Post on 10-Jan-2016
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Por que existem to poucos anarquistas na academia?
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
David Graeber
Esta uma questo pertinente j que enquanto filosofia poltica, o anarquismo de fato est crescendo
neste momento. Anarquistas ou movimentos inspirados pelo anarquismo esto surgindo em todos
os cantos; os princpios tradicionais do anarquismo - autonomia, associao voluntria, autogesto,
ajuda mtua, democracia direta - esto na base organizacional do movimento antiglobalizao, assim
como em movimentos radicais em todos os lugares. Revolucionrios no Mxico, Argentina, ndia e
demais lugares, tm cada vez mais deixado at mesmo de falar sobre tomar o poder e comeou a
germinar entre eles ideais radicais distintos sobre qual seria o significado da revoluo. A maior parte
das pessoas assume abertamente que tem receio de empregar a palavra anarquista em suas
prticas. Mas como Barbara Epstein recentemente colocou, o anarquismo de longe tomou o lugar do
marxismo nos movimentos sociais dos anos 60: mesmo aqueles que no se consideravam
anarquistas perceberam que teriam que se posicionar em relao ao anarquismo e recorrer a suas
ideias.
Ainda assim, todo este fenmeno no tornou-se alvo de nenhuma reflexo dentro da academia. A
maior parte dos acadmicos parece ter apenas uma ideia vaga do que que o anarquismo defende;
ou o reduz a esteretipos que apenas evidenciam sua prpria ignorncia (Organizao anarquista!
Mas isso no uma contradio em termos?). Nos Estados Unidos existem vrias centenas de
acadmicos marxistas das mais variadas linhas, mas dificilmente encontramos algumas dzias de
especialistas que se considerem anarquistas.
Ento seria a academia um espao de exceo da ampliao do anarquismo? possvel. Talvez em
alguns anos a academia seja amplamente ocupada por anarquistas. Mas no estou esperando para
ver. Parece que o marxismo tem uma afinidade com a academia que o anarquismo nunca ter. E foi,
no final de contas o nico grande movimento social inventado por um Ph.D., mesmo que depois
tenha se tornado um movimento que pretendia se vincular classe trabalhadora. A princpio a maioria
dos relatos histricos a respeito do anarquismo sugerem que sua origem seria basicamente similar,
o anarquismo teria surgido como fruto das cabeas de certos pensadores do sculo XIX
Proudhon, Bakunin, Kropotkin, etc.- e depois inspiraria as organizaes da classe trabalhadora,
passaria a envolver-se em lutas polticas, dividida em seitas... O anarquismo, nesse tipo de relato
comum, normalmente aparece como o primo pobre do Marxismo, teoricamente malformado, mas
com paixo e sinceridade, compensado por algumas mentes. Porm, na melhor das hipteses, a
analogia algo forada. Os "pais-fundadores" no se pensavam enquanto inventores de algo novo.
Os princpios bsicos do anarquismo - auto-organizao, associao voluntria, ajuda mtua - faziam
referncia a formas de comportamento humanos que se pensava existir desde o incio da
humanidade. O mesmo vale para a rejeio ao Estado e a todas as formas de violncia estrutural,
desigualdade, ou dominao (anarquismo significa literalmente "sem governantes"), inclusive para a
premissa de que todas essas formas esto de alguma forma relacionadas e reforam umas as outras.
Nada disso foi apresentado como uma doutrina brilhantemente nova. E de fato no o era: podemos
encontrar registros de pessoas defendendo posies similares por toda a histria - ainda que haja
razo para acreditar que, em grande parte dos momentos histricos e lugares, tais opinies fossem
as menos provveis de terem sido colocadas no papel. Estamos falando, ento, menos de um corpo
terico do que de uma atitude, ou talvez, algum poderia dizer, de uma f: a rejeio de certos tipos
de relaes sociais, a confiana de que outras relaes sociais seriam muito melhores na
constituio de uma sociedade e a crena de que tal sociedade poderia de fato vir a existir.
Mesmo se compararmos as escolas histricas do marxismo e do anarquismo, podemos perceber
que lidamos com projetos completamente distintos. Escolas marxistas possuem autores. Assim como
o Marxismo veio da cabea de Marx, temos os Leninistas, Maostas, Trotskistas, Gramscianos,
Althusserianos... (Note que a lista comea com chefes de estado e desloca-se, sem nenhuma
costura, at professores franceses). Pierre Bourdieu percebeu, certa vez, que, se o campo
acadmico um jogo no qual estudiosos lutam pelo domnio, ento voc sabe que ganhou quando
outros estudiosos comeam a pensar sobre como fazer de seu nome um adjetivo. E ,
presumivelmente, para preservar a possibilidade de ganhar o jogo que os intelectuais insistem, ao
discutir entre eles, e em dar continuidade a este tipo de teoria histrica de Grandes Homens, que
rejeita qualquer outro contexto: as ideias de Foucault, assim como as de Trotsky, nunca so tratadas
como o produto de um certo meio intelectual - como algo que emergiu de conversas infindveis e
argumentos envolvendo centenas de pessoas - mas sempre como se tivessem emergido da
genialidade de um homem singular (ou, ocasionalmente, de uma mulher). E tambm no que a
poltica marxista tenha se organizado como uma disciplina acadmica ou que tenha se tornado um
modelo para a maneira como os intelectuais radicais - ou, cada vez mais, todos os intelectuais -
tratam a si mesmos; ao invs disso, ambas se desenvolveram uma depois da outra. A partir da
perspectiva da academia, isso levou a muitos resultados salutares - o sentimento de que deveria
haver alguma centralidade na moral, de que as preocupaes acadmicas deveriam ser relevantes
para a vida das pessoas - porm, tambm levou a muitos resultados desastrosos: transformou muito
do debate acadmico numa pardia da poltica sectria, com cada um tentando reduzir o discurso
do outro a caricaturas ridculas de forma a declar-las no somente erradas, mas tambm malficas
e perigosas - mesmo que o debate geralmente se desenrole em uma linguagem to arcaica que
quem no puder bancar sete anos de graduao no capaz de saber que o debate est de fato
acontecendo.
Agora considere as diferentes escolas do anarquismo. H anarcossindicalistas, anarcocomunistas,
insurrecionrios, cooperativistas, individualistas, plataformistas... Nenhuma delas recebe seu nome
a partir de algum Grande Pensador; ao invs disso, elas so invariavelmente nomeadas com base
em uma prtica ou, mais frequentemente, devido a um princpio organizacional. (De forma
significante, as tendncias marxistas que no possuem o nome de indivduos - tal como o
Autonomismo ou o Comunismo de Conselhos - so as mais prximas do anarquismo). Anarquistas
gostam de se distinguir dos outros pelo que fazem e pela forma como se organizam para faz-lo. E,
de fato, os anarquistas gastaram a maior parte do seu tempo pensando e discutindo sobre isso.
Anarquistas nunca tiveram muito interesse nas amplas questes filosficas e estratgicas que
preocuparam historicamente os Marxistas - questes como: So os camponeses uma classe
potencialmente revolucionria? (Anarquistas pensam que isso algo que os camponeses devem
decidir.) Qual a natureza da forma-mercadoria? Em vez disso, eles tendem a discutir entre se sobre
qual de fato a forma mais democrtica de se tocar uma reunio, em que ponto uma organizao
deixa de possibilitar o empoderamento e comea a esmagar a liberdade individual. Ou, por outro
lado, sobre as questes ticas implicadas na oposio ao poder: O que ao direta? necessrio
(ou correto) condenar publicamente algum que assassinou um chefe-de-Estado? Pode o homicdio
- especialmente se for para evitar algo terrvel como uma guerra - ser um ato moral? Quando se pode
quebrar uma janela?
Em resumo, ento:
1 - O marxismo tendeu a ser um discurso analtico e terico sobre estratgia revolucionria.
2 - Anaquismo tendeu a ser um discurso tico sobre prtica revolucionria.
Obviamente, tudo o que eu disse foi um pouco caricatural (houve grupos anarquistas
extremamente sectrios, e muitos marxistas libertrios orientados para a prtica, incluindo,
discutivelmente, eu mesmo). Porm, mesmo dito dessa forma, isso sugere uma boa dose
de complementaridade potencial entre os dois. E de fato ela existiu: mesmo Mikhail
Bakunin, com suas batalhas infindveis com Marx sobre questes prticas, traduziu
pessoalmente O capital, para o russo. Mas isso tambm ajuda a entender porque existem
to poucos anarquistas na academia. No que o anarquismo no tenha tendncia a ser
empregado em teorias de alto nvel. que ele est mais preocupado com questes
prticas; e que, antes de mais nada, nossos meios devem estar de acordo com nossos
fins; no se pode criar liberdade por meios autoritrios; na verdade, preciso incorporar o
mximo possvel, nas relaes com inimigos e aliados, a sociedade que se quer criar. Isso
no combina muito bem com atuar dentro de uma universidade, talvez a nica instituio
ocidental - com exceo da igreja catlica e da monarquia britnica - que tenha sobrevivido
Idade Mdia com o mesmo formato, realizando duelos intelectuais em conferncias em
hotis carssimos, e tentando fingir que isso, de alguma forma, d continuidade
transformao. Ao menos, imaginaramos que ser um professor abertamente anarquista
significaria desafiar a forma como as universidades so dirigidas - e tampouco me refiro a
demandar um departamento de estudos anarquistas - e isso, claro, trar problemas muito
maiores que qualquer coisa que se possa escrever.
