Post on 08-Nov-2018
IDENTIDADES DE GÊNERO E PEDAGOGIAS CULTURAIS:
UM MENINO E VÁRIOS VESTIDOS
João Paulo Baliscei
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Vinícius Stein
Universidade Estadual de Maringá - UEM
RESUMO
As imagens e conteúdos midiáticos estabelecem distinção entre aquilo que é exclusivo para homens e aquilo que é adequado para as mulheres, desconsiderando outras combinações. O objetivo deste artigo é problematizar as representações de gêneros, com ênfase na masculinidade, e destacar a necessidade de propiciar discussões sobre gêneros no espaço escolar. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica a partir dos Estudos Culturais e analisamos o Filme Bruno (2000), que apresenta a história de um menino de oito anos que, por preferir trajar vestido, não se encaixa nos padrões de masculinidade aceitos socialmente. Observamos que o filme retrata a discriminação daqueles/as que se desviam do hegemônico, assim como o despreparo pedagógico para reflexões de gêneros. Palavras-chave: Estudos Culturais; Gênero; Pedagogias Culturais. Cultura Visual; Formação de professores.
INTRODUÇÃO
Muito do modo como meninos e meninas agem, pensam e se vestem é
desenvolvido a partir de referenciais oferecidos pelas imagens de seu cotidiano.
Cartazes publicitários, cenas de novelas, catálogos de moda, fotografias de revistas,
imagens televisivas, histórias em quadrinhos e personagens cinematográficas
indicam comportamentos a serem imitados, caso se queira ser aceito/a e aprovado/a
socialmente. Hernández (2000; 2007) afirma que esses e outros objetos visuais, tão
próximos dos meninos e meninas em idade escolar, compõem os artefatos da
Cultura Visual.
A Cultura Visual é entendida pelo autor como um recente campo de estudos
que investiga o modo como as mídias e a cultura popular nos representam
visualmente. Neste sentido, as imagens do cotidiano não são compreendidas como
ilustrações neutras, inofensivas e inocentes. Ao contrário, são consideradas como
Pedagogias Culturais, isto é, como maneiras culturais de se educar. Steinberg e
Kincheloe (2001) afirmam que o termo Pedagogias Culturais engloba a educação
escolar, mas não se limita a ela, uma vez que a ultrapassa conforme identifica o
potencial pedagógico inerente nos artefatos do cotidiano.
Em nosso exercício docente, percebemos que no espaço escolar ainda hoje
as brincadeiras e atividades são dicotomizados em dois grupos distintos: as de
meninas e as de meninos. Brincar com carrinhos, com ferramentas de trabalho ou
aqueles jogos que envolvam velocidade, força e competição, como corridas, “pega-
pega” e futebol são classificados como brincadeiras “de meninos”. Para as meninas,
por outro lado, as brincadeiras são relacionadas aos afazeres domésticos e
cooperação, como “casinha”, “comidinha”, cuidar de bonecas, lavar roupas ou ainda,
aos cuidados com a aparência, como fazer tranças, maquiar-se e salão de beleza.
Além das brincadeiras e dos brinquedos, percebemos também que o uso de
algumas cores é exclusividade dos meninos ou das meninas: azul e rosa,
respectivamente. Objetos, roupas e brinquedos azuis compõem aqueles próprios
dos meninos, como se não fosse admissível que um menino preferisse tons rosa aos
azuis.
As imagens que os[/as] estudantes trazem para a sala de aula ilustram e promovem, com certa "precisão" os gostos e os comportamentos aceitos para cada gênero. As crianças, através de suas preferências por determinados brinquedos, personagens e materiais escolares, demonstram que vivenciam diversas experiências visuais que delimitam o que as meninas e meninos podem fazer, pensar e agir. (NUNES, 2010, p. 70).
Moreno (2011) analisa que a capacidade de imaginar é o que diferencia os homens
e as mulheres dos animais. Segundo a autora, essa capacidade de imaginação é
limitada pelas influências que recebemos das imagens de revista, dos livros, da
televisão, do cinema e do mundo que nos cerca. Neste sentido, ainda que tenhamos
autonomia e independência, nossas escolhas são determinadas pelas referências e
vivências anteriores que temos. Por vezes, adaptamo-nos e aprendemos a
reproduzir o modo como o mundo está organizado, como se houvesse uma única
verdade inquestionável.
