e Direito Cultural nos Pases em Desenvolvimento, aquilo que viria a

    ser a dissertao do seu Mestrado em Direito.

    Depois, na primeira fase do seu Doutoramento em Direito continuou com outras

    vertentes da mesma reflexo, sobre a Europeizao Indirecta da Constituio

    Moambicana, a Legitimao Democrtica da Legalidade Jurdico-Penal na Unio

    Europeia e o Espao Jurdico Global Refractrio ao Espao Jurdico Nacional.

    Constrangido com o fenmeno da criao do Direito Colonial num Pas

    multicultural, Moambique, com a edificao de um Estado Marxista-Leninista e hoje

  • 4

    com a criao de um Estado de Direito Democrtico, para entender os pressupostos das

    vrias crticas internas e externas, primeiro contra o modelo da economia socialista,

    segundo contra o modelo da economia neo-liberal, imperialista e neo-colonial na criao

    do Direito nos pases perifricos.

    Dentro desta problemtica, eis que emerge um novo desafio sobre a relao entre

    o Direito Internacional e a Constituio de Moambique.

    Este desafio inicia com uma inquietao que afecta os cidados moambicanos

    quanto s normas da ajuda humanitria de desenvolvimento, impostas pelas organizaes

    e instituies doadoras ou sujeitos de Direito Internacional.

    Neste desafio, a reflexo visa entender como actuam estas normas em relao a

    um Direito democrtico em construo nos Estados receptores ou beneficirios da ajuda

    humanitria de desenvolvimento, tendo, como exemplo, o caso de Moambique.

    Esta reflexo sobre a relao entre o Direito Internacional e o Direito Nacional

    no nova, remonta aos anos sessenta e setenta, aquando das primeiras independncias

    das colnias, quando os pases em desenvolvimento agiam hostilmente contra as

    Sociedades Transnacionais que eram consideradas agentes do imperialismo e meio de

    dominao da periferia pelo centro do sistema econmico.

    Dentro desta temtica, pode-se observar escritos crticos contra as Instituies de

    Bretton Woods (IBWs), o Banco Mundial (WB) e o Fundo Monetrio Internacional

    (FMI), tais como, por exemplo, para o caso de Moambique: Paz sem benefcios: como

    o FMI bloqueia a reconstruo de Moambique1, The wealth and poverty of nations:

    why some are so rich and some so poor2, Moambique em transio: um estudo da

    histria de desenvolvimento durante o perodo 1974-19923.

    Perante estas e outras reflexes crticas sobre o desenvolvimento poltico e

    econmico, constatou-se a existncia de um vazio no tocante a um estudo sobre o Direito

    1 HANLON, Joseph, 1996, Paz sem benefcios: como o FMI bloqueia a reconstruo de Moambique,

    Maputo, Imprensa Universitria. 2 LANDES, David S. (1999), The wealth and poverty of nations: why some are so rich and some so poor,

    New York, Norton. 3 ABRAHAMSSON, Hans e NILSSON, Anders (1994), Moambique em Transio: um estudo da histria

    de desenvolvimento durante o perodo 1974-1992, Maputo, Padrigu.

  • 5

    Internacional e a Constituio de Moambique que pudesse apurar o grau e a intensidade

    da relao de encontro e desencontro luz do pluralismo jurdico global.

    3. Objectivos

    Pretende-se com o estudo sobre Direito Internacional e a Constituio de

    Moambique: encontro e desencontro luz do Pluralismo Jurdico Global, alcanar os

    seguintes objectivos gerais e especfcos:

    3.1. Objectivos gerais:

    a) apurar como o Direito Internacional est a relacionar-se com o Direito

    Moambicano e quais so as implicaes directas e interectas deste

    encontro e desencontro luz do pluralismo jurdico global;

    b) descobrir uma forma ou um modelo de relacionamento cooperativo entre as

    instncias de produo jurdica internacionais e globais com o Direito

    Moambicano.

    3.1. Objectivos especficos:

    a) aferir se os fundamentos do poder da actuao internacional de Moambique

    traduzidos nos seus diplomas legais, emanam da sua Constituio;

    b) perceber se a vinculao internacional de Moambique regulada

    simultaneamente por normas de Direito Nacional e de Direito Internacional;

  • 6

    c) perceber se a assuno de um compromisso internacional por Moambique

    o resultado da sua deciso voluntria, individual e autnoma e em

    conformidade com o seu Direito Internacional;

    d) perceber a racionalidade das normas internacionais de ajuda humanitria e

    de desenvolvimento como fonte de Direito Internacional na produo

    legislativa interna;

    e) descobrir no contexto da globalizao, como as normas produzidas pelas

    instituies transnacionais, actores privados, networks e multinacionais

    podem exercer uma influncia visvel ou invisvel na regulamentao interna

    de Moambique;

    f) identificar as normas da ajuda humanitria e de desenvolvimento que atravs

    das reformas legislativas esto a ser incorporadas atravs de diplomas

    legislativos no Direito Moambicano;

    g) aferir como as normas emanadas de instncias de produo jurdica

    internacionais e globais que entram de uma forma directa ou indirecta

    fragmentam ou fragilizam o Direito Moambicano;

    h) sugerir um quadro jurdico de acoplamentos estruturais e operativos, entre o

    Direito Internacional e o Direito Nacional que reduza o impacto negativo da

    hegemonia do Direito Internacional e que vai ao encontro dos valores

    constitucionais inalienveis e imprescritveis proteco dos bens jurdicos

    nacionais e supranacionais.

  • 7

    4. Mtodos e tcnicas do Trabalho

    A metodologia de pesquisa cientfica e da elaborao desta tese circunscreveu-se

    dentro dos mtodos e tcnicas de pesquisa bibliogrfica e documental, assim como de

    pesquisa de levantamento nos casos aplicveis.