Isso no significa que teorias anarquistas sejam impossveis
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
David Graeber
Isso no significa que anarquistas tenham que ser contra teoria. Afinal de contas, anarquismo , em
si, uma ideia, mesmo que seja uma ideia bem antiga. E tambm um projeto, o qual se dirige para
a criao das instituies de uma nova sociedade "dentro da casca da antiga"; para expor, subverter
e minar as estruturas de dominao, mas sempre, enquanto o faz, procedendo de modo democrtico,
uma maneira que demonstra como tais estruturas so desnecessrias. Qualquer projeto desse tipo,
claramente, precisa de ferramentas de compreenso e anlise intelectual. Talvez no precise de
Grandes Teorias (High Theory), no sentido hoje familiar do termo. Certamente, no precisar de uma
nica Grande Teoria Anarquista. Isso seria completamente distante de seu esprito. Muito melhor,
penso eu, seria algo com o esprito dos processos anarquistas de tomada de deciso, aplicados em
tudo, desde pequenos grupos de afinidade at conselhos gigantes de milhares de pessoas. Muitos
grupos anarquistas operam atravs de um processo de consenso, o qual tem sido desenvolvido, de
vrias formas, para ser o extremo oposto dos processos arbitrrios, divisores e sectrios to
populares entre outros grupos radicais. Aplicado teoria, isso implicaria em aceitar a necessidade
de uma diversidade de grandes perspectivas tericas, unidas somente por alguns compromissos e
entendimentos mtuos. No consenso, todo mundo concorda, desde o incio, com alguns princpios
amplos de unidade e sentido de existncia do grupo; mas, alm disso, aceita-se como uma coisa
natural que ningum vai converter completamente uma pessoa ao seu ponto de vista, e que
provavelmente seja melhor nem tentar; e que, portanto, a discusso deve focar em questes
concretas relativas ao e elaborao de um plano com o qual todos consigam conviver e no
qual ningum sinta que seus princpios tenham sido fundamentalmente violados. Podemos ver um
paralelo aqui: diversas perspectivas, conectadas por um desejo compartilhado de compreender a
condio humana, e mov-la na direo de uma liberdade maior. Ao invs de estarem baseadas na
necessidade de provar que suposies fundamentais dos outros esto erradas, tentar encontrar
interesses particulares que reforcem uns aos outros. Somente porque as teorias so
incomensurveis em alguns aspectos no significa que no possam coexistir ou inclusive se
reforarem mutuamente, da mesma forma que o fato dos indivduos terem vises de mundo nicas
e incomensurveis no significa que no possam se tornar amigos, ou amantes, ou trabalhar em
projetos comuns.
Ainda mais que Grande Teoria, o que o anarquismo precisa o que pode ser chamado de Pequena
Teoria: uma forma de agarrar as questes reais e imediatas que emergem de um projeto
transformador. O mainstream das Cincias Sociais realmente no ajuda muito, porque normalmente,
no mainstream das cincias sociais, esse tipo de coisa geralmente classificada como "assuntos
polticos", e nenhum anarquista com respeito prprio teria algo coisa a ver com isso.
Contra polticas pblicas [policy] (um manifesto minsculo)
A noo de "polticas pblicas" pressupe um Estado ou aparato governamental que impe
sua vontade sobre os outros. "Poltica pblicas" [policy] a negao da poltica; polticas
pblicas , por definio, algo concebido por algum tipo de elite, a qual presume saber melhor
do que os outros como os assuntos deles devem ser conduzidos. Ao participar em debates
de polticas pblicas, o melhor que se pode fazer reduzir os danos, visto que a prpria
premissa inimiga da idia de que as pessoas devem administrar os seus prprios assuntos.
Ento, nesse caso, a questo se torna: Que tipo de teoria social seria de verdadeiro
interesse para os que esto tentando ajudar a produzir um mundo em que as pessoas
sejam livres para governar suas prprias questes? Este panfleto essencialmente sobre
isso. Para comear, eu diria que tal teoria teria que iniciar com algumas suposies
bsicas. No muitas. Provavelmente duas. Primeiro, teria que partir da suposio que, tal
como diz aquela cantiga Brasileira, "um outro mundo possvel". Pressupor que
instituies como Estado, capitalismo, racismo e dominao masculina no so inevitveis;
que seria possvel haver um mundo onde essas coisas no existissem e que, como
resultado, estaramos todos melhores com isso. Comprometer-se com um princpio desses
quase um ato de f, pois como podemos ter certeza dessas coisas? Talvez seja possvel
que um mundo desses no seja possvel. Mas tambm poderamos argumentar que essa
mesma indisponibilidade de um conhecimento absoluto o que faz do comprometimento
ao otimismo um ato moral: visto que no podemos saber se um mundo radicalmente melhor
algo impossvel, no estamos traindo a todo mundo ao insistir em continuar justificando,
e reproduzindo, a baguna que temos hoje? E, de qualquer jeito, mesmo se estivermos
errados, talvez cheguemos muito mais perto.
Contra o antiutopismo (outro manifesto minsculo)
Aqui, claro, precisamos lidar com uma objeo inevitvel: que o utopianismo levou ao horror
absoluto quando Stalinistas, Maostas e outros idealistas tentaram esculpir formas
impossveis na sociedade, matando milhes no processo.
Esse argumento esconde um erro fundamental: que imaginar mundos melhores
era o problema em si. Stalinistas e sua corja no matavam porque sonhavam
grandes sonhos na verdade, Stalinistas eram famosos por serem um pouco
limitados na imaginao mas porque achavam erroneamente que seu sonhos
fossem certezas cientficas. Isso os levou a pensar que tinham o direito de impor
suas vises atravs de uma mquina de violncia. Anarquistas no propem
coisas desse tipo, de nenhuma forma. Eles entendem que o curso da histria no
inevitvel, e que o curso da liberdade no pode ser desenvolvido atravs da
criao de novas formas de coero. De fato, todas as formas de violncia
sistmica so (entre outras coisas) agresses ao papel que a imaginao cumpre
enquanto um princpio poltico; e o nico meio de comear a pensar em eliminar
a violncia sistemtica reconhecendo isso.
E, claro, poderamos escrever livros muitos longos sobre as atrocidades
cometidas, ao longo da histria, por cnicos e outros pessimistas...
Essa , ento, a primeira proposio. A segunda, eu diria, consistiria na rejeio
consciente, por qualquer teoria social anarquista, de qualquer trao de
vanguardismo. O papel dos intelectuais, definitivamente, no o de formar uma
elite que possa formular as anlises estratgicas e, depois, conduzir as massas
a segui-la. Mas se no isso, o qu? Esta uma razo pela qual chamo este
ensaio de "Fragmentos de uma Antropologia anarquista" - porque se trata de uma
rea na qual entendo que a antropologia est particularmente bem posicionada
para ajudar. E no somente porque a maioria das comunidades autogovernadas
e das economias do dom [colocar nota explicando a distino entre
economias do dom e economias de commodities? //talvez explicar por que
trocamos economias nao-mercantis por economias do dom//] atualmente
existentes no mundo foram estudadas por antroplogos e no por socilogos ou
historiadores. tambm porque a prtica da etnografia fornece algo como um
modelo - ainda que bruto e incipiente - de como uma prtica intelectual
revolucionria pode funcionar. Quando conduzimos uma etnografia, observamos
o que as pessoas fazem e depois tentamos extrair as lgicas - simblicas, morais
ou pragmticas - escondidas sob suas aes; tentamos percorrer o caminho no
qual os hbitos e as aes das pessoas fazem sentido atravs de caminhos que
tais pessoas desconhecem. Um papel bvio para um intelectual radical fazer
precisamente isso: olhar para aqueles que esto criando alternativas viveis;
tentar descobrir quais so as implicaes mais amplas do que eles (j) esto
fazendo; e, ento, oferecer de volta tais ideias, no como receitas, mas como
contribuies, possibilidades - ddivas. Isso mais ou menos o que eu estava
tentando fazer alguns pargrafos atrs quando sugeri que a teoria social poderia
se reformular na forma de um processo de democracia direta. E, tal como esse
exemplo deixa claro, tal projeto necessitaria, de fato, de dois aspectos ou
momentos: um etnogrfico e outro utpico, ambos suspensos em dilogo
constante.
Nada disso tem muito a ver com o que a antropologia, mesmo a antropologia
radical, tem sido nos ltimos cem anos ou mais. Ainda assim, tem havido uma
estranha afinidade ao longo dos anos entre antropologia e anarquismo, a qual
significativa em si mesma.
Graves, Brown, Mauss, Sorel
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
David Graeber
No que os antroplogos abraaram o anarquismo, nem, tampouco, esposaram conscientemente
ideias anarquistas; trata-se mais do fato de que eles se moviam nos mesmos crculos, que suas
ideias tendiam a entram em choque umas com as outras, que havia algo sobre o pensamento
antropolgico em particular - sua conscincia aguda do alcance das possibilidades humanas - que o
dotava, desde o incio, de uma afinidade com o anarquismo.
Deixe-me comear com Sir James Frazer, ainda que ele tenha sido a coisa mais distante de um
anarquista. Frazer, catedrtico de antropologia em Cambridge na virada do (ltimo) sculo, foi um
enfadonho vitoriano clssico, o qual escreveu crnicas sobre costumes selvagens, baseados
principalmente em resultados de questionrios enviados a missionrios e oficiais coloniais. Sua
atitude terica ostensiva era totalmente condescendente - ele acreditava que quase toda mgica,
mito e ritual estavam baseados em tolos erros lgicos - mas sua obra maior, O Ramo de Ouro,
continha descries to floridas, divertidas e estranhamente bonitas de espritos-rvore, sacerdotes
eunucos, deuses vegetais moribundos e sacrifcio de reis divinos, que inspirou uma gerao de
poetas e literatos. Entre eles estava Robert Graves, um poeta britnico que ficou famoso,
inicialmente, por escrever amargamente, desde as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, um verso
satrico. Ao final da guerra, Graves acabou em um hospital na Frana, onde foi curado de fadiga de
combate por W.H.R. Rivers, o antroplogo britnico famoso pela Expedio ao Estreito de Torres,
que tambm atuava como psiquiatra. Graves ficou to impressionado com Rivers que sugeriu,
posteriormente, que antroplogos profissionais fossem colocados no comando de todos os governos
mundiais. No era um sentimento particularmente anarquista, certamente - mas Graves vacilava
dentre todos os tipos de posies polticas estranhas. Ao final, ele abandonaria inteiramente a
"civilizao" - a sociedade industrial - e gastaria os ltimos cinquenta anos ou mais de sua vida em
um vilarejo na ilha espanhola de Maiorca, sustentando-se atravs da escrita de romances, mas
tambm produzindo inmeros livros de poesia amorosa e uma srie de alguns dos mais subversivos
ensaios j escritos.
