Post on 18-Dec-2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO EM CINCIAS: QUMICA DA
VIDA E SADE
Barbara Rocha Richter
Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do
comportamento desviante na escola
Porto Alegre
2012
Barbara Rocha Richter
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Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do
comportamento desviante na escola
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao
em Educao e Cincias: Qumica da Vida e Sade da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como pr-
requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Educao em Cincias.
Prof. Dr. Lus Henrique Sacchi dos Santos Orientador
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Barbara Rocha Richter
Hiperatividade ou indisciplina? O TDAH e a patologizao do
comportamento desviante na escola
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao
em Educao e Cincias: Qumica da Vida e Sade da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como pr-
requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Educao em Cincias.
Orientador:
___________________________________
Lus Henrique Sacchi dos Santos
Aprovada em 25 de junho de 2012.
___________________________________
Cludia Rodrigues de Freitas/UFRGS
___________________________________
Edvaldo Souza Couto/UFBA
___________________________________
Loredana Susin/UFRGS
4
Agradecimentos
Ao finalizar esta etapa de minha formao acadmica, gostaria de agradecer a todos
aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram para a realizao deste trabalho.
minha me, pelo apoio desde sempre e por fortalecer minha capacidade de acreditar
em mim mesma. Ao meu pai, pelas coisas que aprendi e por haver despertado em mim o
interesse pelo estudo. minha famlia, minhas tias Maristela e Maria Lcia, pelo carinho.
minha av Eldy, pelo amor e dedicao, pelo exemplo de fora e por tudo que aprendo com
ela.
Aos meus amigos e amigas, pelas vivncias, trocas e conversas, e por eu simplesmente
saber que fazem parte da minha. Joana e Rita, pelo incentivo. Ao Adriano pelas longas
conversas. Ao Clber, pelos contrapontos. Ziza, pelas contribuies e apoio nos momentos
finais. Aline, que esteve sempre ao meu lado, pela compreenso, pelo carinho e pelo colo.
Aos colegas, pelas trocas e contribuies. Ao meu orientador, pela oportunidade de
desenvolver este estudo. Aos funcionrios, Cla, Douglas e Flahane, pela solicitude e
atenciosidade.
Aos componentes da banca, pela disponibilidade, leitura e sugestes.
CAPES, rgo financiador do meu trabalho.
UFRGS, pelo espao de ricas trocas e aprendizado.
Muito obrigada.
5
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Capa e sumrio de material informativo sobre o TDAH. Produzido pela ABDA
para ser distribudo em escolas. Disponvel no site www.tdah.otg.br. .................................63
Figura 2 . Anncio publicitrio na Nova Escola (outubro/2008) de cursos para professores,
dentre os quais est o curso A criana e o TDAH (indicado pela seta). ............................66
Figura 3 Anncio publicitrio na revista Nova Escola de abril de 2000 divulgando o
Programa de Atualizao em TDAH Ateno Professor que conta com o patrocnio da
empresa Novartis. .........................................................................................................68
Quadro 1 Caractersticas de diferentes fases de vida de indivduos com TDAH apresentadas
por ROHDE & HALPERN (2004). ................................................................................56
Quadro 2 Comparativo de recomendaes para atuar junto aos alunos inquietos/indisciplinados ou hiperativos presentes em duas reportagens da Nova Escola.
.................................................................83
6
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABDA Associao Brasileira do Dficit de Ateno
APA American Psychiatric Association
CHADD Children and Adults with Attention Deficit/ Hyperactivity Disorder
DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
NE Nova Escola
TDAH Transtorno de Dficit de Ateno e Hiperatividade
7
Resumo
O Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) configura-se, atualmente,
como um dos transtornos cada vez mais diagnosticados em indivduos de idade escolar. Ao
invs de tomar o TDAH como um fato cientfico isolado, proponho, atravs deste estudo,
pens-lo como um fenmeno vinculado cultura. Para tanto, valho-me do referencial terico-
metodolgico dos Estudos Culturais e ps-estruturalistas. Busco problematizar as estratgias
voltadas ao controle dos corpos hiperativos na escola, pensando a emergncia do TDAH no
solo da cultura somtica, bem como sua relao com o processo a que se tem chamado de
medicalizao do ensino, fenmeno que vem acompanhado do uso de psicofrmacos como
soluo para problemas de comportamento em sala de aula. Analiso exemplares da revista
Nova Escola, no perodo de 1986 (ano inicial de sua publicao) a 2011, operando com as matrias cujo ttulo ou o contedo versassem sobre hiperatividade, desateno e/ou
indisciplina. Observo o modo como o discurso neurocientfico atravessa as noes de sujeito e
de que maneira esse atravessamento implica em prticas no mbito da escola. Esta discusso
permite observar que os processos de biologizao, patologizao e medicalizao constituem
fenmenos interligados e fortemente articulados ao TDAH na contemporaneidade. Assim, o
diagnstico de TDAH e o uso de psicofrmacos se mostraram, na anlise deste trabalho, como
uma nova forma de controle e disciplinamento do corpo infantil/escolar. Aponto para a
necessidade de um questionamento acerca da transferncia de problemas de ordem escolar
para a esfera mdica.
Palavras-chave: TDAH, disciplinamento, escola, indisciplina, medicalizao, psicofrmacos.
8
Abstract
The Attention Deficit and Hyperactivity Disorder (ADHD) is currently one of the increasingly
diagnosed disorders in individuals of school age. Instead of taking ADHD as an isolated
scientific fact, I propose, through this study, think of it as a phenomenon linked to the culture.
For this, I use the theoretical and methodological referential of Cultural Studies and
poststructuralists. I attempt to analyze the strategies aimed at controlling hyperactivities
bodies in the school, thinking about the emergence of ADHD in the context of somatic
culture, and its relation to the process that has been called medicalization of education. This
phenomenon has accompanied the use of psychotropic drugs as a solution to behavior
problems in the classroom. I analyze copies of the magazine Nova Escola for the period 1986 (initial year of its publication) to 2011, operating with reports of hyperactivity, inattention and
indiscipline. I regard how neuroscientific discourse through the concepts of subject and how
this involves practices within the school. This discussion allows us to note that biologization,
pathologizing and medicalization are interconnected process and strongly articulated with
TDAH in contemporary. Thus, the diagnosis of ADHD and the use of psychotropic drugs
constitute a new form of control and discipline of the infants body. I point to the need to question about the transfer of problems in educational to the medical area.
Keywords: ADHD, discipline, school, indiscipline, medicalization, psychotropic drugs.
9
SUMRIO
1. INTRODUO...................................................................................................................10
1.1 A escolha do objeto de pesquisa.......................................................................................10
1.2 A escolha do material de anlise......................................................................................14
2. DISCIPLINAMENTO DO CORPO INFANTIL.............................................................19
2.1. Infncia escolarizada.......................................................................................................23
2.2 Infncia e escola hoje........................................................................................................30
2.3 Novas formas de controle.................................................................................................35
3. BIOLOGIZAO E MEDICALIZAO DAS CONDUTAS ESCOLARES O
TDAH e a emergncia do sujeito cerebral no sculo XX.....................................................43
3.1 A narrativa mdica do TDAH..........................................................................................47
3.2 A Associao Brasileira do Dficit de Ateno...............................................................59
3.3 A ABDA e a escola............................................................................................................61
4. O PROFESSOR ATENTO AO TDAH: UMA ANLISE DO QUE DIVULGADO
NA REVISTA NOVA ESCOLA............................................................................................69
4.1. Nova Escola: a revista de quem educa...........................................................................69
4.2 Hiperativo ou indisciplinado?..........................................................................................80
4.3 O crebro no centro das explicaes sobre o comportamento......................................84
5. CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................88
6. REFERNCIAS..................................................................................................................90
7. ANEXOS
10
1. INTRODUO
1.1 A escolha do objeto de pesquisa
As inquietaes que provocaram o interesse pela temtica da hiperatividade, que
procurei desenvolver neste estudo, esto ligadas a algumas de minhas experincias, pessoais e
profissionais.
Ao trabalhar por alguns anos em uma escola de educao infantil, chamava-me a
ateno o quanto parecia ser difcil, para muitas das crianas, os primeiros dias de ingresso
naquele ambiente que, embora fosse um ambiente alegre e amvel, era estranho aos novatos.
O trabalho das professoras sobre as crianas era intenso (e sutil ao mesmo tempo). Intenso, no
sentido de ser um processo contnuo, ininterrupto, isto , as crianas eram constantemente
dirigidas, coordenadas, postas em fila, silenciadas, corrigidas: No corram, no subam, no
batam!; Falem baixo, peam desculpas; Esperem, devagar; No hora de comer;
Todos cantando!; Pinte assim, senta direito. Era tambm um trabalho sutil por dar-se no
cotidiano, agindo nos mnimos detalhes, mas quase invisvel, como algo que j fazia parte da
rotina escolar.
Embora todas essas operaes escolares sejam tpicas sobre o indivduo que se quer
escolarizar, e estejam, de certo modo, naturalizadas, como fazendo parte desse cotidiano,
aponto para a importncia de nos questionarmos acerca de como estas pequenas operaes
vo, aos poucos, atravs da disciplina, normalizando, adestrando e modelando o sujeito aluno.
Como lembra Maria Isabel Bujes, desde a mais tenra idade, as crianas so acompanhadas e
podem ser vigiadas para terem suas condutas escrutinadas a fim de que sejam detectados os
mnimos detalhes sujeitos a correo (BUJES, 2006, p.228). Foram estas operaes, estas
intervenes frequentes e que utilizei como exemplo, naquela escola, mas que exemplificam
o cotidiano de muitas outras que me fizeram (re)pensar as relaes entre infncia e escola,
no sentido de problematiz-las.
Atravs destas pequenas aes, destas mincias que, de acordo com Michel Foucault
(1994), se d o poder disciplinar, cujo objetivo o corpo individual em seus detalhes. No
sentido atribudo por Foucault (idem), o poder no algo que se possua, ou algo centralizado,
mas algo que se exerce nas relaes entre os indivduos, da falar em relaes de poder. O
poder se exerce de forma difusa, cuja imagem que melhor poderia descrev-lo seria a de uma
rede (CASTRO, 2009). O poder disciplinar se exerce pelos mtodos que permitem o
11
controle minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e
lhes impem uma relao de docilidade-utilidade (FOUCAULT, 1994, p.126).
