Marcio Goldman Tambores

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7/29/2019 Marcio Goldman Tambores http://slidepdf.com/reader/full/marcio-goldman-tambores 1/32 Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia 1  M arcio Goldman 2 Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ RESUMO: O objetivo último deste texto é refletir sobre a possibilidade de manter o ponto de vista antropológico tradicional, quando o objeto obser- vado faz parte do coração da sociedade do observador. Essa reflexão é efetu- ada por meio de um confronto entre algumas discussões mais ou menos clássicas sobre a observação antropológica e minha experiência de campo, pesquisando eleições e participação política dos movimentos negros em Ilhéus, no sul da Bahia. Deixando de lado qualquer preocupação normati- va, trata-se, através desse confronto, de tentar equacionar uma série de ques- tões cruciais para a antropologia contemporânea: será efetivamente possível assumir um olhar distanciado em relação a algo tão central para o observa- dor quanto a democracia representativa? De que forma e seguindo que pro- cedimentos? Existe alguma diferença entre estudar um grupo de “crentes” (no candomblé, por exemplo) sendo “cético” e um grupo de “céticos” (na política, por exemplo) sendo “crente”? As supostas diferenças de escala entre objetos, grupos ou sociedades devem inevitavelmente afetar os procedimen- tos de pesquisa? PALAVRAS-CH AVE: etnografia, trabalho de campo, política, movimento negro, Bahia.

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O s tam bores dos m ortos e os tam bores dos vivos.Etnografia, antropo logia e po lítica

em Ilhéus, Bahia1

 M arcio G oldm an 2

Professor adjunto do Programa de Pós-Graduaçãoem Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ 

RESUM O : O objetivo ú ltimo deste texto é refletir sobre a possibilidade demanter o pont o de vista antropológico tradicional, quando o objeto obser-vado faz part e do coração da sociedade do observador. Essa reflexão é efetu-ada por meio de um confronto entre algumas discussões mais ou menos

clássicas sobre a observação antropológica e minha experiência de campo,pesquisando eleições e participação política dos movimentos negros emIlhéus, no sul da Bahia. D eixando de lado qualquer p reocupação norm ati-va, trata-se, através desse confron to, d e tentar equacionar um a série de ques-tões cruciais para a ant ropologia con tem porânea: será efetivamente possívelassumir um olhar distanciado em relação a algo tão central para o observa-dor quan to a democracia representativa? D e que forma e seguindo que pro-cedimentos? Existe alguma diferença entre estudar um grupo de “crentes”(no candomblé, por exemplo) sendo “cético” e um grupo de “céticos” (na

política, por exemplo) sendo “crente”? As supostas diferenças de escala entreobjetos, grupos ou sociedades devem inevitavelmente afetar os procedimen-tos de pesquisa?

PALAVRAS-CH AVE: etnografia, trabalho de campo, política, moviment onegro, Bahia.

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O s tam bores dos mo rtos

Sábado à noite em Ilhéus, sul da Bahia, eu acompanh ava um ensaio dobloco afro onde concentrara minha pesquisa sobre as relações entre omovimento negro local e a vida política na cidade. Dona Ilza Rodrigues3,mãe-de-santo do terreiro de candomblé ligado ao bloco, chamou-mede lado e, explicando que tinha de realizar o despacho d os assentamen-tos de um a filha-de-santo que morrera recentemente, quando ela estava

em São Paulo, perguntou-me se eu poderia ajudar, transportando emmeu carro os objetos rituais da falecida para serem jogados em um rio –isto era o despacho. Respon di que ajudaria, claro, e ela acrescentou queera preciso resolver tudo rapidam ente um a vez que Finados estava pró-ximo e não era conveniente que o ritual fosse realizado após o dia dosmortos. Combinamos que no momento adequado ela mandaria mechamar, e recordei, com ela, que em 1983, quando realizara uma pes-quisa no terreiro, eu t ambém ajudara a transport ar um despacho.

Marinho Rodrigues, um dos filhos carnais da mãe-de-santo, ogã doterreiro, meu melhor informante e um de meus melhores amigos emIlhéus, contou-me, então, que a filha-de-santo recém-falecida era deXangô e havia declarado explicitamente que, quando d e sua m orte, nãodesejava que o ritual completo fosse realizado, e era por isso, disse ele,que só haveria o despacho dos assentamentos. Ante m inh a surp resa, eleme explicou que alguns fiéis do candomblé fazem esse pedido, qu e tem

de ser respeitado um a vez que não se deve invocar um espírito que nãodeseja sê-lo. Conversávamos ainda sobre os rituais funerários do can-dom blé quando, em torn o das sete e meia, fui chamado para estacionaro carro diante do portão do terreiro. Eu o fiz, abri o porta-malas docarro e, logo, dois ogãs (igualmente filhos carnais da m ãe-de-santo) trou-xeram um a grand e e pesada caixa que d epositaram no compartimento.

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Ent ramos no carro, jun to com duas filhas-de-santo que n ão reconhecinaquele mom ento.

Partimos e os ogãs me informaram a direção a seguir; falamos pou-co e as duas filhas-de-santo nada. Chegamos ao local desejado: umaponte em uma estrada meio abandonada no antigo caminho para Ita-buna. Paramos, descemos, abrimos o porta-malas, os ogãs pegaram acaixa e se dirigiram, com as filhas-de-santo, para a pon te. Fiquei no car-ro, esperando e olhando discretamente. Sobre a ponte, jogaram a caixa

no rio; quando esta bateu n a água, com muito barulho, as duas filhas-de-santo lançaram os gritos de seus orixás, e apenas nesse mom ento m edei conta de que estavam em t ranse todo o tempo. Um dos gritos era deIansã, o outro de O gum, dois orixás que man têm relações privilegiadascom os mortos. Um dos ogãs entrou no mato, acendeu as velas que ha-via levado e, em seguida, os dois sopraram no ouvido das filhas-de-san-to, que saíram imediatamente do transe. Nesse momento, escutei aolonge o som de instrumentos de percussão; imaginei, primeiro, serematabaques, depois algum ensaio de b loco afro ou coisa parecida. En tra-mos no carro e partimos, evitando retorn ar pelo caminho por ond e fo-mos a fim de não passar pelo ponto em que o despacho fora lançado.Voltamos para o terreiro onde, no portão de entrada, alguém nos espe-rava para um rápido ritual de purificação, que se estendeu, aliás, ao in-terior do automóvel.

Assun to aparentemente encerrado, retom ei a conversa com M arinho,

conversa que logo retornou para os rituais funerários do candom blé. Eleme contou que em 1994, n a obrigação dos 21 anos relativos à morte desua avó (an tiga e famosa mãe-de-santo d o t erreiro), ele levara um despa-cho exatamente ao mesmo lugar de onde eu acabava de voltar; de re-pente, disse, começou “a ouvir os atabaques dobrarem”, pergun tandoentão aos demais se havia algum terreiro de candomblé por lá, ao que

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todos responderam que não. De volta ao terreiro, narrou o ocorrido asua m ãe e a outras pessoas mais velhas, que ficaram muito con tentes, jáque o fato dos atabaqu es tocarem é um bom sinal, pois significa que osmortos estão aceitando receber em paz o espírito ou a oferenda em jogo.Senti um leve arrepio e disse a meu amigo que eu também ouvira ataba-ques dobrarem; ele não fez nenhum comentário e mudou de assunto.Percebi, então, que os tambores que eu ouvira simplesmente não eramdeste mundo.

