Post on 22-Nov-2015
ALGUMA ANTROPOLOGIA
MARCIO GOLDMAN
Rio de Janeiro
1999
Para Ilza Rodrigues, Gilmar,
Marinho e toda a famlia
A Liberdade parece com a linha do Equador
(Willians)
SUMRIO
I. Introduo
II. Uma categoria do pensamento antropolgico: a noo de pessoa
III. As lentes de Descartes: razo e cultura
IV. Lvi-Strauss e os sentidos da histria
V. Objetivao e subjetivao no ltimo Foucault
VI. O que fazer com selvagens, brbaros e civilizados?
VII. Como se faz um grande divisor? (em colaborao com Tnia Stolze Lima)
VIII. Antropologia contempornea, sociedades complexas e outras questes
IX. Teorias, representaes e prticas (em colaborao com Ronaldo dos Santos SantAnna)
X. Por que se perde uma eleio? (em colaborao com Ana Claudia Cruz da Silva)
XI. Bibliografia
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Introduo
Em At o Fim do Mundo, Wim Wenders conta a histria de uma grande inveno, uma
espcie de cmera revolucionria capaz de gravar imagens que poderiam ser vistas por cegos. Tema
tcnico-cientfico que duplicado por um enredo de ordem familiar: para sua esposa, cega, que o
inventor da mquina a produz; para que a me possa rever parentes e amigos h muito no vistos
que seu filho viaja por todo o mundo gravando imagens. O retorno do filho fecha o primeiro
segmento do filme, introduzindo ao mesmo tempo na trama, ao lado das dimenses tcnica e
familiar, um terceiro elemento, de ordem selvagem: o cientista tem seu laboratrio oculto em
uma aldeia de aborgenes australianos, que o auxiliam em suas pesquisas. Ao contrrio do que se
imaginava, as imagens tm um efeito desastroso sobre a mulher cega: cada vez mais triste devido
ao carter tnue de sua viso, acaba por morrer, episdio que fecha o segundo segmento do filme.
O segmento final gira em torno da transformao da cmera em um artefato capaz de gravar os
sonhos; os aborgenes no aceitam essa intromisso em um domnio para eles sagrado e partem; o
cientista, seu filho e a namorada que este encontrara em sua viagem tm um nico desejo: dormir
para sonhar, a fim de que, ao acordar, possam contemplar seus prprios sonhos. Aps a viagem
para fora, na direo de um mundo a ser visto por uma cega, uma viagem para dentro, na direo da
subjetividade mais ntima. Se a primeira experincia desembocara em uma crise familiar, neurtica
e edipiana, as consequncias da segunda so ainda mais graves: viciados em seus prprios
sonhos, perdidos nas imagens, os personagens se fecham para o mundo numa espcie de autismo
incontrolvel. Intervm neste momento dois elementos at ento aparentemente secundrios na
histria: o filho do inventor levado por seu irmo de sangue aborgene para dormir com dois
xams, especialistas em arrancar o sonho de dentro da alma. Desperta, assim, para a realidade
exterior. Sua namorada levada pelo ex-marido que a havia seguido; escritor, a histria do filme
que vemos que ele escreve, e ao l-la que a ex-esposa retorna de seu auto-encerramento.
A oposio entre o exlio nas imagens, exteriores ou interiores, e a criao de sentido , pois,
o grande tema do filme. Mesmo tema explorado por Michel Tournier em A Gota de Ouro. Aqui, um
jovem habitante do Saara tem seu destino completamente transtornado ao ser fotografado por uma
turista francesa. Fascinado por antigas crenas no poder da imagem sobre o modelo, parte para o
norte em busca de seu retrato. O que o espera na viagem, contudo, essa obsesso ocidental:
imagens, cada vez mais desprovidas de sentido. Em Paris, enfim, Idriss conhece um mestre
calgrafo que lhe conta a histria da Rainha Loira, mulher de rosto to belo que mesmo muitos
anos aps sua morte seu retrato capaz de enfeitiar um pescador a ponto de faz-lo esquecer tudo
e permanecer contemplando sua imagem. Preocupado com sua sorte, seu filho consulta um sbio
que ensina a ele a arte de decifrar o verdadeiro sentido das imagens: justapondo folhas de papel
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translcido sobre as quais havia previamente escrito algumas frases, o jovem capaz de recompor o
rosto da rainha -- desta vez no opaco e enfeitiador, mas pleno de sentido, contando a histria de
uma mulher cuja excessiva beleza havia condenado infelicidade. Quebrado o encanto da imagem,
o pescador recupera a realidade, podendo mesmo contemplar sem perigo o retrato agora
transformado em interlocutor.
Em certo sentido, tudo est dito nessas duas histrias, a que comea em Paris, terminando
entre os aborgenes australianos com a interveno do xamanismo e da escrita; a que comea entre
os nmades do Saara e termina em Paris, passando por um mestre misto de sbio e calgrafo. E tudo
est dito porque essas histrias refletem parte do que hoje parece estar em jogo em nossa sociedade:
a falsa viagem para fora ou para dentro conduzindo a um exlio disfarado em busca de realidades
transcendentes ou de subjetividades originrias. Finalmente, o que ainda mais interessante, nos
dois casos essa reflexo sobre ns mesmos e nosso destino atual conduzida pelo cruzamento de
dimenses centrais da nossa cultura -- literatura e escrita -- com elementos a ela exgenos --
aborgene australiano e nmade africano. No filme, xamanismo e literatura so solues
alternativas para o mesmo mal; no romance, escrita e simbolismo se completam para a obteno de
bons resultados.
Se verdade que a antropologia pode ser a nica ponte entre a civilizao ocidental e as
civilizaes primitivas (Clastres 1968: 37), ela certamente deveria ter algo a dizer, e um papel a
desempenhar, nesses encontros entre experincias como o xamanismo e a sabedoria tradicional, de
um lado, a escrita e a cincia de outro.
* * *
Os trabalhos reunidos neste volume testemunham parte de um trajeto iniciado h mais de 20
anos. Sempre tive um certo prazer em imaginar que ao contrrio da maior parte das trajetrias
intelectuais na academia, a heterodoxia da minha se traduziria por sucessivas mudanas de objeto
(e, at certo ponto, de orientao) e por minha incapacidade congnita em tornar-me especialista
no que quer que seja. Meu primeiro investimento terico e de pesquisa concentrou-se nos
chamados cultos afro-brasileiros, em especial a possesso no candombl. Em seguida, dediquei-me
a um trabalho sobre a histria do pensamento antropolgico, mais especificamente sobre Lucien
Lvy-Bruhl. Dedico-me hoje a uma investigao de antropologia poltica direcionada para o
estudo do processo eleitoral e do voto na sociedade brasileira.
Sempre gostei de pensar, pois, que esses objetos to diferentes no possuam, de fato,
qualquer tipo de conexo entre si. Entretanto, essa pretenso heterodoxia no durou muito, e
passei a me dar conta, com fora cada vez maior, de que uma srie de questes que agora se
colocam j haviam sido de algum modo antecipadas pelas pesquisas anteriores. Como disse
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Foucault (1984a: 17), acreditava-se tomar distncia e no entanto fica-se na vertical de si mesmo.
De forma menos pretensiosa, suponho que a permanncia de algumas questes aponta para uma
certa unidade mais profunda do trabalho antropolgico, unidade qual tendemos, por vezes, a no
dar a devida importncia.
Assim, o trabalho sobre a possesso no candombl j levantava as dificuldades que pairam
sobre o tema de uma antropologia das chamadas sociedades complexas, com todos os problemas
que a se colocam em torno da correlao de fenmenos supostamente locais ou parciais com
estruturas tidas como mais gerais. A investigao sobre Lvy-Bruhl, por sua vez, colocava um
conjunto de questes mais amplo, abrangendo desde as possveis formas de abordagem e utilizao
do pensamento antropolgico at os debates, sempre atuais, acerca de temas como a racionalidade,
o relativismo, a insero tico-poltica da antropologia
Minha pesquisa sobre as religies afro-brasileiras desenrolou-se entre 1978 e 1984,
conduzindo redao de uma dissertao de mestrado (Goldman 1984) e alguns outros trabalhos
(Goldman 1985, 1990; Contins e Goldman 1984). Tratava-se a, fundamentalmente, de explorar
certas dimenses estruturais internas ao sistema de crenas do candombl, alternativa adotada em
funo da percepo de que os cultos afro-brasileiros vinham sendo estudados h quase um
sculo a partir de duas perspectivas bsicas -- perspectivas que evidentemente no so excludente e
que, em ltima instncia, dizem respeito a duas perspectivas possveis frente a toda e qualquer
instituio social. Simplificando muito, costuma-se com efeito dizer que possvel encarar os fatos
sociais seja do ponto de vista de sua estrutura interna, seja a partir das mltiplas relaes que
mantm com o restante da ordem social. Assim, os grupos que compem as religies afro-
brasileiras foram abordados ora segundo as relaes que os constituem de dentro, ora de acordo
com o lugar que ocupariam na estrutura social mais inclusiva, tratando-se ento de perceber suas
articulaes com outros fatos sociais. Essa segunda perspectiva se imps especialmente a partir da
dcada de 60, acompanhando a constatao de que, particularmente em uma sociedade complexa,
a plena compreenso de uma manifestao sociolgica qualquer s poderia se dar atravs da
contextualizao do fenmeno visado na real posio por ela ocupada frente a outros fatos sociais
fundamentais.
O probIema que essa anlise externa desembocava em uma perspectiva mais ou menos
reducionista que, insistindo na idia de que os cultos seriam o reflexo ou a expresso da
sociedade abrangente, acabava at mesmo por perder os meios para compreender efetivamente o
que viria a ser essa sociedade. Em termos muito simplificados: se cada fenmeno social
especfico expresso da sociedade, esta s pode ser reduzida a um quase nada, ou a um
princpio ideal extremamente impreciso -- herana durkheimiana da qual a antropologia ainda no
se livrou. O fato, parece-me, que as diferentes esferas da vida social compem a totalidade social,
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no simplesmente refletem ou exprimem um todo social concebido, ao menos implicitamente, como
anterior a suas manifestaes especficas.
