Post on 28-Mar-2020
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INTRODUÇÃO
Toda a obra é fruto de escolhas. E este trabalho não é excepção. São escolhas que
partem de mim, enquanto autora, e outras que me escapam das mãos, resultado das
determinações do trabalho historiográfico e do carácter parcial das fontes, incapazes de
resistir imunes ao devir do tempo, constante ocultador de memórias. “A História é
conhecimento mutilado”, adverte Paul Veyne1. Para além das circunstâncias meramente
acidentais, a “mutilação” dos vestígios do passado surge de um processo selectivo,
determinado por intenções, ideais, contextos, enfim, todo um rol de causas que existem
para lá do controlo do historiador.
Mas começaria por assumir as minhas responsabilidades. Primeiro, a escolha do
espaço. É o mesmo da minha história pessoal, eu que nasci na cidade de Faro e, ainda
com poucos dias, rumei no Mini verde do meu pai até Portimão, onde passei 18 anos da
minha vida, vislumbrando o Arade e a Serra de Monchique da janela do meu quarto. Não
se trata de bairrismo, mas sim do fascínio por uma terra que chamo de minha e à qual a
historiografia não tem concedido o espaço devido. Faça-se, porém, as devidas reservas,
destacando-se o trabalho desenvolvido por Alberto Iria e Joaquim Romero Magalhães,
cujas obras marcaram presença assídua na minha mesa de trabalho nos últimos quatro
anos. Mais recentemente, outros autores têm centrado atenções no Algarve Moderno. Em
particular, saliente-se os trabalhos desenvolvidos por Valdemar Coutinho, Fernando
Calapez Corrêa, Francisco Lameira e Maria da Graça Mateus Ventura.
No meu percurso pessoal, o Algarve esteve sempre lá. Os cristãos-novos chegaram mais
tarde. Foram-me vagamente apresentados durante a licenciatura, não o suficiente para
despertar o meu interesse. Já no decorrer do mestrado, quando andava a trilhar caminhos
pelo interior de África setecentista, uma oportunidade de enveredar por outros caminhos de
investigação fez com que batesse à porta da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto
1 Cf. Paul Veyne, Como se escreve a História, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 23.
“Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan
conseguia discernir, através das muralhas e das
torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho
tão fino que escapasse ao roer das térmitas.”
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
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Benveniste. Confesso que o conceito de sefarditas e de sefarditismo era-me, então, bastante
nebuloso. A colaboração no Dicionário Histórico de Sefarditas Portugueses: Mercadores e
gente de trato abriu-me as perspectivas sobre um outro universo: o da exclusão e
perseguição religiosa, de redes tentaculares de parentesco e de solidariedades, da
mobilidade geográfica. Ora, uma questão cedo se me aflorou – e o Algarve?
Embora seja injusto afirmar que a historiografia tenha feito tabula rasa sobre os
cristãos-novos do Algarve, não é tão injusto assim detectar uma lacuna. Joaquim
Romero Magalhães deu um importante primeiro impulso ao seu estudo num capitulo de
O Algarve Económico 1600-1773, e no artigo E assim se abriu judaísmo no Algarve ...,
publicado em 1981 e ainda hoje permanentemente citado na bibliografia enquanto a
maior (e única!) referência no estudo da acção inquisitorial no Algarve no século XVII.
Na bibliografia, perpetuou-se então a ideia de uma entrada tardia da Inquisição no
extremo sul de Portugal. Dada a ausência de estudos posteriores, este equívoco acabou
por fazer escola2.
Pontual e marginalmente – assim classificaríamos a forma como a historiografia tem
abordado a questão. Reconhecemos as menções disseminadas na obra de António
Borges Coelho, em particular na Inquisição de Évora 1533-1668, e na monografia de
Fernando Calapez Corrêa, A cidade e o termo de Lagos no período dos reis Filipes,
além de pequenos artigos, focados numa ou noutra personagem, dispersos em
publicações periódicas locais. É pouco. E isto mais de 30 anos após o trabalho inaugural
de Romero Magalhães.
Um silêncio que não corresponde a um vazio documental. 895 – é este o número de
processos que actualmente jazem no depósito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT) cujos réus são cristãos-novos naturais ou residentes no Algarve, presos durante
o período estudado. E são só os processos. Acrescentem-se, ainda, os testemunhos
dispersos noutras séries documentais do fundo do Tribunal do Santo Ofício (Cadernos
do Promotor, Conselho Geral, etc.) ou noutros fundos, como as Chancelarias Régias ou
2 A bibliografia continuou a focar este falso problema – a entrada tardia da Inquisição no Algarve –, não
obstante o facto de Joaquim Romero Magalhães ter identificado, num estudo posterior, a existência de uma
vaga de prisões na região, em particular em Vila Nova de Portimão, no final do século XVI (Cf. Joaquim
Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1993, pp. 364-366), também
referida por António Borges Coelho (Cf. António Borges Coelho, “Algumas notas sobre o Algarve nos
séculos XVI e XVII”, Cadernos Históricos, vol. IV, Lagos, Comissão Municipal dos Descobrimentos, 1993,
p. 55). Porém, sobre a primeira entrada da Inquisição no Algarve, no final da década de 50 do século XVI, o
silêncio é quase completo, só quebrado por um breve artigo de António Baião, publicado num jornal
regional (Cf. António Baião, “Ainda a Inquisição no Algarve. Apontamentos de processos desconhecidos
de cristãos novos de Portimão”, Correio do Sul, n.º 1753, ano 32, 14 de Junho de 1951).
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o Corpo Cronológico, além dos demais arquivos percorridos durante a feitura do
presente trabalho, como a Biblioteca Nacional de Portugal (fundo de Reservados) ou o
Arquivo Distrital de Faro (sobretudo, os cartórios notariais). Muita dessa documentação
revelou-se um território quase virgem. Não era tarde nem cedo para o explorar.
A pesquisa bibliográfica evidenciou uma outra realidade – o silêncio é bem mais
abrangente e não se limita ao Algarve. Enfim, escassos são os estudos que reflectem
sobre as comunidades cristãs-novas em Portugal. Alguns passos foram dados nas
últimas décadas por autores como Maria José Pimenta Ferro Tavares (Trás-os-Montes,
Trancoso, Portalegre), Elvira Cunha de Azevedo Mea (Bragança, Porto), Maria
Antonieta Garcia (Guarda, Belmonte) ou Maria do Carmo Teixeira Pinto (Elvas), entre
outros. Mas ainda há tanto caminho a trilhar! Não, não se trata de um “velho tema”. Ao
contrário da tendência geral, é necessário que se adoptem perspectivas suficientemente
latas no espaço e no tempo, pois só assim será possível vislumbrar a evolução das
comunidades e, eventualmente, estabelecer comparações com outros casos. Portanto,
com o presente trabalho, pretendo dar um contributo nessa direcção, na esperança de
que, nos próximos anos, a bibliografia se amplie progressivamente neste campo.
De modo a alcançar a dita perspectiva evolutiva, foquei-me num período de quase
um século. Porém, a definição das balizas cronológicas gerou outros problemas. Talvez
ao leitor cause alguma estranheza os limites propostos. Sobretudo, o primeiro. Porquê
1558? Porque não enquadrar no panorama político, nos anos da Monarquia Ibérica?
Admito que ponderei esta hipótese e, num primeiro momento, a ideia era reportar-me
apenas aos anos compreendidos entre 1580 e 1640. Surgiu, então, uma dúvida: teria
sido a União Ibérica assim tão determinante na evolução das comunidades cristãs-novas
do Algarve? A documentação não o demonstra. O meu orientador, o Prof. Doutor João
José Alves Dias, sugeriu-me que usasse a cronologia inquisitorial como critério para a
definição dos limites temporais do presente trabalho. Pareceu-me um bom ponto de
partida, de facto. Porém, continuo a dever uma justificação ao leitor. Até porque estudar
a vítima pela voz do carrasco não é algo livre de polémica.
Mas como não recorrer à documentação inquisitorial? O que define o cristão-novo é
o seu passado genealógico, ou seja, o facto de ter um antepassado, mais ou menos
remoto, que renunciou à religião em que nasceu e foi educado (no âmbito do nosso
trabalho, a religião judaica) para abraçar a fé cristã por via do baptismo, mesmo que só
exteriormente. A documentação inquisitorial salienta essa dimensão genealógica do
4
indivíduo. Afinal, a “qualidade do sangue” constitui o elemento determinante na
caracterização do réu e na justificação da sua “culpa”.
Ao longo da presente dissertação, também trabalhei com outro género de
documentos, alguns de valor inestimável para a história social e económica, como são
as fontes notariais3. Porém, nos contratos, nos testamentos ou nas procurações, a
“qualidade” dos indivíduos raramente é evidenciada. Só através de um trabalho prévio
nos arquivos da Inquisição é que se tornou possível identificá-los e, mesmo assim, com
dificuldade, sobretudo devido à multiplicação dos homónimos. Portanto, as fontes
inquisitoriais estiveram presentes desde a génese do trabalho. Tentei, porém, manter-me
consciente dos seus ardis.
Referindo-se, em específico, aos julgamentos de feitiçaria de Friuli4, podíamos
aplicar as palavras de Carlo Ginzburg à generalidade dos processos inquisitoriais:
“Não é minha intenção afirmar que estes documentos são neutros ou transmitem
informação objectiva. Devem ser lidos como o produto de uma inter-relação
especial, em que há um desequilíbrio total das partes nela envolvidas. Para a
decifrar, temos de aprender a captar, para lá da superfície aveludada do texto, a
interacção subtil de ameaças e medos, de ataques e recuos.”5
Portanto, o uso das fontes inquisitoriais exige um profundo conhecimento das condições
de produção do documento e dos seus objectivos. São documentos que resultam de
sucessivos crivos, desde o que é dito até ao que é escrito, passando pelo que é ouvido e,
sobretudo, como é compreendido. Seria interessante conhecer quem eram efectivamente os
notários – as suas origens, a sua formação, o seu conhecimento sobre as matérias que
predominam nas confissões. Por outro lado, ainda maior interesse haveria em colocar essas
mesmas questões relativamente aos próprios inquisidores. Se é o notário quem fixa os
testemunhos, é o inquisidor quem guia a sua comunicação, orientando, ou melhor,
manipulando a confissão do réu. O notário, o inquisidor e, como é claro, a própria
instituição inquisitorial constituem uma importante parte da “autoria” do documento.
Mas não nos esqueçamos do outro “co-autor” – o réu. Não desdenhemos o seu
papel, não o encaremos como um elemento passivo na construção do documento. Os
registos das sessões de interrogatório não exprimem plenamente o que o réu terá
confessado? De facto. Não é a sua voz que se faz ouvir nas folhas envelhecidas dos
3 Um outro problema consistiu na falta de registos relativos ao período estudado. Só sobreviveram os
registos anteriores a 1650 dos cartórios notariais de Aljezur (a partir 1617), Loulé (a partir de 1590) e
Tavira (a partir de 1599). 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e
Seicento, Turim, Einaudi, 1966. 5 Cf. Carlo Ginzburg, “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”, A micro-
história e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1991, p. 209.
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processos? Não é só a voz do réu. Mas ela também está lá. Negá-lo seria interpretar a
documentação inquisitorial como uma ficção completamente engendrada pela
instituição repressora. Então, pouco nos restaria.
Mas que voz é esta que sussurra no meio de tantas outras? É a voz de alguém sujeito
a uma constante pressão psicológica e física, obrigado a viver confinado aos exímios
metros quadrados de uma cela que partilha com desconhecidos, onde todos dormem,
comem, defecam; permanentemente sujeito à vigilância dos guardas que espreitam pelas
frestas (tantas frestas!) à procura de qualquer comportamento suspeito, enquanto se
recorda dos que ficaram lá fora, das ameaças que ensombram quem lhe é mais querido,
dos potenciais denunciantes que o colocaram naquela situação – tenta identificar os
nomes, adivinhar os testemunhos e os tempos das alegadas culpas, talvez passe em
retrospectiva os últimos anos da sua vida na expectativa de encontrar algo que possa ter
deflagrado na denúncia, quiçá um mal-entendido, uma vingança. É também a voz de
alguém que, durante os meses, anos de cárcere, não vive abstraído do universo
envolvente, não ignora as conversas dos outros presos com quem partilha as dimensões
mais íntimas do quotidiano, participa delas, fala e ouve falar sobre a vida antes e
durante o cárcere, às vezes tem a sorte de ficar a saber novas da terra e da família,
escuta informações sobre quem foi preso, se confessou, se resistiu. A confissão é um
tema recorrente. Desde cedo, o réu fica a conhecer as regras da casa. Se permanece em
silêncio, só uma defesa muito sólida, artigos de contraditas convincentes e algo mais (as
influências, os subornos, todos os estratagemas que, como é natural, só conseguimos ler
nas entrelinhas) o poderão salvar do mais dramático fim – a entrega ao braço secular, a
morte. A outra solução, a mais eficaz, é a confissão, cuja celeridade determinará o rigor
da sentença.
Não basta confessar. É preciso uma boa confissão. À medida que o tempo de
repressão avança, os potenciais réus (leia-se: os cristãos-novos) tendem a versar-se
numa “metodologia da confissão” que se pode resumir a um só critério – dar ao
inquisidor o que o inquisidor quer ouvir. Ao réu cabe encontrar a justa medida. Tudo o
que for a mais fará estragos no seu círculo de relações. Tudo o que for a menos colocará
em perigo a sua própria vida. É necessário haver uma coincidência plena com as
denúncias que o conduziram ao cárcere. A publicação da prova de justiça só o esclarece
em parte, sobretudo a partir do momento em que os nomes dos denunciantes passam a
ser ocultados. Então, resta-lhe a memória do que fez e do que pareceu ter feito, de quem
o viu e de quem, não tendo visto, terá testemunhado que o vira. Explora todas as
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possibilidades na tentativa de adivinhar quem “deu” nele. Ás vezes, acerta no alvo, mas
só entre muitos tiros ao lado. É este o fermento das denúncias.
O testemunho do réu sustenta-se no verosímil e no possível. Argumenta na
expectativa de ser credível, não necessariamente verdadeiro. Na confissão, tal como na
defesa, não há lugar para a extravagância. Ou, pelo menos, não deve haver. Desta
forma, o discurso da Inquisição é construído sobre o discurso do réu que, por sua vez, se
alicerça em elementos híbridos de realidade e possibilidade, de verdade e
verosimilhança. O que podemos retirar desse discurso? Muito. Porém, é necessário um
trabalho transversal, de confrontação de testemunhos inter-relacionados. É esta a
metodologia proposta por Francisco Bethencourt:
“Assim, qualquer análise crítica deve começar pela desmontagem da lógica de
investigação judicial, pelo estudo dos interrogatórios e pela compreensão da forma
como os diversos elementos de acusação foram compilados e manipulados ao
longo das diversas sessões. Paralelamente, interessa detectar a estratégia defensiva
dos presos, a forma como eles negoceiam a sua sobrevivência, os meios que estão
ao seu dispor. [...] Apenas a análise transversal das declarações produzidas pelos
réus pode revelar discrepâncias em relação à «grelha» de perguntas dos
inquisidores.”6
As fontes inquisitoriais comportam uma inestimável riqueza de informações para o
conhecimento não só da instituição como também, e sobretudo, dos réus. Se Maria de
Tovar confessa que, em Agosto ou Setembro de 1628, esteve numa vinha no lugar de
Montenegro, termo de Faro, na companhia da mãe e de Francisco Nunes, mercador
cristão-novo, e que os três se confessaram crentes na Lei de Moisés, tal não prova
inequivocamente que ela, a mãe e o dito Francisco Nunes eram judaizantes e que, no
Verão de 1628, tinham de facto comunicado a sua “herética fé” numa vinha no lugar de
Montenegro. Porém, reconhecemos a existência de produção vitivinícola no termo de
Faro (se acrescentarmos outras referências documentais a mais vinhas nos arredores da
cidade) e que Maria de Tovar e a mãe, não obstante provirem de uma família ligada à
actividade mercantil, dedicavam-se igualmente a trabalhos agrícolas. Por outro lado,
também nos elucida sobre as relações sociais estabelecidas – as duas mulheres
evidenciam confiar o suficiente num homem, que não é seu parente mas que partilha o
mesmo o ofício do seu pai/marido, ao ponto de arriscarem a revelação de um segredo
tão delicado. Assim, num simples artigo de confissão, obtemos dados válidos sobre a
estrutura produtiva da região, a condição feminina, as actividades económicas e os
relacionamentos sociais – pequenas peças de um enorme puzzle.
6 Cf. Francisco Bethencourt, “A Inquisição”, Portugal: mitos revisitados. Coord. Yvette Kace Centeno,
Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 130.
7
Quanto ao sentimento religioso de Maria de Tovar, a validez dos dados já é mais
duvidosa. Teria realmente confessado a Francisco Nunes e à mãe que cria na Lei de
Moisés para a salvação da sua alma? E cria verdadeiramente no que confessara? Ao longo
da confissão, ela acrescenta que observava o descanso sabático, não comia carne de
porco, nem cação, e rezava a oração do Pai-Nosso, invocando apenas o Deus dos Céus.
Fá-lo-ia de facto? Ou estaria apenas a tentar fugir à pena máxima, coincidindo a confissão
com a prova de justiça? Responderia a estas questões com uma outra: como determiná-lo?
Na maior parte dos casos, nada nos resta além deste discurso construído, manipulado,
contaminado até à medula. Por isso, quando dedico o capítulo IV da segunda parte deste
estudo à questão religiosa, esse mesmo discurso constitui a minha fonte principal. Admito
sem reservas. O panorama delineado ao longo desse capítulo reflecte o conteúdo das
confissões dos réus, ou seja, não corresponde necessariamente ao que era vivenciado ou
crido na realidade. Ficamo-nos pelas fontes, as que sobreviveram ao desgaste do tempo,
enquanto sonhamos com outros testemunhos menos “contaminados” pela instituição
repressora, talvez um registo em discurso directo, uma memória pessoal. Porém, nem
assim estaríamos perante um testemunho inócuo, antes “tentativas de persuadir, de moldar
a memória dos outros”7. Além disso, quantas vezes não recordamos com doçura o fel de
outrora? Citando Georges Duby, “[...] todas as fontes são representativas e, afinal, todas
elas lançam também um véu sobre a realidade objectiva [...]”8. Mas é essa a única
matéria-prima do historiador.
Contudo, nem só de documentos se faz a História. O trabalho historiográfico
extravasa a mera reunião, organização e interpretação das fontes. Há um espaço de
manobra em que o historiador espreita além do cenário oferecido pelos vestígios do
passado e é aqui que entram certos elementos capazes de ferir quaisquer aspirações
(irreais) de neutralidade, como a hipótese e a imaginação, esta última necessariamente
disciplinada pelo facto, mas essencial na recriação de um passado que se apresenta de
forma fragmentada no presente9. Excluir estes elementos é tornar a obra árida à
problematização.
7 Cf. Peter Burke, “A História como memória social”, O mundo como teatro. Estudos de Antropologia
Histórica, Lisboa, Difel, 1992, pp. 239-240. 8 Cf. Georges Duby e Guy Lardreau, Diálogos sobre a Nova História, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1989, pp. 57-58. 9 Cf. Richard J. Evans, Em Defesa da História, Lisboa, Temas & Debates, 2000, pp. 267-270. Evans
aborda a teoria de G. M. Trevelyan relativa ao lugar da imaginação na História – “[...] a poesia da
história não tem nada a ver com uma imaginação erradia, mas com uma imaginação que busca o facto,
precipitando-se sobre o mesmo” – e as reflexões de Peter Novick e de Thomas L. Haskell sobre a
objectividade e a imparcialidade do discurso historiográfico. Vide também António Manuel Hespanha,
8
O facto do presente trabalho sustentar-se, principalmente, em fontes inquisitoriais
também condicionou o seu campo conceptual. O conceito de cristão-novo, que
encontramos logo no título e que se repete ao longo de todo o texto, coincide com a
linguagem da entidade repressora, posteriormente assimilada pelo próprio alvo de
repressão. Não é um conceito imune a dúvidas. Primeiro, porque não exprime uma única
realidade – por exemplo, os muçulmanos convertidos ao Cristianismo e os respectivos
descendentes também se enquadram na definição. Segundo, parece pouco legítima a
aplicação deste vocábulo a alguém que, desde o berço, não conheceu outra religião além
do Cristianismo e cujo último elo familiar que o liga directamente ao Judaísmo se
encontra perdido há várias gerações. Mas analisemos as outras opções? Criptojudeu:
conceito que reflecte uma religiosidade híbrida, definindo aquele que vive publicamente
os preceitos do Cristianismo e, em segredo, professa uma fé cujas práticas e crenças
aludem ao Judaísmo, embora já profundamente contaminadas por elementos da religião
cristã. Esta mesma definição aplica-se a outros dois conceitos: marrano e judaizante10
. Ao
contrário de criptojudeu, expressão contemporânea, marrano e judaizante são dois termos
oriundos das fontes da época. Judaizar provém da própria instituição inquisitorial e ilustra
o alegado “desvio de fé” do réu. Não deixa de ser um conceito interessante na definição
da religiosidade descrita ao longo dos processos – uma aproximação à fé judaica que
nunca chega a corresponder por completo ao Judaísmo normativo. Criptojudeu, marrano
e judaizante exprimem sentimentos e vivências religiosas que, como veremos, primam
pela heterogeneidade. Mas nem todo o cristão-novo é judaizante. Segundo conjecturam
alguns autores, apenas uma minoria dos alegados judaizantes presos pela Inquisição
manteriam uma religiosidade estranha à ortodoxia católica11
. Mas esta é uma proporção
difícil (para não dizer impossível) de determinar.
O conceito de cristão-novo é pouco válido se considerado numa dimensão
meramente religiosa. Até porque “cristão-novo judaizante” soa a contra-senso. Se
“Senso comum, memória e imaginação na construção da narrativa historiográfica”, A História: entre
memória e invenção. Coord. Pedro Cardim, Lisboa, Publicações Europa-América, 1998, pp. 21-34. 10
Os conceitos de criptojudaísmo e marranismo são usados enquanto sinónimos na bibliografia.
Tendencialmente, as obras mais recentes privilegiam criptojudaísmo a marranismo, usado nos já
clássicos estudos de Cecil Roth e I.-S. Révah. Tal deve-se, possivelmente, ao significado pejorativo
associado ao termo marrano. No presente estudo, também iremos usar, com mais regularidade, o conceito
criptojudaísmo para definir a religiosidade dos cristãos-novos judaizantes. 11
Ao comentar a tese de António José de Saraiva – a Inquisição enquanto “fábrica” de judeus – Herman
P. Salomon pondera que “[...] a maior parte ou praticamente todas as vítimas da Inquisição eram católicos
sinceros que, com frequência, tinham pouca ou mesmo nenhuma ascendência judaica” (Cf. Herman P.
Salomon, “Apresentação”, in Cecil Roth, História dos Marranos. Os Judeus Secretos da Península
Ibérica, Porto, Civilização, 2001, p. 13).
9
alguém é judaizante, acredita na Lei de Moisés e não na Lei de Cristo, logo não é
cristão. Mas nada é tão linear assim. Se o judaizante não é cristão no seu íntimo, na
forma como sente a sua fé, tem de sê-lo em público, a bem da sua sobrevivência. Foi
baptizado, vai à missa, confessa-se pelo menos uma vez ao ano. Na documentação
inquisitorial encontramos, com frequência, a distinção entre “vontade” e “obra”.
Aplicando-a a este raciocínio, o cristão-novo judaizante não é cristão na vontade mas
tem de sê-lo na obra.
O enfoque do presente trabalho não são os judaizantes, mas sim os cristãos-novos. É
este o elemento que justifica a sua posição de minoria, sujeita ao ostracismo social.
Embora originalmente fundamentada num critério religioso, a exclusão acaba por se
concretizar com base em pressupostos genealógicos. Por exemplo, o ingresso na Ordem
de Cristo está teoricamente vedado ao cristão-novo, não devido àquilo em que ele crê,
mas devido àquilo que ele é – um descendente de judeus. Esta dimensão é comum a um
outro conceito também muito corrente nos textos coevos, gente de nação, cuja origem
remonta a antes da expulsão e que, posteriormente, passou a coincidir com o conceito de
cristão-novo12
.
Mas regressemos ao problema deixado em aberto – porquê 1558-1650? O critério é
só um: a actuação do Santo Ofício no Algarve. O ano de 1558 marca o início da
primeira vaga de prisões. Antes, as detenções ocorridas na região haviam sido
meramente episódicas e sem demais consequências. É a partir de 1558 e na sequência
do testemunho de uma cristã-nova de Vila Nova de Portimão, Grácia Mendes, que se
inicia uma série de prisões por toda a região, a qual se prolongará por quase uma
década. Durante o período abrangido pelo nosso estudo, registaram-se mais duas
investidas inquisitoriais – uma compreendida entre o final da década de 80 de
Quinhentos e os últimos anos do século, e uma outra na década de 30 de Seiscentos que
perdurou durante todo o decénio seguinte. Chegamos, assim, até 1650. Três entradas:
quais as suas consequências na evolução das comunidades cristãs-novas e, alargando a
escala, nas estruturas sociais e económicas da região? Eis uma questão basilar no
presente estudo.
Assim, na primeira parte, seguiremos cronologicamente a actuação do Santo Ofício
no Algarve, tentando identificar as reacções, as estratégias de defesa e as
transformações que impulsionou. Proponho uma viagem no tempo mas também no
12
Cf. Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1977, p. 77.
10
espaço, pelas principais localidades da região, as mais atingidas pela repressão
inquisitorial. A abrangência geográfica das investidas torna impossível, ou pelo menos
muito parcial, focar o estudo numa única cidade ou vila. As prisões em Faro, por
exemplo, acabaram por ter consequências em Loulé, Albufeira, ou mesmo em Lagos e
Vila Nova de Portimão. A mobilidade dos alvos implicou que o próprio tribunal focasse
a sua mira em múltiplas direcções. Mas não lancemos já todos os dados e deixemos esta
questão (essencial, deveras) em aberto.
De facto, o espaço é um elemento determinante, razão pela qual o presente estudo se
inicia com um capítulo introdutório dedicado ao Algarve dos séculos XVI e XVII – a
geografia, a evolução urbana, a estrutura administrativa, a economia, a sociedade. Para
um entendimento pleno da narrativa, é essencial conhecer esta personagem.
Analisados os acontecimentos e os seus agentes, o trabalho prossegue com uma
caracterização do objecto de estudo, em particular da sua evolução ao longo do período
delimitado. A metodologia usada difere da aplicada na primeira parte. Sem me restringir a
uma narrativa sequencial, privilegio uma perspectiva analítica e comparativa, não só entre
os diversos momentos estudados (em particular, aqueles para os quais há uma maior
profusão de documentos, correspondentes às três entradas da Inquisição), como também
relativamente a outras comunidades dadas a conhecer pela bibliografia. Porém, o já
referido défice de estudos na área revelou-se um limite à aplicação deste método.
Seguindo a proposta metodológica de Carlo Ginzburg de uma “prosopografia a partir
de baixo”, a segunda parte do trabalho concilia a apresentação de case studies com um
estudo de tipo serial13
. Dada a extensão do corpo documental reunido e as suas próprias
características, usei métodos de seriação e quantificação de dados como, por exemplo, as
actividades profissionais ou as práticas religiosas confessadas. Assim, foi possível traçar,
com maior fundamento, o retrato do cristão-novo algarvio (ou, pelo menos, aquele que a
documentação deixa transparecer) e a sua evolução ao longo do período estudado. Tal
metodologia permitiu identificar a regra mas também, e talvez ainda mais relevantes, as
excepções. Afinal, como já foi por demais sublinhado, trabalhamos com um discurso
construído, ideologicamente condicionado e que prima pela padronização dos
testemunhos. As excepções representam uma ruptura com a norma e, como tal, podem
revelar o que existe para lá do discurso perpetuado através da voz do Outro.
13
Cf. Carlo Ginzburg, “O nome e o como”, A micro-história..., p. 176.
11
Entre 1558 e 1650, foram processados pela Inquisição, pelo menos, 832 cristãos-
novos residentes no Algarve. Alguns desses processos não sobreviveram até à
actualidade ou, simplesmente, não é conhecido o seu paradeiro – não são referidos nos
catálogos (nem nas fichas manuscritas, nem na base de dados digital do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo) mas encontramos indícios da sua existência noutros
documentos. Nos limites definidos, tais processos constituem quase 10 % do total.
Mais um limite à pesquisa documental: devido ao estado precário de conservação do
fundo da Inquisição de Évora e ao facto de ainda não ter sido iniciado o processo de
digitalização (tal como aconteceu com a documentação da Inquisição de Lisboa), apenas
foi-me facultado o acesso a uma parte dos processos existentes, mais exactamente a
cerca de 80 %. Desta forma, o presente estudo alicerça-se numa amostra e não na
totalidade da documentação14
. Porém, a aleatoriedade (o critério de selecção é
meramente material) e a dimensão da amostra tornam viáveis o seu tratamento
estatístico e legítimos os resultados obtidos, embora, como é claro, seja necessário ter
em conta as características da fonte e os respectivos condicionalismos.
Se é verdade que muitos processos se assemelham nos seus conteúdos (em
particular, quando referentes a elementos de uma mesma família ou de um mesmo
círculo relacional), também é inegável que cada documento traz sempre algo de novo.
Não nego que, nos 20% de processos não consultados, possam residir informações
relevantes, as quais terão passado à margem deste estudo. Assim, num futuro que espero
bem próximo, com a digitalização do fundo documental da Inquisição de Évora, capaz
de ressuscitar os testemunhos que hoje perecem nas estantes do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo – um documento inacessível é um documento morto –, será possível
uma revisão deste trabalho e, possivelmente, a apresentação de novas conclusões sobre
o problema. Ainda mais novas se for outro o autor a seleccionar as linhas orientadoras
do estudo e as questões colocadas.
Logo que dei os primeiros passos neste trabalho, cedi de qualquer ambição de
esgotar o tema. Sejamos realistas: não existem obras fechadas. Como o leitor verá, as
questões que levanto superam, em larga medida, as conclusões atingidas. Espero lançar
a semente, não empreender a colheita. Eis o espírito que rege todo o presente trabalho e,
inclusivamente, o volume de anexos que o acompanha. Afinal, o carácter inacabado da
14
Tentei, porém, colmatar esta lacuna, reconstruindo o conteúdo dos processos desaparecidos ou não
consultáveis através dos dados presentes noutros documentos. Na maior parte dos casos, apenas acedi a
informações muito básicas.
12
obra, a possibilidade de acrescentar sempre algo mais ou de desconstruí-la de raiz,
enfim, a sua potencialidade de evolução é o que há, na minha opinião, de mais
fascinante no ofício de historiador.
13
O REINO DO ALGARVE NOS SÉCULOS XVI-XVII
“O reino do Algarve está situado no fim da Europa, uma das quatro partes do mundo
para o ocidente. [...] Divide-se da parte do oriente pelo rio Guadiana, que vai correndo
para o norte, e dividindo o Algarve do reino de Castela até dar no termo da vila de
Mértola; e daí o Algarve faz volta e se vem estendendo ao ocidente por serras
altíssimas, que o demarcam do Campo d‟Ourique até o mar oceano, na costa de
Portugal, pelo rio do lugar de Dexexe, termo da vila d‟Aljezur, do qual vem pela rocha
ao longo do mar setentrional para o austro até ao cabo de São Vicente, e dele para o
levante pela costa do mar Atlântico até dar na foz do rio Guadiana, onde acaba.”15
A definição dos limites geográficos do reino do Algarve é de Henrique Fernandes
Sarrão. A simplicidade da descrição do advogado da Casa da Suplicação que, por volta
de 1600, redigiu uma “História do Reino do Algarve” dedicada ao governador D.
Manuel de Lencastre, não deixa de salientar a diversidade da paisagem: a norte, o
território acidentado, marcado pelas serras do Caldeirão e de Monchique; a sul, a costa,
o mar. Séculos mais tarde, o geólogo francês Charles Bonnet definia dois sistemas de
divisão da paisagem algarvia. Um primeiro, baseado no aproveitamento agrícola do
solo, delimitava dois espaços: o litoral, geralmente cultivado, e a serra, mais extensa e
inculta. Bonnet, pela sua própria experiência, concluiu que tal divisão era artificial e
propôs um segundo sistema, fundamentado na topografia da região: o litoral, com um
terreno pouco elevado e pouca profundidade; o barrocal, de pequenos vales e planaltos,
integrados nas primeiras cadeias montanhosas; e, finalmente, a serra, formada por
montanhas de rocha xistosa e granítica16
.
A diversidade paisagística condicionou os diferentes ritmos de desenvolvimento da
região e as comunicações com os territórios limítrofes. Em Quinhentos, a um litoral
urbanizado, virado para o exterior, opunha-se um interior rural, dispersamente povoado.
As vias de comunicação do interior possuíam uma direcção fundamental, a costa, e a
produção agrícola tinha também um só destino – alimentar os núcleos urbanos do litoral
e a sua actividade mercantil. Monchique ligava-se a Vila Nova de Portimão e Lagos, a
serra do Caldeirão a Faro e Tavira. Enfim, era na dependência das cidades litorâneas
que a serra encontrava o seu sentido na estrutura económica da região.
As ligações entre o interior e o litoral desenvolviam-se, essencialmente, por via
terrestre, mas os caminhos eram sofríveis. Os acessos fluviais também não abundavam.
15
Cf. Henrique Fernandes Sarrão, “História do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no
século XVI, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, p. 138. 16
Cf. Charles Bonnet, Memória sobre o Reino do Algarve. Descrição Geográfica e Geológica.
Introdução de José Carlos Vilhena Mesquita, Faro, Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da
Cultura, 1990, pp. 49-50.
14
O Guadiana era o único rio passível de ser navegado até ao Alentejo. No Barlavento, o
Arade ainda completava a rota que ligava a serra a Vila Nova de Portimão. Contudo,
com o assoreamento do rio, a navegação até Silves tornou-se muito limitada e apenas
embarcações de pequena tonelagem conseguiam atingir a cidade17
.
A via marítima era a eleita no Algarve. Lagos, Vila Nova de Portimão e Faro
contavam com portos capazes de acolher embarcações de grande porte, prolixamente
frequentados por navios estrangeiros. As cidades algarvias desenvolviam-se de olhos
postos no mar. E logo do outro lado estava África.
A história dos Algarves d‟aquém e d‟além-mar toca-se. Dadas as características geo-
políticas, a região algarvia constituiu uma base de apoio para a conquista e manutenção
das praças marroquinas. Em 1527, numa carta a D. João III, a Câmara de Tavira alegava
os serviços prestados pela cidade durante o reinado de D. Manuel nas empresas
militares no Norte de África. Ainda em 1489, foi para Tavira que D. João II se deslocou
com a corte e onde estabeleceu uma base de apoio para a conquista e fundação da
fortaleza da Graciosa, junto ao rio Larache18
. A cidade algarvia constituía ainda um dos
principais locais de origem dos judeus portugueses estabelecidos em Azamor19
.
De Tavira mas também de Lagos e Faro, muitos foram os mareantes e pescadores
algarvios que se juntaram às tropas portuguesas para socorrerem a praça de Mazagão
durante o cerco de 1562. Anos mais tarde, em 1570, D. Sebastião dirigia-se à Câmara de
Tavira, pedindo informações sobre a gente que poderia enviar para o socorro de
Tânger20
. Essa posição de baluarte na defesa dos estabelecimentos portugueses no Norte
de África manter-se-ia ao longo da primeira metade do século XVII, apesar do
progressivo abandono das praças marroquinas. Ainda em 1638, o governador do
Algarve enviava ao rei as contas do que fora gasto das receitas das alfândegas de Vila
Nova de Portimão, Faro e Tavira no socorro de Tânger e Ceuta21
.
Era no mar e no contacto com o exterior que residia a potencialidade de
desenvolvimento dos núcleos urbanos algarvios. Silves, cidade dominante no passado,
viu a sua hegemonia decair no momento em que se afastou do mar. O assoreamento do
17
Cf. Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1993, p. 267. 18
Cf. Alberto Iria, Da importância geo-política do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos
XV a XVIII, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1976, pp. 17-19. 19
Vide José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Os Judeus na Expansão Portuguesa em Marrocos
durante o século XVI. Origens e actividades de uma comunidade, Braga, Edições APPACM Distrital de
Braga, 1997, pp. 215-230. 20
Cf. Iria, Da importância..., pp. 61, 67-68. 21
Cf. Alberto Iria (ed.), Cartas dos Governadores do Algarve (1638-1663), Lisboa, Academia Portuguesa
da História, 1978, p. 31.
15
rio Arade quebrou a ligação da urbe à costa, isolou-a no interior. As descrições coevas
revelam essa decadência. João Cascão, cronista da jornada de D. Sebastião pelo
Alentejo e Algarve, em 1573, descreve Silves como uma cidade doentia e despovoada22
.
É a mesma imagem que, cinco anos mais tarde, transmitiria Frei João de São José, na
sua “Corografia do Reino do Algarve”. Ali, casa que cai não volta a ser levantada. A
cidade está arruinada e sem gente, os ares são doentios, sobretudo nos meses de Verão,
quando parte da população se muda para as quintas fora das muralhas, onde o ambiente
é mais sadio23
.
Segundo o autor, um outro factor teria contribuído para esta decadência: a
edificação de Vila Nova de Portimão, para onde se transferiu todo o trato e comércio
que antes chegava a Silves. A subida do Arade dessa “[...] vila moderna em nome e
fundação, mas rica e populosa [...]” para a decadente Silves, provocava desalento24
.
Silves era a urbe medieval, altaneira, com sólidas estruturas defensivas, dotada de um
rico termo agrícola. Mas os tempos eram outros e a distância da costa afastava-a do
comércio marítimo, motor da economia moderna. Por outro lado, Vila Nova de
Portimão, onde “[...] se recolhem os navios, naus, galés e armadas, que vêm por esta
costa, e com qualquer tempo se metem dentro [...]”, era uma vila direccionada para o
mar e nela viviam “[...] muitos homens ricos e de grande trato, e a alfândega, que tem, é
de grande rendimento [...]”25
.
Ao lado de Portimão, também Lagos sofreu um evidente desenvolvimento ao longo
do século XVI. Em 1573, era elevada a cidade. A sua ascensão iniciara-se na centúria
anterior, estreitamente relacionada com o movimento da Expansão Ultramarina e com o
desenvolvimento técnico da pesca do atum. Durante todo o século XVI, Lagos foi o
maior exportador mundial de conserva de atum26
. Além disso, constituía um dos mais
importantes portos de saída da produção agrícola do interior, abundantemente
frequentado por mercadores estrangeiros. Contudo, a partir de finais de Quinhentos, a
cidade começou a estagnar. O movimento marítimo gerado pelos Descobrimentos foi
22
Cf. Francisco Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve. A alteração das linhas de força
da política nacional, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p. 110. 23
Cf. Frei João de São José, “Corografia do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no Século
XVI, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, pp. 44-45. 24
Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 153. 25
Cf. Idem, Ibidem, p. 152. Vide também Valdemar Coutinho, “O foral e o condado de Vila Nova de
Portimão”, O Municipalismo em Portugal. 500 anos dos forais manuelinos do Algarve. Coord. Maria da
Graça A. Mateus Ventura, Lisboa, Edições Colibri, Instituto de Cultura Ibero-Atlântico, 2007, pp. 39-48. 26
Cf. Fernand Braudel e R. Romano, Navires et merchandises à l’entrée du port de Livourne, Paris,
1951, p. 45, apud Joaquim Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve económico durante o século
XVI, Lisboa, Cosmos, 1970, p. 157.
16
desviado para Lisboa e os rendimentos das almadravas do atum entraram em recessão.
A falta de um termo agrícola suficientemente extenso e produtivo para sustentar o
núcleo urbano hipotecava o desenvolvimento da cidade27
.
Lagos e Vila Nova de Portimão comungavam a mesma ligação ao interior, através
do termo de Silves. Oliveiras, vinhas, figueiras e outras árvores de fruto eram
abundantes, enquanto que os pastos alimentavam uma significativa actividade pecuária.
Segundo Frei João de São José, apenas a falta de mão-de-obra suficiente para explorar
tais recursos impedia maiores proveitos. No termo de Silves, encontravam-se as terras
férteis de Lobite, “[...] a qual, se caíra em mãos de nação italiana, fizeram nela outro
paraíso terreal [...]”28
. Este cenário era comum às freguesias de Lagoa, Alcantarilha,
Mexilhoeira Grande, Porches e Estômbar. Segundo Sarrão, Mexilhoeira da Carregação
devia o seu nome ao facto de ali se carregar, todos os anos, muito figo para o reino e
para fora29
. Na serra, as riquezas diversificavam-se: os pomares, a produção de mel e de
cera, a caça, a criação de gado. A serra de Monchique era também conhecida pelas suas
águas, ricas em enxofre e às quais se atribuíam qualidades terapêuticas30
.
No outro extremo do Algarve, Tavira detinha uma posição dominante. Cidade desde
1520, o seu desenvolvimento apoiou-se na importância defensiva, no bom estuário de
pesca e na riqueza agrícola do seu termo31
. Mas, no final do século, Frei João de São
José já apontava sinais de decadência. Dizia-se que tal fora provocado pelo abandono
das praças marroquinas, mas também pela mudança de muitos homens ricos para
Sevilha e outras cidades de Castela, atraídos pelo lucrativo comércio com as Índias32
.
Frei João, que chegou a residir em Tavira, aponta outro factor: “[...] é a pouca
humanidade e muitas vexações que se fazem aos estrangeiros, que doutros reinos a ela
por mar vêm com suas mercadorias, pelos que têm arrendadas as alfândegas e outros
direitos, de maneira que os que isto uma vez experimentam vão escandalizados e
jurando de lhe não tornar a entrar mais pela barra dentro [...]”33
. Acrescente-se ainda as
consequências do assoreamento do rio Gilão e a instabilidade da barra.
27
Cf. Carminda Cavaco, O Algarve Oriental. As vilas, o campo e o mar, vol. I, Faro, Gabinete do
Planeamento da Região do Algarve, 1976, p. 38. 28
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 45. 29
Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 156. 30
Cf. Idem, Ibidem, p. 155. 31
Vide Joaquim Romero Magalhães, “Tavira no Algarve no século XVI”, O Algarve na Época Moderna,
Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 81-96. 32
Vide Vitorino Magalhães Godinho, “L‟émigration portugaise (XVe-XX
e siècles). Une constante
structurale et les réponses aux changements du monde”, Revista de História Económica e Social (RHES),
n.º 1, Janeiro-Junho 1978, p. 14. 33
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 50-51.
17
Porém, segundo Romero Magalhães, a posição de Frei João era exagerada. Durante
a segunda metade do século XVI, a população de Tavira chegou mesmo a crescer. A
queda ocorreria na centúria seguinte34
.
A oriente de Tavira não existia nenhum outro núcleo urbano de relevância. Cacela e
Santo António de Arenilha eram localidades pouco povoadas e profundamente vinculadas
à actividade pesqueira. Castro Marim, espaço de degredo, quase não cresceu durante todo
o século XVI, enquanto que Alcoutim, nos confins do Algarve, não passava de uma
pequena vila à beira do Guadiana, de terrenos férteis mas pouco populosa35
.
Apesar de ser a maior cidade do Algarve, Tavira foi preterida a Faro quando se deu
a transferência da sede episcopal de Silves. Várias razões pesaram na escolha: Faro era
“terra mais sadia” e central, que vivia uma fase de franco crescimento económico, e a
sua igreja matriz reunia os atributos necessários para se tornar Sé36
. De facto, a evolução
urbana de Faro foi muito rápida: em 1540, era elevada a cidade e, em 1577, a sede do
bispado. Um facto prendeu-se com o outro. A perspectiva de vir a tornar-se no centro
religioso do Algarve condicionou a passagem de vila a cidade.
A mudança da Sé já tinha sido solicitada em 1538 por D. Manuel de Sousa, então
bispo de Silves. Porém, só em 1577, com D. Jerónimo de Osório, é que o processo se
completou. As resistências foram muitas. Moradores, câmara e os próprios eclesiásticos
fizeram ouvir o seu descontentamento37
. Em 1553, o bispo e o cabido emitiam a sua
opinião sobre a transferência da catedral. Consideravam a Sé de Silves “[...] uma igreja
das boas do reino, a qual não tem necessidade de se nela gastar cousa nenhuma [...]”.
Porém, sendo inevitável a mudança, que esta não fosse feita às suas custas, “[...] porque
basta deixarem-se as pessoas do cabido sua natureza, casas e fazendas em Silves, as
quais se hão-de perder sem delas haverem proveito algum [...]”. Cediam à vontade do
rei, mas não sem exigirem a confirmação de todos os seus privilégios e liberdades38
.
34
Cf. Joaquim Romero Magalhães, Panorama Social e Económico do Algarve na época de D. Jerónimo
Osório. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1982, p. 7. 35
Cf. Cavaco, O Algarve Oriental..., pp. 52-58. 36
Cf. Romero Magalhães, Panorama Social..., pp. 1-2. A insalubridade de Silves aparece testemunhada
também numa carta do juiz de fora, datada de 24 de Junho de 1529, na qual ele pedia autorização ao rei para
sair da cidade durante os meses de Verão porque esta era, então, “muito doentia de febres” (Cf. ANTT,
Gavetas, XV, mç. 17, doc. 3. Citado em João José Alves Dias, Gentes e espaços (em torno da população
portuguesa na primeira metade do século XVI), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de
Investigação Científica e Tecnológica, 1996, p. 191). 37
Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. II, Porto-Lisboa, Livraria Civilização
Editora, 1968, p. 17; António Baião, “Cartas inéditas de D. Jerónimo de Osório acerca da transferência da
catedral algarvia no século XVI”, Anais. Academia Portuguesa de História, II série, vol. 3, 1951, pp. 151-213. 38
Cf. Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Corpo Cronológico (CC), parte I, mç. 90,
doc. 120.
18
Portanto, a catedral foi transferida para Faro num momento em que a cidade passava
por um evidente progresso económico39
. Mantinha um comércio florescente com a
Flandres e “[...] muita carregação para fora de figos, azeites, amêndoas e d‟outras
mercadorias da terra e em seu termo nascidas [...]”40
. Além de contar com o seu próprio
termo, a cidade também escoava a produção de Loulé e das freguesias envolventes,
factor determinante para o seu desenvolvimento41
. Afinal, Loulé era a maior localidade
do interior. Sarrão traça-nos o retrato de uma vila “[...] muito sadia, de bons ares e
frescura, muito fértil [...]”, com grande abundância de água e rodeada de hortas e
pomares42
. Contava ainda com uma produção significativa de trigo, mantimento cuja
escassez no resto da região representava o calcanhar de Aquiles da economia algarvia43
.
Dizia Duarte Nunes do Leão, em 1610, que o Algarve “[...] tem occupada tanto a terra
com seus figueiraes e muita vinhateira (que é a principal colheita sua) que às vezes tem
necessidade de socorro da vizinhança de pam em annos que suas terras faltam [...]”44
.
Faro tornou-se apenas no centro religioso da região. Não lhe coube a posição de
sede política, judicial, ou mesmo financeira. No Algarve, os poderes encontravam-se
dispersos. Era terra de vários senhores e Henrique Fernandes Sarrão sintetiza-o bem:
“A cidade de Lagos é d‟el-rei nosso senhor tem quinze lugares [...]. A vila de
Aljezur é do Mestrado de Santiago, tem o lugare d oDexexe. A vila de Sagres é d‟el-
rei. A vila d‟Alvor é da rainha nossa senhora. A vila de Vila Nova de Portimão é do
Conde. A cidade de Silves é da rainha; tem doze lugares [...]. A vila d‟Albufeira é do
Mestrado d‟Aviz; tem dous lugares, Paderna e Alfontes. A vila de Loulé é d‟el-rei;
tem o lugar de Alte. A cidade de Faro é da rainha; tem dous lugares, Estoe e São
Braz d‟Alportel. A cidade de Tavira é d‟el-rei; tem o lugar de Moncarapacho. A vila
de Cacela é do Mestrado de Santiago. A vila de Santo Antonio d‟Arenilha é de
senhorio. A vila de Castro Marim é do Mestrado de Cristo; tem o lugar d‟oDeleite.
A vila d‟Alcoutim é condado; é do marquês de Vila Real.”45
Entre terras da coroa, condados e domínios de ordens militares, a região revelava-se
uma autêntica manta de retalhos. A administração judicial dividia-se em duas comarcas,
uma sediada em Lagos, que englobava as localidades do Barlavento algarvio (Silves,
Aljezur, Sagres, Alvor, Vila Nova de Portimão e Albufeira), e outra em Tavira, com
jurisdição sobre o Algarve Central e Oriental (Faro, Loulé, Cacela, Santo António de
39
Vide Joaquim Romero Magalhães, “A meio do reino do Algarve: Faro, séculos XVI-XVII”, O Algarve
na Época Moderna, Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve,
2012, pp. 97-106. 40
Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 163. 41
Cf. Romero Magalhães, Para o estudo..., p. 139. 42
Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 161. 43
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 47. 44
Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino do Algarve, Lisboa, Centro de História, 2002, p. 205. 45
Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 139.
19
Arenilha, Castro Marim e Alcoutim). Apesar dos almoxarifados do Algarve se terem
centralizado num único organismo, em finais de Quinhentos, este funcionava de forma
tripartida: Tavira, Faro-Loulé e Silves-Lagos46
. Nem sequer existia uma sede fixa do
governo. O regimento de 1624 concedia a possibilidade do governador escolher entre
Lagos e Tavira. Não obstante o facto do rei aconselhar Tavira, dada a maior importância
da cidade e a mais profunda ligação à costa africana, muitos foram os governadores que
optaram por residir em Lagos47
.
A principal valência do governador passava pela defesa militar da região,
constantemente assombrada pelo espectro do corso, uma ameaça que se tornou mais
presente durante o Período Filipino. As relações internacionais e os confrontos políticos
do Império reflectiam-se no sul do reino.
Em 1587, Francis Drake, após o ataque à baía de Cádis, rumou ao Algarve e
desembarcou em Lagos. Depois de saquear a cidade, retirou-se pelo Cabo de São Vicente.
Menos de dez anos depois, um novo ataque inglês. Depois de uma incursão em Cádis, o
Conde de Essex e os seus homens desembarcaram no sítio de Farrobilhas, a 23 de Julho
de 1596. Seguiram para Faro e dali até São Brás de Alportel, deixando atrás de si um
rasto de destruição. Só cederam perante a cavalaria de Loulé e de Tavira. Regressaram,
então, a Faro e, até ao dia 27, saquearam e desbarataram a cidade48
. Nem a biblioteca do
bispo ficou imune. Parte dos livros que a compunham foram levados por Essex para
Inglaterra e, mais tarde, doados a Thomas Bodley49
. D. Fernão Martins de Mascarenhas
fugiu para Loulé e só regressou a Faro após a retirada das tropas inglesas. O cenário que
encontrou foi desolador. Escrevia o bispo ao papa Clemente VIII:
“A maior e principal parte da cidade foi queimada e particularmente executaram os
inimigos seu furor nas casas e fazenda do Bispo porque, depois de roubado tudo o
46
Cf. Romero Magalhães, Para o estudo..., p. 236. 47
Cf. Alberto Iria, “O Algarve sob o domínio dos Felipes”, Congresso do Mundo Português, vol. VI,
tomo I, Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, p. 303. 48
Cf. Romero Magalhães, “O assalto dos Ingleses a Faro em 1596”, O Algarve na Época Moderna,
Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 106-140. 49
Na dedicatória do seu Tractatus de Auxiliis Divinæ Gratiæ ad actus supernaturalis (Lisboa, Pedro
Craesbeeck, 1604), D. Fernão Martins de Mascarenhas referia: “Entre outras coisas foi vítima da má sorte
a minha biblioteca não vulgar que eu tinha em grande estima e constituía as minhas lucubrações e
prolongadas vigílias. Tenho procurado resgatar esse trabalho mas até agora não foi encontrado o ladrão”.
O resgate da biblioteca do bispo foi infrutífero. Actualmente, ainda se encontram na Biblioteca Bodleiana
da Universidade de Oxford alguns dos volumes saqueados em Faro (Cf. José António Pinheiro e Rosa,
“Livros de Faro em Oxford”, Anais do Município de Faro (AMF), vol. XIV, 1984, pp. 177-178). Vide
também João Teles e Cunha, A memória à luz da história ou a biblioteca do Bispo do Algarve revisitada,
Faro, Universidade do Algarve, 2007.
20
que nelas havia, lhe deram tão grande fogo que até as paredes ficaram de tal
maneira abrasadas que em nenhum modo se poderá edificar nelas.”50
Nas décadas de 20 e 30 de Seiscentos, ao corso inglês e norte-africano, juntou-se a
ameaça de ataques das armadas holandesa e francesa. A correspondência do governador
Henrique Correia da Silva durante os anos 1638 e 1640 espelham o clima de pavor
vivenciado nas localidades do litoral, constantemente ameaçadas pelas investidas das
potências rivais de Castela51
.
As economias urbanas dependiam dos navios que enchiam os portos e do peixe que
enchia as redes. Mas o corso, ao impedir os barcos pesqueiros de saírem para o mar e as
embarcações estrangeiras de entrarem nos portos, comprometia o crescimento
económico da região52
. Por isso, revelava-se urgente encontrar uma solução para o
problema. Tal passava por uma maior vigilância da costa e pelo melhoramento das
estruturas defensivas. Desde 1593 que a costa algarvia era percorrida por duas armadas:
uma da coroa, financiada pelo tributo do consulado e destinada a zelar pela segurança
da navegação, e outra privada, armada à custa dos residentes e cuja principal finalidade
era a captura de embarcações inimigas53
. Visando o aperfeiçoamento das estruturas
defensivas da costa algarvia, o governador D. João de Castro convocou o engenheiro
Alexandre Massaii. Em 1621, Massaii terminava o relatório, intitulado “Descripção do
Reino do Algarve”, no qual expunha os resultados da análise de todas as fortificações da
costa algarvia, de Alcoutim a Aljezur, salientando as condições em que se encontravam
e as melhorias a ser implantadas. No final, enumerou as 16 obras que estavam por
terminar e contabilizou o investimento necessário. Massaii alertava que tais obras
seriam indispensáveis ao Algarve, quer pelo risco de ruína das fortificações existentes,
quer pelas ameaças dos “[...] turcos e ladrões que com seu atrevimento cometem a terra,
fazendo furtos e cativando à gente [...]”54
.
50
Cf. Nuno Beja, “Transcrição de documentos relativos à História do Algarve”, AMF, n.º XXIX/XXX,
1999-2000, p. 216. 51
Cf. Valdemar Coutinho, Dinâmica Defensiva da Costa do Algarve do período islâmico até ao século
XVIII, Portimão, Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2001, pp. 48-49. A 9 de Agosto de 1638, o
governador alertava o rei que “[...] quanto mais se dilata a guerra com França e Holanda tanto mais
necessitam os lugares marítimos deste Reino de capitães de experiência e valor conhecido que saibam
dar ordens aos moradores para saberem acudir a seus postos e defendê-los em que lhe faltar socorro
que baste [...]” (Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., p. 25). 52
Em 1640, a ameaça de ataques era tal que até impossibilitou o início da época da pesca do atum
(Cf. Idem, Ibidem, p. 161). 53
Fernando Cecílio Calapez Corrêa, A cidade e o termo de Lagos no período dos reis Filipes, Lagos,
Centro de Estudos Gil Eanes, 1994, p. 71. O tributo do consulado era um imposto de 3% sobre os
rendimentos das alfândegas do reino, lançado em 1591. 54
Cf. Lívio da Costa Guedes, Aspectos do reino do Algarve nos séculos XVI e XVII. A “Descripção” de
Alexandre Massaii (1621). Separata de Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, 1988.
21
A defesa da costa exigia homens e investimento. Ora, estas eram duas lacunas com
que a coroa se deparava, o que conduziu a uma maior tensão nas relações entre o poder
central e o local. O Algarve não possuía exército permanente e a sua defesa dependia de
um corpo de tropas só mobilizado em casos de ameaça concreta. Por outro lado, as
câmaras apenas contavam com um número limitado de homens para a composição das
ordenanças. Os mais preparados eram destacados para as tropas reais. Num momento em
que o Império combatia em várias frentes, faltava manancial humano para defesa da costa
algarvia55
. Em 1633, quando D. Gonçalo Coutinho assumiu o governo do Algarve, as
instruções recebidas revelaram as fragilidades defensivas da região: a artilharia dos
baluartes das fortalezas do reino estavam “faltas de reparos e inúteis por isso em muita
parte” e as munições eram poucas para suprir as necessidades. A própria população não
estava suficientemente preparada para um ambiente tão hostil. O novo governador era
então alertado para a necessidade de “[...] ordenar-se que o reino seja provido de armas, as
quais se dêem aos moradores por seu dinheiro, porque há informação que as não há e só
usa de espingardas de pederneira que não servem senão em exercícios de caça [...]”56
.
Numa carta de 22 de Fevereiro de 1639, Henrique Correia da Silva fazia um balanço
das possibilidades defensivas do Algarve. A protecção de Tavira era um verdadeiro
problema, pois não havia gente suficiente para defendê-la e a barra estava muito
desamparada. Por isso, o governador escolhera “[...] a melhor gente e mais prática nas
armas [...]” para as vilas de Castro Marim e Alcoutim, de onde viria o socorro da
cidade. De Loulé, chegaria auxílio militar a Faro, em caso de ataque. Esta cidade de
“[...] praias largas que em nenhuma maneira se podem cobrir com trincheiras, nem
defender sem força de gente [...]” também inquietava o governador. Mais protegidas
estavam as vilas de Albufeira e Portimão. Lagos, embora fosse uma cidade “mais
exposta”, possuía estruturas defensivas sólidas57
.
A instabilidade do Império também se repercutia na região através do aumento da
carga fiscal. A 16 de Novembro de 1623, D. Filipe III solicitava aos povos do Algarve
que contribuíssem financeiramente para acudir ao estado de crise. No ano seguinte, a 19
de Agosto, o corregedor da comarca de Tavira recebia instruções para que Faro e Loulé
ajudassem nas despesas necessárias ao desenvolvimento do comércio das naus da
55
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 86-89. 56
Cf. Academia das Ciências de Lisboa, cod. 288 (Livro I do Governo do Algarve), fls. 302-304. 57
Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 52-53.
22
Índia58
. Novos impostos surgiram nos anos 30 e a revolta contagiou todo o reino. Em
1630, passou a ser cobrado o benefício do bagaço da azeitona, abolido dois anos depois,
na sequência dos vários protestos. Afinal, o azeite era uma das principais produções
algarvias, ao lado do vinho, do figo e do atum. No ano seguinte, aplicou-se o imposto
das meias anatas, também motivo de grande descontentamento social59
.
Os 60 anos de governo filipino não encontraram no Algarve uma resistência
expressiva. Faro, Silves e Lagos, cidades onde D. António recolhera apoio popular, não
se opuseram oficialmente à entrada das tropas castelhanas em 158060
. Durante o Período
Filipino, o Algarve conseguiu mesmo beneficiar de sólidas reformas legislativas e de
um incremento das estruturas defensivas61
. Por outro lado, as ameaças à costa algarvia
eram crescentes e impediam o normal exercício das actividades que sustentavam a
economia da região. A insegurança aliada ao aumento da carga fiscal, em particular
durante o reinado de D. Filipe IV, exacerbaram os ânimos populares.
A 8 de Agosto de 1632, durante a procissão de Nossa Senhora de Guadalupe, em
Lagos, Luís Leitão e Matias Duarte, o primeiro sapateiro e o outro bengaleiro, colocaram
na rua um pavilhão com um letreiro onde se podia ler: «Se queres saber quem é, quem foi
e quem serás, abre o pavilhão e vê-lo-ás». Dentro, estava um burro e nele uma outra
tabuleta pendurada: «Cá estamos todos». Os dois ficaram de guarda. Ao passar a charola
com a imagem de Nossa Senhora, abriram o pavilhão. Pela afronta, foram ambos presos
na cadeia de Lagos. Alguns dias depois, a 22 do mesmo mês, durante a procissão do
Santíssimo Sacramento, Luís Leitão e Matias Duarte uniram-se a outros prisioneiros e
colocaram à porta da cadeia um outro letreiro: «Ainda cá não estamos todos». O caso foi
remetido para o Tribunal da Inquisição, enquanto prova de blasfémia e, sobretudo,
suspeita de judaísmo. Afinal, Luís Leitão era cristão-novo62
. Contudo, atente-se a um
outro facto: integravam as duas procissões algumas das principais autoridades da cidade e,
inclusivamente, o próprio governador. Talvez o sentido da provocação fosse outro que
58
Cf. Iria, “O Algarve sob o domínio...”, Congresso do Mundo..., p. 302. 59
Cf. António de Oliveira, Movimentos sociais e poder em Portugal no século XVII, Coimbra, Instituto
de História Económica e Social da Faculdade de Letras, 2002, pp. 241-274. 60
Cf. Iria, Da importância..., pp. 161-162. 61
Vide Joaquim Veríssimo Serrão, O surto regional português na legislação dos Filipes (1581-1625).
Separata de Actas do Colóquio: O Papel das Áreas Regionais na Formação Histórica de Portugal,
Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1975. 62
Cf. Lisboa, Biblioteca Nacional (BN), Reservados, cod. 10835, fls. 352-355v. Vide, em anexo, pp. 410-411.
23
não a afronta à fé católica. Alberto Iria interpreta-o como um dos primeiros sinais de
revolta popular no Algarve contra a coroa63
.
A partir de 1637, os sinais de descontentamento tornaram-se mais evidentes e as
primeiras sublevações em Évora tenderam a contaminar todo o sul de Portugal. A
exigência de uma inventariação de todas as fazendas do reino previa a chegada de um
novo imposto que se juntaria ao impopular real d‟água e ao aumento do cabeção das
sisas. Para mais, a sucessão de maus anos agrícolas provocara a escassez de trigo. À
rudeza dos impostos juntava-se a fome. Em Setembro de 1637, registaram-se motins em
Loulé. Os moradores exigiam à câmara que suspendesse o real d‟água e a avaliação das
fazendas. De notar que a vila e o termo constituíam o principal centro de produção
cerealífera no Algarve e, havia pouco tempo, a peste fizera estragos na região. A revolta
espalhou-se rapidamente pelo interior algarvio. No início de Outubro, Alcoutim e
Moncarapacho deixaram de pagar o real d‟água. Nos meses seguintes, desde Aljezur até
Castro Marim, quase todo o Algarve se rebelou. Os arquivos fiscais foram destruídos, as
cidades depredadas pelos revoltosos. A origem dos levantamentos encontrava-se,
maioritariamente, nos termos dos principais núcleos urbanos. Era uma população rural,
base do sector produtivo, que se revoltava contra a cidade, consumidora e traficante, de
onde lhe exigiam tributos cada vez mais pesados. Juntaram-se aos amotinados alguns
elementos do baixo clero, mais próximos do povo, e as camadas inferiores da sociedade
urbana, cuja crise cerealífera atingiu profundamente. Faro, Tavira e Silves foram
atacadas pelos moradores das freguesias limítrofes. Lagos, com um termo pequeno e
pouco rico, manteve a tranquilidade, constituindo, assim, uma das poucas excepções à
revolta geral.
A repressão não tardou. As autoridades municipais, apoiadas pela nobreza,
opuseram-se pela força das armas contra os amotinados. Os corregedores negociaram a
pacificação. O poder central também tomou medidas para evitar a evolução dos motins:
o estabelecimento de guarnições militares na fronteira e o fomento da vigilância sobre
os portos algarvios, impedindo um possível auxílio das armadas francesa e holandesa
aos revoltosos.64
63
Cf. Alberto Iria, “O Algarve na Restauração (1640-1668)”, Congresso do Mundo Português, vol. VII,
Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, p. 166. 64
Cf. Joaquim Romero Magalhães, 1637: Motins da Fome. Separata de Biblos, Coimbra, 1976; António
de Oliveira, Levantamentos populares do Algarve em 1637-1638. A repressão. Separata de Revista
Portuguesa de História, Coimbra, 1984.
24
A 21 de Maio de 1638, em carta ao duque de Medina Sidónia, Henrique Correia da
Silva escrevia que as medidas tomadas contra os motins eram prova do “[...] quanto
importava a toda Espanha, o rendimento e quietação deste Reino [...]” e a necessidade de
se esperar dele “[...] tributos fixos, quietação de vassalos, rendimento de ânimos,
execução de justiça sem uma palavra em contrário [...]”65
. No início de 1638, os motins já
haviam acalmado mas permaneceu a esperança de uma mudança política para breve. Por
todo o reino, emanavam laivos de messianismo, alimentados por pregadores que, nos
púlpitos, exaltavam a fé na recuperação da independência. Denunciavam os desvios
morais do governo, a forma como a decadência do Império arrastara a economia
portuguesa, o declínio do poder naval português e do domínio colonial, a protecção
concedida aos cristãos-novos e um alegado alastramento do Judaísmo no reino66
.
Também no Algarve, em finais da década de 30, multiplicavam-se os casos de profecias
independentistas. D. Gregório de Almeida, na Restauração de Portugal Prodigiosa, narra
um episódio ocorrido nas proximidades do Cabo de São Vicente, em Maio de 1639.
Numa sepultura, descobriu-se uma caixa de pau preto contendo uma lâmina com uma
inscrição em latim: «Quando o sol alumiar os meus ossos, então se chegará a alegria dos
Lusitanos, Setembro verá suas entradas»67
. Anos mais tarde, em 1660, Bartolomeu Vaz
Pincho, lavrador de Silves, foi preso pela Inquisição de Lisboa acusado de “publicar e
afirmar coisas futuras”. Em 1639, sentira um “tino” para anunciar que até 1640 haveria rei
português. As profecias continuaram nos anos seguintes. Pincho afirmou ter previsto a
morte de D. João IV e que “[...] havia de vir um Rei encoberto português que já reinou em
Portugal e que não morreu em uma batalha em terra de hereges [...]”, o qual, até 1666,
“[...] em que se junta o Corpo de Deus com o Baptista, e São Marcos em dia de Páscoa, e
o Natal ao sábado [...]”, seria “[...] imperador de sete reinos [...]”68
.
A guerra da Restauração não se fez sentir no Algarve tão intensamente quanto
noutros espaços do reino. Porém, a separação de Castela e, mais especificamente, o
afastamento entre os dois Garbs tiveram consequências na economia da região. O
Algarve distanciava-se dos mercados andaluzes e, por conseguinte, da conexão
comercial com a América Castelhana que se desenvolvera exponencialmente durante os
65
Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 10-11. 66
Vide João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina, Porto, Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1986, pp. 260-307. 67
Cf. Iria, “O Algarve na Restauração...”, Congresso do Mundo..., pp. 174-176. 68
Cf. ANTT, Inquisição de Lisboa (IL), proc. 4794, fls. 15-16. Vide, em anexo, transcrição da confissão
que Bartolomeu Vaz Pincho apresentou perante a Inquisição de Lisboa.
25
anos da União Ibérica, condicionando o crescimento dos núcleos costeiros. Esta ruptura
acabaria por contribuir profundamente para o declínio comercial da região.
Em termos defensivos, o perigo sentia-se, sobretudo, na fronteira. Pouco depois da
aclamação de D. João IV, o governador Henrique Correia da Silva tratou de enviar um
corpo de dois mil homens para Castro Marim, adivinhando um eventual ataque do
Marquês de Aiamonte. Em 1642, Alcoutim também passou por dificuldades ao ser alvo
de investidas do forte de Sanlúcar de Barrameda, a apenas meia légua além do
Guadiana. As fortalezas da costa só seriam atacadas num momento final dos confrontos,
já no reinado de Afonso VI.
As forças militares da região, canalizadas para a fronteira, passaram a escassear noutros
espaços menos ameaçados pelos ataques castelhanos. Tal aconteceu em Lagos. Em 1647,
faltava à cidade sentinelas nos baluartes e a guarda nocturna era feita por soldados e não por
companhias69
. Essa fragilidade defensiva resultava de uma outra circunstância - a cidade,
nos últimos anos, perdera muitos moradores. E não era caso único.
No século XVII, registou-se uma mudança no cenário de progressão demográfica
que marcara o Algarve na centúria anterior. Vejamos os seguintes gráficos70
:
69
Cf. ANTT, Inquisição de Évora (IE), mç. 1, doc. 5, fl. 26. 70
São três os marcos cronológicos: 1527, 1598 e 1621. Os dados relativos aos anos de 1527 e 1621
referem-se, respectivamente, ao “numeramento” de 1527-32 e à Descripção do Reino do Algarve, de
Alexandre Massai (Cf. Alves Dias, Gentes e espaços...., p. 546, Romero Magalhães, Para o estudo..., p.
34; Costa Guedes, Aspectos do reino do Algarve...). A fonte para o ano de 1598 é a relação sobre o estado
da diocese do Algarve enviada pelo bispo D. Fernão Martins de Mascarenhas ao Papa Clemente VIII (Cf.
Nuno Beja, “Transcrição de documentos...”, AMF..., pp. 212-229).
26
Gráficos 1-3: Número de vizinhos por concelho, cidade/vila e respectivos termos
Como se vê, Vila Nova de Portimão sofreu uma queda demográfica no início do
século XVII. A situação repetiu-se em Tavira. Em 1638, o governador via a cidade a
perder gente “[...] não porque falte no termo aonde se passaram a viver com mais
liberdade sua [...]”71
. Por sua vez, no concelho de Loulé, a população das freguesias rurais
registou um acentuado crescimento no início do século XVII, em detrimento da vila.
Viver fora da cidade representava uma existência mais segura, longe dos
cataclismos que, de quando em vez, assolavam os núcleos urbanos. O excesso de
71
Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 31-32.
27
população, as condições de higiene sofríveis e a frequência dos portos por embarcações
estrangeiras tornavam as cidades litorâneas mais sujeitas à propagação de epidemias.
Além do mais, a escassez da produção cerealífera fazia da fome uma tragédia
recorrente. Ora, fome e peste eram velhas aliadas72
. Mas outros perigos residiam na
cidade, em particular nos núcleos do litoral, onde a expectativa de um ataque corsário
era constante. A fuga ao recrutamento para o exército castelhano, cada vez mais
insaciável, revelava-se outro incentivo ao abandono da cidade. Por outro lado, os
centros urbanos não exerciam a atracção doutros tempos. Os lucros da pesca do atum
caíam a pique, os portos algarvios já não eram tão frequentados quanto no passado.
Faro, a cidade emergente na segunda metade do século XVI e inícios da centúria
seguinte, estagnou a partir da década de 30 de Seiscentos e assistiu à partida de muitos
dos seus moradores, sobretudo os que viviam da actividade mercantil, para lá dos seus
limites, até para lá da fronteira portuguesa. Por outro lado, a agricultura significava um
rendimento mais seguro e uma posição social mais respeitável. As estruturas das
habitações rurais foram reforçadas e a quinta, no passado apenas ocupada no tempo do
alacil ou nas deslocações esporádicas dos citadinos ao campo, tornou-se num espaço
residencial permanente73
.
O Algarve sofria um processo de ruralização. Segundo Romero Magalhães, este foi
consequência da própria estrutura da expansão urbana registada nos séculos anteriores.
Afinal, o crescimento demográfico das cidades não coincidira necessariamente com a
generalização de um modo de vida urbano. A economia urbana continuou intimamente
ligada ao meio rural, a especialização era escassa e muitos acumulavam o exercício de
uma actividade comercial ou mesteiral com a lavoura. Por outro lado, o progresso
populacional também implicou a intensificação e a valorização da actividade agrícola,
ao mesmo tempo que descentralizou a residência da população citadina, impelida a
fixar-se fora das muralhas, cada vez mais distante do centro das cidades. Além do mais,
não existia no Algarve uma urbe dominante. Faro, Tavira e Lagos mantiveram sempre o
72
Cf. Hugo Cavaco, “Epidemias no Reino do Algarve. A Peste de 1645-1650 (Subsídios para a sua
história)”, Património e Cultura, ano 2, n.º 5, Março 1982, pp. 3-16; Fernando Cecílio Calapez Corrêa,
“A Expansão e a Peste em Tavira em 1580”, Cadernos Históricos, vol. II, Lagos, Comissão Municipal
dos Descobrimentos, 1990, pp. 45-51. 73
Cf. João Rosa Vieira Caldas, A Arquitectura Rural do Antigo Regime no Algarve. Dissertação de
Doutoramento apresentada ao Instituto Superior Técnico, vol. I, Lisboa, 2007, exemplar policopiado,
pp. 113-115.
28
equilíbrio. A Faro e a Lagos faltava um termo suficientemente grande e produtivo e a
Tavira um bom porto que estimulasse a actividade mercantil74
.
Um crescimento urbano destinado a falhar na raiz, seguido de um processo de
ruralização concretizado ao longo do século XVII – são estas as linhas que tecem a
evolução sócio-económica do Algarve entre 1550 e 1650. Uma outra carta seria jogada:
a repressão inquisitorial. Veremos como.
74
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 393-413, passim.
29
II
SSoobb oo eennccaallççoo ddaa IInnqquuiissiiççããoo
1. 1558-1570: A PRIMEIRA ENTRADA DA INQUISIÇÃO NO ALGARVE
Em 1619, os inquisidores de Évora afirmavam que Vila Nova de Portimão era terra
repleta de cristãos-novos, onde o Santo Ofício ainda não havia entrado75
. Mais de uma
década depois, continuava-se a insistir nesta observação relativamente a outras
localidades do Algarve. Porém, em 1619, a Inquisição já havia actuado em Vila Nova
de Portimão, tal como em Lagos, Tavira ou mesmo em Faro. O seu alvo fora,
essencialmente, um só – a gente de nação.
Afinal, o Algarve só permaneceu longe da mira do Santo Ofício até meados do
século XVI.
Nos primeiros anos da Inquisição em Portugal
Façamos uma breve cronologia76
:
1496: Publicação do édito de expulsão dos judeus e mouros de Portugal. D.
Manuel estipula que, até ao final de Outubro do ano seguinte, deveriam
abandonar o reino ou converter-se ao Cristianismo.
1497: Baptismo forçado de todos os judeus que permaneceram no reino.
Decreto real proibindo inquirições relativas ao comportamento religioso dos
cristãos-novos durante um período de 20 anos.
1499: Interdição à saída dos conversos de Portugal sem licença régia.
1506: Massacre de Lisboa.
75
Cf. ANTT, IE, proc. 3276, fl. 6. Vide também: Joaquim Romero Magalhães, E assim se abriu judaísmo
no Algarve. Separata de Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1981, p. 9. 76
Cf. Francisco Bethencourt, “Cronologia da Inquisição”, A Inquisição em Portugal (1536-1821).
Catálogo da exposição organizada por ocasião do 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre a Inquisição,
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987, pp. 15-17.
30
1507: Autorização para os cristãos-novos abandonarem o reino.
1515: D. Manuel pede ao Papa o estabelecimento da Inquisição.
1522: D. João III renova o decreto de 1497, acrescentando que os crimes
contra a fé seriam julgados como delitos comuns.
1524: Reiteradas as concessões de 1507.
1525: D. João III volta a pedir a Inquisição a Roma.
1531: Nomeação de Frei Diogo da Silva como inquisidor do reino de
Portugal e dos seus domínios.
1532: Proibição da saída dos cristãos-novos do reino.
1535: Perdão geral aos culpados de Judaísmo. Renovação da proibição de
saída do reino por mais 3 anos.
1536: Publicação da bula Cum ad nil magis. Estabelecimento oficial da
Inquisição em Portugal.
De tolerados a perseguidos, de judeus a cristãos-novos, a expulsão do reino e os
baptismos forçados – realidades que, naturalmente, não passaram ao lado das
comunidades judaicas do Algarve. Segundo Samuel Schwarz, havia perto de mil anos
que a sua presença na região era testemunhável, antecedendo mesmo a conquista
cristã77
. Durante o período medieval, todos os principais núcleos urbanos do Algarve
comportavam comunidades judaicas bem organizadas e economicamente muito activas.
Silves, Loulé, Tavira e Faro possuíam judiarias no século XIV, tal como Lagos, Alvor e
Vila Nova de Portimão na centúria seguinte78
. Aliás, na sequência do movimento de
Expansão Ultramarina, a vila de Lagos tornou-se num foco de atracção para muitos
judeus. O Infante D. Henrique chegara mesmo a conceder-lhes cartas de licença para
residirem fora da judiaria, confinada a uma estreita travessa, então já sobrelotada.
Alguns acabaram por se estabelecer numa das principais artérias da vila, para escândalo
dos moradores cristãos, que não deixaram de fazer ouvir o seu descontentamento79
. Em
77
Samuel Schwarz refere a descoberta de duas lápides funerárias no lugar de Espiche, próximo de Lagos,
que datariam do século VI, sendo, assim, os mais remotos testemunhos da presença judaica na Península
Ibérica. (Cf. Samuel Schwarz, Inscrições Hebraicas em Portugal. Separata de Arqueologia e História,
Lisboa, 1923). 78
Cf. Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Século XIV, Lisboa, Guimarães Editores,
1979, p. 21; Idem, Os Judeus em Portugal no Século XV, tomo I, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,
1982, p. 75. Vide também: Maria Júlia Fernandes, “Faro, distrito de”, Dicionário do Judaísmo Português.
Coord. Lúcia Liba Mucznik et al., Lisboa, Presença, 2009, pp. 232-233. 79
Num diploma de 18 de Maio de 1463, D. Afonso V ordenou aos juizes, justiças e oficiais de Lagos que
verificassem se, de facto, a judiaria já não podia albergar todos os judeus da vila, sendo realmente
necessário passarem a residir fora dos seus limites (Cf. Alberto Iria, “O Infante D. Henrique e os judeus
de Lagos (Subsídios para a sua história)”, Anais. Academia Portuguesa de História, II série, vol. 23, tomo
31
Faro, por seu lado, residia a principal e mais antiga comunidade judaica do Algarve80
. À
data da expulsão esta era a comuna que gerava maiores rendimentos81
. À importância
económica acrescia a relevância cultural. Teria sido nesta cidade que, em 1487, veio à
luz o primeiro texto impresso em Portugal82
.
Poucos anos depois, a perseguição aos judeus portugueses institucionalizava-se. Em
1493, ocorre o primeiro baptismo forçado. Os filhos dos judeus castelhanos admitidos
provisoriamente em Portugal mas que ultrapassaram o prazo estipulado de permanência
no reino foram retirados às famílias e entregues a Álvaro de Caminha. Conduzidos para
a capitania da ilha de São Tomé, foram baptizados e forçados a viver longe dos pais e de
qualquer vestígio da religião dos seus antepassados. Já depois de decretada a expulsão
dos judeus do reino, impôs-se a conversão dos que permaneceram em Portugal. Na
Páscoa de 1497, D. Manuel dava ordem para que fossem retirados aos pais judeus os
filhos menores de 14 anos, com o fim de baptizá-los e entregá-los a famílias católicas.
No final do prazo concedido pelo monarca para a conversão ou o abandono do reino
(até ao fim de Outubro de 1497), milhares de judeus acorreram aos estaus de Lisboa.
Esperavam ali pelas embarcações que os levariam para fora de Portugal. Mas tal não
II, 1976, pp. 304-312). O problema da sobrelotação da judiaria de Lagos persistiu e voltou a ser colocado
nas cortes de Évora em 1481. D. João II acabaria por autorizar a expansão do bairro, sendo-lhe anexada
um azinhaga existente entre a judiaria e a zona cristã. Surge, assim, a judiaria nova de Lagos. (Cf. Ferro
Tavares, Os Judeus... Século XV..., p. 71). 80
Alberto Iria lança a hipótese da comuna judaica encontrar-se radicada em Faro desde a época
muçulmana. (Cf. Alberto Iria, Os Judeus no Algarve Medieval e o Cemitério Israelita de Faro do Século
XIX (História e Epigrafia), Faro, 1985. Separata de Anais do Município de Faro, p. 6). 81
De acordo com Maria José Ferro Tavares, 60 mil réis de rendimento do serviço novo e velho, dos quais
era concessionário D. João de Sousa. (Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... Século XV, p. 750). 82
Segundo a interpretação do colofon daquele que é reconhecido como o primeiro livro impresso em
Portugal, a edição hebraica do Pentateuco, a sua impressão teria sido finalizada a 30 de Junho de 1487,
numa oficina em Faro, “por ordem do nobre e alto Dom Samuel Gacon”. Samuel Gacon seria, assim, o
editor da obra e não o impressor (Cf. João José Alves Dias, “Nova forma da transmissão do «verbo» - a
imprensa”, Nova História de Portugal, vol. V – Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, Lisboa,
Presença, 1998, p. 494). Só se conhece um outro testemunho de actividade tipográfica em Faro em 1496,
com a impressão das obras Maseket Berakot (Tratado das Bênçãos) e Maseket Gittin (Tratado do
Divórcio), na oficina de Samuel Porteiro. Dada a correspondência do conjunto tipográfico das impressões
de 1496 com o do Pentateuco de 1487, alguns autores têm ponderado que estas seriam oriundas da
mesma oficina, apontando-se mesmo a identificação de Samuel Gacon com Samuel Porteiro (Cf. Artur
Anselmo, As Origens da Imprensa em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, pp.