O evento relatado neste trecho de meu caderno de campo, escritoem ou tubro de 1998 e aqui ligeiramente editado, completou-se com ofato d e que, nos dias que se seguiram , descobri que meu am igo comen-tara a história com diversas pessoas, inclusive com os ogãs qu e realizaramo ritual. Os dois disseram também ter ouvido o toque e acrescentaramque isso sempre acontecia. De minha parte, também relatei a história adois etnólogos. Tânia Stolze Lima me lembrou de que três anos anteseu orientara uma dissertação de mestrado sobre um ritual funerário nocandomblé, onde aquilo que eu ouvira em Ilhéus com o novidade (o fatode os mortos tocarem tambores) era amplamente descrito e analisado(Cruz, 1995). Surpreso com minha amn ésia, fui obrigado a concordarcom ela quando disse que eu “estava mesmo fazendo trabalho de cam-po” e que as pessoas do terreiro e eu escutávamos os tambores pelasmesmas razões (Lima, 1998).

Além d isso, a tomada de consciência dessa estranh a amn ésia me obri-

gou a reconsiderar algo que experimentara cerca de três semanas antesdos tambores, ao reencontrar a mãe-de-santo depois de mais de doisanos sem vê-la. Eu fora buscá-la na estação rodoviária onde chegava deuma viagem a São Paulo. Ao entrar de carro na rua em que se situamtanto o terreiro quanto sua residência, senti vertigens que desaparece-ram assim que saí do local, após deixá-la em casa. Retorn ei ao local maisdu as vezes na mesma noite e, a cada vez qu e entrava na rua, as vert igens

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voltavam; ao sair, desapareciam. É claro que imaginei causas místicasmas não levei o episódio m uito a sério.

Peter G ow – a quem eu escrevera relatando a história e dizendo queela me surpreendera prin cipalmente porque eu jamais havia experimen-tado n enhu ma inclinação m ística – respon deu qu e não acreditava sereste o pon to pertinente, e relatou um a experiência semelhante que tive-ra no campo, oferecendo ao mesmo tempo um a explicação fenom eno-lógica e quase gestaltista para o que ocorrera conosco:

Qual é a explicação? Por um lado, creio que Tânia esteja certa. Isso é

realmente fazer trabalho de campo: essas experiências emanam de outras

pessoas. Mas há mais. Acho que é significativo que tenha sido música o

que ouvimos nos dois casos. É possível que, em estados de alta sensibili-

zação, padrões complexos, mas regulares, de sons do mundo, como rios

correndo ou uma noite tropical, possam evocar formas musicais que não

tem os consciência de termos considerado esteticamente problemát icas. Na

medida em que estamos aprendendo esses estilos musicais sem sabê-lo, nós,

sob determinadas circunstâncias, os projetamos de volta no m un do. Assim,

você ouviu tambores de candomblé, eu, música de flauta. Penso que um

processo semelhan te ocorre com as pessoas que estudam os. Porque elas ob-

viamente também ouvem essas coisas. Mas elas simp lesmente aceitam que

esse é um aspecto do mun do, e não se preocupam com isso. M as continua

send o impressionante e o mistério não é resolvido por essa explicação. O

que imagino é que devemos repensar radicalmente todo o problema dacrença, ou ao menos deixar de dizer preguiçosamente que “os fulanos

crêem que os mortos tocam tambores” ou que “os beltranos acreditam qu e

os espíritos do rio tocam flautas”. “Eles não ‘acreditam’: é verdade! É um

saber sobre o mundo.” (Gow, 1998)

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O s tam bores dos vivos

De toda forma, menos do que uma explicação, fiquei imaginando du-rante muito tempo o que fazer com essa história, como conferir a elaum grau de dignidade que ultrapassasse as recorrentes anedotas acercade experiências místicas vividas por antropólogos no campo. N esse caso,conferir dignidade à história dos tambores dos mortos exigia, em pri-meiro lugar, afastar de an tem ão as duas explicações mais fáceis, as quais,

ambas realistas a seu m odo, logo in terrom periam a reflexão: a m ística,que afirm aria que os tam bores eram mesmo de mortos; e a materialista,que diria que se eu ouvi algo foram tambores de vivos. Na verdade, ofato d e os tambores que ouvi serem ou não d os mortos (ou de algumabanda afro, do vento, ou outra coisa qualquer), ou mesmo o fato deacreditar ou não que o eram, não tem a menor importância. O que im-porta é que, querendo ou não, levei a história a sério, fui por ela afetadono sentido que Jeanne Favret-Saada (1990, p. 7) confere à expressão.O u seja, o evento m e atingiu em cheio – certamente de m aneira distin-ta daquela pela qual atingiu m eus amigos (e talvez até mesmo como partedas tradicionais histórias de ant ropólogos tendo experiências místicas)mas, não obstante, de um modo qu e permitiu o estabelecimento de um acerta forma de comunicação involuntária entre nós (p. 9).

Além disso, e por outro lado, conferir dignidade à história dos tambo-res dos mortos significava também, do meu pon to de vista, ser capaz de

articulá-la de alguma form a com o qu e eu supostamente estava fazendoem Ilhéus, ou seja, com minha pesquisa sobre política – o que durantemuito tempo não fui capaz de fazer. Essa articulação só veio ao meuespírito três anos mais tarde, e ainda assim sob a estranha form a de umsonho em que revivi muito realisticamente algo que efetivamente acon-tecera comigo em Ilhéus apenas três dias antes dos tambores, em umanoite em tudo semelhante àquela em que transcorrera esse episódio.

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A confirmação de que o sonho reprodu zia literalmente o que ocor-rera em Ilhéus veio da releitura de meu caderno de campo, à qual pro-cedi assim que acordei. Mas essa releitura me revelou também quemenos de um mês antes do ocorrido eu conversara longamente comM arinh o sobre o sirrum , o ritual fun erário do candom blé Angola. Eleme explicara, então, que, em parte, se tratava de uma luta entre os vi-vos e os espíritos dos mortos convidados pelo recém-falecido para oritual: os vivos não podem permitir que os mortos toquem e cantem

mais alto do que eles, sob pena de os mortos invadirem o mundo dosvivos, possuírem o corpo dos presentes e até mesmo matá-los. Mari-nho me explicara, também, que não deve haver m anifestação de triste-za, principalmente sob forma de choro, pois isso seria muito perigoso.E ele concluiu a h istória dizendo que felizmente nunca vira os mortos,mesmo no dia em que sua mãe avisara que os espíritos de sua avó e avômaternos estavam presentes, acenando para ele, du rante um ritual rea-lizado há tempos em outro t erreiro.

N o episódio fielmente revivido em meu sonho, eu conversava com oprin cipal político da sessão local do Partido dos Trabalhadores, qu andofiz algum comentário sobre uma distante batucada que escutávamos.O político respondeu algo como “eles estão fazendo batucada para nãofazer nada”. O que significava, segundo uma velha fórmula que eu tãobem conhecia, que a batucada estava ligada à falta de consciência políti-ca e fun cionava como desvio da ação política conseqüente: um a espécie

de ópio do povo, como às vezes se diz. Por out ro lado, entretanto, o qu eacabou ocorrend o é que o fato de alguém , afinal de contas tão próximoa mim em termos de concepção de política e de opções ideológicas quan-to o político petista, sugerir que, em certo sentido, os tambores queouvíamos eram de seres apenas semivivos (já que alienados) lançou,inadvertidamente, a ponte que viria a permitir a articulação entre os tam-bores dos mortos e os tam bores dos vivos4.