Alm do que se pode observar acerca da imposio de uma relao de docilidade-
utilidade que se estabelece entre escola e aluno, cuja quase invisibilidade como processo
artificial faz com que a relao de obedincia do aluno para com o professor seja quase
naturalizada, relato algumas observaes cotidianas que me levaram a eleger um tema de
pesquisa relacionado escola, a hiperatividade. Pergunto-me se no porque entendemos o
comportamento obediente, a postura de bom aluno, como basais para que o dia-a-dia escolar
transcorra normalmente, que talvez tenhamos patologizado o comportamento inquieto,
desobediente.
Pude observar, nos anos recentes, certa popularizao e banalizao no emprego do
termo hiperativo para designar crianas descritas como agitadas, que esto sempre se
movimentando, que sobem e descem de mveis, que no ficam mais que cinco minutos na
frente da televiso, que s querem chamar a ateno, que no ouvem quando lhes dirigem
a palavra, etc. ou mesmo quando se trata de crianas normais, mas ativas. Tal designao
utilizada inclusive em casos de crianas que no foram oficialmente diagnosticadas como
hiperativas pelos profissionais autorizados. O termo hiperatividade vem sendo utilizado
popularmente como forma de classificar uma srie de comportamentos comuns na infncia
como, por exemplo, falta de educao, oposio, curiosidade, criatividade.
Para dar maior concretude s observaes acima citadas, apresento alguns aspectos do
estudo realizado por Cludia Freitas1
(2011), no qual foram entrevistadas professoras,
educadoras especiais, psicopedagogas e assessoras da rede municipal de ensino de Porto
Alegre. A autora mostra, com base nas falas das professoras e no que evidenciam suas queixas
sobre alunos que causam problemas em sala, que as descries que mais aparecem so as de
que o aluno agressivo, que no para, no aceita no, briga com os colegas, j
destruiu a sala de aula, bagunceiro, indisciplinado, no presta ateno, sendo que a
expresso mais corriqueira hiperativo ou muito hiperativo.
A partir de tais experincias e observaes, penso que pode ter incio um processo de
estranhamento frente ao que nos parece familiar, por vezes inofensivo ou mesmo necessrio.
1 Em sua Tese de doutorado, pela Faculdade de Educao da UFRGS, Freitas (2011) procurou investigar como
as escolas vm lidando com a inquietude dos corpos dos alunos e que recursos tm buscado para tratar essa
questo.
12
Refiro-me, nesse sentido, popularidade que a hiperatividade tem adquirido, bem como a
crescente prtica de diagnstico do Transtorno do Dficit de ateno e Hiperatividade (nome
oficial que corresponde hiperatividade) e prescrio de psicofrmacos a crianas inquietas,
desatentas, indisciplinadas ou que de alguma forma no correspondem s expectativas
escolares.
O Transtorno do dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) caracterizado pela
medicina como um conjunto de sintomas relativos desateno, agitao e impulsividade. O
Manual Estatstico e Diagnstico de Doenas Mentais (DSM-IV2), editado pela Associao
Americana de Psiquiatria (APA3), publicado no ano de 1994, descreve o TDAH como o
transtorno psiquitrico mais comumente diagnosticado em crianas, com prevalncia em torno
de 3 a 6 % da populao. O Manual refere que esse tipo de transtorno muitas vezes
percebido a partir da idade escolar, j que, ainda segundo o Manual, a escola um ambiente
que exige nveis maiores de concentrao e quietude dos corpos. O fato de haver um nmero
cada vez maior de indivduos diagnosticados, e, talvez, um possvel exagero diagnstico,
tem provocado divergncias no modo como se posicionam pais, educadores, especialistas e
intelectuais a respeito do transtorno e, sobretudo, da crescente utilizao do medicamento
Ritalina4 como forma de tratamento dos sintomas.
O TDAH o diagnstico mais comum nas crianas que so encaminhadas ao
atendimento mdico ou psicolgico por apresentarem comportamento considerado
inadequado na escola, baixo rendimento escolar ou dificuldades de aprendizagem embora
no seja um transtorno de aprendizagem (MEISTER, 2001). A importncia que dada ao
TDAH reside no fato de ele afetar o desempenho escolar, por isso tambm que o papel dos
professores crtico em advogar pela doena e pelo tratamento (PHILLIPS, 2006). Em funo
dessa estreita relao entre TDAH e sala de aula, professores e professoras so peas-chave
no processo de identificao e determinao do diagnstico de seus alunos. Esses
profissionais tm se tornado alvo de discursos e prticas, tais como cursos, palestras e
materiais de divulgao sobre o TDAH (COSTA, 2006b), como veremos mais adiante.
2 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.
3 American Psychiatric Association.
4 A Ritalina, fabricada pela empresa Novartis, o nome comercial do metilfenidato, um tipo de estimulante do
sistema nervoso central, grupo de frmacos tambm conhecidos como psicoestimulantes. Este medicamento
utilizado no tratamento dos sintomas do TDAH.
13
O TDAH um dos transtornos psiquitricos mais estudados pela medicina, segundo a
Associao Brasileira do Dficit de Ateno5 (ABDA), sobretudo no que diz respeito s
tentativas em definir seus mecanismos biolgicos. As pesquisas de neuropsiquiatria tm-se
dedicado a investigar possveis causas genticas e seus aspectos neurobiolgicos (ROHDE &
HALPERN, 2004). Esses estudos (SZOBOT et al, 2001; ROMAN et al, 2002; ROHDE &
HALPERN, 2004; MATTOS et al 20066) tm abordado o TDAH como uma condio mdica
desencadeada por causas biolgicas, sem dar espao discusso aprofundada acerca de
fatores sociais e culturais, ou do contexto no qual se inserem os indivduos diagnosticados.
Numa perspectiva de tensionamento dessa abordagem biologicista, autoras como
Luciana Caliman, tm questionado o TDAH enquanto condio meramente neurobiolgica,
analisando sua constituio scio-mdica e as contingncias morais, sociais e cientficas
que lhe do origem e sustentao (CALIMAN, 2009). Outros autores tm tambm adotado
uma perspectiva de tensionamento frente ao modo reducionista com o qual se tem tratado o
comportamento considerado desviante7.
O TDAH tambm tem sido amplamente divulgado e debatido na mdia (PHILLIPS,
2006; SANTOS & SILVEIRA, 2008). O tema vem sendo, nos ltimos anos, assunto de
inmeras reportagens em jornais e revistas de grande circulao no pas, como Veja, poca,
Carta Capital, O Globo, Folha de So Paulo8 e Zero Hora, no Rio Grande do Sul, entre outros.
Programas televisivos tm tambm abordado a questo do TDAH, como o Globo Reprter9,
alm de inmeros sites 10 que tratam especificamente sobre o TDAH (sendo que alguns
oferecem cursos on line para educadores) e comunidades virtuais em sites de relacionamento
como o Orkut, das quais participam membros portadores de TDAH, pais e professores.
Em grande parte do que tem sido divulgado pela mdia, o transtorno apresentado como
um problema neurolgico de causas genticas, em que imagens cerebrais, como, por exemplo,
as imagens obtidas por tcnicas de escaneamento cerebral, as PET Scans11, que distinguem
crebros de portadores do transtorno e crebros ditos normais (ITABORAHY, 2009). Em
5 Informao presente no site da ABDA, www.tdah.org.br, consultado s 17h00min do dia 11/10/2011.
6 Szobot et al (2001); Roman et al (2002); Rohde & Halpern; Mattos et al (2006); entre outros.
7 A ser discutido no captulo Biologizao e Medicalizao das condutas escolares.
8 Ver Itaborahy (2009). Esta autora realizou um amplo estudo sobre a divulgao do TDAH e da Ritalina entre
os anos 1998 e 2008 no Brasil. A anlise incluiu jornais e revistas destinados ao pblico leigo, como os citados
acima, alm de revistas especializadas de Psiquiatria, tais como o Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Revista
Brasileira de Psiquiatria, Arquivos de neuropsiquiatria, entre outros. 9 Discutido em Santos e Silveira (2008).
10Dentre os quais podem ser citados: www.atencaoprofessor.com.br; www.portaleducao.com.br, entre outros.
11 Positron Emission Tomography (Tomografia por emisso de psitrons).
14
contrapartida, no dia-a-dia das clnicas, estas tecnologias no fazem parte do processo de
diagnstico, embora se diga que o transtorno real porque possui uma causa fsica
(CALIMAN, 2006). E , exatamente, a causa biolgica um dos principais argumentos
utilizados para se fazer uso de tratamento medicamentoso.
Mdicos realizam o diagnstico atravs de questionrios12
aplicados aos pais, aos
professores13
e, eventualmente, ao paciente, podendo incluir testes neuropsicolgicos. Nesse
aspecto, importante ressaltar que, tanto o processo que leva o mdico a decidir pelo
diagnstico quanto o depoimento dos pais ou professores, depende do juzo de valor de cada
um. Aquilo que pode vir a ser julgado como normal para alguns, pode no o ser para outros;
visto, ainda, que os critrios para avaliao so respondidos em graus de intensidade como:
nada, pouco ou muito, para quesitos como, por exemplo, fala em excesso, ou corre
em situaes em que isso no apropriado, entre outros. Como possvel quantificar o falar
em excesso? Como julgar situaes nas quais correr seria inadequado?
1.2 A escolha do material de anlise
inegvel o importante papel que a mdia14
desempenha em nossa sociedade e em
nosso tempo (SILVERSTONE, 2005), atuando como um meio de circulao de informaes
em massa, de construo e transmisso de valores e verdades (HALL, 1997), fazendo parte
da constituio das subjetividades individuais e coletivas. Por esta razo que, a partir dos
significados veiculados pela mdia, busco analisar o que dito acerca do TDAH em materiais
como a revista Nova Escola, tambm percorrendo por alguns sites especficos sobre o TDAH,
como o caso do site da Associao Brasileira do Dficit de Ateno (www.tdah.org.br) e do
site Ateno Professor (www.atencaoprofessor.com.br), que oferece cursos sobre TDAH para
professores/as.