A tese de Graves era, entre outras coisas, que a grandiosidade era uma patologia; "grandes homens"
eram, essencialmente, destruidores, e "grandes" poetas no eram muito melhores (seus arqui-
inimigos eram Virglio, Milton e Pound), que toda verdadeira poesia e sempre foi a celebrao
mtica de uma Deusa Suprema - da qual Frazer -tinha apenas uma aluso confusa e cujos seguidores
matriarcais foram conquistados e destrudos pelas hordas Arianas amadas por Hitler, quando estas
emergiram das estepes ucranianas no incio da Era de Bronze (ainda que tenha sobrevivido algum
tempo na Creta Minoica). Em um livro chamado A Deusa Branca: uma gramtica histrica do mito
potico, ele afirmou ter mapeado os rudimentos dos calendrios de ritos em diferentes partes da
Europa, focando no peridico assassinato ritual dos consortes Reais da Deusa, o que, entre outras
coisas, era um jeito certeiro de garantir que "grandes homens" em potencial no sassem do controle,
e terminando o livro com um chamado a um eventual colapso industrial. Eu falei "afirmou"
intencionalmente. O que encantador, se no tambm confuso, sobre os livros de Graves que ele,
obviamente, estava se divertindo tanto ao escrev-los, jogando uma tese absurda depois da outra,
que impossvel dizer o quanto eles devem ser levados a srio. Ou se isso no uma questo sem
sentido. Em um ensaio, escrito nos anos 50, Graves inventa a distino entre "plausabilidade" e
"racionalidade" - posteriormente tornada famosa por Stephen Toulmin nos anos 80 - mas o faz em
um ensaio escrito para defender a esposa de Scrates, Xantipa, de sua reputao de atroz
resmungona. (O argumento dele: imagine se voc fosse casado/a com Scrates.)
Graves realmente acreditava que mulheres so sempre superiores aos homens? Ele realmente
esperava que acreditssemos que ele tinha resolvido um problema mtico ao cair num "transe
analtico" e entreouvir uma conversa sobre peixes entre um historiador Grego e um oficial Romano
no Chipre em 54 da era comum? Vale a pena pensar, visto que, mesmo com toda obscuridade atual
sobre esses escritos, Graves inventou, essencialmente, duas tradies intelectuais diferentes, as
quais tornar-se-iam posteriormente grandes tendncias tericas no anarquismo moderno - e
reconhecidamente, so consideradas geralmente duas das mais extremas. Por um lado, o culto da
Grande Deusa tem sido revivido e se tornado uma inspirao direta para o Anarquismo Pago,
artistas hippies que fazemdanas espirais e que so sempre bem vindos em aes de massa porque,
de fato, parecem mais possuir um tino para influenciar o clima; por outro lado, Primitivistas, cujo
avatar mais famoso (e radical) John Zerzan, quem tomou a rejeio de Graves da civilizao
industrial e espera ainda mais pelo colapso econmico generalizado, argumentando que mesmo a
agricultura foi um grande erro histrico. Tanto os Pagos quanto os Primitivistas, curiosamente,
compartilham essa qualidade inefvel que faz do trabalho de Graves algo to distinto:
simplesmente impossvel saber em que nvel devemos l-lo. uma autopardia ridcula e, ao mesmo
tempo, algo terrivelmente srio.
Houve tambm antroplogos entre eles, algumas das figuras fundadoras da disciplina que
tambm se intrometeram com poltica anarquista ou anrquica.
O caso mais famoso foi o de um estudante da virada do sculo chamado Al Brown, conhecido por
seus amigos de faculdade como "Anarchy-Brown". Brown era um admirador do famoso anarquista
Prncipe (o qual, obviamente, renunciou tal ttulo), Peter Kropotkin, naturalista e explorador do rtico,
que colocou o darwinismo social em alvoroo do qual ainda no saiu completamente ao
documentar como as espcies melhor sucedidas tendem a ser aquelas que cooperam de forma mais
efetiva. (A sociobiologia, por exemplo, foi uma tentativa de tentar responder a Kropotkin). Mais tarde,
Brown comeou a usar manto e monculo, adotando um nome "hifenizado" falsamente aristocrtico
(A. R. Radcliffe-Brown), e finalmente, nos anos 1920 e 30, se tornando o grande terico da
antropologia social britnica. O velho Brown no gostava de falar muito sobre sua poltica juvenil,
mas, provavelmente, no coincidncia o fato de que seu principal interesse terico ter continuado
a ser a manuteno da ordem social fora do estado.
Talvez o caso mais intrigante seja o de Marcel Mauss, contemporneo de Radcliffe-Brown, e inventor
da antropologia francesa. Mauss era um filho de pais judeus ortodoxos, que teve a bno confusa
de tambm ser sobrinho de mile Durkheim, o fundador da sociologia francesa. Mauss foi tambm
um socialista revolucionrio. Durante boa parte de sua vida, ele administrou uma cooperativa de
consumidores em Paris, e estava constantemente escrevendo longos textos para jornais socialistas,
tocando projetos de pesquisa sobre cooperativas em outros pases e tentando criar conexes entre
cooperativas para construir uma economia anticapitalista e alternativa. Seu trabalho mais famoso foi
escrito em resposta crise do socialismo que ele via na reintroduo, por Lnin, do mercado na
Unio Sovitica nos anos 20: se era impossvel simplesmente legislar sobre a economia at mesmo
na Rssia a sociedade menos monetarizada da Europa ento talvez os revolucionrios
precisassem comear a olhar para os registros etnogrficos para ver que tipo de criatura o mercado
realmente era e como poderiam ser as alternativas viveis ao capitalismo. Assim, seu "Ensaio sobre
a Ddiva", escrito em 1925, argumentava (entre outras coisas) que a origem de todos os contratos
se encontra no comunismo, um compromisso incondicional s necessidades dos outros, e, mesmo
que incontveis livros didticos de economia digam o contrrio, nunca existiu uma economia baseada
na troca: as sociedades atualmente existentes que no usam dinheiro tm sido, ao contrrio,
economias da ddiva, nas quais as distines que hoje fazemos entre interesse e altrusmo, pessoa
e propriedade, liberdade e obrigao, simplesmente no existiam.
Mauss acreditava que o socialismo jamais poderia ser construdo pela sano do estado, mas
somente gradualmente, desde baixo, que seria possvel comear a construir uma nova sociedade,
baseada na ajuda mtua e na auto-organizao "dentro da sociedade antiga"; ele sentia que as
prticas populares existentes forneciam as bases de uma crtica moral do capitalismo e permitiam
vislumbrar possveis formas que tal futura sociedade poderia assumir. Todas essas so clssicas
posies anarquistas. Ainda assim, ele no se considerava um anarquista. De fato, ele nunca teve
coisas boas para falar sobre eles. Isso porque, parece, ele identificava o anarquismo principalmente
com a figura de Georges Sorel, um anarcossindicalista e antissemita francs, hoje famoso por seu
ensaio Reflexes Sobre a Violncia. Sorel argumentava que, visto que as massas no eram
fundamentalmente boas ou racionais, era tolice fazer um primeiro apelo a elas atravs de argumentos
racionais. A poltica a arte de inspirar os outros com grandes mitos. Para os revolucionrios, ele
props o mito de uma apocalptica Greve Geral, um momento de total transformao. Para mant-
la, ele acrescentava, precisar-se-ia de uma elite capaz de sustentar o mito vivo atravs da disposio
de se engajar em atos simblicos de violncia - uma elite que, assim como o partido marxista de
vanguarda (frequentemente menos simblico em sua violncia), Mauss descrevia como um tipo de
conspirao perptua, uma verso moderna das sociedades polticas secretas masculinas do mundo
antigo.
Em outras palavras, Mauss via Sorel, e portanto o anarquismo, como introdutor da irracionalidade,
da violncia e do vanguardismo. Pode parecer um pouco estranho que entre revolucionrios
franceses da poca fosse o sindicalista que enfatizasse o poder do mito e o antroplogo que o
objetasse, mas, no contexto dos anos 20 e 30, com agitaes fascistas por todo lado,
compreensvel o motivo pelo qual um radical europeu - especialmente judeu - pudesse ver tudo isso
como um pouco assustador. Assustador o suficiente para jogar gua fria na imagem sempre
instigante da Greve Geral - a qual , por sinal, o meio menos violento possvel de se imaginar uma
revoluo apocalptica. Nos anos 40, Mauss concluiu que suas suspeitas se haviam justificado.
doutrina da vanguarda revolucionria, ele escreveu, Sorel adicionou uma noo originalmente
tirada do prprio tio de Mauss - Durkheim: a doutrina do corporatismo, de estruturas verticais
mantidas juntas atravs de tcnicas de solidariedade social. Isso, ele disse, foi uma grande influncia
em Lnin, quem pessoalmente o admitiu. A partir da, ela foi adotada pela direita. Ao final de sua
vida, Sorel havia se tornado crescentemente simptico ao fascismo; nisso ele seguiu a mesma
trajetria de Mussolini (outro jovem diletante do anarcossindicalismo), e quem levou, acreditava
Mauss, essas mesmas ideias durkheim-sorel-leninistas at as ltimas consequncias. Ao final de
sua vida, Mauss acabou se convencendo que mesmo as grandes procisses rituais de Hitler, cortejos
de tochas e cantos de "Seig Heil", tinham sido inspiradas por relatos feitos por ele e seu tio sobre os
rituais totmicos de aborgenes australianos. "Quando estvamos descrevendo como os rituais
podem criar solidariedade social ao submergir o indivduo na massa", queixava-se, "nunca nos
ocorreu que algum fosse aplicar tais tcnicas nos dias modernos!". (Na verdade, Mauss estava
errado. Pesquisas recentes mostraram que as procisses de Nuremberg se inspiraram, de fato,
nos Pep Rallies de Harvard.[1] Mas isso outra histria.) O estopim da guerra destruiu Mauss, que
nunca havia se recuperado completamente da perda da maioria de seus amigos mais prximos
durante a Primeira Guerra Mundial. Quando os nazistas tomaram Paris, ele se recusou a fugir e,
todos os dias, sentava-se em seu escritrio com uma pistola em sua mesa, esperando a Gestapo
chegar. Eles nunca chegaram, mas o terror, assim como o peso de seus sentimentos de
cumplicidade histrica, finalmente, despedaaram sua sanidade.
[editar]A antropologia anarquista que quase j existe
No fim das contas, entretanto, Marcel Mauss talvez tenha tido mais influncia nos anarquistas que
todos os outros conjuntamente. Isso porque ele estava interessado em moralidades alternativas, que
abriam caminho para pensar que sociedades sem Estado e Mercado eram do jeito que eram porque
desejavam ativamente viver desse jeito. Porque, em nossos termos, significa que eram anarquistas.
Uma vez que fragmentos de uma antropologia anarquista j existem, eles so amplamente derivados
dele.