    As regras ou princpios gerais do mtodo subjacentes a este trabalho seguiram os

    procedimentos apontados por Umberto Eco como se faz uma tese e por Antnio

    Manuel Hespanha como preparar uma dissertao.

    No primeiro momento, fez-se uma reviso bibliogrfica sobre os assuntos

    pertinentes ao tema, tais como pluralismo jurdico, globalizao, Direito Nacional,

    Direito Internacional, constitucionalismo, transconstitucionalismo e democracia.

    Depois, seguiu-se um levantamento do quadro jurdico e institucional, quer

    nacional, quer internacional relacionado com o tema e que constitui o enfoque deste

    estudo. Esta anlise incluiu a legislao nacional e internacional aplicvel em vigor e

    revogada.

    No caso do ordenamento jurdico moambicano, fez-se a consulta da ento

    legislao do Direito Ultramarino Portugus, Boletins da Repblica desde 7 de Setembro

    de 1974 (o Acordo de Lusaka), passando pela Primeira Repblica (1975 1989) at a

    actual, a Segunda Repblica, que inicia com a Constituio de 1990 e de 2004, at aos

    dias de hoje, sendo o marco deste estudo Setembro de 2015.

    A nvel internacional e institucional fez-se a consulta de instrumentos e

    documentos das Instituies e Organizaes afins, disponveis no banco de dados dos

    seus links ou Web, no mbito da poltica internacional de boa governana e de

    transparncia informativa.

    Na fase derradeira da pesquisa recorreu-se a contactos e entrevistas com os

    coordenadores das unidades tcnicas das reformas legislativas e especialistas

    interventivos na elaborao dos diplomas legais, consultores jurdicos internacionais e

    nacionais, governamentais e ou privados, stakeholders envolvidos nas operaes de ajuda

    humanitria e cooperao ao desenvolvimento em Moambique.

  • 8

    Por se tratar de um tema complexo e de divergncias doutrinrias, a discusso da

    tese foi desenvolvida dentro de uma dialctica ascendente e descendente, tendo primado

    pela exposio das ideias ou paradigmas doutrinrios (teses), para depois discutir o

    assunto a partir dos resultados da pesquisa ou referncias concretas as normas

    internacionais integrados na legislao jurdica moambicana.

    A partir das consideraes dos pontos de vista contrrios ou divergentes

    resultantes da pesquisa, apresenta-se as crticas e as posies prprias argumentadas e

    fundamentadas, assim como as concluses, deixando para as notas a indicao das fontes,

    algumas disposies e comentrios que julgamos ser complementares.

    5. Estrutura e Contedo do Trabalho

    O presente trabalho est estruturado em duas partes e composto por sete captulos.

    A Parte I versa sobre Direito Constitucional Internacional e o Pluralismo Jurdico,

    composta por quatro captulos de reviso bibliogrfica, no mbito do pluralismo jurdico

    e globalizao.

    A Parte II apresenta o estudo sobre Direito Constitucional Internacional de

    Moambique, composto por trs captulos.

    O Captulo I faz uma reflexo crtica dentro da reviso bibliogrfica sobre a

    evoluo do pluralismo jurdico geral. Este inicia com a caracterizao do pluralismo

    tnico e scio-antropolgico, entra nas trs variantes da manifestao do pluralismo, a

    saber:

    i) Pluralismo jurdico em contextos coloniais;

    ii) Pluralismo jurdico em contextos ps-coloniais;

    iii) Pluralismo jurdico e a nova ordem jurdica global.

    Dentro desta temtica, como variante entra no realismo de Herbert L. Hart atravs

    da sua construo jurdico-terica aplicvel ao pluralismo jurdico e as ordens jurdicas

    plurais.

  • 9

    O estudo apresenta-se dentro de uma reflexo flutuante em volta dos desafios

    impostos pela globalizao ou mundializao do Direito a des-espacializao do nosso

    viver e do Direito assistindo-se necessidade da construo de um espao jurdico

    global dentro de uma ordem que se pretenda plural sem suprimir os espaos jurdicos

    emergentes e que responda complexidade jurdica do mundo global.

    O Captulo II aborda o debate sobre a globalizao e os Estados ps-nacionais.

    Discute a ideia do Estado/nao e mostra a sua incapacidade de suprir os anseios da

    humanidade. A globalizao hegemnica surge como um novo paradigma, ou seja, cria

    uma nova lgica jurdica contrria da teoria do Direito clssico.

    O Captulo III retrata a emergncia das ordens jurdicas internacionais e o Direito

    Internacional Global. Mostra como a convergncia de factores no campo social, poltico e

    econmico impulsionadas pela fora hegemnica da globalizao fragmentou o Direito

    Internacional e ditou uma nova ordem jurdica internacional.

    Esta fragmentao e mudana de paradigmas foram desencadeadas atravs da

    constituio e fortalecimento de vrios regimes jurdicos internacionais autnomos, a

    multiplicao de rgos de soluo de conflitos internacionais e uma nova reconfigurao

    normativa.

    Esta nova relao jurdica internacional constitui um desafio ideia do Direito

    Internacional Geral e reduz o espao ou seja o frum internacional dos sujeitos de Direito

    Internacional de ento - os Estados.

    O Captulo IV aborda a emergncia dos novos actores ou sujeitos de direito

    internacional. A emergncia e a difuso da nova configurao normativa cujo pressuposto

    a ideia ou o conceito de lex specialis abriram o espao multiplicao dos novos

    regimes jurdicos internacionais autnomos.

    Partindo da lgica da especializao, faz-se uma aproximao dos vrios regimes

    autnomos, tais como: a Lex Mercatria; o Direito Internacional dos Direitos Humanos;

    o Direito Internacional Humanitrio; o Direito Internacional dos Refugiados; o Direito

    Internacional do Desenvolvimento; o Direito de Integrao Regional; o Direito

    Internacional Penal.

  • 10

    Desta aproximao, faz-se uma reflexo crtica em volta dos desafios que esta

    nova configurao jurdica e normativa imps ao Direito Internacional Geral e aos

    Direito Nacionais.