119-122, 235-238). Mas a data da edição do Pentateuco e o pioneirismo de Faro na história da imprensa
portuguesa levantam dúvidas. Primeiro, a comunidade judaica de Faro não teria uma importância tamanha
que justificasse ser o berço do primeiro texto hebraico impresso em Portugal, quando só em 1489 é que se
registou actividade tipográfica em Lisboa, onde se encontrava a principal comunidade do reino. Segundo,
considerando que o Pentateuco e os tratados impressos em 1496 são oriundos da mesma oficina, esse
hiato de quase 10 anos é pouco razoável. João José Alves Dias considera a hipótese da data de 1487 ser
fictícia, um subterfúgio para ocultar a verdadeira datação, 1497, ano conturbado para as comunidades
judaicas, obrigadas, então, a optar pela conversão ao Cristianismo ou pela expulsão do reino (Cf. João
José Alves Dias, “Incunábulos Hebraicos em Portugal”, Dicionário do Judaísmo..., pp. 278-280). Vide
também: Moses Bensabat Amzalak, A Tipografia Hebraica em Portugal no Século XV, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1922, pp. 20-21.
32
passou de uma armadilha. O rei ordenou que todas as crianças e jovens com menos de
25 anos fossem separados das suas famílias e recebessem o baptismo. Também muitos
dos pais acabaram por ser baptizados, sob a promessa da restituição dos filhos ou,
simplesmente, coagidos pela força83
.
Conhecemos os nomes de alguns “baptizados em pé” no Algarve. Simão Dias, natural
de Faro, fizera-se cristão durante a conversão geral, quando tinha 25 anos – é o que relata
aos inquisidores à data da sua prisão, em 1566. Porém, mesmo depois do baptismo,
continuou judeu no seu coração, segundo alega84
. Por outro lado, Duarte Álvares,
mercador de Lagos preso em 1560, afirmou que abraçara convictamente a fé cristã desde
o baptismo, aos 6 ou 7 anos de idade, e só bem mais tarde regressou ao Judaísmo85
.
Francisco Lopes, um jovem cristão-novo de Tavira, ouvira a sua avó referir-se à
conversão forçada: “[...] que fora mal feito criar-lhe seus filhos e tomar-lhos [...]”86
.
Nos primeiros anos do estabelecimento do Santo Ofício em Portugal, apenas
esporadicamente encontramos registos de cristãos-novos residentes no Algarve
processados pela Inquisição. São casos isolados que não provocaram maiores
consequências. Parte deles nem chegou a conhecer o cárcere inquisitorial, apesar da
acumulação e da gravidade das denúncias.
João Lopes, sapateiro de Faro, estava preso na cadeia de Tavira em 1545.
Acusavam-no de fazer sinagoga numa casa nos arrabaldes da cidade. Ali, possuía livros
da “Lei Velha” e “[...] convocava ou ajuntava outras pessoas suspeitas que iam à dita
esnoga a fazer os ritos e cerimónias judaicas contra a nossa Santa Fé Católica, em a qual
esnoga o Réu tinha muitas candeias e coisas secretas, as quais acendia quando lia os
ditos, e ensina a dita lei de Moisés [...]”87
. Além de todo o cerimonial judaico, ele era
igualmente acusado de guardar no sótão da dita casa um crucifixo, o qual açoitava todas
as sextas-feiras. Mas essas denúncias eram falsas – arguia. João Lopes nunca poderia
possuir livros judaicos e, a partir deles, doutrinar outros cristãos-novos, visto que ficara
órfão aos 7 ou 8 anos e, desde então, começara a trabalhar como sapateiro, sem ter
quem lhe ensinasse a ler e, muito menos, a rezar de tal forma. Nas alcaçarias, ele
possuía, de facto, três casas, mas todas destinadas ao exercício do seu mester e
frequentadas por outros sapateiros, muitos deles cristãos-velhos, que passavam por ali
83
Cf. Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé. Estudos acerca da origem e da luta dos Cristãos-Novos em
Portugal, Lisboa, Vega, 1998, pp. 20-36. 84
Cf. ANTT, Inquisição de Lisboa (IL), proc. 8351, fl. 24v. 85
Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 23v. 86
Cf. ANTT, IL, proc. 2511, fls. 8v-9. 87
Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fl. 4v.
33
em negócios. Por vezes, chegava a oferecer-lhes alojamento. Em suma, eram espaços
abertos, sem nada de secreto. Ilícito? Só o jogo. João Lopes conta que, numa ocasião,
estivera a jogar às cartas toda a noite com dois homens e, ao amanhecer, deu ordens a
uma escrava para ir comprar algo para comerem. Linguiça e lombo de porco,
pormenorizou o sapateiro. Estando todos a comer, apareceu de surpresa uma mulher.
Um dos companheiros de jogo, Diogo Dias, “[...] pensando que seria a justiça [...]”,
pegou logo num pano e cobriu as cartas. João Lopes acrescentou que, naquele momento,
tinha vestido um gibão. Ia sair para a missa88
.
Ano de 1545. O Santo Ofício estabelecera-se oficialmente em Portugal havia menos
de uma década. A Inquisição ainda permanecia longe do Algarve. Porém, João Lopes,
sapateiro de Faro, alegadamente um homem simples nas posses e no entendimento, já se
revelava hábil na defesa – a simplicidade doutrinal, o convívio com cristãos-velhos, o
afastamento das restrições alimentares judaicas, a firmeza da fé católica. E teria surtido
efeito. Apesar da incompletude do processo, tudo induz que João Lopes nunca chegou a
entrar nos calabouços de Évora.
Menos afortunado foi Mestre Francisco, cirurgião também de Faro e preso em 1543,
acusado de um rol extenso de práticas judaizantes: guardava os sábados de trabalho e
vestia neles os melhores trajes, fazia jejuns judaicos e celebrava a Páscoa do Pão
Ázimo, não ingeria carne de porco mas comia outras carnes durante a Quaresma e em
dias defesos, degolava as aves ao “modo judaico”, ensinava as ditas cerimónias a outros
cristãos-novos e lia por um livro os ritos da Lei de Moisés, além de que pedia esmola
entre os seus congéneres para reparti-la pelos cristãos-novos mais pobres89
. Mestre
Francisco nunca chegou a corroborar tais acusações. Ele era um dos melhores cirurgiões
da terra e, como também se dedicava à mercancia, trabalhava todos os dias da semana,
inclusivamente ao sábado. Rodeava-se de cristãos-velhos e de gente “de boa condição”,
que recebia em sua casa e a quem servia “[...] aves cozidas com toucinho ou assadas
albardadas com ele [...]”. Mestre Francisco apenas confirmou que chegara a consumir
carne em dias proibidos pela Igreja. Porém, as razões eram fortes – sofria de uma
“enfermidade de sarna” que piorava quando comia peixe. Apesar de exercer muita
caridade na prática do seu ofício, curando enfermos sem cobrar nada, ele não deixara de
88
Cf. Idem, fls. 7-9. 89
O processo refere que Mestre Francisco pedia esmola ao “Acedaca” e, depois, repartia-a pelos cristãos-
novos mais pobres. Este termo “Acedaca” seria uma corruptela de Sedaca, instituição comunal judaica
destinada a fins caritativos.
34
ganhar ódios na cidade e enumerou-os na sua defesa, entre desavenças pessoais,
problemas de negócios e insatisfações com o seu trabalho de cirurgião90
.
Após o pagamento de 1500 cruzados de fiança e sob a condição de não partir de
Évora, Mestre Francisco saiu dos cárceres e, em 1546, recebia licença para regressar
temporariamente a Faro91
. Entretanto, a sua esposa também fora presa. Branca de Sousa,
que se tinha mudado para Lisboa por ocasião da prisão do marido, entrou nos
calabouços de Évora a 4 de Agosto de 154692
. Os inquisidores interpretaram esta
mudança como uma fuga. Entre várias denúncias, Diogo Martins, morador na Ribeira
de Faro, acusou-a de ter visitado “[...] o Anticristo que pousava em casa de Brás Pires, o
barbeiro [...]”93
. O “Anticristo” era David Reubeni, auto-proclamado filho do rei
Salomão, que, em 1525, viera a Portugal pedir o auxílio do rei para a libertação da Terra
Santa do domínio turco. Entrara no reino pelo Algarve e estivera durante alguns dias em
Tavira e em Faro. Muitos cristãos-novos viram nele o Messias prometido94
. Porém,
Branca de Sousa, na sua confissão, nunca se referiu às visitas a David Reubeni. Abjurou
no auto-de-fé de 12 de Abril de 1549, após o qual foi posta em liberdade.
Em toda a década de 40, o número de processos de cristãos-novos do Algarve
limitaram-se a uma dezena. A alguns nem sequer foi atribuída uma pena, como
aconteceu com Manuel Rodrigues, barbeiro em Tavira, preso a 14 de Novembro de
1541 e solto no final do ano seguinte. Dizia que não acreditava em Jesus Cristo porque
“[...] há mil e quinhentos e tantos anos que passou, que ele não estava lá nem o viu, que
como o há-de crer, e que se São Pedro andava com ele e o não conhecera, que como o
90
Cf. ANTT, IE, proc. 5718. 91
Foi-lhe dada licença a 25 de Abril para sair de Évora, sob a condição de regressar até ao S. João. Como
só regressou em Agosto, Mestre Francisco perdeu os 1500 cruzados de fiança que tinha depositado na
mão de João Álvares, de Lisboa. Ele justificou que se demorara em Faro a pedido da Câmara, a qual
precisava dos seus serviços devido aos muitos doentes que havia na cidade. A Câmara de Faro
confirmaria esta justificação. Porém, Mestre Francisco foi acusado de andar em Faro a negociar e a curar
com o simples objectivo de ganhar dinheiro (Cf. ANTT, IE, proc. 7914). 92
O processo de Branca de Sousa encontra-se incompleto e disperso em três documentos. O processo n.º
5733 da Inquisição de Lisboa apenas comporta, além da ordem de prisão, o relato sobre o que aconteceu no
momento em que foi presa. Aires Botelho, notário da Inquisição, responsável pela detenção de Branca,
testemunhou que ela chamara uma moça que tinha ao seu serviço “ [...] e lhe vira ele testemunha pôr a mão
na boca, olhando para a moça, como que lhe acenava que se calasse e ele testemunha olhara então para a dita
mulher de Mestre Francisco e ela dissimulou e passou a mão para o nariz e olhos que ele testemunha notara
aquilo e lhe pareceu que fizera aquilo para lhe acenar que se calasse [...]” (fls. 4v-5). O processo n.º 6854 da
Inquisição de Évora consiste no testemunho de um alcaide do cárcere sobre um grupo de mulheres das quais
se suspeitava que mantinham práticas judaizantes no cárcere. Entre elas estava Branca de Sousa que, embora
todos os dias trabalhasse a fazer “rede de linhas”, às sextas-feiras passava a noite a falar com as outras
mulheres. É o processo n.º 458 da Inquisição de Évora que contém a maior parte do processo de Branca de
Sousa – os artigos de confissão, a defesa, a confissão e a sentença final. Portanto, apesar de ter sido presa em
Lisboa, o processo acabou por ser remetido para a Inquisição de Évora. 93
Cf. ANTT, IE, proc. 458, fl. 69. 94
Cf. Maria José Ferro Tavares, Los Judíos en Portugal, Madrid, MAPFRE, 1992, pp. 243-245.
35
conheceria ele que nunca o vira, e que como queimavam agora aqui por isso os cristãos-
novos, pois havia tanto tempo que passara [...]”95
. Afirmações do espírito de um homem
simples e de “pobre siso” – consideraram os inquisidores. Outros processados
acabariam por beneficiar do perdão geral de 154796
.
Era um momento embrionário da Inquisição portuguesa. A tensão entre a Santa Sé e
a coroa, tal como a pressão dos agentes dos cristãos-novos junto do papa, funcionavam
como entraves a uma actuação mais consistente e sistemática97
. A bula de 1536, que
estabeleceu oficialmente a Inquisição em Portugal, salvaguardava o direito dos réus
conhecerem as testemunhas de acusação e apresentarem a sua própria defesa. O segredo
ainda não se tornara numa arma do Santo Ofício, como aconteceria anos mais tarde,
autêntico motor das grandes vagas de prisões e causa de denúncias que se
multiplicavam de réu para réu98
.
O vazio de prisões no Algarve na primeira metade de Quinhentos não foi algo de
excepcional. Salvo os grandes núcleos urbanos e outros onde as comunidades cristãs-
novas tinham um maior peso, a actuação inquisitorial manteve-se débil em todo o
território português99
. Segundo os dados apresentados por António Borges Coelho,
durante a década de 40 foram efectuadas 284 prisões pela Inquisição de Évora. No
95
Cf. ANTT, IL, proc. 12503, fl. 2. 96
A 11 de Maio de 1547, a bula Ilius qui misericordis decretava o perdão geral. Pouco mais de dois
meses depois, a 16 de Julho de 1547, uma outra bula papal, Meditatio cordis, determinava a aplicação do
processo inquisitorial em lugar do processo comum. 97
Em 1544, os agentes dos cristãos-novos em Roma apresentavam um memorial (Memoriale porrectum à
noviter conversis Regni Portugalliæ...) com a narrativa da perseguição aos judeus e cristãos-novos
portugueses desde a conversão forçada, em 1493, até àquele ano de 1544. Em anexo, encontravam-se 44
documentos, desde instrumentos judiciais relativos a factos mencionados na memória, até relatos sobre a
actuação dos inquisidores. Nesse mesmo ano, um breve papal decretou a suspensão das sentenças até à
chegada do novo núncio apostólico a Portugal. (Cf. Alexandre Herculano, História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal, vol. 3, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pp. 106-111). 98
Sobre os primeiros anos de funcionamento da Inquisição portuguesa e o processo de
estabelecimento do tribunal vide: Herculano, História da origem…; Maria José Ferro Tavares,
“Inquisição: um «compellere intrare» ou uma catequização pelo medo (1536 -1547)”, RHES, n.º
21, Set.-Dez. 1987, pp. 1-28; Idem, “A Inquisição de 1531 a 1539: O inquisidor -mor D. Diogo da
Silva”, Judaísmo e Inquisição. Estudos, Lisboa, Editorial Presença, 1987, pp. 147-167; Francisco
Bethencourt, História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália, Lisboa, Temas e Debates,
1996; Giuseppe Marcocci, I custodi dell’ortodossia. Inquizione e Chiesa nel Portogallo del
Cinquecento, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 2004; Idem, “A fundação da Inquisição em
Portugal: um novo olhar”, Lusitania Sacra, 2ª série, tomo 23, 2011, pp. 17-40; Susana Bastos
Mateus, “Los origines inciertos de la Inquisición en Lisboa (1536 -1548): Geografía penitencial y
estrategias de defensa de los Cristãos-Novos”, Tiempos Modernos. Revista electrónica de Historia
Moderna, vol. 7, n.º 20, 2010. [Consult. 5 Maio 2011] Disponível online:
http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm]. 99
Cf. Ferro Tavares, Los Judíos..., pp. 200-201.
36
decénio seguinte, esse número decresceu: 248 detenções100
. Ora, o Algarve contribuiu
muito parcamente para estes números. Porém, em 1559, a conjuntura mudaria.
A Inquisição entra em Vila Nova de Portimão
Dezembro de 1558: o Dr. Luís de Albuquerque, vigário-geral do Algarve, visitava
Vila Nova de Portimão. No dia 6, apresentou-se Grácia Mendes, cristã-nova, esposa de
Domingos Fernandes, mercador. Vivia na Rua da Porta da Serra, artéria onde residiam
muitos outros cristãos-novos.
“A qual Grácia Mendes disse ao dito vigário, perante o dito padre e perante mim,
escrivão, que ela, por temer a Nosso Senhor Jesus Cristo e conhecer a verdadeira
verdade, e com verdadeiro arrependimento e propósito da emenda, se vinha ora a
reconciliar e acusar a ele, dito vigário, de seus erros e pecados, assim por sua parte,
como a dizer de outras pessoas que fazem e fizeram o que não deviam contra
Nosso Senhor e sua Santa Fé [...]”101
.
E o que fazia Grácia Mendes contra a fé católica? Numa longa sessão de confissão,
ela enumerou ao Dr. Luís de Albuquerque esses desvios. Durante três anos, guardou os
jejuns “como fazem os judeus”, ou seja, do pôr-do-sol de um dia ao anoitecer do
seguinte. Chegou a jejuar 3 vezes por semana e, uma vez, jejuou durante 10 dias
seguidos. Nessas ocasiões, rezava os salmos de David sem o Gloria Patri no final. Às
sextas-feiras à noite, limpava os candeeiros e mantinha-os acesos durante toda a noite
até se apagarem por si, tudo por honra do sábado. Quanto às festas judaicas, celebrava
os jejuns do Quipur e da Rainha Ester e a Páscoa do Pão Ázimo.
Depois de confessar tais práticas e de sublinhar a sua fidelidade à fé cristã nos
últimos 3 anos, Grácia Mendes delatou outros judaizantes. Começou por quem lhe era
mais próximo – a sua mãe, a primeira a ensinar-lhe os preceitos da Lei de Moisés. A
sessão alargou-se e, no final, já havia denunciado parte dos cristãos-novos da Rua da
Porta da Serra. O contacto de Grácia Mendes com os vizinhos era muito próximo:
“[...] algumas horas se juntavam uns em casa dos outros e praticavam nisso, nas ditas
cerimónias, e todos levavam muito grande contentamento disso [...]”102
. E o que ela
não testemunhou com os próprios olhos, ouviu dizer a outras pessoas. A sua mãe
contara-lhe que, em Lagos, as duas filhas do bacharel Manuel Pais, que fora promotor
100
Cf. António Borges Coelho, Inquisição de Évora. 1533-1668, Lisboa, Caminho, 2002, p. 178. 101
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 3. Vide, em anexo, pp. 238-243. Sobre a confissão de Grácia Mendes e
as prisões seguintes, vide António Baião, “Ainda a Inquisição no Algarve. Apontamentos de processos
desconhecidos de cristãos novos de Portimão”, Correio do Sul, n.º 1753, ano 32, 14 de Junho de 1951. 102
Cf. Idem, fl. 7v.
37
do bispo, faziam as mesmas cerimónias, tal como uma Guiomar Soeira, em Loulé103
.
“[...] Nesta Vila Nova, na Rua de Peru, havia muitos cristãos-novos e cristãs-novas
que faziam as mesmas cerimónias da Lei Velha [...]”, diziam Inês Martins e a filha
Catarina Fernandes, suas vizinhas104
.
As palavras de Grácia Mendes não suscitaram dúvidas. Afinal, apelidavam-na de “a
Apóstola”, tão “amiga da Igreja” que era105
. Além do mais, algumas das denúncias
foram corroboradas pelo testemunho do irmão, Mem Fernandes, o qual se apresentou
dois dias depois. Ele confirmou que, em muitas noites de sexta-feira, presenciara a mãe
a consertar as candeias, deixando-as acesas até de se apagarem por si. Uma vez, viu-a a
tirar o dedal à sua irmã Grácia para que não trabalhasse naquele dia: «Filha, não deixes
a cabeça para tomar os pés». A mãe e a irmã sabiam algumas orações judaicas,
ensinadas por uma cristã-nova de Loulé, a qual, sempre que ia a Vila Nova de Portimão,
recebia esmolas de todos os cristãos-novos106
. A solidariedade entre congéneres,
alicerce das comunidades judaicas, mantivera-se entre os seus descendentes mesmo
após a conversão geral.
No dia 23 de Dezembro de 1558, Grácia Mendes foi novamente chamada para
ratificar o seu testemunho. Confessou, então, que andara apartada da fé católica para lá
dos três anos que tinha admitido na sessão anterior. Durante seis ou sete anos, manteve
práticas judaicas e comunicara a sua fé com outros cristãos-novos. Assim, expandiu as
denúncias em número e em espaço, atingindo Tavira e até Lisboa.
Grácia Mendes lançou a semente num terreno que se revelava agora fértil à acção
inquisitorial. Em recompensa, a 13 de Janeiro de 1559, por carta do Inquisidor-geral,
obteve a reconciliação, tal como o seu irmão. O regimento de 1552 contemplava o uso
de misericórdia para com os penitentes que se apresentassem de forma voluntária107
. Foi
o que aconteceu com Grácia Mendes.
103
Filipa Soares e Inês Afonso eram filhas de Manuel Pais e de Guiomar Soeira e estavam casadas,
respectivamente, como Mestre João, cirurgião, e Manuel de Moura, rendeiro. A 13 de Janeiro de 1560,
receberam ordem de prisão. As duas saíram no mesmo auto-de-fé, a 16 de Março de 1561, reconciliadas
com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IL, procs. 7222 e 4195). 104
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 8v. 105
Cf. ANTT, Idem, fl. 10. 106
Cf. ANTT, Idem, fls. 12-13. O testemunho de Mem Fernandes encontra-se no processo da irmã. 107
É referido no capítulo X do Regimento 1552: “[...] É grande sinal do penitente fazer boa e verdadeira
confissão descobrir outros culpados dos mesmos errores especialmente sendo pessoas chegadas e
conjuntas em sangue e a que tenham particular afeição [...]”. (Cf. “Regimento do Cardeal D. Henrique
(1552)”, in José Eduardo Franco e Paulo Assunção, As Metamorfoses de um Polvo. Religião e Política
nos Regimentos da Inquisição Portuguesa, Lisboa, Prefácio, 2004, p. 111).
38
No mesmo documento de 13 de Janeiro, o Cardeal Infante D. Henrique dava ordem
de prisão aos cristãos-novos delatados pelos dois irmãos. Acrescentava, ainda, que os
casos seriam tratados pelo tribunal de Lisboa, “[...] sem embargo de não serem as ditas
pessoas de seu distrito [...]”108
. Quinze cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e dois
de Lagos deveriam ser presos com brevidade109
. Todos eles chegaram aos cárceres de
Lisboa a 11 de Fevereiro desse ano110
.
A 8 de Maio de 1551, uma carta do Cardeal Infante comunicava aos deputados da
Inquisição de Lisboa que, a partir de então, tratariam de todos os casos denunciados no
reino, “[...] salvo nos deste arcebispado de Évora em que há inquisidores [...]”111
. Na
dita missiva de 1559, o inquisidor-geral referia que o Algarve se encontrava fora do
“distrito” do tribunal de Lisboa. Em finais da década de 50, a região estava sob a alçada
da Inquisição de Évora. Não obstante, até meados dos anos 60, os processos movidos
contra os cristãos-novos presos no Algarve decorreram em Lisboa e não em Évora. A
ordem que fora dada pelo Cardeal Infante em Janeiro de 1559 continuou em vigor muito
para lá dos 17 casos referidos.
Não identifiquei nenhuma evidência sólida sobre as razões que estariam por detrás
desta transferência de jurisdição. Atente-se, contudo, a quem ocupava então a cadeira
episcopal algarvia – D. João de Melo. O bispo desempenhara um papel proeminente nos
primeiros anos do estabelecimento da Inquisição em Portugal. D. Diogo da Silva,
primeiro inquisidor-geral, designou-o deputado do Conselho Geral e, logo depois,
inquisidor do recém-criado Tribunal da Inquisição de Évora. Passaria para a Inquisição
de Lisboa em 1539, onde o seu poder era muito abrangente. Aliás, desde 1540, D. João
de Melo era quem, na prática, dirigia o Santo Ofício português. A sua reputação de
severidade perpetuou-se. Alexandre Herculano refere-o como o “[...] mais resoluto
108
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 14. Vide, em anexo, pp. 245-246. 109
Foi dada ordem de prisão a: Catarina Mendes, viúva de João Mendes; Beatriz Rodrigues e a filha Inês
Pousada; Mor Rodrigues e as filhas Catarina Mendes e Joana Rodrigues; Manuel Dias, marido desta
última; Gaspar Mendes, a mulher Catarina Vaz, a filha Grácia Mendes e o genro Simão Nunes; Isabel
Gonçalves, mãe de Inês Martins; e Inês, Beatriz e Grácia Mendes, filhas de Francisco Mendes. Eram
todos de Vila Nova de Portimão. Em Lagos, foram presas as duas filhas do bacharel Manuel Pais. (Cf.
Idem, fls. 23-24). 110
Também entraram nos cárceres da Inquisição de Lisboa, nesse mesmo dia, outros cristãos-novos de
Vila Nova de Portimão que, embora também denunciados por Grácia Mendes, não se encontram
mencionados na ordem de prisão de 13 de Janeiro. São eles: Manuel Mendes, marido de Mor Rodrigues
(Cf. ANTT, IL, proc. 12508); Beatriz e Isabel Mendes, filhas de Gaspar Mendes (procs. 1107 e 3104);
Violante Gonçalves e a nora Mor Rodrigues (procs. 7286 e 12185); Beatriz Gonçalves, conhecida por a
Polha (proc. 13285); Branca Fernandes (proc. 12479); Inês Lopes (proc. 3165); Isabel Gonçalves (proc.
3868); Isabel Soares (proc. 874) e Mécia Vaz (proc. 2373). 111
Cf. Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a História da Inquisição em Portugal (Século XVI),
Lisboa, Cáritas Portuguesa, 1987, doc. 28, pp. 33-34.
39
adversário dos christãos-novos e que se poderia considerar como o chefe verdadeiro dos
inquisidores [...]”112
. Ocupou ainda os cargos de desembargador da Casa da Suplicação
e da Casa do Cível antes de ser designado bispo de Silves, em 1549. Nomeado
arcebispo de Évora, em 1564, D. João de Melo foi substituído por D. Jerónimo Osório
na Sé de Silves113
.
Durante o tempo em que foi bispo de Silves, D. João de Melo continuou a exercer
funções no Tribunal do Santo Ofício. A 4 de Julho de 1554, o cardeal D. Henrique
nomeou-o para presidir, em seu nome, à Mesa do Santo Ofício da Inquisição de
Lisboa114
. As relações com o inquisidor-geral mantiveram-se próximas. Aliás, teria sido
o próprio cardeal a favorecer a sua nomeação como bispo de Silves115
.
A Inquisição Portuguesa contava com pouco mais de 20 anos de existência oficial e as
suas estruturas eram insuficientes para um controlo que abrangesse toda a área de
jurisdição dos seus tribunais. A solução residia em usar estruturas pré-existentes. Como
refere José Pedro Paiva, à falta de uma rede de comissários e de familiares do Santo
Ofício capaz de abranger todo o reino, a Inquisição recorria aos funcionários da
administração episcopal para a efectuação de inquirições locais, para a recolha de
denúncias ou mesmo para a prisão dos suspeitos116
. Foi o que aconteceu no Algarve em
finais da década de 50.
Após a confissão de Grácia Mendes e a série de detenções em Vila Nova de
Portimão, o vigário-geral, o Dr. Luís de Albuquerque, continuou a visitar outras
localidades do Algarve. Era ele quem recolhia localmente os testemunhos e
providenciava as prisões decretadas pela Inquisição.
No final de Março, estava em Faro, na companhia de D. João de Melo. Antes,
tinha passado por Loulé, devassando sobre Guiomar Soeira e outros cristãos-novos
denunciados por Grácia Mendes. Numa carta dirigida aos inquisidores de Lisboa, o
112
Cf. Herculano, História da Origem..., vol. III, p. 6. 113
Cf. Ana Cristina da Costa Gomes, “Subsídios para o estudo da vida e obra do arcebispo de Évora D.
João de Melo”, Clio, n.º 9, 2º semestre 2003, pp. 107-126. 114
Cf. Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a História..., pp. 83-84. 115
José Pedro Paiva refere uma missiva de 15 de Julho de 1548, na qual D. Henrique agradecia a D. João
III a nomeação de D. João de Melo para o bispado do Algarve e felicitava-o pela boa decisão que tomara.
(Cf. José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal e do Império, 1495-1777, Coimbra, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2006, pp. 315-316). 116
Cf. José Pedro Paiva, “Os Bispos e a Inquisição Portuguesa (1536-1613)”, Lusitania Sacra, 2ª série,
n.º 15, 2003, pp. 61-64. Giuseppe Marcocci questiona essa colaboração entre o poder episcopal e o Santo
Ofício nos primeiros anos da Inquisição em Portugal. Segundo o autor, o equilíbrio entre os dois poderes
não foi imediato, mas sim o resultado da expansão da hegemonia do Santo Ofício nas estruturas da igreja
portuguesa (Cf. Giuseppe Marcocci, “O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-82).
Um caso de inquisição episcopal?”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, n.º 9, 2009, p. 135).
40
Dr. Luís de Albuquerque fazia algumas sugestões sobre o melhor modo de actuar. Dizia
que “[...] ninguém é melhor testemunha que uma Catarina Mendes, viúva, que eu tenho
por qualificadora [...]”. O vigário referia-se à mãe de Grácia Mendes, então nos
cárceres, a qual saberia de “[...] grandes negócios deste bando [...]”. Ele citava ainda
outras testemunhas eventualmente profícuas em informações: Isabel Gonçalves,
Violante Gonçalves e “a mulher do bacharel Pais”, Isabel Soares. Esta última “[...] é
uma das boas testemunhas acerca de uma esnoga que há em Vila Nova dos principais
dela [...]”, acreditava o vigário-geral117
.
Mapa 1: Visitas do Dr. Luís de Albuquerque, vigário-geral, no Algarve.
Possivelmente, tal parecer teria contribuído para o prolongamento dos processos de
Isabel Soares e de Catarina Mendes. A grande maioria dos cristãos-novos a quem fora
dada ordem de prisão a 13 de Janeiro acabou por sair no auto-de-fé de 16 de Março de
1561. Houve mesmo quem fosse reconciliado ainda em 1559. Porém, tanto Isabel
Soares como Catarina Fernandes estiveram mais um ano no cárcere, sujeitas a
constantes sessões de interrogatório. Apenas saíram no auto celebrado a 10 de Maio de
1562. Isabel Soares mantivera-se irredutível durante quase um ano de cárcere. A 9 de
Fevereiro de 1560, começou a confessar. Nunca fizera qualquer jejum judaico até ser
presa, mas, já no cárcere, jejuou por três ou quatro vezes. Em pouco mais de um mês,
ela foi sujeita a seis sessões de perguntas e, com o aumento da pressão dos inquisidores,
começou a desenvolver a sua confissão: guardava os jejuns do Quipur e do thanis (às
segundas e quintas-feiras) ainda antes de ser presa e ensinara rituais judaizantes às suas
filhas. Contudo, e apesar das delações, a confissão de Isabel Soares não teve o efeito
que o Dr. Luís de Albuquerque previra. Sobre a alegada “esnoga” dos principais de Vila
117
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fls. 49-49v.
13 Jul 1560
Portimão
Dez 1558
Lagos Mar 1558 Faro
3 Jul 1560 Silves
41
Nova de Portimão, nenhuma palavra. Além disso, não denunciou um só indivíduo que
ainda não tivesse sido delatado por outras testemunhas. Ao contrário do que o vigário
esperava, a confissão de Isabel Soares não contribuiu para a multiplicação das prisões
em Vila Nova de Portimão118
.
Ao observarmos a sucessão de denúncias e prisões na vila, constatamos que a
grande maioria das detenções (70%) ocorreu no início de 1559 e com origem na
confissão de Grácia Mendes119
. As restantes ramificações ocorreram, sobretudo, dentro
dos círculos familiares.
Vejamos o caso de Mor Rodrigues, que Grácia Mendes acusara de guardar o sábado
e de conhecer orações e cerimónias da Lei de Moisés. Ela admitiu ter jejuado para que
“[...] Nosso Senhor trouxesse o dito seu marido [...]”120
, então no Peru. O marido era
Garcia Gonçalves, mareante e mercador. Nas primeiras sessões de confissão, Mor
Rodrigues não o mencionou como judaizante. Só tinha jejuado com a sogra, Violante
Gonçalves, já presa pelo Santo Oficio. Também conhecia algumas orações judaicas,
ensinadas por uma castelhana, cujo nome não refere. Mor Rodrigues não foi a única a
atribuir o ensino a uma castelhana anónima. O mesmo fez Isabel Gonçalves, a
Rainha121
. Confessar a doutrinação sem implicar ninguém em concreto – eis a
estratégia. A “velha castelhana”, anónima e estrangeira, tornava-se no bode expiatório
perfeito. Mas não era com credulidade que os inquisidores acolhiam tal história.
Mor Rodrigues só denunciou o marido na última sessão. A 8 de Outubro de 1560,
Garcia Gonçalves era preso. Ele revelou-se mais cooperante com os inquisidores do que
o fora a esposa. Após dois meses de cárcere, pediu audiência para confessar. Havia
cerca de dois anos, já depois da prisão de Mor Rodrigues, fora abordado por um siseiro
de Silves, João de Lisboa, que o aconselhou a guardar o jejum do Quipur para que Deus
livrasse a sua mulher do cárcere. Semelhante proposta fez-lhe um outro cristão-novo,
Francisco Jorge, mercador que, posteriormente, se mudou para a Ilha Terceira – se
guardasse o jejum da Rainha Ester, Deus dar-lhe-ia tudo o que pedisse. Garcia
Gonçalves cedeu nas duas ocasiões. E não foi a primeira vez. Havia cinco anos, antes de
118
Cf. ANTT, IL, proc. 874. 119
Em 1559, de todos os cristãos-novos presos em Vila Nova de Portimão, apenas cinco não foram
denunciados por Grácia Mendes. 120
Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fl. 45v. 121
Cf. ANTT, IL, proc. 6204, fl. 14v.
42
partir para o Peru, a sua mãe aconselhara-o a guardar o jejum da Rainha Ester para que
tivesse uma boa viagem122
.
Com a prisão da mulher, Garcia Gonçalves tomou consciência do quão próximo
estava o cárcere. Pelo São João de 1559, recebeu uma proposta tentadora: Mateus
Lopes, mercador de Tavira, convidou-o a ir com ele para Nápoles. A rota era a seguinte:
de Nápoles seguiriam para Veneza, onde um tio paterno de Mateus Lopes os acolheria,
e, dali, iriam para Damasco, “[...] para lá viverem livremente e como lá viviam [...]”.
Mas ele recusou o convite. Não queria abandonar a esposa123
.
Garcia Gonçalves não foi o único a ser incitado à fuga e, ao contrário dele, houve
quem cedesse à tentação. Luís de Albuquerque não o ignorava. Afinal, a concentração
de um número considerável de prisões num tão curto período de tempo provocara um
clima de insegurança e desespero entre os cristãos-novos de Vila Nova de Portimão. Ao
medo acrescia o espanto perante determinadas detenções. O vigário refere como as
prisões de Manuel Lopes e de Francisco da Gama, a quem “[...] tinha no exterior por
cristãos [...]” perturbaram a gente daquela terra. “[...] Como é bispado fronteiro e estão à
beira-mar [...]”, ele aconselhava que se redobrasse a vigilância124
.
Tentemos compreender o espanto perante a prisão destes dois homens. Francisco da
Gama era um mercador de 60 anos que viera de Arzila para Vila Nova de Portimão.
Tinha uma irmã freira no Mosteiro de Jesus, em Setúbal, e uma filha, Inês da Gama,
casada com João de Burgos, recebedor do rei125
. Quanto a Manuel Lopes, era natural de
Moura e exercia o cargo de inquiridor em Vila Nova de Portimão126
. Ou seja, quer um,
quer outro eram figuras de grande notabilidade, embora sem raízes no Algarve. Ali, as
respectivas ascendências eram desconhecidas. Não lhes era difícil esconder a
“qualidade” do seu sangue.
Francisco da Gama e Manuel Lopes chegaram aos cárceres de Lisboa denunciados
por um outro velho mercador, Álvaro Gomes. Com perto de 70 anos e natural de Sevilha,
Álvaro Gomes chegou a servir de juiz da alfândega de Vila Nova de Portimão127
. Fora
denunciado durante a visita do vigário-geral. Já nos calabouços, ele confessou que ainda
esperava pela vinda do Messias e guardava os sábados, na obra e na vontade, por honra da
122
Cf. ANTT, IL, proc. 8491, fls. 3-5. 123
Cf. Idem, fls. 8v-9. 124
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 53. 125
Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fls. 5-6. 126
Cf. ANTT, IL, proc. 4467, fl. 13. 127
Cf. ANTT, IE, proc. 5071. O filho de Álvaro Gomes, Fernão de Álvares Gramaxo, foi preso na vaga
de prisões em Vila Nova de Portimão no final do século XVI.
43
Lei de Moisés. Mas Álvaro Gomes fora preso por outras razões. Contava-se que, numa
quinta ou sexta-feira de Endoenças, quando o padre levantou a hóstia na missa, ele
exclamara: «O ladrão!». Também se comentava o seu costume de escarrar sempre que via
o Santíssimo Sacramento. Nas primeiras sessões, Álvaro Gomes não o corroborou –
escarrava sim, mas só porque era muito doente, e nunca para o Santíssimo Sacramento128
.
Posteriormente, acabou por admitir a blasfémia e que fora judeu até ao momento da sua
prisão. Mestre Gabriel, cirurgião e físico, avisava-o quando caía o jejum do Quipur. Após
a morte deste, passou a ser alertado por Gaspar Mendes, lavrador que morava no termo de
Vila Nova de Portimão. Mas os inquisidores consideraram a confissão de Álvaro Gomes
insuficiente e repleta de incoerências. O caso da ofensa ao Santíssimo Sacramento
acabaria por condená-lo. Afinal, ele voltou atrás na sua confissão e atribuiu as palavras
ditas na igreja matriz a um momento demencial, fruto da sua doença129
. Já na última
sessão, acrescentou que realmente chamara ladrão ao Santíssimo Sacramento, mas nunca
com intenção de ofender Jesus Cristo. Esperava o Messias, mas considerava Jesus o
redentor do mundo130
. Tais contradições conduziram-no à pena máxima. No auto-de-fé de
16 de Março de 1561, foi relaxado à justiça secular.
Álvaro Gomes implicara dois homens de boa reputação na vila. Por sua vez,
Francisco da Gama e Manuel Lopes denunciaram as respectivas esposas. Catarina
Gonçalves, mulher de Francisco da Gama, ao resistir à confissão, foi sujeita a um auto
de confrontação com o marido:
“ [...] logo mandaram vir perante si a Francisco da Gama, seu marido, o qual, sendo
chamado e admoestado que dissesse a verdade, disse à dita Ré, sua mulher, no rosto,
que confessasse a verdade e pedisse perdão como ele fizera e que lembrasse que
guardavam ambos os sábados e praticavam no Messias e assim, lembrando-lhe todo o
mais que em sua confissão tinha confessado, pedindo-lhe por amor de Nosso Senhor e
sentando-se em joelhos que descarregasse sua consciência para sua salvação [...].”131
Ela cedeu e confessou, tal como Isabel Fernandes, esposa de Manuel Lopes.
Contudo, estas confissões não provocaram mais nenhuma prisão. Fechava-se, assim,
uma sucessão de denúncias e prisões que se iniciara com Álvaro Gomes. Como se vê,
bem mais inconsequente do que a aberta pelo testemunho de Grácia Mendes.
128
Cf. ANTT, IL, proc. 4388, fls. 12-13v. 129
“[...] era verdade que ele o disse por o tomar naquela sezão um acidente de tosse e garganta que ele se
via tomar muitas vezes e o desacordou de tal maneira que não sabia onde estava e com aquele desacordo e
tribulação grande da dita tosse ele não atentara o que dissera mas como desacordado de juízo e razão e de
verdade arremessou assim aquela palavra, dizendo aquilo em sua vontade ou diabo porque lhe dava
aquele trabalho de muita tribulação [...]” (Cf. Idem, fl. 27). 130
Cf. Idem, fl. 36v. 131
Cf. ANTT, IL, proc. 6514, fl. 30.
44
Descobrir os judaizantes de Silves
A 3 de Julho de 1560, o Dr. Luís de Albuquerque estava em Silves e escrevia aos
inquisidores de Lisboa sobre as prisões de dois cristãos-novos daquela cidade, Tomás
Gomes e Maria Rodrigues. Dizia: “É gente que pode descobrir boa parte doutros que se
diz haver nesta terra [...]”132
. Maria Rodrigues “[...] dizia muitas cousas que eram de
judia e não de cristã [...]” – referiu Domingos Lopes, homem de Tavira que, a 10 de
Janeiro de 1560, se apresentou perante o vigário-geral133
. Segundo Simão Gonçalves,
lavrador de Lagoa, Tomás Gomes afirmava que os judeus não haviam pecado ao
crucificarem Jesus Cristo, pois já estava determinado que ele morreria dessa forma134
.
As expectativas do vigário-geral nas potenciais delações dos dois cristãos-novos
saíram frustradas, sobretudo no caso de Maria Rodrigues. Ela era casada com um
tanoeiro cristão-velho, Bartolomeu Dias. Porém, em primeiras núpcias, fora esposa de
João Neto, cristão-novo, que a ensinara a jejuar “no tempo das vindimas” e a deixar
uma candeia acesa durante as noites de sexta-feira. A confissão de Maria Rodrigues
convenceu os inquisidores e acabou por sair no auto de 16 de Março de 1561,
reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores135
.
A prisão de Tomás Gomes não foi tão inócua. Com uma semana de cárcere, ele
iniciou a confissão. Numa ocasião, ao falar com um grupo de lavradores em Lagoa
sobre a morte de Jesus Cristo, dissera que “[...] de necessidade Nosso Senhor havia de
padecer para livrar o género humano e que já que havia de morrer, não no haviam de
matar os asnos, senão os homens, e que ele quis morrer entre os seus e que se São Pedro
o negara, fora por mandado de Nosso Senhor e por Nosso Senhor nisso consentir [...]” –
e continuara – “[...] que se os judeus mataram a Cristo Nosso Senhor, que os judeus não
pecaram nisso, porquanto estava assim ordenado por Deus que Nosso Senhor Jesus
Cristo padecesse pelos pecadores [...]”136
.
Tal não convenceu os inquisidores. Afinal, o vigário-geral do Algarve prometera-
lhes uma confissão bem mais reveladora. Tomás Gomes, porém, continuou a não
associar os seus comportamentos à fé judaica. É verdade que chegara a renegar Deus e
os santos, mas só por ira.
132
Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 95. 133
Cf. ANTT, IL, proc. 6370, fl. 6. 134
Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 2-2v. 135
Cf. ANTT, IL, proc. 6370. 136
Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 5-5v.
45
Finalmente, a 17 de Setembro, Tomás Gomes admitiu ter-se apartado da fé cristã.
Tudo aconteceu havia cerca de 12 anos, quando era dizimeiro do gado. Um cristão-
velho, João Escobar, contara-lhe que estivera por terras onde “[...] Nosso Senhor tirara
os filhos de Israel do cativeiro do Egipto [...]”. A partir de então, a sua fé mudou.
Alguns dias depois, a caminho de Tavira, ao olhar o mar, o céu e a terra, disse para si
mesmo que aquilo eram obras do Deus único. Deixou de crer em Jesus Cristo como o
Messias prometido. Passou a rezar só ao Deus dos Céus. Quando ia às feiras, levava
sempre consigo camisas para muitos dias e vestia uma lavada ao sábado. Tentava
guardar o descanso sabático, mas quando tinha de trabalhar, pedia perdão pelo seu
pecado. Também começou a jejuar à sexta-feira e a fazer as demais cerimónias em
honra do sábado. Enfim, era judeu no seu coração e “[...] quando, nas pregações, ouvia
falar em coisas da lei velha, levava nisso muito prazer e contentamento e lhe vinham as
lágrimas aos olhos, mas logo aí as limpava por não ser sentido [...]”137
. Quem o ensinou
foi uma tia materna, Isabel Rodrigues, residente em Castela.
Depois desta confissão, Tomás Gomes começou a delatar outros cristãos-novos, a
maior parte de Vila Nova de Portimão e já presos em Lisboa. A excepção foi Maria
Leitão, esposa de Rodrigo Álvares, mercador com quem mantinha negócios. Num
sábado, indo visitá-lo, encontrou a casa limpa e Maria Leitão vestida de roupa lavada.
Ela ofereceu-lhe uma fatia de marmelada: «Olhai que hoje é que é dia de sábado santo e
bem-aventurado, que o Senhor toda a semana trabalhou e em tal dia como este
descansou e repousou, por isso consolai vossa alma»138
. Maria Leitão foi presa nos
cárceres de Lisboa a 10 de Dezembro de 1560, mas nunca chegou a confessar qualquer
prática judaizante. A prova foi considerada insuficiente e ela saiu com uma abjuração de
leve e penas e penitências espirituais139
.
Mas Tomás Gomes também comprometeu quem lhe era mais próximo – a esposa
Bartolesa Fernandes. Nas primeiras sessões, tentou afastar a atenção dos inquisidores,
notando que só fazia as ditas cerimónias fora de casa. Porém, a 16 de Novembro,
acabou por denunciá-la, tal como às filhas Branca e Leonor Tomás140
.
137
Cf. Idem, fl. 17. 138
Cf. Idem, fls. 25v-26. 139
Cf. ANTT, IL, proc. 3839. 140
Bartolesa Fernandes e a enteada Leonor Tomás (ou Leonor da Horta, como aparece mencionada no
processo) foram presas a 2 de Abril de 1561 nos cárceres de Lisboa (Cf. ANTT, IL, procs. 12747 e
12346). Desconhecemos qualquer processo movido contra Branca Tomás. Ela e Leonor eram filhas do
primeiro casamento de Tomás Gomes, com Clara Gomes. Segundo refere na sua sessão de genealogia,
Tomás Gomes matara a sua primeira esposa, razão pela qual estava homiziado em Silves havia 15 anos.
Antes, tinha vivido em Moura (Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fl. 6v).
46
Havia uma dúzia de anos, ele e a sua esposa tiveram uma oportunidade para sair do
reino. O seu irmão, Marcos Dias de Horta, e um mercador de Silves, Diogo Lopes,
convidaram o casal a acompanhá-los até à Flandres. Mas Tomás Gomes hesitou – como
iria partir, assim de repente, com tão pouca fazenda e duas filhas ainda pequenas?
Mesmo assim, Tomás e Bartolesa começaram a preparar a viagem. Alojaram-se numa
quinta em Estombar, junto com Diogo Lopes, Marcos Dias e as respectivas famílias, à
espera de uma embarcação que chegaria de Cádis. Na última hora, mudaram de ideias e
ninguém partiu141
.
A confissão de Tomás Gomes gerou mais uma vítima – Mestre Lopo, cirurgião e
mercador de Albufeira. Preso em Outubro de 1560, Mestre Lopo começou a confessar
no final do mês seguinte. Dois dias depois, na manhã de 28 de Novembro, o alcaide
encontrou-o enforcado no cárcere142
.
O testemunho de Tomás Gomes não se revelou tão fértil em informações quanto o
Dr. Luís de Albuquerque desejava. O filão seria encontrado noutro sítio.
Em Lagos esperava-se pelo Messias
A 5 de Setembro de 1560, Duarte Álvares era preso. Figura de proa da sociedade
lacobrigense, estivera ao serviço de D. João de Meneses, capitão e governador de
Tânger. A 18 de Maio de 1545, participou no ataque a uma aldeia próxima de Alcácer
Quibir, serviço pelo qual recebeu o título de cavaleiro da Casa Real, confirmado por
carta régia de 1 de Setembro de 1552143
. Mas sobre Duarte Álvares pairava a sombra da
ascendência hebraica. Ele fora baptizado durante a conversão geral e casara com Isabel
d‟Orta, filha de um “baptizado em pé”, Mestre João144
.
A prisão de Duarte Álvares gerou grande consternação por toda a vila e o receio de
futuras prisões. Um dos seus filhos, Álvaro Rodrigues, tentou desmontar as acusações
que levaram o pai ao cárcere. As denúncias tinham partido dos irmãos João Álvares e
141
Cf. Idem, fls. 31-31v. 142
Cf. ANTT, IL, proc. 2180. 143
Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Privilégios, liv. 1, fls. 8-8v. 144
Diogo Lopes, filho de Duarte Álvares, teria afirmado que o avô, Mestre João, fora judeu até aos 36
anos e, então, convertera-se sinceramente ao cristianismo. Na hora da sua morte, dissera que morria como
cristão. Foi Garcia Ribeiro, cristão-novo de Lagos, quem testemunhou estas afirmações de Diogo Lopes.
Duarte Álvares, ao ser confrontado este depoimento, disse que não era verdade, que o seu sogro morrera a
pedir que lhe rezassem “os sete salmos em hebraico”. (Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 23v e 24v. Vide, em
anexo, pp. 262-265).
47
Diogo Lopes, não por um sincero zelo cristão, mas sim porque, 4 ou 5 anos antes, os
dois haviam tentado tomar ao pai uma propriedade junto ao mosteiro de São Francisco,
em Lagos, a qual fazia parte da herança materna, razão pela qual Duarte Álvares lançou
uma demanda contra os filhos. Em resposta, João Álvares e Diogo Lopes ameaçaram o
pai com uma denúncia ao Santo Ofício. Das ameaças partiram para a acção e o resultado
foi a prisão de Duarte Álvares. Já com o pai no cárcere, os dois teriam passado a
intimidar quem actuava em sua defesa: “[...] andam dizendo que a quem andar no
livramento do dito seu pai hão-de fazer outro tanto [...]”. Álvaro Rodrigues sentiu a sua
liberdade em risco. Antecipou-se e pediu “[...] que, para neste caso se poder fazer o que
seja justiça e serviço de Deus, haja por bem demandar que se não tome denunciação
dele suplicante e da dita sua mulher e filho [...]”145
.
Estas advertências não o livraram da prisão146
. Afinal, ele próprio fora denunciado
pelo irmão João Álvares. Álvaro Rodrigues tentara convencer o irmão a casar-se mas
este afirmava querer ser frade. Segundo João Álvares, “[...] o dito Álvaro Rodrigues lhe
respondera que a vida dos frades era de bargantes e ociosos porque se não atreviam a
manter mulher e filhos e que Deus não fizera outra ordem senão dos casados [...]”147
. As
denúncias prosseguiram. Noutra ocasião, Álvaro Rodrigues ter-lhe-ia dito que não
acreditava na existência do Inferno.
Estas acusações foram pronunciadas perante o vigário-geral a 13 de Julho de 1560,
na mesma sessão em que a mira do Santo Ofício se voltou para o patriarca da família.
Mas retomemos esse testemunho. João Álvares apresentou-se voluntariamente no
Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, em Vila Nova de Portimão. Acusou então o
pai de ser crente na Lei de Moisés e de tentar incutir-lhe essa mesma fé, tal como aos
seus irmãos: “[...] que não há outra lei nem verdade senão a dos judeus e sua lei que
Deus deu a Moisés em o Monte Sinai, a qual mandou que se escrevessem nos corações
e em papéis, a trouxessem nas mãos e a ostentassem nas ombreiras das suas portas [...]”.
Duarte Álvares não se imiscuía em afirmar o seu afastamento da fé católica, nem que
Jesus Cristo não era o filho de Deus ou o Messias e os cristãos não passavam de gentios
145
Cf. ANTT, IL, proc. 1583, fl. 1. Vide, em anexo, pp. 258-259. 146
Preso em 1560, Álvaro Rodrigues saiu logo no auto celebrado em Fevereiro do ano seguinte, poucos
meses após ter dado entrada nos cárceres de Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 1583). Posteriormente, partiu com
a família para a Flandres. Por volta de 1579, o seu filho, Duarte Álvares, regressou a Faro por um breve
período. Planeava casar-se com Bárbara Filipe mas o enlace nunca chegou a se concretizar (Cf. ANTT, IL,
proc. 16695, fls. 93-94). 147
Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 16v-17. Vide, em anexo, pp. 246-248.
48
“[...] porque criam em deuses de pedra e paus [...]”148
. João Álvares contou que o pai
teria mesmo facilitado a fuga para a Turquia de um cristão-novo preso em Lagos,
Duarte da Costa, ao oferecer-se como seu fiador. Interpelado pelos credores do fugitivo,
o pai dizia merecer o Paraíso por tão boa obra.
João Álvares e o irmão Diogo Lopes não tinham aceitado passivamente o ensino do
pai. Porém, Duarte Álvares conseguira ensinar os outros dois filhos, Álvaro e Vicente
Rodrigues. Este último fora para a Turquia, onde se tornou judeu público. Na sua
confissão, Duarte Álvares completou a história. Vicente Rodrigues e João Álvares tinham
acompanhado a embaixada em França de D. Francisco de Noronha, 2º conde de Linhares.
Porém, João Álvares amancebou-se com uma cozinheira e os dois irmãos foram expulsos
da casa do conde. Então, eles separaram-se e Vicente Rodrigues seguiu para a Turquia.
Duarte Álvares contou que o filho ainda lhe escreveu algumas cartas, pedindo o seu
quinhão da herança materna, às quais nunca respondeu por temer pela sua reputação149
.
Diogo Lopes apresentou-se perante o vigário-geral cinco dias após o irmão. Numa
ocasião, ao passar pela cruz do Mosteiro de São Francisco, o pai bradara: «Malditos
sejam os bem-dizentes e em ti crentes». Ainda para mais, Duarte Álvares, “[...] sendo
um homem muito velho, até ora está amancebado com mulheres [...]”, razão pela qual
era repreendido pelos filhos. Dizia publicamente, e até perante religiosos, que “[...] o
ajuntamento carnal de solteiro com solteira não fora pecado [...]”150
.
Duarte Álvares não resistiu muito à pressão dos inquisidores. A 28 de Setembro, logo
na primeira sessão, começou a confessar. Havia 10 a 15 anos que acreditava na salvação
na “lei dos judeus” e que Jesus Cristo não era o verdadeiro Messias. Na sessão seguinte,
alargou em mais 5 anos esse período de “apartamento” da fé cristã e mencionou um
mercador de Lagos, Diogo Álvares, que lhe ensinara a oração do Sema Israel, a qual ele
passou a rezar muitas vezes, ao acordar e ao deitar. Também rezava os “sete salmos de
penitência”, em linguagem e sem o Gloria Patri, os quais aprendera de cor na
juventude151
. Duarte Álvares prosseguiu com a confissão e denunciou vários cristãos-
novos de Lagos. O resultado foi uma pena leve – cárcere ao arbítrio dos inquisidores.
148
Cf. Idem, fls. 15-15v. 149
Cf. Idem, fls. 17v e 35. 150
Cf. Idem, fls. 16v-19v. 151
Estes salmos aparecem também referidos como os “sete salmos de David” ou os “sete salmos
penitenciais”. São os salmos 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142. Eram rezados sem o Gloria Patri final.
(Cf. Herman P. Salomon, Portrait of a New Christian Fernão Álvares Melo (1569-1632), Paris,
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1982, p. 65).
49
Mas Duarte Álvares acabaria por regressar aos calabouços da Inquisição de Lisboa
e, então, o desfecho foi diferente. Corriam rumores sobre a falsidade da sua confissão.
Segundo Frei Baltazar de Braga, guardião do convento da Ordem da Piedade, de Lagos,
o arrependimento de Duarte Álvares não fora sincero. Ouviu-o dizer que “[...] se podia
salvar na sua lei ou na lei em que vivesse e que, estando el-rei à mesa com muitos
fidalgos e letrados, um pregador, grande letrado, que estava na dita mesa, sustentara
isto, que era verdade por muitas autoridades, e que todos se calaram e lhe não foi
ninguém à mão [...]”152
.
A 14 de Setembro de 1564, Duarte Álvares estava de novo no cárcere. Nas sessões
de interrogatório, negou todas as acusações e reafirmou que, desde a saída da prisão,
não voltara a fazer nada contra a fé cristã153
. No auto de 1 de Julho de 1565, foi relaxado
à justiça secular.
Mas regressemos ao seu primeiro processo. Este marca o início de uma vaga de
prisões em Lagos que se prolongaria pelos três anos seguintes, conduzindo aos
calabouços de Lisboa cerca de meia centena de cristãos-novos.
O Messias ainda não havia chegado e a sua vinda estava para breve – foi, talvez, a
premissa mais ouvida entre os lacobrigenses presos durante esta vaga. A esperança
messiânica fazia-se sentir pelas ruas da vila em meados do século XVI, o que reflectia
uma tendência patente em toda a Península Ibérica. Baseando-se nas profecias do livro de
Daniel, havia quem previsse a vinda próxima do Messias154
. Pedro Abravanel calculara-a
para o período entre 1490 e 1573. Proliferavam as profecias e a maioria repetia duas
ideias fundamentais: a chegada do Messias que reuniria todos os judeus e cristãos-novos
para o regresso a uma Jerusalém reconstruída e a destruição da Cristandade, ateada pelo
ataque turco155
. Olhemos para o Algarve quinhentista, constantemente ameaçado por
ataques corsários e, em particular, pela ameaça otomana. A proximidade do Norte de
África e a circulação de homens e informações tornavam a região num terreno fértil à
disseminação das teorias messiânicas. E os processos demonstram-no.
João Álvares lançou alguns laivos sobre o assunto. Ele ouvira o pai referir que
“[...] Portugal queria dizer Porto de Geulla, que queria dizer Porto de Salvação,
152
Cf. ANTT, IL, proc. 1519, fls. 10-10v. 153
Cf. Idem, fl. 33v. 154
Cf. Dn. 9, 24-27. 155
Cf. Ferro Tavares, Los Judíos..., pp. 242-255.
50
porque daqui de Portugal havia de começar a Redenção de Israel [...]”156
. Em Lagos,
falava-se de um homem de Setúbal que se dizia o Messias. João Álvares não
acreditava: «Como podia ser que um sapateiro fosse o filho de Deus que havia de
redimir e salvar o mundo?»157
.
Duarte Álvares estava tão convicto na vinda próxima do Messias que, cerca de 40 anos
antes, comprara uns borzeguins na Ilha da Madeira para calçar nesse tão almejado dia. Tal
como ele, Garcia Ribeiro também duvidava que Jesus Cristo fosse o verdadeiro Messias:
«Como havia de ser Deus filho de uma costureira que era casada com José?»158
.
Garcia Ribeiro foi preso em Outubro de 1560. Ao contrário de Duarte Álvares, só
cedeu à pressão dos inquisidores meses depois. Vicente Fernandes, mercador de Lagos,
trouxera de Fez uma Bíblia traduzida em castelhano que mostrou a Garcia Ribeiro e ao
pai, Gabriel Ribeiro159
. Garcia possuía uma outra Bíblia, em latim, pela qual costumava
ler na presença de outros cristãos-novos que frequentavam a sua casa. Era o caso de
Jordão Vaz, tintureiro de Campo de Ourique que, depois de ouvi-lo ler algumas
profecias, falou-lhe de um sapateiro de Trancoso que também profetizara a vinda do
Messias160
. Tratava-se de Gonçalo Eanes, o Bandarra161
.
Sessões mais tarde, Garcia Ribeiro confessou que, nessas leituras, estavam
igualmente presentes a sua mulher, Isabel Gomes, e um primo, Duarte Rodrigues. Os
156
Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 15v. “Guella” será uma corruptela de “Gueulá”, em hebraico redenção,
salvação. (Cf. Dan Cohn-Sherbok, “Gueulá”, Breve Enciclopedia del Judaismo, Madrid, Ediciones Istmo,
2003, p. 105). 157
Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 15v. O “messias” era Luís Dias, alfaiate, natural de Viana do Alentejo e
residente em Setúbal, relaxado à justiça secular em 1541 ou 1542. A confusão de João Álvares, aludindo a
Luís Dias como sendo “sapateiro”, é repetida num excerto de Centinela contra Iudios, panfleto de Frei
Francisco de Torrejoncillo. Este refere a condenação de Luís Dias e de David Ha-Reubeni, ambos
sapateiros, no auto-de-fé de 1542, em Évora. Trata-se de um duplo equívoco. Primeiro, Reubeni não foi
condenado em 1542. Antes dessa data, tinha sido queimado às mãos da Inquisição de Llerena. Também é
duvidosa a condenação de Luís Dias pelo tribunal de Évora nesse mesmo ano. Elias Lipiner considera mais
provável que o alfaiate tenha sido relaxado pela Inquisição de Lisboa (à jurisdição da qual pertencia Setúbal)
no auto de 23 de Outubro de 1541. O segundo equívoco é que nem Reubeni, nem Luís Dias eram sapateiros.
De facto, Reubeni ficou conhecido como o “judeu do sapato”, mas a origem de tal alcunha não se vinculava
com qualquer tipo de mester exercido. Segundo Lipiner, a alcunha proviria, provavelmente, da corruptela
popular de Sefat (Safed, centro cabalista da antiga Palestina) ou de Sabath. (Cf. Elias Lipiner, O Sapateiro
de Trancoso e o Alfaiate de Setúbal, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1993, pp. 311-319, 335 (n. 32)). 158
São os filhos de Duarte Álvares que o denunciam. (Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 17v-18). 159
Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fl. 47. Seria, possivelmente, uma Bíblia de Ferrara. 160
Cf. Idem, fls. 22-22v. 161
Vide Maria José Ferro Tavares, “Características do messianismo judaico em Portugal”, Estudos
Orientais, vol. II, 1991, pp. 245-266; Elias Lipiner, O Sapateiro de Trancoso...; Idem, Gonçalo Anes
Bandarra e os Cristãos-Novos, Trancoso / Lisboa, Câmara Municipal de Trancoso / Associação Portuguesa
de Estudos Judaicos, 1996.
51
três chegaram a planear a saída do reino, rumo a Itália. Porém, Duarte Rodrigues acabou
por se arrepender, obrigando a uma mudança de planos.162
A Bíblia de Garcia Ribeiro circulava por outras mãos. Ele contou que, por uma ou
duas vezes, a emprestara ao Licenciado Francisco Nunes. Em 1559, quando estava a
contas com a justiça por “[...] certo caso que lhe aconteceu em Lagos [...]”, Garcia
Ribeiro escondeu-se na residência de Duarte Álvares e levou consigo a dita Bíblia.
Naquela casa, frequentada por alguns dos mais notáveis cristãos-novos da vila, havia
quem se reunisse para ouvir as leituras163
. Além da Bíblia, escutavam-se também umas
trovas em linguagem que diziam ser de Santo Isidro, “[...] nas quais trovas o dito Duarte
Álvares representava esperança e dava a entender que não era vindo o Messias e que
havia ainda de vir [...]”164
. Henrique Nunes, um dos participantes nessas reuniões, ainda
se lembrava do excerto final de uma dessas trovas: «Vi um que bradava pela Santa
Virgem Maria e outro que bradava por Adonai Sabaot»165
.
Além de Henrique Nunes, integravam o grupo Mestre João, cirurgião, casado com
Filipa Soares166
; Diogo Gonçalves, sapateiro; Diogo Martins e Diogo Pires, ambos
mercadores; Duarte Fernandes Soeiro, tosador; o Dr. Fernão Paulo e o irmão Rodrigo
Pinto; Francisco Afonso, alfaiate; o Dr. Francisco Nunes, jurista; e João Fernandes,
escrivão da portagem. Foram todos presos pela Inquisição de Lisboa, a maioria durante
o mês de Dezembro de 1560167
. No caminho para Lisboa, surgiu a oportunidade de
concertarem as confissões. Diogo Pires teria sugerido que ninguém confessasse até que
se soubesse quem os havia denunciado168
. Era a voz da experiência. Em 1544, Diogo
fora preso pela Inquisição de Évora e saíra do cárcere na sequência do perdão geral de
1547169
. Mas nem todos partilhavam a mesma opinião. Henrique Nunes referiu que,
162
Esta denúncia levou às prisões de Duarte Rodrigues e Isabel Gomes. (Cf. ANTT, IL, procs. 3118 e 12762). 163
Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 26-28. 164
Cf. ANTT, IL, proc. 12811, fl. 8v. 165
Cf. ANTT, IL, proc. 2928, fls. 12-12v. Sabaot ou Cebaoth é um dos 72 nomes de Deus. Estas trovas
corresponderiam às Coplas de frei Pedro de Frias, publicadas em 1520. Trata-se da explicação, em rima,
das alegadas profecias de Santo Isidoro de Sevilha, nas quais era profetizada a vinda de um Rei Encoberto
que venceria o Império Otomano e estabeleceria uma Monarquia Universal. A obra tornou-se muito
popular não só em Espanha, como também em Portugal, influenciando as trovas de Gonçalo Eanes, o
Bandarra (Cf. José van den Besselaar, “As Trovas do Bandarra”, Revista ICALP, vol. 4, Março 1986, p.
15; J. Lúcio de Azevedo, A evolução do Sebastianismo, Lisboa, Editorial Presença, 1984, pp. 17-19). 166
Filipa Soares era a filha do bacharel Manuel Pais, denunciada por Grácia Mendes (Cf. ANTT, IL,
proc. 7222). 167
Henrique Nunes, Mestre João, Diogo Martins, Diogo Pires, Fernão Paulo, Rodrigo Pinto, Francisco
Afonso, Francisco Nunes e João Fernandes entraram todos no cárcere de Lisboa a 10 de Dezembro de
1560. Duarte Fernandes Soeiro e Diogo Gonçalves só foram presos no ano seguinte. 168
Cf. ANTT, IL, proc. 5762, fl. 19v. 169
Cf. ANTT, IE, proc. 9432. Este processo está em mau estado e inacessível à consulta. Na prisão,
Diogo Pires apresentou uma série de contraditas não só em seu nome, mas também em defesa da sua mãe,
52
quando estavam todos presos em Lagos, ouvira o Dr. Fernão Paulo dizer a Mestre João
que deveriam confessar170
. De facto, todos acabaram por fazê-lo e os seus testemunhos
são esclarecedores sobre a forma como se processavam os tais ajuntamentos.
As reuniões não se limitavam aos lares de Duarte Álvares e Garcia Ribeiro. O
Dr. Fernão Paulo, Diogo Fernandes Soeiro e Mestre João também recebiam nas suas
casas. Muitos reuniam-se na casa de um outro mercador, Nuno Martins, na Praça do
Poço, com o pretexto de irem jogar ao trunfo. Sebastião Fernandes, mercador de
Lisboa, esteve ali hospedado. Ele tinha um livro de profecias, em português, pelo qual
lia em voz alta171
. O Dr. Francisco Nunes, que também o chegou a ouvir, referiu que
se tratava de “[...] um livrinho de quarto de papel e lhe pareceu que não era
encadernado, escrito de letra de mão e lia por ele orações judaicas que estavam
escritas em letra portuguesa [...]”172
. Era um livro em trovas que tratava “[...] dos
milagres que Nosso Senhor fizera aos filhos de Israel quando os tirara do Egipto e do
jejum do quipur e quão aceite era e também declarava algumas profecias acerca do
Messias dizendo que não era ainda vindo [...]”, acrescentou Diogo Martins, filho de
Nuno Martins173
. Um pouco diferente é a versão de Mestre João. Na casa de Duarte
Álvares, ele ouviu Sebastião Fernandes ler um livro “[...] em latim ou linguagem
estrangeira [...]”174
. Que livro seria esse? Seria um Sidur manuscrito? Ou um livro de
trovas de teor messiânico? Estariam as testemunhas a falar de livros diferentes? As
fontes não o esclarecem.
A fé na vinda próxima do Messias era fomentada por notícias que chegavam do
estrangeiro. Mestre João ouvira Diogo Fernandes Soeiro contar que, em Sevilha, onde
fora vender sardinha, tinham sido presos muitos luteranos pela Inquisição, os quais
saíram num auto-de-fé em que esteve presente a Marquesa de Aiamonte175
. O
Luteranismo anunciava a chegada em breve do Messias. Sobre essas notícias, Francisco
Fernandes, ourives, teria dito que as divisões no Cristianismo eram sinais de decadência
e anúncios de um tempo novo. Ora, no final da década de 50, a ofensiva contra o
Maria Dias, então também presa na Inquisição de Évora. O conteúdo de alguns desses artigos encontra-se
patente numa carta assinada pelos inquisidores de Évora e destinada ao Lic. Jorge Rodrigues, inquisidor
no bispado do Porto, para que se fizessem diligências nessa cidade sobre os ditos artigos. Diogo Pires era
natural do Porto. (Cf. ANTT, IE, mç. 36, doc. não numerado. Vide, em anexo, pp. 235-237). 170
Cf. ANTT, IL, proc. 2928, fls. 13-13v. 171
Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 30v-32. 172
Cf. ANTT, IL, proc. 2601, fl. 24. 173
Cf. ANTT, IL, proc. 4244, fls. 55 e 60. 174
Cf. ANTT, IL, proc. 12811, fls. 9v e 11v. 175
Cf. Idem, fls. 14v-15.
53
Protestantismo ganhou força em Castela. As consequências foram sentidas em Portugal
e, nos anos 60 e 70, aumentou o número de prisões por Luteranismo, embora, numa
perspectiva geral, os valores continuassem a ser pouco significativos176
.
Os processos revelam uma certa permeabilidade à doutrina protestante por parte
de alguns cristãos-novos de Lagos. Numa loja de vinhos na Rua do Espírito Santo,
Diogo Pires ouviu os filhos de Duarte Álvares, Diogo Lopes e João Álvares, falarem
de um clérigo solicitante. Diziam que tinha sido por coisas assim que a “seita
luterana” se levantara no mundo e, por isso, não deveria haver confissões, de modo a
evitar-se tais abusos177
.
Os processos dos “companheiros de leituras” de Duarte Álvares provocaram outras
detenções em Lagos. Os primeiros alvos foram os parentes mais próximos. As denúncias
multiplicaram-se. Comunicavam entre si o tempo dos jejuns, reuniam-se para celebrá-los,
guardavam os sábados e as cerimónias de sexta-feira à noite, celebravam a Páscoa do Pão
Ázimo. Resultado: 54 cristãos-novos presos em Lagos entre 1560 e 1564.
Ajuntamentos em Tavira
As denúncias de Grácia Mendes chegaram a Tavira. Mas só 4 anos depois, a cidade se
debateria com a maior vaga de prisões até então ocorrida no Algarve. E a origem foi outra.
Em 1562, o Licenciado António de Gouveia, que entretanto substituíra Luís de
Albuquerque como vigário-geral, ouviu o seguinte testemunho de Isabel de Orta, cristã-
nova, casada com António de Oliva, feitor da alfândega de Tavira e cavaleiro da Casa Real.
“[...] Haverá quatro anos, estando ela, testemunha, doente, viera à sua casa, visitá-la
e vê-la, uma Beatriz Fernandes, cristã-nova, sogra de Mestre João, cirurgião,
outrossim cristão-novo. A qual Beatriz Fernandes vinha muitas vezes à casa dela,
testemunha, e por em o dito tempo ela, testemunha, estar doente e haver um santo
jubileu, se começou a agastar e dizer que era mofina estar doente naquele tempo
por o não poder tomar e a dita Beatriz Fernandes lhe dissera: «Calai-vos, senhora,
não vos agasteis que o Papa, homem de carne, não pode dar estes jubileus». E ela,
testemunha, a repreendeu e disse que não dissesse tal, que pecava mortalmente, que
Nosso Senhor dera seu poder a São Pedro e, na terra, a todos os seus sucessores. E
a dita Beatriz Fernandes lhe respondera que São Pedro já morrera e que homem de
carne não podia conceder aquelas indulgências [...]”178
.
176
Um total de 21 processos por luteranismo para as décadas de 60 e 70. (Cf. Paulo Drumond Braga, “Os
seguidores de Lutero no Portugal de Quinhentos”, Congresso Internacional Damião de Góis na Europa
do Renascimento. Actas, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia / Universidade Católica
Portuguesa, 2003, p. 207). 177
Cf. ANTT, IL, proc. 12997, fls. 66v-67. 178
Cf. ANTT, IL, proc. 8981, fls. 3v-4.
54
A 9 de Agosto de 1562, Beatriz Fernandes era presa nos cárceres da Inquisição de
Lisboa. Tinha cerca de 66 anos, era viúva e vivia em Tavira, na casa do genro. Logo na
primeira sessão, confessou ser judaizante. Havia cerca de 15 anos, a tia Catarina
Fernandes, que entretanto tinha partido para Castela, ensinara-a a guardar o jejum do
Quipur. Beatriz Fernandes retribuiu a denúncia a Isabel de Orta. A mulher de António
de Oliva pedira-lhe ajuda para guardar os três dias do jejum da Rainha Ester, mas ela
recusou, dizendo que não sabia fazer esse jejum. Passados alguns dias, Isabel de Orta
voltou à sua casa e contou-lhe: «Vós não me quisestes ajudar a fazer os jejuns, o que
vos roguei, pois minha criada, Bárbara de Abreu, e eu os fizemos»179
. Apesar desta
denúncia, não encontrámos qualquer registo de um processo contra Isabel de Orta.
Gaspar Fernandes, irmão de Beatriz, não teve a mesma sorte e acabou por ser preso
pela Inquisição de Évora. Ferreiro e residente em Tavira, era ele quem a avisava do dia
do jejum do Quipur. Nas primeiras sessões, Gaspar Fernandes manteve-se negativo.
Mas as denúncias contra si continuavam a acumular-se. Acabou relaxado à justiça
secular no auto-de-fé de 11 de Junho de 1564180
.
Este processo teve um forte impacto em Tavira. Quando Gaspar Fernandes começou
a confessar, denunciou vários cristãos-novos da cidade que, tal como ele, aguardavam
expectantes a vinda próxima do Messias. Ao irmão, António Vaz, confidenciava que
“[...] estas guerra e movimentos dos luteros que havia pelo mundo lhe parecia que eram
sinais da vinda do Messias [...]”181
. E ele sabia bem do que falava. Os negócios
levavam-no para lá da Península. Por volta de 1550, estava na Flandres, na companhia
de um outro mercador de Tavira, Duarte Fernandes, o Zorro. Os dois pousavam na casa
de um castelhano, Pedro de Nojosa, em Middelburg, onde praticavam os jejuns judaicos
e o ouviam ler a Bíblia em castelhano182
.
Regressado a Tavira, Gaspar Fernandes manteve as mesmas práticas. Na casa do
rendeiro Rui Dias, na Rua da Mouraria, ele e outros homens escutavam a leitura de
passagens da Bíblia que acalentavam esse ânimo messiânico. Era um filho do anfitrião,
Vasco Rodrigues, quem lia em latim e traduzia para português o texto sagrado183
. A
história da alegada origem dessa Bíblia é contada por Gaspar Lopes, borracheiro natural
179
Cf. Idem, fl. 22v. 180
Cf. ANTT, IL, proc. 2486. 181
Cf. Idem, fls. 57-57v. 182
Cf. ANTT, IL, proc. 12752, fls. 11v-12. 183
Cf. ANTT, IL, proc. 13039, fls. 26-26v. Participavam nestes ajuntamentos, na casa de Rui Dias, os
referidos Gaspar Fernandes e António Vaz, além de Gaspar Lopes (proc. 12848) , Diogo Lopes Sardinha
(que foi para Tânger antes da vaga de prisões), Baltazar Dias (proc. 5081) e Fernão Nunes (proc. 5764).
55
de Moura, de onde partiu por volta de 1548 com a intenção de seguir para Itália, mas
que acabou por desistir e fixar-se em Tavira. Teria sido ele próprio a encontrá-la nos
alegretes de uma horta, junto do mosteiro de São Francisco: “[...] um livro encadernado
velho, em pergaminho, o qual era em latim, de letra de forma [...]”. Julgando que o livro
teria algum proveito para o seu filho, Francisco Lopes, então a estudar em Coimbra,
levou-o para casa. Sem saber do que se tratava, mostrou-o a Vasco Rodrigues que logo
o identificou. A Bíblia foi, assim, parar à casa de Rui Dias. Gaspar Lopes contou o
sucedido a Gaspar Fernandes e a António Vaz que passaram a frequentar a casa do
rendeiro, onde ouviam as leituras de Vasco Rodrigues184
.
Na casa Gaspar Lopes, junto à Porta de São Brás, também ocorriam reuniões, nas
quais o seu filho, Francisco Lopes, lia de uma Bíblia que lhe fora oferecida por um
fidalgo, Sancho Vasconcelos185
. Era o próprio pai quem o incitava a ler algumas
passagens do Antigo Testamento, em particular as profecias de Jeremias e de Isaías. Ao
escutá-las, Gaspar Lopes afirmava: «Vês, ainda isto não está cumprido, querem-nos
cobrir o céu com uma joeira»186
.
Só no dia 28 de Junho de 1563, entraram nos cárceres de Lisboa, pelo menos, 14
cristãos-novos de Tavira. O receio de mais prisões fazia-se sentir por toda a cidade. Estêvão
Dias, filho de Rui Dias, ao falar sobre a prisão do pai com um outro tratante de Tavira,
Simão Dias, ouvira-o dizer que, se fosse denunciado, “[...] soubessem certo todos os
cristãos-novos de Tavira que ele os havia de acusar a todos, ainda que fossem livres [...]”187
.
Alguns optavam pela fuga. Quando, a 19 de Abril de 1564, foi dada ordem de prisão
a 19 cristãos-novos de Tavira, alguns já não se encontravam na cidade: Simão Lopes,
filho de João Lopes Cristino, estava em Cabo Verde, e Salvador Nunes, irmão de
Fernão Nunes, entretanto preso pelo Santo Ofício, fugira sem se saber para onde188
.
Simão Lopes ainda regressou a Portugal e, a 25 de Setembro desse ano, apresentou-se
perante a Inquisição de Lisboa, o que lhe valeu a absolvição dois meses depois189
.
Manuel Mendes, que também constava da dita lista, partira para Tânger logo após as
184
Cf. ANTT, IL, proc. 12848, fls. 28-28v. 185
Também Baltazar Dias, filho de Mestre João, refere Sancho de Vasconcelos, cristão-velho, a quem
costumava ouvir ler as Sagradas Escrituras, nomeadamente algumas profecias sobre a vinda do Messias.
(Cf. ANTT, IL, proc. 5081, fls. 16-16v). 186
Cf. ANTT, IL, proc. 2511, fl. 6v. 187
Cf. ANTT, IL, proc. 364, fls. 12-12v. 188
Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 2-2v. Segundo a mãe, Salvador Nunes foi para o Peru. (Cf. ANTT, IL,
proc. 7751, fl. 13). 189
Cf. ANTT, IL, proc. 4511.
56
primeiras prisões e tentou ingressar no corpo militar da praça marroquina190
. Porém, no
momento da dita ordem de prisão, já havia regressado a Tavira.
Marcos Gomes, mercador natural de Vila do Conde e residente em Tavira, também
foi preso na sequência da ordem de 19 de Abril de 1564. Ele acreditava que a vinda do
Messias estaria para breve. Vasco Rodrigues falara-lhe de um livro que vira nas mãos
do escrivão dos órfãos de Tavira, Rodrigo de Oliveira, o qual tratava dos sinais que
indiciariam a sua chegada: “[...] que Deus havia de tirar os nove tribos e meia que
estavam detrás de uns montes e lhes havia de abrir o Mar Vermelho por sete carreiras
para os passar [...]”. Era uma profecia do livro de Daniel, segundo ouviu dizer191
. João
Lopes Cristino confidenciara-lhe que vira “um juízo” vindo da Flandres anunciando
para aquele ano de 1564 um perdão do Papa aos cristãos-novos192
. Numa carta do irmão
João Dias, Marcos Gomes lera que a Inglaterra também “estava luterana”193
. A relação
da vinda próxima do Messias com os movimentos da reforma protestante encontrava
eco entre os cristãos-novos de Tavira, tal como acontecera em Lagos.