Investiguei esses materiais com o intuito de identificar e problematizar as estratgias de
agenciamento do TDAH voltadas aos pais e professores. Essas estratgias so, em geral,
apresentadas por especialistas provenientes dos campos da psicologia, pedagogia e, sobretudo,
da medicina, como a psiquiatria, pediatria e neurologia. Neste movimento, procuro tensionar
12
Questo a ser explorada no Captulo 2. 13
Em se tratando de crianas. 14
Considero a mdia como todo o conjunto de materiais grficos, televisivos, radiofnicos e digitais responsveis
por propagar informaes de todo o tipo, tais como jornais, revistas, emissoras de televiso, rdio, internet, entre
outros.
15
os processos de patologizao do comportamento desviante e de medicalizao da
indisciplina, cada vez mais evidentes no mbito escolar.
Para tanto, empreendo uma anlise cultural, buscando apoio nas contribuies dos
Estudos Culturais da Cincia, desde uma perspectiva ps-estruturalista. De acordo com esta
perspectiva de pesquisa, a Cincia no pode ser aceita como alheia aos cdigos culturais, s
foras sociais e econmicas e aos interesses profissionais (WORTMANN & VEIGA-NETO,
2001, p.13); assim, a produo do conhecimento cientfico est sempre articulada a interesses
e crenas de um contexto cultural especfico.
Penso que uma abordagem do TDAH a partir de uma perspectiva culturalista possa ser
bastante frutfera, pois a partir dela que busco perceber a insero do TDAH na cultura. Faz-
se necessrio, portanto, levar em conta esse fenmeno como algo emergente de uma
sociedade que atribui valor supremo escolarizao, ao trabalho, cidadania, e considera
como grandes virtudes a responsabilidade, a ateno dedicada s incumbncias, a capacidade
de ponderar, a capacidade de realizao de projetos. E so justamente essas as virtudes que se
diz faltar ao indivduo portador do TDAH, tido como um refm da desateno, da
impulsividade e da hiperatividade impressas como esto a afirmar algumas vozes no seu
prprio cdigo gentico.
Saliento, ainda, que a anlise aqui proposta no est preocupada em como se d a
produo do conhecimento cientfico acerca do TDAH, mas com a articulao da produo e
divulgao desse conhecimento com as prticas que se instituem no mbito da escola. De
modo algum tomo como verdades tais conhecimentos ou busco uma verdade, nem
pretendo julgar se as prticas e discursos que se articulam em torno do TDAH so condizentes
ou adequadas com relao ao que postulam as pesquisas cientficas acerca de aspectos
genticos, neurolgicos ou neuroqumicos. A anlise que empreendo procura afastar-se de
qualquer cientificismo, como alerta Henri Giroux (2008) acerca dos caminhos pelos quais
podemos conduzir anlises culturais.
Alm de buscar apoio nas contribuies dos Estudos Culturais, trago para esta discusso
os estudos de outros autores, dentre os quais destaco Nikolas Rose, Francisco Ortega e
Luciana Caliman. Nikolas Rose um dos autores que trazem importantes contribuies para o
mbito das discusses sobre a cincia e suas implicaes no agenciamento dos sujeitos e de
suas condutas. No sentido com o qual o autor se refere a agenciamentos, eles incluem um
16
conjunto de tecnologias de subjetivao, tcnicas, normas, vocabulrios, decises, entre
outras, que so postas em prtica e que invocam os seres humanos como sujeitos de um certo
tipo de liberdade (ROSE, 2001, p.177) Uma das discusses que este autor traz, diz respeito
ao modo pelo qual os saberes das cincias psi (psicologia, psicanlise, etc.) estiveram
fortemente articulados, ao longo do sculo XX, constituio da noo de eu e ao
agenciamento dos sujeitos nas sociedades ocidentais (ROSE, 1998, 2001). Recentemente, o
autor nos mostra algumas das mudanas que essa nossa noo de eu vem sofrendo, em parte
devido aos avanos de reas como as das neurocincias e s novas proposies de sujeito a
que as pesquisas neurocientficas tm suscitado, e, sobretudo, aos novos agenciamentos em
torno desses sujeitos. Nessa direo, discuto ao longo deste trabalho algumas das formas
como essas transformaes podem ser pensadas com relao insero do TDAH nessa
concepo neurocientfica de sujeito.
O trabalho de Luciana Caliman particularmente interessante, pois nos mostra com
profundidade as condies e as contingncias econmicas, sociais e polticas que
atravessaram a histria do TDAH (no que possua uma histria unificada) e sua estreita
relao com a emergncia da figura do sujeito cerebral. A ideia de sujeito cerebral seria
aquilo que Francisco Ortega (2006), entre outros autores, compreende como uma figura
antropolgica edificada a partir do final do sculo XIX e que ganharia fora ao final do sculo
XX e incio do sculo XXI. A ideia bsica do sujeito cerebral parte do pressuposto de que o
crebro seria o rgo necessrio para construir nossa identidade (ORTEGA, 2006). Em outras
palavras, a ideia de que a identidade pessoal possui uma matriz biolgica. A partir dessa
noo, o que cabe trazer para este estudo so os desdobramentos que ela traz em nossa cultura
acerca do modo pelo qual nos pensamos sujeitos, como agimos sobre ns mesmos e sobre os
outros, como lidamos com nossos sentimentos, com nossas variaes de humor, emoes e
desafetos. E essa forma de lidarmos que, cada vez mais, est de acordo com o entendimento
de que o nosso substrato orgnico o responsvel por todos esses fenmenos da existncia,
conforme aponta Ortega (2006b), entre outros.
Com relao pertinncia dos estudos que se fazem atravs da anlise de materiais
miditicos, que foi a que escolhi para proceder com este trabalho, Rosa Fischer (1997) pontua
que a mdia no pode ser vista somente como veiculadora, mas tambm como produtora de
saberes e formas especializadas de comunicar e produzir sujeitos, assumindo nesse sentido
uma funo nitidamente pedaggica (FISCHER, 1997, p.60). A autora nos fala de um
dispositivo pedaggico da mdia, partindo do pressuposto de que os meios de informao e
17
comunicao constroem significados e atuam decisivamente na formao de sujeitos sociais
(idem).
Marisa Costa e Rosa Silveira (2006) afirmam que a mdia pode ser entendida como um
campo discursivo constitudo por um conjunto heterogneo de enunciados, demarcado por
formas prprias de regularidade e por sistemas de coero e subordinao que se exercitam e
possuem materialidade (COSTA & SILVEIRA, 2006, p.25). Sob essa perspectiva, podemos
dizer que a revista Nova Escola produz modos de ser, governar, agir e conduzir prticas em
sala de aula, visto que seu contedo endereado a professoras e professores, uma das razes
pelas quais inclu essa revista na anlise. Ademais, uma das revistas mais difundidas entre
esse pblico no Brasil, com uma tiragem mensal de 728.397 exemplares15
.
No captulo seguinte, intitulado Disciplinamento do Corpo Infantil, discorro sobre a
emergncia da escola moderna e da implantao da disciplina escolar com vistas ao controle
do crescente contingente de alunos que perfaziam o interior dessas instituies a partir da
Modernidade. Discuto, brevemente, a importncia da consolidao do conceito de infncia, tal
como o conhecemos hoje, para a construo dos ideais de educao do sujeito moderno.
Veremos tambm como as transformaes culturais pelas quais passa a infncia, conforme
tem sido apontado, podem estar relacionadas aos problemas enfrentados na escola; e a quais
(novos) recursos a escola tem recorrido a fim de controlar os corpos.
Em Biologizao e medicalizao das condutas escolares, irei discutir acerca das
mudanas na concepo de sujeito em nossa sociedade que se desdobraram a partir do sculo
XIX, ganhando fora no final do sculo XX e incio do sculo XXI e que conferem um carter
biologicista a essa forma de compreenso de ns mesmos. Como me interessa pensar a
emergncia do TDAH nesse contexto, analiso a narrativa cientfica sobre o TDAH a fim de
problematizar as estratgias de agenciamento dos sujeitos diagnosticados na sua relao em
um contexto mais amplo, que o do gerenciamento do risco e do comportamento desviante na
escola e na sociedade. Esses agenciamentos incluem estratgias voltadas a professores e pais,
que objetivam difundir os conhecimentos cientficos sobre o TDAH. A principal ideia de
que atravs dessas estratgias seja possvel capacitar esse pblico a reconhecer o transtorno e
encaminhar seus filhos e alunos a especialistas para diagnstico e tratamento.
15
Informaes sobre a revista sero exploradas no captulo O professor atento ao TDAH: uma anlise do que divulgado na revista Nova Escola.
18
No captulo O professor atento ao TDAH, busco analisar a forma como esses
conhecimentos esto atravessados nas instrues que a revista Nova Escola apresenta para
que professores lidem com o TDAH e/ou com os comportamentos que ele representa.
Veremos que desateno, inquietao e impulsividade so e foram vistas, ao longo dos anos
de publicao da revista, de distintas formas, bem como mudaram as proposies para lidar
com alunos que apresentassem esses comportamentos.
19
2. O DISCIPLINAMENTO DO CORPO INFANTIL
Os sinais do transtorno podem ser mnimos ou estar ausentes quando o indivduo se encontra sob controle rgido, encontra-se num ambiente novo, est envolvido em atividades especialmente interessantes, em uma situao a dois (p. ex., no consultrio mdico) ou enquanto recebe recompensas frequentes por um comportamento apropriado. (APA, 2003, p.113)16
Por volta do sculo XVII, com o crescimento populacional e a urbanizao na Europa,
formavam-se grandes concentraes populacionais em centros urbanos, ao mesmo tempo em
que emergia a necessidade de administrao, regulao e organizao desses contingentes
populacionais. O prprio conceito de populao emerge a partir desse contexto, e difere da
noo de povo como conjunto amorfo de pessoas que fazem parte de uma nao no
sentido de que a populao algo passvel de ser esquadrinhado, contabilizado, categorizado
na medida em que se torna alvo de estratgias que tm por objetivo govern-la (FOUCAULT,
2000).