Moreno (2011) observa ainda que, antes mesmo de aprenderem a palavra “pessoa”,
as crianças já sabem que existe a diferenciação entre meninos e meninas. Ao tratar
sobre a educação de meninas, a autora analisa que pais, mães, professores e
professoras determinam como e com quem elas podem brincar. Quando entram na
escola: sabem como se sentar, como precisam arrumar seu cabelo e como precisam
se comportar, por exemplo.
Também os meninos acabam por repetir comportamentos e gostos considerados
como “de meninos”: por exemplo, usam shorts, calça, camiseta, não são vaidosos,
correm, mantêm os cabelos curtos e não se preocupam com a postura, dentre
outros comportamentos que são "próprios" de meninos.
Diante destes padrões de comportamento, qualquer desvio é comumente
recriminado. Esta afirmação nos remete a um relato feito por professoras das séries
iniciais, durante uma aula no curso de graduação em Pedagogia, onde refletíamos
sobre os estereótipos sobre o que é ser menino e menina. As professoras relataram
que levaram às crianças roupas de adultos e conduziram uma proposta onde elas
pudessem se vestir com os trajes e elaborar histórias a partir dos figurinos. Um aluno
vestiu um vestido e foi orientado pelas professoras a não colocar roupa “de menina”.
A criança parou por alguns instantes e argumentou que o vestido em questão não
era uma roupa “de menina”, mas sim roupa de padre. Em outro momento, o mesmo
aluno foi interpelado pelas professoras para que ao invés de brincar com bonecas, o
fizesse com carrinhos ou bolas e, novamente, a criança argumentou com
naturalidade a razão da sua escolha dizendo que era o papai da boneca.
Por meio dos exemplos relatados pelas professoras podemos questionar os valores
hegemônicos que, por vezes, são reforçados e legitimados no contexto escolar.
Quais são as respostas que temos para questões como: As crianças podem brincar
com diferentes roupas? É adequado um menino brincar de bonecas? Uma menina
pode usar cabelos curtos e jogar futebol? Por que na hora do recreio meninos e
meninas não são incentivados a brincar juntos? Porque crachás e outros materiais
que identificam as meninas são comumente elaborados com a cor rosa? Como a
postura do professor/a frente a estes elementos impactam no desenvolvimento
infantil?
Os Estudos Culturais, abordagem teórica que subsidia este estudo, compreendem
que a linguagem produz e modifica a relação das pessoas consigo mesmas e com o
mundo. Por meio de imagens, representações e discursos, nos constituímos
enquanto homem e mulher/masculino e feminino. Aprendemos quais são os
comportamentos, atitudes, gestos, profissões, pensamentos e papeis que são
socialmente aceitáveis quando desempenhados por homens e mulheres. Para
Nunes (2010, p. 58) "Isso implica dizer que não nascemos mulheres: nós nos
tornamos mulheres".
Pensar sobre gênero nessa perspectiva implica questionar posicionamentos que
vinculam as identidades masculinas e femininas às diferenças biológicas, ao sexo e
a sexualidade. Homens se tornam homens na medida em que se apropriam e
incorporam os valores que determinada cultura determina como adequados e
previsíveis aos homens. O mesmo acontece com as mulheres. Nesta perspectiva,
discutir sobre gênero,
[...] torna-se ousado e instigante para os[/as] profissionais ligados[/as] à área educacional. Isso acontece porque acreditar que gêneros não são construídos de maneira "natural" e "espontânea é uma tarefa ambiciosa para uma realidade marcada por fortes discursos que procuram enfatizar as diferentes atribuições femininas e masculinas. Gênero é uma identidade fabricada, produzida ao longo da vida por diversas pedagogias culturais, pois se aprende a viver como homem e como mulher. (NUNES, 2010, p. 59-60).
Em análise dos materiais que os meninos e meninas levam para as salas de aulas,
Nunes (2010) constata que há, além da preferência, uma insistência para que os
meninos se identifiquem com personagens grosseiros, agressivos, dinâmicos, fortes
e com superpoderes . Nestes exemplos, a autora identificou e problematizou as
imagens e textos nas fotografias, álbuns de figurinhas, mochilas, estojos e
brinquedos e outros artefatos culturais que auxiliam as crianças na construção de
suas identidades de gêneros. Conforme Momo (2008) as mochilas, cadernos e
estojos que os/as estudantes levam para a escola, ultrapassaram a funcionalidade e
a praticidade de se constituírem simples materiais escolares. São oportunidades de
produzir significados e de, no "palco escolar", expressar suas preferências e
identificações com determinada personagem, cor e filme.