No caso particular dos cultos afro-brasileiros, h uma questo que permeia seu estudo e que
se situa para alm das distintas perspectivas adotadas pelos pesquisadores. Seja ao enfatizar
aspectos mais internos ao culto, seja ao deslocar a questo para suas ligaes com fenmenos
exteriores, os estudos afro-brasileiros sempre demonstraram uma preocupao com a intrigante
permanncia, no interior de uma sociedade que se industrializa e moderniza, das formas de culto
que buscavam analisar. Se os primeiros autores que trataram do tema dedicaram uma maior ateno
aos aspectos estruturais do culto, isso se deve, ao menos em parte, ao fato de acreditarem que a
resposta para a questo da permanncia no constitua, em si mesma, um problema. Tratar-se-ia, de
seu ponto de vista, de meras sobrevivncias que a lenta obra da cultura deveria extinguir
progressivamente.
Desse ponto de vista, os autores mais contemporneos parecem simplesmente inverter as
questes, mais que modific-las, fazendo, por assim dizer, da necessidade virtude: se o mistrio se
resumia a compreender a convivncia das religies africanas no Brasil com os processos de
modernizao, e se no mais possvel aplicar conceitos como os de sobrevivncia, nada melhor
do que fazer da prpria modernizao a causa da permanncia -- e mesmo do desenvolvimento --
destas religies, tratando de explic-las como reflexo, direto ou invertido, das estruturas atuais que
as sustentariam.
Em suma, parecia-me que a percepo correta de que uma anlise estritamente interna era
insuficiente para a compreenso de fenmenos integrados em uma sociedade mais ampla, no era
acompanhada por um esforo destinado a avaliar o modo pelo qual o fenmeno estudado
participava efetivamente desta sociedade, mais do que simplesmente a exprimia ou refletia.
Com esse diagnstico na cabea, escrevi o trabalho sobre a possesso de uma perspectiva
resolutamente internalista e, assim que o conclu, tratei de elaborar um projeto destinado a
investigar histrica e sociologicamente a questo da insero das religies afro na sociedade
brasileira, projeto que jamais se concretizou. E isso devido a uma srie de razes, entre as quais
uma espcie de crise intelectual pessoal que conduzia a um questionamento incessante, e algo
irritante, sobre o que e o que faz a antropologia. Demorou um pouco para que eu percebesse que
a verdadeira questo o que ela pode ser e pode fazer.
Essa crise s foi superada com o trabalho sobre Lvy-Bruhl, iniciado de forma um pouco
casual e, devo confessar, algo mal intencionada. Foi apenas aps dez anos de estudos em
antropologia, com um interesse especial pelas questes relativas histria da disciplina, que li pela
primeira vez um texto desse autor, provavelmente motivado pelo que considerava uma carncia em
meu conhecimento acadmico das teorias antropolgicas. At a eu o conhecia apenas atravs de
comentadores, tendo me deparado com eles quando trabalhava com os cultos afro-brasileiros. Eu
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me contentava ento, certamente, com as opinies estabelecidas. A primeira leitura, bem
limitada, alterou muito pouco essa primeira impresso, servindo antes para me garantir que Lvy-
Bruhl seria realmente esse smbolo condensado de tudo aquilo que a antropologia no deveria ser.
A prpria deciso de escrever um trabalho sobre este autor foi tomada nesse clima. Eu imaginava
poder efetuar uma crtica radical de tudo aquilo que, explicitamente presente em Lvy-Bruhl, podia
em geral funcionar como obstculo epistemolgico para toda a antropologia. A leitura extensiva e
intensiva dessa obra logo comeou a modificar essa posio. Na medida em que me dava conta de
que as coisas poderiam no ser to simples e ntidas quanto pareciam, resolvi usar o autor como
uma espcie de instrumento crtico numa polmica com as principais correntes da antropologia. Ou
seja, imaginei mostrar como problemas e defeitos tericos usualmente detectados e criticados na
obra de Lvy-Bruhl podiam ser encontrados em autores pouco suspeitos de qualquer conivncia
com ele; mostrar como os impasses desse autor seriam, no fundo, os de toda a tradio
antropolgica. Finalmente, o trabalho assumiu a forma de uma confrontao entre a obra do autor
(sistematicamente investigada e mapeada) e o saber antropolgico, confronto cuja funo era
explorar as potencialidades do pensamento de Lvy-Bruhl e, ao mesmo tempo, apontar possveis
alternativas para a antropologia contempornea (ver Goldman 1994; 1998).
Esse trabalho sobre Lvy-Bruhl encontrava-se em pleno andamento quando a vitria de
Fernando Collor de Mello nas eleies presidenciais de 1989 me fizeram pensar que se a
antropologia no fosse capaz de dizer algo importante e interessante sobre acontecimentos dessa
natureza ela deveria definitivamente abrir mo de qualquer tentativa de investigar nossa prpria
sociedade. claro tambm que uma questo desse tipo s faz sentido quando no reduzimos o
saber antropolgico a uma cincia e/ou a uma especialidade acadmica. Ou seja, s faz sentido
quando somos realmente afetados pelo que a antropologia tem a dizer e, principalmente, por sua
forma de encarar as coisas.
Entretanto, foi apenas durante as eleies presidenciais seguintes (em 1994), que a intuio
de 1989 pde comear a tomar a forma de um projeto. Este projeto foi posto em andamento com
uma investigao transversal das representaes construdas sobre o processo eleitoral por
diferentes camadas sociais em vrios contextos. As eleies municipais de 1996 ofereceram a
oportunidade para que esse recorte transversal fosse complementado e transformado com
investigaes realizadas em contextos empricos especficos (no Estado do Rio de Janeiro e na
Bahia), permitindo o incio da substituio dos grandes panoramas pelas complexidades reais. Pois,
como vem sendo demonstrado por uma srie de pesquisas antropolgicas sobre a poltica em nossa
sociedade, a compreenso desse domnio depende do estabelecimento das conexes sempre
especficas entre as vrias dimenses que compem a poltica e o restante do contexto social (ver
principalmente Goldman e Palmeira 1996; Palmeira e Goldman 1996; Barreira e Palmeira 1998).
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* * *
Os desenvolvimentos das questes rapidamente evocadas acima encontram-se nos textos aqui
reunidos (assim como em Goldman 1998b; 1999; Neiburg e Goldman 1998). Ainda que escritos
entre 1993 e 1998, eles abarcam, de uma forma ou de outra, os temas que ocuparam meu trajeto
pela antropologia -- que acaba, assim, assumindo um aspecto no linear bem diferente do que eu
mesmo imaginava.
, pois, apenas retrospectivamente que percebo que o texto sobre a noo de pessoa1 faz
uma mediao complicada entre os trabalhos sobre os cultos afro-brasileiros -- que se centravam
justamente na construo da pessoa no candombl -- e aqueles sobre a histria do pensamento
antropolgico e sobre poltica. Partindo do texto clssico de Mauss a respeito do tema e fazendo um
rpido histrico da questo, trata-se a de explicitar algumas das ambiguidades implicadas por uma
das categorias mais utilizadas pela antropologia, e de propor algumas vias alternativas para a
recuperao do potencial criativo que a pessoa sempre representou na reflexo antropolgica.
Objetivo cumprido atravs de uma tentativa de afastar a noo de seu uso puramente ideolgico,
conectando-a com a dimenso poltica das prticas sociais.
Os quatro textos que se seguem abordam diretamente o pensamento e a obra de determinados
autores: Descartes2, Lvi-Strauss3, Foucault4, Deleuze e Guattari5. A diversidade desses autores
traduz uma tenso que durante muito tempo perturbou minha reflexo, levando-me a crer que o
trabalho propriamente antropolgico deveria se concentrar em autores como Lvi-Strauss, por
exemplo. Pensadores como Foucault ou, principalmente, Deleuze, poderiam oferecer uma espcie
de passatempo intelectual interessante mas no deveriam ser includos na pesquisa antropolgica --
posio que , sem dvida, a mais corrente na academia. Foi necessrio um certo amadurecimento,
bem como a prolongada reflexo sobre um autor (Lvy-Bruhl) excludo das vertentes dominantes
da antropologia para que eu me desse realmente conta que esse tipo de recorte nada vale.
O que h de comum nesses quatro textos o esforo para captar a dimenso menor do
pensamento de autores muito diferentes. claro que essa tarefa parece mais fcil com pensadores
como Lvy-Bruhl, mas ela perfeitamente possvel com autores como Lvi-Strauss ou mesmo
Descartes. Para isso, preciso sempre lembrar que a distino deleuziana entre o maior e o
menor no implica em nenhum tipo de dualismo ou, muito menos, maniquesmo. O menor no
um dado, mas o resultado de uma operao, de uma cirurgia: qualquer autor
simultaneamente maior e menor; ou, antes, toda obra pode ser explorada no que tem de maior ou de
menor. O mximo que poderamos dizer -- e isso no desprovido de importncia mas no deve ser
superestimado -- que os autores podem ser mais ou menos adequados para usos menores.
O texto sobre Lvi-Strauss procura, assim, mostrar, a dimenso subversiva que comporta sua
reflexo sobre a histria, ponto usualmente deixado de lado ou mal compreendido nas anlises
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sobre o autor. O trabalho sobre Descartes consiste, na verdade, numa tentativa de articulao
propriamente antropolgica entre seu pensamento e aquele de Montaigne, tentativa realizada sob a
luz do pensamento de Lvy-Bruhl. Os textos sobre Foucault e sobre Deleuze e Guattari tentam,
mais especificamente, demonstrar a possibilidade e a utilidade de uma recuperao desses autores
pela antropologia.
Alm disso, esses textos compartilham de uma certa descrena na pertinncia dos
procedimentos de tipo comentrio. Como se sabe, esses procedimentos pressupem, queiramos
ou no, um inacabamento dos textos originais, lacunas de que os autores no teriam conscincia.
Ou, ao contrrio, que eles transbordam de tal maneira sua letra que se faz necessria uma
interveno exterior destinada a revelar tudo o que o texto de fato conteria. Em ambos os caso, o
comentador se atribui uma posio de exterioridade e de superioridade que prefiro evitar. Trata-se,
ao contrrio, de tomar o texto como algo pleno, sem falta ou excesso, o que significa tentar
estabelecer com ele todo um jogo de articulaes muito mais enriquecedor e produtivo. Em suma,
ao recusar comentar os textos, abre-se a possibilidade de cruz-los como o que de melhor existe na
tradio antropolgica, de modo que se enriqueam e se reforcem mutuamente.