    O Captulo V contextualiza a temtica da segunda parte do trabalho Direito

    Constitucional Internacional de Moambique e aborda a relevncia do Direito

    Internacional no Direito Nacional.

    Este captulo caracteriza a relao entre o Direito Internacional e o Direito

    Nacional e mostra como o clssico problema entre o dualismo e o monismo quanto a

    ideia do Direito ficou superado com o desenvolvimento do Direito Internacional. No

    obstante, mostra os desafios que se colocam a esta relao por causa da hegemonia da

    globalizao econmica.

    Esta hegemonia faz transparecer os benefcios ou malefcios da globalizao que

    acabam por renacionalizar o Direito Nacional quando as normas emanadas de agentes

    transnacionais e networks substituem directa ou indirectamente as normas internas dos

    Estados.

    O Captulo VI aborda o Direito Internacional na Constituio Moambicana. Este

    captulo pode ser considerado o central nesta segunda parte do trabalho, visto que vai

    trazer os resultados do estudo sobre a situao substantiva e material das normas

    internacionais acolhidas no ordenamento jurdico moambicano.

    Ao aproximar o Direito Internacional e a Constituio de Moambique, procurou-

    se aferir o grau e a intensidade do encontro e desencontro entre o Direito Internacional e

    o Direito Nacional. Para o efeito, comeou-se por caracterizar as trs Constituies de

    Moambique, de 1975, 1990 e a de 2004 respectivamente, quanto Poltica Externa e ao

    Direito Internacional.

    Na temtica sobre a incorporao e validade do Direito Internacional, no

    ordenamento jurdico moambicano, mostra-se as fontes e as vias de entrada de normas

    internacionais, a sua hierarquia interna e as contradies e incoerncias dos mecanismos

    internos de incorporao.

  • 11

    O Captulo VII, intitulado Para uma Ideia do Direito Constitucional e

    Internacional na Nova Ordem Jurdica Global, faz uma smula sobre os desafios da

    internacionalizao e da constitucionalizao do Direito na sociedade internacional

    global.

    Este captulo mostra as preocupaes da comunidade internacional quanto

    fragmentao do Direito Internacional ditada pela nova ordem jurdica internacional.

    Equaciona a crise instalada pelo surgimento de novos regimes internacionais autnomos

    (self-contained regimes), da multiplicao de rgos de resoluo de conflitos

    internacionais (tribunais e rgos quase judiciais, autnomos, privados, networks) e da

    nova configurao normativa, o Direito flexvel ou Programtico (soft law).

    A partir da crise discute o problema do paradigma vigente apontando para o novo

    paradigma as solues no mbito da lgica da nova ordem jurdica internacional global.

  • 12

    PARTE I O Direito Internacional e o Pluralismo Jurdico

  • 13

    Captulo I O Pluralismo Jurdico em Geral

    1.1. Consideraes Preliminares sobre o Pluralismo Jurdico

    O pluralismo jurdico um fenmeno intrnseco organizao scio-jurdica dos

    povos. Este fenmeno foi definido como a coexistncia de ordens jurdicas diversas no

    seio do mesmo ordenamento jurdico4.

    Esta caracterizao do conceito do pluralismo jurdico remonta da Idade Mdia

    aquando da romanizao dos direitos dos povos europeus. O fenmeno de recepo do

    Direito Romano pelos povos europeus no foi pacfico. Houve ao longo da Histria do

    Direito um contraste da pretensa omnipotncia do Direito Romano sobre as ordens

    jurdicas dos povos europeus5.

    Nesta mesma poca vrios outros marcos de pluralismo jurdico floresceram sob

    vrios contextos polticos e civilizacionais. Para alm da manifestao comum do

    pluralismo que passou pela multiplicidade de normas no mesmo territrio6, constatou-se

    um predomnio de vrios tribunais ou frum judiciais de acordo com o estatuto dos

    indivduos na sociedade, assim como das matrias em jogo.

    Este fenmeno ditou, por exemplo, a instituio dos tribunais eclesisticos

    Direito Cannico vocacionados para assuntos clericais e que lidavam exclusivamente

    com matrias sobre o casamento e sucesses. No frum comercial, destaca-se a lex

    mercatoria para os mercadores e comerciantes7.

    4 HESPANHA, Antnio Manuel (1997) Panorama Histrico da Cultura Jurdica Europeia, Publicaes

    Europa Amrica, Portugal, p. 92. 5 Trata-se precisamente do domnio do direito das pessoas e dos direitos patrimoniais, de acordo com o

    conspecto feito por Antnio Manuel Hespanha, in Panorama Histrico da Cultura Jurdica Europeia, op. cit. p.90. 6 Deu-se a coexistncia de vrias normas jurdicas, tais como: costumes locais, Direito Costumeiro geral

    alemo, direito feudal, lex mercatria, Direito Cannico, Direito Romano revisto. Vide, TAMANAHA, Brian Z

    (2008) Understanding Legal Pluralism: Past to Present, local do Global, in Sydney Law Review, Vol. 30, p. 377. 7TAMANAHA, Brian Z (2008) Understanding Legal Pluralism: Past to Present, local do Global, op.

    cit. p. 377.

  • 14

    De acordo com a classificao de Marcelo Neves, o pluralismo jurdico

    manifesta-se dentro de quatro variantes: o pluralismo institucionalista; o pluralismo

    antropolgico; o pluralismo sociolgico; e o pluralismo ps-moderno8.

    A classificao didctica do pluralismo jurdico feita de acordo com os perodos

    da sua evoluo e desenvolvimento: o pluralismo jurdico clssico, aquele que emergiu

    e desenvolveu-se no perodo e contexto colonial e ps-colonial, e o pluralismo jurdico

    moderno, aquele que surgiu dentro das sociedades capitalistas.