Steinberg e Kincheloe (2001) assinalam o potencial das imagens da cultura popular
em diferenciar e delimitar o que é admissível para cada gênero. Desde 1950, nas
propagandas de brinquedos para meninos, por exemplo, era comum a voz forte de
locutores narrando ou projetando sons característicos das colisões entre veículos.
Nas propagandas contemporâneas, a "[...] voz masculina e adulta do locutor se foi,
mas clouse-ups dos brinquedos e vozes de garotos fazendo efeitos sonoros de
máquinas e armas continuam ininterruptos". Schor (2009) argumenta que, com
exceção das propagandas de alimentos, os comerciais destinados à clientela infantil
se submetem a necessidade da diferenciação de gênero. Isso é para menino ou
para menina?
Mesmo quando crescem, os meninos, agora homens, são interpelados a valorizar
habilidades e sensações semelhantes a essas. Propagandas destinadas ao público
masculino fazem apelo à adrenalina, a ascensão profissional, a competitividade, a
sofisticação e ao sexo descompromissado. As imagens nos diferentes meios de
comunicação procuram se associar a ideais, estilo de vida, valores e papéis de
gênero. Kellner (2013) exemplifica com análises de propagandas do cigarro
Marlboro e Virginia slims, criadas respectivamente para o público masculino e
feminino. No primeiro caso, personifica-se nas propagandas a figura de um homem
másculo, robusto, imponente em seu cavalo, um típico cowboy. A marca Virginia
slims, por sua vez, apresenta propagandas satíricas, utilizando representações de
mulheres ousadas, bem vestidas, esbeltas e sorridentes. Tirinhas com cenas de
mulheres executando afazeres domésticos e o slogan “você progrediu um bocado,
querida” também compõem a propaganda voltada para a clientela feminina.
Em análise de propagandas endereçadas à clientela masculina, Baliscei e Jordão
(2014) observam que os discursos, objetos e profissões que caracterizam o que é
"ser homem" na pós-modernidade parece convergir em representações que, longe
de representarem os diferentes modos de ser homem, simplificam-nos em
comportamentos estereotipados e caricatos.
Os discurso de "como ser homem" que ambos os anúncios (re)produzem são bastante semelhantes, enfatizam a necessidade do destaque social, sucesso profissional, boa aparência e confiança. Para que isso aconteça, sugerem características físicas e ações específicas (ser branco, jovem, vestir-se formalmente, trabalhar em escritórios, desempenhar determinadas funções e possuir determinados modelos de carros). (BALISCEI E JORDÃO, 2014, p. 13).
Wortmann (2005) reflete sobre a necessidade de compreensão sobre como os
saberes são produzidos e como eles definem nossa percepção sobre nós mesmos e
os elementos da sociedade. A autora tece reflexões a respeito das ilustrações na
literatura infantil. Destaca que os livros infantis oferecem um conjunto repetitivo de
características para representar a natureza, isto é, apresentam-na como sendo um
lugar escuro, com animais ferozes e perigosos, desagradável, assustador e que, por
isso, precisa ser evitado pelas crianças.
Em tal abordagem busca-se, também, entender como os saberes são produzidos
por determinados discursos e como tais discursos se ligam ao poder, regulam as
condutas e constroem identidades e subjetividades. Com a intenção de demonstrar
outras características e discursos sobre a natureza na literatura infantil, Wortmann
(2005) apresenta-nos histórias do escritor Angelo Machado (1934 -- ) como, “A outra
perna do Saci”, “Chapeuzinho vermelho e o lobo-guará”. Nessas histórias a natureza
é representada não mais de forma obscura e perigosa. Conforme esclarece a
autora, a natureza não é má, pelo contrário, são os homens e mulheres,
devastadores e exploradores de riqueza que levam doenças e destroem os
ambientes naturais.
Desta forma, assim como demonstra Wortmann (2005), as imagens e ilustrações
carregam consigo discursos, isto é, posições e opiniões que, muitas vezes, são
aceitas como verdadeiras. A respeito deste estudo, não analisamos as
representações de natureza, mas uma outra: as narrativas que se distanciam do
modo como os meninos são comumente representados. Sendo assim, a seguir,
analisamos e investigamos as representações de masculinidade apresentadas pelo
filme Bruno (2000).
MENINOS PODEM SAR VESTIDOS?