Os inquisidores consideraram Marcos Gomes diminuto e, no auto de 1 de Julho de
1565, foi relaxado à justiça secular. A mesma sorte teve João Lopes Cristino, outro dos
participantes nos ajuntamentos na casa de Rui Dias. Preso antes de Marcos Gomes, a 7
de Julho de 1563, logo no dia em que entrou no cárcere, João Lopes confessou que
mantinha práticas judaizantes – não trabalhava aos sábados, guardava o jejum do
Quipur e alguns dos jejuns pequenos, às segundas e quintas-feiras – mas sem intenção
de judeu. Nas sessões seguintes, manteve a contradição e só muito depois admitiu a fé
na Lei de Moisés. Porém, os inquisidores consideraram a confissão insuficiente. Ele
tentara desviar a atenção do tribunal dos seus parentes mais próximos e só na última
sessão, depois de declarado herege convicto e relaxado à justiça secular, é que
denunciou os filhos e admitiu práticas judaizantes no cárcere194
. O seu sacrifício foi em
190
Cf. ANTT, IL, proc. 10392, fls. 13-13v. 191
No livro de Daniel, não se encontra nenhuma profecia com essas referências. As nove tribos e meia é
uma alusão à divisão da terra da Canaã: “Moisés ordenou aos filhos de Israel: «Este é o país que dividireis
por sorteio, e que o Senhor mandou dar às nove tribos e meia.”(Nm. 34, 13). Quando às sete carreiras
abertas no Mar Vermelho, uma profecia no livro de Isaías refere: “O Senhor secará o braço de mar do
Egipto e levantará a mão contra o Eufrates; com o seu sopro ardente ferirá os seus sete canais, que se
passarão a pé enxuto. E haverá uma estrada para o resto do seu povo, que escapa da Assíria, tal como
existiu para Israel, no dia em que saiu da terra do Egipto” (Is. 11, 15-16) 192
Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 15v-16v. Vide, em anexo, pp. 270-271. 193
Cf. Idem, fls. 24-24v. 194
Cf. ANTT, IL, proc. 1156.
57
vão. Cinco dos seus filhos apresentaram-se voluntariamente perante o Santo Ofício e
denunciaram a mãe, Mor Dias, que também acabou presa195
.
O que aconteceu à família de João Lopes Cristino repetiu-se entre os parentes dos
outros presos. Muitos optaram pela apresentação voluntária e conseguiram uma pena
leve. A proximidade familiar não os salvaguardava da denúncia, antes pelo contrário.
Em 1564, isso já seria senso comum entre os cristãos-novos de Tavira e as
apresentações multiplicaram-se. Gonçalo Tojo apresentou-se no mesmo dia em que a
mulher, Isabel Vieira, entrou nos cárceres de Lisboa. Não era só o seu testemunho que
ele temia. Gonçalo Tojo mantinha relações próximas com muitos cristãos-novos já
presos: era cunhado de Mestre João, fora sócio de João Lopes Cristino, partilhara a
renda da louça com Rui Dias196
. Também na sequência da prisão de Violante Rodrigues,
que entrou nos cárceres de Lisboa a 2 de Maio de 1564, apresentaram-se, ainda no
decorrer desse mês, o marido, Mem Rodrigues, os irmãos Mor e Gines Serrão, e a tia
Mor Serrão197
. Todos sabiam que dificilmente sairiam incólumes da confissão de
Violante. Os seus processos formam, assim, um círculo fechado de denúncias, não
implicando ninguém além do núcleo familiar.
Novas de Além-Mar
Por volta de 1557, um mercador vindo Arzila, Manuel Franco, anunciava em Tavira
“[...] que havia de vir um homem que havia de trazer muito dinheiro e havia de igualar
uns e outros e que os pobres que os havia de fazer ricos [...]”198
. Enquanto esperavam
por ele, os cristãos-novos deveriam jejuar todos os dias. Esteve na cidade durante 7 ou 8
dias. Quem o conta é Diogo Rodrigues, o Verdugo, natural de Badajoz mas então a
residir em Tavira. Ele confessou aos inquisidores que, induzido pelo que ouvira, fez 5
ou 6 jejuns no período de 2 semanas.
A passagem de Manuel Franco por Tavira foi motivo de especulação nos tempos
que se seguiram. Quem seria o homem que ele anunciava? Diz Diogo Rodrigues:
“[...] Depois de ido o dito João (sic) Franco para fora, estando eles praticando que
homem podia ser aquele e que não podia ser mercador tão rico que trouxesse tanto
195
Cf. ANTT, IL, procs. 3886, 4511, 5900, 10884 e 12175. 196
Cf. ANTT, IL, proc. 7773. 197
Cf. ANTT, IL, procs. 2035, 2859, 7310, 10883 e 12184. Violante Rodrigues era casada com Francisco
Fernandes, sobrinho de Gaspar Fernandes. 198
Cf. ANTT, IL, proc. 168, fl. 14v.
58
dinheiro, disseram os outros todos que não podia ser este homem senão o Messias
por que os judeus esperam [...]”199
.
Um homem de Arzila anunciava a vinda do Messias. Encontramos nos processos
inquisitoriais mais referências a indivíduos oriundos do Norte de África que, no
Algarve, doutrinaram cristãos-novos. Briolanja Lopes, que viera de Mazagão, tê-lo-ia
feito. Ela pedia pelas portas, acedendo, assim, ao lar de muitos cristãos-novos. Diogo
Vaz, ferreiro, confessou que lhe dava esmola para ela guardar os jejuns das segundas e
quintas-feiras em sua vez200
.
A proximidade geográfica e os contactos comerciais mantidos entre os Algarves de
Aquém e Além-Mar propiciavam a circulação de gentes e de informação. Lopo da
Fonseca, natural de Tânger, vivia há cerca de 20 anos em Tavira quando foi preso, a 10 de
Maio de 1564. Antes, mercadejara pelas praças marroquinas. Segundo o seu testemunho,
Fez, onde ia comerciar, era muito frequentada por judeus. Eles diziam que os cristãos
andavam cegos e errados e que o Messias ainda estava para vir. Lopo da Fonseca não
esquecera o que vira e ouvira e, já em Tavira, continuou a falar sobre o que diziam os
judeus de Fez201
. Em 1562, regressou a Tânger, onde foi visitar o pai, Rafael da Fonseca,
e ali permaneceu mais de 2 meses, tempo em que celebrou o jejum do Quipur202
.
Por essa altura, alguns cristãos-novos algarvios eram soldados na praça: Bento
Mendes, de Vila Nova de Portimão; Henrique Lopes, de Loulé; Rui Gomes, de Faro; e
Simão Fernandes, de Tavira. Todos, excepto Henrique Lopes, regressaram a casa quando
Lourenço Pires de Távora assumiu o governo de Tânger, em 1564203
. Todos, excepto Rui
Gomes, foram processados pela Inquisição de Lisboa, acusados de judaísmo.
A 2 de Setembro de 1564, Henrique Lopes foi preso em Tânger. A acusação que o
levou aos cárceres nem sequer era contra ele, mas sim contra um homónimo, conclusão a
que os inquisidores só chegaram após a sua confissão, alegadamente204
. Henrique Lopes
acusou Bento Mendes de guardar o jejum do Quipur enquanto esteve na praça marroquina
e ele acabou por confirmá-lo. Em Tânger, tinha contacto com alguns judeus que o
iniciaram na fé judaica e com outros cristãos-novos judaizantes oriundos de Portugal.
199
Cf. Idem, fl. 15v. Neste excerto, é referido João Franco, mas, no restante documento, o nome que
aparece é Manuel Franco. Possivelmente, é um erro do escrivão. 200
Cf. ANTT, IL, proc. 3264, fl. 5. 201
Cf. ANTT, IL, proc. 2190, fls. 18-19. Vide, em anexo, pp. 273-275. 202
Cf. Idem, fls. 25-26. 203
Sobre a actuação de Lourenço Pires de Távora enquanto capitão-mor e governador de Tânger, vide
Maria Leonor Garcia da Cruz, Lourenço Pires de Távora e a Política Portuguesa no Norte de África no
Século de Quinhentos. Dissertação de mestrado em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1988, exemplar policopiado, pp. 404-490. 204
Cf. ANTT, IL, proc. 10392.
59
Maior impacto teve a denúncia de Henrique Lopes contra o seu companheiro de
armas, Simão Fernandes205
. Preso nos cárceres de Lisboa a 13 de Março de 1566, Simão
Fernandes deu início a uma segunda série de prisões em Tavira – 14 processos em 1566,
num momento em que a vaga iniciada em 1563 abrandava. Ele havia aderido à fé judaica
ainda antes de ir para Tânger. Por volta de 1560, Simão partira de uma aldeia perto de
Mértola para Tavira, com o objectivo de ir comprar coirama e outras mercadorias
necessárias ao seu ofício de sapateiro. Na cidade algarvia, esteve com o cunhado Diogo
Gomes, o seu primeiro mestre na Lei de Moisés. Passado pouco mais de um mês, partiu
para Tânger. Ali, tomou contacto com um mercador judeu, Jacob, que lhe completou a
doutrinação. Ao regressar de Tânger, passou a jejuar na companhia da mulher e dos
filhos206
. Estes foram as principais vítimas das suas denúncias. Em Abril de 1566,
entraram nos cárceres de Lisboa a sua mulher, Oriana Martins, e 6 dos seus filhos: Diogo
Fernandes, Henrique Fernandes, Catarina Fernandes, Filipa Henriques, Maria Mendes e
Leonor Gomes. A filha mais nova, Mor Dias, só seria presa meses depois, saindo
reconciliada após a revogação da denúncia da mãe. Tinha 12 anos de idade.
Um dos filhos de Simão, Henrique Fernandes, também estivera em Tânger. Na
praça africana, uma tendeira perguntara-lhe se era verdade que a Inquisição andava a
prender muita gente em Lagos e Tavira. Ele confirmou: «Lá só hajam suas almas, suas
palmas». Mas a tendeira advertiu-o: «Então calai-vos, filho, que bem sabem eles que
essa lei houvera de ser sempre boa»207
.
Todos os filhos de Simão Fernandes confessaram que tinham sido ensinados pelos pais.
Alguns referem um tio materno, Diogo Gomes, que, indo visitá-los a Tavira, levou um livro
impresso, em vernáculo, do qual lia passagens sobre a lei e os preceitos judaicos208
. Maria
Mendes identificou o livro – o Espelho de Consolação209
. Tratava-se, portanto, da obra de
Frei Juan de Dueñas, Espejo de consolation de tristes, uma das obras piedosas mais
populares do século XVI, cuja primeira parte foi publicada em 1540210
.
205
Cf. ANTT, IL, proc. 8549. 206
Cf. ANTT, IL, proc. 4527. 207
Cf. ANTT, IL, proc. 10397, fls. 7v-8. 208
Cf. ANTT, IL, proc. 13002, fl. 5v; proc. 10397, fl. 3. 209
Cf. ANTT, IL, proc. 2888, fl. 18. 210
A primeira parte é publicada em Burgos, em 1540 (Cf. Jose Simon Diaz, Bibliografia de la Literatura
Hispanica, tomo IX, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1971, p. 504). Espejo de
consolación consiste numa colectânea de narrativas bíblicas, a maioria oriundas do Antigo Testamento,
apresentadas enquanto lições de moral. Tal como outras obras com menções ao Antigo Testamento, o
Espejo de consolación era uma leitura corrente entre os judaizantes ibéricos. (Cf. Charles Amiel, “Les
cent voix de Quintanar”, Revue de l’histoire des religions, t. 218, n.º 4, 2001, pp. 524-534). Sobre Espejo
de consolación vide infra, parte II, cap. 4.
60
A matriarca da família, Oriana Martins, chegou aos cárceres da Inquisição de Lisboa
a 20 de Abril. Segundo a confissão dos filhos, ela costumava refugiar-se junto à
chaminé da casa em certos dias, sem comer nada, só desfiando as contas211
. As
denúncias de Oriana Martins tiveram consequências no interior da sua família,
conduzindo à prisão dos irmãos Simão Dias e Leonor Gomes, da mãe e do genro João
Rodrigues (casado com Maria Mendes). João Rodrigues era meirinho nas galés, em
Lisboa. Apesar de não residir permanentemente em Tavira, era muito próximo da
família da esposa. Ele contou que, numa ocasião, indo na companhia de Maria Mendes,
mãe da sua sogra, colher bolota a uma fazenda no termo de Tavira, encontraram no
caminho umas cruzes de pau. Maria Mendes riu-se: «Que dúzia de rachas se aí perdem
para o fogo». Quando chegaram à fazenda, João Rodrigues confrontou-a e ela
respondeu-lhe: «Filho, bem sei que minha filha, vossa sogra, me disse que eras tão
judeu como quantos havia em Berbéria e tão cerrado agora vos tenho em mais conta e
por mais temente a Deus e vos quero mais bem por vida de meus filhos»212
. No seu
processo, Maria Mendes admitiu essas palavras213
.
A comunicação da fé no seio familiar conduziu parte da família de Simão Fernandes
ao cárcere. É uma tendência que se repete nas outras prisões ocorridas em Tavira neste
período. As famílias começavam por ser decepadas – os elementos masculinos eram os
primeiros a chegar aos cárceres. A partir daí, as denúncias e as prisões corriam toda a
família. Esgotado esse filão, o número de detenções caía.
Após esta série de prisões em 1566, seguiu-se o vazio, não só em Tavira, como em
todo o Algarve. Entretanto, em 1564, D. João de Melo tinha sido substituído por D.
Jerónimo Osório à frente da diocese algarvia. Durante o resto da década de 60 e todo o
decénio seguinte, apenas encontramos o registo de três prisões na região: três irmãos
residentes em Tavira e com origens familiares no Alentejo214
.
Estes foram os últimos testemunhos de actividade do Santo Ofício no Algarve até
meados da década de 80. Entretanto, em 1577, D. Sebastião concedeu aos cristãos-
novos portugueses a isenção do confisco de bens durante um período de 10 anos e a
211
Cf. ANTT, IL, proc. 13002, fl. 6. 212
Cf. ANTT, IL, proc. 12818, fls. 21-21v. 213
Cf. ANTT, IL, proc. 2887, fl. 16v. 214
Eram eles: Simão Rodrigues, Gaspar Dias e André Rodrigues. Simão foi o primeiro a ser preso, ainda
em 1572. Ele denunciou os irmãos Gaspar Dias e André Rodrigues. Após ter sido reconciliado, Simão
teria aconselhado os irmãos a apresentarem-se perante a Inquisição de Évora. Tal não aconteceu e quer
Gaspar Dias, quer André Rodrigues deram entrada nos cárceres de Évora a 31 de Agosto de 1573. Gaspar
nunca chegaria a confessar e, no auto de 14 de Janeiro de 1574, foi reconciliado com cárcere ao arbítrio
dos inquisidores. (Cf. ANTT, IE, proc. 9465).
61
permissão de saída do reino. O contrato seria revogado dois anos depois. Mesmo assim,
nesse curto período, muitos foram os cristãos-novos que abandonaram Portugal, parte
rumo a Castela215
. Possivelmente, o mesmo movimento ter-se-ia registado no Algarve.
Mas os dados não são suficientes para determiná-lo, apenas alguns indícios, parcas
referências a um ou outro cristão-novo que se ausentou. A emigração seria mais intensa
anos depois, após uma nova investida do Santo Ofício na região.
2. 1585-1600: A VISITA INQUISITORIAL E UMA NOVA VAGA DE PRISÕES
O enfraquecimento da actuação inquisitorial propiciou alguma paz entre os cristãos-
novos do Algarve. Porém, outras tragédias abateram-se sobre a região. Em 1578, alguns
homens de armas algarvios acompanharam o rei D. Sebastião na malograda campanha
de Alcácer Quibir. Uns perderam a vida, outros ficaram cativos. Dois anos depois, a
peste grassava. Logo em 1579, quando o reino ainda estava “[...] cheio de mágoas com a
perda do ano atrás, em que acabara nos campos de África, El-Rei D. Sebastião com tudo
o melhor dele [...]”216
, como refere Frei Luís de Sousa, uma epidemia começou a roubar
vidas por todo o reino. Na cidade Tavira, o governador D. Duarte de Meneses decretou
estado de emergência sanitária e mandou fechar as portas da cidade para evitar a
disseminação217
. Em 1580, ter-se-iam tomado decisões semelhantes por toda a região.
Porém, antes das portas se fecharem, houve quem abandonasse as cidades em busca dos
ares mais salubres do campo.
A peste passou mas as suas consequências permaneceram. Cinco anos depois, um
outro flagelo abatia-se sobre os cristãos-novos.
215
Cf. Julio Caro Baroja, Los Judíos en la España Moderna y Contemporanea, tomo I, Madrid, Ediciones
Arion, 1961, pp. 342-343. 216
Cf. Frei Luís de Sousa, Terceira Parte da Historia de S. Domingos particular do Reino e Conquistas
de Portugal, 3ª ed., Lisboa, Typographia do Panorama, 1867, p. 485. 217
Cf. Calapez Corrêa, “A Expansão...”, Cadernos Históricos..., vol. II, pp. 45-51. Sobre a peste de 1580,
vide: Paulo Drumond Braga, Dois surtos de peste em Lisboa 1579-1581. Separata de Revista da
Biblioteca Nacional, Lisboa, 1992; José Manuel A. S. de Carvalho, Diário da peste de Coimbra (1599),
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994
(contém apêndice sobre a peste de 1580).
62
1585, Algarve visitado
“O Algarve pede visitação. Bispo, frades e priores desse reino nos incitam com suas
cartas”218
– apelava ao Conselho Geral, a 12 de Novembro de 1584, o inquisidor António
de Mendonça. À frente da diocese do Algarve encontrava-se, então, D. Afonso de Castelo
Branco. Na missa da primeira oitava da Páscoa desse ano, em plena Sé, o bispo escutara a
polémica tese do deão Diogo Lopes: Jesus Cristo só passou uma noite no sepulcro, pois
morrera sexta-feira à tarde e ressuscitara na madrugada de domingo. Era negado o que
rezava o Credo. Perante a indignação dos fiéis, o bispo repreendeu-o e deu-lhe ordens
para se desdizer em público. O deão assim o fez. Mas a irreverência das suas posições não
cessou com a admoestação do prelado. No domingo de Pentecostes seguinte, Diogo
Lopes voltou a subir ao púlpito da Sé. O Espírito Santo era “[...] espírito orgulhoso,
argumentativo, espírito de contradição e de confusão [...]”, dissera durante a homilia,
provocando o escândalo de leigos e eclesiásticos. Desta vez, D. Afonso de Castelo Branco
foi mais enérgico na reacção. Mandou-o prender e fazer um auto sobre o sucedido, a ser
remetido à Inquisição. Porém, o chantre da Sé e outros religiosos intercederam pelo deão
e tudo ficou pela mera negação pública e formal das proposições advogadas. O bispo não
ficou satisfeito com a revogação de Mestre Diogo Lopes: “[...] em vez de se acusar assim,
repreendeu os ouvintes, como diz Santo Agostinho que fez aquele fariseu que, vindo ao
templo para pedir perdão de seus pecados próprios, acusava os alheios [...]”219
. Entretanto,
Manuel Álvares Tavares, inquisidor do Tribunal de Évora, já havia chegado a Faro.
Qual a relação entre o caso do deão de Faro e a visita inquisitorial ao Algarve?
Diogo Lopes era cristão-novo e, apesar das proposições defendidas não constituírem
prova de qualquer afeição à Lei de Moisés, o facto de serem pronunciadas por alguém
de “nação” era um agravante. Ainda para mais, um cristão-novo que ocupava o lugar
mais cimeiro da hierarquia do cabido – o deão, a quem cabia duas das trinta prebendas
existentes na Sé220
. Adivinha-se que tal terá servido de alerta para muitos cristãos-velhos.
A gente de nação chegara aos mais altos níveis da hierarquia religiosa e invadia os
corações dos fiéis com a dúvida.
218
Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício (TSO), Conselho Geral (CG), liv. 97, fl. 4. 219
Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fls. 2-4. Vide, em anexo, pp. 283-285. Vide também o artigo de António
Baião, Um deão da Sé de Faro, nos fins do século XVI, a contas com a Inquisição. Separata de Correio
do Sul, Faro, 1949. 220
Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja..., vol. II, pp. 67-68.
63
A 25 de Março de 1585, Diogo Lopes, aconselhado pelo próprio bispo, escreveu
uma carta ao visitador221
. Por esses dias, Manuel Álvares Tavares escutou a primeira
testemunha sobre o caso, o Padre Belchior da Fonseca, chantre da Sé e vigário-geral,
cuja declaração só foi registada na semana seguinte, a 30 de Março222
. Entretanto, vários
cristãos-velhos e cristãos-novos já haviam entrado nas casas onde pousava o visitador e,
perante ele, debitaram denúncias e confissões em nada relacionadas com os polémicos
sermões de Diogo Lopes. A 30 de Março, a rede de Manuel Álvares Tavares já se
encontrava cheia de suspeitos de Judaísmo e nenhum deles era o deão da Sé de Faro.
Considerando a hipótese de que a visita inquisitorial fora inicialmente motivada por este
episódio, não se tratou de pesca à linha mas sim de um autêntico arrastão. Mas não
creio. O principal objectivo da visita de 1585 foi “pescar” judaizantes. Provam-no as
prisões que se sucederam nos anos imediatos. Diogo Lopes era cristão-novo, de facto.
Não judaizante. Nenhuma denúncia é feita nesse sentido, nenhuma insinuação sequer.
Provavelmente, era uma hipótese que povoaria a mente de Manuel Álvares Tavares e
dos seus colegas inquisidores, mas nada se averiguou e, quando o processo de Diogo
Lopes chegou ao seu termo, onze anos depois (todos com o deão em liberdade, indo
esporadicamente a Lisboa testemunhar), o acórdão final apenas apontou as “proposições
escandalosas”. A “qualidade de sangue” do réu nem sequer aparece mencionada223
.
Mas regressemos a 1585 e à visita inquisitorial. No apelo ao Conselho Geral,
António de Mendonça referia a necessidade de se tratar “[...] primeiro da pessoa que fará
a visitação, porque convém que seja prática nas cousas da Inquisição e que faça a jornada
com autoridade e prudência, por ser esta a primeira que vai ao Algarve, que é cheio de
gente cavaleirosa, segundo dizem, e honrada [...]”. Como já vimos, essa pessoa foi o
inquisidor Manuel Álvares Tavares, auxiliado na sua missão pelos notários Bartolomeu
Fernandes e Álvaro Calvino224
.
São muito fragmentários os dados que possuímos sobre a visitação de 1585. Apenas
contamos com as confissões e as denúncias trasladadas nos processos inquisitoriais
221
Cf. Idem, fls. 5-6. Vide, em anexo, pp. 280-283. 222
Cf. Idem, fls. 7-10. 223
Cf. Idem, fls. 327-327v. Vide, em anexo, pp. 290-291. 224
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 367, fl. 33-33v. Antes de ser nomeado inquisidor do Tribunal de Évora, a 23
de Janeiro de 1580, Manuel Álvares Tavares foi deão da Sé de Viseu. A 17 de Março de 1593, foi
designado para a Inquisição de Lisboa e, a partir de 1610, passou a integrar o corpo de deputados do
Conselho Geral. Pertencente à Companhia de Jesus, nunca teria perdido um auto-de-fé em Lisboa desde
1594. (Cf. Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, Os Arquivos da Inquisição, Lisboa, Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, 1990, pp. 307, 316, 330; Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 68; Salomon,
Portrait..., pp. 111-112 (n. 120); Dauril Alden, The Making of an Enterprise. The Society of Jesus in
Portugal, Its Empire, and Beyond 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 671).
64
consultados que, dado o degradante estado dos suportes e os obstáculos colocados à sua
consulta, nem sequer constituem a totalidade dos processos levantados contra cristãos-
novos residentes no Algarve nesse período.
Entre Março e Julho de 1585, Manuel Álvares Tavares percorreu a região, do
Barlavento ao Sotavento. Esbocemos o seu percurso225
:
Local Datas
Faro 22/3/1585 – 2/4/1585
Lagos 9/4/1585 – 16/4/1585
Aljezur 30/4/1585
Silves 4/5/1585 – 8/5/1585
Vila Nova de Portimão 13/5/1585 – 17/6/1585
Albufeira 26/6/1585
Loulé 1/7/1585 – 20/7/1585
Mapa 2: Percurso da visita inquisitorial de 1585 ao Algarve.
Segundo o Regimento de 1552, o visitador, antes de entrar numa localidade, deveria
informar as autoridades locais, de modo a que estas providenciassem a sua pousada.
Depois, apresentar-se-ia ao pároco da freguesia, reuniria as justiças seculares e
mandaria apregoar o dia e o local da leitura do sermão da fé. Após o sermão, seria
publicado o édito e o monitório geral e, de seguida, o édito da graça, no qual era
concedido um período para os culpados de heresia e apostasia se apresentarem
voluntariamente, sem qualquer pena. Os éditos de fé e da graça, depois de lidos, seriam
afixados na porta principal da igreja226
.
O édito de fé era um instrumento fundamental para a entrada da Inquisição numa
localidade. Lido perante toda a população, enumerando delitos desconhecidos da
225
Obtivemos estas datas através da consulta dos processos e de dados dispersos noutra documentação
inquisitorial (nomeadamente, nos Cadernos do Promotor). Provavelmente, o inquisidor teria estado nas
localidades para além das datas indicadas, mas não temos dados documentais que o comprovem. 226
Cf. “Regimento ... (1552)”, Metamorfoses..., p. 110 (caps. 6-7).
Faro
Albufeira
Portimão
Lagos
Silves
Aljezur
Loulé
65
maioria dos ouvintes, trazia reminiscências sobre o que se estranhara no passado e
apresentava uma justificação para comportamentos cujo significado não se havia, até
então, compreendido. Ao encorajar a incriminação e a denúncia, accionava o controlo
sobre os cristãos-novos. Por outro lado, através da delimitação de um tempo de graça, a
Inquisição pretendia demonstrar a misericórdia para quem se afastara da ortodoxia
católica. Um paradoxo do qual se alimentava a máquina inquisitorial. A visita
funcionava, desta forma, como um primeiro passo para a actuação do Santo Ofício num
determinado local. Era tomado o pulso aos comportamentos religiosos da população,
identificados os desvios e empreendidas as primeiras diligências para a sua punição227
.
No Algarve, os principais alvos da visitação foram os cristãos-novos. Por outro lado,
as denúncias provieram, em grande parte, de testemunhas cristãs-velhas. Cristãos-novos
e cristãos-velhos conviviam e partilhavam momentos do quotidiano. Viviam paredes-
meias, trabalhavam em espaços comuns, frequentavam os mesmos sítios. Entre os
criados da casa, entre as visitas, entre a vizinhança, os cristãos-velhos participavam no
dia-a-dia das famílias cristãs-novas. Com o inquisidor na cidade, com a leitura do édito
da fé, todos os gestos e todos os comportamentos que, por fugirem à norma, nunca
caíram no olvido são motivo de suspeita e, por conseguinte, de denúncia.
Francisco Fernandes, que durante 5 semanas trabalhara como pedreiro nas obras da
casa de Francisco de Tovar, mercador cristão-novo, exprimiu ao visitador a sua
admiração perante o facto do patrão ter o hábito de ir ver como decorriam os trabalhos
todos os dias, excepto aos sábados228
. Em Vila Nova de Portimão, Catarina Fernandes
fora criada de Pedro Mendes, cristão-novo. Todos os sábados, os seus patrões vestiam
roupa lavada. Nas noites de sexta-feira, a sua senhora, Leonor de Sousa, dava-lhe
ordens para mudar as camas e limpar os candeeiros. A carne que vinha do açougue,
227
Sobre a forma como se processavam as visitas inquisitoriais e a sua ocorrência noutros espaços do
reino, vide: Elvira Mea, Inquisição de Coimbra no Século XVI. A Instituição, os Homens e a Sociedade,
Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1997; Fernanda Olival, “A Inquisição e a Madeira; a visita de
1618”, Colóquio Internacional de História da Madeira, II vol., Funchal, Governo Regional da Madeira,
1990, pp. 764-810; Idem, “A visita da Inquisição à Madeira em 1591-92”, Actas. III Colóquio
Internacional de História da Madeira, Funchal , Centro de Estudos de História do Atlântico, 1993, pp.
493-519; José Pedro Paiva, “As entradas da Inquisição na vila de Melo no século XVII: pânico,
integração/segregação, crenças e desagregação social”, Revista de História das Ideias (RHI), vol. 25,
2004, pp. 169-208; Maria do Carmo Teixeira Pinto, “A visita do licenciado Pedro Álvares de Paredes a
Tomar (1561)”, Arqueologia do Estado. 1as
Jornadas sobre formas de organização e exercício dos
poderes na Europa do Sul. Séculos XIII-XVIII, vol. 1, Lisboa, História & Crítica, 1988, pp. 357-373;
Paula Marçal Lourenço, “Uma visita da Inquisição de Lisboa: Santarém 1624-1625”, Comunicações
apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, vol. II, Lisboa, Universitária Editora,
1989, pp. 567-596; Idem, “Para o estudo da actividade inquisitorial no Alto Alentejo: a visita da
Inquisição de Lisboa ao bispado de Portalegre em 1578-1579”, A Cidade. Revista Cultural de Portalegre,
n.º 3, 1989, pp. 109-138. 228
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fl. 21v.
66
nunca porco, era preparada com esmero, sendo a própria patroa quem “[...] a depenicava
toda e lhe tirava todo o sebo e gordura, sem lhe ficar nada, e deitava a dita carne na água
com sal e depois a mandava lavar pela sua escrava [...]”229
.
Havia cerca de 10 anos, Constança Fernandes vivia na Rua do Peru, onde muitos
cristãos-novos de Vila Nova de Portimão residiam. Também ali morava Beatriz Simões,
uma cristã-nova que, aos sábados, vestia touca lavada e trabalhava menos do que nos
outros dias da semana: “[...] porque nos ditos sábados, tomava um sarilho na mão e uma
meada, em que ela, declarante, não via crescer a meada [...]”230
. Numa outra artéria da
vila, a Rua da Alfândega, Catarina Vaz viu uma vizinha, Branca de Sousa, benzer as
filhas de forma suspeita: colocava a mão nas cabeças das meninas e deslizava-a pelos seus
rostos abaixo, ao mesmo tempo que dizia: «Pera bem cresças, pera bem te cries»231
.
É possível traçar o perfil do denunciante-tipo durante a visita de 1585 ao Algarve:
mulher, cristã-velha, com acesso a casas de cristãos-novos por meio de relações laborais
(criadas, escravas) ou sociais (vizinhas, amigas). Por sua vez, o denunciado-tipo é
também do sexo feminino e, como se vê, cristão-novo.
O quotidiano feminino domina as denúncias pronunciadas perante Manuel Álvares
Tavares. Vejamos o exemplo de Catarina Lopes, cristã-nova por parte da mãe, que
aprendia a costurar com as filhas de Jorge Gomes, sombreireiro cristão-velho. Na casa
deste, perante outras raparigas, ela contava “um conto sobre Moisés”. Maria Álvares,
uma das filhas do sombreireiro, narrou ao visitador essa história:
“[...] quando o dito Moisés que ia passar o povo para terra da promissão que o não
podia fazer por estarem os homens com os cães, aos cantos, espiando e que, por
estarem sem dormir muitas noites, sem dormir, Moisés batera às portas de todos e
passara pelos homens que estavam dormindo sem eles acordarem, nem os cães, e
levou o dito povo e passou por um rio onde se lhe abriu o caminho por onde
passaram e os ditos homens foram atrás deles e, quando chegaram ao rio, já estava
cerrado e que, por esta razão, dizem quando alguma pessoa dorme muito que
dorme como os cães do Egipto [...]”232
.
Esta versão da fuga do Egipto levou uma outra cristã-velha, Bárbara Vaz, também
frequentadora dessas reuniões, a denunciar a jovem Catarina Lopes. Ela confessara-lhe
que, quando acordava cedo e via as portas dos cristãos-velhos fechadas, dizia para si
mesma: «Malditos que ainda dormem como os cães do Egipto»233
. A 31 de Maio,
229
Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 230
Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 231
Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 232
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 39-39v. 233
Cf. Idem, fl. 37v.
67
Catarina Lopes apresentou-se perante o visitador e confessou que realmente contara a
dita história, ouvida num sermão na igreja234
.
Outros cristãos-novos optaram pela apresentação voluntária perante o visitador, na
esperança de usufruírem do tempo da graça. Terminada a visitação, houve quem
desconfiasse que tal não passara de um “isco”:
“Nós vivíamos aqui muito descansados e muito a nosso gosto e vontade, sem haver
quem nos fosse à mão, e veio esta negra desventura do Santo Ofício e como
fizeram aquilo leve às parvoas para dizerem tudo quanto fizeram e não fizeram,
para as levarem e desinquietarem de suas casas, injuriadas e afrontadas, melhor
fôramos, digo, melhor vivêramos em parte onde não houvera estes debates e estas
cousas [...].”235
Tais palavras são atribuídas a Violante Lopes, cristã-nova de Lagos. O Regimento
de 1552 decretava que quem se apresentasse durante o tempo da graça, caso a sua
confissão fosse considerada verdadeira e desse mostras de arrependimento, seria
reconciliado e abjuraria secretamente perante o inquisidor, o notário e duas
testemunhas. Na circunstância de existirem denúncias prévias, essas testemunhas
voltariam a ser ouvidas e, se as culpas coincidissem com as palavras do confitente,
receberia a reconciliação e faria a abjuração numa igreja, sem mais penas236
. Portanto,
era o inquisidor quem avaliava se a confissão era suficiente e se o arrependimento do
confitente era sincero ou não. Pesavam nessa avaliação as denúncias efectuadas e,
sobretudo, contra quem eram dirigidas. Segundo o Regimento, era sinal de boa
confissão a denúncia de “[...] pessoas chegadas e conjuntas em sangue e a que tenham
particular afeição [...]”237
. Guiomar Simões foi reconciliada pelo visitador depois de
denunciar os pais e as irmãs. Nem a relação conflituosa que mantinha com a família
desde o seu casamento “a furto” com um cristão-velho serviu de atenuante à prisão da
mãe e das irmãs Branca e Leonor Simões238
.
Guiomar Simões é um dos poucos casos de cristãos-novos que se apresentaram
perante o visitador sem denúncias prévias. Dada a dimensão das localidades e as
relações sociais estabelecidas, não seria difícil saber quando e quem os havia
denunciado. Constança Rodrigues, cristã-velha de Vila Nova de Portimão, afirmou ter
ouvido Beatriz Simões, dizer “[...] que se a prendessem pelo Santo Ofício, que nenhuma
234
Cf. Idem, fls. 40v-41. Catarina Lopes não foi logo processada devido a estas denúncias. Só seria presa
anos depois, em 1592, delatada pela mãe. No processo, não são referidas as denúncias de 1585, o que
demonstra que Catarina beneficiara integralmente do tempo de graça. (Cf. ANTT, IE, proc. 7711). 235
Cf. ANTT, IE, proc. 5530. 236
Cf. “Regimento... (1552)”, As Metamorfoses..., pp. 110-111 (cap. 9). 237
Cf. Idem, p. 111 (cap. 10). 238
Cf. ANTT, IE, procs. 8086, 5286 e 6773.
68
pessoa da geração do dito seu marido havia de rir dela [...]”. A mesma contara-lhe que
se tinha ido acusar a Silves porque “[...] uma maldita cristã-velha fora dizer contra ela
nesta mesa [...]”239
. Segundo o testemunho de Margarida Fernandes, em Albufeira, a
partir do momento em que o visitador chegou a Silves, Beatriz Simões passou a ir à
missa todos os domingos e dias santos e a falar muito em Nossa Senhora. Ela tentara
aliciar Margarida Fernandes a não a denunciar: “[...] e que lhe daria tudo o que ela
quisesse e umas casas em que vivesse toda sua vida, as quais estão pegadas ao quintal
das ditas casas em que vive e que, se viesse dizer contra ela alguma cousa a esta mesa,
que havia de fazer matar a ela, declarante [...]”240
. Apesar de se ter apresentado em Vila
Nova de Portimão, Beatriz Simões acabou por ser presa pela Inquisição de Évora a 23
de Março de 1586.
Dadas as limitações já referidas, não sabemos quantos teriam sido os cristãos-novos
que se apresentaram e foram reconciliados durante a visita. Um deles foi João Aires
Cordeiro. Ele apresentou-se em Aljezur no termo do tempo da graça, a 29 de Abril. Era
meio cristão-novo, pelo lado materno, e confessou que fora doutrinado pela mãe quando
tinha 10 anos de idade. Pouco tempo depois, o pai levou-o para Lisboa, onde ficou ao
serviço de D. João de Castelo Branco, como pajem, durante três anos. Na capital, ouviu
pregações e “[...] lhe pareceu mal o que a dita sua mãe lhe ensinava, por ver queimar
cristãos-novos em Lisboa e ouvir ler suas culpas no cadafalso [...]”. Ao regressar a casa,
enfrentou a mãe e ela nunca mais voltou a falar-lhe de nada contra a fé cristã. Segundo
João Aires Cordeiro, esta não era a primeira vez que confessava tais culpas. Havia cerca
de três anos, um trabalho no mar levou-o a Castela. Numa romaria à Igreja de Nossa
Senhora da Consolação, em Utrera, confessou-se a um religioso castelhano que não o
quis absolver. Regressado a Aljezur, Frei João da Costa absolveu-o e deu-lhe a
penitência. Mesmo assim, João Aires não deixou de se apresentar perante o visitador
“[...] por ouvir publicar o édito da fé em que dizia serem obrigados a denunciar de vivos
e mortos e por não ficar em excomunhão o vem dizer [...]”241
. Manuel Álvares Tavares
considerou a sua confissão pouco verosímil e ordenou-lhe que regressasse à mesa ainda
no decorrer da visita à vila. Mas João Aires não voltou a aparecer em Aljezur. Quase um
mês depois, a 25 de Maio de 1585, quando o visitador já se encontrava em Vila Nova de
Portimão, ele apresentou-se novamente. Negócios prementes e uma enfermidade foram
239
Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 240
Cf. Idem. 241
Cf. ANTT, IE, liv. 228, fls. 619-620v.
69
as justificações para a sua ausência. Em mais duas sessões, confirmou o que confessara
em Aljezur e, a 1 de Julho, foi reconciliado. O visitador estava, então, em Loulé242
.
Durante a visitação, Manuel Álvares Tavares ouviu a denúncia e a confissão de uma
série de práticas estranhas à ortodoxia católica243
. Por um lado, havia as que
evidenciavam comportamentos judaizantes, como a guarda dos sábados ou as restrições
alimentares. Por outro, testemunharam-se atitudes de resistência à maioria cristã-velha
e/ou à acção do Santo Ofício. Registou-se ainda uma terceira categoria de delitos,
relacionados com desvios no comportamento religioso, mas não necessariamente sinais
de profissão da Lei de Moisés. Era o caso de incumprimentos das obrigações cristãs
(por exemplo, a falta à missa dominical) e de blasfémias. António Rodrigues, cristão-
novo de Loulé, confessou ao visitador que, estando a sua mulher muito doente,
trouxeram-lhe o Santíssimo Sacramento a casa. Quando lhe disseram para acender as
candeias, ele respondera “[...] que acendesse porque não era nada a gaita sem trombão
[...]”244
. Este episódio passara-se havia então 25 anos e, durante este tempo, uma
simples frase sobreviveu na memória não só do próprio António Rodrigues, como
também de Isabel Gonçalves, a cristã-velha que levara a comunhão à sua casa.
Ainda mais fresca na memória colectiva estava a peste que atingira a região cinco
anos antes. Tal terá influenciado a frequência com que foram mencionados, durante a
visita, rituais fúnebres alegadamente judaizantes. Note-se que a menção a práticas
fúnebres constituiu sempre uma excepção nas restantes vagas de prisões no Algarve245
.
Cristãos-novos e cristãos-velhos partilhavam o momento da morte. O
amortalhamento do corpo em pano novo ou o derramamento da água após o falecimento
de alguém da casa eram ritos que fugiam ao cânone cristão e isso não escapou ao olhar
de terceiros. Tal acabou por emergir do esquecimento perante a leitura do édito de fé.
Um momento em que tantos foram vencidos pelo flagelo da peste e em que os velórios
e os funerais se multiplicavam na vizinhança era propício ao vislumbramento de
práticas, primeiramente só consideradas estranhas, mas, mais tarde, durante a visita
inquisitorial e perante a leitura do édito, tornadas suspeitas.
242
João Aires Cordeiro abjurou em segredo, sendo-lhe impostas apenas penitências espirituais. (Cf. ANTT,
IE, liv. 228, fls. 626v-627v). 243
Vide, em anexo, gráfico 2, p. 97. 244
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fl. 16-18. 245
Sobre a relação da peste de 1580 com as denúncias apresentadas durante a visitação de 1585, vide
Carla da Costa Vieira, “Peste e heresia. A repressão inquisitorial no Algarve em final de Quinhentos e o
surto epidémico de 1580”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 9, 2009, pp. 149-180.
70
O degredo da peste
Em La Peur en Occident, Jean Delumeau define uma “tipologia dos
comportamentos colectivos em tempo de peste”. As cidades são abandonadas, os
quadros familiares desestruturam-se, os comportamentos e os hábitos quotidianos
modificam-se, a sobrevivência ao presente torna-se a prioridade e as consequências das
próprias acções são alvo de menor ponderação. Por outro lado, procuram-se
explicações, soluções e culpados para o flagelo246
. Em tempo de peste, a cidade torna-se
num local a evitar, onde a concentração demográfica facilita o contágio, a
desorganização social é mais evidente e os seus efeitos mais assustadores. O campo
surge como um espaço convidativo enquanto se aguarda o fim do epidemia247
.
Muitos dos testemunhos apresentados durante a visitação de 1585 reportaram-se ao
tempo do “degredo da peste”248
. Foram mencionados os locais que serviram de refúgio à
população urbana do Algarve. Maria Vaz, cristã-velha de Lagos, esteve no “lugar de
Almadana” durante mais de 5 meses249
. Tratava-se, possivelmente, de Almádena,
pertencente à freguesia de Nossa Senhora da Luz, termo de Lagos. Vasco Afonso, de
Faro, refugiou-se numa fazenda na freguesia de São Martinho de Estoi por um período
de 5 a 6 meses250
. Alguns moradores de Vila Nova de Portimão mudaram-se, então,
para o termo de Silves. Foi o caso de Beatriz Fernandes e de Filipa Henriques que
estiveram cerca de mês e meio numas cabanas no lugar do Moinho do Diabo, entre a
ribeira de Boina e Silves251
.
Alguns viveram mais de meio ano fora da sua residência habitual, outros pouco
mais de um mês. O tempo de “degredo” variou, o que pode indiciar a maior incidência
da peste em determinadas localidades. Por outro lado, as condições de acolhimento
também teriam condicionado o prolongamento da estadia. Beatriz Fernandes alojou-se
numas cabanas, enquanto que Maria Vaz esteve numa casa. Em Almádena, Branca
246
Cf. Jean Delumeau, La Peur en Occident (XIVe-XVIII
e siécles). Une cité assiégée, Paris, Fayard, 1978,
pp. 98-142. 247
Já no Leal Conselheiro, D. Duarte referia que, perante a peste, o melhor era seguir “[...] o conselho dos
físicos e lhe fugir cedo, longe e tornar tarde [...]” (apeid José Manuel de Carvalho, Diário da peste..., p.
11). Vide também: Manuel António Fernandes Moreira, O medo da peste em Viana da Foz do Lima no
século XVI. Separata de Camoniana, Caminha, 1982; Francisco Ribeiro da Silva, Temores do homem
portuense no primeiro quartel do século XVII. A doença e a peste. Aspectos sanitários. Separata de
Revista de História, Porto, 1978. 248
A expressão é de Filipa Henriques, cristã-nova de Vila Nova de Portimão, que, durante a peste, se
refugiou numas cabanas no termo de Silves (Cf. ANTT, IE, proc. 5530). 249
Cf. ANTT, IE, proc. 6773. 250
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 2-2v. 251
Cf. ANTT, IE, procs. 4436 e 5530.
71
Simões tinha até uma “[...] tendazinha pela qual queria olhar [...]” e algumas “moças”
ao seu serviço252
.
Abandonar o lar implicou uma quebra dos vínculos sociais construídos ao longo de
toda a vida ou, pelo menos, a sua suspensão durante algum tempo. Contudo, a mudança
para um outro espaço, com diferentes condições de subsistência, conduziu à criação de
novos laços. Eram relacionamentos frágeis, sem a legitimação e a confiança que só o
tempo assegura.
Voltemos ao testemunho de Vasco Afonso. Ele enumerou os cristãos-novos com
quem partilhara o refúgio em Estoi, na fazenda de Luís Fernandes: Simão Rodrigues e a
esposa, Beatriz Nunes; o casal Cristóvão Lopes da Fonseca e Catarina Fernandes e os
respectivos filhos; Afonso Fernandes e a mulher, Beatriz de Caminha; e um outro
Simão Rodrigues, tosador, também acompanhado pela esposa253
. Famílias diferentes
partilhavam o mesmo espaço. Mais do que isso, famílias cristãs-novas coabitavam com
cristãos-velhos. Ora, os hábitos, os comportamentos, enfim, tudo o que se dizia e se
fazia não escapou à devassa de elementos estranhos ao meio familiar. Práticas do foro
privado que, noutras circunstâncias, dificilmente seriam notadas além de um círculo
muito restrito, chegaram aos ouvidos do visitador. Qualquer aspecto que fugisse ao
ordinário era alvo de denúncia.
Além disso, em tempo de peste, muitos baixavam as defesas. Talvez o desespero e a
proximidade da morte fossem pouco propícios à perspectivação das consequências
futuras dos seus actos, talvez reinasse uma falsa sensação de segurança por se
encontrarem fora da residência habitual, onde a sua ascendência era reconhecida.
Branca Simões confessa que, naquele tempo, andava “[...] mais à larga e mais à sua
vontade [...]”. Por isso, aos sábados, ia com a irmã Leonor Simões para o campo, na
intenção de guardar aquele dia em honra da Lei de Moisés, e ordenava às criadas que
fizessem todo o serviço à sexta-feira. Nem sequer temia vir a ser denunciada. Ela
considerava as criadas “boçais e rústicas” e, portanto, incapazes de entender a
verdadeira razão de tais ordens.254
A imprudência estende-se à comunicação da fé, geralmente repleta de precauções e
inscrita num círculo restrito de confiança. Mas, durante a peste, esse círculo ter-se-ia
alargado perigosamente. Tomemos, como exemplo, o caso do degredo em Almádena e
252
Cf. ANTT, IE, proc. 5286. 253
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 2-2v. 254
Cf. ANTT, IE, proc. 5286.
72
regressemos ao testemunho de Maria Vaz. Ela denunciou quatro cristãs-novas que
também se refugiaram naquele lugar: Branca Simões e a irmã Leonor Simões, Catarina
Martins e Isabel Correia. As quatro tinham uma posição social privilegiada. O marido
de Catarina Martins, Pedro Vaz Pinto, era cavaleiro da Ordem de Santiago, recompensa
pelos serviços prestados em África255
. Contudo, o estatuto social não as salvaguardou
das denúncias.
Branca Simões e a cunhada Catarina Martins ainda se apresentaram perante o
visitador, mas só confessaram um caso de amortalhamento ao “modo judeu”256
. Sobre o
tempo em Almádena, nenhuma palavra. As quatro mulheres acabaram por ser presas em
1586. Catarina Martins e Isabel Correia, que entraram nos cárceres de Évora a 25 de
Março, integraram o grupo dos primeiros cristãos-novos detidos na sequência da visita
inquisitorial257
. Eram, ao todo, 19 e provinham de Vila Nova de Portimão, de Faro e,
principalmente, de Lagos258
.
Mas as prisões não ficaram por aqui. A 15 de Abril, o Conselho Geral enviou à
Inquisição de Évora uma carta a felicitar “[...] a boa diligência que se fez nas prisões do
Algarve [...]” e a pedir que se procedesse às detenções de Aldonça Loba, de Lagos, e de
Inês Gramaxa e Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão259
. Dito e feito – a 15 de
Maio, as três mulheres entravam nos cárceres de Évora260
. Nesse mesmo dia, também
foi presa Leonor de Sousa, prima de Inês Gramaxa261
.
Em suma, só durante o ano de 1586 registaram-se mais de duas dezenas de prisões
no Algarve. No Verão de 1587, o filão ainda não se tinha esgotado. A 16 de Junho, os
inquisidores de Évora escreviam ao Conselho Geral a alertar sobre a necessidade de se
proceder à prisão de indivíduos denunciados durante a visitação, ainda em liberdade e
sob o risco de fuga262
. De facto, a 26 de Julho de 1587, entraram nos cárceres de Évora,
pelo menos, 21 cristãos-novos oriundos do Algarve, sobretudo de Faro e de Vila Nova
255
Não encontrámos nenhum documento nas chancelarias que confirme esta informação. Depois o auto
em que Catarina Martins saiu reconciliada, com cárcere e hábito penitencial perpétuos, Pedro Vaz Pinto
pediu que lhe fosse retirada a penitência, pois ele era homem muito honrado, cavaleiro da Casa Real, que
recebeu o hábito pelos serviços prestados em África contra os mouros, e era uma grande afronta ser
obrigado a viver com uma mulher com hábito penitencial (Cf. ANTT, IE, proc. 7834). 256
Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 7834. Catarina Martins era irmã de Duarte Dias, marido de Branca Simões. 257
Cf. ANTT, IE, procs. 375 e 7834. Branca e Leonor Simões apenas entraram nos cárceres de Évora
meses depois, a 25 de Junho de 1586. (Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 6773). 258
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 367, fl. 37v. 259
Cf. Idem, fl. 38. 260
Cf. ANTT, IE, procs. 4628, 8925 e 9144 261
Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 262
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fl. 8v.
73
de Portimão263
. Alguns foram denunciados no decorrer da visitação, como Leonor
Mendes, filha de Baltazar Fernandes Estaço, ou Beatriz Nunes, viúva de Manuel
Tinoco, ambas de Vila Nova de Portimão264
. O mesmo aconteceu com Gonçalo Martins
de Leão, mercador de Faro, acusado de tentar influenciar o testemunho de uma cristã-
velha, Beatriz Fernandes, que fora ama e cozinheira na casa da sua irmã Leonor
Quitéria. Já depois de preso, Gonçalo Martins não confirmou esta acusação. Aliás,
durante todo o processo, manteve-se relutante em confessar. Entretanto, as acusações
avolumavam-se. Acabou relaxado à justiça secular no auto-de-fé de 10 de Julho de
1588, tal como a sua esposa, Isabel Nunes265
. Entretanto, parte da sua família já
conhecera o cárcere inquisitorial.
Uma família de Faro nos calabouços
Os alvos da Inquisição em Faro, durante estes anos, quase se resumiram à parentela
de Gonçalo Martins de Leão. Porém, a repressão inquisitorial não era uma realidade
nova para esta família. Gonçalo Martins era primo de Mestre Lopo e Duarte Dias,
presos durante a primeira entrada da Inquisição no Algarve266
. Já nos anos 70, os seus
irmãos João e Diogo Martins foram presos em Beja, onde então residiam267
.
O cárcere não foi o único flagelo que se abateu sobre a família de Gonçalo Martins de
Leão. A peste de 1580 vitimou a irmã, Leonor Quitéria, e o seu marido, Francisco Lopes.
O casal deixara órfãos 9 filhos, muitos deles ainda crianças de tenra idade. Em 1585,
Pedro Lopes, o primogénito, foi acusado perante o visitador. Dois dias depois, ele
apresentou-se e confessou que, quando o pai faleceu, deu à ama Beatriz Fernandes um
lençol novo para amortalhar o corpo. Fê-lo sem nenhuma intenção judaizante e só se
263
De Faro: Gonçalo Martins (ANTT, IE, proc. 8790), Isabel Nunes (proc. 4195), Leonor Quitéria (proc.
2770), Branca Rodrigues (proc. 8057), Guiomar Lopes (proc. 3562), Violante Lopes (proc. 4504), Beatriz
Gonçalves (proc. 6969) e Maria Quitéria (processo desconhecido). De Lagos: Violante Lopes (processo
desconhecido) e Francisco Ribeiro (proc. 1508). De Vila Nova de Portimão: Inês Martins (proc. 5365),
Leonor Mendes (proc. 1548), Pedro Mendes (proc. 11023), Mor Estaça (processo desconhecido), Ana
Gramaxo (proc. 767), Aldonça Gramaxo (proc. 4605), Filipa Henriques (proc. 5530), Beatriz Fernandes
(proc. 4436), Violante Machado (proc. 9651), Beatriz Nunes (proc. 8043) e Isabel Jorge (proc. 8654). 264
Cf. ANTT, IE, proc. 1548. 265
Cf. ANTT, IE, procs. 8790 e 4195. 266
Cf. ANTT, IL, procs. 2180 e 12751. Mestre Lopo e Duarte Dias eram irmãos. João Martins, irmão de
Gonçalo Martins de Leão, refere no seu processo que era primo destes, sem adiantar mais informações
sobre o grau de parentesco (Cf. ANTT, IE, proc. 191). 267
Cf. ANTT, IE, procs. 191 e 11221.
74
apresentou por ter ouvido o édito de fé “[...] em que dizia dos que se enterrravam em
lençol cru e camisa comprida [...]”268
.
Esta confissão não satisfez Manuel Álvares Tavares. Nos cárceres de Évora desde
25 de Março de 1586, Pedro Lopes só começou a confessar mais de um ano depois.
Fora iniciado na “crença na Lei de Moisés” pelos pais, pouco antes do seu falecimento.
Então, eles também ensinaram as suas irmãs, inclusivamente as mais novas269
. Ao longo
da confissão, denunciou o tio Gonçalo Martins e a esposa deste, Isabel Nunes, tal como
o primo Nicolau Martins, clérigo de missa na Sé de Faro270
. Tendo saído no auto de 2 de
Agosto de 1587, com cárcere e hábito penitencial perpétuos, Pedro Lopes foi chamado
novamente à mesa poucos dias depois para responder sobre o ensino das irmãs mais
novas, Leonor Quitéria e Guiomar Lopes. Voltou então a sublinhar que as duas tinham
presenciado o ensino materno mas, sendo então de muito tenra idade, só começaram a
ter práticas judaizantes mais tarde. Além disso, propôs que, caso persistisse alguma
dúvida, poderia falar com as irmãs e tentar “encaminhá-las” 271
. De facto, Leonor
Quitéria e Guiomar Lopes, com 14 e 11 anos respectivamente, resistiram à pressão dos
inquisidores e mantiveram-se negativas durante várias sessões. Só depois de
confrontadas com o irmão mais velho é que confirmaram a iniciação e a prática dos
preceitos da Lei de Moisés272
.
Esta disponibilidade para auxiliar os trabalhos do Santo Ofício levou a que Pedro
Lopes fosse agraciado com o levantamento do hábito penitencial logo a 5 de Janeiro de
1588. Dizia querer casar com Catarina Galega, também ela penitenciada pela Inquisição
de Évora, e pediu aos inquisidores que lhe retirassem a penitência, de modo a conseguir
ganhar o sustento para si e para a sua futura esposa273
.
268
Cf. ANTT, IE, proc. 5226. 269
Segundo podemos induzir dos processos, quando Pedro Lopes e as irmãs foram ensinados, por volta
de 1580, a irmã mais nova, Guiomar Lopes, tinha apenas 4 anos de idade, enquanto as outras duas irmãs,
Leonor Quitéria e Branca Rodrigues, ainda não haviam atingido os 10 anos. Raramente o ensino era
administrado em idades tão precoces. Vide infra, pp. 250-251. 270
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 47-52. 271
Cf. ANTT, IE, proc. 5226. 272
Cf. ANTT, IE, procs. 2770 e 3562. Guiomar Lopes, dada a sua pouca idade, acabou por ser reconciliada
sem ter de abjurar e entregue à responsabilidade de Martim d‟Ares, marido da irmã Ana Lopes. Leonor
Quitéria, mais velha, foi a auto, a 10 de Julho de 1588, sentenciada a cárcere e hábito penitencial ao arbítrio
dos inquisidores. O Regimento de 1552 contemplava que as raparigas menores de 12 anos e os rapazes
menores de 14 anos não eram obrigados a abjurar publicamente (Cf. “Regimento... (1552)”, As
Metamorfoses..., p. 112 (cap. 16)). 273
Cf. ANTT, IE, proc. 5226. Catarina Galega foi acusada durante a visitação de 1585 de guardar o jejum
judaico das quintas-feiras. Tinha 13 anos na altura da prisão. Saiu no auto de 2 de Agosto de 1587, com
cárcere e hábito penitencial perpétuos. A 5 de Janeiro de 1588, foi-lhe levantada a pena para se casar com
Pedro Lopes. (Cf. ANTT, IE, proc. 8698).
75
Já sem hábito, Pedro Lopes casou-se e foi viver para Lagos. No ano seguinte, fez-se
ao mar, rumo ao Brasil, num navio carregado de figos. Nessa mesma embarcação,
seguiam outros dois cristãos-novos algarvios: João de Souto, de Lagos, e Francisco
Ximenes, de Vila Nova de Portimão. O destino do navio acabou por não ser o Brasil, mas
sim Cuzco. Dali, Pedro Lopes passou para Junja e, depois, para Velez, onde se fixou
durante um ano e meio. Nos anos seguintes, circulou por Cartagena das Índias, Panamá,
Costa Rica e Guayalquil. Foi nesta última paragem que a Inquisição de Los Reyes o
prendeu, em 1596. Depois de ter relatado pormenorizadamente a sua rota entre Portugal e
a América Castelhana, Pedro Lopes foi solto a 30 de Agosto de 1596, sob a condição de
não sair da cidade e de se apresentar regularmente perante o Santo Ofício274
.
Mas recuemos alguns anos e regressemos a Faro, a Julho de 1587, quando 6 das 7
irmãs de Pedro Lopes foram presas275
. Ana Lopes, casada com Martim d‟Ares, cristão-
velho e escudeiro, foi a única que se salvou do cárcere. Aliás, ela nunca chegou a ser
denunciada pelos irmãos – era uma das mais velhas e, por ocasião do alegado ensino, já
deveria estar casada e a viver longe do lar paterno276
. Exceptuando a mais nova,
Guiomar Lopes, foram todas reconciliadas no auto de 10 de Julho de 1588. As
confissões das irmãs circunscreveram-se, praticamente, ao círculo familiar. Mesmo
assim, foram responsáveis por outras prisões em Faro. Branca Rodrigues denunciou a
prima Beatriz Gonçalves, filha de Gonçalo Martins de Leão277
. Esta, por sua vez, contou
aos inquisidores que, na casa das vizinhas Bárbara Filipe e Inês de Caminha, algumas
cristãs-novas costumavam reunir-se e guardar o jejum do Quipur em conjunto. Entre
elas, estavam Estevainha Gomes e a filha Catarina Gonçalves278
.
Estevainha Gomes foi presa meses depois, em Outubro de 1588, sob a suspeita de
tentativa de fuga. Devido a esses rumores, o cunhado Francisco Rodrigues, mercador de
Faro, apresentou-se a 26 de Julho perante o vigário-geral. Diziam na cidade que ele a
auxiliara a planear a fuga. Domingos Guerreiro, almocreve de Almodôvar que
274
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 111-116v (excerto do processo de Pedro Lopes na Inquisição de Los
Reyes). Vide, em anexo, pp. 348-356. Vide também António Borges Coelho, “O Algarve nos séculos
XVI e XVII”, Cristãos-Novos, Judeus e os Novos Argonautas, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 47-48. 275
Beatriz Gonçalves (ANTT, IE, proc. 6969), Branca Rodrigues (proc. 8057), Guiomar Lopes (proc.
3562), Leonor Quitéria (proc. 2770), Violante Lopes (proc. 4504) e Maria Quitéria (processo
desconhecido). 276
Beatriz Pinto, cristã-nova de Faro, presa a 9 de Maio de 1586, acusa Ana Lopes de lhe ter aconselhado
a guardar um jejum do thanis (Cf. ANTT, IE, proc. 1682, fls. 113-113v). É a única denúncia contra Ana
Lopes que conseguimos identificar. Porém, tal não resultou no levantamento de qualquer processo. 277
Cf. ANTT, IE, proc. 8057. 278
Cf. ANTT, IE, proc. 6974. Estevainha Gomes era viúva de Manuel Vaz, primo irmão da mãe de
Beatriz Gonçalves.
76
costumava ir a Faro comprar atum, alegou que Francisco Rodrigues pedira-lhe para
alugar uma besta com o fim de transportar uma mulher e um menino. Ele aceitou o frete
e levou-os até Alcácer, tal como fora acordado. Segundo o almocreve, tudo teria
ocorrido no final de Maio de 1588, poucos dias depois da prisão da filha de Estevainha.
O próprio Francisco Rodrigues acabou por confirmar esse aluguer279
.
De Alcácer, Estevainha Gomes foi para Lisboa, onde se encontrava a residir no
momento da sua prisão. Ela confessou que, aos sábados, vestia roupa lavada e
trabalhava menos do que nos outros dias, tal como era costume na sua terra natal,
Aiamonte280
. Porém, depois do casamento, deixou de fazê-lo. Quando o seu marido
faleceu durante a peste e ela foi viver com Bárbara Filipe e Inês Caminha, que tinham
ficado órfãs, a sua nova vizinha, Isabel Nunes (esposa de Gonçalo Martins de Leão)
ensinou-lhe alguns rituais judaizantes281
. A confissão de Estevainha Gomes foi
considerada insuficiente. Acresceram mais culpas, inclusivamente de jejuns no cárcere,
os quais ela nunca chegou a admitir até ser declarada herege e relaxada à justiça secular.
Mas a confissão foi tardia e, no auto de 17 de Junho de 1590, Estevainha Gomes
sucumbiu à pena máxima282
.
As prisões em Faro geraram um natural descontentamento entre os cristãos-novos.
Em Outubro de 1587, Jerónimo Fernandes, sombreireiro, testemunhou perante o cónego
da Sé o que ouvira de Duarte Ribeiro, cristão-novo, quando se deu a prisão de Gonçalo
Martins de Leão e das suas sobrinhas:
“[...] que eram ladrões que mandavam os inquisidores à terra infamar os homens
honrados dela e que também os mesmos inquisidores o eram, pois que com falsidades e
testemunhos falsos os vinham infamar e que se eles, nos seus livramentos, houvera
abertas e imbricadas que se soubera quem jurava falso mas que os ladrões dos
inquisidores nenhumas daquelas coisas queriam fazer e que isso mereciam os cristãos-
novos e muito mais por morarem em terras tão cruéis como estas, onde há estas
velharias e ladroíces, que se fossem morar a Florença e a Itália e nessas partes de
Roma, aonde os homens viviam a seu gosto e não havia essas velhacarias [...]”283
A 1 de Novembro de 1587, Duarte Ribeiro entrou nos cárceres de Évora. Ele era filho
de Francisco Ribeiro, antigo escrivão dos direitos do pescado, e de Marquesa Rodrigues. A
279
Cf. ANTT, IE, liv. 217, fls. 187-192. 280
Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fls. 95v-96v. 281
Inês de Caminha e Bárbara Filipe foram presas a 3 de Outubro de 1588, quando já se encontravam a
viver em Lisboa. Saíram no auto celebrado em Lisboa a 17 de Junho de 1590, com cárcere e hábito
penitencial perpétuos. (Cf. ANTT, IL, procs. 2302 e 16695). 282
Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fls. 164-166v. 283
Cf. ANTT, IE, proc. 8372.
77
mãe e as irmãs foram vítimas da vaga de prisões no início dos anos 60 em Lagos284
.
Quando chegou aos cárceres, Duarte Ribeiro tinha já perto de 65 anos e havia 40 que partira
para Itália, em busca de sustento para a família. Fixou-se durante dois meses em Verona,
onde vivia Pedro Rodrigues, seu parente, que o iniciou na fé judaica. Regressado a Portugal,
continuou a professá-la, mesmo depois de ter casado, em Moura. Por volta de 1583, voltou
ao Algarve e estabeleceu-se em Faro, onde veio a ser preso. Saiu no auto-de-fé de 10 de
Julho de 1588, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores285
.
Durante dois anos, 1589 e 1590, não se terá registado nenhuma prisão em Faro. Nos
anos seguintes, ocorreram algumas detenções, directamente relacionadas com processos
movidos contra cristãos-novos de Vila Nova de Portimão.
Uma temporada no Moinho do Diabo
Beatriz Simões foi, possivelmente, o nome mais referido durante a visitação. Em
Lagos, Silves, Vila Nova de Portimão e Albufeira, as acusações diversificavam-se:
bênçãos judaicas, amortalhamento em pano novo, orações suspeitas, os sábados em que
não trabalhava286
. Ela integrou o primeiro grupo de presos no Algarve, entregues nos
cárceres de Évora a 25 de Março de 1586. Poucos dias depois, já tinha iniciado a sua
confissão. Começou por alegar que só se apartara da fé cristã 7 ou 8 anos antes. João
Correia, vinhateiro, dissera-lhe que Jesus Cristo não era Deus, nem havia mais que
Moisés. Beatriz já alimentava essa dúvida dentro de si. Alguns anos antes, um outro
cristão-novo, Manuel Rodrigues, tentara convencê-la de que a Lei de Moisés era a
melhor e que não deveria rezar nem a Cristo, nem a Nossa Senhora. A confissão não
contentou os inquisidores. Como podia uma mulher já velha e viúva fiar-se no que lhe
dizia um homem com quem não tinha, sequer, uma relação próxima? A desconfiança
284
Marquesa Rodrigues vivia em Lagos quando foi presa pela Inquisição de Évora a 25 de Outubro de
1560. Saiu no auto de 10 de Maio de 1562, com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IL,
proc. 12432). Sucederam-se as prisões das filhas Isabel, Joana e Violante Ribeiro e da neta Marquesa
Lopes, filha de Garcia Ribeiro (Cf. ANTT, IL, procs. 1105, 8540, 5520 e 12434). Outros elementos da
família de Duarte Ribeiro foram presos nessa mesma vaga de prisões: a tia materna Branca Rodrigues
(proc. 6414); a tia paterna Branca Ribeiro (proc. 12778); e os primos Leonor Gomes (proc. 5290), Garcia
Ribeiro (proc. 8489), Branca Gonçalves (proc. 6895), Mor Ribeiro (proc. 10886), Duarte Rodrigues
(proc. 12762) e Leonor Nunes (proc. 1014). 285
Cf. ANTT, IE, proc. 8372. 286
Cf. ANTT, IE, proc. 11315.
78
crescia ao ritmo das denúncias. Finalmente, em Junho de 1587, sob tormento, Beatriz
Simões confessou que fora ensinada pelo pai287
.
A sua filha Filipa Henriques, também denunciada durante a visitação, chegou a
apresentar-se perante Manuel Álvares Tavares. A sua prisão apertou o cerco sobre a
família. Ainda antes de partir para Évora, quando ainda estava presa em Vila Nova de
Portimão, Filipa recebera a visita das irmãs Violante Lopes e Branca Henriques, que lhe
disseram então: «Irmã, enquanto nos cá tiveres, terão as vossas filhas muito, olhai que
não confesseis cousa alguma porque vireis livre e saireis com muita honra coroada e
acabe isto em vós»288
. Filipa teria prometido: «Em mim se acabará tudo e nenhuma
cousa confessarei». O prometido não foi cumprido. Após muitas contradições, Filipa
Henriques denunciou as irmãs289
.
Entregue em Évora a 25 de Maio de 1588, dois dias depois Branca Henriques já se
encontrava a confessar que fora iniciada na crença na Lei de Moisés pela irmã Filipa
Henriques, havia então 20 anos. Referindo-se ao tempo da peste, quando buscou refúgio
nas cabanas no Moinho do Diabo, junto a Silves, na companhia da mãe e das irmãs, ela
delatou igualmente as primas Mor Estaça, Leonor Mendes, Branca Mendes e Beatriz
Fernandes, filhas de Baltazar Fernandes Estaço, com as quais partilhara o local de
“degredo”. Elas tinham sido presas ainda durante o ano anterior, exceptuando Branca
Mendes, que só entrou nos cárceres no mesmo tempo de Branca Henriques290
.
De facto, grande parte das acusações contra as Estaças, como eram conhecidas as
quatro irmãs em Vila Nova de Portimão, reportavam-se ao tempo em que estiveram nas
cabanas no termo de Silves. Segundo confessou Leonor Mendes, elas costumavam
reunir-se com as filhas de Beatriz Simões para guardarem os jejuns do thanis291
. A irmã
Beatriz Fernandes acrescentou que foi a própria Beatriz Simões quem sugeriu a prática
dos jejuns, esperando que, com isso, Deus as livrasse da peste. O Moinho do Diabo
também servira de refúgio ao marido de Beatriz Fernandes, João Rodrigues, e à mãe
287
Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 288
Após a prisão de Filipa Henriques, as irmãs ficaram encarregues dos seus três filhos: Henrique Lopes,
Beatriz de Oliveira e Maria. Estes ficaram a viver na casa de Violante Lopes, em Lagos. (Cf. ANTT, IE,
proc. 5530). 289
Cf. ANTT, IE, proc. 5530. Filipa Henriques saiu no auto de 10 de Julho de 1588, com cárcere e hábito
penitencial perpétuos, sem remissão. A 22 de Novembro de 1590, era-lhe retirado o hábito e mandada em paz. 290
Cf. ANTT, IE, proc. 11315. O processo de Branca Henriques encontra-se incompleto e, assim,
desconhecemos o seu desfecho. 291
Cf. ANTT, IE, proc. 1548.
79
deste, Isabel Mendes. Nenhum dos dois ficou imune às denúncias. João Rodrigues foi
preso em 1588 e a mãe no ano seguinte292
.
Quase todas as mulheres que judaizaram nas cabanas no Moinho do Diabo foram
delatadas por um parente em comum, Manuel Fernandes Estaço, alfaiate natural de
Silves mas residente em Lagos. Também ele se apresentou perante Manuel Álvares
Tavares durante a visitação. Contou então que, na noite da morte da prima Isabel
Mendes, mãe das Estaças, tomou um cântaro quase vazio, entornou o que restava na rua
e encheu-o com água da chuva. Não teve nenhuma intenção judaizante, afirmou. Sem
conseguir convencer o visitador, Manuel Fernandes tornou-se num dos primeiros
cristãos-novos presos em Lagos após 1585. Já em Évora, confessou com relativa
prontidão (menos de um mês depois de ter entrado nos cárceres) que a prima Beatriz
Simões fora a sua primeira mestre na Lei de Moisés. Numa noite de São João, depois
das avé-marias, ele vira-a a deitar umas brasas acesas na água. Ao questioná-la porque o
fazia, a prima ter-lhe-ia respondido:
“[...] que sendo ele tão velho, que já devia saber aquilo e que o Senhor mandava
fazer aquilo na noite de S. João e Natal e que tempo era já, pois era tão velho, de ter
conhecimento do Senhor, o qual concedera a Moisés tudo o que lhe pedia pelos
bons jejuns e orações que fazia e que neste Senhor havia de crer e confiar, o qual
estava nos altos céus e não vinha à terra e que Nosso Senhor Jesus Cristo não era
Deus, nem era nada, e que era filho de Maria, a qual era tão pobre que não tinham
com quem casar e casou com um carpinteiro, e que o parira sem ser virgem e com
dores, como parira sua mãe a ele, confitente, e que, por isso, a lei dos cristãos não
era boa nem prestava para nada [...]”.293
Este foi o ensino tardio de Manuel Fernandes Estaço que, quando chegou aos
cárceres, contava já com mais de 50 anos de idade. Saiu reconciliado com cárcere e
hábito penitencial perpétuos no auto de 2 de Agosto de 1587. Nos anos seguintes, ainda
tentou a redução da pena, mas sem sucesso. As denúncias continuavam a chegar à mesa
– blasfémias, comportamento indecoroso, críticas à acção do Santo Ofício – e tal não
facilitava as suas pretensões. Em Setembro de 1595, o tribunal de Évora foi informado
que Manuel Fernandes havia partido para o Algarve sem a devida autorização. Faleceu
pouco tempo depois294
.
A confissão de Manuel Fernandes provocou a prisão doutras duas parentes: Inês
Martins e Isabel Jorge, filhas de Jorge Vaz Pequeno, piloto cristão-velho, e de Leonor
Mendes, cristã-nova. Segundo as duas irmãs, foi Beatriz Simões quem as iniciara – não
292
Cf. ANTT, IE, procs. 8735 e 8516. 293
Cf. ANTT, IE, proc. 6015. 294
Cf. Idem.
80
rezariam o rosário a Nossa Senhora e só se encomendariam ao “Deus Grande”295
. Isabel
Jorge contou que, estando a vindimar numa vinha de Beatriz Simões, esta perguntara-
lhe se ela queria ser cristã-nova ou cristã-velha, aludindo ao facto de ser filha de um
casamento misto. Então, aconselhou-a “[...] que fosse cristã-nova porque seria muito
rica e que, para o ser, que havia de apertar-se e toucar-se nos dias de sábado e vestir-se
neles melhor que nos outros dias e que, às sextas-feiras à tarde, pusesse na candeia
torcidas novas [...]”296
. Uma outra irmã, Filipa Jorge, também teve a mesma mestre,
segundo referiu no seu processo inquisitorial297
.
Os processos revelam uma Beatriz Simões responsável pela iniciação de várias jovens
da sua família na crença e práticas da Lei de Moisés. E não só no tempo da peste. Porém,
a confissão e as abundantes denúncias que apresentou salvaram-na da pena máxima.
Os Gramaxo
Desde que se casou, Leonor de Sousa cozinhava a carne magra em cebola frita em
azeite, quando não tinha toucinho, e tirava a landoa do quarto traseiro da rês miúda.
Como o marido costumava chegar à sexta-feira, vindo de fora, ela tinha o hábito de
colocar lençóis lavados na cama nessas noites. Porém, nunca o fez com má intenção –
foi o que a própria Leonor de Sousa confessou perante o visitador a 1 de Junho de 1585.
Ela tinha sido previamente denunciada: guardava os sábados de trabalho e mantinha as
reservas alimentares prescritas pela Lei de Moisés298
. As irmãs Branca de Sousa e Ana
Gramaxo também se apresentaram no decorrer da visita inquisitorial. Na Quaresma
anterior, porque estava grávida e “por não perigar a barriga”, Branca de Sousa comera
carne. Durante a peste, por ocasião da morte de duas irmãs, dera panos novos para
295
Cf. ANTT, IE, proc. 5365. Inês Martins era casada com Vicente Gonçalves, cristão-velho, piloto da
carreira da Índia. Foi presa nos cárceres de Évora a 26 de Julho de 1587, tal como a irmã Isabel Jorge,
com a única denúncia de Manuel Fernandes. Saiu no auto de 10 de Julho de 1588, com cárcere e hábito
penitencial perpétuos. Enquanto estava presa, a sua filha Leonor Domingues, com apenas 15 anos de
idade, foi encarcerada em Évora a 11 de Outubro de 1589, depois de denunciada por Beatriz de Oliveira,
filha de Filipa Henriques. Saiu no auto de 31 de Março de 1591, com cárcere e hábito penitencial ao
arbítrio dos inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 8088). 296
Cf. ANTT, IE, proc. 8654. Isabel Jorge, tal como a irmã, também era casada com um cristão-velho,
Estêvão Luís, marinheiro. Saiu no auto de 10 de Julho de 1588. Foi-lhe sentenciado cárceres e hábito
penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Cinco dias depois, era-lhe tirado o hábito e mandada em paz. A 9
de Março de 1589, informava o Santo Ofício que iria viver para Setúbal, para junto da sogra. 297
Cf. ANTT, IE, proc. 7906. Segundo Filipa Jorge, Beatriz Simões frequentava muito a casa da irmã
Isabel. Numa ocasião, esta ensinou-lhe que deveria guardar os sábados e fazer o jejum da Rainha Ester.
Filipa Jorge foi presa a 22 de Agosto de 1589. Tal como as irmãs, era casada com um cristão-velho,
Jácome Martins, tanoeiro. 298
Cf. ANTT, IE, proc. 1491.
81
amortalhar os corpos299
. A confissão de Ana Gramaxo, por outro lado, incidiu
substancialmente nos costumes alimentares e na indumentária dos sábados300
. Leonor e
Branca de Sousa entraram nos cárceres de Évora logo em 1586, enquanto Ana Gramaxo
só foi presa na vaga de 26 de Julho de 1587.
Branca de Sousa, depois de alguma resistência, acabou por confessar que fora
ensinada pela mãe. Primeiramente, denunciou as irmãs entretanto já falecidas, Violante
e Isabel Gramaxo, e só delatou as irmãs vivas nas últimas sessões. Quanto à irmã
Leonor, Branca propôs aos inquisidores que a colocassem na sua cela, para que a
pudesse “[...] encaminhar no que lhe convém [..]”. A proposta não foi aceite: “[...] foi-
lhe dito que trate ela de se encaminhar bem em suas cousas e descarregar de todo sua
consciência que o que parecer nesta mesa que convém pera salvação das almas se
proverá [...]”301
. As dúvidas de Branca de Sousa tinham um fundamento. Muitas
contradições e confusões pautaram a confissão de Leonor de Sousa e só sob tormento é
que ela adiantou algo mais para lá do que confessara durante a visitação302
.
Quando denunciou a outra irmã, Aldonça Gramaxo, Branca de Sousa disse que fora
“[...] como arrancar os olhos, por estar casada com Pero Jaques, cristão-velho [...]”303
.
Além de cristão-velho, Pero Jaques tinha uma posição social privilegiada: era almotacé
e vereador em Alvor. O estatuto do marido foi um argumento usado pela própria
Aldonça Gramaxo em sua defesa, mas sem o resultado esperado. Ela acabou por ceder e
delatou uma outra irmã, Isabel de Sousa, então a residir em Almodôvar304
.
As cinco irmãs pertenciam a uma importante família de homens de negócio de Vila
Nova de Portimão. Quer o pai, Nicolau Martins, quer os tios paternos Fernão e Nuno
Martins eram mercadores. O comércio consistia também na actividade dominante entre
os parentes maternos305
. Um dos tios, Álvaro Gramaxo, emigrara para Cartagena das
Índias por volta de 1583, onde fez fortuna no tráfico negreiro306
.
299
Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 300
“[...] tira o sebo à carne todo o que pode, por haver nojo dele, e, quando coze galinha ou perdiz e
não tem toucinho, deita na panela azeite frito com cebola para lhe dar sabor [...]”;“[...] aos sábados,
quando vai fora, põe touca lavada na cabeça, para ir limpa, como faz também nos outros dias quando
vai fora [...]”. (Cf. ANTT, IE, proc. 767). 301
Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 302
Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 303
Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 304
Cf. ANTT, IE, proc. 4605. 305
Os tios Diogo Fernandes Gramaxo e Jorge Gramaxo eram mercadores, o primeiro em Beja, o segundo
em Vila Nova de Portimão. Também o avô, Luís Fernandes, fora mercador. 306
Cf. Maria da Graça Ventura, Portugueses no Peru ao Tempo da União Ibérica: Mobilidade,
Cumplicidades e Vivências, vol. I, tomo II, Lisboa, IN-CM, 2005, p. 397. Numa relação dos cristãos-
novos ausentes do reino, em 1613, ele é apresentado com um mercador de 60 anos, que vivia na Laguna
82
Os Gramaxo tornaram-se numa das famílias mais atingidas nesta vaga de prisões.
De facto, as prisões não se esgotaram nas cinco filhas de Nicolau Martins. Com Leonor
de Sousa, foi presa a prima Inês Gramaxo, também denunciada durante a visitação. Era
acusada de ter dado um pano novo para servir de mortalha ao corpo da sua mãe, Isabel
Gramaxo, falecida durante a peste307
. Dois anos depois, a Inquisição prendia a sua irmã
Aldonça Gramaxo, denunciada pela prima Isabel de Sousa por guardar os sábados de
trabalho. Aliás, a confissão de Isabel de Sousa esteve na origem da prisão de outras duas
primas, filhas do tio paterno Nuno Martins, Catarina e Beatriz Gonçalves, entregues nos
cárceres de Évora a 20 de Março de 1591308
.
Apesar desta sequência de prisões, confissões e denúncias aparentemente se
circunscrever aos círculos femininos, a verdade é que os cônjuges de algumas das
Gramaxo não ficaram incólumes à repressão inquisitorial. Logo durante a visitação de
1585, Fernão de Álvares Gramaxo, marido de Inês Gramaxo, foi denunciado309
.
Tinham-no visto a escarrar no chão da igreja de São Francisco, em Vila Nova de
Portimão. Porém, outra acusação conduziu-o aos cárceres – a da sobrinha Mor Álvares.