Os dois textos subsequentes testemunham de forma mais clara a passagem, ou antes, a
articulao entre a histria do pensamento antropolgico e a antropologia das chamadas sociedades
complexas. O primeiro, escrito em colaborao com Tnia Stolze Lima6, discute justamente a falsa
oposio entre o que seriam dois tipos de antropologia supostamente derivados de uma oposio
entre dois tipos de sociedade. O texto sobre as sociedades complexas foi escrito em 19947 e
representou precisamente a sntese de uma srie de reflexes a que me dediquei tentando articular a
temtica da histria da antropologia com a investigao emprica de fenmenos centrais nas
sociedades chamadas, com presuno, de complexas. Nos dois casos, trata-se, quase, de reafirmar o
bvio: que no existem sociedades simples ou complexas, e que a complexidade no corresponde a
propriedades do objeto mas a um certo ponto de vista. O que no significa remeter para uma
espcie de complexidade generalizada que aboliria no s todas as diferenas mas a si mesma.
Ao contrrio, as complexidades so sempre especficas, singulares, e cada sociedade corresponde a
um arranjo particular de elementos e processos gerais. Esse , suponho, o caminho para ultrapassar
as armadilhas da identidade absoluta e do relativismo generalizado, retomando assim, em novas
bases a questo antropolgica mais clssica. Em lugar de escolher entre o particular e o universal,
trata-se de determinar singularidades, entendidas como combinatrias locais (o que no significa
diferena absoluta e irredutvel) de linhas de fora difusas (o que no significa universalidade
absoluta).
Os dois ltimos textos lidam diretamente com o tema que escolhi para desenvolver esse
trabalho de investigao de fenmenos centrais em nossa sociedade: as eleies e o voto. Um,
escrito em colaborao com Ronaldo dos Santos SantAnna8, corresponde primeirssima fase de
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investigao do tema, realizada por ocasio das eleies nacionais de 1994 e qual me referi acima
como uma abordagem transversal das representaes sobre o voto. Abordagem que cedeu lugar,
como vimos, a reflexes apoiadas sobre duas etnografias precisas. A primeira, realizada no Estado
do Rio de Janeiro, concentrou-se no esforo para captar como o jogo eleitoral e o voto se
descortinavam do ponto de vista de algum que pretendia obter um cargo eletivo. Acompanhei,
assim, com o auxlio de Ana Cludia Cruz da Silva, toda a trajetria de um candidato reeleio
para a Cmara de Vereadores do municpio. A partir da anlise dessa candidatura, foi possvel
perceber o carter crucial dos processos retricos que envolvem as explicaes nativas para sua
derrota eleitoral. O resultado dessa pesquisa o artigo, tambm escrito em colaborao com Ana
Cludia Cruz da Silva, aqui republicado9.
As eleies municipais de 1996 tambm foram o momento do deslocamento do foco emprico
das investigaes sobre o voto e as eleies para a cidade de Ilhus. Ao contrrio do que ocorreu no
Estado do Rio, o trabalho de campo no sul da Bahia voltou-se para o acompanhamento das eleies
a partir da perspectiva de um determinado grupo de eleitores. Em 1983, eu havia passado cerca de
quatro meses nessa cidade, realizando parte da pesquisa de campo que resultou em minha
dissertao de mestrado. Meu trabalho se concentrara no Ew Tombency, terreiro da nao Angola
que possui uma longa tradio, sustentando-se hoje em uma forte organizao familiar, composta
pela me de santo e quatorze filhos carnais (e respectivas famlias), que fornece a base de
funcionamento de uma unidade que transcende por todos os lados a dimenso exclusivamente
religiosa.
Desde ento continuei mantendo contatos peridicos em Ilhus, tendo assim presenciado a
fundao do Grupo Cultural Dilazenze, cuja diretoria quase inteiramente formada por filhos
carnais da me de santo do terreiro Ew Tombency. O Dilazenze faz parte do movimento negro de
Ilhus, e composto por um grupo de dana afro, um bloco carnavalesco afro e uma banda. No
incio de 1996, passei um ms na cidade, aproveitando a ocasio para efetuar os primeiros
levantamentos sobre poltica. Dei-me conta, assim, do forte envolvimento de parte dos membros
do terreiro e do Dilazenze com essa atividade. Ao longo dos meses de setembro e outubro de 1996,
acompanhei diretamente as eleies municipais em Ilhus, concentrando-me justamente no
Movimento Afro-Cultural da cidade, parte do movimento negro que, em oposio ao que
definem como o carter excessivamente poltico do Movimento Negro Unificado, se autodefine
como cultural.
Em 1998 e no comeo de 1999, realizei cerca de cinco meses de trabalho de campo intensivo
em Ilhus, acompanhando as eleies nacionais e seus desdobramentos na cidade. Ainda que a
religio no seja mais meu objeto central, o retorno a Ilhus me sugeriu uma imagem em espiral de
meu trajeto. Os primeiros resultados dessa pesquisa em andamento ainda esto sendo analisados, e
por isso que esto ausentes deste volume, cuja preparao, iniciada justamente em Ilhus, foi
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certamente inspirada por esse retorno ao mesmo grupo que eu havia estudado h quinze anos. Pois
como todo mundo, meus amigos de Ilhus no so apenas fiis do candombl; eles so tambm
militantes do movimento negro, artistas, eleitores, membros de uma famlia, de uma vizinhana,
etc. Eles no me deixaram esquecer, portanto, que os recortes a que submetemos a vida social
testemunham apenas nossas prprias incapacidades e limitaes, e a todos eles, na verdade, que
dedico esse livro.
H outros ainda a quem eu gostaria de agradecer: a todos aqueles que, ao longo dos anos em
que foram escritos os textos aqui reunidos, foram, advertida ou inadvertidamente, interlocutores de
diferente natureza e influncias mais ou menos presentes dependendo da poca e do tema: Ana
Cludia Cruz da Silva, Ana Paula Ratto de Lima, Clara Lourido, Eduardo Lemgruber, Eduardo
Viveiros de Castro, Emerson Giumbelli, Fabola Rohden, Federico Neiburg, Francisco Portugal,
Gabriela Scotto, Ivana Stolze Lima, Jos Carlos Rodrigues, Jos Maurcio Arruti, Karina Kuschnir,
Ktia Maria Pereira de Almeida, Mariza Peirano, Moacir Palmeira, Otvio Velho, Paulo Rodrigues
dos Santos, Peter Gow, Ronaldo dos Santos SantAnna, Thereza Menezes, Wagner Neves Rocha.
Eximo a todos, claro, de qualquer responsabilidade pelo que se segue, e peo desculpas queles
que, porventura, eu tenha esquecido de mencionar.
Agradeo ainda aos colegas, alunos e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalho; a
todos os colegas e funcionrios do Ncleo de Antropologia da Poltica (NuAP), do qual fao parte;
ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), rgo do qual sou
pesquisador bolsista; FINEP, de onde tambm se origina parte do financiamento que garante
minhas pesquisas.
Finalmente, e principalmente, aos do mesmo barco, Tnia Stolze Lima e Ovdio Abreu Filho:
porque, de fato, muito bom rir das mesmas coisas e no ter que se explicar.
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II. Uma categoria do pensamento antropolgico: a noo de pessoa
Uma magnfica resposta -- mas qual era a pergunta. Eis como Steven Lukes (1985, p. 282)
abre uma coletnea de ensaios a respeito do texto de Marcel Mauss que baliza praticamente todas
as discusses contemporneas em torno da noo de pessoa. De fato, j h algum tempo essa
questo parece to obviamente importante aos antroplogos que costumamos esquecer a enorme
quantidade de problemas que se ocultam atrs da aparente simplicidade do tema. Dada a verdadeira
proliferao de estudos acerca deste objeto, curioso que Michel Cartry (1973, p. 15-16) lamente
o estado de abandono ao qual a antropologia social teria relegado a questo da pessoa depois dos
trabalhos pioneiros de Lvy-Bruhl, Mauss e Leenhardt. Abandono cheio de riscos, segundo Cartry,
uma vez que a no considerao do problema levaria a deixar de lado um aspecto sempre presente
no pensamento selvagem, a saber, a imagem do homem que este necessariamente comportaria.
Alm disso, prossegue o autor, ao no investigar sistematicamente essa imagem, os antroplogos
perderiam a capacidade de dar conta do modo pelo qual os grupos pensam as relaes do homem
com a natureza e as instituies sociais, abrindo as portas para a projeo de nossa prpria noo de
pessoa sobre as outras sociedades. Cometeramos, assim, o pecado capital da disciplina, o
etnocentrismo, aqui travestido de individualismo.
Mas o etnocentrismo tem suas artimanhas e seria possvel indagar se a insistncia na questo
no poderia refletir igualmente uma preocupao especificamente ocidental. Tudo indica que desde
as tcnicas de si na Grcia Antiga at os debates contemporneos em torno dos dilemas da
identidade -- passando pela experincia crist e pelas mais variadas formulaes filosficas -- o
problema da pessoa, ou do indivduo, jamais deixou de obcecar o Ocidente. E isso a despeito de
todas as formas de valorao positivas, negativas, ambguas ou supostamente neutras que nosso
processo de individualizao possa ter recebido. Que essa questo seja igualmente central para toda
e qualquer sociedade uma questo em aberto. Se h aqueles, como Cartry, que sustentam a
presena universal da pessoa, outros (por exemplo, Carneiro da Cunha, 1979, p. 31) acreditam
que a noo no absolutamente um invariante sociolgico, e que s culturas que desenvolveram
uma concepo desse tipo poderiam ser legitimamente opostas outras, para as quais o fato emprico
da existncia do indivduo humano no teria recebido maior elaborao conceitual.
Os objetivos deste trabalho certamente no exigem uma resposta conclusiva a essa questo.
Alm disso, no se trata evidentemente de buscar propor uma nova conceituao da pessoa ou do
que quer que se deseje designar com este termo. O que se pretende aqui simplesmente elaborar
um mapeamento do campo coberto por este debate. De qualquer forma, claro que nenhum mapa
pode se supor ingnuo, e a partir do que apresentarei talvez seja possvel avanar uma
problematizao mais profunda do tema, bem como algumas indicaes sobre como poderamos
proceder em relao a ele. Nesse sentido, a primeira constatao que se a noo de pessoa
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evidentemente varia de sociedade para sociedade, a noo desta noo no parece variar menos de
antroplogo para antroplogo. Pessoa, personalidade, persona, mscara, papel, indivduo,
individualizao, individualismo, etc, so palavras empregadas ora como sinnimos ora como
alternativas -- ou ainda em oposio umas s outras. Isso provoca uma certa confuso
terminolgica que no tenho a menor pretenso de ser capaz de resolver, mas que vale a pena de
toda forma tentar expor, uma vez que, como diz Paul Veyne (1978, p. 9), a indiferena pelo debate
sobre palavras se acompanha ordinariamente por uma confuso de idias sobre a coisa.