O filme, cujo título original é “Bruno – The DressCode”, foi lançado em 2000, nos
EUA, sob direção de Shirley Mac Laine (1934 --). Bruno Battaglia, interpretado por
Alex David Linz (1989 --) é um menino de oito anos com alguns hábitos peculiares,
entre eles, ler dicionários insistentemente e usar vestidos. Essa última prática
acarreta atitudes preconceituosos e de distanciamento de seus/suas colegas e das
professoras e professores da escola católica onde estuda.
As freiras/professoras e os demais meninos e meninas da escola não aceitam o seu
jeito de se vestir, pois acreditam que vestido é roupa "de mulher”. O filme demonstra
o quanto as pessoas têm dificuldades para lidar com o novo, com o diferente, e para
reorganizar os seus pensamentos, a sua forma de ver o mundo, principalmente no
que diz respeito aos limites e fronteiras entre os gêneros.
Em investigação das práticas pedagógicas e da construção de gêneros em sala de
aula, Nunes e Martins (2012) identificaram o poder de dominação que alguns alunos
e alunas detêm sobre os/as demais, por se aproximarem da concepção hegemônica
do que é ser menino/menina. Assim, lideram a turma e determinam quem pode ser
aceito e quem deve ser rejeitado pelo grupo. No caso de Bruno, o menino que usa
vestido, essa questão é perceptível quando aqueles/as que se enquadram na
"norma" apontam-no como sendo um "desvio" e por isso rejeitam-no.
Nunes (2010) apresenta os argumentos de meninos para se distanciarem dos
objetos e personagens "compatíveis" com as preferências e comportamentos
femininos. Um dos meninos relata:
A gente é menino, não é bichinha. Seria bichinha se tivesse desenho de menina, com caderno de cheirinho, brilho, adesivo que muda de posição. Isso é proibido pros meninos. É fora da lei! Esse caderno é proibido pros meninos se não vão achar que eles são meninas ao invés de menino. Meu próprio caderno tem que ser de carro, paraquedas ou herói. (NNES, 2010, p. 88, grifos nossos)
Em sua fala, o estudante marca os contornos do que é permitido para os meninos.
Delimita o que eles podem ter, como têm que agir e até onde podem ir, para que
estejam "dentro da lei", para que não provoquem estranhamento nos/as outros/as
membros do grupo. Mesmo quando Bruno argumenta para os/as funcionários/as e
demais crianças da escola, dizendo que não quer ser menina, e que sua roupa não
é vestido, e sim uma vestimenta sagrada, causa polêmica e desconforto. Por usar
vestido, Bruno fez algo proibido para os meninos. Infringiu a “lei” tal como se usasse
cadernos rosas, com cheirinho e adesivos.
O pai de Bruno, Dino Battaglia, bem como as crianças e as professoras,
demonstram em seus atos e falas a intenção e tentativa de "ajustar" e "regular" os
hábitos do menino para que sejam coerentes com sua identidade de gênero.
Para garantir aos sujeitos modos de conduta socialmente adequados, é necessário potencializar o discurso hegemônico de modo a forçar uma identidade definitiva e de alguma forma tentar eliminar as "marcas" da diferença. Por isso, falar de identidade implica sempre falar de diferença. (SABAT, 2010, p. 240).
Incomodado pela maneira como os demais meninos e meninas o tratam por causa
do seu modo de se vestir, Bruno dialoga com Shawniqua, uma garota negra que, em
seu modo de se vestir e de agir frequentemente também desafia as visões restritas
das freiras da escola: “Você não acha estranho eu usar vestido?”, diz o menino.
Shawniqua responde: “Por que não? Eu uso calça [...] nós somos espíritos livres
tentando nos expressar".
Os ideais de masculinidade e de feminilidade são perceptíveis não apenas na
preferência das brincadeiras das crianças, mas também em suas maneiras de
pensar, agir e falar cotidianamente. A partir dessas observações, Nunes e Martins
(2012) constataram que há produção de feminilidades e masculinidades na escola e
nos programas televisivos voltados para o público infantil. Produzir gêneros implica
construir representações que caracterizam homens e mulheres, comportamentos
masculinos e femininos. Também no filme Bruno (2000) identificamos produtores/as
e reprodutores/as de gênero no espaço e contexto escolar. Pais, mães, professoras,
alunos e alunas estão potencializam concepções cristalizadas de masculinidade,
sem problematizá-las ou dar abertura a outros modos de ser homem.