Antes de Mauss, a compreenso universal tinha sido a de que economias sem dinheiro ou mercados
operavam atravs da "troca"; que elas estavam tentando se encaixar no comportamento de mercado
(adquirir bens e servios teis pelo menor preo, enriquecer se possvel...), elas apenas no tinham
desenvolvido ainda meios sofisticados para faz-lo. Mauss demonstrou que, na verdade, tais
economias eram realmente "economias da ddiva". Elas no estavam baseadas em clculos, mas
numa recusa a calcular; elas estavam enraizadas num sistema tico que rejeitava conscientemente
a maior parte do que consideraramos princpios bsicos de economia. No era que elas ainda no
tivessem aprendido a buscar lucro atravs de meio eficazes. Eles teriam achado profundamente
ofensivo que a premissa das transaes econmicas fosse buscar o maior lucro possvel ao menos
das transaes que envolvessem aqueles que no so inimigos.
significativo que um antroplogo (um dos poucos) abertamente anarquista na memria recente
outro francs, Pierre Clastres se tornou famoso por elaborar um argumento similar no nvel poltico.
Ele insistia que antroplogos polticos ainda no tinham passado por cima das antigas perspectivas
evolucionistas, as quais viam o Estado principalmente como uma forma de organizao mais
sofisticada do que as que a haviam precedido; povos sem Estado, tais como as sociedades
amaznicas estudadas por Clastres, eram tacitamente vistas como no tendo atingido o nvel dos
Aztecas ou dos Incas. Mas e se, ele propunha, os amerndios no fossem completamente
inconscientes de como as formas elementares do poder estatal pudessem ser que significaria
permitir a alguns homens dar ordens inquestionveis a todos outros, pois essas estavam apoiadas
na ameaa do uso da fora e estivessem, por essa mesma razo, determinados a garantir que tais
coisas nunca ocorressem? E se eles considerassem moralmente questionveis as premissas
fundamentais de nossa cincia poltica?
Os paralelos entre os dois argumentos so realmente impressionantes. Nas economias da ddiva,
existe, frequentemente, espao para indivduos empreendedores: mas tudo est organizado de tal
forma que esses espaos nunca possam ser usados como plataforma para a criao de
desigualdade econmicas permanentes, visto que essas figuras autoengrandecidas terminam
competindo para ver quem desperdia mais. Em sociedades amaznicas (ou norte-americanas), a
instituio de um chefe possua o mesmo papel no nvel poltico: a posio era to exigente, e to
pouco recompensadora, to guarnecida por salvaguardas, que no havia espao para que indivduos
famintos por poder fizessem muita coisa. Amerndios podem no ter arrancado literalmente a cabea
de seus governantes a cada par de anos, mas essa no uma metfora totalmente inapropriada.
Atravs de tal perspectiva, essas eram, num sentido bastante verdadeiro, sociedades anarquistas.
Elas estavam fundadas na rejeio explcita da lgica do Estado e do Mercado.
Elas so, contudo, extremamente imperfeitas. A crtica mais comum que se faz a Clastres
perguntar como os seus Amerndios podiam organizar verdadeiramente suas sociedades contra a
emergncia de algo que nunca haviam experienciado realmente. Um questionamento ingnuo,
ainda que aponte para algo igualmente ingnuo na abordagem de Clastres. Ele consegue falar
alegremente sobre o igualitarismo descompromissado dos mesmos amerndios que, por exemplo,
so famosos por seu uso do estupro coletivo enquanto uma arma para aterrorizar mulheres que
transgridem o papel prprio de seu gnero. um ponto cego to brilhante que podemos pensar
como foi possvel que ele no o percebesse; especialmente se considerarmos que tal ponto fornece
uma resposta exatamente para essa pergunta. Talvez os homens amerndios percebam o quo
arbitrrio poderia ser um poder inquestionvel apoiado no uso da fora porque eles prprios
exercem esse tipo de poder sobre suas mulheres e filhas. Talvez por essa mesma razo eles no
gostariam de ver sobre eles mesmos estruturas capazes de infligir tal poder.
vlido chamar a ateno para tais questes porque Clastres , sob vrios aspectos, uma romntico
ingnuo. Desde outra perspectiva, porm, no h aqui nenhum mistrio. Afinal, estamos falando do
fato de que a maioria dos amerndios no quer dar a outros o poder de os ameaar fisicamente se
eles no fizerem o que for mandado. Talvez fosse melhor se estivssemos nos perguntando o que
isso diz sobre ns mesmos, visto que sentimos que tal atitude precisa de algum tipo de explicao.
[editar]Rumo a uma teoria do contrapoder imaginrio
Isso que o quero dizer por tica alternativa. Sociedades anarquistas so to conscientes das
capacidades humanas para a ganncia e a vaidade quanto americanos modernos so conscientes
das capacidades humanas para a inveja, gula e preguia; elas as achariam igualmente
desinteressantes enquanto bases para sua civilizao. De fato, elas veem tais fenmenos como
perigos morais to horrendos que terminam por organizar boa parte de sua vida social de forma a
cont-los.
Se este fosse um ensaio puramente terico, eu diria que tudo isso sugere uma maneira interessante
de sintetizar teorias de valor e teorias de resistncia. Para o presente propsito, suficiente dizer
que Mauss e Clastres foram bem sucedidos, ainda que apesar de si mesmos, em pavimentar o
caminho para uma teoria do contrapoder revolucionrio.
Tenho a impresso que esse argumento um pouco complicado. Deixe-me dar um passo de cada
vez.
No tpico discurso revolucionrio, "contrapoder" um conjunto de instituies sociais colocadas em
oposio ao Estado e ao Capital: de comunidades autogovernadas at sindicatos operrios radicais
at milcias populares. Por vezes tambm referido como "antipoder". Quando tais instituies se
mantm diante do Estado, isso comumente referido como uma situao de "poder dual". Mediante
tal definio, a maior parte da histria humana , na verdade, caracterizada por situaes de poder
dual, visto que pouco Estados histricos tiveram os meios de eliminar tais instituies, mesmo se
assumirmos que eles o quisessem. Contudo, os argumentos de Mauss e Clastres sugerem algo mais
radical ainda. Sugerem que o contrapoder, ao menos em seu sentido mais elementar, existe at
mesmo onde Estados e Mercados no esto presentes; que em tais casos, ao invs de estarem
incorporados em instituies populares que se colocam contra o poder de lordes, reis ou plutocratas,
eles esto incorporados em instituies que garantem que esse tipo de gente nunca aparea. O que
o "contra", ento, um aspecto potencial, latente ou uma possibilidade dialtica, se voc preferir
dentro da prpria sociedade.
Isso ao menos ajudaria a explicar um fato peculiar; a forma como so as sociedades igualitrias que,
frequentemente, so despedaadas por terrveis tenses internas, ou ao menos, por formas
extremas de violncia simblica.
claro que, at certo ponto, todas as sociedades esto em guerra consigo mesmas. H sempre
colises entre interesses, faces, classes e coisas do tipo; alm disso, sistemas sociais esto
sempre baseados na busca de diferentes formas de valor, os quais empurram as pessoas em
diferentes direes. Em sociedades igualitrias, as quais tendem a colocar uma enorme nfase na
criao e manuteno de consenso comunitrio, isso parece, frequentemente, dar origem a um tipo
igualmente elaborado de formao reativa, um mundo noturno habitado por monstros, bruxas e
outras criaturas de terror. E so as sociedades mais pacficas as que so tambm as mais
assombradas em suas construes imaginativas do cosmos por espectros constantes de guerra
perene. Os mundos invisveis que os envolvem so, literalmente, campos de batalha. como se o
incessante trabalho de alcanar o consenso mascarasse uma violncia interna constante ou, talvez
seja melhor dizer, de fato o processo pelo qual tal violncia interna medida e contida e
precisamente isso, e o emaranhado de contradio moral que da resulta, que a fonte primeira de
criatividade social. No so esses princpios conflitantes e impulsos contraditrios em si que so a
realidade ltima da poltica, portanto; o processo regulatrio que os media.
Alguns exemplos podem ajudar:
Caso 1: Os Piaroa, uma sociedade altamente igualitria que vive nos afluentes do Orinoco,
a qual foi descrita pela etngrafa Joanna Overing enquanto anarquistas. Eles colocam um
valor enorme na autonomia e liberdade individual, e so bastante conscientes da importncia
de assegurar que ningum esteja sob as ordens de ningum, ou da necessidade de assegurar
que ningum ganhe tal controle sobre os recursos econmicos que possam usar para
restringir a liberdade de outros. Apesar disso, eles insistem que a cultura Piaroa foi criada por
uma divindade maligna, um bufo canibal de duas cabeas. Os Piaroa desenvolveram uma
filosofia moral que define a condio humana como presa entre um "mundo dos sentidos" -
de desejos selvagens, pr-sociais e um "mundo do pensamento". Crescer envolve aprender
a controlar e canalizar o primeiro atravs de uma reflexo de considerao pelos outros, e o
cultivo de um senso de humor; mas isso se torna infinitamente mais difcil pelo fato de que
todas as formas de conhecimento tcnico, esto, devido a suas origens, atadas a elementos
de loucura destrutiva, por mais necessrios que sejam para a vida. Da mesma forma, por
mais que os Piaroa sejam famosos por sua condio pacfica no se ouve falar de
assassinato, sendo que o pressuposto que qualquer um que matasse outro ser humano
seria instantaneamente consumido pela poluio e morreria horrivelmente eles habitam um
cosmos de infindvel guerra invisvel, no qual os xams esto ocupados em resistir aos
ataques das divindades insanas e predatrias, e no qual todas as mortes so causadas por
assassinato espiritual e precisam ser vingadas atravs do massacre mgica de comunidades
inteiras (distantes, desconhecidas).
Caso 2. Os Tiv, outra notria sociedade igualitria, fazem de moradia as margens do rio
Benue, na Nigria central. Comparados aos Piaroa, sua vida domstica bastante
hierrquica: homens velhos tendem a ter diversas esposas e trocar entre eles os direitos
fertilidade das mulheres mais jovens; os homens jovens so, assim, reduzidos a passar a
maior parte de suas vidas em espera como solteiros e dependentes dos !!conjuntos paternos.
Nos sculos recentes, nunca estiveram completamente isolados dos ataques de traficantes
de escravos; a terra dos Tiv tambm teve alguns mercados locais; pequenas guerras
ocasionais foram travadas entre cls, ainda que as frequentes disputas mais amplas eram
mediadas em grandes "debates" comunais. Ainda assim, no havia instituies polticas
maiores que os !!conjuntos; de fato, qualquer coisa que comeasse a parecer com uma
instituio poltica era considerada intrinsecamente suspeita, ou, mais precisamente, vista
como algo cercado por uma aura de terror oculto. Assim era, como coloca sucintamente o
etngrafo Paul Bohannan, pelo que era visto como sendo a natureza do poder: "homens
adquirem poder consumindo a substncia de outros (homens)". Os mercados eram
protegidos, as regras do mercado impostas por !!feitios que encapsulavam doenas e sobre
os quais se dizia serem movidos por partes humanas e sangue. Homens empreendedores
que conseguiam congregar uma certa fama, riqueza ou clientela eram, por definio, bruxos.