* * *
praticamente uma unanimidade entre os antroplogos situar o incio do debate sobre a
noo de pessoa em um texto um pouco enigmtico de Marcel Mauss, escrito em 1938. Uma
Categoria do Esprito Humano: a Noo de Pessoa, Aquela de Eu, pretende testar e aplicar a
hiptese durkheimiana de uma histria social das categorias do esprito humano no nvel das
concepes acerca da prpria individualidade. Trata-se de mostrar como, a partir de um fundo
primitivo de indistino, a noo de pessoa que conhecemos e qual atribumos erroneamente
existncia universal, se destaca lentamente de seu enraizamento social para se constituir em
categoria jurdica, moral e mesmo lgica. Do personagem primitivo, existente apenas enquanto
encarnao de um ancestral, teramos chegado assim pessoa moderna, supostamente existente em
si mesma -- passando pelas etapas da persona latina, da pessoa crist, do eu filosfico e da
personalidade psicolgica. Num certo sentido, portanto, o estudo absolutamente durkheimiano.
Mais do que isso, parece se esforar por resolver uma questo um pouco incerta no pensamento do
prprio Durkheim. Sua sociologia, como se sabe, postulava que a autonomizao progressiva do
indivduo face totalidade social s poderia ser compreendida como um efeito do desenvolvimento
da prpria sociedade, que, ao se diferenciar internamente, permitiria a diferenciao concomitante
de seus membros. No entanto, esse processo propriamente morfolgico deve se fazer acompanhar
pela elaborao de uma noo que o realize simultaneamente no plano das representaes:
a evoluo culmina na elaborao de uma representao racional da pessoa,
de carter mondico e independente (Beillevaire e Bensa, 1984, p. 539).
Por outro lado, se a anlise de Mauss cumpre esse objetivo durkheimiano, num outro sentido,
o texto parece escapar dos quadros mais rgidos da escola sociolgica francesa. Sob a evoluo
quase linear da noo de pessoa, o que acaba sendo revelado a variao das representaes sociais
em torno do indivduo humano. verdade que Mauss tem o cuidado de distinguir o sentimento, o
conceito e a categoria de pessoa, fazendo da ltima um privilgio ocidental. De qualquer forma, a
13
ateno na oscilao dos sentimentos e conceitos no deixa de constituir uma radicalizao do
projeto mais geral da sociologia durkheimiana. O texto apresenta, portanto, duas vertentes, que
poderamos denominar muito precariamente de evolutiva e de relativista. difcil, contudo, deixar
de concluir que, no esprito de Mauss, a primeira leva a melhor. Tudo se passa como se ele
buscasse, atravs das incontestveis variaes a que a noo de pessoa est submetida ao longo da
historia e entre as sociedades, o caminho que teria conduzido ao pleno reconhecimento de uma
essncia dada confusamente desde o incio -- o que constitui, alis, procedimento recorrente nas
anlises da escola sociolgica francesa.
* * *
Apesar de todas as homenagens, A Noo de Pessoa no , certamente, o primeiro texto da
histria da antropologia a abordar essa questo. O prprio Mauss (1929a) j havia tratado do tema
quase dez anos antes, por ocasio de um debate em torno do livro de Lvy-Bruhl sobre A Alma
Primitiva, publicado em 1927. Livro que pretendia justamente estudar
como os homens que se convencionou chamar primitivos se representam sua
prpria individualidade (Lvy-Bruhl, 1927, Avant-Propos).
claro que os princpios gerais adotados por Lvy-Bruhl no podiam permitir que traasse uma
evoluo ou uma histria no estilo da de Mauss. Para ele, no haveria nenhuma elaborao mais
sofisticada a respeito do ser humano enquanto indivduo nas sociedades primitivas, e o que se
poderia apreender em suas representaes que este jamais pensado independentemente do que o
cerca, de suas roupas a seus antepassados reais ou mticos. O indivduo no passaria de um lugar
de participaes, e, para compreender como chegamos a uma noo da pessoa em si, seria preciso
abandonar o postulado de uma lenta evoluo ascendente, substituindo-o pela hiptese de uma
mutao de ordem mental que teria feito com que passssemos a ver seres individuais l onde os
primitivos enxergavam apenas relaes e participaes totais. nesse esprito que, alguns anos
mais tarde, Maurice Leenhardt (1947) empreender a investigao da Pessoa e o Mito no Mundo
Melansio.
Mas possvel recuar mais um pouco. Num trabalho fascinante, Adam Kuper (1988)
demonstrou que a elaborao de uma imagem das sociedades ditas primitivas, bem como das
tradicionais, cumpriu a funo poltica e intelectual de permitir o desenvolvimento de imagens da
sociedade moderna, de nossa prpria cultura. Atravs de um curioso jogo de espelhos, partia-se
de uma concepo mais ou menos implcita da sociedade ocidental, encontrava-se nos primitivos o
inverso dessa estrutura, e confirmava-se, assim, nossa originalidade e superioridade. Desse modo,
14
desde 1861, Maine pde opor o contratualismo do Ocidente ao carter estatutrio das sociedades
primitivas e tradicionais. imerso do indivduo no grupo e nas relaes sociais, nossa cultura
teria contraposto, a partir do direito romano, a livre associao de indivduos. Lembremos que
Mauss situava seu trabalho sobre a pessoa na esfera do direito e da moral e que Maine era um
jurista preocupado em provar a inviabilidade da aplicao direta da legislao britnica na ndia:
baseada no contratualismo e no utilitarismo, como poderia funcionar em uma sociedade que no
saberia reconhecer conceitualmente o indivduo? Status e Contrato so efetivamente outros nomes
para o que se costuma designar por sociedade e indivduo. Nesse sentido, haveria ainda muito a
dizer sobre o papel da sociedade hindu na constituio e desenvolvimento do pensamento
antropolgico, bem como sobre os aspectos morais e jurdicos que marcam a emergncia deste
ltimo.
De qualquer forma, no se trata de negar que o texto de Mauss constitua um marco decisivo
dos estudos sobre a pessoa. Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro buscam situ-lo na origem de
uma das duas vertentes que distinguem na contribuio antropolgica sobre o tema. Seria preciso
acrescentar apenas que, como vimos, o prprio trabalho de Mauss apresenta dois aspectos, o
evolutivo e o relativista. certamente no segundo que se pensa quando se afirma o pano de fundo
maussiano dos estudos das
noes de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas -- explcitas ou
implcitas -- enquanto, portanto, construes culturalmente variveis (Seeger,
DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5).
A incluso da obra de Louis Dumont nessa vertente s me parece pertinente, contudo, se
admitirmos, como tentarei mostrar adiante, que seus trabalhos se ancoram no aspecto evolutivo do
texto de Mauss -- mais do que no relativista, em todo caso. Antes, porm, cumpre deter-se um
pouco nos estudos acerca da variabilidade cultural das noes de pessoa.
Alm do j mencionado trabalho de Leenhardt -- que aliava inspirao maussiana princpios
tomados a Lvy-Bruhl -- esses estudos parecem ter se desenvolvido especialmente entre os
africanistas franceses, a partir da obra de Marcel Griaule, e, numa perspectiva mais histrica, em
torno do pensamento de I. Meyerson. Para Griaule, a pessoa o
problema central: o estudo de todas as populaes da Terra conduz finalmente
a um estudo da pessoa. Qualquer que seja a idia que se faa de uma
sociedade, quaisquer que sejam as relaes reais ou imaginrias que os
indivduos ou as comunidades sustentem, permanece que a noo de pessoa
central, que est presente em todas as instituies, representaes e ritos, e que
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mesmo, frequentemente, seu objeto principal (citado em Dieterlen, 1973, p.
11).
Dado o pressuposto central da etnografia de Griaule -- a estrutura do social est determinada
pelas concepes religiosas (Bastide, 1973, p. 370) -- compreende-se que essa perspectiva tenha
conduzido do modo particular atravs do qual cada sociedade ou grupo social concebe e articula
sua noo de pessoa. curioso observar igualmente que esse tipo de anlise se desenvolveu
especialmente em relao s sociedades africanas e, no Brasil, a respeito dos chamados cultos afro-
brasileiros. Foi apenas bem mais recentemente que se sustentou a necessidade de aplic-lo a outras
culturas, em especial aos grupos indgenas sul-americanos (cf. Seeger, DaMatta e Viveiros de
Castro, 1979).
Os trabalhos inspirados por Meyerson, por sua vez, poderiam ser encarados como ocupando
uma posio intermediria entre aqueles que buscam analisar a variedade emprica das noes de
pessoa e os que tentam enquadrar tais noes em moldes histricos mais ou menos evolutivos:
A pessoa, com efeito, no um estado simples e uno, um fato primitivo, um
dado imediato: ela mediata, construda, complexa. No uma categoria
imutvel, eterna ao homem: uma funo que se elaborou diferentemente
atravs da histria e que continua a se elaborar sob nossos olhos (Meyerson,
1973, p. 8).
Ora, se a posio do prprio Meyerson parece mais prxima do programa evolutivo traado por
Mauss, a maior parte dos trabalhos que reclamam uma inspirao direta ou indireta em seu
pensamento se assemelham mais a uma verso histrica daquilo que Griaule e seus seguidores
efetuaram na ordem geogrfica e etnogrfica (cf. Vernant, 1973, por exemplo).
* * *
Como afirmei acima -- e ao contrrio do que sustentam diversos comentadores (por exemplo,
Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5; Duarte, 1986, p. 40), inclusive o prprio autor
(Dumont, 1979, p. 24, nota 3a) -- no creio que a contribuio de Dumont possa ser inscrita sem
problemas na vertente do pensamento de Mauss que denominei precariamente de relativista.
Sustentar que deriva mais da vertente evolutiva pode, contudo, dar margem a mal-entendidos que
cumpre tentar esclarecer. Como se sabe, o alvo inicial de Dumont a pretensa universalidade da
noo de indivduo. Para atac-la, distingue o indivduo emprico e universal, mas infra-
sociolgico, do indivduo-valor, especfico a nossa tradio cultural. A questo do indivduo, ou
16
da pessoa, assim transposta para a de uma ideologia que a instauraria como valor dominante. De
fato, o verdadeiro problema de Dumont no o indivduo, mas o individualismo, essa crena
que
a humanidade constituda de homens, e cada um desses homens concebido
como apresentando, a despeito de sua particularidade e fora dela, a essncia da
humanidade (Dumont, 1979, p. 17).
Crena ou ideologia a opor ao holismo, onde
o acento posto sobre a sociedade em seu conjunto, como Homem coletivo.