A 22 de Agosto de 1589, Fernão de Álvares entrava nos calabouços de Évora. Filho de
Álvaro Gomes, relaxado à justiça secular em 1561, ele vivera durante mais de 30 anos
em Cádis e servira como militar na praça de Mazagão. Na sua defesa, Fernão de Álvares
apresentou uma carta de D. Francisco de Mendonça Furtado, governador de Mazagão, a
qual testemunhava o seu zelo cristão e os serviços prestados durante o tempo em que
esteve na praça310
. Estes argumentos revelaram-se suficientes para sair reconciliado com
cárcere ao arbítrio dos inquisidores.
Uma das testemunhas contraditadas por Fernão de Álvares Gramaxo foi o sobrinho
Francisco Nunes de Sousa, casado com Ana Gramaxo. Devido aos negócios, Francisco
Nunes, o Bruxo, vivia em constante périplo entre o Algarve e Castela. Segundo o
testemunho da irmã Mor Álvares, principal responsável pela sua prisão, ele prometera-
do Malacaio, em Terra Firme, e com uma fortuna avaliada em 5 ou 6 mil cruzados (Cf. ANTT, TSO, CG,
mç. 7, doc. 2618, fl. 1). 307
Cf. ANTT, IE, proc. 8925. 308
Cf. ANTT, IE, procs. 4754 e 5994. Saíram ambas no auto de 31 de Março de 1592, reconciliadas com
cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 309
Inês Gramaxo tinha sido casada, em primeiras núpcias, com um cristão-velho, Fernão Gil, de quem
teve dois filhos, Fernão Gil e Luís Afonso. 310
Refere a carta que Fernão de Álvares Gramaxo “[...] procedeu em todas as cousas de serviço de Deus e
de Sua Majestade, como foi mandar avisos no tempo do cerco e cativos com mouros, dando-lhe, para isso,
seu dinheiro, e outros que ordenavam fugirem, os metia em sua casa e lhes tirava os ferros e encaminhava
com alforjes para o caminho e persuadiu muitos elches que se tornassem à fé, os quais se aqui lançaram per
sua ordem e a cativos que se queriam tornar elches lhes acudia com dádivas para os sustentar na fé, pondo-se
a muito risco de perder sua fazenda e juntamente a vida [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 5071).
83
lhe que se apresentaria perante a Inquisição de Sevilha, algo que nunca chegou a fazer.
Aliás, Francisco Nunes não confessou nenhuma prática judaizante durante o período de
mais de dois anos em que esteve preso. E as acusações multiplicavam-se. Frei Luís de
Portalegre, do mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, em Vila Nova de Portimão,
contou que fora abordado por ele e pelo Licenciado João Fernandes Quaresma, os quais
lhe mostraram um papel com as acusações pronunciadas contra uma sua parente presa
em Évora e pediram-lhe que interrogasse sobre o assunto uma mulata, criada de uma
mulher conhecida como a Solimoa. Chamada à mesa, a dita mulata acabou por implicar
ainda mais profundamente Francisco Nunes, ao afirmar que ele a visitara em sua casa e
a tentara persuadir a testemunhar que as acusações escritas no tal papel eram falsas. Em
troca, prometeu-lhe “uma boa peça”. Apesar destas denúncias, Francisco Nunes foi
reconciliado. Em Novembro de 1593, conseguiu uma licença para ir a Castela, onde,
segundo alegou aos inquisidores, tinha muitas contas e escrituras de obrigações em
aberto311
.
Mas as consequências da opressão inquisitorial sobre esta família de Vila Nova de
Portimão ultrapassaram as detenções. Vê-lo-emos mais à frente312
.
A mezinha do mau-olhado
Diogo Lopes, ferreiro residente em Vila Nova de Portimão e um dos primeiros
cristãos-novos presos após a visitação de 1585, denunciou a própria esposa. Numa
ocasião, para “lhe tirar a calma”, Joana de Barros aplicara-lhe uma mezinha:
“[...] quando a dita sua mulher lhe fez aquela cerimónia para a calma, que tomou
três tigelas com água e lhe deitou em cada uma certas gotas de azeite que lhe
parece que eram três em cada uma delas e, depois, acendeu umas estopas e
apagava-as na tigela com água e, depois, punha a tigela assim com as estopas
apagadas sobre a cabeça dele, declarante, e o mesmo lhe tornou a fazer com a
segunda e a terceira tigela, dizendo em cada uma delas certas palavras que ele, ao
presente, não lembra, nem as ouvia quando a dita sua mulher lhas dizia [...].”313
311
Cf. ANTT, IE, proc. 8783. Francisco Nunes de Sousa abjurou de vehementi no auto de 31 de Maio de
1592 e foi condenado a cárcere ao arbítrio dos inquisidores. 312
Vide infra, pp. 186-190. 313
Cf. ANTT, IE, proc. 2871. Diogo Lopes foi preso a 25 de Março de 1586. Saiu no auto de 2 de Agosto
de 1587, sendo-lhe sentenciado cárcere e hábito penitencial perpétuos. Depois de reconciliado, chegaram
à mesa mais acusações: andava sem hábito penitencial e criticava publicamente a actuação do Santo
Ofício. Por essa razão, em 1592, foi preso na cadeia pública de Évora. Porém, a 14 de Dezembro de 1594,
tiraram-lhe o hábito penitencial e mandaram-no em paz.
84
Segundo Diogo Lopes, Joana de Barros tinha-se apresentado ao visitador em 1585.
Porém, não encontrámos nenhum registo que o comprove. Apenas sabemos que, em
1587, e na sequência da denúncia do marido, ela foi presa.
Mas afinal, que cerimónia era esta? Os processos revelam que alguns membros da
família de Joana de Barros, sobretudo as mulheres mais velhas, executavam-na. Além de
Joana, outras duas parentes seriam praticantes e mestres da cerimónia: a cunhada Grácia
Lopes e a irmã Beatriz de Barros. As três mulheres rondavam então os 50 anos de idade.
Durante a peste, enquanto esteve nas cabanas de Silves, Beatriz de Barros adoeceu e a
sua filha Branca Vaz tentou fazer-lhe a “mezinha do olhado”, mas foi incapaz de
completá-la. Branca Vaz acabou presa pelo Santo Ofício, tal como o pai, Cristóvão
Rodrigues, e a maior parte dos irmãos. A irmã mais velha, Grácia Rodrigues, fora a
principal denunciante da família314
. Só as irmãs mais novas, Joana e Catarina, então ainda
muito jovens, e o irmão Manuel de Barros, ausente do reino, escaparam ao cárcere315
.
O patriarca, Cristóvão Rodrigues, era sapateiro e costumava circular entre o Algarve
e a Andaluzia, em negócios. Segundo confessou perante a Inquisição de Évora, foi num
desses périplos pelo sul de Castela que tomou o primeiro contacto com a Lei de Moisés.
Por volta de 1564, esteve durante 14 dias em Cádis, hospedado na casa de um mercador
natural de Tavira, João Dias, o qual foi o seu mestre. Quando regressou a Vila Nova de
Portimão, viu a sua sogra a tirar a gordura à carne do mesmo modo que testemunhara na
casa de João Dias. Cristóvão Rodrigues interpelou-a e a sogra confirmou que tal era
uma cerimónia da “Lei Velha”. No Algarve, Cristóvão continuou a manter alguns
rituais, sobretudo dentro do círculo familiar316
. A sobrinha Beatriz Lopes, presa em
1592, recordou a forma como o tio doutrinava a família: “[...] lia por um livro que era a
Bíblia e dizia ali que a Lei de Moisés era a boa e com esta haviam de salvar e quem
tivesse crença nela seria rico e que, por guarda da dita lei, haviam de guardar os sábados
314
O processo de Grácia Rodrigues encontra-se desaparecido. O pai e os irmãos Francisca de Barros,
Maria da Conceição, António de Barros e Branca Vaz entraram nos cárceres de Évora a 20 de Novembro
de 1590 (Cf. ANTT, IE, procs. 6009, 2437, 7856 e 8933. Desconhece-se o paradeiro do processo de
Branca Vaz). Dos irmãos presos, Belchior de Barros foi o único que não chegou ao cárcere devido a uma
denúncia de Grácia Rodrigues. Ainda muito jovem no momento em que os pais e os irmãos foram presos,
com cerca de 12 anos, Belchior acabaria por se apresentar em Évora dois anos depois, a 6 de Junho de
1592. Saiu no auto de 12 de Junho de 1594, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos
inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 8973). 315
Maria da Conceição confessou que a irmã Francisca de Barros tentara convencê-la a não denunciar o
irmão Manuel de Barros. As duas partilhavam a cela e Francisca ter-lhe-ia dito “[...] que não diga o que
passou acerca da lei de Moisés com seu irmão Manuel de Barros e que diga, nesta mesa, que há dez anos
que se foi para a Índia e que não comunicou com ele nada da dita lei de Moisés [...]”, acrescentando que
ela própria nunca o denunciaria “[...] porque estava na Índia muito rico e que viria pouco brio nela [...]”.
(Cf. ANTT, IE, proc. 7856). 316
Cf. ANTT, IE, proc. 6009.
85
de trabalho e vestir neles camisa lavada [...]”317
. Beatriz Lopes era filha de Branca
Rodrigues, irmã de Cristóvão. A 9 de Maio de 1592, ela e quatro dos seus seis irmãos –
Luís Fernandes, Isabel Lopes, Pedro Fernandes e Margarida Lopes – entraram nos
cárceres de Évora318
. No mesmo dia, também foram presas as primas Maria e Catarina
Lopes, denunciadas pela mãe, Clara Álvares, irmã de Cristóvão Rodrigues319
. Foram
processos curtos, que duraram menos de um mês (exceptuando Margarida Lopes,
saíram todos no auto de 31 de Maio), com confissões circunscritas ao meio familiar.
A prática da mezinha do mau-olhado não era exclusiva da família Barros de Vila Nova
de Portimão. Em Lagos, Branca Simões acusou a mãe, Beatriz Lopes, também ela uma
quinquagenária, de lhe fazer a “cerimónia do olhado” quando tinha dores de cabeça320
.
Francisco Lopes Sardinha, sapateiro natural de Vila Nova de Portimão e residente em
Lagos, confessou que, numa ocasião, estando doente, foi assistido por Leonor Fernandes, a
qual praticou “[...] uma mezinha com tigelas que era da Lei de Moisés [...]”321
.
A associação desta cerimónia a uma prática judaizante não é clara. Diogo Lopes, só
depois de muito pressionado pelo inquisidor Lopo Soares de Albergaria é que a
identificou como tal322
. Por outro lado, Joana de Barros nunca o fez. Segundo disse, a
cerimónia ter-lhe-ia sido ensinada por uma cigana. As únicas palavras que pronunciava
durante a prática eram ditas no final e resumiam-se a: «Esta deito por mal olhar e esta
por mal falar e esta por mal quedar»323
. Porém, a sua irmã Beatriz de Barros referiu que
tinha aprendido a mezinha com Grácia Lopes e que, enquanto deitava as gotas de azeite
nas tigelas, recitava a seguinte oração: «Em nome de Adonai, em nome de Abraão, em
nome de Isaac»324
.
Esta invovação é o único elemento que estabelece um elo entre a dita cerimónia do
mau-olhado e o criptojudaísmo. Os elementos utilizados, o azeite e a água, eram
317
Cf. ANTT, IE, proc. 7911. 318
Cf. ANTT, IE, proc. 8397, 7331 e 8948. O processo de Margarida Lopes encontra-se desaparecido. O
irmão João Fernandes, mareante residente em Tavira, só foi preso em 1600 (Cf. ANTT, IE, proc. 8928).
Relativamente à outra irmã, Maria Lopes ou Maria das Neves, a mais nova da família, não se conhece
nenhum processo. 319
Cf. ANTT, IE, proc. 642 e 7711. Clara Álvares foi presa em 1591 e saiu no mesmo auto de 31 de Maio
de 1592, com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IE, proc. 10546). Ainda durante o ano de
1591, foram detidos Francisco Lopes e João Rodrigues, respectivamente filho e irmão de Clara Álvares
(Cf. ANTT, IE, proc. 7531. Desconhece-se o paradeiro do processo de João Rodrigues). 320
Cf. ANTT, IE, proc. 8086, fl. 13v. 321
Cf. ANTT, IE, proc. 7531. 322
Cf. ANTT, IE, proc. 2871. 323
Cf. ANTT, IE, proc. 8541. 324
Cf. ANTT, IE, proc. 8185. O processo de Beatriz de Barros está desaparecido. Esta referência
encontra-se no traslado das culpas de Grácia Lopes.
86
correntes nas benzeduras e remédios populares325
. Além do mais, é no quadro das crenças
populares que determinados sintomas aparecem associados a uma origem sobrenatural,
como o mau-olhado326
.
Contudo, os inquisidores continuaram a insistir na identificação da mezinha com
práticas judaizantes. A “qualidade” dos praticantes indiciava-o. E não era a primeira vez
que a ouviam associada à crença na “Lei de Moisés”. Em 1560, presa nos cárceres da
Inquisição de Évora, Catarina Mendes, a mãe de Grácia Mendes de Vila Nova de
Portimão, narrou o que costumava fazer quando a filha se queixava de dores de cabeça –
lambia-lhe a testa por três vezes, dizendo «Eu te pari, eu te lambo, como lambe a vaca ao
seu nado», e depois tomava umas tigelas, onde lançava azeite com o dedo, rogando pelo
nome de Deus, de Abrão e de Arão. Fazia-o com intenção de judia, segundo afirmou327
.
Multiplicam-se as prisões em Vila Nova de Portimão
46 prisões em 1591 e 1592 – foram estes os anos mais dramáticos para os cristãos-
novos de Vila Nova de Portimão. Famílias inteiras entraram nos cárceres de Évora.
Alguns foram presos à primeira denúncia, outros havia anos que acumulavam
acusações. Era o caso de Margarida Fernandes que, logo durante a visitação de 1585, se
apresentou perante o inquisidor Manuel Álvares Tavares e denunciou as filhas de Isabel
Gramaxo, com quem tinha ligações de parentesco e partilhara o “degredo da peste”328
.
Desde 1588 que chegavam à Inquisição de Évora culpas contra Margarida Fernandes.
Porém, ela só foi presa em Março de 1591, com a filha Isabel Guterres. Ambas
resistiram à confissão e apresentaram vários artigos de contraditas. Isabel Guterres ainda
superou a mãe na relutância em admitir práticas judaizantes e só sob tormento
confessou ter sido ensinada por Inês Nunes, cristã-nova relaxada pela Inquisição de
325
O azeite representava a pureza, a prosperidade e o espirito divino e entendia-se que teria propriedades
curativas em doenças provocadas por espíritos e ares corruptos. A água era símbolo da vida e da
purificação. Vide José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”: 1600-1774,
2ª edição, Lisboa, Editorial Notícias, 2002, pp. 133-134. 326
Eram vários os sintomas do “mau-olhado” – febres altas, dores de corpo e de cabeça, ansiedade,
desmaios – e, como se vê, comuns a uma série de enfermidades. (Cf. Maria Benedita Araújo, A medicina
popular e a magia no Sul de Portugal. Contribuição para o estudo das correntes mentais e espirituais
(fins do séc. XVII a meados do séc. XVIII). Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, Lisboa, 1988, exemplar policopiado, p. 56). 327
Cf. ANTT, IL, proc. 12909, fls. 36-36v. 328
Margarida Fernandes era nora de João Fernandes Campos, irmão de Luís Fernandes, pai da dita Isabel
Gramaxo (Cf. ANTT, IE, proc. 7330).
87
Évora em 1588329
. Na sessão seguinte, voltou a hesitar. Mesmo assim, conseguiu
escapar à pena máxima e foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial perpétuos,
sem remissão.
Tal como a mãe, Isabel Guterres fora denunciada pela tia Leonor Fernandes, presa
em Agosto de 1589 e cuja confissão provocou a prisão de vários parentes do marido,
Bartolomeu Dias330
. Aliás, desde 1591 que os cárceres de Évora eram povoados por
membros da família Dias. A 16 de Julho desse ano, era presa a matriarca, Constança
Dias, então com 70 anos. Ela apenas iniciou a confissão cerca de dois anos e meio
depois. Havia, então, cerca de 20 anos que fora ensinada pela mãe, Beatriz Ferreira. Um
ensino tão tardio, quando tinha já perto de 50 anos, não convenceu os inquisidores. As
sessões prolongaram-se, a confissão e as denúncias também. Saiu no auto de 12 de
Junho de 1594, sentenciada a cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão331
.
No momento em que Constança Dias começou a confessar, já parte da família
estava nos calabouços. A filha Catarina Dias, entregue na Inquisição de Évora a 20 de
Março de 1591, junto com tantos outros cristãos-novos de Vila Nova de Portimão,
esteve presa durante mais de 5 anos. Arrancada a ferros, a sua confissão estendeu-se por
várias sessões e acabou por ser tão infértil em novas denúncias quanto a da mãe.
O mesmo já não se poderá dizer das delações da prima Catarina Dias, presa na
mesma altura. Ela chegou aos cárceres na companhia da irmã Isabel Mendes, ambas
denunciadas pela tia Leonor Fernandes332
. As duas eram filhas de Álvaro Dias, irmão de
Constança Dias. A confissão de Catarina Dias, também tardia e sob tormento, provocou
a prisão das primas Francisca Dias e Beatriz Vaz, filhas de Constança Dias333
. As duas
foram também delatadas pelo irmão Gabriel Dias334
. Preso a 7 de Maio de 1592, não era
esta a primeira vez que a qualidade da sua fé levantava suspeitas. Anos antes, Gabriel e
a esposa, Branca Gonçalves, tinham sido acusados de comer carne em dias defesos. A 3
de Fevereiro de 1574, António Mimoso, vigário de Tavira e visitador, condenou-os ao
pagamento de 2 mil réis destinados a obras pias. Foi com estes antecedentes que Gabriel
329
O processo de Inês Nunes encontra-se desaparecido. Denunciada durante a visitação de 1585, foi uma
das primeiras cristãs-novas de Vila Nova de Portimão a ser presa, a 25 de Março de 1586. Era irmã de
Francisco Nunes de Sousa, marido de Ana Gramaxo. 330
Cf. ANTT, IE, proc. 8092. 331
Cf. ANTT, IE, proc. 11368. 332
Leonor Fernandes era casada com Bartolomeu Dias, tio paterno de Catarina Dias e de Isabel Mendes. 333
Cf. ANTT, IE, proc. 9034. Catarina Dias saiu no auto de 12 de Junho de 1594, reconciliada com
cárcere e hábito penitencial perpétuos. A 11 de Agosto desse mesmo ano, recebia autorização para ir
cumprir a pena em Vila Nova de Portimão. Acabaria por falecer a 28 de Dezembro de 1605. 334
Cf. ANTT, IE, procs. 6441 e 9329.
88
Dias chegou aos cárceres. Ele não hesitou em confessar, o que lhe valeu uma pena mais
leve do que a aplicada à maior parte dos seus parentes. Profícuo nas denúncias, Gabriel
conduziu outros elementos da família aos calabouços da Inquisição de Évora, entre eles
o sobrinho Henrique Dias, filho de Catarina Dias, seu aprendiz no ofício de sirgueiro335
.
Aliás, Henrique havia sido criado na casa do tio desde tenra idade e foi ele quem lhe
ensinou, além do mester, os primeiros preceitos da Lei de Moisés336
. Quando foi preso,
a irmã Maria Fernandes já se encontrava encarcerada337
. Mais tarde, em 1596, uma
outra filha de Catarina Dias, Perpétua Fernandes, foi detida338
.
Mas regressemos a Leonor Fernandes, a grande delatora da família Dias. A partir
das suas denúncias, começou o calvário de um outro ramo desta prole, cujo patriarca era
Diogo Dias, então já falecido339
. A 9 de Maio de 1592, entravam nos cárceres de Évora
a filha Beatriz Dias, a nora Maria Rodrigues e a neta Catarina Dias. Beatriz Dias fora
acusada por Leonor Fernandes de praticar os jejuns judaicos. Na sua confissão, contou
que fora ensinada por Margarida Fernandes (irmã de Leonor Fernandes). Quanto a
Maria Rodrigues e à filha Catarina Dias, elas entraram nos cárceres na sequência das
denúncias de Inês Fernandes e de Grácia Lopes, filhas de Pedro Fernandes, o Branco.
No final de 1592, poucos eram os elementos da família deste rendeiro de Vila Nova de
Portimão que se encontravam em liberdade.
Pedro Fernandes nasceu em Azamor mas, ainda muito jovem, partiu com os pais
para Tavira, de onde era natural a sua família. Antes de ser rendeiro, fora alfaiate. Em
Vila Nova de Portimão, casou-se com Grácia Lopes, de quem teve 10 filhos. Todos
acabaram presos pela Inquisição, exceptuando o único filho varão, João Lopes, ourives,
casado em Tavira e a viver na Guiné no início dos anos 90.
A mulher de Pedro Fernandes, Grácia Lopes, foi a primeira a ser presa, em Março
de 1591, após a denúncia de Beatriz de Barros, esposa de Cristóvão Rodrigues. Ela
tinha ligações familiares aos Barros – era irmã de Diogo Lopes, o marido de Joana de
335
Cf. ANTT, IE, proc. 8789. Gabriel Dias saiu no auto de 12 de Junho de 1594 e, pouco mais de quatro
meses depois, foi-lhe levantada a pena. A sua esposa, Branca Gonçalves, também acabaria por ser presa,
em 1594. Porém, o seu processo encontra-se desaparecido. Eles eram pais de Gaspar Fernandes de Leão
que, em 1619, foi preso pela Inquisição de Évora. (Cf. ANTT, IE, proc. 12326). 336
Cf. ANTT, IE, proc. 11297. Henrique Dias saiu no auto de 12 de Maio de 1596, reconciliado com
cárcere e hábito penitencial perpétuos. 337
Cf. ANTT, IE, proc. 9186. Maria Fernandes foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial
perpétuos, sem remissão, no auto realizado a 12 de Junho de 1594. 338
Cf. ANTT, IE, proc. 9690. Perpétua Fernandes foi entregue nos cárceres de Évora a 30 de Abril de
1596. Foi-lhe sentenciado cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 339
Diogo era primo direito de Bartolomeu Dias, marido de Leonor Fernandes.
89
Barros340
. Ainda em 1591, no mês de Novembro, entravam nos cárceres duas das suas
filhas mais velhas, Branca Lopes e Inês Fernandes, ambas casadas com cristãos-
velhos341
. Estes primeiros processos culminaram nas prisões do pai e das restantes
irmãs. Todos deram entrada nos calabouços da Inquisição de Évora a 9 de Maio de
1592, exceptuando Ana Fernandes, presa em Novembro342
.
Quase um ano após a prisão, Pedro Fernandes começou a confessar. Fora a esposa
quem o ensinara, dizendo que “[...] se ele, confitente, se queria salvar, lhe era necessário
passar-se à dita Lei de Moisés e crer nela e não na Lei de Cristo Nosso Senhor, o qual não
tivesse por Deus, nem por Messias, antes esperasse por ele [...]”343
. Grácia Lopes teria
sido a mestre da família. Quase todas as filhas referem a iniciação no seio familiar, junto
dos pais e das irmãs. Isabel Lopes foi a excepção. Ela confessou que ouviu falar na Lei de
Moisés, pela primeira vez, na casa de Cristóvão Rodrigues, pela voz de Branca Vaz344
.
As confissões de Pedro Fernandes e das filhas evidenciam uma certa coerência: os
denunciados são praticamente os mesmos, as referências temporais e espaciais também
não variam muito. Afinal, ele e a maior parte das filhas tinham sido presos em
simultâneo. Ora, nos dias de viagem que separam Vila Nova de Portimão de Évora,
houve oportunidade de combinar testemunhos. Catarina Fernandes chegou mesmo a
referir que o pai a tentara convencer a não confessar:
“[...] em um dia, que lhe não lembra qual era, vieram ter a um lugar, que outrossim
não é acordada como se chamava, a jantar e, estando aí, seu pai as apartou a todas,
tirando a dita Beatriz Fernandes, que se não achou então na dita companhia, e lhes
disse que não confessassem suas culpas nesta mesa, ainda que lhas perguntassem e
que negassem porque ele havia de fazer o mesmo [...].”345
A única irmã que, segundo Catarina Fernandes, não teria ouvido as recomendações
do pai foi a única a segui-las. Beatriz Fernandes permaneceu irredutível e dos seus
lábios não saiu uma única confissão ou denúncia. Acabou relaxada à justiça secular, no
auto de 12 de Junho de 1594346
.
340
Cf. ANTT, IE, proc. 8185. 341
Cf. ANTT, IE, procs. 6984 e 875. 342
Cf. ANTT, IE, procs. 5259, 7357, 11123, 7973, 9345, 9261, 3134 e 4606. 343
Cf. ANTT, IE, proc. 5259. 344
Cf. ANTT, IE, proc. 11123. 345
Cf. ANTT, IE, proc. 8261. 346
Cf. ANTT, IE, proc. 7357.
90
A vaga extingue-se
Nos anos finais da década de 90, o número de prisões no Algarve começou a entrar
em queda. Porém, continuavam a chegar denúncias que revelavam como a Inquisição,
apesar das prisões efectuadas superarem a centena, ainda deixara algumas pontas soltas
em Vila Nova de Portimão. A 25 de Junho de 1597, apresentou-se Frei António
Rodrigues, dominicano natural de Elvas, então a cumprir o degredo na galé Fortaleza.
Ele fora ermitão na ermida de Santa Catarina de Ribamar, em Vila Nova de Portimão,
por volta de 1587. Nesse tempo, testemunhou como os dois frades que o acompanharam
até ao Algarve, onde tomaram o hábito franciscano, Frei Martinho e Frei Tomé,
frequentavam a casa de António da Palma, paredes meias com o mosteiro que lhes
servia de residência. Ali, os dois ensinavam a Lei de Moisés a outros cristãos-novos: a
mulher de António da Palma, Inês Dias, e as filhas; Duarte Nunes, mercador de panos, e
a mulher, conhecida como a Formosinha; Inês Dias, padeira; António Toirelo e a sua
mulher, Branca Delgada. Passado um ano, Frei Martinho partiu para Lagos, onde,
segundo lhe confidenciou mais tarde, teria conseguido converter à fé judaica uma
fidalga, D. Joana Pinta347
. Nenhum dos cristãos-novos de Vila Nova de Portimão
nomeados por Frei António Rodrigues foi preso. Pelo menos, não há registo de tal.
Três anos mais tarde, a 10 de Agosto de 1600, um grupo de cristãos-novos algarvios
chegou aos cárceres da Inquisição de Évora. Entre eles, estava Violante Quaresma, de
Vila Nova de Portimão, casada com António Rodrigues, rendeiro, e denunciada pelo
irmão Simão Álvares, preso 6 anos antes348
. A denúncia remontava a 27 de Setembro de
1597, mas ela só foi detida quase 3 anos depois. O facto da confissão do irmão ter
inspirado pouco crédito, o que conduziu à aplicação da pena máxima, teria pesado para
o prolongamento deste período entre a denúncia e a prisão. Além do mais, era a única
acusação contra Violante Quaresma que, sem confessar e tendo apresentado uma sólida
defesa, acabou por ser posta em liberdade a 17 de Agosto de 1602, depois de abjurar de
levi na Igreja de São João, em Évora.
Os outros cristãos-novos do Algarve que entraram no cárcere inquisitorial no
mesmo momento de Violante Quaresma e que aparecem citados no seu processo eram:
Guiomar Gonçalves, mulher de Manuel Lopes, sirgueiro; Duarte Dias, sirgueiro; João
347
Cf. ANTT, IL, proc. 367, fls. 3-3v. A denúncia de Frei António Rodrigues é também citada em
António Baião, “A Inquisição em Portugal e no Brasil”, Archivo Historico Portuguez, vol. VIII, Lisboa,
[s.n.], 1910, pp. 54-55. 348
Cf. ANTT, IE, proc. 10250. Simão Álvares foi relaxado à justiça secular no auto celebrado a 28 de
Setembro de 1597.
91
Fernandes, irmão de Maria das Neves; e André Lopes, filho de Francisco Lopes,
ferreiro349
. Não consegui encontrar os processos de nenhum dos quatro. Porém,
confrontando com outros documentos, foi possível identificá-los, excepto a Guiomar
Gonçalves.
Duarte Dias era filho de Álvaro Dias e de Violante Mendes e pertencia à família Dias
de Vila Nova de Portimão350
. Quanto a João Fernandes, filho de Afonso Fernandes e de
Branca Rodrigues, era mareante e estivera cativo em Marrocos351
. Tal como os seus
irmãos Isabel Lopes, Beatriz Lopes e Luís Fernandes, ele fora denunciado por Cristóvão
Rodrigues e por outros elementos da família Barros352
. Contudo, ao contrário deles, João
escapou à prisão em 1592353
. Desconhecemos o porquê do seu processo só se ter iniciado
em 1600, mas talvez tenha pesado o facto dele então residir em Tavira, ao contrário dos
irmãos, detidos na sequência da vaga de prisões em Vila Nova de Portimão.
O outro cristão-novo preso com Violante Quaresma, André Lopes (ou André
Rodrigues), era sobrinho de Pedro Fernandes, o Branco. Quer o pai, Francisco Lopes,
quer os irmãos Francisco Rodrigues e Maria Rodrigues tinham sido presos pelo Santo
Oficio nos anos anteriores354
. Contudo, não encontrei qualquer denúncia contra ele.
Portanto, a maior parte do grupo pertencia aos núcleos familiares mais atingidos na
última vaga de prisões. Tratou-se de uma derradeira incursão do Santo Ofício, com vista
a deter os poucos elementos dessas famílias que haviam escapado às suas malhas. A
partir de então e até ao perdão geral de 1605, só conhecemos os processos de três
cristãos-novos residentes no Algarve – Filipe da Costa, Iria Lopes e Maria das Neves.
Os três eram naturais do Alentejo e foram presos por acusações que remontavam ao
tempo em que viviam fora do Algarve. Filipe da Costa, oriundo de Évora, havia cerca
de três anos que se estabelecera em Tavira355
. Similar era a situação de Iria Lopes,
natural de Messejana, que foi para Loulé quando se casou com Rui Dias, lavrador
cristão-velho, por volta de 1600, e, dois anos mais tarde, era presa pela Inquisição de
Évora356
. Pela mesma altura, foi detida Maria das Neves, em Castro Marim. Ela era
349
Cf. ANTT, IE, proc. 8928. 350
Vide, em anexo, genealogia 14, p. 147. 351
Cf. ANTT, IE, proc. 8928. 352
Cf. ANTT, IE, procs. 7331, 7911 e 8397. 353
Cf. ANTT, IE, procs. 2437, 3693 e 6009. Além de Cristóvão Rodrigues, João Fernandes foi também
delatado por Francisca de Barros e por Diogo de Barros. 354
Cf. ANTT, IE, procs. 7534 e 6446. 355
Cf. ANTT, IE, proc. 2666. Filipe da Costa saiu no auto de 9 de Junho de 1602, sendo-lhe sentenciado
cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 356
Cf. ANTT, IE, proc. 2152.
92
natural de Montemor-o-Novo, mas viveu durante muito tempo em Lisboa. Na sequência
de uma grande dívida contraída à fazenda real pelo marido, os dois fugiram para
Olivença e, mais tarde, estabeleceram-se em Aiamonte. Ali, tornaram-se próximos do
Marquês de Aiamonte, conseguindo, por sua intercessão, regressar ao reino357
. Tanto
Maria das Neves como Iria Lopes ainda permaneceram durante mais de dois anos nos
cárceres de Évora e só foram soltas na sequência do perdão geral de 1605.
Seguir-se-iam anos de calmaria.
3. 1600-1630: UM PERÍODO DE INTERREGNO?
“[...] No dito Agosto [de 1602], se vinha ela confitente a esta mesa confessar suas
culpas e acusar-se delas, como em efeito veio até à cidade de Beja, donde se tornou para
a vila de Loulé, por lhe dizerem uns homens, cujos nomes lhe não lembra, nem sabe se
eram cristãos-novos, se cristãos-velhos, que el-Rei Dom Sebastião vinha e que dava
perdão geral aos cristãos-novos [...]”358
– a confissão é de Iria Lopes, uma das últimas
vítimas da acção do Santo Ofício no Algarve antes do perdão geral de 1605. Destas
palavras intuímos o ambiente disseminado entre os cristãos-novos do reino, a
expectativa num futuro em que a repressão inquisitorial fosse apenas uma recordação.
No Algarve, essa esperança concretizou-se durante mais de 10 anos. Entre 1605 e 1617,
a única prisão registada na região foi a de Diogo Mendes, o Espada Larga, preso em 1615
na cidade de Lagos359
. Contudo, este processo partiu de acusações oriundas de Beja, sua
terra natal, e desenrolou-se sem implicar nenhum cristão-novo residente no Algarve.
Mesmo nos anos seguintes e até à década de 30, a acção do Santo Ofício na região
foi meramente pontual. A fraqueza com que o braço da Inquisição se fez sentir no
Algarve durante os anos 20 do século XVII constrasta com o vigor das prisões noutros
espaços do reino. Mas o mesmo já não se poderá dizer relativamente às primeiras duas
décadas de Seiscentos.
357
Cf. ANTT, IE, proc. 2275. 358
Cf. ANTT, IE, proc. 2152, fl. 13v. 359
Cf. ANTT, IE, proc. 6485.
93
O perdão geral de 1605
A publicação do perdão geral representou o culminar de anos de negociações entre
os procuradores dos cristãos-novos, a corte de Madrid e a Santa Sé, sob a oposição
constante do Santo Oficio português. A partir do século XVII, a posição dos cristãos-
novos começou a ganhar terreno. Logo em 1601, D. Filipe III mandava suspender os
autos-de-fé – uma suspensão que apenas duraria até Maio do ano seguinte. Um alvará
publicado no mesmo ano proibia o uso da designação de judeu, marrano ou cristão-
novo. Em 1603, era revogada a lei que interditava a partida dos cristãos-novos do reino
e a alienação dos seus bens. Entretanto, a Igreja e, em particular, o Santo Ofício
português continuavam a pressionar a corte no sentido contrário. Foram emitidos
pareceres e memoriais que demonstravam o quão nefasto seria para o reino a concessão
do perdão geral. A partida em massa dos cristãos-novos, a qual sucederia ao
levantamento das proibições à sua saída, teria consequências desastrosas para as
finanças do reino. Afinal, era nas suas mãos que se encontrava grande parte dos
contratos e da actividade comercial. Contudo, tal não impediu que o rei acabasse por
ceder aos argumentos dos cristãos-novos e, sobretudo, à promessa do pagamento de
1700 mil cruzados num momento penoso para as finanças do Império. D. Filipe III
aceitou interceder perante o papa em favor da concessão do perdão. Tal marca um
momento de crise no Santo Ofício português e, em particular, na relação da instituição
com a coroa. Nos primeiros quatro anos de Seiscentos, sucederam-se quatro
inquisidores-gerais. Só quando D. Pedro de Castilho assumiu o cargo é que a situação
estabilizou.360
Na sequência do perdão geral de 1605, saíram dos cárceres 410 presos. Tal suscitou a
contestação popular nalgumas cidades, sobretudo nas que serviam de sede dos tribunais da
Inquisição361
. Romero Magalhães apresenta os números dos penitenciados oriundos do
Algarve a quem foi retirado o hábito penitencial em 1605: 7 estavam em Lagos, 20 em Vila
360
Sobre o perdão de 1605, vide: A. A. Marques de Almeida, “O Perdão Geral de 1605”, Primeiras
Jornadas de História Moderna, vol. II, Lisboa, 1986, pp. 885-898; José Marques, “Felipe II de Espanha
(I de Portugal) e a Inquisição portuguesa face ao projecto do 3º perdão geral para os cristãos-novos
portugueses”, Revista da Faculdade de Letras, II série, vol. X, 1993, pp. 177-203; Juan Ignacio Pulido
Serrano, Injurias a Cristo. Religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII, Alcalá, Instituto
Internacional de Estudios Sefardíes y Andalusíes / Universidad de Alcalá, 2002, pp. 52-56; Idem, “Las
negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a luz de algunos documentos inéditos
(1598-1607), Sefarad, vol. 66, parte 2, Jul.-Dez. 2006, pp. 345-376; Ana Isabel López-Salazar Codes,
Inquisición Portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Évora,
Alicante, Edições Colibri, CIDEHUS, Universidade de Alicante, 2010. 361
Cf. António Borges Coelho, Política, Dinheiro e Fé, Lisboa, Caminho, 2001, p. 133.
94
Nova de Portimão, 5 em Faro e 1 em Silves362
. Estes dados traduzem bem quais haviam
sido os principais alvos da Inquisição nos anos anteriores.
No período que se seguiu ao perdão geral, a actuação inquisitorial foi incipiente em
todo o reino. No Algarve, nenhum cristão-novo foi preso até 1615. Porém, o início da
segunda década de Seiscentos marca uma nova fase da Inquisição portuguesa. A coroa
começava a recuar nas cedências à gente de nação363
. Por outro lado, o Tribunal do
Santo Ofício sofreu uma reestruturação. A publicação do Regimento de 1613 foi o
culminar desse processo. O novo regimento reflectia a experiência obtida durante as já
longas décadas de funcionamento da instituição e o aumento gradual da jurisdição
inquisitorial. Os poderes dos inquisidores foram amplificados e criados mecanismos
para uma actuação mais rápida e eficaz364
.
Nesse mesmo ano de 1613, o Santo Ofício fez circular pelas paróquias do reino um
inquérito para inventariar todos os cristãos-novos que, entretanto, se haviam ausentado
de Portugal. Registava-se o nome do ausente, a idade, a ocupação, as características
físicas, a parentela, o período de ausência e o destino365
. Relativamente ao Algarve,
encontramos dados sobre os ausentes de Lagos, Faro, Tavira e, em particular, de Vila
Nova de Portimão. Esses demonstram a relação entre os movimentos migratórios e a
repressão inquisitorial. Na lista de 1613, são citados vários elementos pertencentes às
famílias Barros e Gramaxo de Vila Nova de Portimão, duas das mais lesadas na última
vaga de prisões366
. As Índias de Castela foram o destino de eleição para quase todos367
.
362
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 365. O autor indica que estes dados são do
processo de Gregório Lopes, cristão-novo de Serpa, residente em Lagos, preso em 1600, o qual, devido ao
mau estado de conservação, não nos foi possível consultar. 363
Segundo Pulido Serrano, várias razões terão pesado para a mudança de atitude de Filipe II, entre as
quais estariam os parcos resultados conseguidos na conversão dos judaizantes, as dificuldades em cobrar
a quantia prometida pela gente de nação e as queixas relativas à sua emigração massiva (Cf. Pulido
Serrano, Injurias a Cristo..., p. 56). 364
Cf. López-Salazar Codes, Inquisición Portuguesa..., pp. 201-207; Elvira Cunha de Azevedo Mea,
“A resistência sefardita ao Santo Ofício no período filipino” , Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 2,
2002, pp. 52-54. 365
Vide, em anexo, pp. 357-363. 366
Além dos Barros e dos Gramaxo, outros cristãos-novos citados na dita lista também tinham um
passado familiar marcado pela repressão inquisitorial. Eram os casos de Gabriel Dias, mercador na
Laguna de Malacaio, ausente havia cerca de 20 anos, irmão de Beatriz Mendes e de Francisca Dias,
processadas pela Inquisição de Évora nos anos 90 (Cf. ANTT, IE, procs. 9130 e 9264); e de Henrique
Lopes de Leão, cirurgião que fora para o Brasil por volta de 1609 e cuja mulher, Catarina Dias, e a sogra,
Beatriz Dias, que o acompanharam na diáspora, haviam sido presas pelo Santo Ofício em 1596 e 1592,
respectivamente (Cf. ANTT, IE, procs. 1762 e 10494). 367
As excepções foram Jorge Fernandes Gramaxo, filho de Fernão Martins e de Isabel Gramaxo, que se
estabeleceu nos Rios da Guiné, e Domingos Quaresma, filho do Lic. João Fernandes Quaresma e de
Violante Quaresma, então a residir em S. Tomé (Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618, fl. 3).
95
No mesmo ano do inventário dos ausentes do reino, chegaram aos ouvidos do bispo
D. Fernão Martins Mascarenhas denúncias contra alguns cristãos-novos de Faro368
.
Eram eles: Marcos Rodrigues, mercador, e uma sua filha; Fernão Duarte, mercador;
Lopo Rodrigues; Pedro Machado, advogado, e a esposa; e Manuel Mendes do Óculo,
mercador. Acusavam-nos de blasfémia, de atentarem contra a Igreja e contra os cristãos-
velhos. De tais testemunhos não surtiu, de imediato, nenhuma prisão. O único dos
delatados preso nos anos que se seguiram foi Manuel Mendes do Óculo. As denúncias
de 1613 pesaram na sua detenção mas não a accionaram directamente369
. Dos restantes,
parte deles chegaria aos cárceres de Évora na vaga de prisões dos anos 30370
.
Durante o período em que D. Fernão Martins Mascarenhas esteve à frente da Sé de
Faro, foram presos 34 cristãos-novos no Algarve, a grande maioria na sequência da
entrada iniciada após a visitação de 1585. Em 1616, D. Fernão abandonava a cadeira
episcopal para assumir um cargo maior371
. O papa nomeara-o inquisidor-geral a 4 de
Julho desse ano, posição que ocupou até à data da sua morte, a 28 de Janeiro de 1628372
.
Ora, entre 1616 e 1627, a média de prisões de cristãos-novos no Algarve rondou as duas
por ano. A parcimónia destes números revela-se paradoxal face ao recrudescimento da
opressão sobre os cristãos-novos do reino nesse mesmo período – saíram sentenciados
2773 indivíduos nos autos-de-fé celebrados pelos três tribunais. Mesmo assim, a média
anual de prisões no reino acabaria por ser inferior à registada nos anos que se seguiram
à morte de D. Fernão Martins Mascarenhas373
.
Com a subida de D. Filipe IV ao trono, os cristãos-novos portugueses recuperaram a
esperança num novo perdão geral. O monarca mandara suspender todos os autos-de-fé e,
em 1621, reuniu-se uma junta em Madrid destinada a analisar os memoriais enviados pelos
368
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 305-308. 369
Cf. ANTT, IE, proc. 4613. 370
Fernão Duarte foi preso em 1634 (Cf. ANTT, IE, proc. 9546). No mesmo ano, era entregue nos
cárceres de Évora uma filha de Marcos Rodrigues, Maria de Tovar, possivelmente a mesma que foi
denunciada em 1613 (Cf. ANTT, IL, proc. 10564). O pai, Marcos Rodrigues, falecido em 1635, em
Sevilha, para onde fugira quando começaram as prisões em Faro, foi processado postumamente (Cf.
ANTT, IE, proc. 1460). Pedro Machado, que faleceu antes de 1631, nunca chegou a ser preso. Nesse ano,
a sua esposa, Ana Rodrigues, pagava a finta então lançada a todos os cristãos-novos do reino (Cf. Mendes
dos Remédios, Os Judeus em Portugal. Vicissitudes da sua história desde a época em que foram expulsos
até à extinção da Inquisição, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1928, p. 179). Também ela não chegou a
ser processada pela Inquisição. Lopo Rodrigues teria igualmente escapado às malhas do Santo Oficio. 371
Cf. “1616, Agosto, 23: Comunica ao Bispo do Algarve a nomeação para Inquisidor-Geral e pede-lhe
que parta para Lisboa o mais breve possível”, in Isaías Rosa Pereira, A Inquisição em Portugal. Séculos
XVI-XVII – Período Filipino, Lisboa, Veja, 1993, p. 84. 372
Vide Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y Política. El gobierno del Santo Oficio en el
Portugal de los Austrias (1578-1653), Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade
Católica Portuguesa, 2011, pp. 56-73. 373
Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu.., p. 20.
96
representantes da gente de nação, nos quais eram criticados, com veemência, os rigores da
actuação inquisitorial. A concessão de um novo perdão geral não estava sobre a mesa mas,
mesmo assim, começaram a circular rumores sobre essa possibilidade374
.
Tais rumores chegaram até ao extremo sul do reino. Leonor Quitéria, cristã-nova de
Faro, foi acusada perante o padre João Lourenço Neto, prior da igreja de São Pedro e
comissário do Santo Ofício, de se insurgir contra a Inquisição. A 1 de Novembro de
1622, Maria Nunes, também ela cristã-nova, contou o que lhe ouvira dizer:
“[...] que já em Madrid estavam dois outros homens de nação para haverem licença
d‟el Rei para se queimar a Inquisição e a não haver e que antes de três meses se
havia de queimar e abrasar a Inquisição e que quanto nela se fazia era falso e que o
não faziam senão para lhe tomarem as fazendas [...].”375
As esperanças de Leonor Quitéria, tal como as de outros cristãos-novos portugueses,
saíram frustradas. No início de 1623, D. Filipe IV mostrava-se menos permeável às
petições da gente de nação. Contudo, tal não significou a sua rendição – memoriais
contra a acção do Santo Ofício continuaram a circular, muitos deles impressos e com
uma larga difusão. Por outro lado, os opositores também não cessaram as suas posturas.
Proliferavam, então, os escritos anti-judaicos.
Uma das vozes que mais se fazia ouvir era a do próprio inquisidor-geral. Em
Outubro de 1622, D. Fernão Martins Mascarenhas escrevia ao rei, afirmando que quase
todos os cristãos-novos do reino eram judeus secretos e que a sua influência na
economia e na sociedade portuguesas representavam um perigo eminente para o reino.
A solução proposta pelo inquisidor-geral passava pela expulsão de todos os cristãos-
novos reconciliados pela Inquisição, ou que tivessem abjurado de vehementi376
.
Quatro anos depois, D. Fernão já havia amenizado a sua posição. Em 1626, assinava
um parecer sobre os meios necessários para exterminar definitivamente o Judaísmo do
reino (Tratado sobre os varios meyos que se oferecerao a sua Magestade Catholica
para remedio do judaismo neste Reyno de Portugal), no qual propunha, por um lado,
um maior rigor na acção inquisitorial – a aplicação mais extensiva da pena máxima, o
desterro do reino de todos os suspeitos de Judaísmo, independentemente de terem culpa
provada ou não – mas, por outro, sustentava a livre saída dos cristãos-novos de
374
Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., p. 76. 375
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 318. Maria Nunes é chamada a testemunhar perante o comissário do Santo
Ofício após o marido ter denunciado, pelas mesmas razões, Leonor Quitéria. Na mesma devassa, também
foi interrogada a sua mãe, Leonor Nunes, que assistiu ao dito episódio. Estas denúncias não provocaram
nenhum processo contra Leonor Quitéria. Ela acabaria por ser presa pela Inquisição de Évora vários anos
depois, em 1636, mas, no seu processo, não é feita qualquer menção às denúncias de Maria Nunes e do
marido em 1622. (Cf. ANTT, IE, proc. 5830). 376
Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 78-79.
97
Portugal, a reconciliação em segredo dos que se apresentassem livremente para
confessar os seus desvios (desde que sem denúncias prévias) e a cedência do título de
cristão-velho a quem provasse que, nas cinco ou sete gerações anteriores, nenhum
parente fora condenado por judaizar377
.
O zelo na actuação inquisitorial e a vigilância rigorosa sobre os cristãos-novos,
defendidos por D. Fernão Martins Mascarenhas, contrastavam com alguns rumores que
circulavam por Portugal e que chegaram até aos ouvidos do rei. Anos antes, na resposta
ao inquérito de 1613, quando ainda era bispo, já se insinuava a sua protecção face aos
cristãos-novos do Algarve378
. Note-se que, em 1598, no relatório que redigiu e enviou a
Clemente VIII sobre o estado da Igreja no Algarve, D. Fernão não fizera qualquer
referência ao problema dos judaizantes algarvios que, então, ainda povoavam em grande
número os cárceres da Inquisição de Évora ou circulavam pelas ruas de Lagos, Faro e
Vila Nova de Portimão envergando os seus hábitos penitenciais379
.
Em 1623, era apresentado na corte de Madrid um memorial anónimo atacando
veementemente a reputação do inquisidor-geral380
. Apesar de escrito em castelhano, o
autor seria português e, talvez, um ministro do Santo Ofício381
. O memorial acusava
D. Fernão Martins Mascarenhas de multiplicar a concessão de cargos inquisitoriais,
inclusivamente a quem não cumpria os requisitos exigidos – a limpeza de sangue,
sobretudo382
. De facto, uma das principais acusações consistia no alegado
favorecimento à entrada de cristãos-novos nos órgãos inquisitoriais. Dizia o memorial
que Belchior Veloso, secretário e homem de confiança de D. Fernão, vendia cartas de
familiares do Santo Ofício a cristãos-novos, o que resultara na multiplicação do
número de familiares com indícios de sangue hebraico. A sua excessiva proximidade
face ao inquisidor-geral e a influência que exercia sobre a máquina inquisitorial –
dadas as suas funções, tinha acesso à chave do arquivo do Conselho Geral e, como tal,
377
Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 84-85. 378
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 367. 379
Cf. Nuno Beja, “Transcrição de documentos...”, AMF..., pp. 195-247. 380
Cf. Caro Baroja, Los Judíos en la España..., t. II, pp. 385-386; t. III, pp. 311-315. 381
Cf. López-Salazar Codes, Inquisición y Política..., pp. 66-67. A autora pondera a hipótese de Simão
Torresão ser o autor do memorial. Deputado da Inquisição de Coimbra, Simão Torresão fora deposto
deste cargo pelo próprio D. Fernão e remetido para Madrid, onde se encontrava na altura em que o dito
memorial fora redigido. 382
Já em 1620, o rei pedira explicações a D. Fernão Martins de Mascarenhas sobre a nomeação de
familiares super-numerários: “Fui informado que tendes feito nas Inquisições desse Reino muitos
familiares super-numerários, e porque não podendo elegê-los (como o sabeis), e em gozando eles de
isenções e privilégios de familiares causa novidade dizer-se que os criastes, e eu quero saber as razões
que houve para o fazer.” (Cf. Isaías Rosa Pereira, A Inquisição em Portugal. Séculos XVI-XVII – Período
Filipino, Lisboa, Vega, 1993, pp. 110-111).
98
detinha informação privilegiada, da qual não hesitava a tirar proveitos pessoais,
segundo acusava o memorial – seria motivo de escândalo383
.
Ao longo de toda a sua carreira, D. Fernão Martins Mascarenhas fizera-se sempre
rodear de cristãos-novos. Assim alega o memorial, não sem debitar uma série de exemplos.
Cónego em Évora, ele tinha como criado Francisco de Aguilar de Gouveia, cristão-novo, a
quem favoreceu a entrada no cabido. Já em Coimbra, como reitor da Universidade, convivia
de perto com muitos cristãos-novos e, inclusivamente, relacionava-se com o Dr. António
Homem. Quando assumiu o episcopado algarvio, D. Fernão continuou a confiar e a fazer-se
acompanhar por gente de nação:
“Estando por obispo del algarue no se siruia de otros sino de los christianos nuebos
y asi la yglesia mayor esta llena de canonigos y beneficiados christianos nuebos
porque los canonicatos y benefiçios de obispado no los daba a otra gente que es una
lastima de ver y se tiene por cosa çierta que a ordenado de ordenes sacras mas de
siete mil christianos nuebos [...] En el mismo Reyno del Algarue comia de
ordinario con los christianos nuebos y se yua a holgar com ellos a las guertas y los
traya en su coche, y se paseaua com ellos por las calles y les aprouechaua tanto
quanto la haçienda de V. Magd. lo siente porque se valian de estos christianos
nuebos mercaderes para no pagar los drechos en las alfandegas de vra. magd.
diçiendo a los officiales de ellas que eran suyas el obispo y siendo asi que aunque
lo fuesen debian los derechos nadie se atrebia a contradicirlo [...].”384
Haveria algum fundamento nestas acusações? De facto, nas primeiras décadas de
Seiscentos, encontramos vários cristãos-novos no cabido de Faro: Jerónimo Baptista385
,
Sebastião Dias386
, Filipe de Barros e o sobrinho Pedro de Barros Carneiro387
, cónegos;
Pedro de Oliveira, quartanário388
; André de Sousa, bedel389
. Parte deles teria entrado no
cabido no tempo em que D. Fernão Martins Mascarenhas era bispo do Algarve.
383
Não obstante as suspeitas de ter parte de cristão-novo, Belchior Veloso foi habilitado a familiar do
Santo Ofício em 1616. Por ordem de D. Fernão Martins de Mascarenhas, as diligências para a sua
habilitação foram feitas em conjunto com as do irmão, Baltazar Teixeira, cónego da Sé de Faro. Eram
ambos naturais de Pinhel e residiam então em Faro (Cf. ANTT, TSO, CG, Habilitações, Baltazar, mç. 1,
doc. 19). A ascendência de Belchior Veloso no Algarve e, sobretudo, na hierarquia religiosa e
inquisitorial solidificara-se através de uma “apertada malha parental”, como classifica João de Figueirôa-
Rêgo. Só no cabido de Faro, Belchior Veloso tinha um irmão, Gaspar Veloso, arcediago de Lagos, e, anos
mais tarde, já na segunda metade do século XVII, um filho, o deão D. João Veloso Cabral. Além do mais,
era parente dos irmãos Lopo Soares de Castro e de Diogo Osório de Castro, o primeiro deputado da
Inquisição de Évora e, a partir de 1623, inquisidor do Tribunal de Coimbra; o segundo, inquisidor em
Lisboa desde 1626 (Cf. João de Figueirôa-Rêgo, «A honra alheia por um fio». Os estatutos de limpeza de
sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian /
Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2011, pp. 407-408). 384
Cf. Caro Baroja, Los Judíos en la España..., t. III, pp. 314-315. 385
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 2v. 386
Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fl. 59v. 387
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 34; IL, proc. 3255. 388
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 151. 389
Cf. ANTT, IE, proc. 10508. O bedel era um empregado capitular mas cujo cargo detinha algum
prestígio. No livro da visitação ao cabido, D. Fernão Martins Mascarenhas explicitava assim as funções
do bedel: “[...] é obrigado a estar presente na Sé com sua maça todos os dias de festa, Domingos e santos
99
Encontramos outras insinuações à ascendência que alguns cristãos-novos algarvios
teriam sobre o inquisidor-geral. Manuel Nunes de Moura recorrera ao bispo para que este
intercedesse por si num negócio, isto quando corria o ano de 1614390
. Em 1618, Manuel
Mendes do Óculo, mercador de Faro, esperava que o inquisidor-geral o favorecesse no
seu processo. Segundo um companheiro de cárcere, ele desistira de confessar as suas
culpas ao saber que o seu genro, Diogo de Tovar, havia partido rumo à capital. A intenção
era contactar D. Fernão Martins Mascarenhas e pedir-lhe que intercedesse para que o
julgamento de Manuel Mendes se processasse em Lisboa e não em Évora391
. Acreditaria o
mercador num julgamento menos rigoroso? Ou numa maior protecção, dada a
proximidade do inquisidor-geral? Desconhecemos o que o ligava a D. Fernão. Mas
pesaria, decerto, o seu poder económico. O memorial de 1623 insinuara o quanto o
inquisidor-geral era sensível a tal argumento – dizia-se que mantinha negócios escusos
com importantes homens de negócio de Lisboa. Em Faro, tanto Manuel Mendes como
Diogo de Tovar detinham grande prestígio. Os respectivos processos provam-no.
De feira em feira, entre o Algarve e o Alentejo
Com ligações comerciais a Lisboa, para onde se deslocava com regularidade,
Manuel Mendes do Óculo alargara o espectro dos seus negócios à Andaluzia, mais
exactamente a Aiamonte e Sevilha392
. Porém, na segunda década de Seiscentos, viu a
sua actividade ser ameaçada pela sombra da Inquisição. Anos antes, a irmã Guiomar
Mendes já havia conhecido os cárceres de Évora, depois de denunciada durante a
visitação de 1585393
.
Desde 1613 que se acumulavam denúncias contra Manuel Mendes do Óculo. Tomé
Estevens, lavrador, jurou tê-lo ouvido dizer, na igreja de São Martinho de Estoi, no
momento da consagração: «Adoro-te branquinho, não porque te creia»394
. A alegada
blasfémia não foi esquecida e acabou anexada às demais culpas do seu processo. João
de guarda, à missa e às laudes e em todas as Vésperas [...] e assim lhe pertence ser presente todos os dias
ordinários do cabido, que são as quartas-feiras e sábados da semana, e ter limpa a casa do Cabido, e,
depois que o cabido se começar não se afastará da porta para acudir cada vez que fôr chamado, e não
deixará entrar pessoa alguma sem primeiro pedir licença ao Deão e Presidentes [...]” (Cf. Pinheiro e Rosa,
A Catedral do Algarve..., vol. II, p. 48). 390
Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fls. 103v-104. 391
Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fl. 25. Vide, em anexo, pp. 371-372. 392
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 360-360v. 393
Cf. ANTT, IE, proc. 9012. 394
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 360v.
100
Vaz, morador na freguesia de São Bartolomeu de Pechão, testemunhou que ele
costumava pôr uma vela acesa na janela da sua casa virada para Oriente, um costume
que, segundo ouvira dizer, era comum aos judeus da Berbéria395
. No final de 1617,
Pedro Gomes, mercador de Beja, contou que, havia então quatro anos, encontrara-se
com Manuel Mendes a caminho de Faro. Os dois vinham da feira de Santa Bárbara, em
Campo de Ourique, e seguiam para a de Santa Iria. Em Faro, Pedro Gomes passou a
frequentar a casa do mercador, comunicando-lhe a sua fé na Lei de Moisés396
.
A 19 de Fevereiro de 1618, Manuel Mendes do Óculo recebeu ordem de prisão mas
só chegou aos cárceres de Évora quase um mês depois. Tinha, então, cerca de 65 anos.
Entretanto, em Faro, João Lourenço Neto, comissário do Santo Ofício, continuava a
acumular testemunhos. Muitos rumores corriam na cidade sobre Manuel Mendes: que se
vestia de clérigo por escárnio; que tentara iludir a Inquisição, vendendo os seus bens e
entregando o dinheiro ao genro Diogo de Tovar; que, quando saiu da cadeia de Faro para
seguir até Évora, andara a deitar bênçãos a todos com quem se cruzava pelas ruas397
.
No cárcere inquisitorial, foi um outro preso, Simão Álvares, quem contribuiu para o
agravamento do seu processo. Ao ter conquistado a confiança de Manuel Mendes, ele
tornou-se num informador privilegiado dos inquisidores e acabou por comprometer ainda
mais a situação do mercador. Manuel Mendes ter-lhe-ia segredado que “[...] havendo ele de
confessar suas culpas, se perderiam sete ou oito casas de Faro [...]” e que “[...] se em Faro,
por parte da Inquisição, se fosse devassar dos judeus, haviam de trazer presos muitos mais
para estes cárceres do que hoje estavam neles [...]”398
. Não os trouxeram. Este ainda não foi
o momento da grande entrada da Inquisição em Faro.
O testemunho de Simão Álvares ensombrou de dúvidas a confissão de Manuel
Mendes. A 14 de Maio, o companheiro de cárcere expôs qual a estratégia que ele dizia
vir a adoptar: “[...] determinava pedir mesa, estando presentes todos os ministros dela,
para os apalpar e ver o que podia esperar deles [...]”. Confessaria as suas culpas se
entendesse que os inquisidores ficariam satisfeitos com a denúncia dos seus delatores e
de um irmão que, naquele tempo, estava no Brasil – Henrique Fernandes, residente no
lugar de Seregipe. Dois dias depois, segundo o testemunho de Simão Álvares, Lopo
Soares de Castro chamou Manuel Mendes à mesa mas ele nada confessou. Disse que
apenas confessaria perante o bispo eleito do Brasil. Foi, de facto, perante Marcos
395
Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fls. 14v-18v. 396
Cf. Idem, fls. 5-6. 397
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 359-360v. 398
Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fl. 23.
101
Teixeira que ele iniciou a sua confissão, a 22 de Maio de 1618. Atribuiu o ensino ao tio
João Fernandes, confirmou a denúncia de Pedro Gomes e delatou outros mercadores,
nenhum deles residente em Faro399
.
A 30 de Maio, Simão Álvares voltou a apresentar-se perante os inquisidores. Contou
que, na semana anterior, Manuel Mendes dissera-lhe que havia de regressar à mesa para
denunciar dois primos, um médico em Lisboa e outro no Porto, além da própria esposa,
já presa nos cárceres de Évora. Não sabemos se esta última informação é verídica, dado
que não se conhece nenhum processo movido contra Vitória Vaz, esposa do mercador.
Porém, o resto do testemunho de Simão Álvares confirmou-se parcialmente. A 25 de
Maio, Manuel Mendes denunciava Simão Lopes, médico em Lisboa, casado com uma
sua prima irmã400
.
Manuel Mendes só começou a denunciar os parentes mais próximos nas últimas
sessões, limitando-se, porém, aos que se encontravam salvaguardados da acção
inquisitorial: os irmãos Henrique Fernandes e Francisco Mendes, ambos a viver fora do
reino, e outros dois irmãos, António Pais e Guiomar Mendes, entretanto já falecidos. A
confissão das acusações que o levaram ao cárcere – a blasfémia na igreja de S. Martinho
de Estoi e a vela acesa à janela da sua casa – salvaram-no da pena máxima mas não do
tormento, apesar da sua já avançada idade. Saiu no auto-de-fé de 19 de Maio de 1619,
sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuos.
O processo de Manuel Mendes do Óculo não teve mais consequências para os
cristãos-novos de Faro. O mesmo já não se poderá dizer relativamente a Tavira. As suas
denúncias conduziram à prisão de Estêvão Rodrigues, o Algarvio, em 1618. Um irmão,
André Rodrigues, morrera na batalha de Alcácer Quibir; outros dois, João Rodrigues
Pereira e Rui Fernandes, eram clérigos. O sobrinho Gonçalo Nunes era notário
apostólico na legacia de Roma. Uma outra sobrinha, Joana Baptista, fora religiosa no
Mosteiro da Esperança, em Beja401
. Próximo familiarmente da hierarquia religiosa e
casado em primeiras núpcias com uma mulher cristã-velha, é possível deduzir a
intenção da sua família em “limpar o sangue”.
Estêvão Rodrigues frequentava as feiras do Alentejo e do Algarve e ia a Sevilha vender
figo. Nas suas andanças, conhecera e tomara contacto com outros mercadores cristãos-
399
Cf. Idem, fls. 27v, 35-38. 400
Cf. Idem, fls. 28v, 39-39v. 401
Cf. ANTT, IE, proc. 484.
102
novos402
. Entre eles, encontravam-se dois irmãos de Viana do Alvito, também residentes
em Tavira, Baltazar Dias e Manuel Lopes. Foram ambos presos no final de 1618403
.
Baltazar Dias era bacharel em Leis pela Universidade de Coimbra. Quando terminou
os estudos, vendo a possibilidade de fazer um bom casamento em Tavira, foi para esta
cidade, onde se estabeleceu em 1613. O seu irmão, Manuel Lopes, também casou em
Tavira, no início de 1614. Os dois eram acusados de dar guarida e facilitar a fuga para
Castela de um outro irmão, Belchior Dias. Baltazar Dias admitiu ter acompanhado o
irmão até à fronteira, embora sem qualquer intenção de fuga. Prova disso era que os
dois seguiram sempre por estradas públicas. Segundo afirmou, desde o casamento,
nunca mais regressara a Viana de Alvito, nem ia pessoalmente às feiras no Alentejo,
optando por enviar agentes. Em Tavira, a sua casa era frequentada por oficiais de justiça
e pelos principais da cidade. Inclusivamente, Baltazar Dias alegava ser muito próximo
do Marquês de Vila Real, de quem fora ouvidor. Quanto a Estêvão Rodrigues era
conhecido como “[...] o maior mentiroso e burlão que havia em a cidade de Tavira [...]”.
Dizia-se mesmo que, quando teve um sexto da renda do cabido de Faro, andava pelas
quintas da cidade a recolher a dízima sem a dividir com os outros rendeiros404
. Não
obstante, Baltazar Dias acabaria por confirmar que frequentava a casa de Estêvão
Rodrigues, tal como outros mercadores cristãos-novos de Tavira, nomeadamente
Manuel Mendes do Óculo e Manuel Dias Pereira405
.
Preso nos cárceres de Évora a 21 de Março de 1619, Manuel Dias Pereira era natural
de Portalegre, mas vivia em Tavira desde 1604, quando se casou com uma cristã-velha,
Mor Fernandes. Na cidade, servia de mordomo em várias confrarias e fora síndico do
convento de Santo António. Aliás, em sua defesa, alegou ter custeado as obras da capela
de S. Sebastião e as festas em honra do santo. Porém, este homem, que se dizia bom
cristão, era acusado de comunicar a crença na Lei de Moisés com outros cristãos-novos
do Algarve e do Alentejo. As feiras revelavam-se, mais uma vez, um local privilegiado
para tal. Apenas em Maio de 1623 é que Manuel Dias começou a confessar. Apesar de
tardia, a confissão foi profícua em denúncias contra judaizantes não só de Faro e Tavira,
402
Cf. Idem. Estêvão Rodrigues foi sentenciado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores
no auto celebrado a 19 de Maio de 1619. A 20 de Julho de 1619 era-lhe tirado o hábito penitencial. 403
Cf. ANTT, IE, procs. 5603 e 8466. 404
Cf. ANTT, IE, proc. 5603, fls. 185-186. 405
Baltazar Dias saiu no auto de 29 de Novembro de 1626, com cárcere e hábito penitencial perpétuos,
sem remissão. A 7 de Janeiro de 1627, era mandado cumprir o resto da pena em Tavira. No mês de Março
desse ano, foi-lhe levantado o hábito penitencial.
103
como também de Lagos e Vila Nova de Portimão406
. Alguns nunca chegaram aos cárceres
de Évora mas outros não gozaram da mesma sorte.
Foi o que aconteceu com Diogo de Tovar, genro de Manuel Mendes do Óculo.
Oriundo de uma família de Elvas estabelecida em Faro, foi preso a 19 de Maio de 1623
e esteve encarcerado durante mais de cinco anos, sem nunca confessar qualquer prática
judaizante. Defendeu-se, alegando o quanto era respeitado em Faro. Chegara mesmo a
servir de recebedor da Misericórdia. Este e outros argumentos valeram-lhe a sentença de
cárcere ao arbítrio dos inquisidores, publicada no auto-de-fé de 18 de Junho de 1628407
.
No mesmo auto e com a mesma pena, saiu Manuel Nunes de Moura, também
mercador em Faro. Fora preso em 1624 e, tal como Diogo de Tovar, era uma figura de
prestígio na cidade. Negociava em azeite e atum e conseguira constituir uma sólida
fortuna, a qual, segundo alegou na sua defesa, aplicara parcialmente em obras de
caridade e no serviço à Igreja: deu consideráveis quantias de dinheiro para o provimento
das capelas das igrejas de Faro; enquanto foi oficial da irmandade do Santíssimo
Sacramento, mandara vir de Sevilha um palco muito rico que lhe custara mais de 60 mil
réis; emprestava dinheiro para o resgate de cativos e concedia avultadas esmolas à igreja
do colégio dos jesuítas. Em 1621 e 1622, anos de carestia de trigo, emprestou cerca de
40 mil réis à Misericórdia de Faro. Quando uma tempestade arrasou parte da cerca do
convento dos Capuchos, Manuel Nunes ofertou 30 mil réis para o conserto408
. A sua
defesa traçou o retrato de um filantropo, particularmente próximo das autoridades
religiosas locais. Tal teria pesado na sua reconciliação... e não só.
No regresso a Faro, Manuel Nunes de Moura e Diogo de Tovar foram recebidos
em festa. Este episódio encontra-se expressivamente descrito no relato de Rodrigo
Lopes, familiar do Santo Ofício. Nas ruas onde os dois mercadores residiam, houve
corridas de touros e foram lançados foguetes. No dia seguinte, eles dirigiram-se à
ermida de Nossa Senhora da Esperança, no termo de Faro, acompanhados por muitos
outros cristãos-novos. Refere Rodrigo Lopes que “[...] nem em procissão que se faz
leva tanta gente quanta eles levavam assim [...]”. Para presidir à novena, escolheram
um clérigo cristão-novo, Manuel Lopes409
.
406
Cf. ANTT, IE, proc. 5686. Manuel Dias Pereira saiu no auto de 14 de Maio de 1623, com cárcere e
hábito penitencial perpétuos. A 19 de Julho de 1623 era mandado para Tavira, onde continuaria a cumprir
a sua pena até 25 de Junho do ano seguinte. O pai de Manuel Dias também tinha sido preso muitos anos
antes, em 1571, pela Inquisição de Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 1884). 407
Cf. ANTT, IE, proc. 7448. 408
Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fls. 55-59v. Vide em anexo, pp. 389-391. 409
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fl. 330. Vide, em anexo, pp. 403-404.
104
Enquanto o Santo Ofício actuava em força por todo o reino, Faro acolhia com júbilo
o regresso de dois cristãos-novos reconciliados.
Um crime em Monchique
Francisco Lopes Serralvo foi morto no lugar de Monchique durante a noite de 12
de Novembro de 1619. Degolaram-no e cortaram-lhe uma orelha como prova do
crime. Monchique era “[...] lugar de serra e ermo e costumado a se fazerem neles
casos graves [...]” mas, mesmo assim, a violência desta morte e as circunstâncias em
que decorreu causaram escândalo na região e atraíram as atenções do Santo Ofício410
.
Residente em Beja e pantufeiro de ofício, Francisco Lopes fora reconciliado no auto-
de-fé celebrado em Évora, a 19 de Maio de 1619. Os seus laços familiares e profissionais
estendiam-se até ao Algarve. Sob tormento, Francisco acabou por denunciar os primos
direitos residentes na região – declarara-se crente na Lei de Moisés com o primo Diogo
Lopes, de Lagos, e com a mulher deste, Beatriz Filipe, tal como com um outro primo de
Vila Nova de Portimão, Diogo Lopes Simões411
.
Na sequência destas denúncias, os três entraram nos cárceres de Évora a 17 de
Fevereiro de 1619. Nenhum confessou qualquer culpa. Depois de mais de 4 anos de
cárcere, foram reconciliados. Os artigos de defesa revelaram-se suficientes para colocar
em dúvida a denúncia de Francisco Lopes. Beatriz Filipe referiu que o seu marido ter-
se-ia recusado a alojar o primo e a dar-lhe o dinheiro que ele lhe pedira para o
casamento de uma filha. Numa estalagem em Lagos, Francisco Lopes chegou a ameaçar
que os denunciaria ao Santo Ofício412
.
Francisco Lopes Serralvo saiu dos cárceres de Évora pouco depois dos primos terem
lá entrado. Alguns meses após o auto, foi enviado para Beja, de onde não deveria sair
enquanto estivesse a cumprir a pena. Mas ele não obedeceu e, no mês de Novembro, já
estava em Vila Nova de Portimão.
As razões que o levaram ao Algarve não são claras. Também não é evidente que tal
tenha acontecido à revelia do tribunal de Évora. Numa devassa levantada após a sua
morte, algumas testemunhas referiram o rumor de que ele fora ao Algarve só para se
410
Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 297. Sobre este caso, vide documentos em anexo, pp. 374-389. 411
Cf. ANTT, IE, proc. 5579. Diogo Lopes, de Lagos, era filho de Guiomar Lopes, tia materna de
Francisco Lopes Serralvo. Jorge Lopes, pai de Diogo Lopes Simões, de Vila Nova de Portimão, era
também irmão da mãe de Serralvo. 412
Cf. ANTT, IE, proc. 5908.
105
informar sobre os cristãos-novos da região413
. Falava-se, inclusivamente de um rol com
o nome de vários cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e de Lagos redigido pelo
próprio Francisco Lopes e destinado à Inquisição de Évora, o qual ele tinha na sua posse
no momento em que foi morto. Quem o matou, tê-lo-ia levado.
Antes deste desenlace, Francisco Lopes fora preso em Vila Nova de Portimão,
acusado de andar pelas ruas sem envergar o hábito penitencial. Beatriz Gonçalves, esposa
de Diogo Lopes Simões, havia-o denunciado. Dizia-se mesmo que ela prometera dinheiro
a quem testemunhasse contra o primo e que tentara aliciar a decisão do Padre António
Martins Maborrão, vigário de Vila Nova de Portimão, com a oferta de umas galinhas414
.
Solto a 11 de Novembro, sob a condição de se apresentar em Évora no prazo de 10 dias,
Francisco Lopes partiu de Vila Nova de Portimão logo no dia seguinte. A morte
encontrou-o nessa noite, quando parou em Monchique415
.
A primeira diligência sobre o crime decorreu pelas mãos do juiz de fora de Silves,
Manuel Freire de Andrade. Os testemunhos recolhidos confluíam todos num mesmo
sentido: o crime fora ordenado por um grupo de cristãos-novos da terra, parentes da
vítima, e concretizado pelos seus escravos, em troca da alforria. Logo depois do crime,
os escravos fugiram para Aiamonte. Porém, os seus amos permaneceram nas respectivas
localidades. O problema residia em quem eles eram – gente graúda, “[...] dos mais
poderosos e principais de Vila Nova e Lagos [...]”, afirmava o juiz416
.
A 13 de Janeiro de 1620, já tinham sido presos dois dos alegados mandantes: a mulher
de Diogo Lopes Simões e o filho, Vasco da Gama. Porém, as circunstâncias da morte de
Francisco Lopes, averiguadas pelo juiz de Silves, justificavam a intervenção da Inquisição.
O móbil do crime fora as eventuais denúncias que a vítima apresentaria em Évora. Além do
mais, os envolvidos eram, maioritariamente, cristãos-novos.
A incumbência de devassar sobre o crime foi entregue a Lopo Soares de Castro,
então deputado da Inquisição de Évora e parente de Belchior Veloso, o polémico
protegido de D. Fernão Martins Mascarenhas. Seria auxiliado pelo Padre João Lourenço
Neto, prior da igreja de São Pedro e comissário do Santo Ofício417
. A 18 de Março, já se
encontrava em Vila Nova de Portimão, a interrogar testemunhas no convento de Santo
413
Luís Álvares Landeiro, cavaleiro da Ordem de Cristo e morador em Vila Nova de Portimão, referiu
que ouvira dois cristãos-novos a dizer que o assassínio de Francisco Lopes fora bem feito porque ele
apenas tinha vindo ao Algarve para saber da gente de nação do lugar e dar conhecimento desta à
Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, mç. 2, fls. 55-55v). 414
Cf. Idem, fls. 56v-57, 65v. 415
Cf. ANTT, IE, proc. 5579. 416
Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 3. 417
Cf. Idem, fls. 7-8.
106
António. A devassa durou até ao final do mês de Maio e também passou por Silves,
Faro, Monchique e Lagos418
. Foram interrogadas 123 testemunhas.
As conclusões da diligência revelaram novos pormenores. O autor do crime fora
Alberto, escravo de João Fernandes da Costa, genro de Diogo Lopes de Lagos. Quanto
ao mandante, o consenso é menor. Madalena Mendes, cativa do cura de Alferce, contou
ao inquisidor o que ouvira de um outro escravo, Pedro: “[...] que muito trabalho tivera
depois que o dito Francisco Lopes foi preso na cadeia de Vila Nova porque sempre
andara com cartas e recados da gente de nação de Vila Nova para Lagos e de Lagos para
Faro e de Faro para Albufeira e Lagoa [...]”419
. Tal como na devassa feita pelo juiz
Manuel Freire de Andrade, tudo apontava para uma conjura. Manuel Rodrigues, preto
forro a quem o escravo Alberto teria confessado a autoria do crime, referiu que
Francisco Lopes era odiado pelos cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e
representava um perigo para muitos deles420
.
A culpa acabou por cair sobre os parentes de Diogo Lopes Simões e de Diogo Lopes
de Lagos. Além da vingança, movia-os a ameaça que representava o suposto rol de
nomes escrito por Francisco Lopes e destinado à Inquisição.
Foram presas 8 pessoas: 5 de Vila Nova de Portimão e 3 de Lagos, entre as quais a
mulher e o filho de Diogo Lopes Simões, Guiomar de Leão (filha de Diogo Lopes e de
Beatriz Filipe) e o marido desta, João Fernandes da Costa.
As autoridades locais pediam o cárcere inquisitorial para os culpados pela morte de
Francisco Lopes. O prior João Lourenço Neto dizia que “[...] como alguma desta gente é
rica e poderosa e industriosa, teme o juiz de fora que haja alvará de fiança e que os mandem
soltar [...]”. Além disso, havia o risco de fuga. Segundo o comissário, já muitos cristãos-
novos de Vila Nova de Portimão e de Lagos tinham fugido com medo da prisão421
. O
mesmo temor fora expresso pelo juiz de Silves numa carta de 8 de Setembro de 1620:
“Estes quase todos, assim presos, como fugidos, como culpados, são gente poderosa
e rica e têm em si recolhido todo o dinheiro, e vendido, e escondido tudo, e vendo-me
só em campo, acudindo pela honra de Deus e de sua fé, e serviço de Sua Majestade, e
bem da justiça, se armam contra mim e não só me têm ameaçado com a morte, ainda
418
Até 2 de Abril, Lopo Soares de Castro esteve em Vila Nova de Portimão. Seguiu depois para Silves,
onde continuou a devassa até 9 de Abril. A 21 de Abril, estava em Faro e, entre 6 e 8 de Maio, regressou a
Silves. Ouviu testemunhas em Monchique desde 14 até 21 de Maio. Lagos foi o seu último destino – os
registos denunciam a sua presença na cidade entre 24 e 30 de Maio de 1620. (Cf. Idem, fls. 11-293) 419
Cf. Idem, fls. 234v-235. 420
“[...] Disse que todas as pessoas da nação desta vila mostravam ter má vontade e ódio ao dito
Francisco Lopes Serralvo, dizendo que ele era um cabrão e mau homem, que vinha a esta terra pedir
esmola aos homens de nação dela e que se lha não davam, os punha no rol para os acusar na Inquisição de
Évora [...] ”. (Cf. Idem, fl. 80v). 421
Cf. Idem, fls. 296-296v.
107
que de seus ameaços se me dá pouco, mas gabam-se que tudo, à força de dinheiro,
hão-de acabar e fazer de tudo um nada, e uns com cartas de seguro, outros com
alvarás de fiança, pretendem escapar de tudo e acolher-se antes que a Santa
Inquisição dê neles. Eu lhes vou resistindo fortemente que Deus é o que dá forças,
espírito, mas vejo que a justiça por pecados meus é tão pouca e o dinheiro pode tanto
que, se não tenho ajuda dessa Mesa, temo que fique no campo [...]”422
Temia-se que a ascendência económica e social dos acusados travasse o processo.
Pedia-se uma intervenção rápida do Santo Ofício. As preocupações do comissário e do
juiz de Silves foram transmitidas em carta ao inquisidor-geral423
. Na Inquisição de Évora,
vistos os documentos relativos à devassa de Lopo Soares de Castro, a maioria concluiu
que havia prova suficiente para a detenção de Beatriz Gonçalves, Vasco da Gama,
Guiomar de Leão e João Fernandes da Costa, então já presos no cárcere secular. Também
deveriam ser presos Gonçalo Lopes de Leão, cunhado de Diogo Lopes de Lagos, e o
escravo Alberto, ambos ainda em liberdade. Recordemo-nos que Alberto fugira para
Aiamonte. Seria, assim, passado precatório, ordenando o envio dos presos à Inquisição de
Évora424
. Porém, este parecer não reuniu unanimidade. O deputado D. Fernando de Castro
considerava que João Fernandes da Costa não deveria ser preso pela Inquisição “[...] por
ser da vereação da cidade de Lagos e dos municipais dela e se lhe seguir disto infâmia e
certas pessoas exceptuadas no regimento da Inquisição, para não no prenderem sem dar
conta ao Conselho de sua qualidade [...]”425
.