Na trama do filme, quando se inicia o 50º concurso de soletrar, organizado e
promovido pela escola, as crianças se encontram sentadas em um salão para
assistir o desempenho dos candidatos e candidatas, dentre eles, Bruno. A Madre
Superiora e três irmãs entram usando seus hábitos e sopram um apito para que as
crianças se acomodem e façam silêncio. Enquanto as outras irmãs se sentam, a
Madre Superiora anuncia que quem vencer aquela etapa irá competir no concurso
Regional, em Washington e relembra as crianças que o vencedor ou vencedora da
etapa final ganhará uma audiência particular com o Papa. Antes de chamar os
competidores e competidoras, pede para que as crianças façam uma oração com a
cabeça baixa e olhos fechados.
Enquanto os/as demais rezam, os meninos e meninas que irão competir entram
todos de uniforme escolar e em fila. Todos/as menos Bruno: o menino traja um
vestido bege, transparente, de uma manga só e com comprimento até os joelhos.
Além disso, usa uma coroa na cabeça. Quando finalizam a oração e abrem seus
olhos, as crianças e os/as adultos/as da plateia riem da aparência do menino. A
situação se agrava quando, em meio aos risos das crianças, as irmãs retiram Bruno
do palco à força.
Bruno sofre discriminação e preconceito por parte das próprias professoras que
manifestaram rejeição simbólica e fisicamente ao modo de se vestir de Bruno.
Moreno (2011) argumenta que, em seu exercício, professores e professoras
reforçam as diferenças e limites entre os gêneros, direcionando as brincadeiras das
meninas e as dos meninos, associando as últimas à violência e esportes.
Nunes e Martins (2012) vivenciaram o modo como a ação docente exerce
autoridade, podendo encerrar ou ampliar a discussão sobre identidade de gênero. A
autora e o autor pediram para que as crianças do 3º ano do Ensino Fundamental
trouxessem fotos daquilo que as representa. Ocorreu que um dos meninos
apresentou fotos de bichinhos de pelúcia. Em conversa individual com a
pesquisadora, o menino relatou que os bichinhos eram dele e manifestou seu gosto
por tais objetos. No entanto, quando as fotos foram apresentadas para a classe sua
argumentação mudou. Diante do riso dos meninos e meninas, muito rapidamente ele
disse que as pelúcias eram de sua irmã. Neste caso a autora e o autor analisam
que,
Ao escutar as risadas dos[/as] alunos[/as], reafirmei o que o menino havia dito com a intenção de protegê-lo das piadinhas dos[/as] colegas. Eu disse: Isso mesmo! Esses são da tua irmã, né?! Ele concordou dizendo que sim. Neste momento, minha voz era a voz da autoridade legitimando o que o menino falou e cortando qualquer possibilidade de que as brincadeiras continuassem. Exerci o poder de controlar a situação e dirigir as percepções e ações das crianças. Produzi gênero a enfatizar que aqueles brinquedos realmente não poderiam ser de um menino. (2012, p. 18, grifos da autora e do autor)
Assim como as professoras do filme que lidavam com um menino de vestido,
também Nunes e Martins (2012) enfrentaram uma situação atípica, um menino que
gostava/ou se sentia representado por ursinhos de pelúcia. Nestes casos, por
exercer a voz da autoridade, os/as professores podem desempenhar
posicionamentos no sentido de refletir e ampliar sobre as representações de gênero.
Iniciativas docentes como propor que as crianças tragam e apresentem seus
ursinhos de pelúcia, ou que dêem vida ao objeto, inventando histórias, narrativas e
falas para ele são estratégia para questionar e problematizar um pensamento
cristalizado a fim de flexibilizá-lo. Que tal, adotar um ursinho de pelúcia como
mascote da turma, escolher um nome e, a cada dia, permitir a um/a aluno/a que o
leve para casa e o apresente para sua família?
O filme Bruno (2000) enfatiza a falta de diálogo e de discernimento por parte das
professoras que, preocupadas em ajustar o comportamento do menino que fugia à
norma, não se interessaram por perguntar os motivos de ele usar vestido. Em sua
sala, a Madre Superiora pergunta à mãe de Bruno: “O que ele está fazendo de
vestido?”. Neste momento Bruno explica que aquilo não era um vestido, era uma
"túnica sagrada". O menino argumenta enumerando homens importantes que
usaram vestidos: anjos, escoceses, os homens do Antigo Egito, o líder religioso
Dalai Lama, assim como todos os seus predecessores, Ricardo III, os reis siameses,
o rei da China, os muçulmanos, os vaqueiros da Hungria, os africanos e até o Papa.