O ideal se define pela organizao da sociedade em vista de seus fins (e no
em vista da felicidade individual); trata-se antes de tudo de ordem, de
hierarquia, cada homem particular devendo contribuir em seu lugar para a
ordem global e a justia consistindo em proporcionar as funes sociais em
relao ao conjunto (Dumont, 1979, p. 23).
Do ponto de vista da ideologia -- que Dumont define de modo abrangente como um
conjunto mais ou menos social de idias e valores (Dumont, 1979, p. 15, Nota 1a), sustentando ao
mesmo tempo que constitui o objeto privilegiado da anlise antropolgica (Dumont, 1979, p. 15) --
o individualismo ocidental moderno contrastaria com o holismo tradicional. Tudo se passa ento
como se Dumont aprofundasse a vertente inaugurada por Mauss, desvendando o carter
especificamente moderno da categoria de pessoa, o indivduo-valor em seus prprios termos. No
entanto, como observamos, a posio de Mauss sugere que o processo de emergncia da pessoa
corresponde ao desenvolvimento de um princpio contido desde o incio, de forma implcita, no que
poderamos denominar formas elementares da individualidade. Dumont, ao contrrio, no se
cansa de denunciar o carter artificialista do individualismo contemporneo (Dumont, 1979, p. 23),
chegando mesmo a pressupor que longe de termos abolido a hierarquia, como acreditamos, o que
fizemos foi simplesmente passar a submeter o todo parte. A uma impossvel supresso do
princpio hierrquico, Dumont contrape, portanto, uma inverso substantiva que mantm a
hierarquia do ponto de vista formal. Alm disso, seria possvel argumentar que seu trabalho
sincrnico e que suas comparaes operam sobre um eixo etnogrfico, no histrico, deixando
assim de lado todo o carter evolutivo do texto de Mauss. O problema, por um lado, que a
hiptese de um indivduo infra-sociolgico subjacente s diferentes valoraes culturais ameaa
reintroduzir o essencialismo maussiano, no sendo casual que Dumont se esforce em determinar a
existncia de um indivduo-fora-do-mundo na ndia. Por outro lado, o desenvolvimento de seu
17
pensamento na direo da anlise da gnese do individualismo na sociedade moderna faz
suspeitar que esse processo poderia ser interpretado como uma espcie de evoluo em retrocesso,
conduzindo de um estado em que se reconhece o fato objetivo da preponderncia do todo sobre a
parte a um outro, onde este princpio seria perigosamente recusado. Se lembrarmos ainda que ao
final do texto sobre a pessoa, Mauss -- retomando uma antiga preocupao de Durkheim e da escola
sociolgica francesa -- manifesta seus temores em relao aos perigos que uma individualizao
excessiva poderia representar para a sociedade ocidental, perceberemos que a distncia que o
separa de Dumont deste ponto de vista muito menor do que poderia parecer primeira vista.
Outra possibilidade seria sustentar que as anlises de Dumont talvez pudessem ser
incorporadas investigao mais abrangente da noo de pessoa, na perspectiva relativista
igualmente inaugurada por Mauss. Para isso, bastaria considerar o individualismo moderno uma
certa concepo a respeito da pessoa humana. Concepo estranha, certamente, na medida em que
se afastaria de modo singular de praticamente todas as noes de pessoa que os antroplogos
descrevem nas sociedades que costumam estudar. De fato, como afirma Lvi-Strauss, ao comparar
as representaes da identidade existentes em diversas sociedades,
uma curiosa convergncia pode ser extrada dessa comparao. A despeito de
seu afastamento no espao e de seus contedos culturais heterogneos,
nenhuma das sociedades que constituem uma amostragem fortuita parece ter
por adquirida uma identidade substancial: elas a despedaam em uma multido
de elementos em relao aos quais, para cada cultura, se bem que em termos
diferentes, a sntese coloca um problema (Lvi-Strauss, 1977, p. 11).
Se a quase totalidade das sociedades humanas fragmenta a pessoa em elementos mais ou menos
dspares, conectando cada um deles com um transcendental social ou sobrenatural, a especificidade
do Ocidente poderia ser localizada na concepo de um ser uno e indiviso, relacionado aos demais
seres de natureza idntica sua sob o modo da pura exterioridade: um universo composto de
indivduos, portanto. Essa exterioridade das relaes encontraria sua compensao num
desenvolvimento sem igual de uma dimenso de vida interior, moral e psicolgica, desconhecida
pelas outras culturas. Nesse sentido, o indivduo seria simplesmente a pessoa reduzida a sua
expresso sociolgica mnima e dotada de uma densidade psicolgica mxima -- uma espcie de
grau zero da sociabilidade.
O problema que, fora de algumas manifestaes difusas, presentes em geral de modo vago
em certas anlises sociolgicas em sentido amplo, no nada fcil localizar com preciso esse
suposto individualismo do mundo ocidental moderno e contemporneo. Seja do lado do campo
dos saberes -- ciso do sujeito na psicanlise, dualismos filosficos, epignese das cincias
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naturais -- seja nas vises de mundo mais abrangentes -- corpo e alma, emoo e inteligncia -
- o que parece emergir, ao contrrio, uma concepo da pessoa formalmente semelhante quelas
encontradas nas sociedades primitivas e tradicionais, um ser dividido em elementos cuja
sntese coloca um problema. curioso que os antroplogos aceitem a idia de um individualismo
ocidental e, ao mesmo tempo, dediquem todos os seus esforos a encontrar entre ns as
representaes que no obedecem a esse modelo supostamente dominante. Na verdade, a
caracterizao de um indivduo enquanto tal s parece surgir com alguma clareza em algumas
concepes ocidentais a respeito da sociedade, no da pessoa:
a sociedade constituda por unidades autnomas iguais, a saber, por
indivduos separados () que () so mais importantes em ltima instncia
que qualquer grupo constituinte mais amplo (MacFarlane, citado em La
Fontaine, 1985, p. 124).
Essa definio do individualismo britnico sugere que o individualismo em geral corresponde
muito mais a uma noo de sociedade que a uma noo de pessoa, derivando antes de uma
etnosociologia que de uma etnopsicologia ou mesmo de uma etnofilosofia (cf. Seeger,
DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5). Como sustenta La Fontaine (1985, p. 136-137), no
devemos esquecer que essa concepo nasce e se desenvolve num tipo de sociedade muito
particular, o Estado-Nao, e que, portanto,
idias de sociedade, diferentemente conceptualizadas, e a natureza do
conceito de pessoa so assim interdependentes (La Fontaine, 1985, p. 138).
Isso permitiria o abandono de toda forma de evolucionismo, levando a perceber que nossas prprias
concepes dependem de uma transformao scio-poltica complexa, no de um processo
evolutivo qualquer.
Mas no seria essa, afinal de contas, a verdadeira concepo de Dumont? Ao definir o
individualismo como uma ideologia, no seria nesta direo que seu pensamento estaria
apontando? Creio que sim, e este o ponto forte de sua contribuio. O ponto fraco, por outro lado,
reside justamente na utilizao da noo de ideologia. verdade, como demonstrou Duarte, que a
categoria definida
num sentido bastante peculiar, que no tem nada em comum com o sentido
negativo da tradio marxista e que tem uma vocao totalizante ainda maior
do que o sentido antropolgico habitual de cultura (Duarte, 1986, p. 49).
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O problema que nunca fica to claro () o que no ideolgico (Duarte, 1986, p. 49), o que
faz com que o conceito marxista de ideologia seja, na verdade, submetido a uma simples operao
de inverso, no de questionamento e superao. Em vez de conceb-lo como um vu ocultando
uma realidade mais profunda e verdadeira, Dumont parece supor que a ideologia determinante e
que o real no passaria de mero resduo acessvel apenas por subtrao (Dumont, 1979, p. 58).
essa posio que permite a Beteille (citado em La Fontaine, 1985, p. 134-135) criticar a associao,
crucial para Dumont, entre individualismo e igualitarismo, sustentando que o segundo princpio no
passaria de um mecanismo ideal destinado a ocultar a efetiva desigualdade necessariamente
produzida em uma sociedade que funciona atravs da competio dos indivduos que a compem.
Essa crtica, contudo, corre o risco de ressuscitar uma concepo de ideologia da qual
Dumont pretende muito justamente se afastar. De fato, pens-la como vu ou cmara escura
extremamente empobrecedor, na medida em que perdemos de vista sua positividade intrnseca,
tornando muito difcil, por exemplo, entender como um engodo do tipo do igualitarismo poderia
se sustentar contra todos os desmentidos da experincia mais cotidiana. Por outro lado, rebater o
real sobre o ideolgico tampouco leva muito longe, j que neste caso seramos obrigados a
admitir que o princpio de igualdade no poderia ser inteiramente aplicado na prtica por
contradizer alguma condio de possibilidade de existncia da ordem social -- o que torna difcil
compreender como pde ser inventado e ter se mantido durante tanto tempo. Creio que a soluo,
se soluo h, seria abrir mo definitivamente do par real/ideologia, admitindo uma materialidade
generalizada manifesta seja nas idias, seja nas coisas. Assim, como sugeriu Michel Foucault
(1973), possvel que o princpio de igualdade seja intrinsecamente inaplicvel e que sua funo
consista simplesmente em permitir que um conjunto de procedimentos disciplinares atue sobre
homens iguais, diferenciando-os politicamente. Mais precisamente, a igualdade j faz parte
desses procedimentos ao diluir as antigas hierarquias e permitir uma nova ordem, no duplo sentido
da palavra. Benzaquem de Arajo e Viveiros de Castro (1977, p. 138; 165-167) tm portanto razo
ao sustentarem que a preocupao exclusiva de Dumont com os aspectos formais (ideolgicos) o
obriga a excluir a materialidade do indivduo, relegando-a a um plano infra-sociolgico. Ora,
mais que ningum, os antroplogos deveriam saber que as culturas investem diretamente os corpos
e que toda separao entre o fsico, o psquico e o social no pode passar de pura abstrao.