Não obstante, João Fernandes da Costa acabou por ser preso pela Inquisição de
Évora, possivelmente na mesma data da esposa, Guiomar de Leão426
. A 24 de
Novembro de 1621, ela entrava nos cárceres de Évora, junto com Beatriz Gonçalves e
422
Cf. Idem, fl. 297v. 423
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fls. 97-97v. 424
Cf. ANTT, IE, mç. 2, fls. 299-299v. 425
Cf. Idem, fl. 300. De facto, segundo o cap. LIV do Regimento de 1613, “[...] em todos os
processos das pessoas que, por regimento do Conselho se não podem prender sem consultar o
Inquisidor-Geral ou o mesmo Conselho, que são clérigos, religiosos de qualquer ordem, fidalgos,
pessoas de qualidade, mercadores muito ricos e notáveis, e em todos os ditos casos serão enviados os
ditos processos ao Conselho Geral, com o assento que neles se tomar e fundamentos e razões dos
votos [...]”. (Cf. “Regimento de D. Pedro de Castilho (1613)”, As Metamorfoses..., p. 173 (cap. LIV)).
Antes, o Regimento do Conselho Geral contemplara, no cap. XX, que os inquisidores não poderiam
mandar prender “pessoas graves”, como nobres ou religiosos, nem “[...] pessoas que pela qualidade delas
ou por serem muitas, haja a sua prisão de fazer alvoroço ou movimento grande em alguma cidade ou vila
[...]” (Cf. “Regimento do Conselho Geral da Inquisição – Cardeal D. Henrique (1570)”, As
Metamorfoses..., p. 142 (cap. XX)). 426
Não foi encontrado o processo inquisitorial de João Fernandes da Costa. Porém, são fortes os indícios que
provam a sua presença nos calabouços da Inquisição de Évora. Afinal, um parecer de 25 de Setembro de 1621
referia que ele e Guiomar de Leão deveriam ser soltos na forma de suas sentenças antes do auto-de-fé seguinte.
João Fernandes, depois de abjurar de levi na mesa, deveria regressar à prisão secular. Foi degredado por 4 anos
para o Brasil e obrigado a pagar 200 cruzados (Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fl. 101).
108
Vasco da Gama. Quanto ao escravo Alberto, não encontrámos nenhuma referência à sua
prisão. Possivelmente, nunca chegou a ser encontrado.
O mesmo teria acontecido a Gonçalo Lopes de Leão, o Muleixeque427
. O irmão de
Beatriz Filipe fugiu de Lagos no preciso momento em que o foram prender a casa, a
11 de Novembro de 1620. Contara com o auxílio do cura da freguesia de Barão de São
João, o Padre Estêvão de Queirós, o qual negociou com Manuel Martins, almocreve, o
aluguer de um cavalo para o transportar. Segundo o cura, Gonçalo Lopes ter-lhe-ia
prometido que seguiria para Évora para “[...] botar-se aos pés dos senhores
inquisidores [...]”. Numa carta que Estêvão de Queirós entrega à Inquisição de Évora,
datada de 20 de Novembro, Gonçalo Lopes informava-o de que tinha chegado a Évora
e se iria apresentar perante D. Fernando de Castro, o mesmo deputado que se mostrara
relutante à prisão de João Fernandes da Costa428
. Porém, a intenção alegada na carta
não passou disso. Gonçalo Lopes nunca chegou a apresentar-se perante a Inquisição
de Évora. Dizia-se em Lagos que ele havia partido para Sevilha.
Portanto, no final de 1620, estavam já presos os principais suspeitos pela morte de
Francisco Lopes Serralvo. Contudo, nenhum chegou a confessar o crime. À esposa de
Diogo Lopes Simões, Beatriz Gonçalves, acrescera ainda uma acusação de blasfémia429
.
Porém, ela nada confessou até que, no dia 28 de Janeiro de 1621, foi encontrada morta
no cárcere. O mesmo destino teve o seu filho, Vasco da Gama, pouco mais de dois
meses depois. Ambos terão morrido de causas naturais – concluiram os inquisidores430
.
Guiomar de Leão viu o seu processo inquisitorial ser despachado em menos de um
ano. Nunca chegou a confessar o crime. Contestou o libelo, alegando que o seu escravo
Alberto fora alforriado meses antes da morte de Francisco Lopes. Apesar dos abundantes
indícios que Lopo Soares de Castro recolhera em Lagos e Vila Nova de Portimão, os
inquisidores concluíram não existir prova suficiente para uma condenação. A sentença foi
publicada a 7 de Outubro de 1621 e Guiomar de Leão regressou a Lagos431
.
427
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 438-495v. 428
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 488. Vide a transcrição desta carta em anexo, p. 387. 429
Beatriz Faria, com quem ela partilhara a cela na cadeia Silves, testemunhou perante Lopo Soares de
Castro o seguinte: “[...] Haverá dois meses, pouco mais ou menos, que estando ela declarante na dita
cadeia com a dita Beatriz Gonçalves, mandou ela buscar um pouco de peixe e trazendo-lho a pessoa que
lho foi comprar, ela o não tomou e jurando por Cristo que o não havia de tomar. E ela testemunha lhe
disse que deixasse a Cristo porque os de nação não se contentavam de o açoutar e crucificar uma vez mas
que cada dia o queriam crucificar e açoutar. E a dita Beatriz Gonçalves respondeu que se o açoutaram o
fizeram muito bem de o açoutar e, repreendendo ela testemunha do sobredito, ela se não desdisse [...]”
(Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 128). 430
Cf. ANTT, IE, procs. 3276 e 2566. 431
Cf. ANTT, IE, proc. 5606.
109
O crime ficou impune. Uns fugiram, outros faleceram no cárcere e, no final, os
únicos suspeitos que permaneceram à mercê da justiça inquisitorial foram Guiomar de
Leão e João Fernandes da Costa, “gente de qualidade” da cidade de Lagos. A relativa
rapidez com que os processos decorreram e a sua indefinição revelam o quão delicado
era este caso para o tribunal de Évora. A solução foi devolver o problema à justiça
secular, que acabaria por conceder o perdão ao casal em 1624432
.
Contra a Lei de Cristo e contra a Igreja
Duas tendências marcam os anos que medeiam o perdão geral e o édito da graça de
1627. Por um lado, as prisões, residuais e sem demais consequências, de alguns
mercadores cuja circulação pelas feiras do Algarve e do Alentejo propiciava a
comunicação com os seus congéneres doutras paragens onde a repressão inquisitorial se
encontrava mais activa. Por outro, as denúncias contra cristãos-novos da região que não
se materializaram em processos, com a tónica comum de se focarem mais em ataques
aos dogmas, aos rituais e à própria hierarquia católica do que, propriamente, em
comportamentos judaizantes.
A associação do sacrilégio à gente de nação não é um dado novo. Como refere Caro
Baroja, aos judaizantes não só era atribuída a recusa da fé cristã como também a
tendência para o ultraje dos princípios doutrinais cristãos, expresso em actos como os
sacrilégios com hóstias ou as profanações de imagens. Tal regista-se, principalmente,
em momentos de crescimento da sua ascendência na sociedade e junto do poder
político433
. Numa ocasião em que as posições dos cristãos-novos portugueses
encontravam eco junto da coroa, capazes de jogar com o seu estatuto económico e com
as debilidades financeiras do Império, aumentou o número de escritos anti-judaicos e
multiplicaram-se os sinais de hostilidade por parte da maioria cristã-velha434
.
Célebre ficou o caso de Santa Engrácia, em Lisboa. Os que entraram nessa igreja, na
manhã de 15 de Janeiro de 1630, depararam-se com o sacrário arrombado e vazio. As
acusações pelo roubo das hóstias consagradas dirigiram-se de imediato contra a gente de
nação. Simão Pires Solis, cristão-novo, foi culpado e condenado pelo roubo. O caso de
432
Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Perdões e legitimações, liv. 15, fls. 296v-297. Vide, em anexo,
pp. 388-389. 433
Cf. Julio Caro Baroja, Inquisicion, Brujeria y Criptojudaismo, Barcelona, Ediciones Ariel, 1972, pp. 65-70. 434
Vide Bruno Feitler, “Produção literária antijudaica no mundo português da Idade Moderna”, Novos
Estudos, n.º 72, Julho 2005, pp. 137-158.
110
Santa Engrácia correu as bocas de todo o reino e motivou o recrudescer das posições
contra os cristãos-novos435
. A notícia chegou ao Algarve e teria ficado gravada na
memória de muitos. Em 1634, uma doente do Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa,
recordava o malogrado destino de Simão Pires Solis: «Esse santo está no Céu, que tudo
quanto lhe puseram foram testemunhos falsos». A doente era Mor Gonçalves, cristã-nova
de Faro, presa no ano anterior pela Inquisição de Évora. Considerada demente, foi
remetida para o Hospital de Todos-os-Santos, onde viria a falecer pouco tempo depois436
.
Não encontramos no Algarve nenhum caso do qual tenha surtido tamanho escândalo
popular. As denúncias centram-se, sobretudo, na blasfémia, um delito transversal a
cristãos-novos e cristãos-velhos437
. Contudo, num momento de crescente animosidade
popular contra a gente de nação, a ofensa verbal aos dogmas e às instituições católicas
tornou-se numa forma de reacção. Vendo por outro prisma, o denunciante cristão-velho,
ao atribuir-lhe um crime torpe como a blasfémia, estava a servir a tendência corrente de
diabolização do elemento cristão-novo.
Os sacramentos eram o principal alvo, em particular a eucaristia. Em 1613, Catarina
Camacha, de Faro, contou o que ouvira de Fernão Duarte durante o ritual da consagração:
«Tu mo prometeste, Tu mo hás-de dar, se mo Tu não dás, Tu mo hás-de pagar». Dizia-o
enquanto puxava pelas barbas e cuspia no chão. Também Lopo Rodrigues reagira de
forma suspeita perante o levantar da hóstia. A mesma Catarina Camacha notou-o: “[...]
entortava a boca para uma parte e outra, fazendo escárnios [...]”438
. Os dois eram cristãos-
novos, tal como Jorge Mendes, mercador de Loulé, denunciado no mês de Julho de
1616 perante o Lic. Manuel de Campos, visitador-geral do bispado. Uma escrava,
Francisca Neta, referiu que o tinha visto, na Quaresma anterior, à porta da igreja de São
Clemente, “[...] o qual tanto que emparelhou com a dita porta da igreja, parou e, estando
de esguelha de modo que ficava com o braço esquerdo para a porta, torceu um pouco o
corpo e, com a mão direita, estando parado, deu três palmadas grandes nas nádegas e
435
Cf. Oliveira, Movimentos sociais..., pp. 330-331. 436
Cf. ANTT, IE, proc. 3588. 437
Cf. Ana Maria Mendes Ruas Alves, “Por quantos anjos pario a virgem”. Injúrias e Blasfémias na
Inquisição de Évora. 1541-1707. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. Exemplar policopiado, p. 70. Dos 200 processos por blasfémia
analisados pela autora, apenas 36 respeitavam a cristãos-novos. 438
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 305v. O Fernão Duarte referido por Catarina Camacho seria, possivelmente,
Fernão Duarte de Castro, mercador de Faro, viúvo de Mécia Pinta que, em 1634, aos 62 anos, foi preso
pela Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, proc. 9546). Lopo Rodrigues era também mercador, filho de
Francisco Rodrigues e Isabel Gomes e casado com Isabel Pais, cristã-nova de Loulé presa pela Inquisição
de Évora em 1635. Nessa data, Lopo já havia falecido (Cf. ANTT, IE, proc. 9671).
111
partes traseiras de modo que ela, testemunha, e sua companheira as ouviram muito bem
e tanto que as deu, continuou seu caminho [...]”439
.
Nem os religiosos estavam imunes a este tipo de denúncias. Não obstante a adopção
dos estatutos de limpeza de sangue por parte de algumas instituições e ordens, muitos
cristãos-novos continuavam a penetrar na hierarquia religiosa. Mas o sangue hebraico
era uma mácula cujo ordenação não apagava. Paradigmático é o caso do Padre António
Gonçalves, prior da igreja de São Clemente, em Loulé, sobre o qual se dizia ter parte de
cristão-novo. Em 1623, foi acusado de dizer que os sacramentos não davam graça e de
ter “[...] pouca reverência ao Santíssimo Sacramento [...]”440
. Os qualificadores
concluíram que algumas dessas acusações aproximavam-se da “heresia de Lutero”.
Porém, o sangue pesou mais do que as suspeitas de Luteranismo. Em Loulé, fez-se uma
diligência para determinar se o Padre António Gonçalves seria ou não cristão-velho dos
quatro costados. Muitas testemunhas referiram a fama de que teria parte de cristão-
novo. Entretanto, as suspeitas sobre o prior de São Clemente agravaram-se: “[...] se
afirma geralmente que urina muitas vezes na caldeirinha de água benta e que lava a
imundícia das mãos na quarta da água de que se provêm as galhetas para se celebrarem
as missas e dá o sacramento da eucaristia sem o da penitência [...]”441
. Não foi movido
qualquer processo contra o prior de São Clemente e ignoramos que desenvolvimentos
teve o caso, ou sequer se os houve.
Em Faro, na igreja de São Pedro, um outro clérigo chamou as atenções do Santo
Ofício. Diogo Martins recusava-se a celebrar missa na capela do santo patrono, onde
estava exposto um crucifixo. Ele era cristão-novo e provinha de uma família que, nas
últimas décadas do século XVI, povoara os cárceres da Inquisição de Évora442
. A sua
aversão à imagem de Cristo crucificado teria expressões mais graves. Uma criada
afirmou tê-lo visto, numa câmara da sua casa, a açoitar um crucifixo443
.
A documentação revela abundantes exemplos da associação de comportamentos
iconoclastas a cristãos-novos. Um dos denunciantes do Padre Diogo Martins, o Padre
João Lourenço Neto, testemunhou o que ouvira sobre duas cristãs-novas de Faro, Clara
Pinta e a irmã. Uma criada apanhara-as a profanar uma imagem de Cristo crucificado:
439
Cf. ANTT, IE, liv. 228, fl. 657v. 440
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 147. 441
Cf. Idem, fl. 158 442
Diogo Martins era filho de João Martins, mercador que, em 1571, foi preso em Beja, acusado de
judaísmo (Cf. ANTT, IE, proc. 191) e primo de Pedro Lopes, denunciado durante a visitação de 1585 a
Vila Nova de Portimão, cuja confissão accionou uma série de prisões no interior da sua família (Cf.
ANTT, IE, procs. 7516 e 5226. Vide supra, pp. 73-77). 443
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 385-386v.
112
“[...] em uma câmara tinham um alguidar cheio de água diante de si e tinham um Cristo
na mão e um cachorro e que assim o Cristo como o cachorro metiam ambos juntos no
alguidar e os mergulhavam [...]”. Pouco tempo depois, a criada faleceu. Dizia-se na
cidade que fora envenenada pelas duas irmãs444
.
A negação e o ataque aos fundamentos da doutrina católica caminhava a par da
agressão verbal aos homens da Igreja e às instituições religiosas. A memória de um
momento de intensa repressão inquisitorial e as suas repercussões no seio de alguns
núcleos familiares teria alimentado posições anti-clericais entre a gente de nação.
Francisco Domingues, cristão-novo de Vila Nova de Portimão, ao ouvir um monitório
sobre a obrigatoriedade do pagamento de esmolas para as bulas da cruzada, sob pena de
excomunhão, teria afirmado “[...] que cada vez que queria tirar excomunhões as tirava
do traseiro do seu jumento e do mesmo lugar fazia clérigos [...]”445
. O mesmo
sentimento anti-clerical encontra-se expresso nas palavras de Marcos Rodrigues, de
Faro, denunciado em 1613 por ter dito, ao ver passar os ornamentos com que o bispo
havia celebrado a missa na Sé: «Ah Diabo, que te eu dou a ti e a teus aparelhos»446
.
Mais herege do que António Homem
Albufeira, Dezembro de 1627. Rui Fernandes da Vega, mandador da almadrava de
Pedra Negra, era preso por dívidas à fazenda real. O juiz Belchior Monteiro encontrou-o
escondido na sua própria casa, dentro de uma caixa e coberto com colchões. Enquanto
era levado à força, Rui Fernandes começou a bradar enraivecido “[...] que era herege
confirmado e pior do que foi António Homem e pior que seu tio Miguel Álvares e que
dormira com duas irmãs e que ele tinha dormido com sua mãe e sua irmã solteira, que
tinha sinagoga e que era somítico [...]”447
. Várias pessoas assistiram a este insólito
desfilar de crimes, agravado pelo facto de Rui Fernandes ser reconhecido na vila como
tendo parte de cristão-novo. Já depois de preso, em carta, alegou que falara “[...] com
tantas imaginações de ver que me enviavam pelo que não cometi [...]”. Porém, o que
disse fora diferente do que o juiz de Albufeira tinha referido: “[...] saindo eu
444
Cf. Idem, fls. 386v-387. 445
Cf. ANTT, IE, liv. 92, fls. 239-239v. 446
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 307. Este Marcos Rodrigues seria o mesmo que, quando começaram as
prisões em Faro em 1633, fugiu para Sevilha, cidade onde veio a falecer poucos anos depois. Em 1637, já
postumamente, iniciou-se um processo inquisitorial contra si na Inquisição de Évora. A 26 de Março de
1651, foi relaxado em estátua (Cf. ANTT, IE, proc. 1460). 447
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 195v.
113
afrontosamente, como tenho dito, dissera que não me levam por somita, nem por
cometer irmã nem mãe, nem que não ia como foi António Homem [...]”448
Movido pela ira, um mareante de Albufeira recordava António Homem, cónego da
Sé e lente na Universidade de Coimbra, condenado à pena máxima em 1624, cinco anos
após ter entrado nos cárceres, acusado de ser o grão-sacerdote de uma congregação de
cristãos-novos judaizantes formada sob a aparência de confraria cristã, a Confraria de
São Diogo449
. Tal como acontecera no caso de Santa Engrácia, a condenação de
António Homem ateou ódios contra os cristãos-novos ao mesmo tempo que gerou
sentimentos de injustiça entre a gente de nação. E o Algarve não foi excepção. Pedro de
Barros Carneiro, cónego de Faro, esteve em Lisboa durante esses acontecimentos. De
regresso ao Algarve, perguntaram-lhe o que sabia sobre a morte de António Homem.
Anos mais tarde, em 1629, o cónego Sebastião Velho da Palma testemunhava o que
então ouvira de Pedro de Barros:
“[...] disse que António Homem, entendia, morrera mal por culpa dos inquisidores
serem mancebos e pouco experimentados e saberem mal o que haviam de fazer e é
tanto assim que Lopo Soares ser inquisidor, que vossas mercês conhecem muito
bem, e que os inquisidores apertavam tanto com os homens que lhes faziam dizer o
que não cometiam e é tanto isto assim que Lopo Soares, inquisidor de Coimbra,
apertara tanto com um seu cunhado, do dito Lopo Soares, que o quis fazer judeu
sendo homem nobre, e disse que por aqui podiam julgar o que havia entre os
inquisidores [...]”450
.
As condenações de cristãos-novos que se mantiveram fiéis à Lei de Cristo até à hora
da morte foram um dos motes da crítica contra a actuação inquisitorial. Vítimas
sacrificiais de um tribunal que condenava inocentes, os seus nomes perpetuaram-se na
memória doutros cristãos-novos. Foram elevados à categoria de mártires e até alvo de
culto451
.
A 19 de Maio de 1619, no auto-de-fé celebrado em Évora, saíram 86 presos, 12 dos
quais relaxados em carne. Desde 1600 que não se registava um número tão elevado de
448
Cf. Idem, fl. 193. 449
Sobre o caso de António Homem, vide António José Teixeira, António Homem e a Inquisição, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1895; Elvira Azevedo Cunha Mea, “1625-1634 Coimbra. O sagrado e o profano
em choque”, RHI, n.º 9, 2ª parte, 1987, pp. 229-248. 450
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 22. Pedro de Barros referia-se a Lopo Soares de Castro, deputado da
Inquisição de Évora desde 1617 e inquisidor em Coimbra desde 1623. 451
Sobre a questão do martírio entre os cristãos-novos, vide Miriam Bodian, Dying in the Law of Moses.
Crypto-Jewish Martyrdom in the Iberian World, Blomington, Indiana University Press, 2007. A autora
debruça-se sobre a construção de um culto em torno dos mártires criptojudeus relaxados pela Inquisição
que se mantiveram convictos na fé judaica até ao último momento. No caso do Algarve, dentro dos
limites temporais estudados, são escassos os exemplos encontrados. Destaque-se o processo de Francisco
Fernandes de Lagos, abordado nas páginas seguintes.
114
condenados por aquele tribunal452
. Sobre eles, Bento Lobo de Sousa, cristão-novo de
Lagos, teria dito “[...] que aqueles mártires todos eram de Beja [...]”453
. Ele próprio
acabaria por ser preso nesse mesmo ano454
.
Em Faro, Francisco Mendes, filho de Diogo de Tovar, chamava santos aos relaxados
pela Inquisição. Manuel Correia, moço da câmara real, residente em Lisboa, ouvira-o
falar de uma mulher que “[...] queria pôr fogo à Santa Inquisição [...]”, a qual acabou
relaxada à justiça secular. Essa mulher era “santa dos céus”, dizia Francisco Mendes455
.
O culto dos “mártires” da Inquisição comportava a procura e a conservação de
relíquias. Antónia Correia, tendeira de Évora, contou que, no início do mês de Abril de
1629, um forasteiro batera à sua porta. Julgando-a cristã-nova, perguntara-lhe se acaso
tinha “[...] algumas cinzas dos queimados que foram relaxados neste auto da fé [...]”. O
forasteiro era Francisco Correia, natural de Silves, que vivia de mendigar de casa em
casa. Devido a esta denúncia, foi preso a 16 de Maio de 1629. Se a tendeira alegou que
se fizera passar por cristã-nova para testá-lo, o mesmo argumento foi usado por
Francisco Correia. Ele referiu que tudo o que lhe dissera fora para “tirar dela”. Por isso,
fizera-se passar por correio dos cristãos-novos fugidos do Algarve e de Montemor-o-
Novo para Sanlúcar de Barrameda “[...] e que para as levar e trazer [as cartas], andava
ele pelo mundo e naqueles trajes por mais dissimulação [...]”456
. Enquanto esteve em
Évora, Francisco Correia assistiu ao auto celebrado a 10 de Abril de 1629, no qual foi
relaxado à justiça secular o seu parente Francisco Fernandes.
452
Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 179-180. 453
De facto, todos os relaxados no auto de 19 de Maio de 1619 eram de Beja (Cf. Joy L. Oakley (ed.),
Lists of the Portuguese Inquisition, vol. II – Evora 1542-1763, Goa 1650-1653, Londres, The Jewish
Historical Society of England, 2008, p. 16). Sobre a actuação inquisitorial em Beja neste período, vide
Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 404-407. 454
Cf. ANTT, IE, proc. 5906. Bento Lobo de Sousa era filho de Aldonça Loba, presa em 1586 e reconciliada
com cárcere ao arbítrio dos inquisidores no ano seguinte (Cf. ANTT, IE, proc. 4628). Os avós paterno e
materno também conheceram os cárceres inquisitoriais: Diogo Lobo e Mestre João foram vítimas da actuação
inquisitorial no início dos anos 60 do século XVI em Lagos (Cf. ANTT, IL, procs. 3270 e 12811). 455
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 306-306v. 456
Cf. ANTT, IE, proc. 6779. Sem nunca ter confessado, nem sob tormento, Francisco Correia abjurou de
levi no auto de 28 de Março de 1632 e foi posto em liberdade.
115
Judeu até à morte – o caso de Francisco Fernandes
“Filhos de Jacob, sois a mais honrada gente que há no mundo, o Senhor que criou
os céus e a terra e o mar e as areias, e anjos e arcanjos, e sol e lua, e estrelas e
planetas, e faz da água peixes, e criou as aves do céu, e mandou o dilúvio em tempo
de Noé, seu servo querido, e o que deu a Lei a Moisés no alto do Monte de Sinai, a
qual Lei é para amar, e crer, e reverenciar com toda a alma, com todo o coração,
com toda a vida e com todo o haver”457
Estas e outras palavras ter-se-iam ouvido, na Rua Direita de Lagos, na manhã de 26
de Março de 1627. A voz era a de Francisco Fernandes, mancebo cristão-novo, filho de
Manuel Fernandes, o Cabeça de Vaca. A cidade já conhecia bem o seu temperamento
colérico, tal como a sua relação conflituosa com o pai. Mas, naquela manhã, tais
palavras suscitaram a intervenção das autoridades locais. Gaspar Seromenho, familiar
do Santo Ofício, fora informado do ocorrido por António Ribeiro Pinto, escrivão do
judicial, e procedeu à prisão. Francisco Fernandes não resistiu.
Ele não era o primeiro homem da família a cair nas malhas do Santo Ofício. O tio
paterno, António Fernandes, o Bezerro, fora preso pela Inquisição de Évora em 1623.
Entre os seus denunciantes, encontrava-se Gaspar Lopes Serralvo, o filho do pantufeiro
de Beja assassinado em Monchique. Um cunhado de António Fernandes, Nicolau
Fernandes, foi detido na mesma altura458
.
Os tios nunca confessaram qualquer prática judaizante, mas Francisco Fernandes
manteve-se convicto na afirmação da crença na Lei de Moisés, na qual fora iniciado
bem longe do lar paterno. E revelou-o com pormenor na sua confissão.
Em 1612, quando tinha cerca de 17 anos, Francisco embarcou de Lagos rumo a
Lisboa. Desejava conhecer a cidade. Em três ou quatro meses, gastou todo o dinheiro
que levara. Com vergonha de regressar a casa, foi para Castela em busca de sustento.
No início da Quaresma de 1613, embarcou para Aldeia Galega. Em Castela, passou por
Badajoz, Llerena e Sevilha, sem nunca ter encontrado forma de ganhar dinheiro. O
destino seguinte foi Múrcia, onde se tornou criado de Manuel da Fonseca, cristão-novo
português que se dedicava ao comércio de sedas.
Em Agosto de 1613, um episódio mudou a sua vida. Estando um dia a passear num
pepinal no termo de Múrcia, Francisco roubou um pepino. O dono apareceu e lançou-se a
457
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 84-84v. 458
Cf. ANTT, IE, procs. 6298 e 4056. Foram ambos reconciliados com cárcere ao arbítrio dos
inquisidores – António logo no auto de 30 de Novembro de 1626 e Nicolau só dois anos depois. Em
1638, Nicolau Fernandes era já defunto. Nessa data, a sua mulher, Maria Rodrigues, foi denunciada por
uma escrava que a acusou de açoitar uma imagem de Cristo crucificado. Apesar da denúncia, não se
conhece nenhum processo contra Maria Rodrigues. (Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 84-93).
116
ele, chamando-o de judeu. Ao regressar a casa, Francisco queixou-se ao seu senhor de
que, em Castela, chamavam judeus a todos os portugueses. Isso ofendia-o, pois sempre
fora bom cristão, apesar de nascido numa família cristã-nova. Ao saber disso, Manuel da
Fonseca deu-lhe para as mãos a segunda parte do Flos Sanctorum de Alonso de Villegas e
aconselhou-o a lê-la459
. A partir de então, todas as noites em que não tinha trabalho,
Francisco lia o livro. Leu-o três vezes até que Manuel da Fonseca lhe perguntou se lera a
passagem sobre a vida de Moisés e a libertação do povo judeu do Egipto. O seu amo
ensinou-lhe, então, que a Lei que Deus dera a Moisés no Monte Sinai era a verdadeira e a
única pela qual se salvaria. Foi nesse momento que Francisco se apartou da fé cristã.
Ainda permaneceu em Múrcia até ao final de Maio de 1614. Manuel da Fonseca
adoecera gravemente e, ao vê-lo assim, Francisco resolveu ir à procura doutro trabalho.
Procurou-o infrutiferamente em Granada, Sevilha e Madrid. Regressou, então, a Lagos.
A 11 de Agosto, chegou a casa e o pai recebeu-o festivamente. Tendo-lhe perguntado
onde estivera durante todo aquele tempo, o rapaz, sem confiar na reacção do pai ao
saber da sua nova fé, mentiu-lhe, dizendo que estivera em Granada ao serviço de um
fidalgo. Só no ano seguinte é que Francisco ganhou coragem para contar a verdade ao
pai. «Pai e senhor, não imos bem encaminhados» – disse-lhe um dia, quando os dois
estavam sozinhos na loja. Manuel Fernandes não aceitou e expulsou-o de casa.
Provavelmente, essa reacção não fora motivada só pelo zelo cristão. Como vimos, os
Fernandes de Lagos já haviam atraído, no passado, as atenções do Santo Ofício e o
próprio Manuel Fernandes fora denunciado por Manuel Dias Pereira, mercador de
Tavira460
. Porém, ao contrário do irmão e do cunhado, ele conseguira escapar ao cárcere
inquisitorial. Mas a nova fé do filho representava um risco acrescido para a família.
Durante algum tempo, Francisco vagabundeou pela cidade. No mês de Abril de
1617, voltou a partir para Múrcia, em busca do amparo do seu antigo amo que,
459
A obra de Villegas é composta por duas partes: uma primeira parte dedicada à vida de Jesus Cristo e
uma segunda que contém a “Historia General en que se escrive la vida de la Virgen Sacratissima Madre
de Dios y las de los sanctos antiguos”. Por sua vez, esta segunda parte, cuja primeira edição data de 1583,
encontra-se dividida em duas secções, uma consagrada à vida da Virgem e outra às “vidas de los sanctos
patriarcas e prophetas de que la sagrada escriptura haze mención: particularmente los contenidos desde
Adan en el illustrissimo linage de la sagrada Virgen madre de Dios” (Cf. Alonso de Villegas, Flos
Sanctorum: Segunda parte y Historia General en que se escriue la vida de la Virgen sacratissima madre
de Dios, y señora nuestra y las de los sanctos antiguos..., Toledo, Juan Rodriguez, 1586). Tratando-se de
uma adaptação do Antigo Testamento, a segunda parte do Flos Sanctorum era correntemente lida pelos
cristãos-novos judaizantes como veículo de doutrinação na fé dos seus ancestrais. O mesmo acontecia
com outros textos supostamente ortodoxos mas cuja leitura e interpretação solidificava crenças e práticas
consideradas heréticas. Sobre este assunto, vide Manuel Peña Diaz, “Libros permitidos, lecturas
prohibidas”, Cuadernos de Historia Moderna. Anejos, n.º 1, 2002, pp. 85-101. 460
Cf. ANTT, IE, proc. 5686.
117
entretanto, recuperara a saúde. Foi recebido com júbilo. Manuel da Fonseca ficou a
saber da reacção do seu pai e, opondo-se a este, confirmou-lhe o ensino.
De novo ao seu serviço, Francisco passou a percorrer o reino de Múrcia de lés-a-lés,
vendendo as mercadorias do seu senhor. Um dia, estando em Granada, ouviu dizer que
o Santo Ofício andava a prender muitos cristãos-novos portugueses na cidade de
Múrcia. Avisou, então, Manuel da Fonseca que o aconselhou a guardar segredo da sua
fé e confidenciou-lhe que haveria de partir para Itália, onde poderia viver livremente
como judeu.
Francisco Fernandes e Manuel da Fonseca partiram para Veneza. Chegaram à cidade
em Maio de 1620, passando a frequentar a judiaria da cidade e a sinagoga. Mas Manuel
da Fonseca tinha um outro objectivo: obter notícias de duas filhas que teriam passado por
Veneza a caminho da Turquia. Na judiaria, foi-lhe confirmado que elas haviam chegado
ao seu destino, tal como outros cristãos-novos de Múrcia que passaram pela cidade.
Porém, para Francisco, a principal meta da viagem era mesmo consolidar a sua nova
fé. Falou com letrados judeus e, durante dois meses, ia três vezes por dia à sinagoga.
Manuel de Israel foi o nome que adoptou, em homenagem ao seu amo e primeiro mestre
na fé judaica. Para seguir as orações na sinagoga, um judeu deu-lhe um livro que,
segundo a descrição, seria, possivelmente, um Sidur461
. Em Veneza, Francisco tomou
ainda conhecimento com dois frades que diziam ter vindo do Reino de Leão com o
intuito de se tornarem judeus. Também eles frequentavam a sinagoga e um dos frades,
pelos seus sermões, tornou-se particularmente popular em Veneza.
Os frades e Manuel da Fonseca embarcaram para a Turquia a 7 de Julho de 1620, mas
Francisco não os acompanhou. Queria regressar à terra e voltar a ver o pai. Nesse mesmo
dia, partiu de Veneza para Roma. No final do ano, estava em Granada, ao serviço de um
cristão-velho castelhano. Francisco conseguiu juntar dinheiro e comprou algumas
especiarias que andou a vender de lugar em lugar. Só chegou a Lagos a 22 de Janeiro de
1623. O pai ainda não tinha esquecido o que se passara anos antes mas aceitou acolhê-lo
na sua casa. Por sua vez, Francisco não lhe contou nada do que acontecera em Veneza e
escondeu o livro que trouxera, enterrando-o ao pé de uma videira. Nunca mais o resgatou.
461
Francisco Fernandes refere que o livro continha os salmos de David, sem o Gloria Patri, e várias
orações, entre as quais uma que dizia “[...] „Adonai, Adonai‟, que quer dizer que amaria o Senhor com
todo o coração e com toda a alma e com toda a vida e com todo o haver [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 7496,
fl. 80). Essa oração era o Amidah, rezado no final dos serviços diários (Cf. David Martin Gitlitz, Secrecy
and deceit. The religion of the Crypto-Jews, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2002, pp.
460-462).
118
O resto da história é já conhecido. Francisco Fernandes justificou a atitude que tivera
na manhã de 23 de Março: continuava crente na Lei de Moisés e andava muito agastado
pela forma como o pai o tratava e por ter de esconder a sua verdadeira fé.462
A 5 de Maio de 1627, entrou nos cárceres da Inquisição de Évora. Afirmava que
“[...] esta Mesa procedia mal em proceder contra a gente de nação que cria na Lei de
Moisés, porquanto eles faziam bem em crer na dita Lei pois ela era a Lei que Deus deu
a Moisés e a verdadeira [...]” e que os cristãos-novos só se baptizavam para encobrirem
o seu Judaísmo e para não perderem as suas vidas e fazendas463
. O Santo Ofício prendia
e condenava muitos cristãos-novos que não eram judeus “[...] e bradam por Cristo e sem
embargo disso morrem queimados e que se a Lei de Cristo fosse a boa, ele lhes acudira,
e já que não faz, é que não tem poder para isso, nem a lei é boa [...]”464
. Francisco
manteve estes argumentos perante os religiosos que o tentaram demover da sua
convicção religiosa.
Tudo indicava que ele sairia relaxado logo no auto de 18 de Junho de 1628. Mas tal
não aconteceu. Ora, isso deu-lhe mais um argumento – no fundo, os inquisidores sabiam
que ele falava a verdade e que Deus o livraria das chamas465
.
A 1 de Abril de 1629, sempre convicto de que se salvaria na Lei de Moisés,
Francisco Fernandes morreu na fogueira. A memória da sua morte permaneceu viva no
Algarve por muitos anos. Em 1647, numa devassa feita em Lagos pelo inquisidor
Manuel de Magalhães de Meneses, ainda se recordava o caso. A 19 de Setembro,
Lourenço Eanes Ribeiro, mandador da armação de Torralta, interrogado sobre uns
escritos pró-judaicos afixados nas paredes da cidade, dizia “[...] que ele não se persuade
que os ditos escritos os podiam fazer cristãos-velhos, antes entende que só o fariam
cristãos-novos, pois já nesta cidade houve um chamado Francisco Fernandes, que foi
queimado, que publicamente professou a Lei de Moisés e que assim é de crer que
estoutros o queiram fazer posto que mais em segredo [...]”466
O caso de Francisco Fernandes não caiu no olvido e regressava às bocas dos cristãos-
velhos de Lagos como prova da persistência da fé judaica entre a gente de nação.
462
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 73-85v. Vide em anexo, pp. 392-402. Vide também: Borges Coelho,
Inquisição de Évora..., pp. 257-263. 463
Cf. ANTT, IE, proc. 7486, fls. 96v-97. 464
Cf. Idem, fls. 100-100v. 465
Cf. Idem, fls. 181v-182. 466
Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 110-110v.
119
Nas vésperas de uma nova vaga
A 26 de Junho de 1627, D. Filipe IV assinava o édito da graça467
. Durante um
período de 3 meses, os cristãos-novos que se apresentassem livremente perante a
Inquisição e confessassem os seus “desvios na fé”, receberiam a reconciliação sem que
lhes fosse incutida qualquer pena. Prorrogado por mais três meses, só em Fevereiro do
ano seguinte é que o tempo da graça terminou. Nos tempos que se seguiram, outras
medidas foram aplicadas. Concedeu-se aos cristãos-novos a possibilidade de se
habilitarem a todos os cargos e honras desde que, durante três gerações, não tivesse sido
levantado nenhum processo inquisitorial contra a sua parentela. Em 1629, era revogada
a lei que proibia a sua partida do reino.
Porém, a coroa revelava-se permeável a novas concessões à gente de nação. O
Conselho da Suprema Inquisição de Madrid estudou as propostas e, a 11 de Março de
1628, foi assinado um decreto em que se determinava uma série de mudanças na
actividade da Inquisição portuguesa, sobretudo nos aspectos que eram alvo das mais
acérrimas críticas por parte dos representantes dos cristãos-novos, como as prisões por
testemunhos singulares e a impunidade sobre as falsas delações468
. A Igreja portuguesa
não aceitou tais medidas de ânimo leve e as estipulações vindas de Madrid nunca foram
aplicadas na prática. Entre Maio e Agosto de 1629, reuniu-se em Tomar uma junta de
bispos e teólogos destinada a avaliar os meios para a aniquilação definitiva do judaísmo
no reino. A presença de tantos cristãos-novos judaizantes contribuíra indelevelmente
para a decadência de Portugal – esta e outras conclusões da Junta de Tomar acabariam
por conduzir ao agravamento da relação entre cristãos-novos e cristãos-velhos. O caso
de Santa Engrácia foi sintomático.
Para os cristãos-novos portugueses, o édito da graça e a permissão de partida para
lá das fronteiras revelaram-se presentes envenenados. Reproduziu-se, em parte, o que
D. Fernão Martins Mascarenhas advogara no tratado escrito em 1626. Assim,
acompanhavam o édito medidas destinadas a fomentar o rigor da actuação
inquisitorial, como a aplicação da pena de desterro aos suspeitos que abjurassem de
vehementi e o alargamento da condenação à morte aos dogmatistas. Até a liberdade de
467
Sobre o édito da graça de 1627, vide Borges Coelho, Política, Dinheiro..., pp. 143-144; Pulido
Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 90-100. 468
O decreto estipulava, entre outras medidas, o seguinte: que os réus presos por testemunho singular não
poderiam ser condenados à morte; os testemunhos falsos deveriam ser castigados; os réus poderiam
conhecer mais detalhes da acusação e ao inquisidor não seria permitido induzir-lhes respostas; os
reconciliados com culpas leves sairiam em auto privado. Era também decretado que a Inquisição portuguesa
deveria ajustar o seu procedimento à de Castela (Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 95-96).
120
saída do reino apresentava algumas limitações – os que pretendessem seguir para as
Índias de Castela apenas o poderiam fazer mediante uma licença especial. Tal não foi
a única razão por que muitos não aproveitaram a possibilidade de abandonar o reino.
Por ordem do Conselho da Fazenda, os nomes e os destinos de todos os cristãos-novos
que se ausentassem de Portugal seriam registados, o que dissuadiu muitos de partirem,
temendo as consequências derivadas desses registos469
.
Segundo o édito da graça, a confissão só seria válida se apresentada perante um
inquisidor. Ora, este tinha então a oportunidade de arrancar denúncias e obter mais
suspeitos. Os números dos processados nos anos seguintes ao édito não deixam margem
para equívocos. Em 1629, foram emitidas 557 sentenças, sendo que, entre 1621 e 1640,
a média anual para o conjunto dos três tribunais rondava as 280470
.
No Algarve, uma sucessão de acontecimentos indiciava o advento de uma nova vaga
repressiva. Em 1628, faleceu D. Fernão Martins Mascarenhas. No ano anterior, tornara-se
bispo do Algarve D. Francisco de Meneses, antigo inquisidor dos tribunais de Coimbra e
de Lisboa. De tal experiência, ficou-lhe a reputação de rigor e inclemência para com a
gente de nação471
.
Foi já com uma provecta idade que D. Francisco de Meneses assumiu o episcopado
algarvio. Porém, logo nos primeiros anos de funções, conseguiu visitar toda a região. Entre
1630 e 1633, há o registo de que tenha visitado, pelo menos, 135 paróquias472
. Então, D.
Francisco traçou o retrato do estado da Igreja no Algarve – as condições físicas dos locais
de culto, os comportamentos dos fiéis, a actuação do clero. Numa relação escrita em 1631,
D. Francisco de Meneses alertava para o facto de que havia “[…] na dita Sé de faro alguns
capitulares que têm parte da nação hebrea e outros infamados disso […]”. A relação foi
enviada à Santa Sé dois anos depois, num momento em que a Inquisição já tinha entrado
em força na cidade de Faro473
.
Entretanto, por todo o reino, os cristãos-novos contribuíam para a finta comprada
em juros à fazenda real. Reuniu-se um total de 246 mil cruzados. Das 1804 famílias
469
Cf. Idem, Ibidem, pp. 91, 100. 470
Cf. José Veiga Torres, “Uma longa guerra social: os ritmos da repressão inquisitorial em Portugal”,
RHES, n.º 1, Janeiro-Junho 1978, p. 59. 471
Cf. Joaquim Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 8-9. 472
Cf. Bruno Léal, La crosse et le bâton. Visites pastorales et recherche des pêcheurs publics dans le
diocèse d’Algarve, 1630-1750, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 126. Só entre Maio e Julho
de 1631, D. Francisco de Meneses visitou 22 localidades, entre Paderne e Cacela, passando pelas
freguesias de Lagos e Silves. A visitação continuou até Junho de 1632, mas o bispo delegou as funções de
visitador ao Lic. António Teixeira. (Cf. Arquivo Episcopal de Faro (AEF), cx. 20-100, “Visitas de D.
Francisco de Meneses, 1631-1632”). 473
Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 8.
121
cristãs-novas fintadas em 1631, 287 eram do Algarve474
. Tomando como referência
estes dados que, segundo Borges Coelho, pecam por defeito, cerca de um sexto dos
cristãos-novos residentes em Portugal viveria no extremo sul do reino475
.
Os dados da finta de 1631 fornecem, igualmente, um panorama da distribuição da
gente de nação pelas localidades algarvias476
. Não obstante a entrada da Inquisição nos
anos 60 do século XVI, Tavira continuava a ser a cidade onde residiam mais cristãos-
novos. Afinal, em termos demográficos, era ainda a maior metrópole do Algarve. Por
outro lado, a presença de famílias de nação no Barlavento revela-se bem menos
expressiva. Vila Nova de Portimão registava números bastante modestos, possivelmente
fruto das prisões ocorridas no final de Quinhentos e da consequente vaga migratória.
Por outro lado, Faro destacava-se como a segunda cidade do Algarve.
De acordo com Romero Magalhães, a finta de 1631 deu acesso a informações
essenciais para a Inquisição poder estruturar uma nova entrada na região. Os cristãos-
novos que usufruíam de uma mais avultada fortuna estavam, assim, identificados.
Ficara-se a saber quais localidades onde a sua presença era mais notável.
Apesar de os números indicarem Tavira como a cidade com mais vizinhos cristãos-
novos, dadas as suas condições geo-estratégicas, este não era o melhor alvo para uma
nova vaga de prisões. Muito próxima da fronteira, seria fácil a fuga para Castela. Por
outro lado, Faro apresentava-se como a melhor solução477
. Verificamos que 39% dos
cristãos-novos da cidade fintados em 1631 foram presos pela Inquisição nos anos
seguintes, enquanto que 8% deles já tinham abandonado o reino quando começou a vaga
de prisões. Além do mais, sendo sede episcopal, a entrada da Inquisição contou com o
auxílio prestes do bispo D. Francisco de Meneses. Ele tornou-se num dos protagonistas da
maior vaga de detenções inquisitoriais jamais registada no Algarve.
474
Cf. Mendes dos Remédios, Os Judeus em Portugal..., p. 146. 475
Cf. Borges Coelho, Política, Dinheiro..., p. 212. 476
Vide, em anexo, gráfico sobre a distribuição da finta pelas localidades algarvias, p. 97. Os dados
baseiam-se no documento apresentado por Mendes dos Remédios (Cf. Mendes dos Remédios, Os Judeus
em Portugal..., pp. 176-184). 477
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 370-371.
122
4. 1630-1650: A GRANDE ENTRADA
Entre 1633 e 1637, entraram nos cárceres da Inquisição de Évora mais de 250 cristãos-
novos residentes em Faro. Cristóvão Rodrigues, executor da fazenda real no Algarve,
justificava assim um número tão elevado de prisões na cidade:
“[...] é um lugar tão abreviado, como Vossas Senhorias devem ter notícia, do que pode
dizer viviam todos de umas portas adentro e, em particular, a gente de nação por
estarem tão unidos e ligados em amizades, parentescos, casamentos e companhias nos
tratos que, em puxando por um, se vinham todos, de cuja conglutinação procedeu que
uma só faísca que caiu entre eles se lhe converteu em raio [...]”478
.
Essa faísca teve um nome, Branca Dias.
Branca Dias confessa
Branca Dias tinha pouco mais de 30 anos em 1631. Natural de Faro, vivia na Rua da
Estalagem, na freguesia de São Pedro. O seu marido, Afonso Pinto Santos, era rendeiro
e, tal como ela, cristão-novo. O pai, Diogo Duarte, nasceu em Loulé e era cirurgião,
enquanto que a mãe, Isabel Guterres, com origens em Vila Nova de Portimão, era
parente dos Gramaxo, família que, como já vimos, povoara os cárceres de Évora em
finais do século anterior479
.
A 9 de Março, Branca apresentou-se voluntariamente perante o bispo D. Francisco
de Meneses para “descarregar a sua consciência”. Fazia-o em segredo, longe do
conhecimento do marido. Cerca de 20 anos antes, a sua irmã mais velha, Francisca
Duarte, ensinara-lhe que só havia salvação na Lei de Moisés e não na de Cristo. Por
isso, deveria fazer o jejum do dia grande que vinha em Setembro (Quipur) e o da Rainha
Ester, tal como os jejuns das segundas e quintas-feiras, não ingerindo nenhum alimento
até ao aparecimento da primeira estrela. Deixaria de comer lebre, coelho, carne de
porco, peixe sem escama e aves afogadas e a carne teria de ser sangrada antes de
consumida. O ensino da irmã não foi suficiente e Branca teve de confirmá-lo perante os
pais. Então, “[...] passou à Lei de Moisés, crendo e esperando salvar-se nela e não na de
Cristo [...]”. Até à morte dos pais e ao casamento da irmã, manteve essas práticas no
seio familiar.
478
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 326. 479
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 22-23. Sobre o processo de Branca Dias e o início da vaga de prisões
em Faro, vide Romero Magalhães, E assim se abriu....
123
Um cristão-novo oriundo de Nantes, Manuel Mendes, completou a sua doutrinação.
Hospedado na casa dos seus pais, ele ensinou-lhe que, nas noites de sexta-feira, deveria
acender os candeeiros com azeite limpo e torcidas novas e deixá-los acesos até se
apagarem por si. Aos sábados, não deveria trabalhar, mas sim vestir roupa lavada, por
observância da Lei de Moisés. Branca Dias não foi a única a ouvir tais ensinamentos de
Manuel Mendes – estavam também presentes, além dos pais e da irmã, Inês Pousada e
as filhas Beatriz Álvares, Isabel Mendes e Branca Dias. Depois do ensino, o grupo
continuou a celebrar algumas das cerimónias em conjunto.
Branca Dias ainda denunciou outros cristãos-novos de Faro com quem comunicara a
sua nova fé: Beatriz Mendes, irmã da dita Inês Pousada; a sogra, mulher e filha de
Baltazar Pinto, mercador entretanto falecido (Mécia de Oliveira, Catarina Filipe e Mécia
de Oliveira, respectivamente); e a sobrinha Beatriz Mendes, filha de Francisca Duarte.
Por terceiros, sabia que também mantinham práticas judaizantes Isabel da Costa, casada
com Gaspar Fernandes, mercador de Faro, e Francisco da Costa, de quem Manuel
Mendes dizia ser “sacerdote” da Lei de Moisés480
.
Mas esta confissão não era suficiente para accionar mais prisões. Não havia como
corroborar as denúncias sem atrair atenções indesejadas. E todos os cuidados eram
poucos para manter o segredo e evitar a fuga dos suspeitos. Então, Branca Dias
permaneceu em liberdade.
Em Julho, na cidade de Lisboa, onde alegadamente fora tratar doutros assuntos
relativos ao bispado, D. Francisco de Meneses teria apresentado o caso de Branca Dias
ao inquisidor-geral481
. Numa missiva de 6 de Dezembro de 1631, D. Francisco de
Castro dava ordens para que o bispo do Algarve continuasse com as diligências e
procedesse às sessões de crença e de genealogia482
. Deveria ser ele, pois “[...] foi
inquisidor e o fará muito bem [...]” – aconselhavam os inquisidores de Évora num
parecer ao inquisidor-geral483
. Tratava-se de uma situação extraordinária. O segredo,
necessário à entrada numa terra ainda virgem à acção do Santo Ofício (só nas palavras
dos inquisidores!), justificava o extravasar dos limites traçados entre o poder episcopal e
o inquisitorial.
Branca Dias apenas voltou a ser interrogada pelo bispo mais de um ano após a sua
primeira confissão. Entretanto, chegavam aos ouvidos de D. Francisco de Meneses
480
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 14v-17v 481
Esta hipótese é colocada por Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 9. 482
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 18. 483
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fls. 127-128. Vide, em anexo, pp. 404-405.
124
novas denúncias contra ela e contra a sua família. Bernarda da Silva, escrava alforriada
que, no passado, servira a mãe de Branca Dias, contou que ela tinha um filho
circuncidado. Além disso, quando a sua senhora faleceu, viu uma outra filha, Isabel
Mendes, a deitar fora a água que havia em casa para beber484
. A devassa sobre estas
novas suspeitas poderia suscitar atenções indesejadas. Só uma nova sessão de perguntas
à própria Branca Dias esclareceria essa dúvida.
Numa carta de 29 de Maio de 1632, D. Francisco de Meneses informava que já
havia combinado com Frei Francisco de Vila Nova, padre do Convento de Santo
António, que a sessão com Branca Dias iria decorrer nesse mesmo lugar, dois ou três
dias antes da festa de Santo António485
. Porém, acabou por ser no próprio dia do santo.
Encontrara-se o pretexto ideal para Branca Dias se deslocar, a 13 de Junho, ao Convento
de Santo António – iria prestar culto ao santo de que era devota.
Nesta nova sessão, as denúncias chegaram a Loulé. Branca Dias delatou as
famílias de Isabel Guterres e de Manuel Franco, além da tia Grácia Duarte, entretanto
já falecida. Sobre a circuncisão do filho, nada disse486
. D. Francisco de Meneses
concluiu que, caso tal se comprovasse, era possível que ela o desconhecesse. A
circuncisão poderia ter sido iniciativa do marido. Afinal, o bispo não a tinha por
“impenitente diminuta”487
.
Os inquisidores também consideraram essa questão secundária e adiaram-na para
mais tarde488
. Só foi retomada no ano seguinte, a 9 de Setembro de 1633, com o exame
do rapaz e a prova da sua circuncisão489
. Branca Dias tinha falecido havia duas semanas.
Nunca chegou a ser reconciliada e o seu processo ficou em aberto. A irmã Francisca
Duarte, que entretanto fora presa, denunciara um outro irmão, Custódio Mendes. Porém,
Branca Dias nunca chegou a acusar o irmão e, com a sua morte, o processo ficou em
suspenso. Custódio Mendes acabaria por ser preso no ano seguinte, uma prisão
fundamentada apenas na denúncia da irmã Francisca.
No início de Agosto de 1633, os inquisidores escreviam sobre as consequências
das delações de Branca Dias: “[...] pois por elas se vai entrando na cidade de Faro,
onde a maior parte da gente é de nação, a qual já suspeita nascer tudo de sua
484
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 5-6. 485
Cf. Idem, fls. 8-9. 486
Cf. Idem, fls. 21-22. 487
Cf. Idem, fl. 10. 488
“E que, por ora, se não deve fazer caso do testemunho de Bernarda da Silva, porquanto ela só depõe de
um filho da Ré estar cortado e muito bem se poderia enganar ou o menino nascer daquele modo, como há
exemplos [...].” (Cf. Idem, fl. 26v). 489
Cf. Idem, fls. 33-35.
125
apresentação [...]”490
. Portanto, já se sabia em Faro quem ateara o rastilho. Poucos dias
depois destas palavras, Branca Dias falecia. Sobre as circunstâncias da sua morte,
nada sabemos. Porém, logo que começaram as prisões, surgiram as ameaças. A 14 de
Maio de 1633, António Pires Ingres, comissário do Santo Ofício, referindo-se a uma
carta que Branca Dias escrevera ao juiz de fora, dizia que:
“[...] não tratava nela outra alguma cousa mais que pedir ao dito juiz lhe acudisse e
valesse porque as escravas de Estevão Rodrigues e António Fernandes Castanho a
iam admoestar à sua porta, chamando-lhe nomes sujos e dizendo que as ditas
mulatas a ameaçavam que lhe haviam de tratar mal os seus meninos, da dita Branca
Dias, porquanto diziam os sobreditos Estevão Rodrigues e António Fernandes que
ela, Branca Dias, fizera prender a ré, Francisca Duarte, e a sua filha, Beatriz
Mendes, o que ela negava, dizendo que lá estavam na casa santa da verdade e que
lá saberiam quem lhes fez o mal [...]”491
.
Branca Dias deixou órfãos sete filhos, todos menores. A mais velha, Isabel Mendes,
que tinha então cerca de 10 anos, acabaria por ser presa em 1636492
. O marido, Afonso
Pinto Santos, abandonou a cidade, evitando assim a possível prisão. Porém, grande
parte da família de Branca Dias não teve a mesma sorte. A sua confissão desencadeou,
directa ou indirectamente, uma sucessão de processos entre os seus parentes. Já nos
cárceres, alguns questionaram as razões que teriam estado por detrás de tal confissão. A
defesa de Francisca Duarte alegou uma querela familiar em torno da herança deixada
pelo falecimento da irmã Isabel Mendes. No seu testamento, esta nomeara o marido de
Francisca, Estêvão Rodrigues, como seu herdeiro e testamenteiro. Tal causara o
desagrado dos outros irmãos. Tornaram-se frequentes as trocas de injúrias e ameaças.
Em carta dirigida à Inquisição de Évora, o próprio Estêvão Rodrigues e o seu genro
António Fernandes Castanho mencionaram esse episódio. Branca Dias chegara a
ameaçar a irmã e a sobrinha, Beatriz Mendes, de que “[...] as havia de meter na
Inquisição [...]”493
. E não se limitou às ameaças...
490
Cf. Idem, fl. 26. 491
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 174-174v. 492
Cf. ANTT, IE, proc. 2878. 493
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 143-146. Vide em anexo, pp. 405-409.
126
As primeiras prisões em Faro
Dos cristãos-novos de Faro delatados por Branca Dias, a irmã Francisca Duarte e
a sobrinha Beatriz Mendes foram as primeiras a chegar aos cárceres de Évora, ainda
no Verão de 1632. A confissão de Branca não era suficiente para proceder a mais
prisões. Inclusivamente, as detenções de Francisca Duarte e da filha esbarraram com
os limites colocados às prisões por testemunho singular. Mas tal não impediu o
desencadear dos processos.
Beatriz Mendes adiantou-se à mãe na confissão. Logo a 7 de Agosto, confessou que,
havia 4 anos, se apartara da fé cristã, ensinada por Isabel Lopes, cristã-nova de Faro,
entretanto falecida. A sua confissão não satisfez os inquisidores. Primeiro, em nada
coincidiu com as denúncias de Branca Dias. Depois, ela limitou-se a denunciar
indivíduos exteriores ao seu círculo familiar, muitos deles já falecidos e outros com
processos inquisitoriais no passado.
Só depois de sujeita a tormento é que Beatriz Mendes denunciou a mãe. As delações
cresceram exponencialmente nas sessões seguintes e foram poucos os familiares mais
próximos omitidos na sua confissão. Na mesma sessão em que admitiu ter comunicado a
sua fé na Lei de Moisés com os tios Branca Dias e Custódio Mendes, Beatriz também
denunciou a sogra, Mor Gonçalves; a avó paterna, Beatriz Mendes; e o próprio pai,
Estêvão Rodrigues. Note-se que, a 17 de Setembro de 1633, quando ocorreu a dita sessão,
todos eles já se encontravam nos cárceres de Évora. A avó fora presa logo em 1632, o pai
a 18 de Julho de 1633 e a sogra meses depois, a 4 de Outubro494
.
A mãe de Beatriz Mendes contribuiu ainda mais decisivamente para a entrada da
Inquisição em Faro. Aliás, se Branca Dias ateou o rastilho, Francisca Duarte foi a
responsável pelo acelerar da combustão. Tal como a filha, ela atribuiu o ensino a uma
mulher entretanto já falecida e com quem não tinha ligações familiares: Inês Vaz, viúva,
com mais de 60 anos quando a iniciara na fé judaica495
. Nas primeiras sessões, a única
parente denunciada foi a sogra, Beatriz Mendes. Porém, os inquisidores sabiam que
Francisca era quem melhor poderia corroborar o testemunho de Branca Dias e, assim,
desencadear mais prisões na cidade. Insistiram e sujeitaram-na a duas sessões de tormento.
Só então é que a sua confissão começou a entrar no círculo familiar mais próximo496
.
494
Cf. ANTT, IE, procs. 2324 e 3588. O processo de Estêvão Rodrigues encontra-se desaparecido. 495
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 40-40v. 496
Cf. Idem, fls. 91-94.
127
Ainda no decorrer de 1632, as consequências fizeram-se notar. A 8 de Dezembro,
entrou nos cárceres de Évora a sua sogra, Beatriz Mendes. Os inquisidores justificaram
assim a prisão por testemunho singular:
“[...] havendo respeito a Faro ser terra que se descobre de novo e em que há tanta
gente de nação, de que muitas vezes vêm denunciações [...] E como ela tem esta
nora [Francisca Duarte] e uma neta [Beatriz Mendes] presas, de crer é que cuide
que ambas têm dado nela e confesse, com o que se poderá abrir judaísmo no
Algarve, donde cada dia temos denunciações e se entende que anda mui viva a
crença na Lei de Moisés [...]”497
.
Esperava-se que a confissão de Beatriz Mendes abrisse novos caminhos para a
intervenção inquisitorial na região. Mas ela fora presa com cerca de 80 anos de idade.
Sem conseguir resistir às agruras do cárcere, faleceu na noite de 11 de Abril de 1633498
.
Tal como Beatriz Mendes, Custódio Mendes chegou a Évora com apenas uma
denúncia no cadastro, a da sua irmã Francisca Duarte. A 22 de Julho, o dia seguinte à
sua entrada nos cárceres de Évora, ele começou a confessar. Custódio fora iniciado na
fé judaica aos 13 anos de idade e, muito tempo depois, Manuel Mendes, o mercador
de Nantes também mencionado por Branca Dias, reforçou-lhe o ensino. Nesta
primeira sessão, Custódio Mendes alegou que regressara à fé de Cristo desde há dois
anos, “[...] movido dos milagres que vira fazer ao Santo Cristo de Moncarapacho, três
léguas de Faro, aonde fora em romaria, o qual, indo ele doente dos olhos, lhe deu
saúde, untando-se com o seu azeite [...]”499
.
Custódio tinha estudado Direito em Salamanca, de onde regressara em 1612 ou
1613. A partir de então, passou a comunicar regularmente a sua fé com os seus parentes
mais próximos. Vira a irmã Francisca fazer as cerimónias de sexta-feira e guardar os
sábados de trabalho. Perante um painel de Santa Maria Madalena que tinham em casa,
ela e a filha faziam figas e diziam: «Toma com estas, gorda»500
.
De facto, a irmã e a sobrinha foram as grandes visadas nas denúncias de Custódio
Mendes. Recordemos a questão da herança da irmã Isabel Mendes e todas as divisões
familiares daí advindas. Com o avançar das sessões, ele acabou por também denunciar a
esposa, Isabel Pinta. Por ocasião da prisão de Manuel Nunes de Moura, a sua mulher
ter-lhe-ia dito que, algum dia, também ela se veria nesses trabalhos. Esta prisão,
497
Cf. ANTT, IE, proc. 2324, fl. 6v-7. Transcrito em Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 39-40. 498
Cf. Idem, fl. 36. Os herdeiros foram chamados a apresentar a defesa mas nunca compareceram na mesa.
A 25 de Março de 1635, Beatriz Mendes era relaxada em estátua à justiça secular. 499
Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fl. 85. Sobre o culto ao Santo Cristo de Moncarapacho vide: J. Fernandes
Mascarenhas, Santo Cristo. Subsídios sobre o seu culto em Portugal, especialmente em Ponta Delgada e
Moncarapacho,[s.l.], [s.n.], 1971; Antero Nobre, O Santo Cristo de Moncarapacho. A sua lenda, a sua
tradição, a sua capela, a restauração do seu culto, Faro, Minerva Farense, [s.d.]. 500
Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 86-86v.
128
ocorrida em 1624, abalou a família de Custódio Mendes501
. O cunhado Afonso Pinto
Santos revelara-lhe igualmente a sua apreensão502
. Afinal, Manuel Nunes de Moura era
muito próximo da família – vizinho de Branca Dias, era marido de Beatriz Álvares, filha
de Heitor Dias de Castro e de Inês Pousadas e sobrinha de António de Tovar de
Miranda, todos eles presenças habituais na casa de Diogo Duarte e Isabel Guterres503
.
A 5 de Setembro de 1633, foi dada ordem de prisão à mulher de Custódio Mendes.
Embora tivesse chegado aos cárceres só com a denúncia do marido, Isabel Pinta acabou
delatada por quase meia centena de testemunhas. Tendo iniciado a sua confissão logo no
dia em que entrou no calabouço inquisitorial, a 16 de Setembro, Isabel revelou-se
inconstante, hesitando na identificação do tempo e do responsável pelo seu “apartamento”
da fé cristã504
. Mesmo assim, trouxe à mesa do Santo Ofício novos suspeitos.
Muitos elementos da família Pinto tentaram a fuga para Castela no início de
Setembro, um mês depois da prisão de Isabel Pinta. Eles tinham consciência de que
dificilmente sairiam incólumes. Além disso, retomar a vida em Castela seria uma tarefa
facilitada pelos laços que uniam a família ao reino vizinho – o patriarca, Pedro Gomes
Pinto, era um mercador castelhano que se estabelecera em Faro. Beatriz Pinta, Leonor
Duarte e Maria da Luz, irmãs de Isabel Pinta, o tio Sebastião Dias e os filhos Pedro
Gomes Pinto e Simoa dos Santos empreenderam uma tentativa de fuga rumo a Castela.
Mas esta saiu frustrada e foram presos pela Inquisição505
.
O Conselho Geral do Santo Ofício ordenara que se alguém estivesse indiciado, nem
que fosse por uma só denúncia, e se suspeitasse de que iria partir do reino, seriam dadas
instruções ao bispo para mandar efectuar a prisão506
. Assim, desde o momento em que
alguém era denunciado, passava a estar sob o olhar das autoridades. Foi o que aconteceu
com Maria Mendes, mulher de José Dias, sapateiro cristão-velho, delatada por Francisca
Duarte e Beatriz Mendes em Outubro de 1633. O bispo deu ordens ao meirinho Nuno
Vaz Guedes para vigiar a sua casa e ele assim o fez:
“[...] perto das dez horas da noite, se foi ele, declarante, muito manso e com toda a
dissimulação, pôr à porta de José Dias e, estando com a orelha na porta, ouviu falar
o dito José Dias na casa dianteira, porque não tem sobrado e são terreiras, com sua
501
Sobre Manuel Nunes de Moura, vide supra, pp. 103-104. 502
Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 96-96v. 503
Inês Pousadas era prima de Diogo Duarte, desconhecemos em que grau. (Cf. ANTT, IE, proc. 6726,
fl. 155v). 504
Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fls. 75v-76; 80-80v, 91. 505
Cf. ANTT, IE, procs. 2330, 5767, 7078, 2719 e 11030. 506
Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 15.
129
mulher, Maria Mendes, e com sua sobrinha, da dita Maria Mendes, dizendo a dita
Maria Mendes que se havia de ir para Sevilha [...]”507
.
Maria Mendes foi detida por suspeita de fuga e, no mês seguinte, estava de partida
para os cárceres de Évora. Então, muitos outros cristãos-novos de Faro eram presos
pelas mesmas razões.
Em fuga
“[...] Haverá três dias ou quatro que Manuel Soares Henriques, cristão novo e
primo de Manuel Henriques, mercador, lhe disse a ele, declarante, que via tantas
prisões na gente de nação que desejava de se ir ele e sua mulher, e que era ido
Gabriel Nunes, casado com uma filha sua, e que também se ele queria ir se não
receara prenderem-no por esse caminho [...]”508
.
As palavras são de João Martins Pinto, cristão-velho de Faro, e datam de 8 de
Outubro de 1633. A intenção de Manuel Soares Henriques, que seria preso ainda no
decorrer desse mês, era comum a tantos outros cristãos-novos de Faro num momento
em que a Inquisição começava a entrar em força na cidade. De facto, a partir de
Setembro, cresceu o número dos que saíram da cidade de Faro e rumaram à fronteira.
Isabel Gomes, tia de António Fernandes Castanho (genro de Francisca Duarte),
alegando ser mulher pobre e sem meios para se sustentar, pediu licença para seguir rumo
a Castela, onde contaria com o apoio de parentes ali estabelecidos. No mesmo dia, D.
Francisco de Meneses deu ordens para que quatro homens vigiassem a sua casa. Durante
a madrugada, os vigias assistiram a movimentos que indiciavam a fuga: o pagamento a
um almocreve do aluguer de duas bestas de carga e a saída de Isabel Gomes, ocultada por
um manto, confundindo-se com outras mulheres que, àquela hora, saíam de casa para
assistirem à primeira missa. Perseguida pelas ruas de Faro, ela acabou por ser presa já nos
limites da cidade, junto à ponte da estrada de Tavira509
. Depois de presa, Isabel Gomes
continuou a alegar que não estava a fugir – só queria ir para Sevilha em busca de uma
vida mais desafogada. Mas isso não a livrou da condenação máxima e, no auto-de-fé de
25 de Março de 1635, foi relaxada à justiça secular.
507
Cf. ANTT, IE, proc. 1786, fl. 9. 508
Cf. ANTT, IE, proc. 8602, in Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 51. 509
Cf. ANTT, IE, proc. 2219, fls. 9-17v. Este episódio encontra-se também referido em Borges Coelho,
Inquisição de Évora..., pp. 117-118.
130
A ponte da estrada de Tavira era a porta de saída de Faro para quem optava pela
viagem por via terrestre510
. Seguir o caminho por terra tornava-se mais fácil em termos
logísticos e permitia uma maior espontaneidade na partida. Por isso, não obstante os
perigos que assolavam os caminhos, muitos optavam por esta via para abandonarem a
cidade e o reino. De Faro seguiam para Tavira e dali rumo a Castro Marim, onde
passavam o Guadiana511
. Seria este o percurso que Inês Dias e a sobrinha Simoa Luís
tomariam, caso não fossem detidas pelo caminho. As duas haviam saído de Faro a 24 de
Janeiro de 1634. Simoa Luís ainda conseguiu chegar até Castro Marim, mas Inês Dias, a
Bicuda, foi presa em Tavira. D. Francisco de Meneses, logo que soube da ausência das
duas mulheres, deu ordens aos párocos de Moncarapacho e de Santa Catarina do Bispo
para as procurarem pelas suas freguesias. O padre Henrique Delgado, não as tendo
achado em Moncarapacho, seguiu para Tavira, onde contactou o juiz de fora. Foi este
quem deteve Inês Dias, escondida na casa de um parente512
.
Cerca de 9 léguas e meia separavam Faro de Castro Marim, seguindo pelo caminho
mais directo. Quando os fugitivos contavam com a ajuda de animais de carga, o que era
habitual, o percurso concretizava-se facilmente num único dia de viagem. Porém, havia
também quem optasse por passar a fronteira mais a Norte, por Alcoutim. Ali, a travessia
do Guadiana era mais curta, mas o percurso total alargava-se em mais algumas léguas.
Por outro lado, o caminho pelo interior da região era menos vigiado.
De modo a guardar-se o maior secretismo possível, as fugas eram empreendidas
durante a noite e em pequenos grupos, geralmente ligados por laços familiares. Bárbara
Fernandes, filha de Manuel Mendes do Óculo e esposa de Diogo de Tovar, tentou partir
rumo a Cádis com os filhos e um sobrinho513
. Inês Pousada, denunciada pela prima
Branca Dias, galgaria a fronteira na companhia dos netos, se as autoridades não os
tivessem encontrado escondidos nas covas dos valados de umas vinha, por detrás da
igreja de São Sebastião, já em plena fuga514
.
510
A estrada de Tavira aparece também mencionada na documentação como “estrada de Castela”. 511
Anos antes, em 1618, um cristão-novo de Tavira, Baltazar Dias, informava: “Quando alguma pessoa
vai fugitiva, ou se teme da justiça, de Tavira para Castela, comummente se embarca logo em a dita
cidade, ou faz caminho a Montegordo, ou ao menos vai a Junqueira, que é por cima de Castro Marim
meia légua, do qual caminho ele, réu, usava muitas vezes para Alcoutim, e nele há sempre embarcação,
ou para Mértola, ou para além do rio que é Castela” (Cf. ANTT, IE, proc. 5603, fls. 100-100v). 512
Cf. ANTT, IE, proc. 7334, fls. 7-10v. Vide, em anexo, pp. 419-421. 513
Cf. ANTT, IE, proc. 6721, fl. 10. 514
Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fls. 10-11. Vide, em anexo, pp. 415-416. Inês Pousadas foi presa nos
cárceres de Évora a 4 de Janeiro de 1634 e saiu reconciliada, com cárcere e hábito penitencial perpétuos,
no auto de, 25 de Março de 1635.
131
A tentativa de evasão de Inês Pousada tinha sido denunciada por um amigo do neto
Simão Rodrigues, o qual suspeitou do movimento que vira na sua casa um dia antes. De
facto, era difícil ocultar os preparativos para a viagem. Havia que assegurar o
pagamento dos encargos da jornada e o sustento no local de destino. A solução estava
na venda de bens e mercadorias, mas isso era uma operação que atraía atenções alheias.
Carlos de Ataíde, meirinho de Faro, conta que Fernão Gonçalves Duarte, o Cego,
mercador cristão-novo, dera-lhe algumas sentenças de dinheiro para ele as executar
perante os seus devedores e “[...] lhas tornou a pedir depois como que intentava ir-se e
não as deixar cá [...]”. Além do mais, vira-o vender a balança e os pesos com que pesava
o figo “[...] sem o que podia viver e tratar como dantes [...]” e sabia que as filhas haviam
vendido as suas peças de ouro e de prata515
.
A obtenção de um meio de transporte era uma outra providência essencial mas
igualmente arriscada. O almocreve Domingos do Vale denunciou alguns cristãos-novos
que lhe pediram bestas de carga alugadas, entre os quais a já referida Isabel Gomes516
,
mas também Catarina de Tovar, esposa de João Pessoa, que precisava de duas bestas
para seguir até Castro Marim, na companhia das filhas Maria e Isabel Pessoa. Tal
suscitou a desconfiança das autoridades e Catarina acabou por ser presa, não obstante o
facto de estar casada com um cristão-velho que servira de intérprete nas visitas
inquisitoriais às naus estrangeiras517
.
Os riscos na contratação de um transporte não se limitavam às fugas por terra, mas
também às empreendidas por via marítima. O frete da embarcação e a busca de um
barqueiro disposto a compactuar com a fuga eram tarefas árduas e nem sempre bem
sucedidas. Os riscos elevavam os custos da viagem e, mesmo assim, muitos barqueiros
recusavam fazê-la a qualquer preço518
. No passado, o barqueiro João Lopes tinha
conduzido Matias Dias de Gusmão, rendeiro de Faro, até Cádis. Em Outubro de 1633,
foi o filho deste, Matias Afonso, quem o contactou para que também levasse a mãe e os
irmãos. Mas, desta vez, João Lopes recusou a proposta, “[...] caindo no erro que fizera
ao levar o pai do dito [...]”519
.
515
Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fl. 7. 516
Cf. ANTT, IE, proc. 2219, fls. 11v-12v. 517
Cf. ANTT, IE, proc. 6092. 518
Francisco João, mareante de Sanlúcar de Barrameda, recusou levar para Castela, a bordo do seu barco,
as irmãs de Isabel Pinta (esposa de Custódio Mendes) e outros cristãos-novos que pretendiam fugir de
Faro. Primeiramente, ofereceram-lhe 10 mil réis pelo frete. Perante a recusa, subiram o valor para 12 mil
réis. 14 mil réis foi a última oferta, também declinada pelo mareante. (Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 12v-
14. Vide também Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 40-42). 519
Cf. ANTT, IE, proc. 467, fl. 16.
132
O receio de João Lopes é justificável. Afinal, o risco de prisão também recaía sobre o
passador. Em Dezembro de 1633, um grupo de mareantes espanhóis encontrava-se na
cadeia de Faro. Eram suspeitos de passarem cristãos-novos para Castela. O mestre da
embarcação, Sebastião Aleixos, natural de Aiamonte e residente em Redondela, negou a
colaboração com qualquer tipo de tentativa de fuga. Contudo, de Castela, chegavam
informações de que aquela não teria sido a primeira vez que ele servira de passador a
fugitivos. Sabia-se que o mareante havia já passado 5 ou 6 embarcações com cristãos-
novos de Faro para Castela. Ele próprio tratava do seu alojamento em Redondela e,
depois, regressava a Faro com as chaves das casas dos fugitivos para resgatar o dinheiro e
outros bens deixados escondidos. Seria essa, em princípio, a missão deixada pendente por
Sebastião Aleixos quando foi detido em Faro520
.
A prisão não era o único perigo para quem planeava partir por via marítima. O mar
continuava a ser um elemento imprevisível, mesmo para um povo que cresceu a colher
nele o seu pão. Com a costa assolada por ataques corsários, os perigos redobravam. Em
Dezembro de 1633, dizia-se na cidade que uma embarcação cheia de cristãos-novos
naufragara em alto mar e que todos haviam morrido afogados. Sobre eles, Simão
Rodrigues, neto de Inês Pousada, teria afirmado que “[...] bem aventurada morte fora a
sua de morrerem mártires antes de caírem na mão de seu inimigo, o bispo [...]”521
.
Nesse mesmo mês, uma outra tentativa de fuga acabou em morte. No dia 17, chegou
aos ouvidos de D. Francisco de Meneses que, às duas horas da madrugada, um grupo de
cristãos-novos iria fugir a bordo de um barco castelhano aportado junto ao moinho de São
Francisco. Uma milícia napolitana, então estante na cidade, foi enviada ao local522
. Quando
os soldados lá chegaram, depararam-se com um grupo de cerca de 20 pessoas. Alguns
foram detidos de imediato, mas outros conseguiram escapar. Jorge Pinto, Dinis Álvares e os
filhos Martim de Oliveira e Pedro Machado fugiram até ao Convento de São Francisco. À
520
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 371-385. Vide, em anexo, pp. 426-431. Esta informação, que provém dos
Cadernos do Promotor, não contém mais desenvolvimentos sobre o caso e, por isso, desconhecemos qual
teria sido a resolução final. 521
Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fls. 28v-29. Sabemos que tal não foi bem assim. Segundo Catarina Álvares,
encontravam-se nesse navio: Pedro Vaz Pinto e a mulher, Inês Mendes, e Isabel Rodrigues, esposa de
Manuel Soares. Acontece que, alguns anos depois, Pedro Vaz Pinto estava a viver em Cádis, onde acabou
por falecer por volta de 1644 (Cf. ANTT, IE, proc. 3997). Quanto a Isabel Rodrigues, também ela fez
vida em Cádis, onde ainda residia em 1647, quando lhe foi aberto um processo na Inquisição de Évora
(Cf. ANTT, IE, proc. 1290). 522
Dinis Álvares, nas contraditas no seu processo, referiu que, naquele tempo, encontravam-se em Faro
cerca de 200 soldados italianos. (Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 65).
133
porta, numa rixa, Dinis Álvares feriu mortalmente um soldado. Contando com a protecção
dos frades do convento, ele e os filhos só foram presos no dia seguinte523
.
Em muitos casos, a fuga não se sucedia imediatamente ao abandono do lar. Uns
optavam pela mudança de casa – para a casa de parentes ou até do barqueiro ou do
almocreve que propiciaria a fuga –, outros, porém, escolhiam deixar Faro por outra
localidade menos vigiada e mais próxima do destino. Depois de João Rodrigues, o Bom
Cristão, ter partido para Sevilha, a mulher e a filha seguiram para Loulé. Beatriz
Álvares e Catarina Mendes aguardavam pelo momento certo para partirem rumo a
Castela. Mas, na manhã de 18 de Janeiro de 1634, foram presas pelo familiar Lopo
Furtado de Mendonça que, entre os seus pertences, encontrou uma carta de Henrique da
Silva, filho de Beatriz, então a viver em Sevilha, na qual prometia enviar alguém para as
ajudar na viagem524
.
Tendencialmente, eram os elementos masculinos os primeiros a partir – fixavam os
negócios no local de destino e asseguravam o sustento do resto da família. Só depois
seguiam a esposa, os filhos e os demais parentes. Foi o que tentaram Catarina Lopes e os
filhos, conhecidos em Faro pela alcunha Sangue de Rei. Os genros António Pereira e
Domingos Pereira tinham-se estabelecido em Jerez de la Frontera. Quando começaram as
prisões em Faro, toda família tratou de preparar a saída da cidade, alegando que não tinham
como se sustentar. Mas o argumento não serviu e os Sangue de Rei acabaram presos525
.
Às prisões seguiam-se novas denúncias e às denúncias mais prisões. Em Faro,
conhecia-se este círculo vicioso e o resultado foi que, entre o último quartel de 1633 e
os primeiros meses de 1634, muitos abandonaram a cidade e o reino. As fontes narram,
sobretudo, as histórias dos que não foram bem sucedidos e acabaram a povoar as
cadeias locais e, mais tarde, os cárceres inquisitoriais.
A 15 de Junho de 1635, os inquisidores de Évora solicitaram à Inquisição de Sevilha
que procedesse à prisão de 12 cristãos-novos de Faro ausentes em territórios sob a sua
523
Cf. ANTT, IE, procs. 468, fls. 5-39v. Vide, em anexo, pp. 421-424. Vide também em Romero
Magalhães, E assim se abriu..., pp. 56-57, 63-66. Um dos fugitivos, Jorge Pinto, era síndico dos frades do
Convento de S. Francisco, o que explica a alegada protecção que os religiosos deram a Dinis Álvares e
aos filhos. Fernão Duarte de Castro e Sebastião Gonçalves eram, respectivamente, sogro e cunhado de
Dinis Álvares. Ele e os filhos entraram nos cárceres de Évora no início de Março de 1634. O primeiro a
sair foi Martim de Oliveira, sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuos no auto de 25 de Março
de 1635 (Cf. ANTT, IE, proc. 468). O pai só saiu no auto de 14 de Junho de 1637 (Cf. ANTT, IE, proc.
2969). Quanto ao outro filho de Dinis Álvares, Pedro Machado, com apenas dez anos no momento em
que entrou nos cárceres, manteve-se preso até mais tarde. No auto de 4 de Novembro de 1640, abjurou de
vehementi e foi reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. (Cf. ANTT, IE, proc. 10523). 524
Cf. ANTT, IE, proc. 2332, fls. 7-12. 525
Os filhos de Catarina Lopes eram: Isabel Nunes e Maria de Castro, esposas de António e Domingos
Pereira (também eles irmãos); Inês Nunes e Simão Nunes (Cf. ANTT, IE, procs. 9806, 9183, 3069 e 736).
134
jurisdição. Esta diligência não surtiu resultados práticos. Dos 12 citados, apenas 3 foram
processados e, mesmo assim, mais de 10 anos depois, sem nunca terem pisado o cárcere
inquisitorial, acabando relaxados em estátua à justiça secular526
. Junto a este documento,
encontram-se duas listas de “pessoas que se ausentaram da cidade de Faro, donde eram
moradoras, com temor de serem presas pelo Santo Ofício”. Na primeira, são citados os
ditos 12 cristãos-novos e, na segunda, 39. Mais de 60% dos cristãos-novos referidos
estabeleceram-se em Sevilha. Huelva, Sanlúcar, Moguer, Madrid e Málaga foram as
outras localidades de acolhimento, embora com menor expressão527
.