Nessa conjuntura, Foucault (1994, p.191) situa o poder disciplinar como um mecanismo
que possui um triplo objetivo em resposta a essa exploso demogrfica: tornar o exerccio do
poder menos custoso possvel; fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados ao
seu mximo de intensidade; e, fazer crescer [...] a docilidade e a utilidade de todos os
elementos do poder. As disciplinas corporais foram as tcnicas atravs das quais se buscou
esses objetivos, sua finalidade era a ordenao das multiplicidades humanas, tornando-as,
inclusive, favorveis umas s outras ao serem repartidas, selecionadas e utilizadas conforme
as aptides e caractersticas de cada indivduo, formando grupos especializados para
desempenhar determinadas funes (FOUCAULT, 1994).
Em suma, atravs da ordenao das multiplicidades humanas, da decomposio e
recomposio das foras e de sua mxima utilizao que se tem como meta principal
aumentar a produtividade, do indivduo ao coletivo seja de uma nao, de uma fbrica ou de
uma escola.
O crescimento populacional refletiu tambm no aumento da populao que frequentava
a escola. O ingresso progressivo de crianas nas instituies escolares, formando um
16
Observao sobre o Transtorno de Dficit de Ateno/Hiperatividade, constante no Manual Diagnstico e Estatstico de Doenas Mentais (DSM-IV).
20
expressivo contingente dentro desses espaos, colocava a necessidade de serem formuladas
estratgias de conteno desses corpos. Aos poucos, instalar-se-ia um conjunto de tcnicas
disciplinares, atravs das quais este poder disciplinar se exerceria. Instaurava-se uma srie de
mecanismos cujo objetivo era atuar nos corpos em seus detalhes, em sua organizao interna e
na eficcia de seus movimentos (FOUCAULT, 1994).
Fazia-se necessrio, primeiramente, organizar as multides no espao, repartindo-as,
seriando-as, esquadrinhando-as de acordo com determinados critrios, e reagrupando-as
conforme, por exemplo, a idade (FOUCAULT, 1994). Posteriormente, os indivduos eram
celularizados, isto , postos cada um em sua carteira com uma determinada distncia
separando-as a fim de que fossem evitadas as aglomeraes, as disperses, os burburinhos.
O mximo aproveitamento do tempo tambm uma das marcas das disciplinas.
Segundo Foucault (1994), o horrio uma das tcnicas que permite tal sujeio do corpo ao
tempo. Para tanto, impe-se a diviso do tempo, intensificando-se o uso do mnimo instante; e
seriao sucessiva das atividades.
Esse o tempo disciplinar que se impe pouco a pouco prtica pedaggica especializando o tempo de formao e destacando-o do tempo adulto, do tempo do
ofcio adquirido; organizando diversos estgios separados uns dos outros por provas
graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma
determinada fase. (FOUCAULT, 1994, p.140)17
Foucault cita alguns instrumentos utilizados a fim de gerar a individualidade
disciplinada, e eu os descreverei de modo sucinto, com base no que escreveu o autor. Esses
instrumentos so: a vigilncia hierrquica, a sano normalizadora e o exame.
A vigilncia hierrquica (olhar hierrquico) um dos instrumentos com os quais se
busca garantir o sucesso das disciplinas. Ele parte do princpio de que ao estar sendo vigiado,
o indivduo cumprir as normas, agir de acordo com o que foi estabelecido e obedecer ao
seu mestre. A vigilncia hierrquica deve abarcar o maior nmero de indivduos submetidos
ao olhar de um nmero mnimo de pessoas.
O panptico citado pelo autor como uma das formas empregadas para aperfeioar o
exerccio do poder. Ele configurado por um tipo de arquitetura onde, a partir de um local
especfico, e de preferncia que no possa ser visto, um indivduo vigie aos demais e de onde
17
Para diferenciar citaes de trechos que tomo como referncia terica (cuja formatao a de recuo 4,0, fonte 10 e espaamento 1,0, conforme normas da Associao Brasileira de Normas e Tcnicas) convenciono que as
citaes de trechos que esto sendo analisados tero recuo 2,0, fonte 11 e espaamento 1,0.
21
possa perceber os mnimos movimentos; e, ao mesmo tempo, permita que todos sejam
vigiados entre si. Esse modelo de vigilncia permite que um nmero mnimo de indivduos
exera o poder sobre um nmero mximo de indivduos. O olhar constante permite uma
interveno permanente, agindo antes que as falhas, os erros e os crimes aconteam. A fora
do panptico est em, justamente, nunca intervir (FOUCAULT, 1994).
A sano normalizadora funciona como uma espcie de castigo atravs do qual se busca
corrigir os desvios, os erros.
Na oficina, na escola, no exrcito funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausncias, interrupes das tarefas), da atividade
(desateno, negligncia, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobedincia),
dos discursos (tagarelice, insolncia), do corpo (atitudes incorretas, gestos no conformes, sujeira), da sexualidade (imodstia, indecncia). (FOUCAULT, 1994, p.
159)
E, por fim, o exame; mecanismo em que h a combinao da vigilncia hierrquica com
a sano normalizadora. O exame permite qualificar, classificar e punir (FOUCAULT, 1994).
Segundo o autor, este pequeno esquema operatrio faz com que o indivduo seja mensurado,
que cada um ingresse num campo documental, convertendo-se num caso. O exame tanto pode
ser uma prova a partir da qual se espera medir o conhecimento de cada indivduo, quanto um
teste visando medio das suas capacidades, ou, ainda, um parecer, um diagnstico mdico
ou psicomotor.
A escola torna-se um aparelho de exame ininterrupto e de comparao perptua de
cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar (idem, p. 167). Assim,
um dos aspectos mais importantes da funo do exame de que ele oferece a possibilidade de
extrair saberes a partir dos alunos, de modo que a escola torna-se o local de elaborao da
pedagogia. Para o autor, esse seria o mecanismo que liga um tipo de formao de saber a uma
forma de exerccio de poder.
As disciplinas configuraram no somente as escolas, mas outras instituies como
hospitais, fbricas e quartis, caracterizando o que se convencionou chamar sociedades
disciplinares. Com o advento do Estado Moderno, as sociedades disciplinares suplantariam
as sociedades de soberania, cujo poder do Estado era exercido atravs do poder soberano e
tinha como preocupao principal a segurana de seu territrio. Acerca de seu povo, o poder
do soberano era um poder de fazer morrer ou deixar viver; poder esse que, conforme
Foucault (2000), sofrer uma transformao, no sculo XIX, no aspecto de direito poltico,
22
pois passa a ser um poder de fazer viver ou deixar morrer (FOUCAULT, 2000, p.287). Isto
, no primeiro caso o soberano agia por meio de um poder absoluto sobre a vida dos sditos,
com o poder de mandar matar ou deixar viver. Com base nestas transformaes pode-se dizer
que nas sociedades modernas, a preocupao do estado passa a ser com a populao. E, neste
contexto, surge, na segunda metade do sculo XVIII, um poder ao qual Foucault (2009)
denomina biopoder, isto , um poder que se exerce sobre a vida das populaes, que
procura gerenci-las, potencializar sua fora produtiva. Articulado ao poder disciplinar
poder que se exerce sobre os corpos individuais, o biopoder poder que se faz perceber
atravs das biopolticas trata dos processos da populao como massa global, tais como
taxas de natalidade, de morbidade, de reproduo, de fecundidade, produo, sade
(vacinao, risco, preveno), baseado, em primeira instncia, em clculos estatsticos.
Foucault indica essa mudana de um poder soberano sobre o corpo, que faz morrer ou
deixa viver, para o poder disciplinar, que procura extrair do corpo sua potencialidade mxima,
fragmentando e seriando seu tempo e seus movimentos, exercitando-o. O que importa a
economia e a eficcia dos movimentos.
Houve, durante a poca clssica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de
poder. Encontraramos facilmente sinais dessa grande ateno dedicada ento ao
corpo ao corpo que se manipula, se modela se treina, que obedece, responde, se torna hbil ou cujas foras se multiplicam. (FOUCAULT, 1994, p.125).
Uma das marcas principais da disciplina a de que ela normaliza, e atravs da norma,
do modelo do normal, que ela homogeneza (FOUCAULT, 1994, 2009). Cabe perguntar: de
que forma isto ocorre? Foucault (2009) especifica que a disciplina, atravs de um
adestramento progressivo e de um controle permanente, ir demarcar os que sero
considerados inaptos, incapazes e os outros (FOUCAULT, 2009, p.75), e a partir disso que
se demarca o normal e o anormal.
O normal ser um modelo construdo em funo do modo como se obtm o melhor
resultado, na menor frao de tempo, com o menor custo; um modelo que especifica a
posio exata para obter o melhor desempenho, o modo correto de sentar, de portar-se, de
exercitar-se. O estabelecimento de um modelo a ser seguido como norma trata-se, nesse caso,
mais de um processo de normao do que de normalizao. A distino entre o normal e o
anormal far-se- pela inaptido do segundo em seguir o primeiro. Para Georges Canguilhem
(2000), o normal e o anormal no esto localizados em extremos oposto. Ao contrrio, muitas
vezes, o que os separa so tnues fronteiras entre o que considerado normal e o que
23
anormal. Exemplo disso pode ser a diferena entre a nota de um aluno aprovado com nota
6.0 e um aluno que repete o ano por atingir somente uma nota 5.9; ou de uma criana
considerada ativa, uma criana que brinca, que corre, que conversa, de uma criana
considerada (hiper)ativa, que corre demais, que fala em excesso.
A normalizao parece se ocupar de categorizar, classificar, esmiuar, por exemplo, os
comportamentos, atravs de exames, tabelas, escalas, pontuaes, questionrios, que
procuram definir de modo mais preciso e objetivo possvel o normal e o anormal. Cito
como exemplo atual o SNAP-IV18
, um recurso criado para a avaliao/identificao de
crianas hiperativas. O SNAP-IV uma escala para diagnstico criada com base nos critrios
do DSM-IV19
para o Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade, adaptada a uma
verso para ser aplicada a professores e pais. Nele consta a descrio de 26 comportamentos
ou situaes que podem ser avaliados, cada um, numa escala de intensidade qual se
atribuem pontos que vo de zero a trs. A seguir, destaco alguns desses
comportamentos/critrios presentes no questionrio SNAP-IV, principalmente os critrios que
considero especialmente problemticos. Creio que o ato de julgar se um comportamento
patolgico ou no, se normal ou excessivo, est sempre vinculado s diferentes
subjetividades (seja do/a professor/a, dos familiares ou do mdico) e, tambm a diferentes
discursos.