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Isso porqu e os quase dois meses que eu já passara no campo, soma-dos a outros dois meses em 1996 e aos três meses no já longínquo anode 1983, quando eu pesquisava o candomblé, haviam me ensinado aadmirar os tambores dos vivos. As principais atividades de um blocoafro são evidentem ente as musicais, e a convivência quase cotidiana comelas me fizera descobrir e adm irar a música afro-baiana. N ão a axé m usic,esta variação musicalmente empobrecida, politicamente esterilizada eexistencialmente sacrificada às exigências da m ídia, m as aquela feita pelo

Ilê Aiyê, O lodum, Muzenza e outros blocos afro de Salvador, assim comopelo Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry e outros blocos de Ilhéus (Silva,1998). M as essa convivência me ensinara também que fazer música afronão era simplesmente uma forma de não fazer nada, bem ao contrário,essa atividade é uma das dimensões essenciais dos processos de criaçãode territórios existenciais que permitem a pessoas discrimin adas produ-zir sua própria dignidade e von tade d e viver5.

Foi preciso, assim, passar pela experiência cotidiana dos membrosdos blocos afro de Ilhéus a fim de estabelecer com eles essa comunica-ção involuntária de que fala Favret-Saada. Os tambores dos vivos e ostambores dos mortos fazem parte da mesma classe de fenômenos e foicertamente preciso ser afetado pelos primeiros para ou vir os segun dos.Mas, em out ro sentido, foi também preciso escutar os tambores dos mor-tos para que os dos vivos passassem a soar de outra forma. Apenas nessemom ento p assei a viver um tipo de experiência que, sem ser necessaria-

mente idêntica à de meus amigos em Ilhéus, tem com ela ao menos umponto d e con tato: o fato d e ser total e de não separar os diferentes terri-tórios existenciais nos quais nos locom ovemos. Com o me escreveu PeterGow, é mesmo a noção de crença que deve ser posta em questão, e nãodeixa de ser curioso observar de passagem que Lévy-Bruhl, o autor comquem trabalhei entre minha pesquisa sobre o candomblé e aquela acer-

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ca da política, seja um crítico radical dessa noção, propondo simples-mente substitu í-la pela de experiência (Goldm an, 1994)6.

Se, como já foi dito, as principais atividades de um bloco afro sãomusicais, isto não significa, é claro, que sejam as únicas. Os blocos cos-tu mam se envolver com os políticos, seja fazend o apresentações em suascampanhas, seja apoiando explicitamente suas candidaturas, seja rece-bendo bens ou prom essas em t roca de votos e de apoio eleitoral. O ra, aart iculação entre os tam bores e a política exige justamente que se levan-

te a difícil questão de saber se somos efetivamente capazes de levar asério o que os membros dos blocos (e terreiros, e outras formas de asso-ciação) têm a dizer sobre os políticos e sobre a política – no mesmo senti-do de que um antropólogo leva a sério a música ou a religião que estuda.

O problema é que não apenas parece mais fácil levar a sério discursosoutros sobre a religião ou a música do que sobre a política, como parecebem mais fácil ser relativista entre os Azande do que ent re nós. Em umencontro acadêmico realizado n o início de m inh a pesquisa sobre políti-ca, eu tentava explicitar o que poderia significar o estu do antropológicodesse domínio sustentando, algo pretensiosamente, que o objetivo deum trabalho desse tipo seria, em última instância, a capacidade de pro-du zir um a perspectiva sobre n osso próprio sistema político equivalenteàquela elaborada, por exemp lo, por Evans-Pritchard para os Nuer, ana-lisando assim a democracia como parte dos “Western Political System s”.Pergun taram-me, imediatamente, se essa posição n ão seria arriscada de-

mais, uma vez que parecia sup or ou pregar algum tipo de relativizaçãoda democracia, a qual, segundo minha interlocutora, representaria umenorm e perigo ético e político. N ão recordo muito bem o que respon dina ocasião, m as me lembro de um certo espanto ao m e defrontar comum a objeção que, no limite, significaria um obstáculo quase intranspo-nível para a análise antropológica de nossa própria sociedade7.

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Etnografia

M inha pesquisa em Ilhéus sempre me pareceu levar quase às últimasconseqüências a descrição das pesquisas etnológicas de campo no Brasilfeita por Alcida Ramos (1990): ritmo descontínuo e visitas mais oumenos curtas distribuídas ao longo de um amplo período de tempo.Estive na cidade pela primeira vez em 1982; retornei, por três meses, noverão de 1983, quando realizei a pesquisa de campo no Terreiro Ewá

Tombency N eto, que forneceu parte do material usado em minha dis-sertação de mestrado sobre a possessão no cand omblé (Goldm an, 1984).Nunca perdi o contato com as pessoas do terreiro, mas foi apenas em1996 que voltei ao campo propriamente dito, passando quase dois me-ses em Ilhéus por ocasião das eleições municipais daquele ano; depoisdisso, cerca de cinco meses entre 1998 e 1999, antes e depois das elei-ções nacionais; três meses entre setembro e dezembro de 2000, por oca-sião de novas eleições mun icipais; um mês em d ezembro de 2001; qua-se um mês entre fevereiro e março de 2002. Se som ássemos tudo, mesmoabstraindo o período mais ant igo de 1983, obteríamos praticamente umano de trabalho de campo – mas dividido em nada menos que cincoperíodos distintos.

Ao lado dessa intermitência, um pequeno acidente sofrido no cam-po em outubro de 2000 – que me deixou meio imobilizado por quaseum mês – fez com que eu propusesse a M arinh o Rodrigues torn ar-se

meu auxiliar de pesquisa, oferta que ele aceitou com alegria e que de-sempenhou com invejável competência. Por diversas razões essa situa-ção perdura até hoje, o que significa que recebo quase ininterruptamenteinform ações de Ilhéus – seja por m eio de telefonemas, seja, principal-mente, na forma de longas gravações em fita cassete –, informações es-sas que, dadas as admiráveis habilidades de M arinho com o ob servador,são da m ais alta qualidade.

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Disponho, portanto, de dados a respeito do envolvimento políticodo movimento negro de Ilhéus ao longo de um período de 20 anos,ainda que para algumas épocas esses dados sejam relativamente superfi-ciais. Nesse sentido, trata-se mesmo de uma “etnografia em movimen-to” e de um “envolvimento cumulativo e de longo prazo” com o grupoestu dado, n o sentido que Ramos confere a essas expressões. M as é clarotambém que concordo plenamente com Eduardo Viveiros de Castro(1999 , p. 184-5), quand o afirma qu e esse estilo de trabalho de campo

nem se opõe nem dispensa “o tipo tradicional de etnografia à Mali-nowski”, e que a idéia do campo prolongado n ão tem nada de místicaou de meramente ideal.

N um registro m enos acadêmico, semp re imaginei que as técnicas detrabalho d e campo que ut ilizei em Ilhéus se assemelhavam muito ao quese denom ina, no candomblé, “catar folha”: alguém que deseja aprenderos meandros do culto deve logo perder as esperanças de receber ensina-mentos prontos e acabados de algum mestre; ao contrário, deve ir reu-nindo (“catando”) pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes querecolhe aqui e ali (as “folhas”) com a esperança de que, em algum mo-mento, uma síntese plausível se realizará. Assim, foi apenas em 2000que realizei minha primeira entrevista gravada, à qual não se seguirammuitas out ras. D a mesma forma, jamais tom ei notas na frente de meus“informantes”. Por um lado, porque em geral eles também são meusamigos e eu me sentia constrangido em agir como “pesquisador”; por

out ro, porque cont inuo acreditand o que o trabalho de campo antropo-lógico não t em muita relação com as entrevistas, aind a que – mas sem-pre no final da pesquisa, quand o o etn ógrafo já possui um certo contro-le sobre os dados e as relações com os inform antes – estas possam servircomo complemento das informações obtidas por outras vias.