Seus coraes eram envolvidos por uma substncia chamada tsav, a qual somente podia ser
magnificada atravs do consumo de carne humana. A maioria evitava faz-lo, mas se dizia
que existiam sociedades secretas de bruxos que colocavam pedacinhos de carne humana
na comida de suas vtimas, incorrendo, assim, em uma dvida de carne e em desejos no-
naturais que, eventualmente, poderiam levar os afetados a consumir suas famlias inteiras.
Tais sociedades imaginrias de bruxos eram vistas como o governo invisvel do pas. O poder
era, dessa forma, o mal institucionalizado e, em cada gerao, emergiam movimentos de
caa as bruxas que expunham os culpados, destruindo efetivamente qualquer estrutura
autoritria emergente.
Caso 3. As Terras Altas de Madagascar, onde vivi entre 1989 e 1991, era um lugar bem
diferente. A rea tinha sido o centro do Estado de Madagascar o reino Merina desde o
incio do sculo XIX e, posteriormente, sofreu sob o duro mando colonial durante anos. Havia
uma economia de mercado e, em teoria, um governo central durante o tempo em que estive
l, em grande parte dominado pelo que era chamado de burguesia Merina. De fato, tal
governo havia se retirado de boa parte do interior do pas e, efetivamente, as comunidades
rurais governavam a si mesmas. Tais comunidades podem ser consideradas anarquistas de
muitas formas: a maioria das decises locais eram tomadas em grupos informais, atravs do
consenso; a liderana era olhada, na melhor das hipteses, com desconfiana; era
considerado errado que os adultos dessem ordens uns aos outros, especialmente de forma
sistemtica; isso fazia com que mesmo instituies como trabalho remunerado fossem
moralmente suspeitas. Ou, para ser mais preciso, (eram consideradas) no-malgaxe era
assim que os franceses se comportavam, ou reis lunticos e escravocratas de tempos atrs.
A sociedade era notavelmente pacfica. Contudo, era mais uma vez cercada por uma guerra
invisvel; quase todo mundo tinha acesso a remdios perigosos ou espritos, ou estava
disposto a revelar que pudessem ter; a noite estava assombrada por bruxas que danavam
nuas e cavalgavam os homens como se estes fossem cavalos; quase todas as doenas eram
ocasionadas por inveja, dio e ataques mgicos. E mais, a feitiaria tinha uma estranha e
ambivalente relao com a identidade nacional. Enquanto as pessoas faziam aluses
retricas, dizendo que os malgaxes eram iguais e to unidos quanto cabelos numa cabea,
ideais de igualdade econmica eram raramente, quase nunca, invocados; entretanto,
presumia-se que qualquer um que se tornasse demasiado rico ou poderoso seria destrudo
por feitiaria e, enquanto feitiaria era a definio do mal, era percebida como algo
peculiarmente malgaxe (feitios eram apenas feitios, mas feitios malficos eram chamados
de feitios malgaxe). Na medida em que rituais de solidariedade aconteciam e o ideal de
igualdade era invocado , era durante os rituais feitos para suprimir, expulsar ou destruir tais
bruxas as quais, perversamente, eram a corporificao perturbadora e a imposio prtica
do ethos igualitrio da prpria sociedade.
Note como em cada um dos casos existe um evidente contraste entre contedos
cosmolgicos, que nao nada seno tumultuoso, e o processo social, o qual diz
respeito mediao chegando ao consenso. Nenhuma dessas sociedades so
inteiramente igualitrias: existem sempre formas centrais de dominao, pelo menos,
de homens sobre mulheres, de pessoas idosas sobre jovens. A natureza e a
intensidade dessas formas varia enormemente: na comunidade Piaroa as hierarquias
so to modestas que dificilmente se pode falar de "dominao masculina" (a despeito
do fato de que lderes da comunidade so invariavelmente do sexo masculino); os Tiv
parecem ter um histria bem diferente. Ainda que desigualdades estruturais existam
invariavelmente, e, como resultado, eu penso que justo dizer que estas anarquias
no so apenas imperfeitas, mas contm as sementes de sua prpria destruio.
dificilmente uma coincidncia o fato de que formas de dominao sistematicamente
mais amplas e violentas que emergem baseiam-se em idade e gnero para se
justificarem.
Entretanto, eu penso que seria um erro identificar a violncia invisvel e o terror como
simplesmente o trabalho das "contradies internas" criadas por aquelas formas de
desigualdade. Poder-se-ia talvez sugerir que se trata da violncia mais tangvel e real.
Pelo menos, notrio o fato de que, nas sociedades onde a nica desigualdade
observvel est baseada em gnero, os nicos assissinatos existentes envolvem
homens matando uns aos outros por causa de mulheres. De forma similar, no parece
ser o caso, geralmente falando, de que quanto mais pronunciadas as diferenas entre
os papeis dos homem e das mulher na sociedade, mais fisicamente violentos eles
tendem a ser. Mas dificilmente isso significa que se todas as desigualdades
desaparececem, ento tudo, at mesmo a imaginaco, tornar-se-ia tranquila e no-
problemtica. Em alguma medida, suspeito que toda essa turbulncia deriva da
prpria natureza da condio humana. Parece no existir sociedade a qual no veja
a vida humana como fundamentalmente um problema; ainda que elas possam vir a
se diferenciar no que consideram ser o problema, em ltima instncia, a existncia do
trabalho, o sexo e a reproduo so encarados como preocupaes com todos seus
dilemas. Os desejos humanos so sempre mutveis; e h tambm o fato de que todos
ns morreremos um dia. Ento, h muito com o que se preocupar. Nenhum desses
dilemas iro desaparecer se eliminarmos as desigualdades estruturais (no entanto,
penso que isso melhoraria radicalmente as coisas em vrios outros sentidos). De fato,
a fantasia de que isso poderia desaparecer, que condio humana, o desejo, a
mortalidade, tudo poderia ser resolvido parece ser uma fantasia especialmente
perigosa, uma imagem utpica que sempre parece ocultar-se em algum lugar entre
as pretenses de Poder e do estado. Ao invs disso, como tenho sugerido, a violncia
espectral parece emergir das prprias tenses inerentes no projeto de sustentar uma
sociedade igualitria. Caso contrrio, algum poderia ao menos imaginar que a
imaginao Tiv poderia ser mais tumultuosa do que a Piaroa.
Que o estado emerge de imagens de uma resoluo impossvel da condio
humana era tambm o ponto de Clastres. Ele argumentava que historicamente a
instituio do estado no poderia ter emergido de instituies polticas de
sociedades anarquistas, que eram designadas para garantir que ele nunca
ocorresse. Pelo contrrio, s podia apenas emergir de instituies religiosas: ele
afirmou que os profetas Tupinamb que lideravam toda a populao em uma vasta
migrao na busca de uma "Terra Sem Males". evidente que, em contextos
posteriores, aquilo que Peter Lamborn Wilsonchama de "mquina clastriana" a
qual se materializa em mecanismos que se opem emergncia da dominao -- o
que chamo de aparatos de contrapoder -- pode ser ele prprio capturado em tais
fantasias apocalpticas.
Agora, neste ponto o leitor poderia certamente questionar, "Claro, mas o que isso tem
a ver com o tipo de comunidades insurrecionistas s quais os tericos revolucionrios
normalmente se referem quando utilizam a palavra "contrapoder"?
Aqui poderia ser til observar a diferena entre os dois primeiros casos e o terceiro -
porque as comunidades de Madagascar que conheci em 1990 estavam vivendo em
algo que de diversas formas reproduzia uma situao insurrecionria. Entre o sculo
XIX e o XX, houve uma considervel transformao das atitudes populares. Todas as
informaes a respeito do sculo passado insistem nesse ponto, apesar do amplo
ressentimento contra o corrupto e sempre brutal governo Malgaxe, ningum questiona
a legitimidade da monarquia em si, ou particularmente, sua absoluta lealdade pessoal
rainha. Nem poderia algum explicitamente questionar a legitimidade da escravido.
Aps a conquista francesa da ilha em 1895, que foi imediatamente seguida da
abolio tanto da monarquia quanto da escravido, tudo pareceu ter mudado
extremamente rpido. Antes de uma gerao ter desaparecido, outra comeou a
encontrar a atitude que achei amplamente arraigada nas reas afastadas do centro
uma centena de anos mais tarde: escravido era malvola, e monarcas era vistos
como inerentemente imorais por sua forma de tratar os outros como escravos. No
final, todas as relaes de comando (servio militar, trabalho assalariado, trabalho
forado) acabaram misturadas juntas na mente das pessoas como variaes da
escravido; as mesmas instituies que haviam sido vistas anteriormente para alm
de qualquer desafio tornaram-se ento a definio da ilegitimidade, e isso,
especialmente entre aqueles que haviam tido o menor acesso alta educao e s
idias do iluminismo francs. Ser Malgaxe passou a ser definido por sua rejeio a
tais costumes estrangeiros. Se algum combina essa atitude com a constante
resistncia passiva s instituies estatais, e a elaborao de autnomas, e
relativamente igualitrias formas de auto-governo, este algum veria aquilo que se
passou como uma revoluo. Depois da crise financeira da dcada de 80, o estado
em grande parte do pas efetivamente colapsou, ou em todos os sentidos regrediu
para uma forma vazia sem o anteparo da coero sistemtica. Populaes rurais
levaram adiante muito da vida anterior, pois continuavam indo aos escritrios
periodicamente para preencher formulrios ainda que no mais fossem cobrado
nenhum imposto real; o governo dificilmente providenciava servios, e na ocorrncia
de roubos ou mesmo assassinato, a polcia no mais viria. Se uma revoluo significa
a resistncia de uma populao a alguma forma de poder identificado como opressivo,
salientando alguns aspectos-chave desse poder como a fonte daquilo que
fundamentalmente questionvel sobre ele, tentando livrar-se dos opressores na
medida em que se procura eliminar completamente aquele tipo de poder da vida
cotidiana, logo difcil negar que, em certo sentido, trata-se, de fato, de uma
revoluo. Pode no estar relacionado com um levante de fato, mas se trata de uma
revoluo sem dvida.
O quanto uma revoluo duraria, esta uma outra questo; trata-se de uma forma
muito frgil e tnue de liberdade. Muitos dos enclaves falharam, em Madagascar e em
outros lugares. Outros ainda persistem, novos esto sendo criados a todo momento.