Distrai-se facilmente com estmulos internos.
Mexe bastante as mos, ps ou cadeira.
Corre de um lado para outro ou sobe demais nas coisas.
Fala em excesso. [Grifos meus]
2.1 Infncia escolarizada
Os sintomas so mais provveis em situaes de grupo (p. ex., no ptio da escola, na sala de aula ou no ambiente de trabalho). (APA, 2003, p.113)
O conceito de infncia, tal como o conhecemos hoje, como um perodo especfico do
desenvolvimento, com determinadas caractersticas e peculiaridades que lhe so especficas,
nem sempre existiu. Existe hoje a dificuldade de se pensar [...] a infncia dissociada do
aparato pedaggico montado para imprimir-lhe uma determinada feio da Modernidade
(BUJES, 2006, p.219). 18
A sigla refere-se s iniciais dos sobrenomes dos autores que elaboram o questionrio: Swanson, Nolan and Pehlam (SWANSON, 2001). Em anexo (Anexo 1). Disponvel em www.psiqueweb.com.br. 19
Quarta edio do Manual Diagnstico e Estatstico de Doenas Mentais, publicado pela Associao
Americana de Psiquiatria.
24
At o sculo XVIII, no havia um local especfico, como a escola, onde as crianas
fossem educadas e adquirissem conhecimentos. As crianas vivenciavam cotidianamente as
atividades dos adultos, adquirindo conhecimentos que eram apreendidos em meio a essas
atividades, como sugere Philippe Aris (1981).
De acordo com os estudos realizados por esse autor, a escola do perodo anterior ao
sculo XV no era exclusivamente destinada s crianas, ela acolhia pessoas de todas as
idades de acordo com suas possibilidades de frequent-la (ARIS, 1981). Estudar ou
escolarizar-se naquele perodo era uma deciso autnoma ou da famlia e no uma imposio
do Estado. Em especial, no incio do perodo feudal (sculo V a X aproximadamente) no
havia um currculo pr-estabelecido. O contedo a ser ensinado dependia da negociao entre
professor/tutor e aluno, dos interesses de cada parte e de acordo com o que julgavam ser
importante (RIBEIRO, 2006). A adoo de um currculo universal, para todos, ocorre por
volta do sculo XV com o advento da Modernidade, envolvendo formas de conhecimento
cujas funes consistem em regular e disciplinar o indivduo (POPKEWITZ, 2008, p.186).
Jlia Varela (2008) argumenta que, em funo de uma nova concepo de infncia,
surgida entre os sculos XVI e XVII, a separao entre adultos e crianas comea a se tornar
mais marcada, surgindo em razo disto, a necessidade de especificar os processos de educao
da criana, e a partir desse quadro que comea a se delinear um novo tipo de instituio
escolar.
Filsofos humanistas e reformadores dos sculos XVI e XVII, dentre os quais esto
Jean-Jacques Rousseau20
, John Locke21
, Ren Descartes22
e Immanuel Kant23
, comearam a
fazer referncia a uma natureza infantil dotada de talentos, dons e aptides como
predisposies naturais da criana (BUJES, 2002). Porm, essa natureza infantil tambm
era vista como ameaa, desafio e risco. Para Descartes, a animalidade e a selvageria
voltadas ao instinto e desordem traduziam a falta de razo do indivduo. Portanto, como
conclui Bujes (op.cit) acerca do que propunham aqueles autores, a educao das crianas
deveria curv-las obedincia, for-las razo (p.49).
20
Filsofo do Iluminismo que viveu de 1712 a 1778. Dentre suas publicaes destaca-se Emlio ou Da Educao. 21
Defendia a ideia de a o ser humano nascia como uma tbula rasa, ideia segundo a qual no existem ideias inatas. Viveu de 1632 a 1704. 22
Considerado o fundador da filosofia moderna. Viveu de 1596 a 1650. 23
Escreveu Sobre a Pedagogia, tendo vivido de 1724 a 1804.
25
Do mesmo modo, para Kant a educao o que tiraria o homem do estado de
selvageria para atingir o estado de racionalidade, sem o qual no se tornaria
verdadeiramente homem (BUJES, 2002). A partir do que nos mostra a autora, pode-se dizer
que o estado de razo e o estado de selvageria so posicionados como opostos por aqueles
autores, sendo que o primeiro deveria sobrepor-se ao segundo atravs da educao e
disciplina. Paradoxalmente, o verdadeiro homem somente seria revelado, emancipado,
quando, finalmente, dominasse seus instintos. Pressupunha-se a existncia de uma natureza
como essncia inata ao ser humano, como estado primrio de selvageria cujos impulsos
deveriam ser domesticados e esculpidos com a finalidade de tornar o indivduo um sujeito
emancipado, dotado e guiado por sua razo.
A elaborao de um discurso sobre a infncia pode ser considerada essencial para
construo de um projeto educacional moderno, pois a infncia serve como justificativa para
proposio de novos saberes, que, por sua vez, traam o caminho para que se veja como
factvel e desejvel nela intervir (BUJES, 2002, p.63). Com o advento da Idade Moderna, as
crianas passam a ser tomadas no mais somente como responsabilidade familiar, mas como
uma preocupao social, constituindo-se como alvos de poder de inmeros discursos
normativos. Elas se tornam objetos de interesse de inmeras classes profissionais, de
iniciativas governamentais, de prticas especializadas, de legislao, de regimentos de
estatutos, de convenes (idem).
A fim de atender a esse contingente infantil, a escola moderna comea a ser moldada
incluindo neste processo a categorizao da educao em um currculo progressivo e seriado
de acordo com as faixas etrias. Junto a esse processo e sob influncia exercida pelos
Iluministas, surge a ideia de um ensino universal, aberto a todos (ARIS, 1981). Para Philippe
Aris, entre os moralistas e educadores do sculo XVII que se visualiza a formao de um
sentimento de infncia que passa a consider-la como a idade da imperfeio, havendo,
portanto, a necessidade de uma educao, sem a qual as crianas se tornariam mal-educadas.
Surge, assim, uma pedagogia que considerava necessrio conhec-las para corrigi-las,
servindo de base para a elaborao e execuo do projeto educacional moderno.
O projeto educacional moderno um projeto civilizador voltado para a
institucionalizao das crianas, operando com o distanciamento entre homem e natureza
(BUJES, 2002). O sujeito que este projeto visava formar, o sujeito moderno, era um sujeito
26
autnomo, autoconsciente, autodisciplinado (idem). A escola seria o meio atravs do qual os
futuros cidados seriam preparados para o mundo do trabalho.
O surgimento da escola moderna, nos moldes de um ensino seriado, progressivo,
universal e obrigatrio s foi possvel em funo de algumas condies. Para Julia Varela &
Fernando Alvarez-Uria (1992), as condies que na poca favoreceram o surgimento dessa
escola foram: a emergncia de um estatuto da infncia; a definio de um espao especfico
para as crianas; o aparecimento de um corpo de especialistas da infncia; a destruio de
outros modos de educao; e a imposio da obrigatoriedade da escola. H de se ressaltar a
importncia da elaborao de um conceito sobre a infncia em que as crianas so
apresentadas como seres dependentes, desprotegidos, incompletos, mas tambm como uma
instncia de risco, o que predispe esse grupo interveno de adultos, que se exerce atravs
do Estado, da escola, da famlia. Tal definio remontava educao escolar a tarefa de
formar futuros cidados autnomos, produtivos e independentes, mas obedientes (BUJES,
2002).
Conforme apontado por Thomas Popkewitz (2008), o uso da designao estudante
somente apareceu no final do sculo XIX, e mais tarde a de aprendiz, em vista da
reconstruo da criana como um objeto de escrutnio por parte do professor, que at ento
tinha a tarefa de professar ensinamentos religiosos, como ocorria nos colgios de ordem
jesutica. Nesses colgios, a escolarizao detinha-se moralizao dos sujeitos e dos saberes
(VARELA & ALVAREZ-URIA, 1992).
Popkewitz (2008) refere que no momento em que as crianas passaram a ser concebidas
como aprendizes, foi introduzida uma concepo moderna de infncia. O autor destaca que
criana transformada em aprendente algum que d ateno s coisas do mundo, e no
somente confia numa f transcendental como nos colgios de ordem jesutica. Ela vista e
tambm compreende a si como uma pessoa racional, solucionadora-de-problemas e em
desenvolvimento (POPKEWITZ, 2008, p.177).
Ocorre o aperfeioamento gradual de tcnicas e de procedimentos que procuram
mensurar de forma cientfica as capacidades das crianas, dentre elas a ateno
(POPKEWITZ, 2008). Esses procedimentos, tais como exames fsicos e cognitivos,
converteram-se em meios que permitiram extrair saberes dos prprios escolares. Os dados
agregados sobre como aprendiam, sobre seus ritmos e suas capacidades, tornaram-se fonte de
27
exerccio de poderes por tornarem possvel a formao da cincia pedaggica (VARELA,
2008).
Varela (2008) argumenta que um dos efeitos dessa pedagogizao dos saberes foi a
instaurao progressiva de um aparato disciplinar, de modo que a disciplina e a ordem em sala
de aula passaram a ser precondio da transmisso de conhecimentos no interior do sistema
de ensino. A importncia da ordem disciplinar nas instituies escolares modernas constitui-
se quase que com um fim em si, seno totalmente, pondo o aprendizado em segundo lugar,
conforme destaca Varela (2008). Uma supervalorizao da disciplina, no s como
precondio a fim de que se possam executar as atividades em sala de aula, mas como meta
escolar, pode ser visvel mesmo nos dias de hoje.
O estudo de Maria Lusa Xavier (2003) acerca da disciplina escolar, feito em uma
escola municipal de Porto Alegre, pe em evidncia a nfase dada, ainda hoje, ao
comportamento, disciplina, obedincia e comprometimento do aluno. A autora observa que,
de acordo com os critrios que a escola valoriza nos documentos avaliativos, comum que
mesmo os avanos na aprendizagem dos contedos sejam relegados a um segundo plano. A
disciplina entra como um critrio de avaliao dos alunos, embora no mbito escolar
contemporneo no se tenha total conscincia disso (XAVIER, 2003).