Bruno, inclusive, pergunta a Madre Superiora se ela ligará para o Papa advertindo-o
para não usar mais vestido.
Moreno (2011) discorre que a responsabilidade da escola em marcar a formação
intelectual e a formação social dos indivíduos. Contudo, conforme demonstrado pelo
filme, metodologias, exercícios e intervenções, ainda que espontâneas, reforçam as
identidades de gênero hegemônicas. Pais, mães, professoras e professores
precisam refletir e questionar sobre os modelos predeterminados de ser menina e de
ser menino para que as crianças tenham o direito e a liberdade de expressar seus
pensamentos, sentimentos e preferências. Para que isso ocorra, não basta pôr
meninos e meninas na mesma sala ou dar-lhes os mesmos brinquedos. Para que
essa mudança ocorra é necessário ensinar a respeitar as diferentes, ser crítico/a
com relação aos modelos femininos e masculinos, e valorizar as possibilidades de
ser homem e de ser mulher que a cultura e a sociedade oferecem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito do modo como meninos e meninas se comportam e constituem suas
identidades de gênero é constituído na sociedade e cultura em que vivem. Neste
sentido, as imagens do cotidiano, como os filmes, fotografias, propagandas e
outdoors exercem pedagogias são produtoras de gênero, uma vez que prescrevem
ações, vestimentas e produtos adequados para homens e mulheres. Violência,
agilidade, adrenalina, racionalidade, competitividade e ganância são temáticas
recorrentes nos anúncios e propagandas destinadas ao público masculino que
legitimam o modo como os homens devem se comportar para que sejam aceitos
socialmente.
No espaço escolar, as identidades de gênero reverberam nas preferências dos
meninos e das meninas seja na capa de seus cadernos ou no modo como correm,
sentam ou brincam. Reforçam já na infância quais os gostos "compatíveis" com cada
gênero e se preocupam em ajustar aqueles/as que apresentam desvios ou
identidades de gênero diferente da esperada. Com o objetivo de problematizar as
representações de gêneros, com ênfase na masculinidade, e destacar a
necessidade de propiciar discussões sobre gêneros no espaço escolar analisamos o
filme Bruno (2000), cuja personagem principal, um menino de oito anos, parece não
se encaixar nas normas que são estabelecidas para os garotos da mesma idade.
Será que usar vestido diminui a masculinidade de Bruno? Em nosso entendimento
ações contra hegemônicas, como esta, contribuem para a ampliação do significado
de "ser homem" na contemporaneidade. Essa variedade precisa ser questionada no
contexto escolar, bem como pelas famílias e meios de comunicação. Proporcionar
que os meninos dialoguem sobre suas fragilidades, sentimentos e medo é uma ação
indispensável para ampliarmos nossa visão sobre masculinidade, assim como
investigar e problematizar as representações de masculinidade que são oferecidas
pelas imagens do cotidiano. Elas apresentam um conjunto de características que se
repetem? Em quais aspectos nós nos identificamos e nos assemelhamos a elas?
Essas imagens dão conta de representar os modos de ser masculino? Quais os
indivíduos que são deixados à margem por essas representações?
Preparar meninos e meninas para criticarem e percorrerem outros caminhos com
seus pensamentos, construir e unificar o que foi fragmentado e mostrar que a partir
das mudanças nós poderemos ampliar nossa visão sobre feminilidade e
masculinidade não é uma tarefa fácil. Compreendemos que, para que essa
discussão chegue às salas de aula, primeiramente precisamos conscientizar pais,
mães, familiares, professores, professoras e demais indivíduos ligados à educação
sobre a importância de se discutir gênero.
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GENDER IDENTITYANDPEDAGOGIES CULTURAL:
A BOY AND SEVERAL DRESSES
ABSTRACT
The media images and content establish distinction between what is unique to men and what is appropriate for women, disregarding other combinations. The purpose ofthis article is to discuss the representations of genres, with an emphasis on masculinity, and highlight the need to foster discussions about gender at school. Thus, we performed a literature search from Cultural Studies and analyze the movie Bruno (2000), which presents the story of an eight year old boy who, for prefer to wear dress, does not fit the socially accepted standards of masculinity. We observed that the movie portrays the discrimination of those that deviate from the hegemonic,as well as the lack of preparation for pedagogical reflections of genres.
Keywords: Cultural Studies; Gender; Cultural Pedagogies; ; Visual Culture; Teacher training.