O mundo contemporneo est repleto de tais espaos anrquicos, e quanto melhor
sucedidos eles so, menos provvel de que obteremos informaes sobre eles.
Apenas se tais espaos sofrem uma ruptura violente que pessoas de foram
descobririam que ele existe. A difcil questo como mudanas profundas nas
atitudes populares poderiam acontecer to rpido? A resposta provvel a de as
mudanas no aconteceram de fato; existiram acontecimentos pertencentes ao reino
no sculo XIX os quais observadores externos (mesmo aqueles que residiram por
muito tempo na ilha) simplesmente no sabiam a respeito. De forma clara, tambm,
algo sobre a imposio da ordem colonial permitiu um rpido re-ordenamento das
prioridades. Isso, eu argumentaria, o que a existncia de formas profundamente
enraizadas de contrapoder permitem. Muito do trabalho ideolgico, na verdade, de
fazer uma revoluo foi conduzida precisamente no mundo espectral, noturno de
feiticeiros e bruxas; em redefinio das implicaes morais das diferentes formas de
poder mgico. Mas isso apenas salienta como essas zonas espectrais servem sempre
como fulcro moral da imaginao, um tipo de reservatrio da criatividade, com
potencial de mudana revolucionria. precisamente desses espaos invisveis,
sobretudo, invisveis ao poder, assim como o poder de insurreio, que a
extraordinria criatividade social que parece emergir do nada em momentos
revolucionrios de fato vem.
Logo, para resumir o argumento at agora:
1 - O contrapoder est primeira e principalmente enraizado na imaginao; ele emerge do
fato de que todos os sistemas sociais so um emaranhado de contradies; sempre em algum
grau em guerra com si prprios. Ou, mais precisamente, est enraizado na relao entre
imaginao prtica necessria para manter a sociedade baseada no consenso (como em
qualquer sociedade no baseada na violncia, em ultima instncia, precisa ser) - o trabalho
constante da identificao imaginativa com outras que fazem o entendimento possvel - e a
violncia espectral que parece ser sua constante, e talvez inevitvel, consequncia.
2 - Nas sociedades igualitrias o contrapoder propriamente dito se d numa forma
predominante de poder social. Faz vigilncia sobre o que pode ser visto como certas
possibilidades assustadoras dentro da sociedade; notavelmente contra a emergncia de
formas sistemticas de dominao poltica e econmica.
2a - Institucionalmente, o contrapoder toma a forma do que poderamos chamar de
instituies de democracia direta, consenso e mediao, que so a forma de publicamente
negociar e controlar o inevitvel conflito interno e as transformaes dentro destas condies
sociais (ou se voc preferir, formas de valores) que a sociedade entende como os mais
desejveis: convivialidade, unanimidade, fertilidade, prosperidade, beleza, em quaisquer
formas que se apresentem.
3 - Em sociedades amplamente desiguais, o contrapoder imaginativo geralmente define-se
contra certos aspectos de dominao e so vistos como particularmente indolentes e podem
se tornar uma tentativa de elimin-los completamente das relaes sociais. Quando isso
acontece, ele se torna revolucionrio.
3a - Institucionalmente, como um bem imaginativo, responsvel pela criao de novas
formas sociais, e a revalorizao ou transformao das formas antigas, e ainda,
4 - em momentos de transformao radical - revolues em termos antiquados - isso
precisamente o que permite a notria habilidade popular de inovar completamente em termos
polticos, econmicos e sociais. Portando, esta a raiz daquilo que Antonio Negri tem
chamado de "poder constituinte", o poder de criar constituies.
A maior parte das ordens constitucionais enxergam a si prprias
como tendo sido criadas por rebelies: a revoluo
estadunidense, a revoluo francesa, etc. Obviamente que nem
sempre foi o caso. Mas isto implica em uma questo muito
importante, porque qualquer antropologia engajada de fato ter de
comear por confrontar seriamente a questo do que (se que)
realmente divide o que costumamos chamar o mundo "moderno"
e o resto da histria humana, relegado aos Piaroa, Tiv ou
Malgaxe. Eis uma forma atravs da qual algum poderia imaginar
essa questo realmente controversa, mas receio que ela no pode
ser evitada, posto que, de outra forma, muitos leitores no
podero ser convencidos de que existem razes para existir uma
antropologia anarquista.
Explodindo barreiras
Fragmentos de uma Antropologia Anarquista
David Graeber
Como disse anteriormente, uma antropologia anarquista no existe de fato. Existem apenas
fragmentos. Na primeira parte deste ensaio, eu tentei juntar alguns deles e apontar para temas
comuns; nesta parte quero ir alm e imaginar um corpo de teoria social que possa existir em algum
momento no futuro.
[editar]Objees bvias
Antes de comear preciso fazer referncia a uma objeo corrente a qualquer projeto dessa
natureza: aquela que afirma que o estudo das sociedades anarquistas existentes na atualidade
simplesmente irrelevante para o mundo moderno. Afinal de contas, no estamos ns falando apenas
de um bando de primitivos?
Para anarquistas que conhecem alguma coisa sobre antropologia, os argumentos so todos muito
familiares. Um tpico argumento mais ou menos assim:
Ctico: Bem, eu talvez tome essa idia anarquista mais seriamente se voc puder me dar alguma
razo para pensar que isso funcionaria. Voc pode nomear um nico exemplo vivel de sociedade
que existiu sem governo?
Anarquista: Claro. Existiram milhares. Eu posso nomear uma dzia s de cabea: os Bororo, os
Baining, os Onondaga, os Wintu, os Ema, os Tallensi, os Vezo...
Ctico: Mas esses todos so um bando de primitivos! Eu estou falando de anarquismo em uma
sociedade tecnolgica moderna.
Anarquista: OK, pois houve vrios tipos de experimentos de sucesso com auto-gesto de
trabalhadores, como Mondragon; projetos econmicos/tecnolgicos baseados na idia da economia
da ddiva, como o Linux; vrios tipos de organizao poltica baseada no consenso e democracia
direta...
Ctico: Claro, claro, mas esses so pequenos, isolados exemplos. Eu estou falando de sociedades
inteiras.
Anarquista: Bem, no que as pessoas no tenham tentado. Veja a comuna de Paris, a revoluo
na Espanha...
Ctico: , e olhe o que aconteceu com esses caras! Eles foram mortos!
Os dados esto viciados. Voc no pode vencer. Quando um ctico diz "sociedade" o que ele
realmente quer dizer "estado", e at mesmo "estado-nao". J que ningum vai produzir um
exemplo de um estado anarquista -- isso seria uma contradio em termos -- o que ns realmente
estamos sendo perguntados por um exemplo de um estado-nao moderno com o governo de
alguma maneira ausente: uma situao na qual o governo do Canad, para pegar um exemplo
aleatrio, foi derrubado ou por alguma razo derrubou a si prprio, e ningum tomou o seu lugar,
mas, ao contrrio, todos os ex-cidados canadenses comearam a se organizar em coletivos
libertrios. Obviamente, isso nunca seria permitido acontecer. No passado, sempre quando parecia
que talvez isso pudesse acontecer -- aqui, a comuna de paris e a guerra civil espanhola so
excelentes exemplos -- os polticos no governo de todos os estados da vizinhana colocaram suas
diferenas de lado at que aqueles tentando trazer tal situao revolucionria a tona fossem
agrupados e baleados.
H um sada a qual seria aceitar que as formas de organizao anarquista no se pareceriam em
nada com um estado. Elas envolveriam uma infinita variedade de comunidades, associaes, redes,
projetos, em toda escala concebvel, sobrepondo e conectando de todas as formas que ns
conseguimos imaginar, e possivelmente de vrias que no conseguimos. Algumas seriam bem
locais, outras globais. Talvez tudo o que elas teriam em comum seria que nenhuma envolveria
algum se mostrando com armas e dizendo para todo o resto se calar, e fazer o que lhe mandando.
E isso, j que anarquistas no esto na realidade tentando medir poder no interior de qualquer
territrio nacional, o processo de um sistema substituindo o outro no tomaria a forma de um
repentino cataclisma revolucionrio -- o ataque a uma bastilha, a tomada de um palcio de inverno -
- mas seria necessariamente gradual, a criao de formas alternativas de organizao em escala
mundial, novas formas de comunicao, novas e menos alienadas formas de organizar a vida, as
quais iro eventualmente fazer as formas de poder existentes parecerem estpidas e sem sentido.
Isso, por sua vez, implicaria na existncia de infinitos exemplos de anarquismo vivel: praticamente
qualquer forma de organizao contaria, desde que no fosse imposta por uma autoridade superior,
desde uma banda de klezmer a um servio postal internacional.
Infelizmente, esse tipo de argumento no parece satisfazer a maioria dos cticos. Eles querem
"sociedades". Ento, ficamos limitados a tirar do registro histrico e etnogrfico entidades que se
parecem com um estado-nao (um povo, falando uma lngua comum, vivendo dentro de um territrio
delimitado, adquirindo uma srie comum de princpios de direito...) mas dispensando um aparato
estatal (o qual, seguindo Weber, pode-se definir grosseiramente como: um grupo de pessoas que
clamam que, ao menos quando esto por perto e em sua competncia oficial, eles so os nicos
com o direito de agir violentamente). Essas, tambm, se pode achar se algum se dispe a olhar
para comunidades relativamente pequenas e distantes no tempo ou no espao. Nesse caso, dito
que elas no contam por apenas essas razes.
Ento, estamos de volta ao problema original. Pressupe-se que h uma ruptura absoluta entre o
mundo em que vivemos e o mundo habitado por qualquer um que talvez seja caracterizado como
"primitivo", "tribal", ou at como "campons". Aos antroplogos no se pode culpar aqui: ns estamos
tentando por dcadas convencer o pblico de que no existe o tal "primitivo", aquelas "sociedades
simples" no so assim to simples, que ningum jamais existiu em isolao atemporal, que no h
sentido nenhum em falar de sistemas sociais como mais ou menos evoludos; mas at aqui, ns
tivemos muito pouco avano. praticamente impossvel convencer um americano mdio que um
grupo de amazonenses poderia ter alguma coisa para ensin-los -- exceto que ns deveramos todos
abandonar a civilizao moderna e ir morar na Amaznia -- e isso porque pressupe-se que eles
vivem em um mundo absolutamente diferente. O que se deve, de forma um tanto estranha, maneira
pela qual estamos acostumados a pensar sobre revolues.