O ra, em meu caso, essas outras vias semp re foram u ma convivênciaintensa e quase cotidiana com membros do movimento n egro de Ilhéus.

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Entretanto, dado o caráter segmentar desse movimento, foi preciso einevitável que essa convivência fosse diferenciada. O que significa que,o que costumamos denominar “ponto de vista nativo”, não deve jamaisser pensado como atributo de um nativo genérico qualquer, negro, declasse popu lar, ilheense, baiano, b rasileiro ou um a mistu ra jud iciosa detu do isso. Trata-se sempre de pessoas muito concretas, cada um a dotadade suas particularidades e, sobretudo, agência e criatividade. Isso nãotem nada a ver com nenhum tipo de revelação pós-moderna: como lem-

brou h á tempos José Guilherme M agnani (1986, p. 129-30), desde 1916M alinowski n ão apenas criticara o insustentável pressup osto d e existên-cia de um a “opin ião nativa”8 como revelara que é justamente a diversi-dade de opiniões que permite ao etnógrafo reconstituir o que denom i-nava “fatos invisíveis” (Malinowski, 1935, vol. 1, p. 317). A noção derepresentação é de fato problemática (Magnani, 1986, p. 127-8) e o tra-balho de campo é sobretud o um a atividade constru tiva ou criativa, poisos fatos etnográficos “não existem” e é preciso um “método para a desco-berta de fatos invisíveis por m eio da inferência constru tiva” (Malinowski,1935, vol. 1, p. 317).

Se a história se escreve, como quer Paul Veyne (1978, cap. 8; ver,também, p. 22-3 e 85-6), por “retrodicção” – ou seja, por meio do preen-chimento a posteriori das lacunas de informação possibilitada p or n ovasdescobertas e por comparação –, a etnografia malinowskiana seria antesda ordem de uma espécie de “entredicção”: o etnógrafo deve articular os

diferentes discursos e práticas parcias (no du plo sentido d a palavra) queobserva, sem jamais atingir nenhum tipo de totalização ou síntesecompleta. Nosso saber é diferente daquele dos nativos não porque sejamais objetivo, totalizante ou verdadeiro, mas simplesmente porque de-cidimos a priori conferir a todas as histórias que escutamos o mesmovalor.

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Ao mesmo tempo, se minha pesquisa sobre política em Ilhéus pre-tende ser uma investigação antropológica (Goldman 2000a, 2000b,2001), isto significa, creio, qu e deve mesmo bu scar atingir “o ponto devista do nativo” – questão, em torn o da qual a controvérsia vem sendotão grande nos últimos anos, que exige que nela nos detenhamos umpouco.

É provável que Clifford G eertz seja o principal responsável pela idéia,muito difundida atualmente, de que haveria um a espécie de mainstream

antropológico a respeito do trabalho de campo e da etnografia. Essemainstream sustentaria, em síntese, que o trabalho de campo dependede uma identificação do antropólogo com seus nativos, o que permiti-ria, por um lado, captar o ponto de vista destes últimos e, por out ro –como viriam a acrescentar alguns dos alunos de Geertz –, representarcom “autoridade etn ográfica” a sociedade estu dada.

Contra essa idéia de que a etnografia seria condicionada por umaespécie de sensibilidade especial, que permitiria ao etnógrafo pensar,sentir e perceber como os nativos, é que Geertz escreveu seu famosoensaio sobre “o ponto de vista do nativo” (Geertz, 1983). Aí, como sesabe, sustenta que a etnografia depend eria mais da capacidade de situar-se a uma distância média entre conceitos muito concretos, “próximosda experiência” cultural, e conceitos abstratos, “distantes da experiên-cia”, do que de uma habilidade de identificação qualquer: “uma inter-pretação ant ropológica da bruxaria não deve ser escrita nem p or um bru-

xo, nem por um geôm etra” (p. 57). N esse sentido, é o fato in elutável deque o etn ógrafo é um observador estrangeiro, capaz de apreender, ape-nas como objetos, realidades para as quais os nativos são relativamente,mas não necessariamente, cegos que garantiria a possibilidade d a etno-grafia. Esta deveria consistir, pois, na investigação das mediações que seinterp õem ent re os nativos e sua experiência social, possibilitando assim

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a análise das diferentes form as simbólicas através das quais os nativos seexpressam 9.

C onfesso que esse mainstream acerca do t rabalho de campo m e pare-ce ser mais o produto de sua crítica do que uma realidade previamenteexistente. Ao lado de coisas como o relativismo absoluto ou da autori-dade do antrop ólogo sobre o grupo qu e estuda, a idéia de um a identifi-cação total do etnógrafo com seus nativos parece ser uma dessas figurasmuito evocadas e jamais vistas na história da disciplina. E se o tem a é de

fato freqüentemente mencionado – seja para assinalar um risco mortalpara uma disciplina com pretensões científicas, seja para celebrar osméritos de um empreendimento hum anista –, ele nu nca é acompanh a-do por exemplos concretos. N ão obstante, meu argum ento básico aquinão é tanto qu e “virar nativo” seja impossível ou ridículo, m as que, emtodo caso, é uma idéia fútil e plena de inutilidade.

As reflexões de Geertz, como também se sabe, dirigem-se contraM alinowski e sua “observação participante”. Penso, con tudo, que seriapreciso reconhecer que essa noção não é assim tão clara quan to costum aparecer. Na célebre Introdução aos  A rgon au tas, Malinowski (1922,p. 31) sugere ao etn ógrafo qu e de vez em quando deixe de lado máqui-na fotográfica, lápis e caderno, e participe pessoalmente do que estáacontecendo. É difícil, entretanto, acreditar que Malinowski estivessedizendo apenas que a observação part icipante consistiria em “tom ar par-te n os jogos dos nat ivos” ou dançar com eles. Ao cont rário, ao converter

a antiga “antropologia de varanda” (Stocking, 1983) em trabalho decampo efetivo, Malinowski parece ter operado na antropologia ummovimento em tudo semelhante ao de Freud na psiquiatria: em lugarde in terrogá-los, deixar histéricas e nativos falarem. A observação parti-cipante significa, parece-me, muito mais a possibilidade de captar asações e os discursos em ato do que uma improvável metamorfose emnativo. E como este último em geral, e ao contrário da histérica, nem

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procura nem é levado ao gabinete do antropólogo, o trabalho de campose torn a um a necessidade.

É provável, também, que as páginas de C oral Gardens and their M a-gic, onde Malinowski discute “o método do trabalho de campo e osfatos invisíveis do direito e da economia nativos” (Malinowski, 1935,vol. 1, p. 317-40) e expõe suas “confissões de ignorância e fracasso”(p. 452-82), assim como aquelas em que elabora sua “teoria etnográficada linguagem” (vol. 2, p. 3-74) e sua “teoria etnográfica da palavra má-

gica” (vol. 2, p. 211), sejam bem mais importantes para um a justa com-preensão da “mágica do etnógrafo” do que aquelas, bem mais conh eci-das ou pelo menos bem mais citadas, da In trodu ção aos Argonau tas doPacífico Ocidental. Pois é em C oral G ardens, e em torno da noção à pri-meira vista m uito estranha d e “teoria etnográfica”, que Malinowski pa-rece respon der an tecipadamente a algum as das críticas a ele formuladasa partir da década de 1970.