Jorge Ramos do (2006) indica a ocorrncia de uma importante mudana na pedagogia
a partir do incio do sculo XX. Distanciando-se do esprito autoritarista da educao
tradicional e do rigor disciplinar apoiado em algo exterior criana, as novas propostas
pedaggicas24
passaram a defender que somente atravs da sua prpria vontade o aluno
poderia superar os seus desejos mais primrios e impulsos agressivos; e que a educao s
seria possvel pela aquisio de uma obedincia consentida e dcil (, 2006). O poder
disciplinar, em seu sentido mais rgido caracterizado pela coero, pelas sanes, pela
aplicao de recompensas e castigos distingue-se de um poder pedaggico sedutor,
convincente. O primeiro teria seu foco de ao diretamente no corpo, enquanto que o segundo
prima pela convocao da mente, do intelecto, embora tambm esteja agindo sobre o corpo.
Como refere este mesmo autor,
a cincia psicopedaggica afirmou, a uma s voz, que era possvel uma eficaz
regulao dos comportamentos individuais deslocando o trabalho normalizador para
o interior do aluno e para as profundezas da sua mente. Para desvincular o educando
24
John Dewey, na Amrica do Norte; Ansio Teixeira e Loureno Filho, no Brasil; Montessori, Decroly e Binet,
na Europa; entre outros autores citados por (2006).
28
dos vrios perigos que o rodeavam, afastando-o das mltiplas solicitaes viciosas
do mundo, o educador podia contar apenas, com o carter e a fora do querer do
primeiro. Na verdade, nenhum poder externo, nenhuma barreira disciplinar se
poderia erguer contra a espontaneidade infantil, posto que era exatamente a que
residia a marca distintiva de cada criana que urgia preservar. (, 2006, p.295).
[Grifo do autor]
A pedagogia, em articulao com os saberes de cincias psi, ambicionava agir sobre e
governar o esprito e o corpo das crianas e jovens. Sua questo era tornar visvel e
manipulvel cada um dos sujeitos, algo vivel a partir do mapeamento da alma do educando
(, 2006). A descrio, medio e quantificao de determinadas faculdades humanas, tais
como memria, ateno, imaginao, fora de vontade, motricidade e coisas do tipo, serviam
de parmetros para classificao, discriminao e categorizao desses sujeitos em normais e
anormais. Iniciava-se a aplicao de testes que visavam no s medir o saber, mas tambm
conhecer rigorosamente o ser. Para Ramos do , os testes surgiram como um instrumento que
combinava cincia e subjetividade e foram as experincias para diagnosticar as patologias que
estiveram na origem de dispositivos que definiam o normal.
Conforme indica Ramos do , a partir do incio do sculo XX, o termo anormal para
designar a criana que no se ajusta ao ritmo e s normas escolares, que no aprende, cair em
desuso. Passa-se a falar em aluno (ou criana) problema. O termo serve no tanto para
designar a criana com problemas orgnicos, mas sim para designar a criana com
dificuldades de aprendizagem, de socializao, a criana desassistida, ou com problemas de
nutrio (, 2006).
Se, por um lado, a escola se configura como uma instituio que procura normalizar
indivduos e homogeneizar populaes, por outro, ela acaba por promover a emergncia dos
ditos anormais e da prpria definio do que um comportamento anormal. Ou seja,
enquanto uma instituio disciplinar que busca ajustar a multiplicidade dos indivduos, a
escola na medida em que normaliza, faz surgir necessariamente em suas margens, por
excluso e a ttulo residual, anomalias, ilegalismos, irregularidades (FOUCAULT, 2006b,
p.137). Em outras palavras, a busca pelo normal far emergir os anormais atravs daquilo que
passa a distinguir como certo ou errado, atravs dos exames, das descries, dos pareceres.
Como afirma Bujes (2006, p.218), a busca implacvel pela similitude [ir mascarar] a
ineludvel presena da diferena.
Destaco, a partir de um exemplo acerca da elaborao da noo de idiotia no final do
sculo XIX, o modo como a escola passou tambm a ser um espao de demarcao dos
29
anormais; e que foi, ao mesmo tempo, a via pela qual se deu a psiquiatrizao da infncia e a
difuso do prprio poder psiquitrico no sculo XIX, conforme mostra Foucault (2006b). Esse
autor afirma, a partir de Canguilhem, que foi no decorrer do sculo XIX que o termo
normal passou a designar o prottipo escolar e o estado de sade orgnica, junto com a
difuso do poder psiquitrico.
Foucault (2006b) afirma ainda que foi a elaborao terica da noo de idiotia ou
imbecilidade infantil que esteve relacionada ao processo de psiquiatrizao da infncia, e no
pela criana louca; diferente do processo de encarceramento da loucura na idade adulta. A
idiotia era um estado de estupor ou de abolio das funes intelectuais e afetivas conforme
descrevia Jaquelin Dubuisson (apud FOUCAULT, 2006, p.259), psiquiatra do incio do
sculo XIX. Foucault (2006) relata que os idiotas eram descritos como espcie de alienados
despojados das faculdades que distinguiam o ser pensante e social, eles estariam condenados a
uma existncia puramente maquinal, guiados somente por seus instintos. Diferentemente da
loucura, que era algo que surgia somente na idade adulta, a idiotia estava presente no
indivduo desde o seu nascimento.
durante a elaborao da noo de idiotia que comeam a ser citadas causas centradas
no desenvolvimento para explicar problemas de comportamento. Para Foucault (2006), a
introduo do critrio de erro de desenvolvimento, permitiu elaboraes importantes para o
domnio terico da psiquiatria a partir, justamente, dessa noo de erro na constituio
orgnica, descrito com base nas prticas de abertura do crnio. A noo de desenvolvimento
estabelece, nas palavras do autor, uma linha de clivagem entre duas espcies de
caractersticas: uma que da ordem da doena mental, da loucura, do delrio; e outra que da
ordem da enfermidade, da doena cerebral.
Os esforos de normalizao desses indivduos eram feitos com base em uma norma
que se definia pelo status das demais crianas. Dizia-se que nos idiotas faltariam as
dimenses superiores da vontade intelectual e moral (LOBO, 2008, p.373), pois neles
haveria uma vontade puramente instintiva que os jogaria no caos da animalidade. A
educao teria a finalidade de retir-los desse estado de estupor e elev-los ao universo das
possibilidades humanas, conforme aponta Lilia Lobo (2008).
O que merece ser destacado a respeito dos saberes que foram construdos em torno da
idiotia o modo pelo qual se dava o tratamento. Embora a idiotia tivesse sido definida como
30
um distrbio orgnico, seu tratamento caracterizava-se por ser um trabalho eminentemente
moral, ou, conforme assinala Foucault (2006, p.265), a teraputica ser a prpria pedagogia,
uma pedagogia mais radical. Para Lobo (2008), a educao moral do idiota evidenciava um
duplo movimento em emergncia no sculo XIX: a naturalizao da moral e a moralizao da
natureza (discusso que ser retomada mais adiante).
Enfim, ser a partir da criana idiota que surgir a distino entre criana normal e
criana anormal. A designao de criana anormal se referia aos incapazes, cuja causa do
problema estaria neles mesmos, em sua biologia. Estes termos vigorariam at o incio do
sculo XX, como apontado por Ramos do (2006). A partir de ento, entra em cena a
criana problema, cuja investigao debruar-se- sobre sua condio familiar, social, de
nutrio, psicolgica, em causas externas (idem).
Caliman (2006) ressalta que o movimento que determinaria a criana anormal iniciava-
se no final do sculo XIX pela definio biologizada do anormal (dos idiotas, dos imbecis),
cujo tratamento era moral, pelo exerccio do autocontrole e da disciplina, principalmente.
Ainda segundo a autora, a partir das primeiras dcadas do sculo XX at por volta dos anos
1970, seria uma definio psicologizada que assumiria os anormais, rebatizados como
crianas-problemas, conforme tambm apontado por Ramos do . O tratamento j no se
efetivaria pelo exerccio do autocontrole e da disciplina, mas pela assistncia social,
psicolgica e familiar da criana, com o objetivo de resgat-la (CALIMAN, 2006).
2.2 Infncia e escolarizao hoje
No perodo atual, os ideais da educao para todos e da construo do sujeito moderno,
pautados na emancipao dos indivduos e na promoo de sua autonomia e racionalidade,
encontram-se confrontados ao crescente e diverso contingente de alunos que ingressam nas
escolas (XAVIER 2003). A escola lida, ainda, com a obrigatoriedade do ensino e com as
metas de educao de governo movidas, em parte, por metas estabelecidas por acordos
internacionais e por interesses econmicos. Bujes nos lembra de que a infncia moderna
nunca existiu seno como um ideal (BUJES, 2006, p.219). No entanto, faz-se necessrio
recordar que, embora no se tenha alcanado os objetivos que almejava, foi esse o ideal deu
forma s prticas que foram institudas na busca da construo desse sujeito.
De acordo com Bujes (2002) haveria, nos dias de hoje, um esgotamento na perspectiva
que v a criana como sujeito da educao moderna; como um ser transcendental, unitrio,
31
racional, estvel. Esgotamento esse que concomitante com o lugar da infncia como espao
utpico de inocncia, sensibilidade, desproteo, felicidade. Tal viso teria dado lugar a uma
viso de criana como sujeito de seu tempo, pressionada pelas condies do meio, marcada
por diferenas de gnero, classe, etnia, raa, idade, corpo, etc. (BUJES, 2002 p.18). Uma
infncia que, diferentemente da infncia moderna idealizada, nos surpreende com suas
perguntas e respostas, domina certas tecnologias por vezes ensinando os adultos , bate o
p para ter seus desejos atendidos o mais breve possvel e escolhe o canal que ser assistido
na televiso da sala. So essas crianas que parecem desconcertar os adultos. Uma infncia
que parece no condizente com a infncia que se esperava obediente, dependente,
heternoma e que foi naturalizada desta forma.