Deixe-me recomear o argumento que iniciei a esboar na ltima seo e tentar explicar porque eu
penso que isso verdade:
um manifesto razoavelmente breve relativo ao conceito de revoluo:
O termo "revoluo" foi to abusado em seu uso corrente que ele pode significar quase qualquer
coisa. Em nossos dias, ns temos revolues toda semana: revolues bancrias, revolues
cibernticas, revolues mdicas, uma revoluo interntica toda vez que algum inventa algum
novo software.
Esse tipo de retrica somente possvel porque a definio comum de revoluo sempre implicou,
em certa medida, uma mudana de paradigma: um claro rompimento, uma ruptura fundamental na
natureza da realidade social, depois da qual tudo viria a funcionar de forma diferente, e as categorias
prvias no mais se aplicariam. isso que torna possvel afirmar que o mundo moderno resultado
de duas "revolues": a revoluo Francesa e a revoluo Industrial, apesar do fato de que as duas
no tiveram praticamente nada em comum a no ser o fato de marcar o rompimento com tudo o que
existia antes. Um estranho resultado que, como Ellen Meskins Wood notou, ns temos o hbito de
discutir o que chamamos de "modernidade" como se ela envolvesse a combinao da economia
laissez-faire inglesa e o governo republicano francs, apesar do fato de que os dois nunca realmente
aconteceram juntos: a revoluco industrial aconteceu sob uma bizarra, antiquada e ainda largamente
medieval constituio inglesa, e a Frana do sculo XIX era qualquer coisa menos liberal.
(O nico apelo da revoluo russa para o "mundo desenvolvido" parece consistir no fato de que ela
o exemplo no qual ambos tipos de revoluo parecem coincidir: a tomada do poder nacional o qual
levou rapida industrializao. Como resultado, praticamente todo governo do sculo XX do sul
global, determinado a tentar alcanar as potncias industriais, tambm reivindicou ser um regime
revolucionrio).
Se h algum erro lgico subjacente a tudo isso, ele est apoiado na ideia de que mudanas sociais
ou tecnolgicas tem a mesma forma que as "estruturas das revolues cientficas", tal como as
definiu Thomas Kuhn. Kuhn referia-se a eventos como a mudana de um universo Newtoniano para
um Einsteiniano: de repente, h uma grande descoberta intelectual e, em seguida, o universo est
diferente. Aplicado a qualquer outra coisa que no a revolues cientficas, tal erro sugere que o
mundo real equivalente ao nosso conhecimento dele e, no momento em que mudam os princpios
nos quais esto baseados nosso conhecimento, a realidade tambm muda. Esse justamente o tipo
de erro intelectual que se espera que superemos no incio da infncia, dizem os psiclogos
desenvolvimentais, porm, parece que apenas poucos de ns o fazem.
A verdade que o mundo no tem obrigao de viver de acordo com nossas expectativas e, na
medida em que a "realidade" se refere a alguma coisa, ela se refere precisamente quilo que nunca
poder ser completamente englobado por nossas construes imaginativas. Totalidades, em
particular, so sempre criaturas da imaginao. Naes, sociedades, ideologias, sistemas
fechados... nenhum desses existe realmente. A realidade sempre infinitamente mais bagunada
que isso - mesmo se a crena de que eles existem seja uma fora social inegvel. O costume de
pensar que o mundo, ou a sociedade, so sistemas totalizantes (nos quais cada elemento s possui
significado em relao aos outros elementos do sistema) tende a levar quase inevitavelmente a uma
viso de que as revolues so rupturas cataclsmicas. Afinal de contas, de que outro jeito seria
possvel substituir um sistema totalizante por outro se no por uma ruptura cataclsmica? A histria
humana, assim, torna-se uma srie de revolues: a revoluo neoltica, a industrial, a informacional,
etc., e o sonho poltico passa a ser o de controlar o processo; chegar ao ponto em que possamos
promover uma tal ruptura, uma descoberta importante que no somente vai "acontecer", pois
resultar diretamente de algum tipo de vontade coletiva. "A revoluo" propriamente dita.
Sendo assim, no surpreendente que, no momento em que pensadores radicais sentiram que
precisavam abdicar desse sonho, sua primeira reao foi redobrar os esforos em identificar
revolues acontecendo de qualquer forma, at o ponto em que, aos olhos de algum como Paul
Virilio, a ruptura seja o nosso permanente modo de ser, ou para algum como Jean Baudrillard, o
mundo muda completamente a cada dois anos, ou sempre que ele tem uma idia nova.
Isso no um apelo pela completa rejeio de tais totalidades imaginrias -- mesmo assumindo que
isso fosse possvel, o que provavelmente no , j que elas so provavelmente uma necessria
ferramenta para o pensamento humano. Esse um apelo para sempre se ter em mente que elas
so apenas isso: ferramentas de pensamento. Por exemplo, certamente positivo ser capaz de
questionar "depois da revoluo, como organizaremos o transporte de massas?", "quem financiar
a pesquisa cientfica?" ou at "depois da revoluo, voc acha que ainda existiro revistas de
moda?". As frases so teis articulaes mentais, ainda que ns reconheamos que na realidade, a
menos que ns estivessemos dispostos a massacrar milhares de pessoas (e provavelmente mesmo
assim), a revoluo quase com certeza no ser uma clara e completa ruptura como tal expresso
implica.
O que ser ento? Eu j fiz algumas sugestes. A revoluo em escala mundial levar um longo
tempo. Mas tambm possvel reconhecer que j est comeando a acontecer. A maneira mais fcil
para pararmos de nos iludir parando de pensar na revoluo como uma coisa -- "a" revoluo, a
grande ruptura cataclsmica -- e, em vez disso, perguntar "o que ao revolucionria?". Ns
poderamos, ento, sugerir: ao revolucionria qualquer ao coletiva que rejeita, e portanto
confronta alguma forma de poder ou dominao e, ao fazer isso, reconstitui relaes sociais --
mesmo no interior da coletividade. Ao revolucionria no necessariamente tem de almejar derrubar
governos. Tentativas de criar comunidades autnomas diante do poder (usando a definio de
Castoriadis aqui: aqueles que constituem a si prprios, coletivamente fazem suas prprias regras ou
princpios de operao, e continuamente os reexaminam), iriam, por exemplo, ser por definio aes
revolucionrias. E a histria nos mostra que a contnua acumulao de tais aes pode mudar
(praticamente) tudo.
(fim do manifesto)
Dificilmente fui eu o primeiro a argumentar nesse sentido - algumas de tais vises decorrem quase
necessariamente a partir do momento em que no pensamos mais em termos de estado e da tomada
do poder estatal. O que quero enfatizar aqui o que isso significa para a forma como olhamos para
a histria.
[editar]Um experimento no pensamento, ou, derrubando muros
O que proponho, essencialmente, nos engajarmos em um certo experimento de pensamento. E se,
tal como um recente ttulo sugere, "ns jamais fomos modernos"? E se nunca houve nenhuma
ruptura fundamental, e, portanto, ns no estamos vivendo em um universo moral, social e poltico
fundamentalmente diferente que o dos Piaroa, Tiv ou Malagasy?
H milhes de formas distintas de definir "modernidade". De acordo com alguns autores, ela
principalmente tem a ver com cincia e tecnologia, enquanto para outros ela uma questo de
individualismo; para outros, capitalismo, ou racionalidade burocrtica, ou alienao, ou algum ideal
de liberdade de tal ou tal tipo. A despeito da definio adotada, quase todos concordam que, em
algum momento do sculo dezesseis, dezessete ou dezoito, uma Grande Transformao aconteceu;
e ela ocorreu na Europa Ocidental e em suas colnias, e, por causa dela, nos tornamos "modernos".
Tornamo-nos criaturas completamente diferentes de qualquer coisa que tenha aparecido antes.
Mas... e se nos livrssemos de todo esse aparato? E se derrubssemos o muro? E se aceitssemos
que os povos "descobertos" por Colombo ou Vasco da Gama em suas expedies eram apenas ns
mesmos? Ou, certamente, to "ns" como eram Colombo ou Vasco da Gama?
No estou dizendo que nada de importante mudou nos ltimos quinhentos anos, nem dizendo que
diferenas culturais no so importantes. Em certo sentido, cada um, cada comunidade, cada
indivduo que seja, vive em seu nico universo. Ao falar em "derrubar os muros", quero dizer a maioria
deles: derrubar as percepes arrogantes e irrefletidas que nos dizem que no temos nada em
comum com 98% dos povos que j viveram, logo no precisamos pensar nesses povos. Visto que,
afinal de contas, se voc aceitarmos a suposio da ruptura fundamental, a nica questo terica
que resta a ser levantada uma variao de "o que nos faz to especial"? No momento em que nos
livrarmos de tal percepo e decidirmos aceitar a idia de que no somos to especiais quanto
gostaramos de pensar, poderemos tambm comear a pensar no que realmente mudou e no que
no mudou em nada.
Um exemplo:
Tem ocorrido um debate sobre quais vantagens especficas "o Ocidente" -- como a Europa Ocidental
e suas colnias tem gostado de chamar a si mesmas -- tinha sobre o resto do mundo que o
possibilitou conquistar tanto nos quatrocentos anos entre 1500 e 1900. Foi um sistema ecnomico
mais eficiente? Uma tradio militar superior? Teve a ver com o Cristianismo, ou Protestantismo, ou
um esprito de investigao racionalista? Foi simplesmente um questo de tecnologia? Ou teve a ver
com arranjos familiares mais individualistas? Alguma combinao desses fatores? Em grande
medida, a sociologia histrica do Ocidente tem se dedicado a resolver esse problema. E um sinal de
quo arraigados so esses pressupostos que s recentemente os acadmicos comearam a
sugerir que, talvez, a Europa Ocidental no tivesse nenhuma grande vantagem. Que a tecnologia,
organizao estatal, arranjos scio-econmicos e o todo o resto em 1450 no eram em nada mais
"avanados" do que aqueles que prevaleciam no Egito, Bengal, Fuji ou em qualquer outra parte
urbanizada do Velho Mundo naquele tempo. Talvez a Europa estivesse na frente em algumas reas
(e.g. tcnicas de guerra naval, gerncia de finanas); mas estava significativamente atrs em outras
(astronomia, jurisprudncia, tecnologia agrcola, tcnicas de guerra terrestre). Talvez no houvesse
nenhuma vantagem misteriosa. Talvez o que aconteceu foi uma coincidncia. A Europa Ocidental
acabou por estar localizada na parte do Velho Mundo onde era mais fcil navegar para o Novo; os
primeiros que o fizeram tiveram a incrvel sorte de descobrir terras cheias de enormes riquezas,
populadas por indefesos povos da idade da pedra, os quais morriam convenientemente quase no
momento da chegada deles; o sbito ganho resultante, e a vantagem demogrfica de ter terras com
excesso populacional para ser removido, era mais do que suficiente para explicar os sucessos
posteriores das potncias europias. Ento, foi possvel fechar a (muito mais eficiente) indstria txtil
indiana e criar espao para uma revoluo industrial, e devastar e dominar amplamente a sia a tal
ponto que, em termos tecnolgicos - particularmente em tecnologia industrial e militar - a regio ficou
para trs.