Um a teoria etn ográfica não se confunde nem com um a “teoria nati-va” (sempre cheia de vida mas por demais presa às vicissitudes cotidia-nas, às necessidades de justificar e racionalizar o m un do tal qual ele pa-rece ser, semp re difícil de transplantar para outro contexto) nem com oque Malinowski viria a denominar m ais tarde “um a teoria científica dacultura” (cuja imponência e alcance só encont ram paralelo em seu cará-ter anêmico e, em geral, pouco inform ativo). Evitando os riscos do subje-tivismo e da parcialidade por um lado, do objetivismo e da arrogância

por outro, Malinowski parece ter descoberto “o soberbo ponto media-no, o centro. N ão o cent ro, pon to pusilânim e que detesta os extremos,mas o centro sólido que sustenta os dois extremos num notável equilí-brio” (Kun dera, 1991, p. 78).

É importante não se equivocar aqui. A diferença entre teorias nati-vas, etnográficas e científicas não repousa sobre uma repartição judicio-sa de erros e verdades, nem sobre uma suposta maior abrangência das

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últim as, m as sobre diferenças de recortes e escalas, de programas de ver-dade, como diria Paul Veyne – que diz também que tudo se resume aum a escolha entre “explicar m uito, porém mal, ou explicar pouca coisa,porém muito bem” (Veyne, 1978, p. 118), ou seja, entre a explicaçãohistórica ou hu mana (“sublunar”, n as palavras de Veyne), que é na ver-dade um a explicitação, e a científica ou praxeológica. O máximo a queuma teoria etnográfica pode pois aspirar é explicar razoavelmente (nosent ido de explicitar) um núm ero relativamente grande de coisas.

Uma teoria etnográfica tem o objetivo de elaborar um modelo decompreensão de um objeto social qualquer (linguagem, magia, políti-ca) que, mesmo produ zido em e para um contexto particular, seja capazde funcionar com o matriz de inteligibilidade em ou tros contextos. Nes-se sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular e dogeral, mas também os das práticas e normas ou realidades e ideais. Issoporque se trata de deixar de levantar questões abstratas a respeito de es-truturas, fun ções ou m esmo processos, e dirigi-las para os fun cionamen-tos e as práticas10 . Assim, se o objetivo último de minha pesquisa emIlhéus é desembocar em u ma teoria etnográfica da democracia, não éporque se limita a essa cidade, suas eleições e seus movimentos negros,deixando de lado os níveis mais gerais ou abstratos. Um a teoria etnográ-fica procede um pouco à moda do pensamento selvagem: emprega oselementos muito concretos coletados no trabalho de campo e por ou-tros meios a fim de articulá-los em proposições um pouco m ais abstratas,

capazes de conferir inteligibilidade aos acontecimentos e ao mundo 11 .Trata-se, sim , de um a tentativa de elaboração de uma grade de inteligi-bilidade que permita u ma melhor compreensão de nosso próprio siste-ma político. Para isso, recorre-se certamente a acontecimentos muitoconcretos, mas tam bém a teorias nativas muito perspicazes e a form ula-ções mais abstratas, qu ando estas podem ser úteis. Finalmente, no casoespecífico da democracia, uma teoria etnográfica ainda possui, creio,

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um a vantagem sup lementar: ajudar a suspend er os julgamentos de valorquase inevitáveis quando um tema tão central em nossas vidas é subme-tido à análise.

Trabalho de cam po

Os ecos dessa postura malinowskiana sempre estiveram presentes nas

discussões dos antropólogos relativas ao lugar da pesquisa de campo eda etnografia em seu trabalho, mas foram curiosamente mais desen-volvidos fora tanto da imaginária mainstream, criticada por Geertz e maistarde pelos pós-modernos, quanto dessa própria crítica. Assim, ao refle-tir sobre sua intensa experiência de campo com a feitiçaria no Bocagefrancês, Favret-Saada (1977; ver também Favret-Saada & Contreras,1981) sustentou a idéia de que, ao falar de observação participante, aantropologia sempre adotou uma concepção psicológica da participa-ção (como identificação ou compreensão), o que teria conduzido adisciplina a reter apenas a observação, gerando assim uma “desquali-ficação da palavra indígena” e uma “promoção da do etnógrafo”. Aocontrário, por “participação”, Favret-Saada entende a necessidade doetnógrafo aceitar ser afetado pela experiência indígena, o que, diz ela,“não imp lica que ele se identifique com o ponto d e vista ind ígena, nemque ele aproveite a experiência de campo para excitar seu narcisismo”

(Favret-Saada, 1990, p . 7).M as se o trabalho de campo in tensivo é um a exigência da ant ropolo-

gia e, mesmo sem querer parecer nominalista demais, creio ser precisoadmitir que este possui diferentes acepções na história da disciplina,podemos imaginá-lo, por exemplo, como uma simples técnica, ou seja,como a obtenção de informações que, de direito, embora talvez não defato, poderiam ser obt idas de outra forma (e é isso o que parece ocorrer

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na m encionada antropologia de varand a); ou podemos definir o t raba-lho de campo como método, o que implica que as informações obtidassó poderiam sê-lo dessa forma. Mas poderíamos também seguir Lévi-Strauss e dizer que são as próprias características epistem ológicas da dis-ciplina que exigem a experiência de campo.

“Enquanto a sociologia se esforça em fazer a ciência social do obser-vador”, escreveu Lévi-Strauss (1954, p. 397), “a antropologia procura,por sua vez, elaborar a ciência social do observado”. “A sociologia”, pros-

segue, “é estreitamente solidária com o observador”, e mesmo quandotoma por objeto uma sociedade diferente o faz do ponto de vista daque-la do observador; mesmo quando pretende falar da “sociedade em ge-ral”, é “do p onto de vista do observador” que amp lia seu pon to d e vista.A antropologia, ao contrário, elaboraria a ciência social do observado,adotando o ponto de vista do nativo ou o de um “sistema de referênciafundado na experiência etnográfica, e que seja independente, ao mes-mo tempo, do observador e de seu objeto”. É nesse sentido tambémque Lévi-Strauss (1949 , p. 32-3) p ôde escrever que a distinção ent re his-tória e antropologia deve-se menos à ausência de escrita nas sociedadesestudadas pelos ant ropólogos do que ao fato de qu e “o etnólogo se inte-ressa sobretudo pelo qu e não é escrito, n ão tanto porque os povos queestuda são incapazes de escrever, como porque aquilo por que se inte-ressa é diferente de tudo o que os homens se preocupam habitualmenteem fixar na pedra ou no papel”. Nesse sentido, a antrop ologia desenvol-

veu “métodos e técnicas apropriados ao estu do de atividades que per-manecem (…) imperfeitamente conscientes em todos os níveis em quese exprimem”. E é por isso que o trabalho de campo não poderia serapenas considerado “nem um objetivo de sua profissão, nem um rematede sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa um mo-mento crucial de sua educação” (Lévi-Strauss, 1954, p. 409). O traba-lho de campo representaria, assim, para o antropólogo, o que aquilo

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que outrora se designava como “análise didática” representa para o psi-canalista: ún ico m odo de operar a síntese de conh ecimentos obtidos deforma fragmentada e condição para a justa compreensão até mesmo deoutras experiências de campo.