    O fenmeno emergente da nova ordem jurdica da sociedade mundial a

    globalizao fez do pluralismo jurdico um tema, um objecto e uma matria de grande

    interesse e muita importncia para os grandes estudiosos de ento9.

    Este fenmeno deu lugar a emergncia do pluralismo jurdico global,

    caracterizado pela coexistncia entre ordens jurdicas locais, nacionais, transnacionais e

    supra-estatais10

    .

    Brian Z. Tamanaha, ao caracterizar o fenmeno do pluralismo jurdico, na

    sociedade global, identifica a coexistncia de seis principais ordens jurdicas ou sistemas

    normativos, a saber: i) o sistema jurdico oficial; ii) o sistema normativo cultural -

    costumeiro; iii) o sistema normativo cultural - religioso; iv) o sistema normativo

    capitalista - econmico; v) o sistema normativo funcional; vi) o sistema normativo

    cultural comunitrio11

    .

    Gunther Teubner, um dos mais influentes teorista do pluralismo jurdico em

    contexto global, entende que o Direito j no gerado pelos Estados, mas auto cria-se a si

    8 NEVES, Marcelo, Do Pluralismo Jurdico miscelnea social: O problema da falta da identidade das

    esferas de juridicidade perifrica e suas implicaes na Amrica Latina, in Direito e Sociedade, 29 de Maio de 2010,

    in http://direitoufpr2.blogst.com/2010/05direito-e-sociedade-texto-do-pluralismo.html 9 De entre outros estudiosos na matria pode-se destacar: Macaulay, 1983; Griffiths, 1986; Merry,

    1988,1992; Benda-Beckmann, 1988, 1991, 2001, 2007; Teubner, 1992; Gessner; Anders, 2003; Tamanaha, 1993,

    2008, Twining, 2009, 2010, Santos, 2002, Hespanha, 1997, 2006; Neves, 2009. 10 Para esta caracterizao veja SANTOS, Boaventura de Sousa (2003) O Estado Heterogneo e o

    Pluralismo Jurdico, in Conflito e transformao social: Uma paisagem das justias em Moambique, Edies

    Afrontamento, Porto, p. 55 e HESPANHA, Antnio (1999) O Caleidoscpio do Direito, O Direito e a Justia nos

    dias e no mundo de hoje, 2 Edio, reelaborada, Almedina, Coimbra, p. 28. 11 TAMANAHA, Brian Z (2008) Understanding Legal Pluralism: Past to Present, local do Global,

    op. cit. p. 397.

    http://direitoufpr2.blogst.com/2010/05direito-e-sociedade-texto-do-pluralismo.html

  • 15

    mesmo. Portanto, o centro legislativo transferiu-se dos Estados para a periferia dos

    actores transnacionais12

    .

    John Griffith, dentro da mesma linha, considera o pluralismo jurdico como

    atributo da esfera social e no do Direito e nem do sistema jurdico13

    .

    O pluralismo jurdico, de acordo com a sua emergncia e a dinmica crescente ao

    longo da Histria do Direito, tornou-se hoje um conceito polissmico e fonte de clivagens

    interdisciplinar.

    Embora o fenmeno do pluralismo jurdico no seja novo, a sua conceptualizao

    e caracterizao comeou a ganhar ateno com os estudos da antropologia jurdica nos

    anos setenta do sculo XX. Dez anos mais tarde, o fenmeno do pluralismo jurdico

    estende-se para os estudos scio-jurdicos por se entender que o Direito para alm de ser

    um fenmeno jurdico uma realidade eminentemente humana e social.

    Boaventura de Sousa Santos, nesta relao ou interao dialctica entre o Direito e

    a sociedade, coloca no conceito de pluralismo jurdico atributo conceptual chave na viso

    do Direito dentro da ps-modernidade14

    . De acordo com o autor, as sociedades ps-

    modernas so, em termos scio-jurdicas, constelaes jurdicas e circulam nelas no um

    mas vrios sistemas jurdicos e judiciais15

    .

    O conceito de pluralismo jurdico nos estudos scio-jurdicos ganhou uma

    popularidade e expandiu-se para vrios ramos das cincias jurdicas, por exemplo, Direito

    Comparado, Cincias Jurdico-Polticas, Direito Internacional (Econmico, Penal,

    Humanitrio, Humano e Regional), Filosofia do Direito, etc.16

    12 TEUBNER, Gunther (1996) Global Bukowina: legal pluralism in the world society, in Global Law

    Without a State, ed. G Teubner, Dartmouth, Althershot 1997, 3-28, in

    http://www.jura.unifrankfurt.de/42852872/Bukowina_english.pdf , acedido no dia 20.01.15. 13 GRIFFITHS, John, What is legal pluralism?, Journal of Legal Pluralism, No. 24, (1986), p.38, in

    http://commission-on-legal-pluralism.com/volumes/24/griffiths-art.pdf , acedido no dia 20.01.15 14 SANTOS, Boaventura de Sousa (1987) Law: A Map of Misreading. Towards a Postmodern Conception

    of Law. 1987, Journal of Law and Society, No 14, p. 379. 15 SANTOS, Boaventura de Sousa (2003) O Estado Heterogneo e o Pluralismo Jurdico op. cit. pp. 48 e

    52. 16 TAMANAHA, Brian Z. (2008) Understanding legal pluralism: past to present, local to global. Sydney

    Law Rev. 30, p. 390.

    http://www.jura.unifrankfurt.de/42852872/Bukowina_english.pdfhttp://commission-on-legal-pluralism.com/volumes/24/griffiths-art.pdf

  • 16

    A expanso e o desenvolvimento do fenmeno do pluralismo jurdico tem

    contribudo para a percepo e caracterizao do Direito na ps-modernidade. Todavia,

    estes ganhos tm sido nublados com fortes clivagens no mbito acadmico quanto sua

    definio e a sua abrangncia.