* * *
A dicotomizao realidade/ideologia percorre certamente todo o campo das cincias
humanas. No caso especfico da antropologia, creio que tendeu a assumir a forma de um antigo
debate que sempre dividiu a disciplina, a conhecida oposio entre sociedade e cultura. Como se
sabe, a antropologia cultural norte-americana inclinou-se a sustentar, desde Boas, uma
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precedncia metodolgica e objetiva dos valores e idias sobre as relaes sociais concretas,
enquanto a antropologia social britnica, desde Radcliffe-Brown, caracterizou-se pela postura
inversa. Quase reduzida a efeito de fatos mentais no primeiro caso, a ordem da sociedade
concebida como produtora de seu epifenmeno ideal, a cultura, no segundo. verdade que a
antropologia francesa, ao menos a partir de certos textos de Mauss, tendeu a permanecer margem
do debate, o que no desautoriza supor que, nesse contexto, a posio de Dumont poderia ser
considerada culturalista. Dado um referencial emprico objetivo e universal -- o indivduo infra-
sociolgico neste caso -- a antropologia se limitaria a descrever os modos pelos quais as diferentes
culturas humanas elaborariam as mais variadas concepes a seu respeito, da pessoa tradicional ao
indivduo moderno. Um dos limites do relativismo que costuma acompanhar a posio culturalista
justamente ter que supor esses referente fixo, absoluto, em torno do qual se processariam
variaes devidamente limitadas. Assim, mesmo a chamada escola de cultura e personalidade --
que buscava fechar o fosso entre essas duas noes -- deve postular uma realidade humana infra-
estrutural, bio-psicolgica, que as culturas trabalhariam diferentemente a fim de produzir distintos
tipos de personalidade.
A posio da antropologia social britnica frente a essas questes aparentemente outra.
Como mencionei acima, Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979, p. 5) distinguem duas
vertentes na abordagem antropolgica da noo de pessoa. A primeira, j analisada, derivada de
Mauss, em relao qual procurei mostrar a possibilidade de subdividi-la em duas orientaes
distintas. A segunda vertente isolada por esses autores corresponde justamente ao modo pelo qual a
questo foi desenvolvida na tradio antropolgica britnica. Seu ponto de partida poderia ser
localizado na distino efetuada por Radcliffe-Brown entre o indivduo e a pessoa sobre a base
de uma diferenciao entre os aspectos biolgico e social da existncia humana. O primeiro aspecto
corresponderia ao indivduo, objeto de estudo de bilogos e psiclogos; o segundo nos colocaria
s voltas com a posio ocupada por estes indivduos na rede de relaes sociais concretas (a
estrutura social), que os transformaria em pessoas, objeto de estudo da sociologia e da
antropologia social. Alm do trusmo -- homem = ser biolgico + ser social -- esta posio,
claramente aparentada ao homo duplex de Durkheim, comporta um outro perigo. Ao fazer
coincidir sempre indivduo biolgico e pessoa social (que no passa do indivduo mais as relaes),
o esquema no permite qualquer flexibilidade na compreenso do modo pelo qual o grupo estudado
concebe tanto a realidade individual propriamente dita quanto a efetiva posio das pessoas na
trama social. Abandonando assim as noes nativas de pessoa e sociedade, acaba por projetar as
concepes ocidentais, supondo que a unidade mnima do sistema corresponda invariavelmente a
uma entidade individual. verdade que alguns seguidores de Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard em
particular, procuraram abandonar essa postura individualista, localizando a unidade mnima da
estrutura social em grupos mais inclusivos como cls ou linhagens, no nas pessoas. O problema, j
21
levantado em diversas ocasies, que esses grupos corporados acabam sendo concebidos
imagem e semelhana dos indivduos, como verdadeiras super-pessoas dotadas de interesses,
necessidades, desejos, direitos e deveres especficos.
Ao lado disso, evidente que o modelo proposto por Radcliffe-Brown de ordem abstrata,
dizendo respeito teoria social em sentido amplo e a qualquer sociedade humana emprica, sendo
de emprego aparentemente muito difcil na compreenso concreta da diversidade das noes de
pessoa apresentadas por diferentes sociedades. Foi Meyer Fortes quem se encarregou da
transposio metodolgica do modelo. Para isso, foi preciso apenas supor que qualquer grupo
humano deva necessariamente engendrar uma concepo social de um dado biolgico universal, de
tal forma que a objetividade do indivduo se faz sempre acompanhar por uma noo de pessoa
convergente, claro, com a estrutura social mais abrangente:
Em suma, eu sustentaria que a noo de pessoa no sentido maussiano
intrnseca prpria natureza e estrutura da sociedade humana e ao
comportamento social humano em toda parte (Fortes, 1973, p. 288).
A sociedade a fonte da noo de pessoa [personhood] (Fortes, 1973, p. 289) e a tarefa do
antroplogo consiste em no apenas descrever essa noo mas, sobretudo, em demonstrar sua
origem e insero sociolgicas. Estamos de volta ao relativismo e podemos nos dar conta que as
vertente maussiana (em seus dois aspectos) e funcionalista no esto to afastadas uma da outra
como poderamos esperar. Aps postular a existncia de uma ordem do indivduo e de uma da
sociedade, trata-se apenas de analisar -- de maneiras distintas, certamente -- o modo de elaborao
do primeiro pela segunda. Nesses sentido, contribuies como as de Malinowski ou do
interacionismo simblico norte-americano parecem consistir em uma simples inverso do esquema,
passando a indagar como o indivduo afeta a sociedade ou reduzindo a ltima a um conjunto de
micro-relaes interindividuais.
Michel Cartry parece, portanto, ter razo ao apontar as trs direes de pesquisa que
prevaleceriam nos estudos sobre a noo de pessoa:
Para alguns, o objetivo buscado restituir to fiel e completamente quanto
possvel os sistemas de pensamento ou representaes indgenas, extraindo sua
coerncia interna (). Para uma outra categoria de pesquisadores, trata-se
menos de extrair a coerncia de uma doutrina do que analisar como tal ou qual
noo ligada pessoa est compreendida e utilizada num quadro institucional
preciso ou em tal ou qual ponto do sistema das relaes sociais. Enfim, para
22
[alguns], a preocupao maior buscar delimitar atrs dos modelos indgenas
uma estrutura inconsciente mais profunda (Cartry, 1973, p. 23).
Culturalismo, funcionalismo e estruturalismo estariam, assim, perfeitamente representados nos
estudos antropolgicos sobre a noo de pessoa. Mais do que isso, importante observar que para
alm dos rtulos sempre discutveis, essas variantes parecem constituir verdadeiras estruturas
elementares do pensamento antropolgico, manifestando-se a respeito dos mais variados temas
empricos. A questo que se coloca se devemos permanecer nessas estruturas, contentando-nos
em operar algumas bricolages, ou se seria possvel e desejvel buscar alternativas a elas.
* * *
A antropologia social ou cultural sempre oscilou entre uma ambio totalizadora mais ampla
que a das demais cincias sociais e um particularismo dificilmente igualado pelas outras disciplinas
do campo. Os trs modelos isolados por Cartry assinalam bem essa oscilao. Os estudos sobre as
filosofias indgenas se caracterizam em geral por apresentar as representaes das culturas
estudadas como monolticas e totalizantes, servindo mesmo para definir de modo global a
sociedade como um todo. Por outro lado, os modelos de inspirao funcionalista buscam discernir
as particularidades que as noes de pessoa apresentariam devido a sua insero na estrutura social
abrangente. Enfim, a ambio de desvendar modelos inconscientes, se levada s ltimas
consequncias, realizaria no mais alto grau a vertente universalista do pensamento antropolgico.
Desse ponto de vista, a dificuldade experimentada por Cartry em apontar estudos propriamente
estruturalistas sobre a noo de pessoa, pode indicar que as categorias efetivamente em ao na
prtica social dificilmente encontram expresso direta no elevado nvel de abstrao em que essa
perspectiva se coloca. Estaramos, assim, condenados a optar entre definies culturais amplas e
anlises sociolgicas particularizantes. Opo que no parece colocar maiores problemas enquanto
lidamos com sociedades tidas como de pequena escala, uma vez que, neste caso, mesmo o
diferencialismo funcionalista acabaria por ser capaz de rebater a diversidade das representaes, e
mesmo dos grupos, sobre uma estrutura social pensada como abrangente.
Nesse sentido, preciso admitir que o chamado estudo antropolgico das sociedades
complexas sempre apresentou pelo menos uma virtude: revelar, como numa ampliao,
dificuldades j presentes no estudo das sociedades primitivas, mas que a podiam passar mais ou
menos desapercebidos, seja devido a caractersticas intrnsecas dessas sociedades, seja, mais
provavelmente, devido posio especial do observador em relao a elas. No caso especfico dos
estudos sobre a noo de pessoa, esta propriedade reveladora se manifesta, por um lado, nos
problemas encontrados para definir uma concepo global que seria caracterstica do Ocidente ou,
23
em escala apenas um pouco menor, de alguma sociedade nacional moderna. Manifesta-se
igualmente, por outro lado, na tentao de fazer proliferar micro-estudos de pequenos grupos
constitutivos das grandes sociedades contemporneas, tomados quase como sucedneos das
pequenas culturas em que o antroplogo costumava efetuar suas observaes. Esses trabalhos, em
geral, so certamente capazes de elucidar algumas diferenas significativas entre os grupos
estudados, mas dificilmente conseguem articular essas diferenas com as questes mais
abrangentes que inevitavelmente se colocam quando nos defrontamos com sociedades de grande
magnitude.
possvel, entretanto, que essas oscilaes no constituam signos inteiramente negativos e
que a alternncia entre o inventrio minucioso das diferenas e as estruturas globais da sociedade e
da natureza humanas possam fornecer uma alternativa para novas investigaes. A prtica
etnogrfica da antropologia sempre funcionou como defesa contra os exageros das teorias, mtodos
e grandes generalizaes. Por outro lado, a ambio totalizante dessa disciplina aponta por vezes na
direo de uma investigao quase kantiana a respeito das condies de possibilidade da existncia
humana e social. Nesse sentido, nosso particularismo e nosso universalismo talvez possam se
corrigir mutuamente, permitindo uma investigao crtica das condies de possibilidade dos
fenmenos humanos, investigao que busque essas condies no conjunto de variveis concretas
com as quais estamos sempre lidando, no em um transcendental qualquer. A uma abordagem
antropolgica em sentido estrito, seria preciso substituir uma analtica histrica e etnogrfica.
Mauss esteve prximo de faz-lo e certamente teria sido bem sucedido se no tivesse subordinado a
perspectiva histrica a uma antropologia sociologizada:
O mrito mais claro do texto de Mauss esboar uma histria social da
subjetividade. Mas ao trmino de seu percurso, a pessoa se acha reajustada aos
contornos da imagem que se compraz em oferecer, a da completude e da
soberania, caues de uma ordem social destotalizada. Mauss moralista
reencontra Durkheim; um temor assombra sua sociologia: que o social se
dissolva, que o indivduo se furte (Beillevaire e Bensa, 1984, p. 541).