Vrios autores (Blaut, Goody, Pommeranz, Gunder Frank) tm argumentado nesse sentido nos
ltimos anos. A raiz do argumento moral, um ataque arrogncia Ocidental. Enquanto tal, o
argumento extremamente importante. Seu nico problema, em termos morais, que ele tende a
confundir meios e inclinaes. Ou seja, o argumento est baseado na idia de que os historiadores
Ocidentais estavam corretos ao presumir que, o que tornou possvel aos Europeus desapropriar,
abduzir, escravizar e exterminar milhes de outros seres humanos, era uma marca de superioridade,
e que, portanto, seria ofensivo aos no-Europeus sugerir que eles tambm no o tivessem. Eu acho
muito mais ofensivo sugerir que algum grupo viria a se comportar como os Europeus dos sculos
dezesseis ou dezessete - e.g., despovoando grandes pores dos Andes e do Mxico central ao
forar milhes a trabalhar at morrer nas minas, ou sequestrando um pedao significativo da frica
para trabalhar at a morte em plantaes de cana de aucar - ao menos que algum tenha uma
evidncia clara para sugerir que eles possuam tendncias to genocidas. Na verdade, existiram
muitos exemplos de povos em posio de liderar uma tal destruico em escala mundial - digamos, a
dinastia Ming no sculo quinze - mas que no o fizeram, no tanto porque hesitaram, mas porque
nunca os passaria pela cabea agir de tal forma para comeo de conversa.
No fim das contas, tudo depende em como se define o capitalismo. Quase todos os autores acima
citados tendem a ver o capitalismo como mais uma conquista que os Ocidentais, de forma arrogante,
pensam ter inventado sozinhos, e, assim, o definem (tal como os capitalistas o fazem) em termos de
negcios e instrumentos financeiros. Mas aquela vontade de colocar o lucro acima de qualquer
preocupao humana, que levou os Europeus a despovoar regies inteiras do globo a fim de colocar
a maior quantidade possvel de prata e aucar no mercado, era uma outra coisa. Parece-me que ela
merece um nome prprio. Por essa razo, melhor continuar definindo o capitalismo tal como seus
oponentes o fazem, como fundado em uma conexo entre o trabalho assalariado e o princpio da
busca eterna e interessada pelo lucro. Tal definio, por outro lado, torna possvel argumentar que o
capitalismo foi uma estranha perverso da lgica normal dos negcios, a qual acabou por tomar
conta de um lugar do mundo - que antes era um pouco brbaro - e encorajou seus habitantes a se
comportarem de uma maneira que, talvez, de outra forma, pudesse ter sido considerada abominvel.
Mais uma vez, nada disso tudo quer dizer que temos que concordar com a premissa de que o
capitalismo, uma vez criado, tornou-se imediatamente um sistema totalizante e que, a partir desse
momento, tudo que aconteceu somente pode ser compreendido em relao a ele. Mas sugere um
dos eixos pelos quais podemos comear a pensar no que realmente mudou nos dias de hoje.
Vamos imaginar, portanto, que o Ocidente, quaisquer que seja a sua definio, no era nada especial
e que, alm disso, no houve nenhuma ruptura fundamental na histria humana. Ningum pode
negar que houve mudanas quantitativas massivas: a quantidade de energia consumida, a
velocidade com que humanos viajam, o nmero de livros produzidos e lidos; todos esses nmeros
tem crescido exponencialmente. Mas vamos imaginar, em favor da argumentao, que tais
mudanas quantitativas, em si mesmas, no implicam necessariamente em mudanas qualitativas:
no estamos vivendo em um tipo de sociedade fundamentalmente diferente de outras que j
existiram, no estamos vivendo em um tipo de tempo fundamentalmente diferente; a existncia de
fbricas e microchips no significa que as possibilidades sociais e polticas tenham mudado em sua
natureza bsica; ou, para ser mais preciso, o Ocidente pode ter introduzido novas possibilidades,
mas no cancelou nenhuma das velhas.
A primeira coisa que se descobre ao tentar pensar dessa forma que extremamente difcil faz-lo.
preciso ultrapassar a infindvel multido de armadilhas e truques intelectuais que criam uma
muralha ao redor das sociedades "modernas". Deixe-me dar apenas um exemplo. comum distinguir
entre as chamadas "sociedades baseadas no parentesco" e as sociedades modernas, as quais esto
supostamente baseadas em instituies impessoais como o mercado e o estado. As socieades
tradicionalmente estudadas pelos antroplogos possuem sistemas de parentesco. Esto
organizadas em grupos de descendncia - linhagens, cls, metades, ou ramos - que traam a
descncia a ancestrais comuns, vivem principamente em territrios ancestrais, so vistas como
pessoas de um "tipo" similar - uma idia comumente expressada atravs de idiomas bio-fsicos de
carne, sangue, osso ou pele em comum. Frequentemente, sistemas de parentesco se tornam a base
da desigualdade social medida que alguns grupos so vistos como mais importantes que outros,
tal como em um sistema de castas, por exemplo; em todos os casos, o parentesco estabelece os
critrios para o sexo, o casamento e a transmisso de propriedade atravs das geraes.
O termo "baseadas no parentesco" frequentemente usado da mesma maneira que "primitivo"
costumava ser; essas so sociedades exticas que, de forma alguma, so como a nossa. (Por isso
que se presume que precisamos de antroplogos para estud-las; disciplinas completamente
diferentes, como a sociologia e a economia, so pensadas como necessrias para estudar
sociedades modernas). Porm, as mesmas pessoas que usam esse argumento no do o merecido
valor ao fato de que os principais problemas sociais em nossa prpria sociedade "moderna" (ou "ps-
moderna": para os prpositos presentes, exatamente a mesma coisa) envolvem raa, classe e
gnero. Em outras palavras, derivam precisamente da natureza de nosso sistema de parentesco.
Afinal de contas, o que significa dizer que a maioria dos americanos vem o mundo como dividido
em "raas"? Isso significa que eles acreditam que ele est dividido em grupos que se pressupe
compartilharem uma descndencia e uma origem geogrfica comuns, os quais, por essa razo, so
vistos como diferentes "tipos" de gente, e essa idia geralmente expressa por idiomas fsicos de
sangue e pele; o sistema resultante regula sexo, casamento e a herana de propriedade, criando e
mantendo desigualdades sociais. Ns estamos falando sobre algo muito similar a um clssico
sistema de cls, exceto em escala global. Pode-se objetar que h muitos casamentos interraciais
acontecendo, e, mais ainda, sexo interracial, mas isso apenas o que poderamos esperar. Estudos
estatsticos sempre revelam que, at em sociedades "tradicionais" como os Nambikwara ou Arapesh,
ao menos 5-10% da juventude esposa algum que eles no deveriam. Estatisticamente, os
fenmenos tm cerca da mesma significncia. Classe social um pouco mais complicado, uma vez
que os grupos so menos claramente delimitados. Ainda, a diferena entre uma classe dominante e
um grupo de pessoas de boa condio econmica , precisamente, parentesco: a habilidade de
casar o filho apropriadamente, e passar suas vantagens para seus descendentes. Pessoas se casam
atravessando linhas de classe tambm, mas raramente isso acontece; e enquanto a maioria dos
americanos acredita estar em um pas de considervel mobilidade de classe, quando requisitados a
exemplificar, tudo o que eles geralmente conseguem apresentar so algumas histrias de ascesso
econmica. praticamente impossvel achar um exemplo de um americano que nasceu rico e
acabou na ala pobre do estado. Ento, o que ns realmente estamos lidando a com o fato, familiar
a qualquer um que tenha estudado histria, de que as elites (exceto as poligmicas) no so nunca
capazes de reproduzir-se demograficamente, e por isso sempre precisam recrutar novo sangue (e
se eles so poligmicos, logo ele se torna um modo de mobilidade social).
Relaes de gnero so, obviamente, o prprio tecido do parentesco.
[editar]O que seria preciso para derrubar essas paredes?
Muito, eu diria. Muita gente est comprometida demais em mant-las. Isso inclui anarquistas,
acidentalmente. Ao menos nos Estados Unidos, os anarquistas que tomam a antropologia mais
seriamente so os primitivistas, uma pequena mas muito vocal faco que argumenta que a nica
forma de colocar a humanidade de volta nos trilhos descartar a modernidade inteiramente.
Inspirados pelo ensaio de Marshall Sahlins "A sociedade afluente original", eles sugerem a existncia
de um tempo em que a alienao e a desigualdade no existiam, quando todo mundo era caador-
coletor anarquista, que, portanto, a real libertao s poderia vir com o abandono da civilizao e o
retorno ao paleoltico, ou pelo menos ao comeo da era do ferro. Na verdade, ns no sabemos
praticamente nada sobre a vida no paleolitico, alm do tipo de coisa que pode ser inferida do estudo
de crnios muito antigos (i.e. no paleoltico as pessoas tinham dentes muito melhores e morriam
muito mais frequentemente de leses traumticas na cabea). Mas o que vemos no registro
etnogrfico mais recente uma infindvel variedade. Existem sociedades caadoras-coletoras com
senhores e escravos, existem sociedades agrrias que so ferozmente igualitrias. At nos
favorecidos lugares cativos de Clastres na Amazonia, acha-se alguns grupos que podem justamente
ser descritos como anarquistas, como os Piaroa, vivendo ao lado de outros (digamos os belicosos
Sherente) que so tudo menos anarquistas. E as "sociedades" esto constantemente em
transformao, passando para frente ou para trs na escala daquilo que pensamos como diferentes
estgios evolutivos.
Eu no acho que estamos perdendo muito em admitir que humanos nunca realmente viveram no
jardim do den. Derrubar as paredes pode permitir-nos ver essa histria como um recurso de forma
muito mais interessantes. Porque funciona das duas formas. No somente ns, em sociedades
industriais, ainda temos parentesco (e cosmologias); outras sociedades tem movimentos sociais e
revolues. O que significa, entre outras coisas, que tericos radicais no mais tem de meditar
interminavelmente acerca dos mesmos escassos 200 anos de histria revolucionria.