    De facto, olhando para a expanso e evoluo desta temtica nas cincias afins,

    cada rea do saber v e interpreta este fenmeno usando as suas prprias ferramentas e

    dentro da sua viso e abordagem especfica.

    Portanto, constata-se que, perante o mesmo objecto, vrias designaes ou

    caracterizaes so atribudas a este fenmeno: pluralismo jurdico; pluralismo de normas

    ou regras; pluralidade de espaos jurdicos, pluralismo de ordens jurdicas e outras.

    Simon Roberts, ao reconhecer os ganhos que o pluralismo jurdico trouxe

    contemporaneidade, dada a sua expanso e coexistncia, destaca algumas clivagens sobre

    esta temtica, apontando o ressurgimento de problemas que outrora ensombraram a

    percepo deste fenmeno, por exemplo, quanto a conceptualizao, a saber:

    i) o retorno agonizante do problema sobre a definio do pluralismo

    jurdico;

    ii) o problema da conceptualizao das pluralidades entre as valncias,

    esfera/domnio/ordem/discurso/sistema geradas pela coexistncia destas

    no espao social;

    iii) a falta de uma reflexo comparativa genuna sobre o pluralismo

    jurdico17

    .

    O problema do pluralismo jurdico como conceito cientfico emerge aquando do

    desenvolvimento do positivismo jurdico que reduziu o Direito a uma pura voz de

    comando cuja fonte legitimadora era o soberano, grundnorm ou regras de

    reconhecimentos.

    17 ROBERTS, Simon, Against legal pluralism some reflections on the contemporary enlargement of the

    legal domain, Journal of Legal Pluralism, No.42, 1998, p.97.

  • 17

    O positivismo jurdico imps uma filosofia poltica que culminou com a

    hegemonia do Estado constitucional liberal, onde o Direito passou a ser o Direito do

    Estado ou propriedade exclusiva deste.

    Esta posio positivista do Direito que vincou nos seculos XIX e XX, encontrou

    uma reao contrria, atravs do movimento anti-positivista cujos pressupostos empricos

    estavam alicerados nos estudos da sociologia e antropologia jurdica.

    Eugnio Ehrlich, em oposio viso hegemnica do exclusivismo jurdico do

    Estado, desloca a fonte legitimadora do Direito para a sociedade. De acordo com este

    autor, o centro de gravidade do desenvolvimento do Direito na nossa como em todas as

    pocas, no reside nem na legislao nem na cincia jurdica ou na jurisprudncia, mas

    na prpria sociedade18

    .

    Esta posio que coloca o centro do Direito na sociedade, contrapondo teoria

    positivista, lana-nos para o problema de definio, ou seja, do que se deve entender por

    Direito.

    Vrias foram as definies produzidas em volta do conceito de Direito, na

    tentativa de uma aproximao sobre a problemtica do pluralismo jurdico. Das

    definies apresentadas neste mbito destaca-se, por exemplo, a definio antropolgica

    do Direito legada por Bronislaw Malinowski que define o Direito referindo que is the

    specific result of the configuration of obligations, which makes it impossible for the

    native to shirk his responsibility without suffering for it in the future19

    .

    John Griffith, por seu lado, define o Direito como the self-regulation of a semi-

    autonomous social field20

    . No obstante, a teoria positivista entende que o Direito um

    18 EHRLICH, Eugen (1986) Fundamentos da Sociologia do Direito, Braslia, Editora Universidade de

    Braslia, p.28. 19 MALINOWSKI, Bronislaw (1926) Crime and Custom in Savage Society, Harcout, Brace and Company,

    INC, London, p.59. O autor define Direito Civil como a body of a binding obligation, regarded as a right by one

    party and acknowledged as the duty by the other, kept on force by a mechanism of reciprocity and publicity inherent

    in the structure of their society, supra .p. 58 20 Griffiths, J. (1986) `What is legal pluralism?, Journal of Legal Pluralism, 24, p.38.

  • 18

    conjunto de proposies normativas hierarquicamente unificadas que dependem de um

    comando soberano21

    .

    Boaventura de Sousa Santos, a este propsito, partindo da tradio sociolgica e

    antropolgica jurdicas e da filosofia do direito anti-positivista define o Direito como

    um corpo de procedimentos regularizados e de padres normativos, com base nos quais

    uma terceira parte previne ou resolve litgios no seio de um grupo social 22

    .

    Portanto, da definio do conceito de Direito podia-se aferir, se o fenmeno scio-

    jurdico de esferas sociais auto-reguladas constante na sociedade pode ou no ser

    designado cientfico e juridicamente por pluralismo jurdico.

    Para o positivismo jurdico alicerado na teoria jurdico-poltica liberal do estado

    moderno, s existe um nico Direito e a unidade do Estado pressupes a unidade do

    Direito.

    Para os anti-positivistas, dentro da teoria realista do Direito, existem vrios

    sistemas jurdicos e judiciais na sociedade ou seja a sociedade est estruturada em vrias

    esferas sociais e cada uma compreende uma ordem jurdica.

    De acordo com os posicionamentos tericos sobre o conceito de Direito acima

    vincadas, antagonicamente, no se vislumbra uma soluo unnime sobre se existe ou

    no e o que o pluralismo jurdico.

    No obstante, a verdade s uma: existem na sociedade vrias normas ou regras

    autnomas ou privadas de regulao de grupos, comunidades ou sociedades ao nvel

    infra, intra, supra e transnacional.

    Se estas normas ou regras devem ser designadas por Direito ou no e, se formam

    ordens jurdicas ou no, constitui um problema conceptual e de discusso terica.

    Vrias sugestes ou aproximaes foram apresentadas para se conseguir um

    consenso ou uma soluo sobre este problema conceptual e da existncia do pluralismo

    jurdico.

    21 Sobre a teoria positivista destaca-se: HOBBES, Thomas (1651) Leviathan; AUSTIN, John (1832) The

    Province of Jurisprudence Determined; (KELSEN, Hans (1949) Teoria Geral do Direito e do Estado; HART, H. L.