Uma amostra mais significativa dos cristãos-novos ausentes de Faro encontra-se em
duas listas anexas aos processos de Joana de Graçanha e de António de Medina. A 14 de
Julho de 1636, os dois receberam ordem de prisão junto com mais 119 suspeitos528
. Só
36% deles acabaram presos – mais de metade já não se encontrava em Faro. Entre os
ausentes, 92% tinham seguido para Castela. Também nesta amostra, Sevilha foi a
principal cidade de acolhimento529
.
Comum às duas amostras é o facto da grande maioria dos cristãos-novos que
partiram de Faro ter rumado a Castela e, em particular, se estabelecido em Sevilha. A
esperança numa vida mais desafogada da pressão inquisitorial, a confiança na alegada
política filosemita do Conde-Duque de Olivares e num ambiente propício ao
desenvolvimento dos negócios, onde os estatutos de limpeza de sangue eram mais
permeáveis, terão sido os principais motivos que pesaram na escolha do destino530
.
1635, 1636 e 1637 – os cristãos-novos de Faro em três autos-de-fé
A intensidade desta vaga de prisões reflectiu-se nos autos-de-fé celebrados em
Évora nos anos de 1635, 1636 e 1637. Dos 153 penitenciados que saíram no auto de 25
de Março de 1635, 54 eram cristãos-novos de Faro. No ano seguinte, a 27 de Julho de
526
Os três são Pedro Vaz Pinto (ANTT, IE, proc. 3997), Marcos Rodrigues (ANTT, IE, proc. 1460) e
Guiomar da Costa (ANTT, IE, proc. 3295). Vide BN, Reservados, cod. 869, fls. 78-78v. 527
Cf. BN, Reservados, cod. 869, fls. 79-84. 528
Cf. ANTT, IE, procs. 309 e 4571. 529
Vide, em anexo, gráfico 4, p. 98. Alguns elementos da lista contida no processo n.º 309 estão ilegíveis
devido à deterioração do documento. No gráfico, esses elementos integraram a categoria “Desconhecidos”. 530
Vide Pilar Huerga Criado, En la raya de Portugal. Solidariedad y tensiones en la comunidad
judeoconversa, Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, 1993; Fernando Serrano Mangas, La
Encrucijada Portuguesa. Esplendor y Quiebra de la Unión Ibérica en las Indias de Castilla (1600-1668),
Badajoz, Diputación de Badajoz Departamento de Publicaciones, 2001.
135
1636, esse número cresceu para 80, representando mais de 45% do total. No auto de 14
de Junho de 1637, 38% dos penitenciados provinham da cidade algarvia531
.
Muitos dos que haviam tentado, sem sucesso, a fuga para Castela nos últimos meses
de 1633 e em inícios do ano seguinte e acabaram presos nos calabouços de Évora
saíram no auto de 25 de Março de 1635. Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, foi
relaxado, tal como Gregório Mendes, preso no início de Outubro de 1633, suspeito de
planear a fuga na companhia das suas duas filhas, Isabel Pereira e Maria da Conceição.
No mesmo auto, mais quatro mulheres de Faro sofreram a pena máxima: Guiomar
Mendes, Isabel Gomes, Catarina Lopes e Beatriz Mendes. De Isabel Gomes, tia de
António Fernandes Castanho, e Catarina Lopes, a Sangue de Rei, já conhecemos a
história, presas na sequência das denúncias de Francisca Duarte e de alegadas tentativas
de fuga532
. Foi a mesma Francisca Duarte que esteve na origem da prisão e condenação
da sua sogra, Beatriz Mendes533
. Quanto a Guiomar Mendes, suspeita de tentar fugir no
barco que levaria Dinis Álvares e outros tantos cristãos-novos para Castela, fora
denunciada por Simão Nunes, filho de Catarina Lopes534
.
O auto de 25 de Março de 1635 reflectiu o quão devassadora foi a acção
inquisitorial sobre determinadas famílias. Constança Simões, viúva de um alfaiate de
Faro, e a filha Mécia Craveiro saíram ambas nesse auto, menos de um ano após a
entrada nos cárceres de Évora535
. Isabel Lopes, cunhada de Fernão Gonçalves Duarte,
também saiu no auto de 1635, acompanhada por quatro dos seus filhos. O único que
escapou foi Luís Eanes, então a viver no Peru536
.
Jorge Lopes, o Cutelo, foi igualmente reconciliado no auto de 1635, tal como o filho
Gaspar Dias e as sobrinhas Isabel Pinta e Isabel Duarte537
. A sua mulher, Leonor
Duarte, acusada de tentativa de fuga, fora presa em Setembro de 1633, mas apenas saiu
531
Cf. Oakley (ed.), Lists..., vol. II, pp. 36-51. 532
Cf. ANTT, IE, procs. 2219 e 10785. 533
Cf. ANTT, IE, proc. 590. 534
Cf. ANTT, IE, proc. 2197. 535
Cf. ANTT, IE, procs. 6091 e 2733. Constança Simões foi presa na sequência das denúncias de
Custódio Mendes. 536
Cf. ANTT, IE, proc. 9972. Isabel Lopes era viúva de Diogo Gonçalves Duarte, irmão de Fernão
Gonçalves. Tinha cerca de 70 anos de idade quando foi presa. Junto com ela, entraram nos cárceres os
filhos Catarina de Tovar, Fernão Gonçalves de Tovar, Maria de Tovar e Inês Lopes. Saíram todos no auto
de 25 de Março de 1635. (Cf. ANTT, IE, procs. 3598, 3367, 3166 e 1341). 537
Isabel Pinta era filha de Diogo Fernandes Serpa e de Domingas Gonçalves, irmã de Jorge Lopes.
Entrou nos cárceres de Évora a 31 de Outubro de 1633, com o primo Gaspar Dias, após ter sido
denunciada pelo tio Jorge Lopes (Cf. ANTT, IE, proc. 6465). Isabel Duarte era sobrinha de Jorge Lopes
por afinidade – filha da cunhada Constança Duarte. Fora denunciada por Inês Lopes e Catarina de Tovar,
filhas de Diogo Gonçalves Duarte (Cf. ANTT, IE, proc. 2218).
136
no auto de 27 de Julho de 1636538
. Caía sobre o casal a suspeita de terem circuncidado o
seu primogénito, Gaspar Dias. No início de Outubro, o bispo deu ordens para o rapaz
ser examinado e dois médicos de Faro concluíram que, de facto, ele tinha sido sujeito à
circuncisão. Em Évora, confirmou-se a suspeita539
.
A 27 de Julho de 1636, entre os réus que desfilaram pela praça de Évora, estava
Maria Fernandes, viúva de Francisco Leitão, tosador cristão-velho, denunciada por
Joana de Barros540
, mas também pelo próprio filho, Manuel Leitão da Cunha, tosador
em Moncarapacho541
. Só depois de notificada que estava declarada herege, Maria
Fernandes iniciou a sua confissão. Contudo, tal não a salvou da pena máxima542
.
Mais duas cristãs-novas de Faro foram relaxadas à justiça secular nesse auto. Uma
delas era Catarina Mendes, viúva de Duarte Álvares e mãe de Beatriz Álvares, a esposa
de João Rodrigues, o Bom Cristão, que, em Outubro de 1633, tentara a fuga para
Sevilha543
. A outra, Ascensa Rodrigues, fora presa nos cárceres de Évora a 29 de Março
de 1635, com o marido, Lourenço Fernandes, tabelião de notas, reconciliado no mesmo
auto com cárcere e hábito penitencial perpétuos544
. Poucos dias após ter sido relaxada, o
seu filho João Mendes entrava nos calabouços545
.
Foi por pouco que Manuel Henriques não teve a mesma sorte de Catarina Mendes e
Ascensa Rodrigues. Ele era um importante mercador de Faro. Afirmava mesmo ser o
homem mais rico da cidade. Mesmo assim, foi acusado de planear a fuga para Castela.
Nos cárceres, resistiu até ao limite. Alegava, em sua defesa, que as denúncias que o
conduziram à prisão tinham sido motivadas por vinganças pessoais, por ódios alheios
que alimentara enquanto servira de lançador da finta e recebedor das armações de atum.
Até o próprio bispo é citado no rol das contraditas. A defesa não foi suficiente e Manuel
538
Cf. ANTT, IE, proc. 11032. Após a prisão do marido (Afonso Pinto Duarte), Constança Duarte começou
a preparar a fuga com a irmã Leonor Duarte. Dias antes, já haviam partido de Faro alguns parentes: Diogo
Fernandes Serpa, a mulher Domingas Gonçalves (irmã de Jorge Lopes, o Cutelo) e a irmã Grácia Mendes,
casada com Vicente Rodrigues, ourives de Faro. Constança e Leonor Duarte acabaram por ser presas antes
de se fazerem ao caminho. Vide Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 44-47. 539
Cf. ANTT, IE, proc. 5677. 540
Joana de Barros era filha de Cristóvão Rodrigues e de Beatriz de Barros (Cf. ANTT, IE, proc. 1730). 541
Cf. ANTT, IE, proc. 462. Manuel Leitão da Cunha foi preso nos cárceres de Évora a 21 de Setembro de
1634. Saiu no auto de 25 de Março de 1635, com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 542
Cf. ANTT, IE, proc. 4386. 543
Cf. ANTT, IE, proc. 2332. O processo de Catarina Mendes encontra-se desaparecido. 544
Cf. ANTT, IE, procs. 9792 e 9942. 545
Cf. ANTT, IE, proc. 2743. João Fernandes era casado com uma cristã-velha, Isabel Nunes da Costa.
Foi reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos no auto de 14 de Junho de 1637.
137
Henriques acabou por confessar, após a notificação de que estava em sério perigo de vir
a ser relaxado. Saiu reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos546
.
Um outro mercador de largos cabedais e também residente em Faro saiu no mesmo
auto e com a mesma pena. Era Francisco Mendes de Góis, preso nos cárceres de Évora
havia menos de um ano e denunciado por dois decanos da cidade: o ourives Sebastião
Dias (tio de Branca Dias e de Francisca Duarte) e o médico Gaspar Dias, o Mestre da
Mula. A confissão de Francisco Mendes de Góis primou pela abundância de denúncias.
Chegou a delatar, inclusivamente, os sobrinhos Maria de Águila e Francisco Mendes, os
quais se apresentaram perante a Inquisição de Évora já no final de 1637547
. A mãe
destes, Joana de Graçanha, entrara no cárcere inquisitorial alguns dias depois da
reconciliação de Francisco Mendes de Góis548
. Mas o processo do mercador não se
ficou por aqui. Poucos meses depois, ele estava de regresso aos cárceres. Alegando que
se encontrava doente e precisava de ir à sua terra para se curar, Francisco Mendes foi
autorizado a regressar a Faro. Já no Algarve, o seu comportamento escandalizou as
autoridades. Segundo António Pires Ingres, vigário-geral, Francisco Mendes criticava
publicamente os inquisidores e os procedimentos da Inquisição, sobretudo a forma
como os presos eram pressionados a confessar. De regresso aos cárceres, ele negou
essas acusações. Tudo não passava de uma conjura “[...] porque na cidade de Faro se
divulgou que ele, réu, culpara e fizera prender a todas as pessoas da nação e que ele,
réu, fora causa e ocasião de ser destruída toda a cidade de Faro e, por este respeito, se
conjuraram contra ele, réu, todas as pessoas de nação e pessoas nobres da cidade de
Faro, por estarem misturados com os da nação [...]”549
. Além do mais, a sua doença
impossibilitava-o de sair de casa e a sua cura era tão “[...] asquerosa e ordinariamente a
gente foge do cheiro dela por ser de açougue [...]” que nunca recebia visitas550
.
Novamente reconciliado no auto de 14 de Junho de 1637, na mesma altura da meia-irmã
Joana de Graçanha, foi-lhe sentenciado, além do cárcere perpétuo sem remissão, um
degredo de 3 anos em África551
.
546
Cf. ANTT, IE, proc. 8603. 547
Cf. ANTT, IE, procs. 682 e 6921. No momento em que começaram as prisões em Faro, Francisco
Mendes saiu da cidade rumo à Madeira. Dali passou para Lisboa e, depois, esteve em Sevilha e Aiamonte.
Apresentou-se perante a Inquisição de Évora a 29 de Dezembro de 1637, tal como a irmã Maria de Águila, e
os dois foram reconciliados com cárcere ao arbítrio dos inquisidores no auto de 2 de Maio de 1638. 548
Cf. ANTT, IE, proc. 4571. 549
Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fl. 132. 550
Cf. Idem, fl. 119. 551
O degredo acabaria por lhe ser perdoado. Francisco Mendes alegou que estava muito doente para o
cumprir e, além disso, tinha de amparar os filhos e os sobrinhos, desprotegidos após a sua prisão e a de
138
Joana de Graçanha e Francisco Mendes de Góis tiveram a companhia de muitos
outros cristãos-novos de Faro nesse auto. Em 1637, as prisões na cidade começavam a
abrandar. Porém, no ano anterior, a mão do Santo Ofício ainda se fizera sentir com
veemência. Recordemos que, a 14 de Julho de 1636, foi dada ordem de prisão a 121
cristãos-novos de Faro, muitos dos quais já ausentes do reino. Quanto aos que foram
presos, parte deles saíram no auto de 14 de Junho de 1637 – o tempo dos processos
encurtava-se num momento em que a entrada começava a chegar ao seu fim e os
inquisidores já não aguardavam por muitas mais novidades nas delações dos confitentes.
Também os presos desistiam de resistir à pressão dos inquisidores e começavam a
confessar logo nas primeiras sessões. Com a grande quantidade de prisões efectuadas em
Faro, as denúncias focavam-se em quem já se encontrava no cárcere inquisitorial.
Em Julho de 1636, o Santo Ofício actuou sobre algumas famílias ainda incólumes às
prisões. Foi o caso dos Fernandes, uma casa de surradores, que viu dois dos patriarcas
serem então presos: Tomás Fernandes e Luís Fernandes. Alguns meses depois, era
encarcerado um outro irmão, Gabriel Gomes, residente em Tavira552
. Nos anos
seguintes, a família continuou a estar sob a mira do Santo Ofício553
.
Também Pedro Fernandes e a irmã Maria Gomes foram vítimas desta vaga. Eram filhos
de Francisco Rodrigues, que embora apareça mencionado em vários processos, acabou por
falecer antes que lhe fosse movido qualquer processo. Pedro Fernandes, sapateiro como o
pai, confessou que ouviu falar na Lei de Moisés, pela primeira vez, na casa do patrão, Nuno
Vaz. A irmã Maria Gomes encontrava-se casada com um outro sapateiro de Faro, João
Fernandes, o Sovelinha. Os dois irmãos saíram reconciliados no auto de 14 de Junho de
1637, tal como Belchior Vaz Mostarda e Ascensa Simões, moradores na freguesia de Santa
Bárbara de Nexe e também presos em Julho de 1636. Pesavam sobre Belchior Vaz 5
denúncias e sobre Ascensa Simões 8554
. Verificamos o mesmo número elevado de culpas
noutros cristãos-novos detidos na mesma altura. A actuação inquisitorial evoluíra em Faro.
Com o avolumar das prisões, as delações multiplicaram-se exponencialmente, facultando a
Joana de Graçanha. A 10 de Dezembro de 1638, foi-lhe tirado o hábito e levantado o cárcere. (Cf. ANTT,
IE, proc. 3029, fls. 157-162). 552
Cf. ANTT, IE, procs. 5495 e 3559. O processo de Tomás Fernandes encontra-se desaparecido. 553
A 17 de Junho de 1637, chegava aos cárceres de Évora um filho de Gabriel Gomes, João Fernandes
(Cf. ANTT, IE, proc. 8176). Ao longo de 1638, foram presos os filhos de Luís Fernandes: Isabel Gomes,
João Fernandes e Gaspar Fernandes (Cf. ANTT, IE, procs. 7938 e 2187. Desconhece-se o paradeiro do
processo de Gaspar Fernandes). Uma outra filha, Inês Lourenço, entrou no cárcere inquisitorial no ano
seguinte, a 29 de Abril de 1639 (Cf. ANTT, IE, proc. 1657). Isabel Gomes, filha de Tomás Fernandes,
apresentou-se na mesa da Inquisição de Évora a 3 de Novembro de 1640, tendo sido reconciliada 4 dias
depois, com cárcere ao arbítrio dos inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 9909). 554
Cf. ANTT, IE, procs. 328 e 6926.
139
intervenção do Santo Ofício mesmo entre aqueles que pareciam mais livres de suspeita,
dada a sua proximidade à maioria cristã-velha e/ou a sua integração, ou dos seus parentes
mais próximos, nas hierarquias municipais e eclesiásticas.
Nesta recta final das prisões em Faro, alguns dos que se tinham ausentado anos antes
para Castela optaram por regressar a Portugal e apresentar-se voluntariamente, na
esperança de virem a beneficiar de uma sentença mais benevolente. Foram os casos de
Diogo Fernandes Serpa e da mulher Domingas Gonçalves, que se apresentaram na
Inquisição de Évora a 30 de Abril e a 12 de Maio de 1637, respectivamente. Os dois
tinham partido de Faro em Setembro de 1633. Em Castela, estiveram em Aiamonte,
Sanlúcar de Barrameda e Moguer. Viviam em Sevilha quando resolveram regressar a
Portugal. Diogo Fernandes Serpa foi reconciliado logo no auto-de-fé de 14 de Junho de
1637, com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Dez dias depois, era posto em
liberdade555
. Porém, Domingas Gonçalves teve de penar nos calabouços durante mais um
ano. No decorrer do processo, foi acusada de testemunhar falsamente contra uma cristã-
velha, Iria Martins. O consenso sobre a pena a aplicar a Domingas Gonçalves revelou-se
difícil. O processo foi visto por três vezes no Conselho Geral. No final, ela recebeu uma
pena bem mais dura do que a do marido. Ao cárcere e hábito penitencial perpétuos,
acresceu um degredo para Angola por 5 anos. Alegando que era uma mulher velha e
doente e que as suas 5 filhas, ainda muito novas, ficariam desamparadas caso fosse
mandada para Angola, Domingas suplicou o perdão do degredo. A única cedência foi a
comutação para Castro Marim556
.
Cristãos-novos ou cristãos-velhos?
Em Julho de 1636, foram detidos António de Medina e os seus dois filhos: Rodrigo de
Medina, alcaide em Faro, e António de Medina, mercador. A qualidade do seu sangue
gerou controvérsia557
. O patriarca era sapateiro e natural de Loulé, onde vivera até aos 12
anos de idade. Em Faro, casou-se com uma cristã-velha, Inês Gaga, de quem teve 8 filhos.
A ordem de prisão foi dada com base em dois testemunhos (João Fernandes Guterres,
sapateiro, e Manuel Henriques, mercador, ambos de Faro) mas, ao longo do processo,
acresceram mais 7 denúncias contra António de Medina. Feitas as diligências em Faro e
555
Cf. ANTT, IE, proc. 3097. 556
Cf. ANTT, IE, proc. 6385. 557
Cf. ANTT, IE, proc. 10172, 309 e 109.
140
em Mazagão, de onde era natural o seu pai, os inquisidores concluíram que ele era cristão-
velho dos quatro costados. Porém, a sua situação agravara-se com a confissão do filho
António, o qual afirmou ser cristão-novo por parte do pai e judaizante. Assim, o seu
processo prolongou-se por mais de 8 anos. A sentença só foi publicada a 26 de Agosto de
1644, absolvendo-o de qualquer culpa. Finalmente, António de Medina conseguira provar
que era “[...] cristão-velho, limpo e sem raça alguma de cristão-novo e a prova da justiça
não ser bastante para condenação [...]”, segundo ditou o acórdão final. Teria sido
determinante uma diligência feita em Faro, em Outubro de 1640, sobre a validade das
denúncias contra António de Medina e os filhos. Uma das testemunhas, o Lic. Manuel
Bernardes, citou o caso de Manuel Henriques que, após reconciliado pela Inquisição, foi
para Castela e ali ficou “[...] com medo de que o prendam por culpar falsamente os ditos
Medina [...]”. A acumulação de tantas denúncias teria resultado de um equívoco. O
mesmo Manuel Bernardes também contou que ouvira o mercador Pedro de Seixas dizer
que só “dera” nos Medina depois de saber que estavam presos e confessos558
.
Justificando o pouco crédito concedido às testemunhas acusatórias de António de
Medina, os inquisidores referiram que “[...] a gente de nação do Algarve costuma, em
vingança, dizer de alguns cristãos-velhos [...]”559
. Este era um argumento
constantemente repetido na defesa dos processados. Beatriz Virela, de Loulé, presa em
Maio de 1638, alegava o seguinte:
“Provaria que a gente de nação da dita vila de Loulé é toda notável inimiga dela ré,
Brites Virela, e seu marido, António da Cunha de Sousa, em razão do ânimo que
mostrava nas prisões que fazia na dita gente, espreitando-os de noite que não
fugissem e fazendo outros excessos que, sem dúvida, toda a dita gente de nação
juraria contra ela, ré, somente por se vingarem do dito seu marido e dela, ré, em razão
das ditas prisões e assim a seus ditos se não deve dar fé alguma contra ela, ré [...]”560
Quatro cristãs-novas haviam acusado Beatriz Virela, afirmando que ela tinha parte
de cristã-nova e professava a Lei de Moisés. Duas delas, Inês de Sousa e Leonor
Camacha, foram igualmente as responsáveis pela prisão de uma outra mulher de Loulé,
Antónia Mascarenhas, que, tal como Beatriz Virela, também afirmava ser cristã-velha.
Antónia tinha mais de 60 anos quando foi presa, no início de 1638. Durante todo o
tempo em que esteve detida em Évora, nunca admitiu ter qualquer parte de sangue
hebraico, mesmo quando começou a confessar que mantivera práticas judaizantes,
aliciada por alguns cristãos-novos de Loulé. Nas sessões seguintes, revogou: nunca fora
558
Cf. ANTT, IE, proc. 309, fls. 197-198. 559
Cf. Idem, fl. 141. 560
Cf. ANTT, IE, proc. 3681, fls. 84-84v. O marido de Beatriz Virela era capitão de infantaria em Loulé e
um dos oficiais destacados para prenderem os suspeitos de judaísmo.
141
judia, nem tivera crença na Lei de Moisés, e apenas denunciara as ditas pessoas
persuadida por uma companheira de cárcere, Isabel Fernandes, a qual, embora natural
de Arraiolos, “[...] tudo sabia por haver sido companheira de uma Maria de Sousa, de
Loulé, e falar da porta do seu cárcere com algumas pessoas da mesma vila [...]”561
.
Beatriz Virela foi reconciliada na mesa a 11 de Abril de 1639, enquanto que Antónia
de Mascarenhas só saiu um ano depois, a 6 de Novembro de 1640. A Inquisição
concluiu que eram ambas cristãs-velhas.
A entrada em Loulé
As duas mulheres que conduziram às prisões de Beatriz Virela e de Antónia
Mascarenhas foram presas em 1637, num momento em que, depois de Faro, o Santo
Ofício começava a actuar com maior veemência em Loulé562
. Contudo, as prisões na
vila do barrocal algarvio tinham começado anos antes e acompanharam, embora a um
ritmo bem mais lento, a vaga registada em Faro. Aliás, as duas localidades mantinham
fortes laços económicos e sociais e muitas famílias de Faro tinham parentes na vila. Era
o caso da família de Branca Dias e Francisca Duarte.
A 21 de Outubro de 1633, Francisca Duarte confessou que, havia cerca de cinco
anos, encontrara-se na ermida de São Marcos com a prima Joana Jorge. Na ermida de
Santa Bárbara, dois anos depois, estivera com outras duas primas, Branca Dias e
Francisca Jorge. Além disso, seis meses antes de ser presa, fora visitada pelos primos
Manuel Estevens e Pedro Gomes. Em todas estas ocasiões, comunicou a sua fé na Lei
de Moisés com eles563
.
Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 1633, os primos de Francisca
Duarte entraram nos cárceres de Évora, exceptuando Joana Jorge564
. Esta adiantara-se.
561
Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fls. 20-21. Maria de Sousa era meia cristã-nova, viúva de Diogo Ribeiro de
Ataíde. Entrara nos cárceres de Évora a 13 de Junho de 1637, alguns meses antes da irmã Inês de Sousa e
das filhas Maria de Ataíde e Isabel de Mascarenhas. Foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial
perpétuos no auto celebrado a 2 de Maio de 1638 (Cf. ANTT, IE, proc. 953) 562
Cf. ANTT, IE, procs. 4412 e 8173. Leonor Camacho entrou nos cárceres de Évora a 20 de Outubro e
Inês de Sousa a 7 de Dezembro. Saíram ambas no auto de 2 de Maio de 1638, sendo-lhes sentenciado
cárcere e hábito penitencial perpétuos. 563
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 131-132. Branca Dias e Francisca Jorge eram filhas de Jorge Mendes,
irmão de Isabel Guterres, mãe de Francisca Duarte. A mãe de Pedro Gomes e Manuel Estevens, Grácia
Duarte, era irmã de Mestre Duarte, pai de Francisca. 564
Cf. ANTT, IE, procs. 6727, 463 e 4819. O processo de Francisca Jorge encontra-se desaparecido.
Branca Dias, Francisca Jorge, Manuel Estevens e Pedro Gomes também foram denunciados pela filha de
Francisca Duarte, Beatriz Mendes (Cf. ANTT, IE, proc. 590, fls. 111-111v, 118v).
142
Apresentou-se voluntariamente perante D. Francisco de Meneses, a 28 de Outubro desse
ano, para confessar que se apartara da fé cristã havia então 18 anos, induzida pela mãe.
O Conselho Geral aconselhou o bispo a proceder com Joana Jorge “[...] na mesma
forma que passou Branca Dias [...]”565
. A 11 de Dezembro, ela foi novamente chamada
perante o bispo e, no mês seguinte, procedeu-se à sessão de genealogia. Mas, ao
contrário do que acontecera com a prima Branca Dias, Joana Jorge acabou por ser presa,
considerada diminuta na sua confissão. A 13 de Março de 1635, entrou nos cárceres de
Évora. Só esteve presa alguns dias e saiu no auto-de-fé celebrado a 25 desse mês,
reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Mesmo
depois do auto, continuou a delatar outros cristãos-novos de Loulé, o que lhe valeu o
perdão do hábito e do cárcere logo a 22 de Abril de 1635566
.
Tal como Joana Jorge, os quatro primos de Francisca Duarte saíram no auto-de-fé de
25 de Março de 1635. Pedro Gomes usufruiu de uma sentença mais leve – cárcere e
hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores – enquanto que o irmão Manuel Estevens,
Branca Dias e Francisca Jorge foram reconciliados com cárcere e hábito penitencial
perpétuos. Branca Dias, que revogara algumas das denúncias feitas, também recebeu
pena de degredo, por 3 anos, em Bragança.
Entre 1633 e 1635, as prisões em Loulé nunca ultrapassaram a dezena. Todos os
esforços concentravam-se em Faro mas, a partir de 1635, o número de detenções na vila
cresceu. Muitas tiveram origem nas confissões dos cristãos-novos presos em Loulé durante
esses primeiros anos. Álvaro Fernandes Castanho, siseiro, com mais de 60 anos de idade,
foi detido em Setembro de 1635, denunciado por 9 testemunhas, entre as quais os primos de
Francisca Duarte. Acabaria por falecer no cárcere567
. Maria Custódia, natural de Vila Nova
de Portimão e casada com um mercador cristão-velho, Bartolomeu Afonso, entrou nos
cárceres de Évora a 6 de Outubro de 1636, delatada por Manuel Estevens568
.
Também foi Manuel Estevens o primeiro a denunciar Maria Pinta, mulher de Diogo
Lopes Gago, avaliador do concelho. Embora tenha chegado a Évora a 29 de Julho de
1636, Maria Pinta só começou a confessar quase dois anos depois. Já mulher casada,
fora ensinada no seio da família de Manuel Estevens. A sua confissão revelou-se
565
Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 34. 566
Cf. ANTT, IE, proc. 824. 567
Álvaro Fernandes Castanho foi denunciado por Branca Dias, Pedro Gomes, Manuel Estevens e Joana
Jorge, além de Catarina de Tovar e Mor Gomes (primas, pelo lado paterno, de Pedro Gomes e Manuel
Estevens), Afonso Pinto Duarte, Branca Leitoa e Duarte Mendes, todos de Faro. Faleceu no cárcere a 15
de Junho de 1636, poucos dias após de ter sido sujeito a tormento. Foi absolvido no auto de 27 de Julho.
(Cf. ANTT, IE, proc. 10531). 568
Cf. ANTT, IE, proc. 5281.
143
profícua em denúncias, embora tenha omitido qualquer acusação contra os parentes
mais próximos até ao último momento. Os inquisidores não criam que Maria tivesse
escondido a sua verdadeira fé dos próprios filhos e continuaram a ameaçá-la com a
condenação à pena máxima569
. Afinal, no momento em que começou a confessar, as
suas filhas mais velhas, Filipa e Maria Lopes, já estavam nos cárceres570
. Nos primeiros
meses de 1638, foram presas outras duas filhas, Branca Lopes e Isabel Rodrigues571
. A
30 de Abril desse ano, Maria Pinta cedeu à pressão dos inquisidores e delatou, além das
ditas filhas, os filhos Rui Lopes, Bartolomeu e Francisco, os três bem longe da acção do
Santo Ofício, algures nas Índias572
. A filha mais nova, Beatriz Lopes, que escapara à
denúncia materna, seria presa anos depois, em 1641573
.
Tal como acontecera em Faro, também em Loulé alguns núcleos familiares foram
quase integralmente atingidos pela repressão inquisitorial. Veja-se o caso do médico João
Leitão. Entre 1636 e 1640, ele, a esposa e seis dos seus filhos passaram pelos cárceres de
Évora. João Leitão e a mulher, Guiomar Ilhoa, foram presos em Agosto de 1636. Entre os
seus denunciantes, encontravam-se um irmão de Manuel Estevens, Duarte Mendes, e o
marido de Francisca Jorge, Francisco Gomes Mazagão. Quatro dias após ter chegado a
Évora, João Leitão começou a confessar. A prontidão com que o fez valeu-lhe menos de
um ano nos cárceres – saiu reconciliado no auto de 14 de Junho de 1637 e, a 26 do mesmo
mês, era-lhe levantada a pena574
. Igual resolução teve o processo da esposa. Contudo, a 2
de Fevereiro de 1628, Guiomar Ilhoa regressou aos cárceres. A sua confissão foi
considerada diminuta, dada a acumulação de novas denúncias. Ela voltou a não apresentar
defesa, sendo sempre prolixa nas denúncias. Sentenciada a cárcere e hábito penitencial
perpétuos, saiu logo no auto de 2 de Maio do mesmo ano575
. Guiomar Ilhoa não voltou
aos calabouços de Évora, mas, até o final da década de 40, continuaram a chegar
acusações contra si. Gregório Palermo de Sousa, cristão-velho de Loulé, acusou-a de
instigar denúncias falsas contra a sua família576
. O mesmo alegou a defesa de Jorge de
569
Cf. ANTT, IE, proc. 3939. 570
Cf. ANTT, IE, proc. 6826 e 8561. Maria Lopes chegou aos calabouços da Inquisição de Évora ainda
antes da mãe, a 6 de Julho de 1636, e saiu reconciliada no auto de 14 de Junho do ano seguinte. Alguns
meses depois, a 20 de Outubro de 1637, Filipa Lopes entrava no cárcere inquisitorial. Saiu no mesmo
auto que a mãe, a 2 de Maio de 1638. 571
Isabel Rodrigues entrou nos cárceres a 2 de Fevereiro de 1638 e Branca Lopes a 30 de Abril (Cf. ANTT,
IE, procs. 10624 e 10685). 572
Cf. ANTT, IE, proc. 3939, fls. 207-209. 573
Cf. ANTT, IE, proc. 10584. 574
Cf. ANTT, IE, proc. 2758. 575
Cf. ANTT, IE, proc. 2815. 576
Cf. ANTT, IE, proc. 5754.
144
Oliveira, preso pela Inquisição de Évora em 1648. Uma memória apresentada pelos seus
irmãos defendia que a sua prisão fora “obra de seus inimigos”, entre eles, Guiomar de
Ilhoa. Doze ou quinze anos antes, ela tentara casar a filha Lourença Ilhoa com Jorge de
Oliveira, não o conseguindo por oposição do pai deste. Continua a memória:
“E é tanto assim que, sendo a dita Guiomar Ilhoa segunda vez presa nos cárceres do
Santo Ofício e sendo trazida da vila de Loulé à cidade de Faro, em casa do familiar
Rodrigo Lopes, aí estando presa, perguntou muitas vezes, e apertadamente, pelo
dito Jorge de Oliveira, dizendo que ele tinha um jubão e outras peles que lhe não
queria dar, mas que ele lho pagaria tarde ou cedo, e do modo com que ela o disse e
repetiu, entenderam as pessoas que se acharam presentes que ela o fazia com
paixão e ameaçando ao dito Jorge de Oliveira [...].”577
Note-se, porém, que Guiomar Ilhoa nunca chegou a denunciar Jorge de Oliveira
nem nenhum parente de Gregório de Sousa Palermo. Não obstante, as prisões entre a
família de João Leitão atraíram a atenção do Santo Ofício relativamente a outros
cristãos-novos de Loulé.
Guiomar Ilhoa e as filhas Lourença e Leonor Camacho denunciaram quatro filhos
do Dr. Pedro Fernandes de Oliveira, advogado. Entre Abril e Maio de 1638, Álvaro,
Martim, Manuel e Nicolau Pinto foram presos. A sua parte de cristãos-novos era ínfima,
só 1/8 do lado paterno. Alguns elementos da família integravam até a hierarquia
religiosa. Por outro lado, Manuel e Nicolau Pinto eram lavradores e, tal como o irmão
Álvaro, estavam casados com mulheres cristãs-velhas578
. Apesar disso, Martim Pinto
nunca tentou alegar a limpeza de sangue e, poucos dias depois da prisão, começou a
confessar que fora iniciado na fé judaica no seio da família do Dr. João Leitão. O seu
processo decorreu com rapidez. Menos de 5 meses após ter entrado nos cárceres, foi
reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos, no auto de 5 de Setembro de
1638579
. Os irmãos Manuel e Nicolau Pinto só saíram no auto seguinte. Álvaro Pinto,
porém, faleceu no cárcere, a 26 de Maio de 1638, e o seu processo só chegou a um
termo em 1654, quando foi relaxado em estátua no auto de 22 de Novembro580
.
577
Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fls. 123-123v. 578
Cf. ANTT, IE, procs. 3477, 9829 e 8920. O processo de Nicolau Pinto encontra-se desaparecido.
Francisco e Manuel Fernandes, irmãos de Pedro Fernandes de Oliveira, eram sacerdotes em Loulé. Um
meio-irmão destes, Belchior Flores, era cónego em Faro. Porém, uma irmã de Pedro Fernandes de
Oliveira, Briolanja Fernandes, acabaria por também ser presa pela Inquisição de Évora em 1639, com
culpas de Judaísmo, na mesma altura que o sobrinho Manuel Guerreiro, filho da irmã Inês Fernandes (Cf.
ANTT, IE, proc. 9715. O processo de Manuel Guerreiro encontra-se desaparecido). Alguns anos mais
tarde, em 1642 e 1644, foram presas duas filhas de Briolanja, Luísa da Ponte e Maria Viegas (Cf. ANTT,
IE, proc. 10007. O processo de Maria Viegas também está desaparecido). 579
Cf. ANTT, IE, proc. 9829. 580
Cf. ANTT, IE, proc. 3477. Sobre a causa da morte, os companheiros de cárcere de Álvaro Pinto
contaram ao alcaide “que lhe tinha dado um acidente enquanto comia”.
145
O Dr. João Leitão também denunciou Manuel Camacho. Filho de Manuel Gonçalves
e primo direito de Bartolomeu Gonçalves Navarro (preso em Julho de 1636581
), Manuel
Camacho vivia de sua fazenda e era casado com Joana Jorge, a prima de Francisca
Duarte. A 19 de Maio de 1637, 10 dias após ter entrado nos cárceres, confessou que fora
ensinado pelos avós paternos e denunciou a tia paterna Isabel Rodrigues, já anteriormente
delatada pelo Dr. João Leitão582
. A 13 de Junho, Isabel Rodrigues dava entrada nos
cárceres de Évora. Ao contrário do sobrinho, só admitiu as culpas de Judaísmo quase dois
anos após ter sido presa e depois de apresentar vários artigos de contraditas. Passados três
dias, no auto-de-fé de 10 de Abril de 1639, foi-lhe sentenciado cárcere e hábito
penitencial perpétuos583
. Manuel Camacho havia saído no auto anterior, tal como o irmão
Lázaro Camacho584
e o primo Rui Gonçalves585
.
Entre 1636 e 1639, 56 cristãos-novos foram presos em Loulé. Durante os anos 40, as
prisões reduziram-se gradualmente. 1644 foi o último ano em que um número
considerável de cristãos-novos louletanos entraram nos cárceres de Évora – 9 ao todo. A
partir de então, as prisões praticamente cessaram e a tranquilidade regressou aos lares da
gente de nação de Loulé.
E tudo termina em Albufeira
No século XVII, Albufeira era uma vila profundamente ligada à actividade agrícola.
Por isso, tal como acontecera em Loulé, a acção do Santo Ofício atingiu,
principalmente, famílias de lavradores e proprietários, nas quais havia gerações que o
sangue cristão-novo se misturava com o cristão-velho.
António da Guerra, escrivão de almotaçaria, afirmava ter o “sangue limpo”, filho de
Manuel da Guerra, mestre de esgrima, e de Antónia Varela, natural das Astúrias. As
diligências em Albufeira e em Lagos, onde vivia o irmão Manuel da Guerra, também preso
pela Inquisição, provaram o contrário586
. Com o avançar do processo, António da Guerra
581
Cf. ANTT, IE, proc. 6208. 582
Cf. ANTT, IE, proc. 1602, fls. 1v-2. 583
Cf. ANTT, IE, proc. 7939. 584
Cf. ANTT, IE, procs. 4409. 585
Cf. ANTT, IE, proc. 1602, fl. 21. Rui Gonçalves era filho de Francisco Gonçalves Navarro, tio
paterno de Manuel Camacho. Ele era lavrador e estava casado com uma cristã-velha, Maria das
Candeias (Cf. ANTT, IE, proc. 968). 586
Manuel da Guerra foi preso com o irmão, em Janeiro de 1648. Tal como António da Guerra, alegou ser
cristão-velho. Sem nunca confessar, acabou reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Abjurou
de vehementi no auto de 26 de Março de 1651.
146
acabou por admitir ser cristão-novo por parte da mãe587
. O caso de João Dias, lavrador de
Albufeira, foi diferente. Ele nunca confirmou ter qualquer parte de cristão-novo, ao
contrário do irmão Gregório Viegas, que ainda colocou algumas dúvidas sobre a limpeza do
seu sangue: disse desconhecer a “qualidade” da família paterna, oriunda da Alemanha588
.
As prisões em Albufeira iniciaram-se ainda durante a década de 30. Nestas
primeiras detenções, encontramos indivíduos pertencentes aos núcleos familiares mais
atingidos pelas prisões em Faro e Loulé. A 23 de Abril de 1635, Gaspar Lopes entrava
nos cárceres de Évora. Ele era irmão de António Simões, tendeiro, preso em Loulé no
ano anterior, e primo de Mestre Duarte, o pai de Branca Dias e Francisca Duarte589
.
Gaspar Lopes fora denunciado por Pedro Gomes, lavrador de Loulé, e pelo primo
Duarte Mendes, de Lagos. Porém, durante mais de dois anos, resistiu a admitir qualquer
culpa. Afinal, era “[...] tão bom cristão que, por escusar de se encontrar com alguns
cristãos-novos, se tirou de vender e ser tendeiro e se passou à lavoura [...]”. Mesmo no
momento em que se multiplicavam as prisões em Faro, nunca houve qualquer indício de
que pretendia ausentar-se do reino, antes investira em terras e noutros bens imóveis. E
oportunidades não faltaram para reconstruir a sua vida fora de Portugal. Afinal, ele ia
frequentemente vender figo a Sanlúcar de Barrameda, onde tinha família590
. Gaspar
Lopes acabaria por apresentar 61 artigos de contraditas antes de começar a sua
confissão, a 5 de Junho de 1637591
. Passados nove dias, saiu em auto-de-fé, reconciliado
com cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão.
Vários anos depois, o nome de Gaspar Lopes continuava a ser mencionado pelos
réus de Albufeira. António da Guerra, em 1651, confessou que fora ele o seu mestre na
Lei de Moisés592
. Pela mesma altura, Rodrigo Álvares, lavrador, e Catarina Fernandes
(prima irmã do Francisco Fernandes de Lagos, relaxado em 1629) também referiram o
587
Cf. ANTT, IE, proc. 2968. António da Guerra foi preso a 11 de Janeiro de 1648 e saiu no auto-de-fé
celebrado a 26 de Março de 1651, com cárcere e hábito penitencial perpétuos. 588
Cf. ANTT, IE, procs. 431 e 5576. Os dois irmãos conseguiram convencer os inquisidores da falsidade
das denúncias e saíram reconciliados no auto-de-fé de 26 de Março de 1651, onde abjuraram de levi e foi-
lhes sentenciado cárcere ao arbítrio dos inquisidores. 589
António Simões entrou no cárcere inquisitorial a 12 de Outubro de 1634. Reconciliado no auto de 27
de Junho de 1636, com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores, voltaria a ser preso ainda
nesse ano. Acusavam-no de quebrar o segredo. No auto de 14 de Junho de 1637, foi-lhe sentenciado
hábito perpétuo, sem remissão, e degredo de dois anos nas galés. Entretanto, também tinha sido presa a
sua esposa, Catarina Rodrigues, em Março de 1635. (Cf. ANTT, IE, procs. 5250 e 8460). 590
Cf. ANTT, IE, proc. 3558, fls. 20-20v. 591
Cf. Idem, fls. 134-134v, passim. Jorge Mendes era o pai de Branca Dias e de Francisca Jorge, presas
em Loulé em 1633 (Cf. ANTT, IE, proc. 6727). 592
Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fls. 136-136v.
147
ensino de Gaspar Lopes593
. O mesmo alegou a sua própria filha, Sebastiana Vicente,
presa em 1646594
. Quando tinha cerca de 19 anos, o pai ensinara-lhe que deveria vestir
roupa lavada aos sábados, jejuar à sexta-feira e não comer carne de porco, nem lebre ou
coelho, tudo em observação da Lei de Moisés595
.
O irmão de Gaspar Lopes, António Simões, motivou uma série de prisões em
Albufeira. A partir dos cárceres de Évora, a prima Francisca Duarte596
, de Loulé,
escrevera uma carta ao sogro, Álvaro Pires, na qual afirmava que “[...] António Simões
tinha dado em trinta e tantas pessoas da dita vila de Albufeira [...]”. Quem o contou foi
Sezinando Gonçalves, cristão-velho que ouvira o próprio Álvaro Pires a mencionar a
carta da nora597
.
O nome de António Simões também aparece entre os denunciantes de Rodrigo
Álvares e Francisco Rodrigues Calça, filhos de Manuel Rodrigues Calça. No momento
da prisão, os dois irmãos resistiram e tentaram fugir, sem sucesso598
. Em Janeiro de
1649, entraram nos cárceres de Évora. Francisco Rodrigues nunca chegou a admitir
qualquer culpa e acabou reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores e degredo
de 2 anos em Castro Marim, por ter resistido à prisão. Porém, o irmão, que tinha
precisamente os mesmos denunciantes, confessou ser judaizante599
.
Mas regressemos às primeiras prisões na vila. Em Março de 1635, entravam nos
cárceres 4 dos filhos do lavrador Gonçalo Filipe: Margarida Filipe, Tomé Filipe Vieira,
Matias de Viveiros e Francisco Filipe600
. A denunciante fora a outra filha de Gonçalo
Filipe, Mécia Rodrigues, uma das cristãs-novas de Faro que, em Dezembro de 1633,
tentou ingloriamente fugir de barco para Huelva601
. Nas suas contraditas, Margarida
Filipe aludiu essa tentativa de fuga da irmã: o seu marido, Francisco Henriques, capitão-
593
Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fls. 83v-84; proc. 3454. Catarina Fernandes era filha de Isabel Lopes, irmã
de Manuel Fernandes, o Cabeça de Vaca. 594
Cf. ANTT, IE, procs. 6359 e 10641. 595
Cf. ANTT, IE, proc. 6359. 596
Francisca Duarte era filha de Grácia Duarte, prima direita de Gaspar Lopes. A mãe de Grácia,
Francisca Jorge, era irmã de João Afonso, pai de Gaspar Lopes. O seu processo encontra-se desaparecido. 597
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 25-25v. 598
Cf. ANTT, IE, proc. 1597, fls. 13-13v. Vide, em anexo, pp. 448-449. 599
Cf. ANTT, IE, proc. 2649. Rodrigo Álvares saiu no auto de 6 de Março de 1651, junto com o irmão, e
recebeu como sentença cárcere e hábito penitencial perpétuos. 600
Cf. ANTT, IE, procs. 3190, 2525 e 19. O processo de Matias de Viveiros encontra-se desaparecido.
Um outro filho de Gonçalo Filipe, Manuel Filipe Vieira, mercador em África, apresentou-se
voluntariamente perante a Inquisição de Lisboa a 1 de Setembro de 1643. Tinha chegado num navio de
Cabo Verde e já havia sido denunciado pelo irmão Tomé Filipe e por Jacinto Rodrigues Ilhoa, cristão-
novo natural de Faro, mas então a viver em Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 10325). 601
Vide supra, pp. 132-133.
148
mor de Albufeira, ao saber da intenção da cunhada, fora a Faro impedi-la602
. A
actividade do marido, susceptível de atrair ódios na vila, serviu de argumento para a
defesa de Margarida. O irmão Tomé Filipe, por outro lado, apoiou-se no seu passado de
serviço à coroa portuguesa no Norte de África: “[...] era dos primeiros que acudiam aos
rebates contra os mouros que vinham e assim o fez em Tânger e Ceuta e na jornada da
Baja [...]”603
. Mas nem o casamento de Margarida Filipe, nem os serviços militares
prestados pelo irmão abrandaram a pressão dos inquisidores. Entretanto, os irmãos
Matias Viveiros e Francisco Filipe já haviam confessado e sido reconciliados. Tomé foi
o primeiro a ceder, no início de Junho de 1637, sendo seguido em poucos dias pela
irmã. Saíram ambos no auto celebrado a 14 desse mês, sentenciados a cárcere e hábito
penitencial perpétuos, sem remissão.
Já na década de 40, foi a vez da geração seguinte da família ficar sob a mira da
Inquisição. Em Dezembro de 1646, eram presos António Filipe, Manuel Martins Filipe
e Mécia Rodrigues Filipe, todos filhos de Francisco Filipe604
. As suas denúncias
motivaram a prisão da irmã mais velha, Maria Rodrigues, em 1649. Tal como o irmão
António Filipe, ela confessou que havia sido da tia Mécia Rodrigues que ouvira os
primeiros ensinamentos da “lei velha”, quando tinha cerca de 16 anos e participava da
romaria de São Marcos, em Faro605
.
O caso da família Filipe é exemplar da forma interpolada como decorreu a entrada
da Inquisição em Albufeira: 5 cristãos-novos presos em 1635; nos anos seguintes, um
por ano ou mesmo nenhum; 10 prisões em 1646 e mais 6 nos anos de 1648 e 1649. Este
ritmo espelha como as detenções registadas na vila foram consequência da acção
inquisitorial em Faro e Loulé.
Afinal, a circulação entre localidades fazia parte do quotidiano e, por conseguinte,
os laços familiares, profissionais e de amizade construíam-se numa dimensão mais
regional do que local. Vejamos o caso da família Madeira. A matriarca, Maria
Fernandes, era natural de Albufeira mas acabou a residir em Loulé. Os filhos dividiram-
se entre as duas localidades e não só: Águeda Dias e Inácio Madeira viviam em Loulé;
António Madeira, no termo da vila, em São Brás de Alportel; Clemente Fernandes, em
Albufeira; e Fernão Vaz de Álvares Madeira era soldado em Castro Marim. Quanto ao
filho mais velho, Manuel Madeira, vivia em Tânger em 1645, ano em que entrou nos
602
Cf. ANTT, IE, proc. 3190, fl. 31v. 603
Cf. ANTT, IE, proc. 2525, fl. 19. 604
Cf. ANTT, IE, procs. 8149, 1159 e 714. 605
Cf. ANTT, IE, proc. 4264.
149
cárceres da Inquisição de Lisboa, denunciado pela mãe e pelos irmãos Águeda, António
e Inácio Madeira606
. Os três haviam sido presos em 1644, no mesmo ano de Clemente
Fernandes e Fernão Vaz607
. Dois anos depois, e na sequência destes processos, foram
detidos os primos Domingos Rodrigues, Margarida Fernandes e Maria Vieira, filhos da
tia materna Constança Fernandes, residentes no termo de Albufeira608
.
Noutras paragens
A 8 de Março de 1633, Francisca Duarte confessou que, quatro anos antes, tinha
partilhado a sua fé na Lei de Moisés com o primo Duarte Mendes, tratante de Lagos que
andava então a mercadejar na feira de Santa Iria609
. Apenas com esta denúncia, Duarte
Mendes, então tesoureiro da Câmara de Lagos, foi preso pela Inquisição pouco tempo
depois. A 10 de Outubro, entrava nos cárceres de Évora, já então povoados por alguns
dos seus parentes de Faro. A confissão iniciou-se nos dias seguintes. Havia cerca de 23
anos que fora ensinado por Manuel Filipe, mercador de Faro, já defunto em 1633.
Apesar de residir em Lagos desde os 30 anos de idade (tinha 50 quando foi preso),
grande parte da sua confissão centrou-se em Faro e Loulé, de onde era natural. O
silêncio foi completo relativamente aos cristãos-novos de Lagos610
.
De facto, esta entrada da Inquisição deixou praticamente incólumes os núcleos
urbanos do Algarve Ocidental. As prisões não foram mais do que pontuais e
directamente relacionadas com os processos de Faro e Loulé. Fernão de Álvares,
ourives de Lagos mas cuja família tinha raízes em Vila Nova de Portimão, foi
denunciado por um outro ourives de Faro, João Fernandes, primo de Francisca Duarte e
de Branca Dias611
. Esta denúncia, em conjunto com as de dois mercadores de Tavira,
conduziu-o aos cárceres inquisitoriais em Junho de 1637. O processo de Fernão de
Álvares não se revelou tão inócuo quanto o de Duarte Mendes, sobretudo entre aqueles
606
Cf. ANTT, IL, proc. 10326. 607
Cf. ANTT, IE, procs. 11102, 106, 10189, 10920 e 9342. 608
Cf. ANTT, IE, procs. 6059, 11245 e 10487. 609
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 53v-54. Duarte Mendes era filho de Luís Estevens e Grácia Duarte, tia
paterna de Francisca Duarte. 610
Cf. ANTT, IE, proc. 4151. 611
Cf. ANTT, IE, proc. 4376. Fernão de Álvares provinha da família Dias de Vila Nova de Portimão,
profundamente atingida pela entrada da Inquisição na vila nos anos 80-90 do século anterior. Era
sobrinho paterno de Beatriz Dias, esposa de Diogo Lopes, o do Olho, presa em 1592. Segundo Fernão de
Álvares, a tia, depois de reconciliada, foi para o Brasil, onde veio a falecer. A sua mãe, Leonor Fernandes,
também entrara nos cárceres inquisitoriais, em 1596 (Cf. ANTT, IE, procs. 1762 e 10683).
150
que lhe eram mais próximos. Em 1639, na sequência das suas denúncias, a irmã
Guiomar Gonçalves, a esposa Catarina Martins e o filho Diogo Martins foram presos612
.
Ele foi também um dos denunciantes de Francisco Fernandes Correia, mercador de Vila
Nova de Portimão, oriundo da família Fernandes de Lagos, preso ainda durante o ano de
1639613
. O outro delator, Manuel Mendes, natural de Tavira mas também residente em
Vila Nova de Portimão, descreveu o seu périplo anual pelas feiras do Algarve e do
Alentejo, durante o qual partilhava a sua fé na “lei velha” com outros tratantes. Aliás,
segundo confessa aos inquisidores, a sua iniciação religiosa dera-se durante uma feira,
em Vila Viçosa, ensinado por três mercadores: Diogo Gonçalves e Manuel da Fonseca,
de Vila Nova de Portimão, e António de Barros, de Faro614
.
O cenário que encontramos em Lagos e Vila Nova de Portimão, repete-se no outro
extremo do Algarve, em Tavira. Em Agosto de 1636, foram presos três filhos e um
genro de André Botelho, sapateiro, denunciados pela prima Maria da Graça, de Faro615
:
Gomes Fernandes, Mor Dias, Maria Rodrigues e o marido Gaspar Rodrigues616
. Meses
depois, a 13 de Outubro, entraram nos cárceres o cirurgião Mestre Duarte e Gabriel
Gomes, surrador, denunciado pelo irmão Luís Fernandes, residente em Faro617
. No caso
de Mestre Duarte, à denúncia de Luís de Torres, mercador de Faro, acresceu a suspeita
de que estaria a preparar-se para fugir rumo a Castela, para onde já tinha enviado a
mulher, as filhas e uma sobrinha. Acabaria por falecer na cela, na noite de 26 de
Fevereiro de 1637, cinco dias após ter revogado toda a confissão que até então fizera618
.
Nos dois anos seguintes, o número de prisões foi ainda mais reduzido. Todos os
processos relacionaram-se com a entrada na cidade sede episcopal. Filipa Nunes,
mulher de um serralheiro cristão-velho, fora acusada pela irmã Maria Guterres,
residente em Faro619
. Isabel de Torres, viúva de Faro, e Inês de Sousa, de Loulé,
denunciaram Constança Coelho, filha de Estêvão Rodrigues, mercador natural de Beja,
preso pela Inquisição de Évora em 1618620
. A confissão de Constança Coelho foi célere,
612
Cf. ANTT, IE, procs. 2832, 2775 e 5101. 613
Cf. ANTT, IE, proc. 3328. Pelo lado materno, Francisco Fernandes Correia era primo irmão de
Francisco Fernandes, o cristão-novo de Lagos relaxado no auto-de-fé de 1622. 614
Cf. ANTT, IE, proc. 584, fls. 1v-2. 615
Maria da Graça, filha de Matias Afonso e esposa de Francisco Lopes Cea, foi presa em 1634 (Cf. ANTT,
IE, proc. 46). 616
Cf. ANTT, IE, procs. 3560, 4651, 680 e 3557. 617
Cf. ANTT, IE, proc. 3559, fl. 4v. 618
Cf. ANTT, IE, proc. 7053. 619
Cf. ANTT, IE, proc. 2991, fls. 3-3v. Filipa Nunes entrou nos cárceres a 12 de Junho de 1637 e saiu no
auto de 10 de Abril de 1639, com cárcere e hábito penitencial perpétuos. 620
Cf. ANTT, IE, proc. 484.
151
tendo delatado Beatriz Nunes, mulher Baltazar Rodrigues, médico – havia cerca de 6
anos, estivera com ela e com outras cristãs-novas no Recolhimento da Caridade de
Tavira, quando falaram sobre a Lei de Moisés e como esta era a boa para salvar as suas
almas621
. No dia 1 de Maio de 1638, Beatriz Nunes entrou nos cárceres de Évora. Logo
na primeira sessão, denunciou o marido. Em Maio de 1636, os dois tinham ido em
romaria ao Santo Cristo de Moncarapacho, acompanhados por Isabel de Torres, a qual
lhes falou de um filho que partira para as Índias de Castela, onde enriqueceu, e que tudo
se devia à fé na Lei de Moisés622
.
Baltazar Rodrigues, preso com a esposa, revelou que, quando estava preso em
Tavira, na casa do Padre Afonso Vaz da Costa, escrevera duas cartas. Numa delas,
delineava a estratégia que usaria perante os inquisidores:
“Depois que chegarmos a Évora, daí a oito ou dez dias, pediremos mesa e diremos
nossas confissões, salvando filhos e tia tudo quanto for possível, sem tocarmos
neles e por isso trabalharemos muito, e sobretudo Deus nos acuda e encaminhe na
primeira confissão, quando for à mesa, só falar em Felipa Nunes e Isabel de Torres
e em meu primo Fernão d‟Alves de Vila Nova.”623
De facto, logo a 7 de Maio, Baltazar Rodrigues denunciou as ditas Filipa Nunes e
Isabel de Torres e o primo Fernão de Álvares, preso no ano anterior. Os inquisidores
confrontaram-no com as duas cartas e Baltazar Rodrigues identificou-as como suas.
Acabou por confessar que, enquanto esteve preso em Tavira, escrevera 4 missivas, 3
delas para a cunhada Isabel Fernandes, aconselhando-a a fugir para Aiamonte e
pedindo-lhe que desse amparo aos seus filhos624
. Baltazar Rodrigues e a sua “querida
Nunes” saíram ambos no auto de 4 de Novembro de 1640, sentenciados a cárcere e
hábito penitencial perpétuos.
A partir de 1639, a actividade inquisitorial em Tavira tornou-se praticamente nula
até ao final do período estudado. Exceptuando Albufeira, registou-se o mesmo em todo
o Algarve a partir de meados da década de 40. O filão aberto em Faro com a confissão
de Branca Dias esgotara-se. Mas, como vimos, as consequências foram dramáticas –
mais de 380 prisões que se prolongaram para lá de uma década.
621
Cf. ANTT, IE, proc. 2578, fl. 9. 622
Cf. ANTT, IE, proc. 4403, fls. 2-2v. 623
Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fls. 14-14v. Vide em anexo, pp. 443-444. 624
Cf. Idem, fls. 30v-32v.
152
5. 1558-1650: UM BALANÇO
Três vagas de prisões, um período de interregno no início de Seiscentos, a
colaboração activa das autoridades religiosas locais com a máquina inquisitorial, a
ameaça de fuga dos suspeitos para lá das fronteiras, gerações de famílias atingidas nas
sucessivas vagas – são estes alguns dos aspectos que caracterizam a actuação
inquisitorial sobre os cristãos-novos no Algarve durante a segunda metade do século
XVI e a primeira da centúria seguinte. Os números são reveladores dos diferentes ritmos
e dos espaços que estiveram sob a mira do Santo Ofício625
.
A primeira entrada (1558-1566) foi a que mais se dispersou geograficamente:
começou em Vila Nova de Portimão, onde as prisões atingiram um pico em 1559;
passou depois para Lagos, com maior actividade entre 1560 e 1562; e, finalmente, para
Tavira, principal alvo, onde só em 1564 os processos movidos contra os cristãos-novos
residentes na cidade ascenderam as quatro dezenas. A entrada seguinte (1586-1596)
concentrou-se em Vila Nova de Portimão. Os números nunca chegaram a ser tão
expressivos quanto os da vaga anterior, porém, entre os anos de 1586 e 1596,
ultrapassaram as 120 prisões só em Vila Nova de Portimão. Entre os últimos anos do
século XVI e a década de 30 de Seiscentos, as prisões foram pouco mais do que
residuais. Nos anos 20, regista-se alguma actividade, mas o número de processos por
ano nunca ascende a meia dezena. Este período de mais de 30 anos, em que a actuação
inquisitorial foi modesta, antecede a maior entrada de sempre na região. É em Faro que
as prisões se concentram, atingindo valores muito elevados: 58 em 1633, 59 em 1634,
24 em 1635 e 39 em 1636. Considerando a dimensão da cidade, que na década de 30
não ultrapassaria os 1400 vizinhos626
, compreende-se o seu impacto na demografia
urbana, agravada pela debandada de muitos cristãos-novos rumo a Castela. As
detenções noutras localidades algarvias, em particular em Loulé e Albufeira, sucederam
em consequência da entrada em Faro.
Nas três vagas, a franja etária mais atingida compreendeu-se entre os 20 e os 40
anos, sendo a média de 35 anos627
. Portanto, estamos perante indivíduos no auge da
actividade produtiva. Apesar das prisões terem abrangido, sobretudo, a população
625
Vide, em anexo, gráfico 1, pp. 93-96. 626
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 627
Vide, em anexo, gráfico 6.4, p. 103. As médias não variam muito entre as três entradas. A média de
idades mais elevada registou-se na primeira vaga de prisões (anos 50-60 do séc. XVI): 38 anos. Nas
outras duas entradas, a média de idades foi de 34 anos.
153
feminina, não descuremos o impacto que o encarceramento de um dos cônjuges tinha no
casal. Com frequência, tal era motivo de abandono do lar, quer pela fuga do reino, quer
pelo acompanhamento do cônjuge preso até Évora (ou Lisboa, no caso da primeira vaga
de prisões). Note-se que muitas das mulheres presas pelo Santo Ofício tinham os
maridos ausentes ou eram viúvas. A maior sedentarização da população feminina e a
esperança média de vida mais alta são dois dos factores que explicam o porquê das
mulheres constituírem a grande maioria dos presos. Mais relevante é a forma como
deflagraram as três entradas da Inquisição no Algarve. Na primeira e na terceira vaga, o
início das prisões foi accionado pelo testemunho de duas mulheres. Durante a visitação
de 1585, a maioria das testemunhas também foram do sexo feminino. Ora, o círculo de
relações de uma mulher encontrava-se maioritariamente povoado por elementos do seu
sexo, o que se traduz nas denúncias efectuadas628
.
A actuação do Santo Ofício afectou sobretudo núcleos urbanos emergentes. Na
década de 60 de Quinhentos, Tavira era a maior cidade do Algarve, com estreitas
ligações ao Norte de África e um porto prolixamente frequentado por mercadores
nacionais e estrangeiros. A Ocidente, Lagos e Vila Nova de Portimão passavam por
uma fase de franco crescimento, na sequência das empresas ultramarinas e do
desenvolvimento da pesca do atum. No final do século, mantinham essa vitalidade,
apesar das quebras no rendimento das almadravas. Quando a Inquisição entra em Vila
Nova de Portimão, encontra uma localidade profundamente ligada à actividade
mercantil, em boa parte nas mãos de cristãos-novos. A entrada inquisitorial representou
um duro golpe. Muitos abandonaram a vila e estabeleceram-se no Algarve Central e
Oriental, pouco atingido pela vaga de prisões de final de Quinhentos. Outros saíram do
reino rumo a Castela e, dali, muitos terão partido para as Índias Ocidentais.
Durante a vaga dos anos 30 do século XVII, Vila Nova de Portimão e Lagos eram
apenas uma sombra do que haviam sido no passado – a actividade mercantil decrescera
e, simultaneamente causa e consequência dessa situação, o número de cristãos-novos
residentes também reduzira. Em 1630, Vila Nova de Portimão já não constituía o
melhor alvo para uma entrada da Inquisição. Por outro lado, Faro emergira nas últimas
628
Vide, em anexo, gráfico 6.5, p. 104. José Gentil da Silva nota a preponderância de presos do sexo
feminino nas Inquisições de Lisboa e de Évora a partir das primeiras décadas de Seiscentos (Cf. José
Gentil da Silva, “L‟Inquisition ao Féminin”, Comunicações apresentadas ao 1º Congresso Luso-
Brasileiro sobre Inquisição, vol. I, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1989, pp.
308). Vide também Elvira Cunha de Azevedo Mea, “As mulheres no Santo Ofício: perfis e estratégias”,
Estudos sobre as mulheres. Organização de Maria Beatriz Nizza da Silva e Anne Cova, Lisboa,
Universidade Aberta, 1998, pp. 85-97.
154
décadas. Apesar de parcamente atingida nas entradas anteriores – até 1632, registaram-
se pouco mais de 40 prisões em Faro, um número superado em larga escala só no ano de
1633 –, havia algum tempo que chegavam à Inquisição de Évora pareceres que focavam
a importância da gente de nação na cidade, ocupando cargos cimeiros na hierarquia
municipal e religiosa, motivo de escândalo entre a maioria cristã-velha. Adivinhava-se
que a cidade seria um campo fértil à actuação inquisitorial. Adivinhava-se e foi. Loulé,
por sua vez, desenvolvera-se enquanto centro abastecedor do comércio de Faro. As
ligações entre as duas localidades eram intensas e o facto de à vaga de prisões em Faro
suceder-se uma série de detenções em Loulé foi uma consequência natural.
A acção inquisitorial em Faro, na década de 30, não é dissociável do seu estatuto de
sede episcopal do Algarve. Aliás, como vimos, D. Francisco de Meneses teve um papel
determinante na entrada do Santo Oficio na região. Não se tratou de um caso isolado. Os
bispos revelaram-se peças fundamentais na marcação do ritmo da entrada da Inquisição
no Algarve. D. João de Melo, bispo do Algarve desde 1549, esteve por detrás das
diligências feitas pelo vigário-geral, o Dr. Luís de Albuquerque, as quais conduziram às
primeiras prisões na região. Recordemo-nos, ainda, que todos os processos relativos a esta
vaga se desenrolaram na Inquisição de Lisboa, apesar do Algarve pertencer à jurisdição
do tribunal de Évora. O passado de D. João de Melo ao serviço do Tribunal de Lisboa terá
condicionado essa transferência. Mais tarde, foi D. Afonso de Castelo Branco quem
alertou a Inquisição para a necessidade de se organizar uma visita ao Algarve, a qual
acabaria por ocorrer já com D. Jerónimo Barreto à frente do episcopado. No final do
século, D. Fernão Martins Mascarenhas assumiu o cargo. Até à sua morte, em 1628,
enquanto esteve à frente da Sé e, depois, como inquisidor-geral, a Inquisição não efectuou
nenhuma entrada na região. As suspeitas de favorecimento aos cristãos-novos do Algarve
corriam de boca em boca. A situação mudaria com D. Francisco de Meneses, um decano
com vasta carreira nos tribunais inquisitoriais de Coimbra e de Lisboa.
Como José Pedro Paiva sublinha, desde o estabelecimento do Tribunal do Santo
Ofício que o apoio dos bispos foi essencial para alargar a abrangência da sua actividade
no reino. Esse apoio evidenciava-se a vários níveis. Primeiro, na presença de indivíduos
com uma anterior carreira episcopal na hierarquia inquisitorial, e vice-versa, o que,
como se viu, é constatável no Algarve. Sublinhe-se ainda outros níveis em que essa
colaboração entre bispos e Inquisição era notável, como no fornecimento de
informações sobre os casos de heresia, na recolha de denúncias e no envio dos presos,
155
no apoio prestado durante as visitas inquisitoriais e nos autos-de-fé, ou no contributo
para o sustento financeiro do Santo Ofício629
.
No caso do Algarve, as condicionantes geográficas foram um factor determinante para
a necessidade desta cooperação entre os dois poderes. Évora, o tribunal mais próximo,
encontrava-se a dias de viagem. Os agentes inquisitoriais no Algarve eram poucos. Em
1649, ainda se lamentava o reduzido número de familiares do Santo Ofício na região630
.
De facto, as detenções realizavam-se, muitas vezes, por meio de indivíduos externos à
hierarquia inquisitorial, através do apoio das estruturas eclesiásticas locais. Isso é
particularmente visível na apreensão dos suspeitos de fuga nos anos 30 do século XVII.
Muito devido a esta colaboração das autoridades locais, religiosas e laicas, as entradas
da Inquisição no Algarve desenvolveram-se, em geral, a um ritmo rápido. O grosso das
prisões efectuava-se logo nos primeiros anos. Depois, as detenções começavam a
diminuir e a mira do Santo Ofício mudava de sentido, rumo a outra localidade.
As primeiras prisões suportavam-se em poucas denúncias. Afinal, e como já vimos,
a esmagadora maioria das denúncias tinha origem nas confissões doutros presos. A
necessidade de entrar num determinado espaço levava a Inquisição a contornar as
medidas regimentais, procedendo a detenções por testemunho singular.
No Regimento de 1552, a questão da prisão por testemunho singular é deixada, em
última instância, ao critério dos inquisidores. Refere o capítulo 24 que não se deveria
proceder à prisão por uma só testemunha, “[...] salvo quando parecer aos inquisidores que
é caso para isso e que a testemunha é pessoa de crédito e que fala verdade [...]”631
.O
Regimento de 1613 repetia essa mesma estipulação, acrescentando que os casos de
testemunho singular seriam remetidos ao Conselho Geral632
. Os limites às prisões
suportadas numa única denúncia são mais acentuados no texto regimental de 1640: “[...]
não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada, salvo se for marido ou
mulher ou sua parente dentro do primeiro grau de consanguinidade [...]”. Contudo, logo
no artigo seguinte, o regimento salvaguarda que se a testemunha for de “tão bom crédito”
e o denunciado de “tão ordinária condição” que os inquisidores considerem que devem
proceder à detenção, então farão assento de tal, justificando devidamente as suas razões, e
629
Cf. José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em
Portugal (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 156-188. 630
Em carta aos inquisidores de Évora, Pedro Borges Tavares, vigário-geral do bispado do Algarve,
advertia: “[...] E lembro também a vossas mercês que é necessário haver familiares em Vila Nova e Lagos
que têm um só e Tavira e só esta cidade [Faro] tem os que lhe bastam.” (Cf. ANTT, IE, proc. 1597, fl. 13v). 631
Cf. “Regimento... (1552)”..., As Metamorfoses..., p. 113 (cap. XXIV). 632
Cf. “Regimento.... (1613)”, As Metamorfoses..., p. 160 (cap. IX).
156
remetê-lo-ão ao Conselho Geral para que este decida o que fazer. A única reserva feita no
Regimento é ao crime de solicitação na confissão, sobre o qual nunca se poderia iniciar o
processo com base numa só denúncia633
. Esta maior especificidade no enquadramento das
prisões por testemunho singular no Regimento de 1640 foi, possivelmente, resultado de
abusos ocorridos no passado e das consequentes críticas. Porém, o Regimento voltava a
deixar espaço de manobra para os inquisidores, garantindo o seu poder em determinar se
uma testemunha era digna de crédito e se o seu depoimento justificava a detenção do
suspeito. Ou não fosse a prisão por testemunho singular um instrumento fundamental para
aligeirar as entradas da Inquisição em “terras novas”634
.
No caso do Algarve, as prisões por testemunho singular estiveram longe de ser uma
excepção. Nas duas entradas de Quinhentos, a maioria dos processos tiveram origem
numa só denúncia. Aliás, tal foi ainda mais evidente durante primeira vaga635
.
Uma confissão célere e coerente com o rol de culpas reunido pela Inquisição
propiciava a redução do tempo de cárcere e uma pena mais leve. A persistência na
defesa poderia ser contraproducente e revelar-se o caminho mais certo para a morte na
fogueira. Como vimos nos capítulos anteriores, foram poucos os bem sucedidos na
defesa e que saíram com uma pena leve – o cárcere ao arbítrio e a abjuração de
vehementi ou de levi – ou, ainda mais raramente, livres do cárcere. Vejamos os
números: em 1585-1600, 13%, em 1632-1650, 7%. Uma percentagem mais elevada
regista-se na primeira entrada, decorrente da apresentação voluntária de muitos cristãos-
novos perante os inquisidores de Lisboa, na esperança de uma sentença mais benévola.
Por outro lado, também foi reduzido o número de réus relaxados à justiça secular. Para
o período estudado, apenas 4 % dos cristãos-novos algarvios processados acabaram
relaxados em carne e ainda menor foi a percentagem dos relaxados em estátua. Em
suma, a maioria dos cristãos-novos presos no Algarve entre 1558 e 1650 acabaram por
ceder à pressão dos inquisidores e confessar as suas alegadas culpas636
.
Quanto à duração dos processos, raramente se estenderam além dos três anos. Aliás,
a maioria não ultrapassou os dois e, no caso da primeira entrada, 65% dos processos
633
Cf. “Regimento... (1640)”, As Metamorfoses..., p. 299 (liv. II, tit. IV). 634
Cf. Elvira Mea, “O Santo Ofício Português – da legislação à prática”, Memorial I.-S. Révah. Études
sur le marranisme, l’hétérodoxie juive et Spinoza. Edité par Henry Méchoulan et Gérard Nahon, Paris-
Louvain, Peeters, 2001, pp. 62-63. Sobre a questão das prisões por testemunho singular e a polémica
gerada em torno da legitimidade deste procedimento, vide Ana Isabel López-Salazar Codes, “«Che si
riduca al modo di procedere di Castiglia». El debate sobre el procedimiento inquisitorial portugués en
tiempos de los Austrias”, Hispania Sacra, LIX, 119, Jan.-Jun. 2007, pp. 243-268. 635
Vide, em anexo, gráfico 6.1, p. 100. 636
Vide, em anexo, gráfico 6.3, p. 102.
157
resolveram-se num ano, o que indicia que muitos dos presos não demonstraram uma
acentuada resistência à confissão e conseguiram fazê-la coincidir com o rol de culpas637
.
Essa coincidência leva-nos a questionar o valor do segredo inquisitorial e até que
ponto os confitentes realmente o guardavam. Não são raros os casos em que o segredo
era quebrado por alguém que, no passado, conhecera as agruras do cárcere. Havia quem
aconselhasse os que se arriscavam a vir a ser presos sobre a melhor forma de encurtar o
tempo de cárcere e beneficiar de uma pena mais leve. Simoa da Costa, presa em Faro
em 1634, admitiu que guiara a sua confissão pelo que tinha ouvido dizer a Manuel
Nunes de Moura, reconciliado pela Inquisição anos antes638
.
Todo o processo que separava a detenção do suspeito na localidade de residência da
entrada no cárcere inquisitorial constituía uma ameaça ao segredo639
. As cidades e as
vilas não eram particularmente populosas e as relações sociais e familiares
desenvolviam-se de uma forma muito abrangente. A notícia de uma prisão circularia
célere por toda a localidade. Através do confronto com as prisões anteriores, tornava-se
relativamente simples retirar ilações sobre quem “dera” em quem.
Enquanto aguardavam a partida para Évora, os presos ficavam detidos na cadeia
pública da cidade ou, quando as prisões superavam em muito a sua capacidade, nas
casas de familiares do Santo Ofício, ou mesmo em lares de indivíduos não relacionados
com a hierarquia inquisitorial. No Outono de 1633, Catarina Lopes, a Sangue de Rei,
esteve detida na casa de Luís Eanes Rasquinho, familiar do Santo Ofício, antes de partir
rumo a Évora. Numa câmara do piso inferior, encontrava-se presa uma sua filha. Luís
Eanes Rasquinho repete o diálogo que então escutara:
“[...] «Filha, já que estás presa, dá em fulano e fulana», e nomeou-lhe muitas pessoas
cristãs-novas de que ele, testemunha, não está lembrado e isto disse tão alto que com
ele declarante, digo, testemunha, e a dita filha dela estarem três casas além dela, e se
meterem três sobrados no meio, ouviu muito claramente as sobreditas palavras, e a
dita sua filha lhe respondeu: «Calai-vos, não vos ouçam». E tanto gritava a dita
Catarina Lopes que foi necessário deitar-lhe grilhões para a aquietar [...]”640
637
Vide, em anexo, gráfico 6.2, p. 101. 638
“[...] disse ela, confitente, ao dito homem que, pois havia estado preso nos cárceres dele, lhe dissesse
como se haviam os presos enquanto o estavam e ele lhe respondeu que os que tinham culpas as
confessavam e os que não tinham se defendiam, e que como os que confessavam dissessem as suas
culpas, ia pouco declarar todos os anos em que as cometeram e, por esta razão, quando ela confitente fez
sua confissão nesta mesa, dissera nela haver somente cinco anos que crera na lei de Moisés, por entender
com o que lhe havia dito o dito Manoel Nunes que, ainda que houvesse mais tempo que cria na dita lei, ia
pouco o não declarar.” (Cf. ANTT, IE, proc. 2721, fls. 52v-53). Manuel Nunes de Moura esteve preso em
Évora entre 1624 e 1628. (Cf. ANTT, IE, proc. 4361). 639
Vide Mea, A Inquisição de Coimbra..., pp. 397-401. 640
Este episódio vem relatado no processo de Guiomar Mendes, também de Faro (Cf. ANTT, IE, proc.
2197, fls. 108v-109v).
158
Durante o tempo em que se encontravam presos na cadeia local ou nas casas de
particulares, os presos recebiam visitas de parentes e amigos. Encomendavam-lhes a
protecção da família, mas também trocavam informações sobre a prisão, os hipotéticos
denunciantes e a confissão que apresentariam, ou não, perante os inquisidores641
. Num
momento em que as prisões se multiplicavam por toda a região, presos de diferentes
lugares reuniam-se em grupos, mais ou menos numerosos, para tomarem o caminho
rumo a Évora. Veja-se o caso de Maria Dias que, detida em 1588, partiu de Faro para
Vila Nova de Portimão, onde passou a noite numa estalagem junto com outros presos
que também seguiam para Évora642
. Baltazar Rodrigues, apreendido em Tavira em
1638, ainda teria de se reunir, em Faro, a mais 4 ou 5 presos dessa cidade e 14 de Loulé
antes de enveredar o caminho até ao cárcere inquisitorial – foi o que escreveu numa
carta remetida à cunhada Isabel Fernandes643
.
Neste périplo até Évora, e segundo se deduz da dita carta, Baltazar era o único preso a
partir de Tavira. Não o acompanhava nenhum parente. Mas nem sempre era assim. Em
1591, Beatriz Lobo seguiu na companhia de mais 17 presos, entre os quais as irmãs Ana e
Maria Fernandes. Interrogada pelos inquisidores, ela jurou ter mantido o silêncio durante
todo o caminho, “[...] porque vinha gente com eles e traziam-nos apartados [...]”. Ela não
falara com ninguém, nem sequer com as irmãs644
. Mas o inquisidor duvidou. A viagem
até Évora era longa. Mesmo seguindo em bestas, o caminho prolongava-se por 4 ou 5
dias645
. Parava-se no caminho, pernoitava-se em estalagens. Como evitar a comunicação
entre os presos?
641
Foi o caso de Mor de Barros que, quando estava presa em Vila Nova de Portimão, em 1591, foi
visitada pelo irmão António de Barros, o qual ameaçou matar-lhe o marido caso o denunciasse. (Cf.
ANTT, IE, proc. 6017). 642
Maria Dias conta que se encontrou na estalagem com Grácia Gonçalves, cristã-nova de Vila Nova de
Portimão, também ali presa. Nessa noite, um filho e um genro de Grácia passaram pela porta da
estalagem e acenaram-lhe “[...] pondo a mão nas suas bocas e apertando os beiços com os dedos, dando-
lhe nisso a entender que se calasse [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 9361. Também referido em Borges Coelho,
Inquisição de Évora..., pp. 112-113.) 643
Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fls. 14-14v. Vide em anexo, pp. 443-444. 644
Cf. ANTT, IE, proc. 6980. 645
Encontramos esta informação sobre a duração da viagem entre Évora e o Algarve no processo de
Aldonça Gramaxo, presa em Vila Nova de Portimão, em 1589. Dois meses depois de ter saído no auto-
de-fé de 12 de Junho de 1594, os inquisidores deram ordens para que regressasse a Vila Nova de
Portimão e ali cumprisse o resto da penitência. A viagem foi adiada e, em Novembro, recebeu nova
ordem para partir. Entretanto, Aldonça engravidara e, por isso, pediu à Inquisição para permanecer em
Évora, pois a viagem poderia ser perigosa no seu estado. Foram chamadas duas parteiras, que deram o seu
parecer. Uma delas, Maria Marques, afirmou que Aldonça “[...] corre perigo de sua vida, ou de morrer a
criança, indo caminho de quatro ou cinco dias de besta [...]”. A outra parteira, Filipa Dias alegou, pelo
contrário, que “[...] muitas mulheres peiadas e em dias de parir andam caminho e não perigam [...]”.
Aldonça acabou por partir para Vila Nova de Portimão, onde já se encontrava a 13 de Dezembro. (Cf.
ANTT, IE, proc. 4603, fls. 194-195v).
159
Já no cárcere, o conteúdo das confissões voltava a escapar ao segredo inquisitorial. A
própria estrutura dos calabouços não impedia eficazmente a comunicação entre os presos.