J observamos que as noes de pessoa so inseparveis das noes de sociedade. Mas, ao
exprimir as coisas nesses termos, ainda podemos ter a falsa impresso de estarmos lidando com
substncias que s variariam secundariamente, na medida em que fossem refletidas por
representaes diferenciadas. Talvez seja preciso radicalizar essa posio, admitindo que o
prprio par indivduo/sociedade que consiste em uma especificidade do imaginrio ocidental, ou,
ao menos, de certas culturas particulares. Mais precisamente, talvez fosse preciso sustentar que a
sociedade ocidental tem se dedicado h muito tempo a produzir este par enquanto realidade. No se
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trata de ideologia, portanto, mas de um conjunto de prticas bem datadas que seria preciso tentar
reconstituir. Nesse sentido, aos trs modelos isolados por Cartry, deveramos acrescentar outro, que
tem se manifestado especialmente nos estudos histricos, mas do qual a antropologia poderia
legtima e proveitosamente se apropriar.
Esses estudos se caracterizam, em primeiro lugar, por um certo nominalismo. Assim, a
propsito desse individualismo que se invoca to frequentemente para explicar, em pocas
diferentes, fenmenos diversos, e sob cuja rubrica costumamos agrupar realidades
completamente diferentes (Foucault, 1984b, p. 56), Michel Foucault, ao analisar a sociedade
romana, acreditou necessrio distinguir ao menos trs aspectos:
a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao
indivduo em sua singularidade, e pelo grau de independncia que lhe
atribudo em relao ao grupo ao qual pertence ou s instituies das quais
depende; a valorizao da vida privada, isto , a importncia reconhecida s
relaes familiares, s formas de atividade domstica e ao domnio dos
interesses patrimoniais; enfim, a intensidade das relaes consigo, isto , das
formas atravs das quais -se chamado a tomar a si mesmo por objeto de
conhecimento e domnio de ao, a fim de se transformar, corrigir, purificar,
promover sua salvao. Essas atitudes podem estar ligadas entre si (). Mas
esses vnculos no so nem constantes nem necessrios (Foucault, 1984b, p.
56-57).
Isso significa que dependendo do sentido em que tomemos a palavra, uma sociedade ou um grupo
pode aparecer como absolutamente individualista ou como renegando a pertinncia do
indivduo. A terminologia , portanto, meramente relativa, o que torna intil tentar encerrar essa
posio em uma espcie de paradoxo que consistiria em simplesmente substituir conceitos
problemticos por outros to ou mais comprometidos que aqueles que se deseja abandonar. A
necessidade de um certo nominalismo no exclui, por outro lado, que este esteja submetido a duas
condies, a fim de no cair num jogo de palavras que logo se mostraria estril. Em primeiro lugar,
a operao nominalista deve ser acionada incessantemente, todas as vezes que uma substituio
conceitual se mostrar efetiva para o refinamento da anlise. Em segundo lugar -- ponto mais
importante --, o nominalismo est limitado apenas pelas necessidades da causa, ou seja, s se detm
ao produzir uma inteligibilidade do fenmeno considerada satisfatria pelo analista -- o que no
implica, evidentemente, que outros no possam prolongar o processo numa espiral infinita.
Nessa direo, Jean-Pierre Vernant (1987, p. 23-24) foi capaz de demonstrar que a distino
heurstica entre o indivduo stricto sensu, o sujeito e o eu, a pessoa, produz um poderoso
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instrumento metodolgico para esclarecer certas questes relativas cidade grega e participao
dos cidados em seus contextos polticos. Do mesmo modo, Paul Veyne (1987, p. 7) acreditou ser
necessrio definir o indivduo como um sujeito, um ser ligado a sua prpria identidade pelo
conhecimento ou conscincia de si para poder dar conta da hesitao entre obedecer e revoltar-se
em certo perodo da histria romana. Essas posies no denotam, creio, um simples particularismo
exagerado, mas o pressuposto de que se alguma generalizao possvel, esta s pode ser atingida
atravs de um confronto entre diferenas, no por meio de princpios supostamente to universais
que seriam capazes de englobar todas as variaes concretas.
em virtude de consideraes desse gnero que o texto de Vernant comporta uma discreta
contestao de uma das principais teses de Dumont, a que afirma a origem fora-do-mundo do
indivduo ocidental (Vernant, 1987, p. 20-21; 36-37). De fato, um dos principais problemas ao se
trabalhar com noes como a de ideologia, a dificuldade em escapar das armadilhas
substancialistas e das reificaes. Opondo globalmente holismo e individualismo, Dumont
deixa escapar a possibilidade de utilizao dessas noes como instrumentos heursticos destinados
a conferir inteligibilidade a um conjunto de fatos muito complexos, convertendo-as em princpios
tericos no interior dos quais se torna possvel encaixar o que quer que seja com um mnimo de
esforo. At mesmo o totalitarismo e o nazismo podem, assim, ser reduzidos a simples perturbaes
de nosso individualismo geral, tornando difcil adivinhar o que poderia escapar de um esquema
aparentemente to poderoso.
Da mesma forma, ao situar a sociedade brasileira entre a hierarquia e o individualismo,
Roberto DaMatta (1979) termina por acrescentar, contra seus prprios objetivos, um tipo queles
j isolados por Dumont. Tipo cujo carter aparentemente intermedirio pode fazer desconfiar de
um resduo evolucionista permeando todo o raciocnio. Uma alternativa fornecida por Laymert
Garcia dos Santos (1982), ao empregar a nomenclatura de DaMatta em um sentido operativo e
metodolgico, analisando a individualizao e a personalizao como algumas das prticas
polticas que atravessam as relaes sociais no Brasil. claro que outras poderiam ser isoladas e
essa, creio, a tarefa que se coloca para aqueles interessados em prosseguir nesse tipo de trabalho.
* * *
s teorias que buscam captar a substncia de ideologias englobantes, seria preciso opor,
consequentemente, uma analtica dos processos imanentes s prticas mltiplas. Esta , sabe-se,
uma posio avanada por Michel Foucault (1984a), ao dedicar-se, j no final da vida, ao estudo do
que denominou formas de subjetivao, e que, grosso modo, poderamos tambm chamar de
noo de pessoa. Este estudo representa, na verdade, uma consequncia mais ou menos
necessria de suas pesquisas anteriores, das quais, infelizmente, terminou por ser a concluso
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precoce. bastante conhecido o fato de que essas pesquisas se desenvolveram na direo da anlise
das configuraes polticas que objetivaram certas formas de subjetividade ao longo da histria
recente da sociedade ocidental. Sujeitos que se manifestaram em diferentes esferas, dos saberes --
sujeitos do conhecimento -- s mais variadas prticas sociais -- loucura, delinquncia,
sexualidade. O problema que as primeiras descries e anlises de Foucault costumavam ser
to cerradas, que provocavam a falsa impresso de no haver sada do campo mapeado, a no ser
atravs de uma espcie de grande recusa que pretenderia reiniciar tudo do zero. Isso produziu o
duplo e lamentvel efeito de fazer com que alguns simplesmente deixassem de dar ateno a tudo o
que provm, por exemplo, da antropologia, e que outros recusassem, de forma igualmente global,
os trabalhos de Foucault, em nome da preservao dessa mesma antropologia. A prpria idia de
uma produo de sujeitos sempre pareceu esbarrar no perigo do mecanicismo, ao sugerir que esses
sujeitos seriam simples efeitos passivos do funcionamento de mecanismos situados sobre outros
planos, cuja natureza jamais temos certeza de conhecer. Os trabalhos sobre as formas de
subjetivao pretendem justamente afastar esse fantasma mecanicista. Em lugar de supor que a
interioridade seja um puro reflexo de algo supostamente exterior, foi preciso admitir que ela
constitui um espao de elaborao de foras extrnsecas, projetando-se, ao mesmo tempo, para fora.
Creio que essa posio abra um enorme campo para investigaes empricas de grande
importncia e em relao s quais a antropologia no pode permanecer indiferente. Alm da j
mencionada distino entre as diferentes modalidades e acepes do individualismo, Foucault
(1984a, p. 33-35) apontou quatro dimenses sobre as quais a anlise das formas de subjetivao
deveria incidir:
a) a determinao da matria investida (a substncia tica, nas palavras de
Foucault): o corpo, a(s) alma(s), a vontade, o desejo;
b) a investigao da razo do investimento (o modo de subjetivao):
aceitao da ordem social abrangente, vontade de distino, obedincia a um
princpio tido como universal;
c) a delimitao do modo de investimento (a elaborao do trabalho tico):
exerccios fsicos ou espirituais, formas de auto-deciframento, contato com o
sobrenatural;
d) a anlise do objetivo de todo o processo (a teleologia do sujeito moral):
integrar-se na ordem social, garantir a salvao, fundir-se com os deuses ou
antepassados.
Percebe-se, portanto, que a conduo de uma anlise dessa natureza depende de um alargamento do
que costumamos denominar noo de pessoa. Seria preciso reconhecer que situar-se sobre o
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plano puramente representacional insuficiente, e que este plano constitui apenas parte do
fenmeno, sendo necessria a incluso das mltiplas esferas relativas s prticas institucionais e
individuais.
Se desejarmos permanecer fiis tradio antropolgica, deveramos reconhecer que aps
toda essa discusso, ainda Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo,
basta reunir ao texto sobre a pessoa suas anlises a respeito da expresso obrigatria dos
sentimentos e das tcnicas corporais. Recuperaramos, assim, o plano do fato social total,
onde fsico, psquico e social no mais podem ser distinguidos, e onde representaes e processos
empricos no constituem mais que dimenses ou expresses sempre articuladas das prticas
humanas que pretendemos investigar.
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III. As lentes de Descartes: razo e cultura
No me parece que a relao de Descartes com os saberes cientficos atuais, humanos ou
naturais, seja da mesma ordem que aquela que se pode estabelecer entre seu pensamento e a
filosofia contempornea. Nesse sentido, e ainda que estejamos aqui para homenage-lo, no
precisamente de Descartes que falarei. Em primeiro lugar, evidentemente, porque me faltam a
competncia e a familiaridade que os filsofos costumam ter em relao a esse pensamento
ilusoriamente fcil. Mas, na medida em que essa familiaridade e, portanto, essa competncia,
podem obviamente ser adquiridas, creio que se trata aqui de algo mais. Trata-se, eu diria, de uma
certa falta de empatia que algum formado na tradio da antropologia social e cultural parece
experimentar quando se defronta com a filosofia cartesiana.