    A. (1961) The Concept of Law. Vide, Griffiths, J. (1986) What is legal pluralism?, Journal of Legal Pluralism, 24,

    p.3. 22 SANTOS, Boaventura de Sousa (2003) O Estado Heterogneo e o Pluralismo Jurdico op. cit. p.50.

  • 19

    Brian Tamanaha, quanto ao conceito do Direito, parte do pressuposto de semi-

    autonomous social field, que reconhece nela a capacidade de produo e implementao

    das regras jurdicas. Estas regras de acordo com Brian Tamanaha geram na sociedade

    vrias esferas e estas, por sua vez, vrias ordens jurdicas. Conclui este autor que o

    pressuposto da esfera social seria o melhor critrio para identificar ou delimitar o Direito

    na perspectiva do pluralismo jurdico23

    .

    Outras aproximaes foram tomadas um tanto quanto na mesma linha, por

    exemplo, a posio de Marc Galanter que define o Direito como concrete patterns of

    social ordering to be found in the variety of institutional settings24

    . Gordon R

    Woodman, por outra, depois de um profundo e excelente debate sobre o pluralismo

    jurdico, na sua obra Ideological Combat and Social Observation: Recent Debate About

    Legal Pluralism (1998), conclui que o Direito deve ou seja must be that law covers a

    continuum which runs from the clearest form of state law through to the vaguest forms of

    informal social control25

    .

    Brian Z Tamanaha, ao se posicionar sobre o problema, parte do credo do

    pluralismo jurdico de que o Estado no possui o monoplio do Direito. Existem vrias

    ordens normativas na sociedade que no esto ligadas ao Estado e que apesar de tudo so

    Direito. Estas ordens jurdicas no estatais, que brotam e se desenvolvem dentro do

    sistema jurdico estatal exercem um controlo social, criam normas e atravs das suas

    instituies implementam-nas26

    .

    Esta realidade pode ser exemplificada pela presena hoje na sociedade de Direito

    Estadual, Direito Internacional clssico, Direito Comunitrio ou de Integrao Regional,

    Direito Transnacional, lex mercatria, ius commune, Direito Costumeiro, verses de

    23 TAMANAHA, Brian Z (2008) Understanding Legal Pluralism: Past to Present, local do Global p.

    393. 24

    GALANTER, Marc, Justice in Many Rooms: Courts, Private Ordering, and Indigenous Law (1981) 19 Journal of Legal Pluralism 1 at 1718.

    25 WOODMAN, Gordon R, Ideological Combat and Social Observation: Recent Debate About Legal

    Pluralism (1998) 42 Journal of Legal Pluralism 21, P. 45 26 TAMANAHA, Brian, The Folly of the Social Scientific - Concept of Legal Pluralism, in Journal of Law

    and Society, No.20, 1993, p. 193.

  • 20

    Direitos Religiosos, Direito Natural, Direito Tradicional, Direito dos grupos ou minorias

    tnicas, etc.

    Esta constatao leva a admitir que o Direito positivo s um tipo de ordem

    normativa ou regulatria. Assim, dentro desta logica, pode-se concluir que todas as

    ordens normativas ou reguladoras so Direito.

    Esta assupo levou alguns autores, de entre tantos pode-se destacar, John

    Griffiths (2005), Brian Z Tamanaha (2008) e Boaventura de Sousa Santos (2003), a

    questionarem-se do porqu que este fenmeno jurdico, assim caracterizado, no se

    designa por pluralismo normativo ou regulatrio no lugar de pluralismo jurdico?

    John Griffiths, a partir desta assupo conclui que a expresso pluralismo jurdico

    pode e deveria ser reconceptualizada, passando assim a ser designada por pluralismo

    normativo ou pluralismo dentro do controlo social27

    .

    John Griffiths, ao admitir esta caracterizao, transpe a barreira terica e do

    paradigma clssico da imprescindibilidade da formulao do Direito dentro de uma

    categoria cientfica. Tendo em conta as vrias manifestaes do Direito dentro da

    sociedade, estas no partilham as mesmas caractersticas e no possvel encontrar um

    denominador comum ou uma unidade jurdica que permita categorizar ou definir o

    Direito.

    Brian Z Tamanaha designa o Direito como folk concept, isto , o Direito

    aquilo que as pessoas dentro de um grupo social vm e rotulam por Direito28

    .

    Neste contexto, Boaventura de Sousa Santos vai mais longe ao argumentar que

    esta conotao normativa pode induzir em erro, devendo, portanto, evitar-se. O autor vai

    buscar os exemplos trgicos vividos nos Estados colonias e do apartheid na frica do Sul

    que enfermam um pluralismo normativo reacionrio, discriminatrio, segregacionista e

    racista29

    para sugerir, de preferncia, a expresso pluralidade de ordens jurdicas, no

    27 GRIFFITHS, John, The Idea of Sociology of Law and its Relation to Law and to Sociology, Current

    Legal Issues, No. 49, 8, 2005, pp. 63 e 64. 28 TAMANAHA, Brian Z (2008) Understanding Legal Pluralism: Past to Present, local do Global p.

    396. 29 SANTOS, Boaventura de Sousa (2003) O Estado Heterogneo e o Pluralismo Jurdico op. cit. p.53.

  • 21

    lugar de pluralismo jurdico, sempre quando se pretende caracterizar questes

    tradicionalmente associadas a este fenmeno.

    O problema da definio do pluralismo jurdico que desembocou no problema

    jurdico-filosfico sobre o conceito do Direito no encontrou ainda o seu desfecho.

    Brian Z Tamanaha, perante este impasse sobre a definio do pluralismo jurdico,

    retrata-se admitindo que o conceito de pluralismo jurdico no definvel e nem

    necessrio. O autor justifica a sua posio ao concluir que o conceito do pluralismo

    jurdico requer que a ordem ou o sistema jurdico seja claramente identificado.