Os cárceres eram exíguos e pouco iluminados e chegavam a partilhar o mesmo espaço 5
ou ainda mais presos646
. Em 1619, Francisco Luís, então estudante em Coimbra, contou o
que ouvira de um cristão-novo, preso na Inquisição de Évora e reconciliado no auto-de-fé
celebrado nesse mesmo ano. Dizia que, na cela onde estivera, “[...] escassamente cabiam
dois homens e que a água, urina, loiça e o mais requisito para um homem viver estava
junto por razão do aperto e angústia da casa [...]”647
. Em 1561, Garcia Ribeiro, cristão-
novo de Lagos preso pela Inquisição de Lisboa, pedia aos inquisidores que o retirassem
da cela onde se encontrava “[...] por ser muito escura e temerosa e ele ser homem mal
disposto e doente [...]”. As condições deploráveis do cárcere justificavam até uma má
confissão. Garcia Ribeiro alegou ter passado em branco a noite antes de ir à mesa porque
vira, na sua cela, uma cobra e “[...] uma alcateia de ratos e lhe apagaram a candeia e
comeram o azeite e levaram a torcida, assim como o fogo [...]”, razão pela qual não
conseguiu dormir, “[..] nem cuidar em seus pecados [...]”648
.
Em fases de intensa actividade inquisitorial, as celas ficavam sobrepovoadas.
Indivíduos com laços próximos de parentesco partilhavam a mesma “casinha”. Maria da
Conceição, presa em 1590, esteve encarcerada na companhia da irmã Francisca de
Barros, a qual tê-la-ia pressionado a não denunciar o irmão Manuel de Barros649
. Mas a
partilha do mesmo espaço de cárcere por duas irmãs não era a regra. Em geral, a
distribuição dos presos pelas celas tendia a evitar a existência de relações prévias. Aliás,
o Regimento de 1613 é claro quando proíbe aos presos negativos a partilha da cela com
outros detidos da mesma terra ou com familiares650
. Contudo, tal não evitava
completamente a comunicação e a troca de informações sobre as denúncias e
confissões. A arquitectura do cárcere não tinha como o impossibilitar. Vejamos o que
narra Diogo de Barros, de Lagos, preso nos cárceres de Évora em 1619:
646
Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 38. Sobre as celas inquisitoriais, o autor cita as anónimas
Notícias Recondidas y Postumas del Procedimento de las Inquisiciones de España y Portugal con sus
Presos (1772): “[...] uma casa de quinze palmos de comprimento, e doze de largo, escura e que tem por
claridade uma fresta levantada do chão três palmos pouco mais ou menos [...]”. 647
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 365. 648
Cf. ANTT, IE, proc. 8489, fls. 39-40. Vide em anexo, pp. 265-267. 649
Cf. ANTT, IE, proc. 7856. 650
Refere o cap. XVIII do Regimento de 1613: “Os presos negativos se não mudarão de uma casa para
outra, nem se lhe dará companhia, salvo havendo causa para isso, e quando parecer aos inquisidores que
se lhes deve dar a dita companhia, em nenhuma maneira lha darão de pessoas das próprias terras e lugares
donde são, nem culpados nas mesmas culpas in specie, nem parentes, mas serão acompanhados os tais
negativos de alguns bons confitentes e pessoas de que se tiver melhor conceito [...]” (Cf. “Regimento...
(1613), As Metamorfoses..., p. 162 (cap. XVIII)).
160
“Manuel Rodrigues Lobo é seu inimigo capital e lhe quer mal porque estando o réu
preso nestes cárceres, na casa das 8, e o dito recusado na casa das 6, Manuel Casco,
companheiro dele réu, fez umas trovas dos que saíram no auto de fé penitenciados,
em que entrou nelas o pai do recusado, e, estando-as lendo ao fidalgo Corte Real, que
estava na casa das 9, e ouvindo o recusado as trovas, porque estava à sua janela, se
agastou muito, dizendo que era aquilo muito mal feito, que o seu pai era homem
honrado e se agastou contra ele réu, pois consentia dizer mal de seu pai [...].”651
Em suma, o companheiro de Diogo de Barros, Manuel Casco, lera umas trovas a um
tal “fidalgo Corte Real”, preso noutra cela, as quais foram ouvidas por um outro preso,
Manuel Rodrigues Lobo, à janela de uma terceira casa. Nem a vigilância impedia a
comunicação de cela para cela. E eram várias as formas de escapar a ouvidos
devassadores. Beatriz Manuel, presa em 1618, disse ter aprendido no cárcere a “falar
pelo ABC”652
, uma forma de comunicação através de pancadas na parede. Branca
Rodrigues, cristã-nova do Porto que, em 1559, estava presa no mesmo cárcere de Inês
Pousadas, de Vila Nova de Portimão, revelou aos inquisidores como este método de
comunicação era eficaz. Uma vez, ouvira alguém a bater na parede e Inês Pousada
dissera-lhe que era Catarina Fernandes, também de Vila Nova de Portimão, a qual lhe
perguntava, através das ditas pancadas, quem é que estava no cárcere com ela.
Prosseguiu Branca Rodrigues:
“[...] e dizendo-lhe a dita Inês Pousada que estava ela, declarante, em sua
companhia, a dita Catarina Fernandes perguntou a ela, declarante, se estava no
corredor velho e, respondendo-lhe ela, declarante, que sim, que estava perto de sua
mãe, dela Catarina Fernandes, a dita Catarina Fernandes lhe disse que dissesse à
sua mãe, Inês Martins, que confessasse suas culpas e dissesse que fizera dois jejuns
com ela, Catarina Fernandes, e com sua dona dela, Catarina Fernandes, que se
chama a Rainha, um dos ditos jejuns pelo tempo dos marmelos e o outro não se
lembra por que tempo e que já ela, Catarina Fernandes, e sua tia, Catarina Martins,
tinham dito isto [...].”653
Secretamente, circulavam bilhetes escritos escondidos entre a roupa ou mesmo na
comida dos presos654
. Portanto, não obstante a vigilância dos guardas e dos alcaides, os
limites do cárcere eram frequentemente transpostos por informação que circulava de
cela para cela, mas também para e do exterior. Essa ameaça ao segredo inquisitorial é
contemplada no Regimento de 1640, quando estipula que os cárceres devem ser secretos
e seguros, bem fechados, separados por corredores, de modo que “[...] se atalhe a
comunicação entre presos para maior observância de segredo, pelo grande prejuízo que
651
Cf. ANTT, IE, proc. 5805. 652
Cf. ANTT, IL, proc. 1316. 653
Cf. ANTT, IL, proc. 12940, fls. 6v-7. 654
Sobre a circulação de informação escrita no cárcere inquisitorial, vide Antonio Castillo Gómez,
“Escrito en prisón. Las escrituras carcelarias en los signos XVI y XVII”, Península. Revista de Estudos
Ibéricos, n.º 0, 2003, pp. 147-170.
161
do contrário seguiria ao Santo Ofício [...]”655
. Mas esse “prejuízo” continuou a ser
sentido e nem os corredores salvavam o segredo.
No interior da cela, o conteúdo das confissões constituía um tema corrente de
diálogo entre os presos. Uns, mais experientes, aconselhavam os outros sobre o melhor
modo de conquistar a “misericórdia” do tribunal. Isabel Martins, a 6 de Março de 1638,
admitiu uma série de denúncias falsas. Porque o fizera? Uma companheira de cárcere,
oriunda de Estremoz, havia-lhe aconselhado “[...] que, para se livrar desse [cárcere],
desse em todas as pessoas de nação da sua terra que lhe lembrasse [...]”. Isabel Martins
assim o fez, mas acabou por se arrepender. Então, a sua companheira deu-lhe um novo
conselho – que voltasse à mesa para revogar a confissão anterior656
.
Nos cárceres, fomentavam-se amizades mas também querelas. O companheiro de cela
poderia tornar-se um denunciante. Logo em 1563, Gaspar Fernandes, de Tavira, sofrera-o
na pele, denunciado por quem partilhava com ele as vicissitudes do cárcere657
. Também
Cristóvão de Mendonça, executor da propriedade do reino do Algarve, sabia que essa
partilha não o salvaguardava da denúncia, antes pelo contrário. Ele fora preso na vaga de
Julho de 1636, acusado de judaísmo. Porém, negou sempre essas acusações, tal como
qualquer parte de sangue hebraico. Cristóvão suspeitava ter sido denunciado pelos
companheiros de cárcere. Era com Fernão de Álvares, ourives de Lagos, que tinha
maiores divergências. «Bom companheiro tenho» – dizia este, ironicamente, sobre
Cristóvão de Mendonça. Afinal, logo que entrou no cárcere, Fernão de Álvares tentou
aproximar-se do executor, recordando que, no passado, os dois haviam-se encontrado
numa barca que seguia de Lisboa para Coina. Porém, Cristóvão de Mendonça retorquira
secamente, recusando qualquer proximidade com o ourives, e prosseguiu com esta atitude
durante todo o tempo em que partilharam a mesma cela658
.
O executor desejava transparecer uma ideia de distância face à gente de nação, isto
apesar de ser casado com uma cristã-nova, Beatriz Gomes, presa pela Inquisição de
Évora em 1633659
. A aversão aos cristãos-novos está omnipresente na sua defesa.
Vejamos o seguinte episódio. Quando um sobrinho da sua mulher foi morto por Manuel
de Moura Gavião, cristão-velho, Cristóvão de Mendonça felicitou-o “[...] dizendo que
era o primeiro homem que vira livrar por morte de um cão danado, antes havia de haver
655
Cf. “Regimento... (1640)”, As Metamorfoses..., p. 240 (liv. I, tit. II, art.º 11). 656
Cf. ANTT, IE, proc. 5545, fls. 50-50v. 657
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 4v-8. Vide em anexo, pp. 268-270. 658
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 287-295. Vide em anexo, a transcrição de excertos das contraditas do
processo de Cristóvão de Mendonça, pp. 438-442. 659
Cf. ANTT, IE, proc. 10574.
162
prémio para quem os matava como davam a quem matava lobos [...]”660
. Estas palavras
correram por toda a cidade e excitaram os ódios da gente de nação. Cristóvão dizia-se
“[...] um ânimo inocente de judeus conjurado [...]”, conduzido aos cárceres pelos
testemunhos de quem não se poderia esperar nada senão a mentira e a perfídia. É
permanente este tom de animosidade face aos cristãos-novos de Faro, alicerçado no
ataque à fé judaica, uma lei pouco atractiva, “[... ] velha e magra, pois não admite
gordura nem toucinho [...]”, toda feita de fastio “[...] porque ela não come uma cousa,
ela não come outra, uma lhe faz asco, outra lhe aborrece [...]”. Cristóvão tentava, assim,
identificar-se com o discurso da própria Inquisição661
.
As falsas acusações, fruto de vinganças pessoais, constituíam o argumento de defesa
mais comum. Em 1592, Isabel Lopes, de Vila Nova de Portimão, queixava-se das
ameaças de Belchior de Barros: “[...] que se não agastasse porque sua casa havia de ser
destruída e que até o gato da casa havia de vir preso [...]”662
. Anos mais tarde, Manuel
Henriques apresentava uma longa série de contraditas, nas quais dava a entender que
muitos cristãos-novos de Faro tinham razões para traduzirem os seus ódios em
denúncias falaciosas, mais exactamente 42 denúncias, tantas quantas a Inquisição de
Évora reuniu contra si663
. Por sua vez, Cristóvão de Mendonça alegava a pouca
fiabilidade dos testemunhos que o conduziram ao cárcere. A pressão para confessar,
como garantia de uma pena mais leve e de um tempo de cárcere mais curto, encorajava
as falsas denúncias. Escrevia o executor:
“Lança o Santo Ofício suas redes e colhe os de sobrado e os de loja, e a estes, que
o vulgo chama de menos sorte, vindos a esta mesa, donde a caridade anda atrás
de seu remédio e a misericórdia, que já lhe sabe as juntas, vira o rosto à culpa
pelo respeito não fazer pejo à vergonha, oferece-lhe o perdão só com mudar de
traje, roga-lhe com a liberdade sem pretender resgate, facilita-lhe a afronta com o
exemplo de outros, faz-lhe memória de sua causa por ser melhor pousada.
Obrigados do termo e compungidos do erro, entram em consideração que se se
põem em defesa que a justiça que é mui solícita em requerer seu direito, o
tribunal, ainda que piedoso, não deixa de ser tremendo, o sítio da prisão mais
cheio de nublados que de estrelas, as vidas curtas, os livramentos largos, a
natureza fraca, o fim rigoroso, o sucesso incerto, porque sempre este mal traz
comichão nas costas. Vêem mais que o que têm que perder é pouco ou nada, [...]
o cárcere que não é fiel conselheiro, nem nunca se prezou de pontos dele; os
pesos e medidas da gula ou mais costumes aferidos por taxa e por razão aos que
660
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 301-302. 661
Cf. Idem, fls. 325-350. Vide a transcrição da defesa de Cristóvão de Mendonça em Carla da Costa
Vieira, “«Da cor do cárcere vestido». A defesa de Cristóvão de Mendonça perante a Inquisição de Évora”,
Cadernos de Estudos Sefarditas, n.os
10-11, 2011, pp. 503-536. 662
Cf. ANTT, IE, proc. 11123. 663
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 107-245. Vide em anexo, pp. 431-435.
163
sempre de vícios tiveram mesa franca; Castela que se faz passo largo; e a
juventude, seu desonesto trato, mil carícias.”664
Entre os cristãos-novos criticava-se a pouca credibilidade dos testemunhos retirados
a ferros, pronunciados por réus que, conhecendo os métodos do Santo Ofício, sabiam
como a delação era o caminho mais rápido para o perdão. Em 1587, quando cumpria a
penitência em Évora, Fernão Pinto, de Lagos, teria afirmado “[...] que tantos tostões
tivesse quantos no Santo Ofício eram acusados falsamente [...]”665
.
A muitas léguas do tribunal de Évora, comentava-se a fama de alguns inquisidores.
De boca em boca, circulavam rumores sobre quais os mais austeros e os mais brandos.
Em 1636, ao regressar a Faro, Francisco Mendes de Góis comentara que achava o
inquisidor Bartolomeu de Monteagudo “muito áspero”, apelidando-o de “Nero
Vespasiano”666
. Curiosamente, encontramos esta mesma designação aplicada a D. João de
Bragança, inquisidor do tribunal eborense. Em Maio ou Junho de 1594, no Mosteiro de
Santo António dos Capuchos, em Évora, Manuel Fernandes Estaço, que andava a cumprir
a penitência sentenciada no auto de 1587, comentara: “[...] está aí um Nero, Dom João de
Bragança, que com tormentos faz confessar os homens o que não fizeram [...]”667
.
Os “Neros” da Inquisição forçavam os réus a confessar, sob tormento, o que tinham
e, sobretudo, o que não tinham feito. As críticas também se direccionavam aos
familiares e comissários do Santo Oficio, os quais cresceram em número ao longo do
século XVII, atingindo o seu expoente máximo no final da centúria668
. Dada a sua maior
664
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 335-335v. 665
Cf. ANTT, IE, proc. 2891. 666
Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fls. 21. Confrontado com os inquisidores, Francisco Mendes desmente tais
acusações – nunca dissera nada contra Bartolomeu de Monteagudo, o qual considerava de “[...] mor
talento e que tivesse mais experiência de todos os negócios e, em especial, no administrar justiça sem
respeito algum de pessoa, senão muita inteireza [...]” (fls. 91v-92). Sobre Bartolomeu de Monteagudo
corria a fama de que teria parte de cristão-novo. O seu processo de habilitação concluíra que ele era filho
de um alemão e de uma castelhana que, segundo algumas testemunhas, teria sangue hebreu. Mesmo
assim, foi habilitado a servir o Santo Oficio (Cf. Figueirôa-Rêgo, A honra alheia..., pp. 417-418). 667
Cf. ANTT, IE, proc. 6015. 668
Em 1693, existiam no Algarve 35 familiares do Santo Ofício: 15 em Faro, 10 em Lagos e 10 em Tavira.
(Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 82). Sobre os comissários e familiares do Santo Ofício no
Algarve durante o século XVIII e o seu papel no controlo das populações mais distantes das sedes dos
tribunais, vide Nélson Vaquinhas, Da comunicação ao sistema de informação: o Santo Ofício e o Algarve
(1700-1750), Lisboa / Évora, Colibri / CIDEHUS, 2010. Francisco Bethencourt avança com algumas
hipóteses explicativas do aumento do número de familiares do Santo Ofício num momento em que a acção
inquisitorial começava a entrar em declínio. Por um lado, esse mesmo declínio justificava que a Inquisição
necessitasse de alargar o seu apoio e reforçar a sua representação fora dos grandes centros urbanos. Por
outro lado, a integração na hierarquia inquisitorial constituía uma garantia de ascensão social e de acesso a
privilégios, factores que se enquadram nas mudanças registadas na sociedade portuguesa no final de
Seiscentos. (Cf. Francisco Bethencourt, História das Inquisições..., pp. 50-51, 122-130). Sobre esta questão,
vide também José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social. A Inquisição como
instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º
40, Outubro 1994, pp. 109-135.
164
proximidade face às populações, eram eles os primeiros alvos do descontentamento de
quem se sentia injustamente reprimido pela máquina inquisitorial.
A 12 de Junho de 1638, o governador Henrique Correia da Silva, em carta endereçada
ao rei, mencionava a situação que o seu primo Lopo Furtado de Mendonça vivia em
Loulé, onde era capitão-mor. Tinham-se registado motins na vila e ele fora alvo da
hostilidade da população669
. Tal devia-se ao seu estatuto de familiar do Santo Ofício e às
muitas prisões ocorridas em Loulé por sua ordem, inclusivamente entre “[...] mulheres de
alguns poderosos e assim os parentes destes [...]”670
.
Uma dessas mulheres era Beatriz Virela, esposa de António da Cunha de Sousa,
capitão de infantaria que colaborava na vigilância dos suspeitos e nas prisões
inquisitoriais na vila. Recordemos que ela fora presa por culpas de judaísmo, apesar de
não ter sido possível provar a sua ascendência cristã-nova. As contraditas do seu
processo referem Lopo Furtado de Mendonça – ele costumava ameaçar a sua família
“[...] com o poder de seu ofício [...]”, razão pela qual o seu marido, o seu pai e o seu tio
Manuel de Barros da Silva escreveram uma carta ao Santo Ofício, na qual se queixaram
do seu comportamento. Desde que teve conhecimento da dita carta, o capitão-mor
passou a difamar publicamente a sua família e a ameaçá-la, dizendo “[...] que a ela, ré, a
tinha atravessada na garganta, dando grandes mostras de gosto se a prendessem e que
havia perseguir seus tios até à sexta geração [...]”671
.
A defesa de Beatriz Virela foi bem sucedida. Desconhecemos até que ponto teriam
pesado as contraditas relativas a Lopo Furtado de Mendonça. Uma outra detenção
providenciada pelo familiar, em 1635, também suscitou polémica. O alvo foi o Padre
Jorge Lopes de Castro, beneficiado da igreja de S. Clemente e com parte de sangue
cristão-novo. Ele era suspeito de planear a fuga para Castela. Afinal, havia anos que a
sua família se encontrava sob a mira da Inquisição. O irmão, Brás de Azevedo, tinha
669
Henrique Correia da Silva referia-se aos motins contra a Monarquia Filipina registados no final da
década de 30. No mês de Setembro de 1637, a população de Loulé obrigou a Câmara a suspender a
cobrança do real de água e a avaliação das fazendas imposta pela coroa. A partir daí, a revolta espalhou-
se por toda a região. Lopo Furtado de Mendonça puniu com veemência os amotinados, o que fomentou o
ódio popular. (Cf. Iria, “O Algarve na Restauração...”, Congresso do Mundo..., pp. 173-174; António de
Oliveira, Levantamentos populares...). 670
Cf. “Carta a Sua Majestade em 12 Junho sobre meu sobrinho Lopo Furtado”, in Iria (ed.), Cartas dos
governadores..., pp. 14-15. 671
Cf. ANTT, IE, proc. 3681, fl. 82. O governador Henrique Correia da Silva, na carta de 12 de Junho de
1638, também se referiu a esta missiva contra Lopo Furtado de Mendonça: “[...] em todas as mais couzas
do officio de capitão mor o indissiarão com Vossa Magestade ou fabricarão couzas de paxão, e contra a
sua honrra, para que cometa algum erro, como pareço que preiurou Manuel de Bairros da Siua para se
poder queixar delle capitão mor a Vossa Magestade [...]” (Cf. “Carta a Sua Magestade em 12 Junho sobre
meu sobrinho Lopo Furtado”, in Iria (ed.), Cartas dos governadores..., p. 15).
165
sido preso no ano anterior672
. Antes, em 1629, o tio paterno Fernão Soeiro caíra nas
malhas do Santo Ofício e, anos depois, também os seus filhos acabaram por conhecer o
cárcere inquisitorial: Manuel da Gama de Pádua, preso em 1637, e Jorge Lopes da
Gama, em 1648, ambos pela Inquisição de Lisboa, cidade onde então residiam673
.
Jorge Lopes de Castro nunca chegou a entrar no cárcere inquisitorial. Esteve preso na
cadeia de Faro mas, em Fevereiro de 1635, já se encontrava de regresso a Loulé. Em
liberdade, ele teria comentado com Tristão do Vale de Mendonça, nobre da governança
da vila, que o seu caso correra as inquisições de Évora e de Lisboa, mas em nenhuma
acharam culpas suficientes para a sua condenação e, por isso, fora solto. Dizia “[...] que
tinha lá, no Santo Ofício, quem lhe favorecia seus negócios [...]”674
. Desde 1630,
acumulavam-se na Inquisição de Évora as delações contra Jorge Lopes. Suspeitas de
Judaísmo e de tentativas de fuga, blasfémias, heresias – foram as conclusões dos
qualificadores675
. Não obstante, os inquisidores mandaram-no soltar. Rodrigo de Ataíde,
também pároco da igreja de São Clemente, referiu que se sabia por toda a vila de Loulé
que Jorge Lopes teria sido avisado sobre o estado do seu processo pelo tio Fernão Soeiro.
Em representação do sobrinho, Fernão Soeiro fora a Évora, “[...] que se gaba que é lá
muito poderoso [...]” e, inclusivamente, falara com o próprio inquisidor-geral676
. Na
prisão, Jorge Lopes também comentara com João Martins Pinto, guarda da alfândega e
então também preso, que havia um ministro da Inquisição de Évora que o favoreceria e,
por isso, lhe remetera uma carta por via de um caminheiro de Faro. Ele teria recebido um
maço de cartas do tio a informá-lo sobre o estado do seu processo, junto com uma carta
do tal ministro, na qual o avisava de que seria solto em breve677
. Os inquisidores
apreenderam uma carta de Jorge Lopes ao tio Fernão Soeiro. Nesta, ele queixava-se dos
aleives que o conduziram aos cárceres e terminava a pedir ao tio que fizesse uma petição
para a sua libertação, alegando que Lopo Furtado de Mendonça e o vigário-geral de Faro
eram seus inimigos capitais678
. De facto, foi apresentada na mesa uma carta acusando o
familiar de ter detido Jorge Lopes ilicitamente e forjado a tentativa de fuga679
.
672
O processo de Brás de Azevedo encontra-se desaparecido. Sabemos da sua prisão através das
informações patentes noutros processos, como o de Belchior Vaz Mostarda, mercador de Loulé,
denunciado por Brás de Azevedo (Cf. ANTT, IE, proc. 328, fl. 6). 673
Sobre os Gama, vide infra, pp. 205-209. 674
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 484-485. 675
Cf. Idem, fls. 435-477. 676
Cf. Idem, fl. 487. 677
Cf. Idem, fls. 489-491v. 678
Cf. Idem, fls. 504-504v. Vide, em anexo, p. 437. 679
Cf. Idem, fls. 507-507v.
166
Não era só da boca dos cristãos-novos que se ouviam censuras à reputação dos
oficiais da Inquisição. Veja-se o caso de João Pessoa, intérprete nas visitas às naus
estrangeiras. Natural de Londres, ele viera ainda em criança para Faro, onde foi criado
na casa do bispo D. Fernão Martins Mascarenhas680
. Em 1632, Francisco Gonçalves de
Sousa, prior da igreja matriz de Faro, escrevia à Inquisição de Évora a reprovar o
comportamento de João Pessoa: aproveitava-se indevidamente dos privilégios de oficial
do Santo Ofício, era “[...] homem de ruim vida e costumes que ordinariamente se turva
de vinho, andando pelas tabernas e em pagodes com gente vil [...]”, além de que estava
casado com uma cristã-nova, Catarina de Tovar. Segundo o prior, tal era alvo de
escândalo em Faro, onde havia “[...] homens muito honrados e cristãos-velhos e podem
servir o dito cargo com muita satisfação e consolação do povo [...]”681
. O Conselho
Geral ordenou que se fizesse uma diligência em Faro sobre estas acusações. Os
testemunhos corroboraram-nas. No mês de Outubro de 1633, quando Catarina de Tovar
foi presa, João Pessoa preparava-se para fugir do reino com a família. No processo da
esposa, ele é mencionado simplesmente como estalajadeiro682
. Possivelmente, já não se
encontrava ao serviço do Santo Ofício.
As acusações contra o intérprete das visitas às naus estrangeiras datam do mesmo ano
em que se iniciou a maior vaga de prisões alguma vez registada na região. Dizia-se que o
Algarve era “terra nova”, cheia de cristãos-novos, e na qual era preciso “abrir judaísmo”.
Bons argumentos que justificam a sucessão de detenções baseadas em alicerces débeis,
em testemunhos passíveis de contradição, não fosse essa premente necessidade de se
proceder a uma entrada em força na região. Abriu-se, então, judaísmo no Algarve? Como
vimos, os números demonstram que não. Na década de 30 de Seiscentos, muitos passaram
pelas mesmas provações que os seus pais e os seus avós também haviam conhecido anos
antes683
. A sombra da mordaça inquisitorial inscrevia-se não só na história da região,
como também nas memórias familiares.
680
Cf. ANTT, IE, proc. 3165, fl. 37. 681
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 146-146v. 682
Cf. ANTT, IE, proc. 6092. 683
São muitos os casos de famílias cujas diferentes gerações foram vítimas da repressão inquisitorial.
Pode-se constatar esta situação através das árvores genealógicas apresentadas em anexo, pp. 121-233.
167
IIII
UUmm ppaannoorraammaa ssoobbrree ooss ccrriissttããooss--nnoovvooss nnoo AAllggaarrvvee
1. RESIDÊNCIA E MOBILIDADE
O constante trânsito entre localidades vizinhas, mas também para lá da serra do
Caldeirão e do rio Guadiana, integrava o quotidiano das gentes do Algarve. Os cristãos-
novos, em particular, herdaram dos seus antepassados a vocação comercial e uma rotina
marcada pela intensa mobilidade. Esta era uma vocação que determinava igualmente o
seu estabelecimento no interior das localidades. No passado, as comunidades judaicas
haviam privilegiado as áreas junto às portas das muralhas e nas proximidades das vias
comercialmente mais movimentadas684
. Partilhando as mesmas actividades sócio-
profissionais, identificando-se com um passado comum, os cristãos-novos teriam
sentido essa mesma necessidade. Contudo, muito mudara entretanto.
Espaços de residência
Isabel Nunes, cristã-nova que, na véspera do Corpus Christi de 1629, estando muito
doente, recusara receber a extrema unção, residia na Rua de Santo António, em Faro.
Era uma rua “[...] em que são raros os cristãos-velhos [...]” – assim informava o Padre
Valeriano Frias, jesuíta que lhe tentara administrar os últimos sacramentos685
. De facto,
encontramos a residir nessa mesma artéria alguns dos cristãos-novos que, durante a
década de 30 do século XVII, estiveram sob a mira do Santo Ofício. Era o caso das
Salgadas686
, mas também de mercadores e artesãos cristãos-novos, como Francisco
684
Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... Século XV..., t. I, p. 44. 685
Cf. ANTT, IE, proc. 5895, fl. 5. 686
Cf. ANTT, IE, proc. 7188, fls. 3v-4.
168
Rodrigues, alfaiate, ou os sapateiros Fernão Gonçalves, José Dias, Belchior Vaz e
Lourenço Álvares687
. Eles não podiam baixar a guarda. Não, quando tinham por vizinho
um familiar do Santo Ofício, Luís Eanes Rasquinho688
.
A Rua de Santo António seguia em direcção a uma outra artéria eleita por muitos
cristãos-novos, a Rua do Rego689
. Ali viviam alguns dos mercadores mais notáveis da
cidade, entre os quais aquele que se dizia o mais rico de todos, Manuel Henriques690
. A
Rua do Rego confluía na Rua Direita, morada do advogado Custódio Mendes691
e de
outros tantos cristãos-novos processados durante a grande entrada da Inquisição na
cidade692
. A vaga de prisões começara não muito longe dali, na Rua da Estalagem693
,
onde residia Branca Dias, entre as casas de Manuel Nunes de Moura e de Manuel
Mendes de Oliveira, mercadores e também cristãos-novos694
. A gente de nação de Faro
concentrava-se ainda noutras artérias, como a Rua da Cadeia, o Poço dos Cântaros ou a
Rua da Sapataria, todas localizadas fora das muralhas da cidade.
Também em Tavira, a maior parte dos cristãos-novos citados na documentação não
residia vila-a-dentro, mas sim na área que seguia da Rua Nova até à Praça da Ribeira e,
para lá do rio Gilão, até à Porta de São Brás695
. Em 1563 e 1564, este espaço da cidade
foi devassado pela perseguição inquisitorial. Junto à Porta de São Brás, vivia o
687
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 121v; proc. 6722, fl. 110-110v; proc. 5063, fls. 50v-51; proc. 1835, fl.
23; proc. 8603, fl. 301. 688
Cf. ANTT, IE, proc. 7334, fl. 9v. 689
Corresponde actualmente à Rua D. Francisco Gomes (Cf. José António Pinheiro e Rosa, Faro do
século XVII: a urbe e a civitas. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1980, p. 6). Vide, em
anexo, mapa 3, p. 91. 690
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 3v-4. Outros mercadores cristãos-novos residentes na Rua do Rego na
década de 30 do século XVII: António Vieira, que vivia junto à Praça Velha (Cf. ANTT, IE, proc. 467, fl.
105v); Matias Afonso (proc. 3208, fl. 63); Vicente Leitão, prioste das rendas do cabido (proc. 3163, fl.
81v); Duarte Fernandes (IL, proc. 9783, fl. 22); e os tendeiros António de Barros (IE, proc. 736, fl. 83v) e
Filipe de Santiago (proc. 6091, fl. 47v). Beatriz Álvares refere também Isabel Simões, com tenda na Rua
do Rego (Cf. ANTT, IE, proc. 4406, fl. 13v). 691
Cf. ANTT, IE, proc. 6954. 692
Eram os casos das cunhadas de Custódio Mendes, Leonor Duarte (ANTT, IE, proc. 5767) e Maria da
Luz Pinta (proc. 7078); de Mécia Craveira (proc. 2733); de Constança Simões (proc. 6091); do alfaiate
João Dias (proc. 8174) e da sua esposa Leonor Correia (proc. 5831). 693
A Rua da Estalagem, tal como é referida na documentação, corresponderia ou à Rua da Estalagem de
S. Pedro (actual Rua do Alportel) ou à Rua da Estalagem Nova (actual Rua do 1º de Maio) (Cf. Pinheiro e
Rosa, Faro do século XVII..., pp. 5-6). Inclino-me mais para esta segunda hipótese, dada a proximidade
da Rua da Estalagem Nova à Rua de Santo António. 694
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 3. 695
Cf. Luís Fraga da Fraga, “Uma planta inédita de Tavira do séc. XVI”, Campo Arqueológico de Tavira,
4 de Abril de 2008 [Consult. 2 Fevereiro 2012] Disponível online: http://
arkeotavira.com/Mapas/Ferrari/noticia-tavira-ferrari-net.pdf. Este artigo refere-se a uma planta de Tavira
da autoria de Leonardo di Ferrari, incluída no chamado “Atlas de Heliche” (titulo original: “Plantas de
diferentes Plazas de España, Itália, Flandres y las Indias”), um conjunto de plantas e planos de fortalezas
do império espanhol composto entre 1642 e 1645. Da análise da planta de Tavira, o autor concluiu que se
trata da cópia de um original de meados do século XVI. Além de Tavira, também aparecem
representadas, no dito atlas, as localidades algarvias de Castro Marim e Lagos.
169
borracheiro Gaspar Lopes. Corria o rumor de que, na sua casa, se reunia um grupo de
cristãos-novos que ali iam ouvir ler a Bíblia, em vernáculo, e falar sobre a vinda
próxima do Messias 696
. Na Ribeira, residia Duarte Lopes Cristino, pelo menos durante
o pouco tempo em que estava na cidade e não a comerciar nas Canárias697
. Era vizinho
de Gonçalo Tojo que, em 1564, depois de ter assistido à prisão dos seus companheiros
de negócio, resolveu se apresentar perante a Inquisição de Lisboa, junto com a esposa,
Isabel Vieira698
. Pela mesma altura, os mercadores Baltazar Dias e Gines Serrão, o
tosador Francisco Dias e o sapateiro Mem Rodrigues também foram obrigados a trocar
as suas casas na Rua Nova pelas exíguas “casinhas” da Inquisição de Lisboa699
.
As “ruas novas” e as “ruas direitas”, principais vias das cidades, animadas pelo
comércio e pelas oficinas dos artesãos, cedo se identificaram com o espaço de residência
da gente de nação700
. De facto, em Lagos, a Rua Direita é das mais citadas. Em 1585,
quando Manuel Álvares Tavares visitou a região, alguns cristãos-velhos ali residentes
denunciaram os seus vizinhos cristãos-novos701
. Já em Seiscentos, as casas da Rua Direita
continuaram a acolher moradores cristãos-novos. Na manhã de 26 de Março de 1623,
Francisco Fernandes percorreu a rua a bradar pela Lei de Moisés702
. Dez anos depois, na
mesma artéria, foi preso o mercador Duarte Mendes, primo de Branca Dias de Faro703
.
Tal como em Tavira, a zona ribeirinha era um outro espaço de eleição dos cristãos-
novos de Lagos, em particular a Praça do Poço do Cano e as suas imediações704
.
696
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 57v. 697
Cf. ANTT, IL, proc. 11981, fl. 4v. 698
Cf. ANTT, IL, procs. 7773, fl. 2v. 699
Cf. ANTT, IL, proc. 5081, fl. 2v; proc. 7310, fl. 9; proc. 8925, fl. 2; proc. 2859, fl. 2. 700
Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, “Judeus e cristãos-novos no distrito de Portalegre”, A Cidade,
Revista Cultural de Portalegre, n.º 3, Jan.-Jun. 1989, p. 39. 701
Aldonça Castro, viúva do escrivão da portagem, referiu os jejuns às quintas-feiras das vizinhas Filipa
Tomás e Catarina Galega. O Padre Bartolomeu Anes Pereira recordou como vira Violante Lopes a
receber uma bênção suspeita da mãe. Catarina Estevens estranhou o comportamento da vizinha Beatriz
Lopes, ao trancar numa câmara da sua casa a filha Guiomar Simões, amaldiçoando-a por ter casado com
um cristão-velho. (Cf. ANTT, IE, proc. 8211; proc. 8844; proc. 8086, fls. 5v-6v). 702
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fl. 6. 703
Cf. ANTT, IE, proc. 4151, fls. 25-25v. 704
A Praça do Cano corresponde à actual Praça Gil Eanes. A presença de cristãos-novos na Praça do
Cano e nas ruas adjacentes é constante ao longo do período estudado. Em meados de Quinhentos, era
nesta artéria que residiam os mercadores Nuno Martins (Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 30v) e Vicente
Fernandes, o Migas (proc. 8484). Já na década de 80, continuava a servir de morada a mercadores
cristãos-novos, como Duarte Dias e Pedro Vaz Pinto (Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 7834). No século
seguinte, viviam nas imediações da Praça do Cano o mercador António Fernandes, o Bezerro, preso em
1626 (Cf. ANTT, IE, proc. 6298, fls. 2-2v) e António Rodrigues Castanho, boticário (Cf. ANTT, IE, mç.
1, doc. 5, fl. 30-30v. Processo: IE, proc. 1030).
170
Tratava-se de um centro nevrálgico, sempre repleto de gente, onde se localizava a fonte
que abastecia a cidade705
.
Também em Vila Nova de Portimão, encontramos muitos cristãos-novos residentes
nas proximidades da Porta da Ribeira706
e nas imediações doutras entradas das
muralhas, em particular da Porta de São João e da Porta da Serra707
. Durante a visitação
de 1585 e nos processos inquisitoriais sequentes, aparece constantemente citada uma
outra artéria – a Rua do Peru. Alguns dos Gramaxo viviam ali, outros nas suas
proximidades, na Rua de São João708
.
Existiria uma continuidade entre os espaços de residência das comunidades judaicas
e os dos cristãos-novos? A resposta não é unívoca, mesmo se alargarmos a nossa
perspectiva a outros espaços. Em Trancoso, segundo Maria José Ferro Tavares, alguns
cristãos-novos mantiveram a sua residência na área da antiga judiaria, que passou a ser
também habitada por cristãos-velhos, enquanto outros se disseminaram por outras
artérias da vila709
. A mesma situação registou-se em Elvas710
. Por outro lado, na vila de
Melo, José Pedro Paiva notou a existência de uma segregação espacial, concentrando-se
705
“Dentro da cidade está ũa fonte d‟água (a que chamam o cano), feita de pedraria, à maneira de
pirâmide, e no alto acaba por remate, com ũa esfera de pedra dourada. Corre por outo bicas, e sobeja água
para se lavar roupa miúda, e vai dar ao mar. E junto dela está um chafariz, em que bebem os cavalos e
bestas de servidão, e vem esta água por um cano de pedra e cal, de ũa fonte abundante que está no sítio do
Paul, dous terços de légua da cidade. [...] Antigamente havia em Lagos poços, de que bebiam, que se
entupiram por serem desnecessários, depois que nele se meteu esta fonte.” (Cf. Sarrão, “História...”, Duas
Descrições..., pp. 143-144). 706
A Porta da Ribeira ficaria entre as actuais Praça Visconde Bívar e Rua Júdice Fialho (Cf. Natércia
Magalhães, Algarve. Castelos, Cercas e Fortalezas, Faro, Letras Várias, 2008, p. 189). Na documentação,
surgem várias referências a cristãos-novos residentes na Rua da Alfândega (ou Rua dos Pescadores, como
também é designada), a qual desembocava na Porta da Ribeira. Nas últimas décadas de Quinhentos,
viviam ali os mercadores Manuel Tinoco e Pedro Mendes (Cf. ANTT, IE, procs. 8043 e 1491); Luís
Gonçalves, tosador (IE, proc. 7912); Clara Álvares, esposa de João Lopes, cristão-velho (IE, proc.
10546); e as irmãs Isabel Jorge e Inês Martins (IE, proc. 8654). 707
A Rua da Porta da Serra é um dos poucos topónimos ainda hoje sobreviventes. Em meados de
Quinhentos, vivia nas proximidades desta porta, da “banda de dentro”, Grácia Mendes, a denunciante que
fez deflagrar a primeira entrada da Inquisição na vila. Ela denunciou alguns dos seus vizinhos: o tio Manuel
Mendes; Simão Nunes e a mulher Grácia Mendes; Beatriz Rodrigues e a filha Inês Pousada; Mor Rodrigues,
a filha Catarina Mendes e o genro Luís Fernandes (Cf. ANTT, IL, proc. 10964). Já no final do século, tinha
ali residência Cristóvão Rodrigues, patriarca de um dos ramos da família Barros (Cf. ANTT, IE, proc.
6009), tal como os ferreiros Afonso de Arouca e Manuel Fernandes (Cf. ANTT, IE, procs. 4341 e 9408). 708
Residiam na Rua do Peru, os casais Nicolau Martins e Beatriz Gramaxo, e Fernão Martins e Isabel
Gramaxo, cujas filhas acabariam por ser presas durante a vaga de prisões de finais de Quinhentos (Cf.
ANTT, IE, proc. 4603, fls. 3-4). Abaixo da Rua de S. João, vivia uma das filhas de Nicolau Martins, Ana
Gramaxo, casada com Francisco Nunes de Sousa (Cf. ANTT, IE, proc. 767, fl. 3). Não nos foi possível
identificar a localização exacta da Rua do Peru, porém as fontes revelam que esta se localizaria nas
proximidades da Porta de S. João (a “porta da vila”, como também aparece na documentação). 709
Cf. Maria José Ferro Tavares, “Os judeus da Beira interior: a comuna de Trancoso e a entrada da
Inquisição”, Sefarad, vol. 68:2, Julho-Dezembro 2008, p. 391. 710
Cf. Ferro Tavares, “Judeus... Portalegre”, A Cidade..., p. 46; Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os
Cristãos-Novos de Elvas no Reinado de D. João IV. Heróis ou Anti-Heróis?. Dissertação de Doutoramento
em História apresentada à Universidade Aberta. Lisboa, 2003, exemplar policopiado, pp. 172-173.
171
os cristãos-novos em áreas onde a presença cristã-velha rareava711
. Em Viseu de finais
do século XVI, os cristãos-novos continuavam a ocupar o espaço na cidade que, na
centúria anterior, servira de residência à comunidade judaica712
.
No Algarve, não verificamos uma continuidade tão acentuada. A judiaria de Tavira
localizava-se intra-muros, aquém da Porta de Afeição, no local onde mais tarde foi
erigido o convento de Nossa Senhora da Graça713
. Mas, entretanto, a vila, depois cidade,
crescera para lá das muralhas e, sobretudo, em direcção à beira-rio, animada por uma
actividade mercantil florescente na primeira metade de Quinhentos. Assim, nos anos 60
do século XVI, muitos cristãos-novos já haviam abandonado as muralhas e se
estabelecido numa área economicamente mais promissora.
Era igualmente vila-a-dentro onde se localizava a judiaria de Faro, no espaço que
deu lugar ao convento de Nossa Senhora da Assunção714
, portanto, sem correspondência
com as ruas de Santo António ou do Rego, privilegiadas pelos cristãos-novos mas sitas
fora das muralhas. A rua de Santo António contornava o espaço que, no passado, fora
reservado à mouraria. Alguma bibliografia pondera mesmo a hipótese da judiaria de
Faro ter-se localizado a sul desta artéria715
, o que implicaria a existência de dois bairros
judaicos na cidade, algo não corroborado pela documentação. Porém, esta área da
cidade não seria estranha aos judeus – a rua de Santo António culminava nas alcaçarias,
espaço de comércio frequentado pelas duas minorias.
711
Cf. Paiva, “As entradas... Melo...”, RHI, p. 191. 712
Cf. Maria Teresa Gomes Cordeiro, Adonai nos cárceres da Inquisição. Os Cristãos-Novos de Viseu
Quinhentista, Viseu, ARQUEOHOJE, 2010, pp. 116-117. 713
Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, Os judeus...século XV, p. 72. A igreja do convento foi erigida
no local onde se encontrava a sinagoga. Arnaldo Casimiro Anica coloca mesmo a hipótese das paredes
laterais da igreja ainda pertencerem à antiga sinagoga (Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu termo.
Memorando Histórico, vol. II, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 2001, p. 86). Vide também J.
Fernandes Mascarenhas, “Ainda os judeus em Tavira. A judiaria e o Convento da Graça”, Correio do Sul,
n.º 3068, ano LXI, 11 de Setembro de 1980. Actualmente, o convento integra a rede de Pousadas de
Portugal (Tavira Historic Hotel). 714
Em 1553, num auto de avaliação de umas casas tomadas para a construção do convento de Nossa
Senhora da Assunção, as testemunhas inquiridas referiram que estas se encontravam no local da antiga
judiaria. Sobre esta demanda, declarou Soror Beatriz, a abadessa do convento “[...] que é verdade que
no cartório deste mosteiro fica um título de venda que Joana Simões, filha de Inês Afonso, defunta, fez
ao dito convento de uma casa e câmara, com quintal e poço, que por morte da dita Inês Afonso lhe
ficou, dentro neste mosteiro, onde era a judiaria desta cidade, que é agora onde está a portaria do dito
mosteiro [...]” (Cf. ANTT, Corpo Cronológico, mç. 98, doc. 112). Referido em: João Alberto Carvalho
Marques, O convento de Nossa Senhora da Assunção de Faro. Dissertação de mestrado apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, exemplar policopiado, pp. 97-99. 715
Cf. Rui M. Paula e Frederico Paula, Faro. Evolução urbana e património, Faro, Câmara Municipal de
Faro, 1993, p. 62, 182. Segundo os autores, a Rua de Santo António dividia a mouraria, a Norte, da judiaria,
a Sul. José António Pinheiro e Rosa também lança a hipótese da judiaria localizar-se nas proximidades das
alcaçarias (Cf. José António Pinheiro e Rosa, “Faro em 1349”, AMF, vol. XV, 1985, p. 37).
172
Quanto à judiaria de Vila Nova de Portimão, ainda não foi possível identificar a sua
localização. Talvez se situasse no espaço da Rua Nova – assim pondera a
bibliografia716
. Ou, quiçá, localizar-se-ia na área da Rua do Peru, pelo nome, também
uma “rua nova” em meados do século XVI. Porém, também aqui não contamos com
documentos que suportem esta hipótese. Mas, olhando para os espaços ocupados pelos
cristãos-novos, verificamos que estes se concentram nas proximidades das portas das
muralhas, em três áreas distintas da vila. Se alguns se mantiveram na mesma zona
ocupada pelos antepassados judeus (considerando a dita hipótese, junto à Porta da
Ribeira), outros teriam passado a residir noutros espaços.
As mesmas dúvidas colocam-se em relação à judiaria de Lagos. Segundo a
documentação, esta encontrava-se inicialmente confinada a uma única rua que, devido
ao aumento da população judaica, revelou-se insuficiente para albergá-la na totalidade,
obrigando ao seu alargamento. Assim surgiu a judiaria nova, numa azinhaga “entre as
casas da dita judiaria e cristandade”717
. Antes, os judeus haviam tentado estabelecer-se
numa das principais ruas da vila “[...] acerca da dita judiaria e em ela muitos judeus
tinham as casas de seu serviço [...]”, causando o escândalo da população cristã718
.
Possivelmente, o documento refere-se à Rua Direita, principal artéria comercial da vila
e onde, no século seguinte, já sem restrições, nem o escândalo de outrora, muitos
cristãos-novos se fixaram. Portanto, não muito retirados do espaço das antigas judiarias.
A continuidade residencial era previsível. As casas passavam de geração para
geração e muitos residiam no mesmo sítio que servira de lar aos pais e aos avós.
Herdavam as casas, mas também as lojas, as tendas, enfim, os espaços de trabalho. Mas
as cidades e as vilas evoluíram e outras áreas emergiram enquanto foco de interesse
comercial. Para quem vivia da mercancia e dos mesteres nos séculos XVI e XVII, nem
sempre a localização das antigas judiarias se revelava a mais interessante para o
desenvolvimento dos negócios. Com a conversão e, por conseguinte, com a abolição
dos limites colocados à residência, os cristãos-novos puderam, finalmente, escolher o
espaço que melhor lhes convinha. O caso de Tavira é paradigmático. Uma geração após
a conversão geral, os cristãos-novos já se tinham mudado para lá das muralhas, em
direcção à zona ribeirinha.
716
Cf. Maria da Graça Mateus Ventura e Maria da Graça Maia Marques, Portimão, Lisboa, Editorial
Presença, 1993, p. 14. 717
Cf. ANTT, Leitura Nova, Odiana, liv. 1, fls. 213v-214. Vide também Iria, “O Infante D. Henrique...”,
Anais..., pp. 304-312; Ferro Tavares, Os Judeus... século XV..., p. 71. 718
Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 68.
173
Portanto, na hora de eleger o espaço de residência, o pragmatismo pesou mais do
que a tradição. Perante a expectativa de melhores negócios e de uma eventual
valorização social, a casa dos antepassados era abandonada em prol doutra localizada
num espaço mais convidativo. Porém, algo é constante – quer pela partilha de
actividades económicas comuns, quer pelos laços sociais estabelecidos, os cristãos-
novos continuavam a concentrar-se em determinadas áreas, até quando estas já não
coincidiam com as das antigas judiarias.
Trânsito a Sul
Mais de um terço dos cristãos-novos processados durante o período estudado não
era natural da localidade onde residia no momento da prisão. Nos processos decorridos
nas décadas de 50 e 60 do século XVI, esse valor ascende quase aos 50%. A maior parte
provinha doutras localidades do Algarve e, sobretudo, das mais próximas da cidade ou
vila de residência719
. A Barlavento, era corrente a circulação entre Lagos, Vila Nova de
Portimão e Silves, enquanto que a Sotavento, Faro, Tavira e Loulé formavam um outro
triângulo de constante trânsito de pessoas, mercadorias e informação.
O deão Diogo Lopes, ao justificar porque afirmara, durante um sermão, que Jesus
Cristo não estivera três dias inteiros no sepulcro, deu o seguinte exemplo: “Quem vai
daqui [Faro] a Tavira e chega sexta-feira à tarde, e dorme aquela noite lá, e negoceia
sábado, e se levanta à meia noite e parte para cá outra vez, não está duas noites lá”720
.
Ir a Tavira em negócios era prática corrente entre os mercadores de Faro. Com o
mesmo intento, muitos também rumavam a Norte, para lá da serra. A comunicação
entre o Algarve e o Alentejo, embora não fosse simples, não deixava de ser constante.
Aliás, entre os processados durante as décadas de 50 e 60 do século XVI, mais de um
quinto provinha do Alentejo.
A circulação entre as duas regiões concretizava-se, preferencialmente, por via
terrestre. Mas os obstáculos encontrados pelo viajante eram inúmeros, desde a serra,
difícil de atravessar, até aos caminhos em terra batida e sujeitos à inconstância das
condições climatéricas. Raros eram os que permitiam a circulação de carros e, nos
Invernos mais rigorosos, muitas vias ficavam interrompidas. Por outro lado, havia a
719
Vide, em anexo, gráfico 7.1, p. 105. 720
Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fl. 6. Vide supra, p. 62, e infra, p. 302.
174
insegurança, o perigo do assalto que ia para lá do caminho e continuava nas estalagens,
onde nem a bolsa, nem a alma estavam a salvo721
.
Na Idade Média, uma rede de caminhos, em estado sofrível, partia de Lagos,
Faro e Tavira, atravessava a serra e chegava a Ferreira do Alentejo, Beja e Évora722
.
Estas ligações entre o litoral algarvio e o Alentejo mantiveram-se durante a Era
Moderna. D. Pedro Rodriguez de Campomanes, na sua Noticia geografica del reyno
y caminos de Portugal, enumera os caminhos que, no século XVIII, cortavam o
Algarve do litoral à serra. Um seguia junto ao Guadiana e ligava Tavira a Giões, perto
de Alcoutim, em direcção a Mértola. Quem saía de Tavira ou de Faro poderia também
tomar o caminho rumo a São Brás de Alportel e dali até ao Ameixial, já próximo do
limite norte do Algarve. Outra opção era seguir por Loulé e depois tomar a mesma
direcção até Corte Figueira. A partir de Albufeira, o interior algarvio era cortado por
uma outra estrada que rumava a São Brás de Alportel e dali a São Marcos da Serra, já
na passagem para o Alentejo. A barlavento, Lagos e Vila Nova de Portimão
comunicavam com o Alentejo através de duas vias: uma mais interior, atravessando a
serra de Monchique, e outra pela costa, por Bensafrim e Aljezur até Odeceixe723
. Foi
esta a via pela qual D. Sebastião, em 1573, entrou no Algarve: seguiu até Lagos e, nos
dias seguintes, cortou a região até ao extremo oriental, passando por Vila Nova de
Portimão, Monchique, Silves, Albufeira, Loulé, Faro, Tavira e Castro Marim. No
regresso, embarcou pelo Guadiana até Alcoutim724
.
No período estudado, a quantidade de alentejanos estabelecidos ou de passagem
pelas cidades e vilas algarvias revela como as oportunidades de negócio constituíam um
atractivo suficiente para superar os obstáculos à circulação. A comunicação fazia-se nos
dois sentidos. Os exemplos são vários: o filho de André Carrilho, lavrador de Silves, foi
preso em Évora, quando andava à procura de trabalho725
; Beatriz Lopes nasceu em
Lagos, de onde era originária toda a sua família, mas casou em Beja726
; Nicolau
Fernandes, natural de Messejana e criado em Odemira, aprendeu o ofício de sirgueiro
721
Cf. José Marques, “Viajar em Portugal nos séculos XV e XVI”, Revista da Faculdade de Letras.
História. Universidade do Porto, II série, vol. XIV, 1997, pp. 95-98. 722
Cf. Humberto Baquero Moreno, A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-
regionais portuguesas nos fins da Idade Média, Porto, Brasília Editora, 1979, pp. 54-55. 723
Cf. D. Pedro Rodriguez Campomanes, Noticia geografica del reyno y caminos de Portugal, Madrid,
Oficina de Joachin Ibarra, 1762, pp. 196-215. 724
Cf. Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo..., 1984. 725
Cf. ANTT, IE, proc. 6779. 726
Cf. ANTT, IL, proc. 1325.
175
em Lisboa e vivia em Vila Nova de Portimão727
. Encontramos, assim, famílias divididas
entre as duas regiões, o que ainda consolidava mais essa comunicação.
Quem vivia da mercancia, percorria sazonalmente os caminhos que ligavam o
Algarve ao Alentejo. Sobretudo nos meses de Verão e de Outono, as feiras animavam a
região. Mercadores, almocreves, mas também artesãos galgavam léguas e léguas, de
feira em feira. Pedro Gomes, de Beja, recordou como, em Outubro de 1613, depois de
ter estado na feira de Santa Bárbara, em Campo de Ourique, partiu até Faro, para
participar da feira de Santa Iria728
. No caminho, encontrou Manuel Mendes do Óculo,
que também costumava frequentar a feira de Nossa Senhora da Luz, no termo de Tavira,
realizada entre 6 e 8 de Setembro729
. Na cidade, havia ainda uma outra feira, a da
Virgem Nossa Senhora, a qual se prolongava por três meses, de Setembro a Novembro,
e era a principal da região730
. Entre o final de Outubro e inícios de Novembro, a feira de
Silves também era prolixamente frequentada por mercadores doutras partes do Algarve
e do Alentejo. Luís Lopes, mercador de Lagos, no final da feira de 1588, ter-se-ia
reunido com outros cristãos-novos num açougue perto do terreiro que servia de
hospedagem aos feirantes – alguns provinham de Vila Nova de Portimão, outros de
Lagos, tal como ele, mas também havia quem chegasse de Beja ou mesmo de Évora731
.
As feiras eram espaços propícios à troca não só de mercadorias, como também de
informações. Aos ouvidos de alguns cristãos-novos, a quem o ofício obrigava a passar
longas temporadas longe de casa, chegavam os alarmes de que a Inquisição entrara na
sua terra732
. Perante tais notícias, havia quem não regressasse. Mudavam o destino
planeado e seguiam uma outra rota. Frequentemente, para lá da fronteira.
727
Cf. ANTT, IE, proc. 4056. 728
A feira de Faro começava no dia de Santa Iria, a 20 de Outubro, e, de 6 em 6 anos, era feira franca.
Segundo José António Pinheiro e Rosa, foi criada na sequência do ataque do Conde de Essex a Faro, em
1596, com o intuito de reanimar a actividade mercantil. (Cf. José António Pinheiro e Rosa, A feira de
Santa Iria quase quadricentenária. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1981; José António de
Jesus Martins, A feira de Faro / feira de Santa Iria (Subsídios para a sua história). Separata de O
Algarve, Faro, 1985). 729
Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fls. 36v-37, 48v; proc. 484, fl. 37. 730
A feira de Tavira foi criada em 1491 e durava desde o início de Setembro até 19 de Outubro. A partir
de 1579, o período de feira franca foi prolongado por três meses, visando uma revitalização da economia
da cidade (Cf. Carminda Cavaco, O Algarve Oriental...., p. 52; Damião Augusto de Brito Vasconcelos,
Notícias Históricas de Tavira 1242-1840. Prefácio, notas e apêndice de Arnaldo Casimiro Anica, Tavira,
Câmara Municipal de Tavira, 1989, p. 164). Vide também a carta de D. João III, de 10 de Março de 1550,
na qual se determinavam os direitos que os mercadores haviam de pagar na feira de Tavira (Cf. Academia
das Ciências de Lisboa, cod. 402, fls. 353v-358v). 731
Cf. ANTT, IE, proc. 7966 (Trata-se de uma denúncia do processo de Diogo Fernandes. O processo de
Luís Lopes encontra-se desaparecido). 732
Por alturas do dia de S. Brás de 1559, Tomás Gomes, de Silves, encontrou na feira de Vila Viçosa uns
almocreves de Loulé, a quem pediu notícias da sua terra. Não eram as melhores: em Silves e Vila Nova
de Portimão, o Santo Ofício detivera 25 a 30 cristãos-novos. (Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fl. 32v).
176
E Castela aqui tão perto
Viajar por terra até Castela revelava-se mais simples do que atravessar a serra rumo ao
Alentejo. As estradas do litoral eram mais acessíveis e a única barreira física, o Guadiana,
transpunha-se facilmente de barco. Por mar, circulavam quotidianamente embarcações
entre as costas do Algarve e da Andaluzia, na sequência das actividades piscatória e
mercantil. Por vezes, eram as mesmas embarcações que saíam para a pesca as que
transportavam mercadorias entre os portos portugueses, castelhanos e norte-africanos,
muitas ilicitamente. Aliás, o contrabando tinha um peso substancial na economia de um e
doutro lado do Guadiana. Os paralelismos entre as duas regiões eram inúmeros – a
paisagem, os recursos naturais, a demografia, a economia – e desde a Idade Média que os
laços entre o Algarve e a Andaluzia ultrapassavam os limites políticos733
.
Para os cristãos-novos, outros obstáculos levantavam-se. Periodicamente, as
interdições à saída do reino limitavam a circulação para Castela que, para muitos,
tornara-se essencial ao desenvolvimento da sua actividade profissional. As metrópoles
andaluzes constituíam um dos principais mercados para a produção algarvia e poucos
seriam os comerciantes que circunscreviam os seus negócios ao Algarve. No final de
1627, João Fernandes Guterres estava em Sevilha a vender figo734
. Também para
comerciar figo e outras mercadorias, Pedro de Seixas teria passado cerca de quatro
meses (do final de Outubro de 1632 até Fevereiro de 1633) em Sanlúcar de Barrameda.
Anos antes, entre Dezembro de 1629 e Março de 1630, estivera em Valença, vendendo
sardinha735
. Figo, sardinha, mas também atum, vinho e amêndoa seguiam, por terra ou
por mar, rumo às cidades andaluzes.
As trocas com Castela extravasavam a produção regional. Os mercadores do
Algarve, em constante périplo pelo reino, revendiam além-fronteira produtos adquiridos
noutros espaços do reino. Era o caso de Marcos Gomes, tratante natural de Vila do
Conde mas estabelecido em Tavira, que ia até terras do bispado de Lamego comprar
castanha para vender em Sevilha e Cádis736
.
Nas cidades castelhanas, adquiriam-se as mercadorias que escasseavam na região.
Cristóvão Rodrigues, por volta de 1563, foi a Sevilha e a Cádis comprar coirama. João
733
Vide Alberto Iria, “O Algarve e a Andaluzia no século XV. Documentos para a sua história (1466-
1480)”, Anais. Academia Portuguesa da História, II série, vol. 23, tomo I, 1975, pp. 11-84. Para o
período moderno, vide também Serrano Mangas, La Encrucijada..., pp. 37-49. 734
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 177. 735
Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 78v. 736
Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 24v-25. Vide em anexo, p. 272.
177
Dias, morador em Jerez de la Frontera, dera-lhe uma carta destinada ao irmão, Baltazar
Dias, então homiziado em Cádis737
.
De facto, desde meados de Quinhentos que encontramos cristãos-novos algarvios a
residir nas metrópoles andaluzes. O ritmo da emigração para Castela cresceria nas
décadas seguintes, sobretudo na sequência da União Ibérica. A multiplicação dos
processos de judaísmo movidos contra cristãos-novos portugueses nos tribunais da
Inquisição castelhana revela o acréscimo desse movimento migratório a partir da década
de 20 do século XVII738
.
Segundo Pilar Huerga Criado, a perseguição inquisitorial constituiu um impulso à
partida de Portugal, mas não a causa principal. A escolha do destino era, sobretudo,
determinada pelos interesses económicos, a que se juntavam outros estímulos, como a
possibilidade de contornar mais facilmente os estatutos de limpeza de sangue739
.
No caso do Algarve, a repressão inquisitorial teria desempenhado um papel mais
determinante no processo de emigração. No final do século XVI e inícios do seguinte,
Vila Nova de Portimão sofreu uma vaga migratória, com reflexos na demografia. Tinha,
então, atingido um pico demográfico: 920 fogos em 1591. Trinta anos depois, esse
número reduziu para 700 e, a partir de então, foi sempre a decrescer até meados do
século XVIII740
. Já na década de 30 de Seiscentos, encontramos um número expressivo
de naturais de Vila Nova de Portimão a residir em Faro. Outros optaram por abandonar
Portugal. Em 1613, na relação dos cristãos-novos ausentes do reino, Vila Nova de
Portimão superou qualquer outra localidade algarvia no número de indivíduos citados.
Barros e Gramaxo foram os sobrenomes mais repetidos ao longo do rol741
. Mas Barros e
Gramaxo também haviam sido, pouco mais de vinte anos antes, os sobrenomes mais
citados nos processos levantados contra os cristãos-novos residentes na vila.
Em meados de Seiscentos, encontramos uma situação similar em Faro. Embora haja
notícia de cristãos-novos oriundos da cidade algarvia estabelecidos na Andaluzia num
737
Cf. ANTT, IE, proc. 6009. 738
Num levantamento dos processos contra judaizantes portugueses no tribunal da Inquisição de Córdova,
Dinacy Lhamby verificou como, até ao final do século XVI, estes raramente se aproximaram de uma
dezena por ano, enquanto que, em 1625, 57 cristãos-novos portugueses foram processados pelo tribunal e,
em 1627, esse número ascendeu aos 69. (Cf. Dinaci Lhamby, “Los Judios Portugueses en el Tribunal
Inquisitorial de Córdoba”, Comunicações apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre
Inquisição, realizado em Lisboa, de 17 a 20 de Fevereiro de 1987, Lisboa, Sociedade Portuguesa de
Estudos do Século XVIII, 1989, pp. 417-422). 739
Cf. Huerga Criado, En la raya..., p. 43. 740
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 741
Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618.
178
período anterior742
, foi a partir da década de 30 que esse movimento se intensificou
exponencialmente. Não é possível traçar um cenário exacto sobre os números dessa
emigração, apenas contamos com indícios. Da longa lista de cristãos-novos de Faro a
quem foi dada ordem de prisão em 1636, a maioria já não se encontrava no Algarve743
.
Na alfândega da cidade, não havia como recuperar o dinheiro devido à fazenda real, o
qual andava “[...] por mãos dos mercadores, e alguns ausentes e não sei se já fugitivos
com o medo da Inquisição [...]” – lamentava o governador Henrique Correia da Silva,
em 1638744
. Os registos de baptismos e de casamentos das duas freguesias urbanas de
Faro (Sé e S. Pedro) não evidenciam variações significativas durante este período745
.
Mas, por volta de 1634, Baltazar Gonçalves Navarro, escrivão das execuções de Loulé,
teria ouvido um desabafo do primo Rui Lopes, sapateiro em Faro: «Venho enfadado de
ver as prisões de Faro e na minha rua estão todas as portas fechadas»746
.
A partir dos anos 30, a população de Faro sofreu um decréscimo – dos 1398 fogos,
em 1631, para os 1038, em 1672747
. Seria redutor apontar a acção inquisitorial como
única causa dessa queda. Como evidencia Romero Magalhães, o fôlego com que as
cidades algarvias cresceram ao longo do século XVI e no início da centúria seguinte
começou a perder-se a partir da segunda metade de Seiscentos, fruto de uma conjunção
de factores económicos, sociais e políticos: a crescente insegurança no litoral, a
depressão comercial, o incremento do sector agrícola, a crise das almadravas do atum.
Porém, a emigração de parte de um grupo maioritariamente vinculado às actividades
que alicerçavam a economia urbana não terá sido inócua748
.
742
Preso em 1636, Pedro Amado, na sua confissão, recordou o tempo que passara em Sevilha, por volta
de 1620, a completar os seus estudos de Medicina. Então, já se encontrava ali estabelecido o seu tio
Gaspar Rodrigues, dono de uma botica junto à Carneceria Mayor (Cf. ANTT, IE, proc. 1833). Entre 1557
e 1587, Leonor de Caminha, natural de Estoi, viveu em Cádis. Fora para a cidade castelhana após ter-se
casado com Fernão Ximenes, cristão-novo natural da Covilhã. A sua mãe, Guiomar Lopes, e a sua irmã,
Inês de Caminha, também se estabeleceram em Cádis. Ali, viviam outros parentes, nomeadamente Mécia
Lopes, Branca Lopes e Maria Rodrigues, irmãs de Gaspar Lopes, marido de Inês de Caminha (Cf. ANTT,
IL 5498, fls. 6-11v, 60-61v). 743
Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fls. 2-5; proc. 309. Vide, em anexo, gráfico 4, p. 98. 744
Cf. Iria (ed.), Cartas do governadores..., pp. 23-24. Por alturas do dia de S. Brás de 1559, Tomás Gomes,
de Silves, encontrou na feira de Vila Viçosa uns almocreves de Loulé, a quem pediu notícias da sua terra.
Não eram as melhores: em Silves e Vila Nova de Portimão, o Santo Ofício detivera 25 a 30 cristãos-novos. 745
Num levantamento dos registos de baptismo e de casamento das paróquias de S. Pedro e da Sé, para o
período compreendido entre 1610 e 1660, os dados não são conclusivos, como se poderá ver em anexo,
gráfico 5, p. 99. (Cf. Arquivo Distrital de Faro (ADF), Paróquia da Sé de Faro, série 1, livs. 1-3; série 2,
liv. 1; série 3, liv. 1; ADF, Paróquia de S. Pedro de Faro, série 1, livs. 1 e 2). 746
Cf. ANTT, IE, proc. 6208, fl. 37. 747
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 748
Cf. Idem, Ibidem.
179
Mas deixemos o local de partida e regressemos ao destino. Basta-nos olhar para as
genealogias dos processos inquisitoriais para verificarmos os resultados desse
movimento emigratório. Álvaro Gonçalves, sapateiro de Faro que, regressado de
Castela, se apresentou perante a Inquisição de Évora, a 18 de Setembro de 1647, referiu
um tio que faleceu em Cádis, um outro que vivia em Utrera, uma irmã a residir em
Aiamonte e outra em Huelva. E descreveu assim o seu percurso após a partida de Faro:
oito meses em Aiamonte, três em Huelva, mês e meio em Moguer, seis meses em
Sanlúcar de Barrameda, um em Utrera e quinze dias em Granada749
. Preso em 1639,
Belchior Martins tinha os pais a viver em Aiamonte, um primo a aprender o ofício de
barbeiro em Sevilha e um irmão frade nas Índias de Castela. Ele próprio, que rondava os
20 anos de idade, alegou que andava no mar havia 10, em viagens entre Lisboa, Sevilha
e “outros portos do Estreito”750
.
Geralmente, o processo migratório sustentava-se na rede familiar. Eram poucos os
que chegavam ao destino sem um parente, mais ou menos próximo, ali estabelecido e
capaz de prestar o apoio necessário. Veja-se o caso de Bárbara Fernandes, esposa de
Diogo de Tovar, que tentou fugir, sem sucesso, rumo a Cádis, para junto do filho mais
velho, Manuel de Tovar751
; ou o de Inês Costa, mulher de Manuel Henriques, melhor
sucedida na sua partida para Sevilha, onde residia a cunhada Isabel Soares752
.
Portanto, nos anos 30 e 40 de Seiscentos, encontramos várias famílias cristãs-novas,
com raízes no Algarve, estabelecidas em Cádis, Moguer, Huelva, Sanlúcar de
Barrameda, Aiamonte e Sevilha. José Luis Sánchez Lora concluiu que, num total de
2981 casamentos realizados nas paróquias de Aiamonte entre 1600 e 1649, em 1321 os
noivos eram estrangeiros – destes, 832 eram portugueses, sendo que 369 provinham do
Algarve753
. Em Sevilha, segundo um recenseamento de 1642, viviam 3808 famílias
portuguesas, representando cerca de 12% da população total da cidade754
.
749
Cf. ANTT, IE, proc. 2258, fls. 18-20v. 750
Cf. ANTT, IE, proc. 4402, fls. 1v-4. 751
Cf. ANTT, IE, proc. 6725, fls. 61-62. 752
Cf. ANTT, IE, proc. proc. 8603, fls. 9v-10, 67. 753
Cf. Jose Luis Sánchez Lora, Demografia y Análisis Histórico. Ayamonte, 1600-1860, Huelva, Servicio
de Publicaciones de la Diputación de Huelva, 1987, pp. 144-146, apeid Serrano Mangas, La
Encrucijada..., p. 37. 754
Cf. Santiago de Luxán Melendez, “A Colónia Portuguesa de Sevilha. Uma Ameaça entre a
Restauração Portuguesa e a Conjura de Medina Sidónia?”, Penélope. Fazer e desfazer a História, n.º
9/10, 1993, p. 130.
180
Grande porto comercial da Andaluzia e “a verdadeira capital de Espanha”,
económica e culturalmente, como refere Dominguez Ortiz755
, Sevilha funcionava como
placa giratória para as Índias de Castela, onde, apesar da repressão inquisitorial e das
restrições legislativas aplicadas aos mercadores estrangeiros, as expectativas de negócio
apresentavam-se atractivas e os obstáculos contornáveis. O desenvolvimento de Sevilha,
aliás, o de toda a Andaluzia, durante os séculos XVI e XVII, foi indelevelmente
marcado pelas relações com o continente americano756
. Dada a proximidade e
identidade entre os dois espaços, o Algarve também beneficiou dessa relação através da
actividade comercial (e, sobretudo, do contrabando) dos seus mercadores, quer os que
se mantiveram na região, quer os que se fizeram ao mar, rumo ao outro lado do
Atlântico, uns e outros em constante permuta de mercadorias: as da Europa, as da
América e as de África. Algarve e Andaluzia constituíam os dois vértices do que
Fernando Serrano Mangas apelida de “prodigioso triângulo da rebeldia”757
. O outro era
a América Castelhana.
Retratos da diáspora
Origem: Vila Nova de Portimão. Destino: Índias
Há um destino que se repete insistentemente no rol dos cristãos-novos ausentes de
Vila Nova de Portimão, em 1613 – as Índias de Castela. Em Cartagena, vivia Jorge
Fernandes Gramaxo, “muito conhecido nas Índias” e com “mais de 150 mil cruzados”.
Um tio, Álvaro Gramaxo, que “dizem que terá de seu 5 ou 6 mil cruzados”, tinha-se
estabelecido não muito longe, na Laguna de Malacaio, costa de Terra Firme, onde
também vivia Gabriel Dias, então com cerca de 60 anos. Também em Cartagena,
encontravam-se Mor Álvares, a Gramaxa, e António de Barros, sapateiro “muito
conhecido naquela cidade”, irmão de Manuel de Barros, “mercador muito rico”,
estabelecido no Panamá. Um primo, António de Barros, morava em Pobla dos Anjos ou
na cidade do México, e um outro António de Barros, também parente, havia 20 anos
755
Cf. Antonio Domínguez Ortiz, Los Judeoconversos en la España Moderna, Madrid, Editorial
MAPFRE, 1993, pp. 183-184. 756
Vide Pierre Chaunu, Séville et l’Amérique, Paris, Flammarion, 1977. 757
Cf. Serrano Mangas, La Encrucijada..., p. 37. O autor refere-se ao intenso contrabando entre o
Algarve, a Andaluzia e a América Castelhana, mas também aos profundos laços económicos e sociais que
ligavam o povo andaluz ao algarvio, mesmo que à margem das fronteiras políticas.
181
que partira de Vila Nova de Portimão para as Índias, fixando-se em Santo Domingo.
Ainda são mencionados, na lista de 1613, os irmãos Manuel e Francisco Rodrigues, o
primeiro na Guatemala, o segundo no Peru e entretanto já falecido; Francisco da Gama,
mercador em Cartagena; e mais um par de irmãos, Francisco Luís, na Guatemala, e
Manuel de Sousa, em Havana758
.
Uns tinham partido de Vila Nova de Portimão havia 30 ou 20 anos, outros mais
recentemente. Parte provinha de famílias atingidas pela vaga de prisões que abalara a
vila nas últimas décadas de Quinhentos. Mor Álvares, a Gramaxa, fora presa em 1588 e
permaneceu nos cárceres de Évora durante mais de um ano. Com mais sorte que a irmã
Inês Nunes, relaxada à justiça secular em 1588, foi-lhe levantada a pena em 1592 e,
passados 5 anos, já estava de partida para as Índias759
.
Os testemunhos de mercadores e mareantes algarvios na América Castelhana
remontam praticamente ao momento da descoberta760
. Aliás, não deixa de ser
significativo que, na segunda metade do século XVI, já existisse uma “Rua do Peru” em
Vila Nova de Portimão. Porém, foi a partir da União Ibérica que a sua presença se
tornou mais significativa. Entre 1595 e 1603, 83,4% dos estrangeiros que pagavam a
composição no reino de Quito, e cuja origem aparece declarada, eram portugueses761
.
Esse valor aparece ainda mais elevado em Cartagena das Índias, no anos de 1596 e 1597
– 97,4% 762
. No século XVI, o Algarve era a quarta região de proveniência dos
portugueses estabelecidos no vice-reino do Peru763
. Mas, em 1630, numa relação dos
758
Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. Vide em anexo, pp. 357-360. 759
Cf. ANTT, IE, proc. 10682. 760
Logo na primeira expedição de Cristóvão Colombo, entre a tripulação, encontra-se um algarvio, João
Arias, natural de Tavira. Vide Maria da Graça Mateus Ventura, Portugueses no Descobrimento e
Conquista da Hispano-América. Viagens e Expedições (1492-1557), Lisboa, Edições Colibri, 1999. Nas
genealogias dos processos, desde meados do século XVI que encontramos referências a parentes ausentes
nas Índias Castelhanas. Vejamos alguns exemplos. Em 1558, Beatriz Fernandes, botoeira de Tavira, tinha
dois filhos no Peru, Manuel e Pedro Mendes (Cf. ANTT, IL, proc. 895, fl. 30v). Pela mesma altura,
também vivia no Peru um filho de Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, Álvaro Rodrigues (proc.
13285, fl. 4v); tal como o marido e um irmão de Joana Ribeira, de Lagos, respectivamente, Tomás de
Caminha e Vicente Ribeiro (proc. 8545, fls. 6-6v). Anos mais tarde, em 1591, Isabel Mendes, de Vila
Nova de Portimão, mencionava um irmão, Sebastião Dias, que se tinha ausentado para o Peru havia
muitos anos (Cf. ANTT, IE, proc. 376, fl. 61v). 761
A composição era um imposto pago pelos estrangeiros residentes nas Índias, cujo valor variava
conforme a riqueza declarada. Não obstante a legislação restritiva, os estrangeiros continuavam a
estabelecer a sua residência e os seus negócios nas Índias Castelhanas e a composição era uma forma de
regular essa situação ilícita. A primeira cédula real a ordenar o seu pagamento data de 1591. Cf. Mateus
Ventura, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, Lisboa, IN-CM, 2005, pp. 73-75. 762
Cf. Idem, Ibidem, pp. 91 e 100. 763
Cf. Manuela Mendonça, “Portugueses no Peru no século XVI”, Problematizar a História. Estudos de
História Moderna em homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata. Coord. Ana Leal Faria e Isabel
Drumond Braga, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, p. 379. A autora baseou-se nos dados contidos na obra de
182
estrangeiros residentes em Cartagena das Índias, surgia como a segunda província de
origem (16,8%), apenas superada pela Estremadura (27,2%)764
. Note-se que estes são
dados oficiais. Ora, muitos foram os que entraram nas Índias à margem da lei.
Encontramos um exemplo nos Gramaxo de Vila Nova de Portimão. Como refere
Maria da Graça Ventura, esta família constitui um “caso paradigmático de redes de
influências em Cartagena das Índias”765
. Tudo começou com Jorge Fernandes Gramaxo,
citado na lista de 1613. Ele chegou a Cartagena por volta de 1590. Dedicou-se, então, ao
tráfico negreiro, numa primeira fase enquanto representante de grandes mercadores de
Lisboa, como Pedro Gomes Reinel, João Rodrigues Coutinho ou João Nunes Correia,
depois por conta própria. No início de Seiscentos, era já o mais destacado mercador
negreiro de Cartagena. Os escravos provinham de Cabo Verde, Rios da Guiné, S. Tomé
e Angola e eram vendidos por toda a América Castelhana. Jorge Fernandes sustentou o
negócio numa abrangente rede de parentes disseminados não só pelo Algarve e
Andaluzia, como também pelas ilhas atlânticas (o irmão Luís Fernandes vivia na ilha
Terceira766
) e pela costa ocidental africana (os primos direitos Domingos Quaresma, em
S. Tomé, e Jorge Fernandes Gramaxo, nos Rios da Guiné; e o sobrinho Jorge Gramaxo,
em Cabo Verde até 1615767
). O caso dos Gramaxo integra-se no formato das redes
europeias de comércio, assentes em estruturas familiares cujos membros se distribuíam
pelos centros nevrálgicos da actividade768
.
Em Cartagena, Jorge Fernandes Gramaxo começou a operar à margem da legalidade.
Comerciava géneros interditos aos mercadores estrangeiros, como a prata e o tabaco, e
fixou-se nas Índias sem a devida licença régia. Desde 1592, sendo a lei insistentemente
confirmada nos anos seguintes (o que, só por si, é demonstrativo do seu incumprimento),
era proibido a qualquer estrangeiro o estabelecimento e o comércio nas Índias
Gonçalo de Reparaz, Os Portugueses no Vice-Reinado do Peru (séculos XVI e XVII), Lisboa, Imprensa
Nacional, 1976. 764
Cf. Mateus Ventura, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, pp. 115-116, 121. 765
Cf. Idem, “Os Gramaxo. Um caso paradigmático de redes de influência em Cartagena das Índias”,
CES, n.º 1, 2001, pp. 69-80. Vide também: Idem, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, pp. 227-346. As
informações que apresentamos de seguida, sobre a vida e negócios dos Gramaxo, em Cartagena, têm estes
estudos como principal referência. 766
Cf. ANTT, IE, proc. 8043. 767
Segundo a lista de 1613, Domingos Quaresma teria partido de Vila Nova de Portimão por volta de
1607, enquanto que Jorge Fernandes Gramaxo se ausentara da vila 4 anos antes (Cf. ANTT, TSO, CG,
mç. 7, doc. 2618). Na genealogia do processo da irmã Aldonça Gramaxo, em 1589, Jorge Fernandes é
referido como estando no Brasil, embora se esperasse o seu regresso para breve (Cf. ANTT, IE, proc.
4603, fl. 31v). Vide a genealogia dos Gramaxo em anexo, p. 161. 768
Vide A. A. Marques de Almeida, “O zangão e o mel. Uma metáfora sobre a diáspora sefardita e a
formação das elites financeiras na Europa (sécs. XV-XVII)”, Oceanos, n.º 29, 1997, pp. 25-35.
183
Castelhanas, caso não tivesse carta de naturalização ou licença régia769
. Jorge Fernandes
não se livrou do confronto com a justiça. Em 1611, foi preso pela Audiência do Panamá,
num processo que culminou com a legalização da sua situação. Obteria a carta de
naturalização em 1614, quando os seus negócios já se desenvolviam numa rede que ligava
as Índias Castelhanas, à costa africana e aos mercados da Península Ibérica e do Norte da
Europa. Ao poder económico aliava-se um proeminente estatuto social. Conhecido em
Cartagena como “Capitão Gramaxo”, Jorge Fernandes patrocinara a edificação do
convento de São Diogo dos Recolhidos Descalços, onde viria a ser sepultado em 1626.