O ra, essa concepção do t rabalho de campo como uma espécie de pro-cesso (ou t rabalho, n o sentido p sicanalítico do termo) aponta para duasquestões, em geral, deixadas de lado pelos etnógrafos, quando refletemsobre sua experiência. A primeira é que eles também são, ou deveriam

ser, modificados por ela. Limitar-se, então, a comentar a posteriori osefeitos de sua p resença sobre os nativos, tecendo comentários abstratossobre seu trabalho de campo, parece trair uma certa sensação de superio-ridade: invulnerável, o antropólogo atravessa a experiência etnográficasem se modificar seriamente, acreditando-se ainda capaz de avaliar defora tudo o que teria ocorrido. Melhor seria ouvir a advertência levi-straussiana: “não é jamais ele mesmo n em o out ro qu e ele [o etnógrafo]encontra ao final de sua pesquisa” (Lévi-Strauss, 1960, p. 17).

D e toda forma, penso que a perspectiva de Lévi-Strauss sobre o tra-balho de campo e da etnografia articula-se estreitamente com a idéiaestruturalista de que cada sociedade atualiza virtualidades hu manas uni-versais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades: onativo n ão é mais simplesmente aquele que eu fui (como ocorre noevolucionismo) ou aqu ele que eu não sou (com o ocorre no fun cionalis-mo), ou mesmo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalis-

mo); ele é o que eu sou parcial e incompletam ente (e vice-versa, é claro).

D evir-nativo

Se adotarmos um ponto de vista um pouco diferente, poderíamos sermais diretos e dizer que o trabalho de campo e a etnografia deveriam

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deixar de ser pensados como simples processos de observação (de com-portamentos ou de esquemas conceituais), ou como formas de conver-são (assum ir o pon to de vista do out ro), ou com o um a espécie de trans-formação substancial (tornar-se nativo). Fazer etnografia poderia serentendido, antes, sob o signo do conceito deleuziano de “devir” – desdeque, é claro, sejamos capazes de entender bem o qu e poderia consistiresse “devir-nativo”.

Tentando definir de forma breve o conceito de devir, que cunhou

com D eleuze, Guattari escreveu qu e o devir é um

termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem por

afetos e devires, independent emente do fato que p ossam ou não ser rebati-

dos sobre pessoas, imagens, identificações. Assim, um indivíduo antropolo-

gicamente etiquetado m asculino pode ser atravessado por devires múltiplos

e, em aparência, cont raditórios: devir feminino coexistindo com um devir

criança, um devir animal, um devir invisível, etc. (Gu attari, 1986 , p. 288)

Isso significa que devir não é semelhança, imitação ou ident ificação;não tem nada a ver com relações form ais ou com transformações subs-tanciais: o devir “não é nem um a analogia, nem um a imaginação, masum a composição” (D eleuze & Guattari, 1980, p. 315). O devir, na ver-dade, é o movimento através do qual um sujeito sai de sua próp ria con-dição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com

um a condição out ra. Se entend ermos ainda que a primeira condição –aquela da qual se sai – é semp re “majoritária”, e que a segunda – aquelapor meio da qual se sai – é sempre “minoritária” (p. 356-7), compreen-deremos também que “afeto” não tem aqui absolutamente o sent ido deemoções ou sentimentos, mas o de “afecções”: um devir-cavalo, porexemp lo, não significa que eu m e torne um cavalo ou que eu me identi-fique psicologicamente com o an imal; significa que “o que acontece ao

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cavalo pode acontecer a mim” (p. 193), e que essas afecções compõem,decompõem ou m odificam um indivíduo, aum entando ou diminuindosua potência (p. 310-11). É n esse sent ido que existe uma “realidade dodevir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal” (p. 335).O devir é o que nos arranca não apenas de nós mesmos mas de todaidentidade substancial possível. Trata-se, pois, de apoiar-se em diferen-ças não para redu zi-las à semelhança (seja absorvendo-as, seja absorven-do-se nelas) mas para diferir, simples e intransitivamente.

Nos termos de Favret-Saada, trata-se assim de ser afetado pelas mes-mas forças que afetam o nativo, não de pôr-se em seu lugar ou de desen-volver em relação a ele algum tipo de empatia. Não se trata, portanto,da apreensão emocional ou cognitiva dos afetos dos outros, mas de serafetado por algo que os afeta e assim poder estabelecer com eles umacerta modalidade de relação, concedendo “um estatuto epistemológicoa essas situações de comun icação involun tária e não intencional” (Favret-Saada, 1990, p. 9). E é justamente por não conceder “estatuto episte-mológico” a essas situ ações que a “observação participante” é, como vi-mos, duramente criticada por Favret-Saada.

Política e antropologia

Se no começo de meu trabalho de campo o ob jeto a ser investigado era

“a política em Ilhéus”, e se isso logo se transformou em “a política emIlhéus a partir das relações mantidas pelo movimento negro com ospolíticos”, ou “no m odo como a política part idária incide sobre o m ovi-mento negro da cidade”, foi necessário um passo suplementar a fim deperceber que havia algo a mais em jogo e que uma pesquisa realmenteantropológica sobre política, desenvolvida junto ao movimento negroem Ilhéus, não deveria consistir tanto no estudo desse movimento em

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si, ou da política na cidade em si, ou mesmo das relações entre ambos,mas em um a análise da política oficial na cidade orientada pela perspec-tiva cética que o movimento negro tem a seu respeito. O que podemparecer simples nuanças são n a verdade questões fundamentais, uma vezque se apóiam em opções metodológicas e epistemológicas cruciais –aind a que inicialmente algo involuntárias –, qu e abriram ou tras pers-pectivas para a compreensão da própria política como um todo e emseu sentido mais oficial.

Pois se a antropologia se desenvolveu buscando estu dar out ras socie-dades de um ponto de vista a elas imanente, uma das dificuldades dadisciplina, quando se volta para o estudo da sociedade do observador,parece ser sua incapacidade de manter simultaneamente o descentram en-to de perspectiva que semp re a caracterizou e a capacidade de dar con tadas variáveis sociais efetivamente estruturantes. Assim, para ser fiel aoprimeiro imperativo, busca-se por vezes, na sociedade do analista, fenô-menos que apresentem algum a distância ou alteridade em face das for-ças dom inantes. O u, ao contrário, tentand o obedecer ao segun do p rin-cípio, concentra-se a investigação nos centros de poder e esforça-se porreconduzir os fatos estudados a formas que a antropologia tradicional-mente privilegiou. No primeiro caso, o risco sempre à espreita é o doprivilégio qu ase exclusivo d e fenôm enos ou dim ensões “marginais”, ouseja, incapazes de conferir in teligibilidade aos processos de estru tu raçãomais amplos. No segundo, pode-se acabar adotando uma perspectiva

por demais afinada com as dom inantes (provocando a perda da origina-lidade da abordagem an trop ológica) ou passar a tratar como exótico ouinessencial aquilo qu e é estruturan te. N o caso dos estu dos sobre políti-ca, os riscos envolvidos são o p rivilégio de detalhes pitorescos, mas secun -dários, do envolvimento político dos grupos estudados, a mimese daciência política ou mesmo do ponto de vista dos políticos, e a reduçãodo complexo jogo político a “ritu ais”, “cosmologias” ou “reciprocidades”

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– termos que, por m ais que os ant ropólogos tentem n egar, tendem sem-pre a enfraquecer a centralidade e a eficácia de alguns fatos quando es-tudados ent re nós.