    Para o efeito, o conceito do Direito deve ser definido com toda a sua preciso. No

    obstante, o pluralismo jurdico rejeita o conceito de Direito que se circunscreve ao Direito

    Estadual. Consequentemente, ao admitir-se o Direito no estadual entra-se para o campo

    oposto ou para a face oposta da moeda que consiste na impossibilidade de definir

    precisamente o Direito30

    .

    Portanto, ao se constatar, por um lado, a impossibilidade de definir o conceito de

    Direito que possa congregar os requisitos do pluralismo jurdico e, por outro lado, a

    existncia de vrias ordens jurdicas dentro do mesmo espao constitui um facto. Da que

    a soluo no pode passar por uma simples abdicao, mas sim por uma requalificao

    destes dois conceitos.

    De facto, ao encararmos esta realidade, percebe-se que estes conceitos evoluram

    no tempo e no espao. Pelo que, devem ser caracterizados e definidos dentro do novo

    paradigma da ordem jurdica mundial.

    30 TAMANAHA, Brian, The Folly of the Social Scientific - Concept of Legal Pluralismop.cit. p. 193

  • 22

    1.2. Da Emergncia e dos Desafios do Pluralismo tnico e Scio-Antropolgico

    A reflexo sobre a etnicidade no mundo contemporneo entrou em voga e ganhou

    a centralidade nos estudos scio-antropolgicos. Para a Sociologia e Antropologia, a

    etnicidade hoje um tema incontornvel e tem sido uma das premissas na percepo do

    fenmeno scio-antropolgico.

    O debate sobre a etnicidade desenvolveu-se e projectou-se dentro de trs grandes

    vertentes: i) a natureza das relaes tnicas; ii) o papel dos indivduos no seu grupo; iii)

    as polticas nacionais e internacionais de proteco das identidades das diferentes

    etnias31

    .

    O Direito como uma realidade social e humana chamado para este debate scio-

    antropolgico dentro destas trs vertentes. Na verdade, quando se fala de etnias, est-se

    perante grupos de pessoas culturais32

    cujas caractersticas as diferenciam de outros

    grupos dentro do mesmo espao social. Estes grupos culturais so atravessados por uma

    rede de relaes humanas, sociais e jurdicas complexas e difusas.

    Este fenmeno complexo e difuso leva-nos a um novo fenmeno caracterizado por

    um multiculturalismo, ou seja, por um pluralismo tnico cultural que apela ao pluralismo

    de ordens normativas ou jurdicas.

    31 Adaptado de Thomas Hyllard Eriksen, http://www.uio.no/~geirthe/ethnicity.html , acedido no dia

    30.12.2014. 32 Entre muitas definies da cultura a mais cotada dentro da Sociologia, Antropologia e Filosofia tem sido

    aquela proposta por Edward Taylor (1832-1917). Cultura pode ser definida como um todo complexo que envolve

    conhecimento, crena, arte, moral, direito, costume e outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem como

    membro de uma sociedade in BARROS LARAIA, Roque, Cultura um Conceito Antropologico, 19 Edio, Zahar

    Editor, Rio de Janeiro, in http://www.tokstok.com.br/premio/imagens/prof_eddy4.html , acedido no dia 10.10.2013.

    Entretanto, o Direito cultural como Direito Humano passou por vrias etapas ou fases nos tratados internacionais e

    pode ser considerado como o pressuposto a partir do qual foram criadas todas as provises das trs geraes de

    direitos. O Direito cultural passa por direito individual, Direitos da minoria ou grupo at Direito de um povo. Trs

    caractersticas distintas podem ser retiradas no conceito do direito cultural: primeiro, reconhecido como direito de

    preservar e desenvolver a cultura; segundo, como direito relacionado com a identidade cultural; e finalmente, como

    o Direito de no imposio da outra cultura. Por outro lado, a evoluo do Direito cultural trouxe nova concepo de direitos, os chamados direitos culturais da terceira gerao, cujos instrumentos foram estabelecidos pela Declarao

    de Princpios Internacionais da Cooperao Cultural da UNESCO, Carta Africana dos Direitos Humanos e dos

    Povos e a Declarao da Arglia. Estes direitos podem ser designados por direitos de preservar e desenvolver a

    cultura; direitos das minorias sobre a identidade e herana cultural; o direito dos povos sobre a sua prpria arte,

    histria e cultura; direito ao usufruto.

    http://www.uio.no/~geirthe/ethnicity.htmlhttp://www.tokstok.com.br/premio/imagens/prof_eddy4.html

  • 23

    O Direito, atravs da sua dimenso social e antropolgica, entrou cedo neste

    debate com o intuito de responder a este fenmeno jurdico emergente. Todavia, ao longo

    da Histria, como se pode constatar, as respostas dadas pelo Direito a estes problemas

    estiveram aqum da evoluo destas realidades scio-jurdicas33

    . O positivismo jurdico

    fez vista grossa a este fenmeno e realidade ao reconhecer a existncia de um nico

    espao social o Estado.

    Este dogmatismo jurdico, ao fazer coincidir o espao jurdico com o Estado,

    fechou a possibilidade natural e espontnea da criao das normas dentro dos grupos

    culturais. No obstante, cedo, este dogmatismo jurdico foi superado pela prpria

    dinmica social e geopoltica mundial.

    O Direito no podia excluir-se do fenmeno scio-poltico emergente depois da

    Segunda Guerra Mundial.

    A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado e, consequentemente, a

    Declarao Universal dos Direitos Humanos to cedo despertaram o homem razo e

    criaram uma nova conscincia no cidado e nos povos. Grande parte dos conflitos, depois

    da Segunda Guerra Mundial, de origem tnica e circunscrevem-se a um mesmo espao

    nacional.