Segundo Bujes (2006), haveria um desencaixe entre a sociedade e a escola, isso porque
hoje estamos assistindo ao que se convencionou chamar de crise da escola. Essa
instituio tem sido vista como desencaixada da sociedade. O momento que vivemos
se caracteriza por um descompasso entre as prticas escolares e as rpidas
modificaes espaciais e temporais pelas quais passa a sociedade, o que daria o tom
a isso que sentimos como desencaixe, descompasso, disjuno, desproporo.
(BUJES, 2006, p. 223)
Para David Buckingham (2010), haveria, igualmente, um alargamento da lacuna entre a
cultura escolar e a cultura das crianas fora da escola, marcado, sobretudo, pelo papel cada
vez mais significativo que a mdia desempenha na vida dos jovens, em especial a mdia
digital, apresentando-se como um amplo desafio perante a escola enquanto instituio.
Embora no procure aprofundar a discusso acerca da cultura, creio ser relevante pensar
a importncia dessa dimenso e das revolues culturais, como centrais na constituio da
subjetividade, da prpria identidade da pessoa como um ator social como indica Stuart Hall
(1997, p.23). O encurtamento das distncias entre pessoas e naes e a velocidade de
transmisso de informaes proporcionadas pela mdia e por outras tecnologias teria um
impacto significativo na vida das pessoas (idem), e nesse sentido, a escola parece no estar
atenta (ou no creditar a devida importncia) a essas modificaes culturais em que esto
imersas as novas geraes.
Autores como Bill Green e Chris Bigun (2008) exploram a tese de que estaria
emergindo uma nova gerao, com uma constituio radicalmente diferente (p.208),
trabalhando a ideia da emergncia de um sujeito-estudante ps-moderno, dotado de novas
necessidades e novas capacidades. Trata-se das novas geraes, crescidas em meio s
32
tecnologias digitais, familiarizadas com o uso de computadores, de games, da internet, num
tempo em que a velocidade na transmisso de informaes supera seus recordes diariamente,
em que as distncias so encurtadas, em que o tempo de espera outro. De acordo com esses
autores, a forma particular desses dispositivos na vida desses usurios constitui a norma;
eles/as no tm nenhuma experincia bsica comparvel nossa (GREEN & BIGUN, 2008);
e ns tambm no tivemos experincia comparvel deles/as, no entanto seguimos tentando
enquadr-los s antigas formataes da escola.
Leni Dornelles (2005) emprega o termo cyber-infncia25 para se referir quela infncia
afetada pelas novas tecnologias e que produz nos adultos certo sentimento de medo, visto que
esta infncia nos escapa. V-se na cyber-infncia certo perigo, talvez por no se ter
produzido um saber suficiente para control-la ou porque no se consegue melhor govern-la
(DORNELLES, 2005, p. 78). Segundo Dornelles (op.cit.), a interatividade que ocorre entre os
games e as crianas, acaba por produzir, um determinado tipo de sujeito infantil. Cabe pensar,
se, de fato, estamos diante de outra infncia (ou outras infncias) ou se as crianas esto
crescendo em um mundo diferente daquele em que as geraes anteriores foram criadas e
subjetivadas.
provvel que estejamos ainda tentando encaixar as novas geraes s velhas normas,
ao passo que as possibilidades de se viver a infncia nos dias de hoje incluem estar habituado
s novas tecnologias digitais, a domin-las, e a descobrir novos mundos digitais. No entanto,
penso que apesar de muitas crianas possurem certa autonomia no que se refere ao uso e ao
domnio sobre essas tecnologias, por saberem us-las sem a necessidade de auxlio de adultos
e por poderem navegar por espaos virtuais e comunicar-se com outras pessoas elas tm
passado por muitas restries com relao aos espaos fsicos que podem ter acesso e
explorar. Pensemos, por exemplo, nas crianas criadas em creches desde cedo: dentro de
apartamentos, acompanhadas por babs; dentro das escolas, delimitadas por pequenos
espaos. Conforme observa Bujes (2006), essas seriam algumas das novas formas de
confinamento da infncia, e que limitam e interditam os movimentos e deslocamentos das
crianas, confinadas aparentemente com o intuito de serem protegidas e vigiadas.
Alm da prpria escola, Bujes (2006) afirma que essas novas formas de confinamento
so os espaos dos condomnios residenciais da classe mdia, os espaos de lazer, as prises
25
Termo empregado de forma semelhante ao de infncia hiper-realizada por Mariano Narodowski (1999) em seu texto Adeus infncia. No entanto Dornelles (2005) faz ressalvas quanto esta infncia ser, de fato, hiper-realizada.
33
femininas (onde vivem at certa idade os filhos das apenadas), as favelas em situaes de
cerco. Alm desses espaos citados pela autora, eu acrescentaria as zonas temporrias de
enclausuramento, como os playgrounds dos shoppings, ou mesmo os prprios quartos, onde
as crianas permanecem por horas envolvidas com o computador ou com o videogame. Alm
dos espaos que as incluem, que as cercam, h os espaos interditados, dos quais, nas
cidades grandes, as crianas foram sendo banidas, como a rua em frente de casa, que servia
como um campinho de futebol, o ptio do vizinho, que agora cercado, as praas pblicas,
agora perigosas.
As novas geraes parecem atemorizar professores e pais. Elas impressionam por suas
respostas inesperadas, pela sua habilidade com os aparelhos eletrnicos. Elas desconcertam e
constrangem por se mostrarem desobedientes e exigentes em muitas ocasies. Estaramos
ainda buscando a imagem (ou presos a ela) da infncia inocente, desprotegida, dependente,
relegada pelas formulaes acerca do sujeito infantil na Modernidade? Como essas
concepes estariam atravessando prticas e discursos acerca do sujeito infantil? De acordo
com Green e Bigun (2008):
[...] as diferenas radicais [...] com respeito a novas formas de subjetividade e
identidade estudantil, no estaro sendo simplesmente incorporadas e acomodadas
norma (no sentido de Foucault) dos modos convencionais de pesquisa? [...] podemos
nos limitar a acomodar e a assimilar a diferena e os desafios que nos confrontam
em tantas frentes, simplesmente trazendo-os para dentro dos quadros de referncia
normativos atualmente existentes? (p.211)
Bem como a indisciplina, a diminuio na concentrao das crianas constitui uma das
reclamaes recorrentes por parte dos professores (BUCKINGHAM, 2010). Este autor aponta
para a disparidade dos nveis de concentrao que caracterizam o interesse das crianas por
fenmenos como, por exemplo, personagens famosos de desenhos animados ou jogos
eletrnicos (dinmicos, coloridos e vibrantes) em contraponto com os desanimadores testes
mecnicos que predominam em muitas salas de aula. As crianas esto hoje imersas numa
cultura de consumo que as situa como ativas e autnomas, mas na escola uma grande
quantidade de seu aprendizado passiva e dirigida pelos professores (idem, p.144). Esta
disparidade entre a criana de hoje ou melhor, a disparidade entre as possibilidades da
infncia de hoje e o modelo escolar inspirado no projeto educacional moderno, deve ser
levada em conta. No entanto, o autor nos alerta que
[...] se pretendermos atrair os aprendentes desafetos, a resposta no ser enfeitar os
materiais de ensino com penduricalhos dar mais vida ao currculo com o brilho superficial da cultura digital amiguinha das crianas. Nem ser adotar a tecnologia
34
digital a servio de formas estritamente instrumentais de aprendizagem, numa
tentativa de torn-la mais agradvel. Embelezar os testes ou tabelas de multiplicao
com um polimento mais divertido estratgia que a maioria das crianas percebe logo. preciso um compromisso mais inteiro e mais crtico com as culturas digitais
infantis. (BUCKINGHAM, 2010, p.47).
Deste modo, a necessidade de conteno dos corpos infantis, de fazer com que prestem
ateno, que obedeam ao/a professor/a, que permaneam sentados, implicou/implica na
criao de estratgias dentre as quais est a implementao de um aparato disciplinar,
impondo ritmos externos ao corpo infantil. Visto que a criana no est naturalmente
predisposta a exercer o papel de aluno, como reitera Xavier (2003), a escola ter de lidar com
a inquietude, a desorganizao, a distrao, o desinteresse, enfim, com a indisciplina, que vem
se configurando, cada vez mais, como um dos maiores problemas da escola. Como aponta
Bujes (2006), a indisciplina est no cerne da crise escolar.
Para Xavier (2003), estaria ocorrendo um apagamento nos discursos pedaggicos acerca
do papel que a escola tem no processo de disciplinamento dos corpos infantis, embora a
indisciplina seja um dos problemas que persiste nas escolas, que, em outras palavras, nada
mais que a resistncia a se enquadrar s normas, tempos e demandas escolares. A autora
refere-se quase inexistncia de propostas com vistas formao/construo do ser aluno,
como era propsito claro da escola moderna. No entanto, a escola no deixou de cobrar dos
alunos uma postura disciplinada, obediente, organizada, silenciosa.
Xavier (op. cit.) tambm observa que nos cursos de pedagogia, as propostas
pedaggicas defendidas seguem correntes democratizantes/progressistas que comearam a
entrar em voga na dcada de 1980. Essas propostas enfatizavam a necessidade de o/a
professor/a observar as peculiaridades de cada grupo a fim de pensar propostas de trabalho
condizentes com a realidade do aluno, propiciando experincias de aprendizagem construdas
coletivamente, procurando, assim, afastar-se do esprito autoritarista da escola tradicional.
Apesar disso, enfatiza essa mesma autora, a forma de conduo do trabalho pedaggico um
aspecto que tem sido negligenciado na formao dos/as professores/as. Haveria uma
dificuldade em se assumir o papel produtor da escola e de admiti-la como uma instituio
de regulao e de controle. A autora identifica tal dificuldade como possivelmente decorrente
de movimentos que nas ltimas dcadas vm questionando o autoritarismo nas organizaes
sociais dentre as quais se inclui o sistema escolar. Na educao esses movimentos
democratizantes postulam posturas mais igualitrias nas salas de aula e relaes entre
35
docentes e escolares, o que pra Xavier (2003) poderia estar gerando insegurana no fazer
docente pela perda de um referencial tradicional sobre o qual a profisso estava alicerada.