Foi provavelmente Bruno Latour o primeiro a colocar o dedo nessaferida da chamada antropologia das sociedades complexas. Ao sugerirque os antropólogos são “audaciosos com relação aos out ros e tím idosquanto a si mesmos” (Latour, 1994, p. 100), Latour acusava o erro daantropologia de nossa sociedade quando imagina só poder estudar “o

primitivo em nós”: o “grande repatriamento”, diz ele, “não pode pararaí” e seria preciso p assar a estudar as dim ensões centrais de nossa socie-dade (p. 99). O problema é que em face dessa constatação um antrop ó-logo de verdade tende inevitavelmente a levantar a questão que Latournão levanta: “centrais para quem”? Pois os militantes negros de Ilhéuspodem p erfeitamente reconhecer a importância da política no sentidode que ela afeta suas vidas, mas jamais concordariam em considerá-la“central”: a música, a religião ou o t rabalho o seriam certamente muitomais. Para permanecer fiel ao “ponto de vista do nativo”, será preciso,então, renunciar à capacidade de conferir uma inteligibilidade mais glo-bal? Ou, para atingir uma tal inteligibilidade, será necessário tratar aperspectiva nativa com o simples parte do objeto e explicá-la a partir d enosso ponto de vista tido como superior?

O bservemos, também, que esse dilema aparentemente insolúvel apa-rece com força ainda maior quando abordam os dim ensões que nós (quer

dizer, in telectuais em geral) consideramos centrais. O que significa quetalvez fosse preciso reconhecer que, se a prática mais tradicional do an-tropólogo costuma confrontá-lo com situações nas quais, por con vicçãoou simples profissionalismo, deve-se comp ortar como um cético que sedefronta com pessoas, grup os ou m esmo sociedades inteiras concebidaspor ele, em maior ou menor grau, como crentes, há situações (e o casoda política é aqui exemp lar) nas quais tu do parece se passar de form a

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bem diferente. Q uais seriam, então, os efeitos de um a inversão dessa na-tu reza – qu ando nossos informantes se mostram céticos e os antropólo-gos mais ou m enos crédulos, não importando por ora que credulidade eceticismo sejam dados objetivos, pressupostos metodológicos ou mes-mo projeções etnocêntricas – para o estudo de instituições, valores ouprocessos que o antropólogo considera centrais em sua própria sociedade?

Parece-me, assim, que uma outra possibilidade para a chamada an-tropologia das sociedades complexas seria a manutenção do foco tradi-

cional da disciplina nas instituições tidas como centrais e buscar, atravésde uma espécie de “desvio etn ográfico”, um ponto de vista descentrado.Ou seja, se como pretende Herzfeld (2001, p. 3-5) a característica daantrop ologia é a investigação daquilo que é “marginal” em relação aoscentros de poder, é preciso admitir que uma tal marginalidade poderiase localizar não apenas nos próprios fenômenos mas também, e talvezprincipalmente, na perspectiva acerca deles.

C omo não é difícil de imaginar, a opin ião da maior parte dos mem-bros do m ovimento afro-cultural de Ilhéus em relação aos políticos éinteiramente negativa. Mas aquilo que me confun dia, ou m esmo ind ig-nava no p rincípio da investigação – as afirmativas semp re repetidas deque todos os políticos e todos os partidos são iguais; a certeza de quenenhum resultado eleitoral será capaz de alterar o destino das pessoasmais pobres; o fato de que, em troca de pequenas retribuições materiais,pessoas muito pobres são capazes de votar e apoiar aqueles mesmos que

as exploram –, p ode ser u tilizado de modo produt ivo. Para isso é estrita-mente necessário passar a encarar as práticas nativas (discursivas e não-discursivas), sobre os processos políticos dominantes, como verdadeirasteorias políticas produzidas por observadores suficientemente desloca-dos em relação ao objeto, para p roduzir visões realmente alternativas, eusar essas práticas e teorias como guias para a análise antropológica12 .Em suma, em lugar de abordar a política em si mesma e por si mesma,

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tratar-se-ia, nos termos de Michel Foucault (1980, p. 101-2), de tentardecodificá-la por m eio de filtros oriundos de out ros campos sociais.

Para terminar, eu gostaria apenas de ressaltar o fato de a conversacom o político petista – qu e me permitiu não apenas dar um sentido àhistória dos tambores como, principalmente, articulá-la com o qu e po-deria ser um a abordagem verdadeiramente antropológica da política –ter voltado à minha m ente em u m sonho, quand o este trabalho já esta-

va sendo concebido. Isso, por um lado, poderia servir para colocar emseu devido lugar a hipótese, hoje na moda, de uma distância quaseinfranqueável entre a experiência do trabalho de campo e a escritaetnográfica. Essa hipótese, derivada de uma concepção tímida epositivista da escrita, oculta o que qualquer escritor sabe: que o ato deescrever modifica aquele que escreve. Na antropologia, a leitura das no-tas e dos cadernos de campo, a imersão no material coletado e, princi-palmente, a própria escrita etnográfica revivem o trabalho de campo,fazem com que sejamos afetados de novo.

Por outro, o efeito do sonho em meu trabalho revela também que,ao ser revivida no momento da escrita etnográfica, a desterritorializaçãosofrida no campo pode encont rar um novo solo onde se reterritorializar.Solo que é representado em prim eiro lugar, claro, pela própria etnografia;mas que também p ode fazer parte da vida do etnógrafo como u m todo,revelando o caráter ilusório da distância que aparentem ente separa nos-

so devir-nativo e os devires que compõem nossa existência. Pois se ofato d e eu ter ouvido os tambores não parece ter alterado m uito minhasrelações com o sobrenatural, o mesmo não pode ser dito daquelas queme ligam à política: por m ais que eu ainda hesite em reconh ecê-lo ple-namente, estou certo que depois de Ilhéus esta nun ca mais foi a mesmapara mim.

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Notas

1 Este texto é um remanejamento de parte do Prólogo de Como funciona a democra-cia. U m a teoria etnográfica da política, livro em fase de elaboração. Versões prelimi-nares foram apresent adas ao seminário “A ant ropologia e seus métod os: o arquivo,o campo, os problemas”, organizado por Em erson G ium belli e por mim durante oXXV Encontro Anual da Anpocs em outub ro de 2001 , e ao simpósio “Antropolo-gia e política. Representações sociais e processos políticos: problematizando os li-mites da política”, cordenado por Ana Rosato du rante a IV Reunião de Antropolo-

gia do Mercosul, em novembro de 2001. Agradeço a Emerson, Ana e a todos ospart icipantes desses encon tros. Agradeço também àqueles que, em Ilhéus, fornece-ram não apenas a matéria mas especialmente o espírito deste texto: que todos sesintam incluídos quando menciono os nomes de Dona Ilza, Marinho, Gilmar eNey Rodrigues, Jaco Santanta, José Carlos Ribeiro e Nelson Simões. Peter Gow eT ânia Stolze Lima foram, com o se verá, interlocutores desde quando o texto aindaestava por ser escrito. Mais tarde, foram as observações de Ana Cláudia Cruz daSilva, que comigo divide boa parte do campo em Ilhéus, que m e permitiram con -cluí-lo. Agradeço, igualment e, a O távio Velho, C ecilia McC allum , Susana Viegas,

Luisa Elvira Belaunde, M artin O ssowicki e Cecilia Mello não apenas por observa-ções sobre o texto como pelas palavras de incent ivo.