    Os conflitos que proliferam nos espaos nacionais caracterizam-se na sua maioria

    por guerras civis, tribais e de fundamentalismo religioso. O fenmeno mais preocupante

    que se assiste hoje nos espaos nacionais est relacionado com os conflitos pacficos de

    reclamao, no s de uma identidade nacional34

    mas at de sexual dissidente.

    Assiste-se hoje um novo fenmeno que caracterizado pela resistncia e

    secundarizao do Direito estatal nas relaes quotidianas quer quanto ao comrcio, quer

    na resoluo de conflitos de ndole diversa.

    33 HESPANHA, Antnio (1999) O Caleidoscpio do Direito, O Direito e a Justia nos dias e no mundo de

    hoje, 2 Edio, reelaborada, Almedina, Coimbra. p. 28. 34 Podemos aqui, a ttulo de exemplo, citar o conflito entre os utus e tutsis, a luta dos quebequianos no

    Canad.

  • 24

    Este fenmeno no novo, pode ser elucidado com a histria mercantil na Idade

    Mdia, quando se constatava que certos territrios europeus tinham simultaneamente em

    curso diversas moedas, correspondendo a cada espao social um espao jurdico.

    A etnicidade como um fenmeno jurdico ganhou uma nova vertente ao revestir-se

    de uma roupagem nova nas sociedades contemporneas e globalizadas.

    A etnicidade, hoje, deixa de ser caracterizada s pela componente cultural quando

    esta entra como forma alternativa de vida emergente dentro da sociedade liberal e

    globalizada.

    Hoje, constata-se a existncia no s de grupos culturais mas tambm de grupos

    particulares que no podem ser caracterizados s pela cultura, tais como: associaes de

    ndoles diversas, classes sociais, os movimentos feministas, categorias etrias,

    ecologistas, empresas, etc.

    As sociedades so confrontadas com grupos de forma e volume muito diversos

    na linguagem de Carbonnier35

    . Estes grupos criam as suas prprias normas de

    relacionamentos.

    O debate instaurado pelo fenmeno da etnicidade multicultural gerou em pleno

    sculo XX um irracionalismo liberal que colocou em crise a unidade instaurada pelo

    racionalismo das codificaes que outrora tinham suplantado o pluralismo da Idade

    Mdia.

    Hoje, tornou-se irracional a tentativa de ofuscar o pluralismo tnico cultural. A

    tentativa neo-racionalista de restaurar a unidade do sistema jurdico atravs da criao de

    um novo sistema jurdico global afigura-se impossvel e cai num ilogismo.

    Pode-se constatar que o Direito, ao tentar racionalizar ou harmonizar as vrias

    ordens jurdicas dentro de um sistema globalizado, deixa ficar de fora vrios institutos

    no racionalizveis.

    A unidade na diversidade que se pretende instaurar est longe de ser alcanada,

    pelo facto de o diverso no poder ser qualificado como verdadeiro Direito e, na

    35 CARBONNIER, Jean (1979) Sociologia Jurdica, Livraria Almedina, Coimbra, p.211.

  • 25

    linguagem de Carbonnier, este s pode ser, quando muito, designado por sub-direito36

    .

    Portanto, no se pode considerar o jurdico e o infra-jurdico como unidade na

    diversidade porque no so da mesma natureza e no se pode tratar de igual para igual e

    nem de diverso para diverso.

    O racionalismo jurdico unificador que acabou desembocando no positivismo

    jurdico secundarizou o pluralismo ao tratar o fenmeno multicultural como um simples

    problema de fontes, de sistemas ou de famlias jurdicas.

    A evoluo das formas tradicionais das organizaes sociais alimentou o sistema

    monopolista dos feudos que desembocaram no sistema monrquico. Por outro lado, a

    criao dos Estados nacionais (sculo XVI ao sculo XVIII) foram alicerados dentro

    destas novas polticas e formas de organizao social que s podiam ser justificadas e

    asseguradas dentro de uma filosofia monista e dogmtica.

    Esta nova filosofia emergente centrou-se no problema das fontes de criao de

    Direito e do poder legiferante, ou seja, no problema do legislador constituinte. Esta

    realidade legitimou e projectou o governo jacobino e de centralizao napolenica.

    Embora esta realidade no tenha a ver com o problema da essncia do Direito37

    ,

    mas com a poltica, acabou por ditar uma doutrina dogmtica e monista da criao do

    Direito que serviu de suporte e escudo na manuteno do Estado/nao, at aos dias de

    hoje.

    Com a derrocada do Estado/nao, causada pela fragilidade dos seus sistemas ou

    modelos e por no ter conseguido produzir os valores almejados pela civilizao e pelos

    cidados no geral (a segurana, a justia e o bem-estar social)38

    , tornou-se insustentvel e

    ilgico pensar o Direito numa perspectiva dogmtica liberto da sua prpria fonte

    geradora.

    36 Ibidem, p. 220. 37 Ibidem, p. 215. 38 Peter Bandura foi contundente ao afirmar que o princpio motor e a legitimidade da Unio resultam do

    facto de o Estado, pela mera mobilizao dos seus recursos vitais, ser incapaz de salvaguardar e garantir a liberdade,

    justia, o bem-estar, devido ao desenvolvimento econmico e poltico da Europa e as relaes globais. Vide,

    BANDURA, Peter (2004) A identidade nacional dos Estados membros na constituio da Europa Uma

    Constituio para a Europa, Almedina, p.74.

  • 26

    O poder legiferante e constituinte atribudo ao Estado/nao transforou-se quase

    num mito. O poder legiferante est hoje concentrado nos grupos particulares. Esta

    realidade faz com que o debate se centre no pluralismo tnico cultural, onde se questiona

    se um grupo particular que forma um espao social constri tambm um espao jurdico?

    A falta de um debate racional e assente na realidade dos factos fez com que o

    Direito ao longo dos tempos no pudesse responder adequadamente este fenmeno. Por

    outro lado, a poltica integracionista que caracterizou o Direito no apogeu do positivismo

    jurdico (que