De fato, curioso observar que por mais que os antroplogos tenham se dedicado a procurar
ou inventar precursores para sua disciplina -- de Herdoto a Comte, passando por Aristteles, Ibn
Khaldum, Montaigne, Montesquieu, Rousseau, Saint-Simon --, Descartes tenha sido sempre
mantido afastado dessa lista. Por que? Em primeiro lugar, claro, porque o prprio Descartes,
como se sabe, sempre recusou a aplicao de seu mtodo aos assuntos humanos, e foi preciso
esperar os iluministas para que a anexao do humano razo fosse efetuada. Isso no tudo,
porm. De modo mais profundo, creio que a estranheza do pensamento cartesiano para o
antroplogo se deve recusa das idias obscuras e confusas, ou seja, da sensibilidade. No
apenas no sentido que imperativo pensar apenas atravs de idias claras e distintas -- essa
uma outra histria --, mas de que essas idias s podem apresentar tais qualidades ao se aplicarem a
objetos igualmente claros e distintos. Ora, a matria-prima do trabalho antropolgico quase
sempre constituda por objetos que, ao menos primeira vista, parecem apresentar todas as
caractersticas do obscuro e confuso. Trata-se, evidentemente, do que Lvi-Strauss denominou
pensamento selvagem, essa forma universal de atividade do esprito humano onde sensibilidade e
inteligibilidade no fazem dois, e onde o universo acessvel justamente l -- as propriedades que
dependem do sujeito, as qualidades segundas -- onde Descartes negava qualquer possibilidade de
acesso legtimo. Como disse o prprio Lvi-Strauss, o cogito cartesiano
permitia ter acesso ao universal, mas com a condio de permanecer
psicolgico e individual []. Descartes, que queria fundar uma fsica, cortava
o Homem da Sociedade (Lvi-Strauss 1962b: 330).
Isso significa que o cogito permanece acantonado no interior de uma subjetividade que, no entanto,
faz parte de uma determinada cultura e dela recebe suas supostas certezas e evidncias -- o que
evidentemente omitido na operao fundadora.
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Mais do que isso, como sustentou Ernest Gellner, para Descartes
a cultura o inimigo, a cultura o acmulo histrico e irregular de crenas
acidentais no-questionadas, e a maneira de super-las comear de novo,
com a tabula rasa, limpar a mente de todo preconceito e recomear por si
(Gellner 1994: 19-21)
Como tambm se sabe, o juzo, ligado vontade, deve negar o obscuro e o confuso, afirmando o
claro e o distinto; deve inicialmente afastar o mundo exterior e, dentro de si, descobrir Deus para,
s assim, voltar a afirmar um mundo mais verdadeiro daquele que se contornou. Se o pensamento
cartesiano envolve necessariamente uma matemtica, uma metafsica e uma fsica, ele no pode
envolver uma sociologia e, muito menos, uma etnologia.
No entanto, como escreveu Koyr h muito tempo,
H trs sculos que todos somos, direta ou indiretamente, alimentados pelo
pensamento cartesiano, desde que, h trs sculos, todo o pensamento
filosfico, pelo menos, se orienta e se determina em relao a Descartes
(Koyr 1963: 10).
Ou seja, se o pensamento cartesiano, enquanto filosofia, parece de fato to afastado da antropologia
social e cultural contempornea, o mesmo no poderia ser dito em hiptese alguma do
cartesianismo como fato social -- entendendo por isso um certo modo de pensar (e mesmo de
agir) que nos molda a todos h centenas de anos. Trata-se mesmo de um fato social de um tipo
muito especial, aquele que Marcel Mauss designou com o termo fato de civilizao:
Nem todos os fenmenos sociais [] so fenmenos de civilizao. H os
que so perfeitamente especiais a [uma] sociedade, que a singularizam, a
isolam. Mas, mesmo nas sociedades mais isoladas, existe toda uma massa de
fenmenos sociais [] [que] tm uma caracterstica importante: a de serem
comuns a um nmero maior ou menor de sociedades e a um passado mais ou
menos longo destas sociedades. Pode-se-lhes reservar o nome de fenmenos
de civilizao (Mauss 1929b: 477).
Enquanto fato de civilizao (qualidade que ele certamente compartilha com algumas outras
filosofias como o platonismo ou o hegelianismo, por exemplo), o cartesianismo nos deixou um
legado negativo bastante aprecivel: a desconfiana em relao sensibilidade, s idias
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supostamente obscuras e confusas, cultura -- desconfiana em relao alteridade, portanto. Por
outro lado, seu legado positivo no menor: afirmao do intelecto, do claro e distinto, do
pensamento -- da razo, consequentemente. justamente essa dialtica histrica entre diferena
e razo que eu gostaria de explorar um pouco aqui, remetendo-a para o antigo, e sempre
renovado, debate que ope relativistas e no-relativistas, na antropologia e fora dela.
* * *
Alm de simplesmente afast-lo, o que faria Descartes se colocado frente ao obscuro e
confuso, frente alteridade mais radical? Difcil sab-lo, j que a regra cartesiana ensina apenas
que devemos evitar cuidadosamente essas armadilhas que o mundo coloca para o sujeito. Graas,
contudo, ao gnio bom de Paulo Leminski podemos ao menos imaginar o que poderia ocorrer em
uma tal situao aparentemente imaginria. Lembrando que Descartes pertenceu guarda pessoal
de Maurcio de Nassau, Leminski escreveu um romance-idia fascinante, Catatau, onde o
prncipe, ansioso por povoar a Nova Holanda de sbios, traz o filsofo ao Brasil.
Escrito em primeira pessoa, o romance descreve as peripcias do fundador do nosso
racionalismo contemplando atnito a realidade dos trpicos. Contemplando-a e evitando-a: sentado
sob uma rvore, fumando uma erva misteriosa, observa a paisagem com uma luneta, esperando um
amigo que, imagina, poder explicar o que acontece diante de seus olhos. As lentes da luneta so
trocadas sem cessar, visando ora, por curiosidade, aproximar a realidade extica, ora, e mais
frequentemente, afastar os seres estranhos e ameaadores que a povoam. Quantos vidros, lentes
vai querer entre si e os seres?, indaga-se Descartes enquanto exorciza os ndios e os animais que
passam na frente de sua luneta. Duvido se existo, quem sou eu se esse tamandu existe?
(Leminski 1989: 18), proclama, refazendo, sob o sol, seu cogito.
Leminski sustenta que seu livro pretende mostrar o fracasso da lgica cartesiana branca no
calor (idem: 208); denunciar o esforo a contido para exorcizar a golpes de lgica, tecnologia,
mitologia, represses (idem: 211) o aparente absurdo que afrontava o europeu; revelar a
inautenticidade de uma lgica que se supe neutra, mas que no limpa, como pretende a
Europa, desde Aristteles. A lgica deles, aqui, uma farsa, uma impostura (idem). No nos
apressemos contudo em considerar Catatau um manifesto irracionalista. Trata-se antes de apontar
a eterna inadequao dos instrumentais, face irrupo de realidades inditas (idem). No
estamos s voltas tampouco com um libelo nacionalista, invocando um Brasil transcendente e
irredutvel a modelos supostamente importados.
A fbula de Descartes no Brasil tem outro sentido. Aquele a quem se atribui a inveno da
lgica e do racionalismo triunfantes, da nossa modernidade mental e tecnolgica, se d conta a
duras penas da violncia a ser necessariamente exercida para que uma realidade outra se acomode
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aos moldes pr-estabelecidos da razo ocidental. Fbula -- ou histria, uma vez que bvio que
Descartes veio ao Brasil e que a razo ocidental se defrontou desde sua constituio histrica
primeira com o fantasma da alteridade e da diferena -- fbula ou histria das excluses e golpes de
fora no simplesmente lgicos sem os quais o mundo no se dobraria to docilmente a certas
categorias do pensamento e a certas aes da praxis. Nesse sentido, Descartes continua, de certo
modo e em toda parte, observando com suas lentes domesticadoras um real que teima em s se
deixar subjugar pela fora. O que significa dizer que a razo ocidental prossegue em seu trabalho
secular de controle e excluso da alteridade, movimento que no estranho -- ao contrrio -- quele
executado na mesma direo pelas foras econmicas e polticas at hoje triunfantes.
* * *
Em meio a suas meditaes sob a rvore e com a erva, o Descartes de Leminski ainda se
pergunta:
ndio pensa? G gente? []. ndios comem gente. Pensamento aqui susto
[]. ndio pensa? ndio come quem pensa -- isso sim (Leminski 1989: 37-38)
De fato, muito curioso observar que no pensamento do verdadeiro Descartes (aquele que,
segundo Leminski, morre de frio na Escandinvia em 1650 -- idem: 209), os ndios estejam
estranhamente ausentes. Estranhamente porque, como lembra Pierre Clastres (1976: 122-124), o
impacto da descoberta, ou da conquista, da Amrica na Europa foi quase imediato: desde 1503,
podiam ser lidos relatos dessa aventura, e j em 1505 o capito de Gonneville levava para a Frana
um jovem tupinamb chamado Essomericq. Conhece-se bem o efeito desses acontecimentos sobre
os Ensaios de Montaigne, publicados a partir de 1580, e que abordam o Novo Mundo em pelo
menos trs captulos: Dos Canibais (I, XXX), Apologia de Raymond Sebond (II, XII), Dos
Coches (III, VI). Ora, como sustentou Foucault (1972: 58), entre Montaigne e Descartes um
acontecimento se passou: algo que diz respeito ao advento de uma ratio. O que poderia significar
esse acontecimento no caso especfico dessa supresso dos canibais do campo da filosofia?
Os canibais, como se sabe, funcionam, na economia geral do texto de Montaigne, como
mais um exemplo da impossibilidade da razo atingir a verdade: os erros de julgamento a seu
respeito, as semelhanas, as equivalncias e mesmo a superioridade de alguns de seus costumes
frente queles de nossos antepassados e aos de nossa prpria sociedade, testemunham, mais uma
vez, a necessidade de se abandonar toda pretenso ao definitivo e ao absoluto.
Koyr (1963: 32) demonstrou que para alm de Aristteles e da escolstica, o verdadeiro
adversrio de Descartes Montaigne. Adversrio e verdadeiro mestre, contudo: seu ceticismo
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que preciso superar, mas ele s pode ser superado com a prpria arma que oferece, a dvida.
Dvida que no deve mais, no entanto, ser apenas passivamente sofrida, conduzindo renncia,
ao vazio e derrota; essa dvida, ao contrrio, deve ser exercida ativamente, condio para que
conduza a uma certeza mai