2.3 Novas formas de controle
Se, por um lado, a escola contempornea no reconhece, no discute ou no percebe seu
papel no disciplinamento dos corpos (XAVIER, 2003) ao no abordar, pelo menos de forma
explcita, quais seriam suas estratgias disciplinares e como seriam implementadas; por outro,
a escola recorre a novas formas de controle. Segundo Cristianne Rocha (2005), trata-se de um
controle que se efetiva pela utilizao de instrumentos tecnolgicos dentro da escola, tais
como cmeras de vigilncia, detectores de metais, cartes de identificao, raios-X, e que so
implantados com vistas a garantir a segurana destes ambientes. um controle que se exerce
no pela imposio da fora fsica, mas pelo constrangimento, pela produo, no sujeito, de
uma sensao de permanente ateno (ROCHA, 2005). A ideia de que o sujeito exera um
controle sobre si mesmo, mantendo-se consciente de suas aes.
Segundo Rocha, a presena de equipamentos como os descritos acima, a fim de prevenir
ou constranger atos de violncia, furto, brigas, ou algazarra, denota uma mudana de nfase
dos dispositivos disciplinares para os dispositivos de controle (ROCHA, 2005). A forma
como o termo dispositivo empregado diz respeito acepo foucaultiana, segundo a qual:
[...] dispositivo um conjunto decididamente heterogneo que engloba discursos,
instituies, organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas. Em suma, o dito e o
no dito so elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se pode estabelecer
entre estes elementos [...] heterogneos. (FOUCAULT, 1989, p.244)
No entanto, no se trata de uma substituio dos dispositivos disciplinares pelos
dispositivos de controle, mas de uma articulao entre ambos, na qual uns potencializam os
outros. Rocha (2005) afirma que o que mudou foi o como do exerccio do controle e da
vigilncia, j a existncia de uma rede de observao vigilante e controladora no exclusiva
de nosso tempo. Nas sociedades de soberania (FOUCAULT, 1994) o poder se exercia pela
ao violenta e o suplcio em praa pblica; na sociedade disciplinar o poder-saber se exercia
pela disciplina, pela categorizao, classificao, normalizao, sob a forma de um poder
difuso e hierrquico. Porm, tomando como base a discusso de Gilles Deleuze sobre
sociedade de controle, Rocha sublinha que nestas sociedades que o poder adquire maior
eficincia por meio do auxlio de tecnologias que permitem um controle permanente e quase
invisvel de um grande nmero de indivduos, de uma forma menos violenta e mais eficaz.
36
H alguns indivduos, porm, que nem o confinamento nem a vigilncia conseguem
controlar, como destaca Bujes (2006). Eles no obedecem aos ritmos da escola, seja porque
no os acompanham, so dispersos ou tendem a ultrapassar a velocidade da escola,
aborrecem-se facilmente, procuram outra atividade, no param, deslocam-se incessantemente,
apressam-se nas respostas. Esses indivduos vm sendo classificados como portadores do
Transtorno de dficit de ateno/hiperatividade e a eles se recomenda o uso de frmacos que
operam na direo de controlar seus corpos.
Esse enquadramento dos alunos indisciplinados, dispersos ou incontrolveis a alguma
classificao mdica, reflete um fenmeno cada vez mais comum na escola, conforme
discutido por Freitas (2011). A autora afirma que muitos dos problemas antes considerados
como questes do domnio da educao escolar, como a indisciplina, a distrao, a inquietude,
e que a escola no assume mais como seus, tm sido transferidos a outros domnios, como os
da medicina, psicologia, psiquiatria, neurologia. Com relao a isso, Xavier (2003), aponta
para a proliferao de diferentes classificaes que tm enquadrado os alunos em diagnsticos
de hiperatividade/dficit de ateno, dislexia, disritmia, entre outros.
A designao de novos diagnsticos psiquitricos evidencia um processo que ocorre na
escola e que Guillermo Zamdio (2010) descreve como a produo de restos26. Isto , o
prprio processo que visa homogeneizar acaba surtindo um efeito que coloca em evidncia os
restos, os problemas, os sintomas, os mal-estares. Esses empecilhos (indisciplina,
dificuldades de aprendizagem, inadaptao e desinteresse por parte dos alunos, por exemplo)
impedem que a escola funcione totalmente, ou fazem com que funcione a um alto custo
(idem). Para esse autor, a possibilidade de se perceber um determinado fenmeno estaria
subordinada prpria perspectiva de onde ele emerge. Por isso no se pode ter primeiro os
dados para depois fazer-lhes uma descrio, faz-se primeiramente a descrio de um
fenmeno, um recorte particular, que pode vir a culminar em um registro, uma classificao,
um quadro clnico, um diagnstico, para depois investigar suas causas. O dado no est a,
dcil, com a finalidade de ser percebido (ZAMDIO, 2010, p.62).
A imposio de diagnsticos psquicos permite alocar no corpo individual a causa e a
resoluo de determinados problemas. Ocorre a transferncia do problema de uma dimenso
para outra: da dimenso social (da indisciplina ou do fracasso escolar) para uma dimenso
biolgica e individual (do indivduo portador de TDAH, por exemplo), e desta para, cada vez
26
Idem em espanhol.
37
mais, uma dimenso molecular. Em se tratando de um desajuste no nvel de
neurotransmissores, no resta, aparentemente, alternativa seno medic-lo, pondo em ordem
esse suposto desequilbrio.
A justificativa de que o erro encontra-se no prprio corpo do indivduo, no seu
crebro, parece ser uma alternativa que desbanca a ao da prpria escola, dos pais e do
indivduo, ele prprio, sobre seu comportamento. A resoluo do problema entregue s
mos de especialistas. Na escola ou em casa, o diagnstico do TDAH agrega uma srie de
comportamentos no desejados, funcionando, assim, como um diagnstico guarda-chuva
(CALIMAN, 2010). Na medida em que desateno, impulsividade e agitao tornam-se
patologias, o indivduo que apresent-los torna-se um problema mdico e no um problema
pedaggico ou social. A isto tem se chamado medicalizao, o processo de transformao
de problemas sociais e institucionais dificuldades de escolarizao em problemas
individuais e em distrbios orgnicos (TAVERNA, 2011, p. 169).
Peter Conrad (1992) assinala que o termo medicalizao tem sido frequentemente
utilizado em um contexto de crtica da medicalizao (ou da hipermedicalizao27
) e no
somente de modo neutro para descrever algo que se tornou mdico. Em geral o termo
aplicado em se tratando do processo ou resultado do ingresso de problemas humanos na
jurisdio mdica, licenciando a profisso mdica a prover algum tipo de tratamento,
conforme frisa o autor. Uma das formas em que pode ocorrer a medicalizao o processo
que transforma o comportamento considerado desviante em algum tipo de patologia (loucura,
alcoolismo, homossexualidade, drogadio, anorexia). Sobre a patologizao e medicalizao
de problemas de comportamento na infncia, o autor cita como principais casos a
hiperatividade e os distrbios de aprendizagem.
A imposio de rtulos cientficos funciona como uma eficiente estratgia de controle
(FIORE, 2005), pois deste modo possvel tratar (controlar) o indivduo atravs de
medicamentos. A medicalizao do corpo infantil escolar tem constitudo um fenmeno
alarmante no que concerne ao nmero de crianas rotuladas de hiperativas e que vem sendo
tratadas com psicoestimulantes base de metilfenidato28
, como a Ritalina.
27
No texto de origem: overmedicalization (CONRAD, 1992, p.210). 28
O metilfenidato uma substncia do grupo das anfetaminas, produzido e comercializado pela Novartis com o
nome Ritalina. Trata-se de um medicamento de tarja preta, vendido sob a apresentao e reteno de receita mdica. Ele indicado principalmente para o tratamento dos sintomas do TDAH, narcolepsia e fadiga.
38
Os efeitos do metilfenidato no comportamento do indivduo so uma maior
concentrao e quietude, embora em algumas pessoas possa provocar uma maior agitao. As
crianas ficam mais calmas durante o efeito e mais focadas em suas tarefas, por isso o
metilfenidato ser apelidado de droga da obedincia ou bala mgica. H tambm relatos de
crianas que se tornam apticas, ficam com olhar perdido ou deixam de demonstrar
interesse at pelo brincar no recreio (BRZOZOWSKI & CAPONI, 2010; BOARINI &
BORGES, 2009). O medicamento no cura o TDAH, mas ameniza os sintomas durante cerca
de at quatro horas aps ser ingerido, podendo apresentar reaes adversas como perda de
apetite, cefaleia, nuseas, insnia, taquicardia, tonturas, vmitos, psicose, e, em alguns casos,
perda de peso e diminuio do crescimento, possivelmente em funo da perda de apetite
ocasionada pelo medicamento (PASTURA & MATTOS, 2004).
Em termos numricos, deve-se destacar o crescimento exponencial no consumo e na
produo mundial do metilfenidato. De acordo com dados apresentados por Cludia Itaborahy
(2009), a fabricao mundial declarada de metilfenidato em 1990 foi de 2,8 toneladas; em
1999, passou para 19,1 toneladas, o que representou um aumento de 580% na sua produo.
Em 2006, o consumo mundial da substncia atingiu 35,8 toneladas, sendo 82,2% do total
consumido pelos Estados Unidos.
Para Itaborahy (2009), o aumento na produo e consumo de metilfenidato talvez se
deva a uma ampla divulgao do TDAH a partir da dcada de 1990, alm do intensivo
marketing realizado nos Estados Unidos pelas empresas fabricantes. No Brasil, o
metilfenidato passou a ser comercializado no ano de 1998 e seis anos depois, em 2004, j
eram comercializadas 740.420 caixas, passando para 1.146.592 caixas em 2007. Ainda de
acordo com Itaborahy (2009), a produo brasileira de metilfenidato alcanou 226 quilos em
2006, alm dos 91 quilos importados pelo Brasil. Segundo dados da Organizao das Naes
Unidas29
(ONU), apresentados em setembro de 2011, o Brasil havia apresentado at aquele
ms 740 quilos, enquanto que os Estados Unidos (destacado como um dos maiores produtores
de metilfenidato) havia produzido mais de 55 toneladas. O metilfenidato a anfetamina mais
consumida no mundo, como confirma Itab