2 Pesquisador do CN Pq e do N úcleo de Antropologia da Política (N uAP, Pronex);bolsista da Faperj; autor de Raz ão e diferença. A fetiv id ade, racionalidade e relat iv ism ono pensamento de Lévy-Bruhl (1994) e Algum a an tropologia (1999).

3 Um(a) parecerista anônimo(a) da Revista de Antropologia – a quem agradeço imen-sament e – chamou a atenção para o fato deste artigo empregar abertamente osnomes próprios de “inform ant es” e “colegas” sem nenhum a explicação para a esco-lha. Con cordo plenament e com sua observação de que não é possível cont entar-se“com o emprego m ecânico de nom es fictícios ‘para preservar a ident idade’ das pes-soas citadas”. Além de não preservar necessariamente nenhum anonimato, no li-mite, esse procedimento descaracterizaria completamente o valor etnográfico dotexto, eliminando sua contribuição para a etnografia regional: o terreiro que servede palco para a narrativa desapareceria enquanto tal; os políticos teriam outrosnomes; a própria Ilhéus não existiria (mas por que não a Bahia ou o Brasil?). Issoacarretaria a perda absoluta do cont exto da análise, int roduzindo um artificialismoque com prom eteria não apenas a leitura mas qualquer t rabalho posterior.

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Por out ro lado, é bem verdade que em certas ocasiões o anonim ato de alguns infor-

man tes tem de ser man tido – ainda que em out ras eles próprios exijam, clara oudiscretamente, que seus nom es sejam mencionados. Não creio que haja apenas um asolução para o prob lema, mas qualquer opção repousa certam ente sobre compro-missos éticos que o antropólogo deve assumir e respeitar, respondendo por sua vio-lação seja peran te seus inform ant es seja diant e de seus colegas, e transferind o par-cialmente a responsabilidade também para seus leitores.Desse modo, a tendência atual – importada das ciências biológicas, nas quais pos-sivelmente tenha um sentido – d e exigir o “consentimento informado” dos nativos

não conduz a lugar algum. Primeiro porque pressupõe que, no momento mesmoda investigação, o pesquisador saiba já onde deverá chegar; segund o, porque supõealgo qu e só poderia fazer sorrir um ant ropólogo sério, a saber, um ind ivíduo racio-nal, claramente inform ado das intenções, também claras, de seu int erlocutor e que,com toda a liberdade, decide concordar com a proposta qu e lhe é apresent ada. Fi-nalmente, porque acaba liberando o investigador de seus compromissos: qualquercoisa pode ser dita uma vez de posse do documento assinado.

4 Ao ler um a primeira versão do relato desse episódio, Peter Gow observou que euera excessivament e cruel com o político petista e que isso provavelment e se devia

ao fato de ele ser, para mim, uma espécie de “sombra”, no sentido junguiano doterm o, ou seja, man ifestar com clareza um a série de atribu tos pessoais dos quais eunão gostaria muito e que t entaria reprimir. C reio qu e Gow tem razão e acrescent oque, no quadro político ilheense, esse político ocupava, do meu ponto de vista,uma posição absolutamente respeitável.

5 Com o sugere Cambria, não se trata de imaginar que os blocos simplesmente usemsua música para fazer política: “esses grupos, poderíamos dizer, usam a ‘política’para fazer música” (Cambria, 2002, p . 108).

6 D eve-se observar aqui que o fato da afecção provocada pelos tambores parecer po-

sitiva (no sentido de que é sempre charmoso um antropólogo capaz de experimen-tar coisas místicas) não significa, de forma algum a, um a ident ificação gloriosa comos nativos, o que iria de encon tro a toda m inha argum entação. A reação de meusamigos de Ilhéus, vaiando e gritando coisas extremamen te desagradáveis para doistravestis que passavam na rua em que m oram, n ão teve nada de charmosa. Mas ofato de a situação ter provocado estados emocionais intensos tanto neles – dividi-dos ent re a indignação cont ra os travestis e a pilhéria – quanto em mim – t otal-mente imobilizado entre a indignação contra meus amigos e os laços de amizade

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que a eles me unem – pode ter sido t ão import ante para o estabelecimento d e uma

comunicação duradou ra, profunda e involuntária entre mim e eles, quan to a h istó-ria dos tambores.

7 N a mesma época, um colega, etnólogo, disse que ouvira que eu abandonara a an-tropologia para me tornar um cientista político.

8 “Nunca se dá o caso de que os ‘nativos’ – assim, no plural – tenham alguma crençaou idéia: cada um deles tem suas próprias idéias” (Malinowski, apud Magnani,1986, p. 130).

9 E basta estender ao estudo dessas mediações a objeção levant ada cont ra a possibili-

dade de identificação com os nativos, para que a etnografia se veja reduzida a umexercício pós-moderno narcisista e niilista no qual o antropólogo limita-se a falarde si mesmo. O que não significa – e este texto o testemunha – que ele não devafazê-lo. M as um a coisa é falar de si mesmo a par tir do pressuposto da im possibili-dade de se ter acesso ao “nat ivo”; outra, muito d iferent e, é explorar as afecções pro-duzidas pelas relações estabelecidas no trabalho de campo na subjetividade do pes-quisador, desterritorializando-a e conduzindo-o à busca de uma reterritorializaçãona escrita etn ográfica.

10 O u, nas palavras de Jacques D onzelot (1976, p. 172 ), trata-se de deixar de per-

guntar “o qu e é a sociedade, pois isto é abstrato e não leva além de um conceitogeral. Pergun ta-se antes: com o é qu e nós vivemos em sociedade?, esta é uma ques-tão con creta: onde vivemos? como ocupam os a terra?, como vivemos o Estado?”.

11 Como escreveu Lévi-Strauss (1954 , p. 398-9), em ant ropologia trata-se semprede atingir “um nível em que os fenômenos conservem uma significação humana epermaneçam compreensíveis – int electual e sentim entalmente – p ara uma cons-ciência individual (…) que não encontra jamais em sua existência histórica ob- jetos como o valor, a rentabilid ade, a produtividade margin al ou a pop ulaçãomáxima”. Conceitos aos quais, certamen te, poderíamos acrescentar o eleitor ind e-

pendente ou a escolha racional.12 N o século XIX, o fato de essas teorias nativas não apresentarem, em geral, o cará-

ter de sistemas fechados e coerentes talvez fosse ut ilizado para ob jetar contra suanatureza verdadeiramen te teórica. M as depois que mesmo as ciências exatas e na-turais abandonaram essa noção de teoria, substituindo-a pela de sistemas abertose flexíveis, a objeção perdeu sua força e só pôde ser mantida como preconceitoinjustificável.

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ABSTRACT: This paper questions whether it is possible holding on to a

traditional ant hropological point of view when t he phenom enon observedlies at the heart of the observer’s society. For this purpose, I assess variousclassical contributions to the debate on anthropological observation withrelation to my own fieldwork experience, drawn from my study of politicalparticipation and elections amongst black movement activists in Ilhéus,southern Bahia, Brazil. Leaving aside any normative intentions, I lay outsome critical issues to curren t anthropology, such as the following: Is it ef-fectively possible to adopt “a view from afar” when facing something as cen-tral to the observer’s society as representative democracy? If so, in which

way and following which p rocedu res? W hat is the difference, if any, betweenthe study of a group of “believers” (for instance, in Candomblé) by a“skept ical” observer, and the study of “skept icals” (for in stance, in politics)by a “believer” observer? Do differences of scale between objects of study,groups or societies inevitably affect research procedures?

KEY-WORDS: ethnography, fieldwork, politics, black movement, Bahia.

Recebido em dezembro de 2003.