Foi um sobrinho, António Nunes Gramaxo, quem lhe sucedeu nos negócios. Tinha
chegado a Sevilha em 1611, mas acabou por seguir para as Índias770
. Iniciando a carreira
como caixeiro e cobrador de dívidas, herdou a fortuna e os negócios do tio, que morreu
sem deixar descendência legítima. Em 1630, quando foi obrigado a deslocar-se a Madrid
devido a um litígio com o Conselho das Índias, António Nunes chamou a Cartagena um
sobrinho, Luís Fernandes Soares, então a viver em Lisboa. Passou, então, a liderar a rede
a partir de Sevilha. À fortuna seguiu-se o prestígio social, tendo conseguido contornar os
obstáculos do sangue e alcançado o hábito da ordem de Santiago. Mas, a 22 de Julho de
1636, o sobrinho Luís Fernandes, então a gerenciar os negócios da família em Cartagena,
foi preso pela Inquisição, acusado de culpas de Judaísmo e de conspiração contra os
interesses da coroa castelhana, tal como outros mercadores portugueses envolvidos no
comércio negreiro e que, alegadamente, haviam fornecido prata às forças holandesas que
tomaram Pernambuco771
. Embora o tio António Nunes Gramaxo tenha intercedido em seu
favor, Luís Fernandes não escapou ao confisco de um quarto dos seus bens e a uma pena
de desterro das Índias por um período de 10 anos. Porém, os negócios dos Gramaxo
também sobreviveram a este golpe, tal como a outros no passado.
769
Os estrangeiros teriam de residir há mais de uma década em Espanha e ser casados com mulheres
naturais dos domínios castelhanos para obterem carta de naturalização, segundo uma estipulação de 1562.
Mas com o avolumar das cartas de naturalização passadas, os critérios para a sua obtenção tornaram-se mais
exigentes e, em 1608, o período mínimo de estadia em solo castelhano alargou-se para 20 anos, 10 dos quais
com casa e bens de raiz. Em 1618, passaram a ser exigidos 4 mil ducados como valor mínimo de bens de
raiz aos que pretendiam obter a carta de naturalização. Já na década de 30, e na sequência do crescimento
exponencial dos portugueses naturalizados, o Conselho das Índias pediu mais restrições à concessão das
cartas, em particular aos portugueses, a quem era associada a prática de contrabando no comércio da prata
(Cf. Mateus Ventura, Portugueses no Perú..., vol. I, t. I, Lisboa, IN-CM, 2005, pp. 71-75). 770
Cf. Jesús Aguado de los Reyes, “El Apogeo de los Judios Portugueses en la Sevilla Americanista”,
CES, n.º 5, 2005, p. 154. 771
Além de Luís Fernandes Soares, essas acusações também se dirigiram a Manuel da Fonseca
Henriques, Brás de Paz Pinto, João Rodrigues Mesa, Duarte Lopes Mesa, Francisco Rodrigues de Solis e
Simão Rodrigues Osório. Vide Maria da Graça Mateus Ventura, “Los judeoconversos portugueses en el
Perú del siglo XVII”, Familia, Religión y Negocio. El sefarditismo en las relaciones entre el mundo
ibérico y los Países Bajos en la Edad Moderna, Madrid, Fundación Carlos de Amberes y Ministerio de
Assuntos Exteriores, 2002, pp. 397-399.
184
Rumo ao Brasil. O caso dos Ulhoa
No Atlântico, as Índias Castelhanas não eram o único destino dos cristãos-novos
algarvios. António da Guerra viveu durante 3 anos no Rio de Janeiro, depois de 6 meses
na Bahia. No passado, fora mestre de esgrima mas, em 1648, era escrivão da
almotaçaria na vila de Albufeira. Nascera em Lisboa, fora criado em Lagos, e, além do
Brasil, estivera em Cachéu, nas Canárias e em Cádis772
. Brasil, costa ocidental de
África, ilhas atlânticas, Andaluzia, Algarve – um percurso algo sui generis para um
mestre de esgrima. Certamente, António da Guerra também se dedicaria à mercancia, e
a uma escala internacional. O mesmo se aplicava a Manuel Lopes, ourives de Lagos
que, em 1639, vivia no Brasil, depois de ter assistido em Angola e no Rio da Prata.
Tinha tios na América Castelhana, o irmão Gaspar Fernandes residia em Sevilha e o pai,
Fernão de Álvares, também estivera na Bahia, em Cartagena nas Índias e em várias
cidades da Andaluzia, antes de ser preso pela Inquisição de Évora em 1637773
. O
percurso denunciava o envolvimento no comércio da prata e no tráfico negreiro.
Na lista de 1613, são mencionados alguns cristãos-novos oriundos do Algarve que
rumaram ao Brasil, entre os quais Francisco Ribeiro, homem “muito rico” que vivera
durante 10 anos na Bahia, de onde regressou a Portugal e se estabeleceu em Lisboa774
.
Anos mais tarde, em meados do século, uma sua sobrinha, Catarina Lopes, encontrava-
se na Bahia, no sítio de Jugaripe. Quando foi presa em Salvador da Bahia e entregue na
Inquisição de Lisboa, a 29 de Abril de 1655, ela tinha perto de 70 anos e estava no
Brasil havia duas décadas. Segundo referem as testemunhas, Catarina embarcara de Vila
Nova de Portimão na companhia do marido, Gaspar Francisco, e das irmãs Isabel
Ribeira e Beatriz Rodrigues. O irmão Pedro Ribeiro tinha-se estabelecido previamente
na Bahia e foi ele quem chamou as irmãs para o Brasil, após a morte dos pais. Em 1655,
os três viviam de “fazer roças”775
.
Pela mesma altura, também se encontrava na Bahia uma outra família do Algarve,
contudo numa situação económica bem mais favorável – os Ulhoa (ou Ilhoa). Duarte
772
Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fl. 3. 773
Cf. ANTT, IE, proc. 4376, fls. 1v-3; proc. 5101, fls. 1v-3. 774
Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. Anita Novinsky, no seu estudo sobre os cristãos-novos na Bahia,
refere um Francisco Ribeiro, capitão e senhor de engenho que, em 1604, era arrematador dos dízimos na
Bahia. O seu nome aparece também num inquérito elaborado pelo vigário da Sé de Salvador, Manuel
Temudo, por ordem da Inquisição, sobre os portugueses que permaneceram na cidade durante o tempo da
ocupação holandesa (1624-1625). (Cf. Anita Novinsky, Cristãos-Novos na Bahia, São Paulo, Editora
Perspectiva, 1972, pp. 122-123). Caso seja o mesmo Francisco Ribeiro mencionado na lista de 1613, tal
significa que ele teria regressado posteriormente à Bahia. Porém, pode ser apenas de um homónimo. 775
Cf. ANTT, IL, proc. 11388.
185
Rodrigues Ulhoa, denunciado durante a “grande inquirição” de 1646, era senhor de
engenho e uma figura de proa na comunidade cristã-nova estabelecida na Bahia. Junto
com os filhos Manuel Vaz de Gusmão e Lopo Rodrigues Ulhoa, foi acusado de
frequentar a “sinagoga” na casa de Diogo do Leão. Mas não só. Várias testemunhas
referiram uma capela erigida no seu engenho com a invocação de Santa Teresa mas que,
na realidade, era uma homenagem à sua filha que perecera na fogueira, em Lisboa.
Duarte Rodrigues afirmava que a filha morrera mártir. Em contraposição, apelidava um
outro filho, que saíra sambenitado, de néscio, velhaco e traidor776
. Também Lopo
Rodrigues Ulhoa prestava reverência à irmã morta anos antes. Conta João Peixoto
Viegas, tesoureiro-mor da Bula da Cruzada, que, num dia de Maio de 1642, o vira andar
vestido “[...] de grande gala, de bordados de prata [...]”:
“[...] se murmurava nesta terra que o dito Lopo Rodrigues deitava aquela gala em
memória de uma irmã sua, chamada Teresa, ser queimada e que se entendia que
naquele dia fazia anos a tal queima, e assim mais ouviu murmurar que, em devoção
da dita queimada, levantara uma capela com nome de Santa Teresa seu pai, Duarte
Rodrigues Ulhoa, na paragem de Lacaracanga, limite desta cidade [...]”777
A filha de Duarte Rodrigues Ulhoa não se chamava Teresa, mas sim Isabel778
. O seu
fim trágico também não ocorrera em Maio – tudo aconteceu a 11 de Outubro de 1637. E
nem sequer fora tão constante quanto o pai e o irmão afirmavam.
Isabel Ulhoa entrou nos cárceres inquisitoriais a 25 de Junho de 1636, dois dias
antes do irmão Jacinto Rodrigues. Residia, então, em Lisboa, mais exactamente na Rua
das Mudas, na companhia do marido, Salvador Dias Lopes, mercador e também natural
de Faro. O irmão Jacinto vivia em Leiria, onde era almoxarife e estava casado com uma
cunhada de Isabel, Maria Jácome. Logo no dia em que entrou no cárcere, Isabel
confessou que, no passado, fora iniciada na Lei de Moisés e mantivera práticas
judaizantes. Porém, casara-se havia 7 anos e, desde então, abandonara essa fé. A 30 de
Dezembro, revogou tudo – nunca se apartara da fé cristã e apenas disse o contrário,
iludida de que assim se salvaria da condenação. Apresentou as contraditas e continuou
negativa até ao auto. Ao ouvir a sentença final, Isabel voltou atrás na revogação e
confessou que realmente chegara a comunicar a “heresia” com outros cristãos-novos,
776
Cf. Novinsky, Cristãos Novos na Bahia..., pp. 86-87, 132-137; Lipiner, Baptizados..., p. 103. 777
Cf. ANTT, IE, liv. 228, fl. 57v. 778
Supomos que a escolha de Santa Teresa para orago da capela, alegadamente erigida em homenagem a
Isabel Ulhoa, prendia-se com uma questão de identidade, mas não onomástica. Santa Teresa de Ávila era
cristã-nova. O seu avô, Juan Sánchez de Toledo, fora preso pela Inquisição. Depois de reconciliado,
mudou-se com a família para Ávila, adoptou o sobrenome Sánchez de Cepeda e aproximou-se de famílias
cristãs-velhas da região através do casamento dos filhos. Chegou mesmo a adquirir o título de fidalgo. (Cf
Domínguez Ortiz, Los judeoconversos en la España..., pp. 261-262).
186
inclusivamente com os seus parentes mais chegados. Mas já era tarde e os dias de Isabel
Ulhoa terminaram no fogo779
. A resolução do processo do irmão Jacinto foi bem
diferente. Sem resistir, confessou logo ter sido judaizante e o processo resolveu-se em
menos de dois meses. Saiu no auto de 3 de Agosto de 1636, sentenciado a cárcere e
hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores780
.
Através dos processos de Isabel e de Jacinto Rodrigues Ulhoa, é possível identificar
o percurso da família e a forma como se processou o seu estabelecimento na Bahia. Em
1636, três dos filhos de Duarte Rodrigues já se encontravam no Brasil: Francisco
Rodrigues em São Paulo ou São Vicente781
, Manuel Vaz Gusmão e Lopo Vaz Ulhoa na
Bahia. O próprio Jacinto Rodrigues também estivera na Bahia antes de ser preso782
. Os
processos dos filhos indiciam que, em 1636, Duarte Rodrigues Ulhoa ainda viveria em
Portugal, onde era boticário. Porém, encontramos outros testemunhos que provam o
contrário. Em 1632, Beatriz Mendes, a filha de Francisca Duarte, de Faro, refere-o
como residente no Brasil783
. Além disso, existem indícios de que ele já estaria na Bahia
na altura da ocupação holandesa, em 1624, então acusado do envenenamento do bispo
D. Marcos Teixeira784
.
Em 1646, Duarte Rodrigues Ulhoa seria já muito idoso. Natural de Ourique, casou-
se em Faro com Catarina Gonçalves. A sua esposa era filha de Estevainha Gomes,
aquela que, em 1588, tentara escapar à prisão, fugindo para Lisboa, mas cujo fim foi o
mesmo da neta Isabel, quase meio século depois785
. Catarina Gonçalves também
conhecera os cárceres da Inquisição, ainda com menos de 20 anos de idade, mas já
casada com Duarte Rodrigues786
.
Voltamos a ter notícias dos Ulhoa em 1651, ano em que Duarte, filho de Jacinto
Rodrigues, apresentou-se perante a Inquisição de Lisboa. Após a reconciliação, Jacinto
rumou a Sevilha, onde se estabeleceu com a família. Regressou a Portugal por volta de
1645, com o intuito de seguir até ao Brasil, para junto do pai e dos irmãos. Porém, não
conseguiu resistir à viagem e acabou por falecer. Ao saber da morte do marido, Maria
779
Cf. ANTT, IL, proc. 3513. 780
Cf. ANTT, IL, proc. 9783. No processo, o sobrenome de Jacinto aparece como “Ilhoa” e não “Ulhoa”.
Porém, por uma questão de coerência, normalizámos a forma, optando por “Ulhoa”. 781
Isabel e Jacinto não coincidem na identificação da residência do irmão. Segundo Isabel, Francisco
Rodrigues era assistente em São Paulo (Cf. ANTT, IL, proc. 3513, fl. 21v), enquanto que Jacinto refere
que ele se encontrava em São Vicente (Cf. ANTT, IL, proc. 9783, fl. 26v). 782
Cf. ANTT, IL, proc. 9783, fl. 30. 783
Cf. ANTT, IE, proc. 590, fls. 37v-38. 784
Cf. Novinsky, Os Cristãos-Novos na Bahia..., pp. 86-87. 785
Vide supra, pp. 75-76. 786
Cf. ANTT, IE, proc. 10580.
187
Jácome partiu de Sevilha, acompanhada pelos filhos Duarte, Jácome e Salvador. O
destino foi Amesterdão, onde vivia a sua mãe, Filipa Nunes, e a irmã Isabel de Torres,
esposa de Manuel de Solis. Não muito longe, em Antuérpia, residiam a irmã Marquesa
Gomes, casada com Manuel Soares Ribeiro, e o irmão Salvador do Leão. Este era, nada
mais, nada menos, que Salvador Dias Lopes, o marido de Isabel de Ulhoa. Após a morte
da esposa, ele seguira para Antuérpia, onde se havia casado com Ester de Avilar, irmã
de Manuel Mendes de Avilar, corretor de câmbios.
Em Amesterdão, Maria Jácome e os filhos tornaram-se judeus públicos. Os rapazes
foram circuncidados e adoptaram nomes hebreus. Duarte tornou-se Abraão. Durante 4
anos, viveu como judeu, frequentando regularmente a sinagoga e comunicando-se com
outros judeus portugueses ali estabelecidos. Segundo alegou na sua confissão, ao fim
desse tempo, regressou ao Cristianismo, persuadido por um religioso irlandês. Partiu,
então, de Amesterdão, mas não se dirigiu logo para Lisboa. Durante dois anos e meio,
viveu em Antuérpia e, depois, passou para França. A 20 de Junho de 1651, apresentava-
se perante a Inquisição de Lisboa787
.
O percurso de três “judeus de nação”
Duarte de Ulhoa, na sua confissão, mencionou dois mercadores oriundos do Algarve
e estantes em Amesterdão: os irmãos Manuel e Afonso de Tovar, casados com judias
francesas. Um outro irmão vivia em Hamburgo788
. Possivelmente, eles seriam
descendentes dos Tovar de Faro que, como já vimos, assistiram à partida de vários
parentes para Castela devido à perseguição inquisitorial. Ausente da confissão de Duarte
esteve um outro algarvio que, pela mesma altura, também se encontrava em
Amesterdão: João de Águila, filho de Joana de Graçanha, cristã-nova de Faro
reconciliada pela Inquisição de Évora em 1637789
.
787
Cf. ANTT, IL, proc. 8134. Tal como o pai, Duarte também é apresentado com o sobrenome “Ilhoa”. 788
Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fl. 7v. 789
Na genealogia do seu processo, ele diz ser filho de João de Águila, cristão-velho biscainho, e de Joana
Mendes, filha de Maria Mendes (Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fl. 36). Ora, Joana Mendes é Joana de
Graçanha, presa em 1636, filha de um tendeiro francês, João de Águila (Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fl.
10). Assim, João herdara o nome do avô materno e não do pai, como indica o seu processo. O pai era João
Martins, cristão-velho, biscainho que, em 1630, estava a trabalhar na Sé de Faro como pintor. Casara-se
com Joana de Graçanha em 1615. (Cf. Francisco I. C. Lameira, “Elementos para um Dicionário de
Artistas e Artífices que trabalharam a madeira em/para a cidade de Faro nos séculos XVII a XIX”, AMF,
vol. XVI, 1986, p. 129). Sobre João de Águila e, em particular, sobre as denúncias pronunciadas perante a
Inquisição de Lisboa, vide António Borges Coelho, “Los orígenes de Bento Espinosa”, Familia, Religión
y Negocio..., pp. 123-124.
188
Tal como Duarte de Ulhoa, João de Águila era um jovem com cerca de 20 anos de
idade quando se apresentou na Inquisição de Lisboa, a 12 de Janeiro de 1650. Na mesa,
narrou a sua história. Apesar de só ter uma parte ínfima de sangue hebraico, ele
professou o Judaísmo logo que se viu num local onde o podia fazer livremente. Tudo
começara 11 anos antes, quando embarcou, em Faro, num navio holandês que o levou
até Amesterdão. João não esclareceu os motivos que motivaram a sua partida. Porém,
encontramos as possíveis razões nos processos dos seus irmãos Maria de Águila e
Francisco Mendes. Pouco antes da prisão da mãe, os dois também haviam abandonado
Faro. Francisco Mendes fora primeiramente para a Madeira, onde esteve durante um
mês, e dali seguiu para Lisboa, demorando-se dois meses na capital. O próximo destino
foi Sevilha e, depois, Aiamonte790
. Entretanto, regressara ainda a Faro, onde vivia a
irmã Maria, que o acompanhou além-Guadiana791
.
Fazendo as contas, João de Águila teria partido de Faro por volta de 1639, ou seja,
pouco tempo depois da reconciliação da mãe. Estaria a fugir à perseguição inquisitorial?
Ou pretenderia aprofundar os seus conhecimentos sobre a fé judaica numa “terra de
tolerância”? Mas deixemos as hipóteses e voltemos à sua confissão. De Amesterdão,
João seguiu para Antuérpia. Residiu ali durante 5 meses, na casa de Diogo Teixeira de
Sampaio, um dos mais ricos banqueiros portugueses na cidade que, em 1647, embarcou
para Hamburgo, onde sediou os seus negócios792
. João acabaria por regressar a
Amesterdão, sendo acolhido na casa de um outro grande homem de negócio, Jerónimo
Nunes da Costa, cavaleiro da Casa Real e agente oficial do rei nas Províncias Unidas793
.
Apesar dessa ligação à coroa portuguesa, Jerónimo era judeu público e foi na sua casa
que João abraçou a fé judaica – foi circuncidado, adoptou o nome de Abraão Guer e
passou a frequentar as sinagogas três vezes ao dia. Além de Amesterdão e de Antuérpia,
o seu percurso contemplou também Hamburgo794
.
Anos antes, um outro cristão-novo algarvio também integrara as comunidades
sefarditas de Hamburgo e de Amesterdão e, tal como João de Águila, decidido a regressar
a Portugal, apresentou-se perante a Inquisição de Lisboa, na esperança da reconciliação.
790
Cf. ANTT, IE, proc. 6921, fl. 8v. 791
Cf. ANTT, IE, proc. 682, fl. 7. Tanto Maria de Águila como o irmão Francisco Mendes apresentaram-
se perante a Inquisição de Évora em 1637. 792
Cf. “Sampaio, Diogo Teixeira de / Teixeira, Abrão Sénior”, Dicionário Histórico dos Sefarditas
Portugueses. Mercadores e Gente de Trato. Dir. A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Campo da
Comunicação, 2009, pp. 618-619. 793
Vide “Costa, Jerónimo Nunes da / Curiel, Moisés”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 204-206. 794
Cf. ANTT, IL, proc. 7938. Vide em anexo, pp. 450-457.
189
Era Heitor Mendes Bravo, natural de Lagos e filho do mercador Miguel Nunes Bravo795
.
Tinha então 26 anos e vivera em Amesterdão, frequentando regularmente as sinagogas da
cidade. Só esteve em Hamburgo durante dois meses, em negócios.
Mas a sua diáspora havia começado muitos anos antes. Com 4 anos de idade, partiu
de Lagos com os pais. Ainda viveu em Setúbal e Lisboa, antes de embarcar para Itália.
O pai havia falecido e a mãe, Mécia Lopes, viúva e desamparada, pediu licença para
partir com os dois filhos, Heitor e Margarida Nunes, a qual acabaria por falecer meses
depois796
. Florença foi a primeira paragem. Ali, conheceram Bento de Medeiros,
mercador português que os aconselhou a ida para Veneza, onde poderiam viver mais
livremente como judeus. Assim convencidos, partiram. Em Veneza, Heitor foi
circuncidado e passou a envergar o nome de David Levi Bravo. Segundo afirmou, a sua
conversão não fora espontânea, contudo, sendo muito novo e “com poucas letras”,
acabou persuadido a abraçar a fé judaica. Viveu em Veneza durante 4 a 5 anos, mas foi
obrigado a fugir, depois de ter ferido um cidadão veneziano. Embarcou numa nau
inglesa e seguiu para Amesterdão.
Foi nesta cidade que Heitor Mendes começou a duvidar da fé que acolhera em
Veneza. Um dia, ao reflectir sobre as profecias do capítulo 53 do livro de Isaías,
questionou a interpretação dos rabinos. Entendia que o profeta não se referia à história e
provações por que passava o povo judeu, mas sim a uma pessoa em específico. Ao
interpelar os rabinos, eles contestaram-no, chamando-lhe de herege. Passados dois
meses, Heitor falou com um flamengo católico que o conduziu até Haarlem797
, onde
“[...] estava um frade francisco em hábitos de soldado, pregando a algumas pessoas
debaixo de segredo [...]”. Tratava-se de Frei Pedro da Anunciação, oriundo do mosteiro
de São Francisco, em Lisboa, e que vivia há quarenta anos em Haarlem. O religioso
transmitiu-lhe a sua interpretação sobre as palavras de Isaías – o profeta referia-se a
Jesus Cristo – e aconselhou-o a ir a Roterdão, onde poderia conviver com outros
católicos que o reencaminhariam para a fé cristã. Heitor seguiu o conselho e foi de
Roterdão que embarcou para Lisboa798
.
795
Cf. ANTT, IL, proc. 12493. Vide em anexo, pp. 363-369. Vide Lipiner, Os Baptizados..., pp. 48, 78-
79; “Bravo, Heitor Mendes / Bravo, David Levi”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 123-125. 796
Heitor Mendes alegou que a irmã falecera 6 meses após eles terem chegado a Florença. Porém, uma
testemunha referiu que Margarida Nunes tinha acompanhado o irmão e a mãe até Amesterdão, onde se
casara e, depois, partira para Itália. (Cf. ANTT, IL, proc. 12493, fl. 27). 797
No documento, “Arle”. Supomos referir-se a Haarlem. 798
Cf. ANTT, IL, proc. 12493, fls. 11v, 13-14.
190
A justificação apresentada por Heitor Mendes para explicar o seu retorno ao
Cristianismo é muito similar ao que João de Águila e Duarte de Ulhoa alegaram nas
respectivas confissões. João de Águila começara a afastar-se da fé judaica em Julho de
1649, também motivado por dúvidas na interpretação das Sagradas Escrituras.
Frequentando a escola de Gagão Mortera, questionara o seu mestre sobre o significado
da segunda palavra do livro do Génesis. Águila entendia que essa palavra significava a
Trindade: “[...] que «ben», que é a primeira letra, quer dizer filho, e a segunda, que é
«rua», quer dizer espírito, e «ab», que quer dizer pai [...]”. Tal interpretação valeu-lhe a
ira dos mestres. Mas o jovem continuou a insistir no confronto. No mês de Outubro,
João falou com dois religiosos portugueses que se encontravam em Amesterdão, Frei
Diogo César e Frei Custódio, os quais o persuadiram a abandonar o Judaísmo e a
apresentar-se perante o Santo Ofício799
.
Duarte Ulhoa, como já referimos, convenceu-se a regressar à fé cristã após ter
falado com um carmelita descalço irlandês: “[...] e com o que este lhe disse acerca da
religião que seguia, veio de entrar em dúvida acerca da verdade dela e, depois alguns
dias, se resolveu ele, confitente, em que a dita Lei de Moisés não era boa [...]”800
. A
justificação de Duarte Ulhoa é bem mais simples, sem o pormenor das dúvidas de
exegese bíblica que Heitor Mendes e João de Águila debitaram nas suas confissões.
Porém, é comum a figura do religioso cristão a resgatar quem, na diáspora, abandonara
a fé do baptismo pela fé dos antepassados.
Os mesmos argumentos, ou muito similares, encontram-se no testemunho doutros
tantos reduzidos que regressavam a Portugal e se apresentavam perante a Inquisição, na
esperança de usufruírem da tão aclamada “misericórdia” do tribunal801
. Frequentemente,
outros motivos escondiam-se por detrás desses argumentos. Muitos eram do foro
económico. A necessidade do regresso ao quinhão natal, visando o fomento dos negócios
e a solidificação da sua rede comercial, talvez justificasse o risco da prisão. Já vimos
como Duarte de Ulhoa pertencia a uma família de homens de negócio disseminada pelo
Norte da Europa, Brasil e Portugal. João de Águila estava ao serviço de Jerónimo Nunes
da Costa. Heitor Mendes Bravo apresentou-se como “caixeiro de mercadores”. Os três
desfiaram róis de nomes de judeus portugueses com quem contactavam na prática
religiosa mas também no quotidiano profissional. Entre eles, encontramos os nomes de
799
Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fls. 6-9v. 800
Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fl. 4v. 801
Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “Uma estranha diáspora rumo a Portugal. Judeus e cristãos-novos
reduzidos à fé católica no século XVII”, Sefarad, fasc. 2, ano 62, 2002, p. 268.
191
alguns dos mais poderosos homens de negócio de Amesterdão, Antuérpia ou Hamburgo,
como Bento Osório, João de Ilhão, Gil Lopes Pinto, Manuel Dias Henriques, Manuel
Rodrigues Isidro, Diogo Teixeira de Sampaio ou Duarte Nunes da Costa802
. Era comum
aos “judeus de nação” que voltavam à Península Ibérica, decididos a regressar à fé cristã,
a enumeração quase exaustiva de judeus portugueses na diáspora, aspirando à conquista
da confiança dos inquisidores e, por conseguinte, da reconciliação803
. Os três, jovens no
início da carreira mercantil, talvez ambicionassem ficar por Lisboa, agenciando os
negócios da rede mercantil que integravam, um objectivo talvez superior às crenças
pessoais. Trata-se apenas de uma hipótese. Também é legítimo acreditar na sinceridade da
sua conversão. Mas a excessiva coincidência das respectivas histórias causa a impressão
de um discurso construído e, como tal, pouco fidedigno.
Os Delgado, entre as letras e o serviço à coroa
“Gonçalo Delgado, filho de João Pinto Delgado, já defunto, e sua mulher e filhos, se
foram desta vila [Vila Nova de Portimão] para Lisboa, com casa movida, e de Lisboa
se foram para Flandres, aonde moram hoje em dia, e o filho maior casou em Lisboa e
nela mora. Este Gonçalo Delgado é mercador, homem meão e grosso do corpo. A
mulher é flamenga de nação, terá de idade cinquenta anos, pouco mais ou menos.”804
Assim era apresentada, na lista dos ausentes de 1613, uma das famílias algarvias
mais notáveis da diáspora sefardita, os Delgado805
. Por essa data, Gonçalo Pinto
Delgado já não se encontrava na Flandres, mas sim em Ruão, onde adquirira a
naturalização no ano anterior.
No Algarve, os Delgado tinham-se destacado no serviço à coroa, em particular, no
aprovisionamento das praças marroquinas. Em 1578, o pai de Gonçalo, João Pinto
Delgado, foi nomeado feitor da cal e das munições enviadas para o Norte de África por
um período de 3 anos. Ainda ocupava o cargo em 1586. No ano seguinte, foi
802
Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fls. 6v, 8 e 9; proc. 7938, fls. 12v, 16-16v, 18, 33; proc. 12493, fls. 6, 12.
Vide respectivas biografias em Dicionário Histórico dos Sefarditas..., passim. 803
Cf. Pilar Huerga Criado, “Entre Castilla y los Países Bajos. Lazos familiares y relaciones personales”,
Familia, Religión y Negocio..., pp. 53-54. 804
Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. 805
Sobre os Delgado, em particular sobre o poeta João Pinto Delgado, vide: Sousa Viterbo, Noticia
acerca da vida e obras de João Pinto Delgado, Lisboa, Typographia da Academia das Sciencias de
Lisboa, 1910; Cecil Roth, “Les Marranes à Rouen. Une chapitre ignoré de l‟histoire des juifs de France”,
REJ, LXXXVIII, 1929, pp. 113-155; I. S. Révah, “Introduction. La famille Pinto Delgado de l‟Algarve à
Rouen” in João Pinto Delgado, Poema de la Reina Ester. Lamentaciones del Profeta Jeremías. Historia
de Rut y varias poesías, Lisboa, Institut Français au Portugal, 1954, pp. XIII-XXXV; Idem,
Autobiographie d’un marrane. Édition partielle d’un manuscrit de João (Moseh) Pinto Delgado. Separata
de Revue des Études Juives, The Hague, 1961; Timothy Oelman (ed.), Marrano Poets of the Seventeenth
Century. An Anthology of the Poetry of João Pinto Delgado, Antonio Enríquez Gómez and Miguel de
Barrios, Oxford, The Littman Library of Jewish Civilization, 2007 (1ª ed. 1982).
192
responsável pelo provimento das tropas enviadas para o socorro da cidade de Lagos806
.
“[...] Por suas habilidades houvera um ofício ou dois d‟el-Rei [...]” – assim aparece
mencionado no processo inquisitorial de Baltazar da Costa, em 1585. Segundo a mesma
fonte, por volta de 1582, Gonçalo Pinto Delgado estava em Antuérpia, onde se casou
com uma mulher flamenga. Pouco depois, regressou a Portugal807
.
De facto, em 1588, Gonçalo era almoxarife em Tavira. Anos depois, por carta de 16 de
Dezembro de 1599, foi nomeado para substituir o pai, entretanto falecido, enquanto feitor
da cal e das munições enviadas para as praças norte-africanas808
. Possivelmente, os seus três
filhos – João, Gonçalo e Diogo – também teriam nascido em Tavira. O mais velho acabaria
por garantir “um lugar de primazia no Parnaso peninsular”, segundo as palavras de Sousa
Viterbo. A dedicação às belas-letras era uma tradição familiar. O avô, de quem herdou o
nome, fora um “grande trovador”, nas palavras de Baltazar da Costa809
. Do pai conhece-se
um poema épico sobre o ataque inglês a Faro em 1596, dedicado a Rui Lourenço de Távora,
então governador do Algarve, e ao bispo D. Fernão Martins Mascarenhas810
.
Mas terá João Pinto Delgado herdado apenas a vocação literária? E a carreira
administrativa? A 12 de Agosto de 1602, era conferido a um João Pinto Delgado o
cargo de almoxarife dos mantimentos e pagamentos de Mazagão811
. Não se trataria do
mesmo indivíduo. O João Pinto Delgado referido no dito alvará servia militarmente na
praça de Mazagão desde 1595. Nessa data, o primogénito de Gonçalo Pinto Delgado
não tinha mais de 12 anos de idade. Além disso, ele manteve o cargo de almoxarife até
806
Cf. Sousa Viterbo, Noticia acerca..., pp. 9, 27-29, 31. 807
“[...] e disse mais que haverá agora três anos, pouco mais ou menos, que estando ele, confessante, em
Anvers, como tem dito atrás, tinha conversação com Gonçalo Delgado, cristão-novo, mancebo solteiro,
filho de um João Pinto do Algarve, não sabe ao certo de que lugar é morador, mas que lhe parece que em
Vila Nova, e ouviu dizer que tinha um ofício em a alfândega e que era grande trovador e que, por suas
habilidades, houvera um ofício ou dois d‟el Rei, o qual Gonçalo Delgado estava em Anvers em casa de
um tio, cujo nome não lembra, mercador, e ele, confessante, conversou por tempo de um ano com este
Gonçalo Delgado, o qual lhe disse, por vezes, que era judeu e ele, confessante, lhe disse o mesmo de si e
por tais se conheciam um ao outro [...] estando ainda em Anvers, o dito Gonçalo Delgado se veio para
este reino, chamado de seu pai, e deve estar no Algarve, onde o seu pai mora, e a este tempo era já casado
e trouxe para cá sua mulher [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 5341, fls. 6v-7v). Também referido em Révah,
Autobiographie d’un marrane..., pp. 48-40. 808
O duque de Medina Sidónia prometera a João Pinto Delgado que o cargo passaria para o filho após a
sua morte (Cf. Sousa Viterbo, Noticias acerca..., p. 29). 809
Révah acrescenta que Barbosa de Machado, na Biblioteca Lusitana, atribui uma tradução de Petrarca
em oitava rima a João Pinto Delgado. Porém, não se conhece o paradeiro de tal tradução (Cf. Révah,
“Introduction....”, p. XVII). 810
O poema desenvolve-se ao longo de oito cantos, em oitavas de verso heróico, e revela uma profunda
influência dos Lusíadas de Luís Vaz de Camões. Conhece-se uma cópia manuscrita na Biblioteca Nacional de
Viena, sem título, nem autor. Uma selecção de estâncias do poema foi publicada por Joaquim Romero
Magalhães. Vide Romero Magalhães, “O assalto dos Ingleses a Faro em 1596”, O Algarve na Época Moderna,
Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 107-140. 811
Cf. Sousa Viterbo, Noticias acerca..., p. 30.
193
ao final de Agosto de 1607, altura em que Gonçalo e a família já se encontravam na
Flandres812
. Provavelmente, o almoxarife seria um primo homónimo do poeta, dada a
tradição de se atribuir aos netos o mesmo nome do avô.
Depois de uma temporada na Flandres, João Pinto Delgado regressou a Lisboa, onde
completou a sua formação literária. É a este período que remontam os poemas
autobiográficos deixados inéditos, identificados e parcialmente publicados por I. S.
Révah813
. Enquanto esteve em Lisboa, também participou com composições poéticas
em duas obras impressas no ano de 1616: um madrigal em português na Consolação
christã e luz para o povo hebreu, de João Baptista d‟Este, e um soneto em castelhano no
Poema mystico del glorioso Santo Antonio de Padua, de Luís de Tovar.
Ruão foi o destino seguinte do poeta. Em 1624, já se encontrava na cidade e, 3 anos
depois, publicava, na oficina de David du Petit Val, a sua obra maior, Poema de la Reyna
Ester, Lamentaciones del Propheta Jeremias, Historia de Rut y varias poesìas, dedicada ao
Cardeal Richelieu. Porém, na sequência da perseguição à comunidade sefardita estabelecida
em Ruão, João Pinto Delgado partiu com o pai para Antuérpia814
. Estabeleceu-se em
Amesterdão, onde viveu até à morte, a 23 de Dezembro de 1653. Embora já tivesse abraçado
o Judaísmo em Ruão, foi na cidade holandesa que a sua conversão se confirmou. Passou a ser
conhecido por Moseh Pinto Delgado e integrou a congregação sefardita de Amesterdão815
.
Tavira, Vila Nova de Portimão, Lisboa, Antuérpia, Ruão, Amesterdão – o percurso
dos Delgado foi, no mínimo, inquieto. Apesar da família ter escapado à purga de finais
do século XVI, a perseguição religiosa teria sido um dos impulsos à partida. João Pinto
Delgado escreve-o, em tom autobiográfico:
“[...] junto de la orilla del Occeano que por parte de la Lusitania confina con la
Andaluzia, yaze la tierra que fue cuna a mi nacimiento, donde, despues de llegar a
edad de discernir lo bueno de lo malo, me pareció el sitio humilde y peligroso a mis
pensamientos. Humilde, por el poco exercicio de bien empleadas horas que se
gastan en exercicio de las sciencias; y peligroso, por aver ya mis progenitores
plantado en mi alma los arboles de la Santissima Ley, de que tardaron los frutos en
quanto vedó la orlá o cerramiento dellos el tocarlos para sustento.”816
812
Cf. Idem, Ibidem, p. 33. 813
Cf. Révah, Autobiographie d’un marrane.... O manuscrito tem o título de “Dialogos contra a
cristandade”, o qual não foi atribuído pelo próprio autor, tratando-se, possivelmente, dum acrescento
posterior. A obra é uma apologia ao judaísmo e divide-se em duas partes: na primeira, um peregrino, de
nome Moisés (nome judaico que João Pinto Delgado tomou após a circuncisão), narra o seu percurso
religioso, da perseguição à liberdade religiosa; na segunda, um cavaleiro cristão da Holanda procura
conhecer os fundamentos do Judaísmo e do Cristianismo, acabando por se converter à fé judaica. 814
Vide Cecil Roth, “Les Marranes à Rouen...”, REJ.... 815
Em 1640, João Pinto Delgado era um dos sete parnasim do Talmud Torah de Amesterdão (Cf.
Oelman, Marrano poets..., p. 51). 816
Cf. Révah, Autobiographie d’un marrane..., p. 93.
194
A longa jornada de Diogo Dias Pacheco
A 5 de Setembro de 1576, Diogo Dias Pacheco, alias Coim Pacheco, apresentava-se
perante a Inquisição de Lisboa. Dez anos antes, fora denunciado por dois cristãos-novos
que o conheceram em Ferrara, onde era judeu público. Mas a sua história escrevera-se
por outras paragens. Nos mais de 60 anos que viveu antes de se fazer ouvir nos estaus
de Lisboa, Diogo Dias esteve em constante périplo, do Norte de África à Península
Itálica, da Turquia à Flandres, de Portugal à costa ocidental africana.
Diogo Dias Pacheco nasceu por volta de 1512, em Lagos, num período de apogeu
da vila, consequência directa das empresas ultramarinas e das estreitas relações com o
Norte de África. A sua jornada iniciou-se em 1538. Quatro anos antes, havia-se casado
com Inês Fernandes, filha de Salvador Afonso, mercador de Lagos. Diogo e a esposa
embarcaram, então, rumo ao Norte de África. Três anos em Safim, mais dois em Tânger
e outros três em Ceuta, onde serviu como soldado. Em 1546, seguindo os conselhos do
sogro, partiu para Itália na companhia da família, com o intuito de se converter ao
Judaísmo. Embarcaram todos em Gibraltar, rumo a Veneza. Mas Diogo não se
estabeleceu na cidade, ao contrário dos sogros e dos cunhados. Seguiu para Salónica,
onde finalmente abraçou a fé judaica e fez circuncidar os seus filhos. Um ano em
Salónica e já estava de partida para Ferrara. Aproveitando o perdão geral de 1547,
Diogo regressou a Lisboa, onde viveu durante 6 meses, antes de seguir para Castela. Até
1550, serviu nas galés de D. Carlos V. Durante este período, chegou a ir à Flandres e ali
contactou com outros judeus portugueses. Voltou para o Norte de África e, em
Mazagão, casou com uma viúva cristã-velha, Inácia Ribeira, quando ainda era viva a
sua primeira mulher. Além de judaizante, Diogo também se confessava bígamo.
De regresso a Lisboa, onde se demorou por breves meses, Diogo seguiu para a
Flandres e dali novamente rumo a Ferrara. Permaneceu na cidade entre 1553 e 1555,
servindo de mordomo na casa de Henrique Nunes817
. Salónica foi o destino seguinte e
onde ficou a saber que Inês Fernandes e os filhos haviam falecido. Mas Inácia Ribeira
ainda era viva quando se casou, pela terceira vez, com uma judia chamada Ester. Ainda
em Salónica, assaltaram-no dúvidas de fé, suscitadas pelas profecias de Isaías:
“[...] cotejou uma Bíblia em latim com esta em espanhol para ver se o Messias era
vindo e era em quem se havia cumprido aquela profecia [de Isaías] e perguntando a um
817
Sobre Henrique Nunes, alias Abraão Benveniste, vide “Nunes, Henrique”, Dicionário Histórico dos
Sefarditas..., pp. 494-495.
195
rabino como entendia aquela profecia e em quem se cumprira, ele respondeu que não o
dissesse, que havia de estar cheio de toucinho, que não havia de ser bom judeu [...]”818
A questão levou-o a Roma, em 1560. Encontrou-se com o embaixador Lourenço
Pires de Távora que o remeteu ao Cardeal Alexandrino. Diogo Dias disse ter recebido a
reconciliação da Inquisição romana, penitenciado com 4 meses de trabalho nas obras da
Sé apostólica. Foi o que alegou na mesa do tribunal lisboeta, contudo sem apresentar
qualquer documento comprovativo dessa reconciliação. Havia-se perdido no naufrágio
das galés de D. João de Mendonça em 1563 – disse. Numa outra sessão, acabaria por
negar tudo: “[...] que o demónio o cegou e por haver medo e por lhe parecer que teria
melhor despacho dizendo que fora reconciliado [...]”819
. Tinha regressado a Portugal em
1565, onde voltou a fazer vida com Inácia Ribeira. Desde então, viveu entre Tavira e
Lisboa, exceptuando dois anos em que esteve em São Tomé.
Os inquisidores concluíram que eram “[...] suas confissões fictícias, simuladas e não
satisfatórias, o que se vê claramente no modo que teve de fazer suas confissões e
afirmar sempre, até à derradeira confissão, que foi reconciliado em Roma [...]”820
.
Terminou relaxado à justiça secular no auto-de-fé de 16 de Março de 1578. Lisboa foi a
última paragem de Diogo Dias Pacheco.
2. ACTIVIDADES SÓCIO-PROFISSIONAIS
A terra aos cristãos-velhos, o comércio e a finança aos cristãos-novos – eis o estereótipo
alimentado por um discurso antijudaico que se perpetuou para lá da conversão geral, o qual
afastava a minoria cristã-nova (como, no passado, a minoria judaica) da única fonte de
riqueza lícita, o labor da terra, vinculando-a à usura e ao trato mercantil. Se,
tendencialmente, os cristãos-novos se dedicaram à actividade mercantil e aos mesteres
urbanos, bem mais do que à exploração agrícola, também não podemos ignorar as
excepções. A terra, o altar e a espada faziam parte do seu quotidiano. Por outro lado, o
comércio não era um mundo estranho aos cristãos-velhos, em particular numa região
voltada para o mar e plenamente integrada nas rotas do comércio internacional.
818
Cf. ANTT, IL, proc. 65, fl. 23v. Vide em anexo, pp. 277-279. 819
Cf. Idem, fl. 56v. 820
Cf. Idem, fl. 67.
196
Os números
Em 1606, foi lançada uma finta sobre os cristãos-novos de Tavira. No rol dos
fintados, em menos de metade é identificada a actividade profissional, mas, nesta
minoria, predominam os mercadores (14), seguidos dos sapateiros (9), dos alfaiates (5)
e dos ourives (4). Nos valores pagos, o domínio também é dos mercadores. A finta mais
alta coube a um tratante, Manuel Fernandes Paredes, que pagou 22.500 réis, isto num
total de 217.785 réis angariados821
.
As actividades comerciais e artesanais são as mais comuns entre os cristãos-novos
processados durante as três entradas da Inquisição no Algarve822
. Na primeira entrada, o
comércio supera os mesteres. A tendência inverte-se nas duas entradas seguintes. Em
1585-1600, os mesteres constituem mesmo 60% das actividades profissionais declaradas
pelos cristãos-novos algarvios então presos. Se, nas primeiras duas vagas de prisões, a
agricultura muito raramente constituiu o principal sector de actividade dos réus, o cenário
muda nas décadas de 30 e 40 do século XVII. Então, 11% dos processados eram
lavradores. Para tal valor foi determinante a entrada da Inquisição nas vilas de Loulé e
Albufeira, dois importantes centros agrícolas da região.
Visando uma perspectiva mais ampla, alarguei o universo de estudo não só aos
processados, como também a todos os cristãos-novos mencionados na documentação
consultada, residentes em seis localidades: Lagos, Vila Nova de Portimão, Albufeira,
Faro, Loulé e Tavira. Agrupei as actividades sócio-profissionais em 7 categorias –
Comércio, Mesteres, Agricultura, Administração, Saúde e Direito, Religião, Outros – e
dividi as referências em três períodos, conforme os ritmos da acção inquisitorial no
Algarve – 1550-1580, 1581-1620 e 1621-1650. As conclusões foram as seguintes823
:
1550-1580 1581-1620 1621-1650
1. Mesteres
2. Comércio
3. Saúde e Direito
4. Outros
5. Administração
6. Agricultura
7. Religião
1. Comércio
2. Mesteres
3. Saúde e Direito
4. Religião
5. Outros
6. Administração
7. Agricultura
1. Mesteres
2. Comércio
3. Outros
4. Saúde e Direito
5. Religião
6. Agricultura
7. Administração
821
Cf. ANTT, TSO, mç. 40, doc. 57. 822
Vide, em anexo, gráficos 8.1 e 8.2, pp. 107-108. 823
Vide, em anexo, gráfico 8.3, p. 109.
197
Estes dados confirmam a prevalência das actividades comercial e mesteiral, a qual a
bibliografia tem demonstrado também ser uma realidade noutros territórios824
.
Mas é preciso considerar as variantes de localidade para localidade. Há espaços onde
o comércio supera os mesteres (Lagos e Vila Nova de Portimão), noutros, o predomínio é
das actividades artesanais (Faro e Tavira). Porém, em Albufeira, no período de 1621-
1650, a agricultura constituía a principal actividade exercida pelos cristãos-novos, tal
como o seria relativamente ao resto da população. O caso de Albufeira é extraordinário.
Noutras localidades, inclusivamente em Loulé, a importância de cristãos-novos que
tinham na agricultura a sua principal actividade revela-se pouco significativa825
.
Na categoria “Outros”, que demonstra um peso significativo no período de 1621-
1650, incluí uma série de ofícios que não se integravam em nenhuma das outras
categorias e que individualmente não apresentavam importância suficiente para
constituírem uma categoria à parte. Entre eles, encontramos os mareantes e os militares.
Em termos totais, os mareantes não chegam a constituir 2% dos cristãos-novos
referidos. Em Tavira e Vila Nova de Portimão, ainda atingem os 3%, mas nas outras
localidades o valor é bem menor. Não encontrámos uma justificação plausível para este
afastamento dos cristãos-novos da actividade marítima, e aqui entenda-se da navegação
e da pesca e não do comércio marítimo ou das rendas das almadravas, onde seriam um
grupo particularmente activo. Porém, esta é uma realidade que se repetiria na vizinha
Andaluzia. Juan Gil identificou-a nos processados pela Inquisição de Sevilha826
.
Quanto aos cristãos-novos que abraçaram a carreira militar, a sua presença é ainda
mais modesta, embora regista um ligeiro crescimento na década de 40, fruto do
recrudescer das tensões na fronteira. Na vila de Albufeira, verificamos que o número de
cristãos-novos militares atinge os 9% para o período de 1620-1650. Talvez esse valor
fosse igualmente significativo em Tavira e ainda mais em Castro Marim, dada a
824
Maria do Carmo Teixeira Pinto verificou, no caso de Tomar, que cerca de metade dos cristãos-novos
denunciados durante a visitação de 1561 se dedicava ao comércio (Cf. Teixeira Pinto, “A visita...
Tomar...”, Arqueologia..., p. 361). Relativamente a Elvas, no período do reinado de João IV, a mesma
autora concluiu que o número de cristãos-novos artesãos era dominante, superando o dos mercadores (Cf.
Idem, Os Cristãos-Novos de Elvas..., p. 537). Ao estudar as entradas da Inquisição na vila de Melo no
século XVII, José Pedro Paiva notou que, em termos sócio-profissionais, o grupo numericamente mais
significativo era os mercadores (36%), seguindo-se os tendeiros (12%) e os tosadores (10%). (Cf. Paiva,
“As entradas... Melo...”, RHI..., p. 188). 825
No presente estudo, incluímos os indivíduos que “viviam de sua fazenda” na categoria “Outros”, dada
a indefinição desta referência, referindo-se quer a rendimentos agrícolas, quer comerciais. Note-se que, no
período de 1621-1650, em Loulé, a percentagem de cristãos-novos que viviam de sua fazenda superava os
5% e, em Lagos, chegava aos 11%. Considerando a totalidade da região, para o mesmo período, o valor é
pouco significativo. 826
Cf. Juan Gil, Los Conversos y la Inquisición Sevillana, vol. VI, Sevilha, Universidad de Sevilha,
Fundación del Monte, 2003, p. 68.
198
proximidade da fronteira. Contudo, nesse período, os dados conhecidos relativos às
duas localidades são insuficientes para qualquer ilação.
A verdade é que a carreira das armas e a vida no mar não integravam as actividades
tradicionalmente associadas aos cristãos-novos, ao contrário do comércio e dos
mesteres, cuja tradição remontava aos antepassados judeus. Mas confrontemos uma
amostragem profissional dos judeus de Faro, no século XV, apresentada por Maria José
Ferro Tavares827
, com os dados recolhidos sobre os cristãos-novos residentes na cidade
durante o período de 1550 a 1650:
Judeus, séc. XV Cristãos-novos, 1550-1650
1. Sapateiros
2. Alfaiates
3. Administrativos
4. Ourives
5. Mercadores
6. Rendeiros
7. Tecelões
1. Mercadores
2. Sapateiros
3. Alfaiates
4. Religiosos
5. Sirgueiros
6. Cirurgiões
7. Advogados
O comércio tornou-se na principal actividade, enquanto que, entre a comunidade
judaica de Quatrocentos, era superado por determinados mesteres, como a sapataria e a
alfaiataria, os quais, não obstante, continuaram a ter grande importância no contexto
sócio-profissional dos cristãos-novos de Faro. Mas este quadro comparativo é também
revelador de grandes transformações. A conversão abriu aos cristãos-novos o acesso à
carreira eclesiástica. Em Faro, sede episcopal do Algarve desde 1577, os ofícios religiosos
ocupavam a quarta posição na escala das actividades exercidas pelos cristãos-novos.
Contudo, estes números ocultam uma outra realidade. O cristão-novo referido na
documentação enquanto mercador, ou sapateiro, ou mesmo médico, raramente se
dedicava a essa actividade de forma exclusiva. De facto, há quem apareça mencionado
como alfaiate e rendeiro, mercador e cirurgião, sapateiro e pescador, ou mesmo tosador
e confeiteiro828
. Mas, fora estes casos, em que duas ou mais actividades surgem
associadas a um mesmo indivíduo, a documentação indicia que, independentemente do
ofício exercido, boa parte dos cristãos-novos teria o seu quinhão de terra no termo dos
827
Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... século XV..., vol. I, p. 305. 828
São os casos, por exemplo, de Pedro Fernandes, o Branco, de Vila Nova de Portimão, alfaiate e
rendeiro (Cf. ANTT, IE, proc. 5259), Mestre Lopo, também de Vila Nova de Portimão, cirurgião e
mercador (Cf. ANTT, IL, proc. 2180), Diogo Fernandes, de Faro, sapateiro e pescador (Cf. ANTT, IE,
proc. 5289) e Francisco Dias, de Tavira, tosador e confeiteiro (Cf. ANTT, IL, proc. 8925).
199
principais núcleos urbanos829
. Ao contrário do estereótipo, existia um vínculo à terra,
também relacionado com a própria estratégia comercial. O mercador dominava, assim,
todo o processo produtivo, desde os campos até aos mercados, e, em paralelo, apostava
numa actividade de menor risco que lhe poderia garantir o sustento básico se mal
sucedido nos negócios. Afinal, encontramo-lo a cultivar os produtos agrícolas que,
transformados, alimentavam as exportações do Algarve – o figo, a uva e a azeitona.
Mas vejamos dois casos exemplares da polivalência profissional dos cristãos-novos
do Algarve. Para comerciar os seus produtos, Fernão de Álvares circulava pelas feiras do
Algarve e do Alentejo e deslocava-se com frequência à Andaluzia. Em Junho de 1635,
embarcou em Lagos rumo a Valença, de onde seguiu, por terra, para Sevilha. No ano
seguinte, passou o mês de Agosto no termo de Lagos, a cobrar algumas dívidas, em trigo,
aos lavradores dos lugares de Almádena, Raposeira e Barão de São João. Dedicou-se
depois à vindima nas suas terras, no termo de Lagos, onde esteve até 16 de Outubro,
altura em que foi à feira de Santa Iria, em Faro. No final do mês, seguiu com mercadorias
para a feira de Silves. Fernão de Álvares também estivera envolvido no negócio do atum,
anos antes. Nas contraditas do seu processo, ele alegou que, entre Maio e Julho de 1624,
assistiu nas almadravas, alojado numa cabana enquanto “[...] beneficiava o dito atum com
sua fábrica [...]”830
.
Anos antes, Diogo Lopes, também de Lagos, mantinha a mesma amplitude de
actividades. Em 1614, ocupou grande parte do mês de Setembro na vindima. Quando
esta acabou, dedicou-se a construir umas casas, tarefa que se estendeu até meados de
Novembro. Desde então e até ao mês de Janeiro, esteve a plantar uma vinha, a légua e
meia da cidade de Lagos. Entre Janeiro e Março, andou na Ribeira de Odiáxere, nas
suas fazendas, a cavar e a podar, sempre acompanhado por muitos trabalhadores.
Porém, a 15 de Março, já havia regressado à actividade comercial, negociando nas
armações da Pedra da Galé, Zavial e Burgau831
.
829
No estudo sobre a comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa, Aida Maria Oliveira Carvalho
também verificou que os cristãos-novos, quer fossem mercadores ou mesteirais, quer tivessem outra
actividade profissional, mantinham um forte vínculo à terra (Cf. Aida Maria Oliveira Carvalho, A
comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa. Rupturas e continuidades. Séculos XVII-XVIII, Vila
Nova de Foz Côa, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 44). Ocorreria o mesmo em
Viseu, segundo revelou uma devassa inquisitorial na cidade entre 1595-1605. Maria Teresa Gomes
Cordeiro acrescenta que o desempenho de actividades rurais era já comum entre a comunidade judaica de
Viseu. (Cf. Gomes Cordeiro, Adonai nos cárceres..., pp. 99-101). 830
Cf. ANTT, IE, proc. 4376, fls. 48v-49, 52. 831
Cf. ANTT, IE, proc. 9005.
200
O comércio
Os três níveis de actividade mercantil – a local, a interna (regional e nacional) e a
externa – revelavam uma forte permeabilidade. O tendeiro deslocava-se frequentemente
às feiras realizadas noutras localidades, mais ou menos longínquas, onde adquiria as
mercadorias para vender na sua loja. Periodicamente, embarcava rumo às cidades
costeiras da Andaluzia e ali tratava as suas mercadorias. Era o caso de Afonso Pinto
Duarte, com tenda na Rua Direita de Faro, que ia a Castela vender figo832
. Numa
ocasião, foi acompanhado por um outro mercador, Pedro de Seixas. Para este, era
habitual seguir para lá do Guadiana, rumo a Sevilha, Granada e Valença, e ali comerciar
figo e sardinha. As mesmas mercadorias eram igualmente vendidas por Pedro de Seixas
nas feiras alentejanas, nomeadamente em Vila Viçosa, Évora e Estremoz. Em Faro,
adquiria atum, possivelmente destinado ao mercado castelhano. Ainda na cidade,
comprava e vendia tecidos, integrando-se nas redes locais de comércio833
.
A especialização era pouco acentuada, sobretudo ao nível do comércio local. O rol de
mercadorias comercializadas nas tendas primava pela diversidade. Em Lagos, o tendeiro
Diogo Mendes, o Espada Larga, comerciava linhas, tecidos, pimenta, arame, arroz e
vinho, proveniente de uma propriedade que arrendara no termo. Além disso, os seus
parentes enviavam-lhe trigo do Alentejo. Aliás, foi assim que Diogo iniciou a sua carreira
de mercador em Setúbal, vendendo o trigo que o pai lhe remetia do Alentejo. E não se
ficou por aqui. Acompanhara D. Sebastião na expedição de Alcácer Quibir e permanecera
durante 4 anos em Tânger. Depois, estabeleceu-se em Lagos, onde casou e passou a
ganhar a vida como sapateiro. O negócio da tenda de marçaria viria mais tarde834
.
Diogo Mendes negociava trigo que vinha do Alentejo. Também em Lagos, e como
já vimos atrás, Fernão de Álvares recebia os créditos que tinha sobre lavradores da
região em trigo. Produto que costumava escassear na região, mas ainda assim produzido
nos termos de Lagos, Silves e Loulé, o trigo tendia a sofrer flutuações de preço muito
acentuadas e, em momentos de desfasamento da procura em relação à oferta, o seu valor
disparava, sendo uma mercadoria potenciadora de generosos lucros e, desta forma,
muito atraente aos olhos dos negociantes. Mesmo assim, estes tinham de se sujeitar aos
constrangimentos municipais sobre a sua produção e venda835
. Mas o trigo era,
832
Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 172. 833
Cf. Idem, fls. 4-4v, 173v-174, 178, 182, 185. 834
Cf. ANTT, IE, proc. 6485. 835
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 245-250.
201
essencialmente, um produto adquirido fora do Algarve, oriundo do Baixo Alentejo836
e
do exterior, nomeadamente de Castela, Norte de África e Levante Mediterrânico837
.
Na aquisição de produtos que escasseavam na região e na revenda de mercadorias
compradas nas feiras ou no trato marítimo, os mercadores algarvios inscreviam-se com
desenvoltura nos circuitos do comércio internacional. Em 1543, Diogo Pires, mercador
natural do Porto mas residente em Lagos, fora a Lisboa vender vinho, trigo e breu que
adquirira nas Canárias. Durante três meses, a mãe ajudou-o no negócio, vendendo o
vinho que ele trouxera numa loja no Poço da Fótea. Já em Lagos, Diogo carregou uma
nau de vinhos e frutas para a Flandres, em sociedade com outros mercadores, na qual
seguiram dois sobrinhos seus, com a missão de transaccionar as mercadorias no
destino838
. Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, estava no porto de Cachéu no início de
Seiscentos, envolvido no comércio negreiro. Mantinha negócios com um outro
mercador de Faro, Fernão Duarte de Castro – este dera-lhe dois escravos para vender
nas Índias Castelhanas, instruindo-o de que deveria deixar o dinheiro da venda a Duarte
do Leão Marques, em Cartagena839
. Alguns anos mais tarde, Manuel Dias Pereira não
precisava de sair do Algarve para operar no comércio atlântico. A partir de Tavira,
recebia remessas de sumagre, conservas e açúcar da Madeira, que depois revendia em
Tavira e Faro840
. Seguramente, teria compradores entre os mercadores estrangeiros que
frequentavam os portos das duas cidades.
Já vimos anteriormente a relação entre o movimento portuário e o desenvolvimento
urbano. Afinal, os núcleos emergentes no Algarve durante a centúria de Quinhentos –
Faro, Vila Nova de Portimão e Lagos – eram também localidades dotadas de portos
muito concorridos. Diogo Pires alegou que, caso quisesse enviar a sua mãe para fora do
reino e, assim, pô-la a salvo da perseguição inquisitorial, tal seria simples, pois a baía de
Lagos era muito frequentada por navios que carregavam para a Flandres e outras
partes841
. Anos depois, o porto de Faro registava ainda maior afluência. Em 1586, numa
carta ao Conselho Geral, o bispo D. Afonso de Castelo Branco alertava para a existência
836
“Mas a villa de Mertola sua vizinha que é a Mirtilis antiga colonia de romanos, suppre bem essas faltas
com a grande quantidade de trigo que nella se dá, a que tambem ajuda a parte do Campo de Ourique que
ao dito reino tambem está vizinha” (Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino..., p. 203). 837
Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., pp. 83-86. 838
Cf. ANTT, IE, mç. 26, doc. não numerado. Trata-se de uma carta de 18 de Maio de 1545, de Pedro
Álvares de Paredes e Julião Álvares, inquisidores de Évora, para Jorge Rodrigues, inquisidor apostólico
no bispado do Porto, sobre as contraditas de Diogo Pires, preso pelo tribunal de Évora em 1544. 839
Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fl. 88v. 840
Cf. ANTT, IE, proc. 5686. 841
Cf. ANTT, IE, mç. 36, doc. não numerado. Vide em anexo, pp. 235-237.
202
de muitos “judeus” no Algarve que facilmente fugiriam a partir de Faro, através das
muitas embarcações de Marselha, de Livorno e do Levante que ali aportavam842
.
Temos dados mais precisos sobre a frequência do porto de Faro no século seguinte
através da consulta do registo das visitas às naus estrangeiras, alvo do estudo de
Virgínia Rau843
. Segundo o regimento, os oficiais do Santo Ofício deveriam visitar
todos os navios estrangeiros que entrassem nos portos portugueses “[...] de partes de
que ouver sospeita que sua vinda possa trazer prejuizo aa tera e cousas de fee [...]”844
.
Portanto, esses dados constituem apenas uma amostra das embarcações que
frequentavam o porto de Faro e, ainda para mais, uma amostra não aleatória. O
movimento do porto variava ao sabor das tensões políticas. Assim, vemos praticamente
desaparecer o registo de navios holandeses a partir de 1621, momento em que terminou
a trégua entre as Províncias Unidas e Castela – 6 navios em 20 anos. A sua presença é
retomada já depois de 1640. Contudo, os registos notariais de Amesterdão
complementam essa informação e fornecem-nos uma perspectiva diferente. Vejamos o
registo dos contratos de transporte referentes a embarcações que, em 1627, saíram do
porto de Amesterdão destinadas a Faro:
Data Contraentes Embarcação
24 Julho João de Faro e Harman Kramer De Fortuine
30 Julho Pedro Homem de Medeiros e Gerrit Cornelisz St. Pieter
27 Agosto Francisco Lopes de Azevedo e Jan Janssen Vollehoof De Swarte Leeu
30 Agosto João de Faro e Harmen Wilkes De Fortuine
4 Novembro João de Faro e Willem Jacobsz St. Pieter
24 Novembro Joan Huigens, António Martins Viegas e Pieter Siimonsz St. Jacob
Portanto, uma das partes contraentes é sempre um mercador português estabelecido em
Amesterdão. Arriscaria mesmo dizer que cristão-novo. Em todos os contratos, na lista das
mercadorias carregadas para o Algarve, encontramos os mesmos produtos: figos,
amêndoas, azeite e açúcar – os primeiros três, frutos da terra, o último, fruto do comércio
atlântico845
. Segundo a lista das naus estrangeiras visitadas em Faro, durante o ano de 1627,
entraram no porto os navios A Fortuna, cujo mestre era “Armao Cropier”, S. Pedro e Leão
Roxo, todos oriundos de Danzig (Gdańsk). Ora, tratar-se-iam das mesmas embarcações que
842
Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fl. 4. 843
Cf. Virgínia Rau, Subsídios para o estudo do movimento dos portos de Faro e Lisboa durante o século
XVII. Separata de Anais da Academia Portuguesa de História, 1954. A dita fonte tem a referência: ANTT,
IE, liv. 589. Vide, em anexo, quadro 3, pp. 76-85. 844
Cf. Rau, Subsídios para o estudo..., p. 204. 845
Cf. Wilhelmina Cristina Pietersen e E. M. Koen (eds.), “Notarial records relating to the Portuguese
Jews in Amsterdam up to 1639”, Studia Rosenthaliana, vol. 35, n.º1, 2001.
203
surgem nos registos de Amesterdão. Chegadas a Faro e dado o contexto político, teriam
ocultado a sua verdadeira origem, ou pelo menos em parte. Harman Krames, capitão do De
Fortuine, era, de facto, de Danzig, apesar da sua embarcação ter partido de Amesterdão.
O negócio do atum
Manuel da Guerra é um dos poucos mareantes cristãos-novos identificados na
documentação. Preso em 1648, possuía apenas uma parte ínfima de sangue hebraico e
chegou mesmo a levantar dúvidas sobre a sua “qualidade” – julgava ser cristão-velho. As
contraditas do seu processo ilustram o calendário de quem se dedicava à pesca do atum:
“Provaria que, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1644, 1645 e 1646, residiu o
recusante, Manuel da Guerra, na cidade de Lagos, pescando sempre à linha, por ser
homem do mar, e nos meses de Março de 1644 e 1645 até nos mais meses
seguintes de cada um dos ditos anos até quinze de Abril, andou sempre armejando,
fazendo redes para os atuns, e corvinas, e sardinha na Casa do Corpo Santo, na
cidade de Lagos, e, dos quinze de Abril de cada um dos ditos anos, foi ajudar a
lançar as redes ao mar, donde assistiu na armação de Torralta a Velha até São
Pedro de cada um dos ditos anos.
Provaria que, no fim de Fevereiro e entrada de Março de 1646, residiu ele,
recusante, Manuel da Guerra, na casa das redes da armação da Torraltinha, da
cidade de Lagos, até o fim de Junho, fazendo redes e andando na armação dos
atuns, sem nunca se apartar da dita cidade.”846
No momento em que Manuel da Guerra foi preso, a pesca do atum já não
demonstrava a vitalidade de outrora847
. Aliás, ele próprio referiu não só a pesca do atum,
mas também a da corvina e da sardinha. Em meados de Seiscentos, tornara-se necessário
diversificar as espécies capturadas. Porém, no século anterior, a pesca do atum animava a
economia algarvia e promovia o desenvolvimento doutras indústrias inerentes à
actividade, tais como a construção naval, a cordoagem ou a tanoaria848
. Esse crescimento
da pesca do atum devera-se, essencialmente, à introdução de novos processos de salga,
permitindo uma melhor conservação do peixe e a sua exportação para mercados mais
longínquos849
, e à criação de um organismo centralizador da actividade, as almadravas. A
feitoria das almadravas, sediada em Lagos, fiscalizava a colecta dos direitos reais sobre o
846
Cf. ANTT, IE, proc. 2962, fls. 110v-111. 847
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 196-201. 848
Cf. Idem, Ibidem, p. 233. 849
Os responsáveis pela divulgação dos novos processos de salga do peixe, ainda no século XV, foram os
mercadores e mareantes italianos, em particular os sicilianos, que por essa altura formavam uma
comunidade com grande peso no Algarve, sobretudo na cidade de Lagos (Cf. Manuel João Paulo Rocha,
Monografia de Lagos, Faro, Algarve em Foco, 1991, p. 43; Carminda Cavaco, O Algarve Oriental..., p.
40; Valdo d‟Arienzo, “No extremo ocidental: privilégios, empreendimentos e investimentos sicilianos no
Algarve”, Ler História, n.º 44, 2003, pp. 191-195).
204
atum e cedo se tornou num dos principais órgãos da administração régia no Algarve. O
feitor era não só responsável pelo governo das almadravas, como também, enquanto
agente régio, pela defesa e provimento dos estabelecimentos portugueses em África850
.
Ora, tal é demonstrativo do peso da pesca do atum nos cofres da fazenda real. O provedor
das almadravas, coadjuvado pelo recebedor e pelo escrivão, tinha a responsabilidade de
fiscalizar a actividade e, em particular, a cobrança dos direitos régios, que constituíam a
maior percentagem do atum pescado851
. Segundo Frei João de São José, havia anos em
que a pesca do atum rendia mais de 100 mil cruzados à fazenda real852
. Pouco mais de
duas décadas depois, Henrique Fernandes Sarrão apresentava números mais modestos
mas, ainda assim, elevados853
.
Apesar do peso da fiscalidade régia, o atum não deixava de ser um sector capaz de
cativar o investimento privado. Os mandadores arrendavam as armações por altas
quantias mas, mesmo assim, exceptuando quando o sector começou a entrar em crise, os
lucros eram suficientemente aliciantes854
. A abundância da pesca e do comércio do atum
superava os altos direitos pagos à coroa. Afinal, durante o século XVI, Lagos era o
maior centro exportador mundial de conserva de atum855
.
O negócio do atum não passava ao lado dos cristãos-novos. Antes pelo contrário. O
facto da pesca não ser, nem de perto, uma actividade de eleição não impedia que os
negociantes, sobretudo os de maiores cabedais, se dedicassem ao comércio do atum e, em
particular, à sua exportação para os mercados do Levante Mediterrânico e do Norte da
Europa. Cristóvão de Mendonça, nas contraditas do seu processo, referiu os “[...] cristãos
novos de negócio que tratavam em atuns [...]”, os quais, segundo alegava, tentavam
escapar aos direitos régios sobre a mercadoria, “[...] cometendo muitos enganos na
850
Cf. Costa Guedes, Aspectos do Reino..., pp. 174-175. 851
Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., pp. 187-188. Os direitos pagos à fazenda real constituíam 60%
do pescado, enquanto que, nas outras espécies pescadas, a proporção era inversa, ou seja, 6 em 10 peixes
para os armadores e 4 para a coroa (Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 93). Numa carta de 20 de
Janeiro de 1572, D. Jerónimo Osório criticava o peso excessivo dos dízimos do atum: “Pois o mar não he
patrimonio e os mariantes poem de sua casa esparto e canhamo, e ferro, e pau, e vinho, e trabalho, e perigo,
e isto sendo o preço de tudo tão diferente do que era no tempo passado, e com tudo pagarem de dez atuns
seis parece mui excessivo tributo.” (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., p. 653). 852
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 122. 853
“As almadravas rendem ordinariamente cada‟ano cinquenta mil cruzados mais ou menos para el-rei,
com pouca despesa. Não é de maravilhar a riqueza do Oriente, mas muito de louvar haver no Ocidente
mar tão rico [...]” (Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 146). 854
Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., pp. 186-187. 855
Cf. Fernand Braudel e R. Romano, Navires et merchandises à l’entrée du port de Livourne, Paris,
1951, p. 45, apud, Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., p. 157.
205
matéria de despacharem os barris [...]”856
. Em Faro, Diogo de Tovar e o sogro Manuel
Mendes do Óculo exportavam atum para os mercados do Levante857
.
Embora já não fosse o seu tempo áureo, o comércio do atum continuava a atrair o
interesse dos mercadores de maior trato, como Fernão Nunes, recebedor das almadravas
de Faro, ou o seu conterrâneo Manuel Henriques, que chegou a desempenhar o cargo de
recebedor da armação de Quarteira durante 14 anos. Em paralelo, Manuel Henriques fora
lançador da finta de 1633 e recebedor dos três por cento da alfândega da cidade858
.
Tal como Manuel Henriques, muitos outros cristãos-novos algarvios equilibravam a
actividade mercantil com contratos de arrendamento promissores de avultados lucros.
Em 1633, três mercadores cristãos-novos de Faro, Pedro Vaz Pinto, Henrique Martins
Correia e Dinis Álvares, eram rendeiros dos almoxarifados do bispo e do cabido e
comenda da cidade de Tavira e seu termo. A 12 de Julho desse ano, através dos seus
representantes em Tavira, Francisco Machado e Henrique Dias arrendaram todo o
dízimo das favas secas e do vinho a Francisco Dias Arrais859
. Mas um dos casos mais
paradigmáticos de contratadores bem sucedidos é o da família Gama, de Loulé.
A evolução de um negócio familiar. Os Gama de Loulé
A família, base da estrutura social e económica, emergia como factor determinante
na definição da actividade profissional. Os laços de parentesco garantiam a confiança e
propiciavam uma diminuição do risco nas transacções comerciais, além da maior
abrangência da tessitura negocial.
Sustentados numa sólida estrutura familiar, em apenas duas gerações, os Gama
evoluíram de um negócio de escala regional para a integração no grande comércio
transatlântico860
. O patriarca, Fernão Soeiro, era filho de um lavrador de Campo de
856
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 300v. 857
Em 1618, por ordem do sogro, Diogo de Tovar fora a Sevilha cobrar uma dívida, no valor de 3.000
cruzados, a um levantisco que embarcara uma partida de barris de atuns. (Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 360). 858
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 107-113, passim. Vide em anexo, pp. 431-435. 859
Cf. ADF, Cartório Notarial de Tavira, 8-4-155, códice não paginado. No documento não aparece
qualquer referência à qualidade de sangue dos contraentes e também não temos outros dados que nos
permitam identificar se Francisco Dias Arrais era cristão-novo ou cristão-velho. Quanto aos outros
envolvidos no negócio, todos foram fintados em 1631 e Dinis Álvares esteve preso na Inquisição de
Évora (Cf. ANTT, IE, proc. 2969). Pedro Vaz Pinto acabaria por fugir para Castela após este negócio, em
Outubro desse ano (Cf. ANTT, IE, proc. 3997). 860
Vide David Grant Smith, The Mercantile Class of Portugal and Brazil in the Seventeenth Century: a
socioeconomic study of the merchants of Lisbon and Bahia, Ann Arbor, 1985, edição fac-similada, pp.
139-148; Fernanda Olival, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em
Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar Editora, 2001, pp. 298-305.
206
Ourique que se tornara tendeiro. Preso a 21 de Agosto de 1629, com 53 anos de idade,
Fernão também possuía uma tenda em Loulé861
. Em simultâneo, chegou a desempenhar o
cargo de tesoureiro dos órfãos, o que lhe valeu o reconhecimento social. Não conversava
“[...] senão com os melhores da terra que, de ordinário, assistiam na sua loja [...]”862
.
A prisão de Fernão Soeiro marcou uma profunda mudança na vida da sua família.
Gradualmente, os Gama abandonaram Loulé. O filho Jorge Lopes da Gama teria sido o
primeiro, já estabelecido em Lisboa na primeira metade da década de 20863
. A mãe, Inês
Nunes da Gama, tardaria a mudar-se. Em 1633, quando o marido ainda se encontrava no
cárcere, ela comprou uma terra com figueiras no sítio de Quartos, termo de Loulé864
.
Possivelmente, não pretendia sair da vila tão cedo. Mas, em 1648, Isabel já se
encontrava a residir em Lisboa, na casa da filha Guiomar Soeira da Gama865
. Um outro
filho, Manuel da Gama de Pádua, circulava correntemente entre a capital e o Algarve.
Entre Maio e Julho de 1633, esteve em Lisboa, onde conseguiu o cargo de tesoureiro da
bula das cruzadas no reino do Algarve, não obstante a prisão do pai. Regressou a Loulé
no início de Setembro de 1633, depois de ter assistido na feira de Beja, onde comprou
cera para vender em Lisboa. Este era o percurso comum na vida profissional de Manuel
da Gama mas também do seu pai – os dois frequentavam as feiras do Alentejo e do
Algarve, onde adquiriam mercadorias que despachavam para Lisboa866
. Em 1637,
Manuel da Gama residia em Lisboa. Porém, os vínculos da familia com a vila de Loulé
não cessaram. Segundo o inventário do processo inquisitorial de Jorge Lopes da Gama,
mais de duas décadas após se ter fixado na capital, ele ainda possuía propriedades na
vila algarvia: um olival, farrageais, duas moradas de casas e celeiros867
.
Preso pela Inquisição de Lisboa em 1637, Manuel da Gama, apresentado como
mercador de sedas, negou todas as acusações e, depois de uma sólida defesa, acabou por
sair no auto-de-fé de 11 de Março de 1640, sentenciado a cárcere ao arbítrio dos
inquisidores868
. A pena leve permitiu-lhe uma recuperação rápida da fortuna perdida.
Aliás, foi a partir da prisão que os seus negócios ganharam um novo fôlego. Do
comércio das sedas passou ao do açúcar, de mercador de loja ascendeu a homem de
861
Cf. ANTT, IE, proc. 6518. 862
Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fl. 88v. 863
Em 1626, Jorge Lopes era mordomo da confraria do Santíssimo Sacramento, na Igreja da Madalena
(Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 57v). 864
Cf. ADF, 1º Cartório Notarial de Loulé, 1-1-16, fls. 97-99. 865
Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 42v. 866
Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fls. 64-65. 867
Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 28. 868
Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fls. 191-191v.
207
negócio integrado no grande comércio internacional. Entre os anos de 1648 e 1652,
desempenhou o cargo de tesoureiro-geral dos quintos dos direitos dos açúcares que se
despachavam nas alfândegas do reino e das ilhas869
. Entretanto, integrou o grupo de 16
investidores na fundação da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Tal como outros
contratadores cristãos-novos, Manuel da Gama teria sido aliciado pela promessa de
isenção de confisco de bens no caso de processo inquisitorial870
.
O alargamento dos negócios fora indelevelmente influenciado pela rede familiar. O
tio Francisco Lopes Soeiro e dois primos (Simão Pereira de Azevedo e José de
Azevedo) na Bahia, o tio Simão Soeiro em Granada e um outro, António da Gama, nas
Índias de Castela, além doutros parentes emigrados em Castela, seriam contactos
privilegiados, estantes em pontos centrais do comércio transatlântico. Já depois de
reconciliado, Manuel da Gama casou-se com Inácia de Sequeira, filha de Diogo
Fernandes de Sequeira, importante contratador de Lisboa e, no passado, parceiro de
Fernão Soeiro no negócio do atum871
. O irmão Jorge Lopes também tinha no cunhado,
António Dias Henriques (irmão da sua mulher Isabel Henriques), um dos seus principais
sócios872
. O casamento das irmãs determinou igualmente a ascensão social e económica
da família: Leonor da Gama casou com o Dr. Diogo Fernandes Henriques, advogado da
Casa da Suplicação; Maria da Gama, com Gregório Dias, mercador; Inês da Gama com
Jorge Lopes Simões, negociante de ferro; e Guiomar Soeiro da Gama com Manuel
Rodrigues da Costa, sócio dos cunhados nos contratos com a coroa873
.
Além dos laços familiares, Manuel da Gama e o irmão Jorge Lopes passaram a
integrar a elite mercantil de Lisboa, aproximando-se de grandes mercadores como os
irmãos Jorge Dias Brandão e Rodrigo Aires Brandão, António Rodrigues Mogadouro e
Duarte da Silva874
. Este último, em Dezembro de 1647, foi preso pela Inquisição de
Lisboa, arrastando atrás de si parte dessa elite875
. Manuel da Gama salvou-se de uma
869
Cf. ANTT, Chancelaria de D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 25, fl. 113v. 870
Vide em anexo, pp. 463-468. Sobre a constituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, vide
Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-
1663), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002. 871
Cf. “Sequeira, Diogo Fernandes de”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., p. 632. 872
Cf. Smith, The Mercantile Class..., p. 142. 873
Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fls. 44-45. Cf. Smith, The Mercantile Class..., p. 144. 874
Cf. Alberto Dines, Vínculos do fogo. Antônio José da Silva, o Judeu e outras histórias da Inquisição
em Portugal, São Paulo, Editora Schwarcz, 1992, pp. 277, passim. Vide também as biografias destes
mercadores em Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 105-111, passim. 875
Vide Leonor Freire da Costa, “Elite mercantil na Restauração: para uma releitura”, Optima Pars. Elites
Ibero-Americanas do Antigo Regime. Org. Nuno G. F. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da
Cunha, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 99-131.
208
nova prisão, mas o irmão não. A 8 de Janeiro de 1648, Jorge Lopes da Gama entrava
nos cárceres inquisitoriais.
O seu processo revela um lato espectro de negócios – mercador de sedas, negociante
de açúcar, contratador876
. Em 1645, participara do contrato de provimento de cereais ao
exército das fronteiras do Alentejo, em sociedade com outros mercadores, entre os quais
Cristóvão Rodrigues Marques e os irmãos Gaspar e Manuel Malheiro, cristãos-
velhos877
. Um dos seus principais parceiros de negócio era o irmão mais novo, António
da Gama Nunes, o qual também investiu avultados capitais na Companhia Geral do
Comércio do Brasil878
. No inventário do processo de Jorge Lopes da Gama, são várias
as referências à parceria mantida com o irmão que, havia pouco mais de um ano,
chegara do Rio de Janeiro. Em 1647, já em Portugal, António da Gama preparava o
casamento com a sobrinha Inês da Gama, filha de Jorge Lopes879
.
A prisão do irmão não terá abalado a carreira de Manuel da Gama, nem a sua
posição perante a coroa. Aliás, corria o rumor de que ele próprio interviera junto das
autoridades para minorar o cárcere do irmão em tempo e rigor da sentença – Jorge
Lopes saíra no auto de 10 de Julho de 1650, onde abjurou de levi e lhe foi sentenciado
cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Nesse mesmo ano, Manuel da Gama obteve o
assento da palha do Alentejo, ao lado do outro irmão, António da Gama, e do cunhado
Manuel Rodrigues da Costa. Com os mesmos sócios, tomou metade do contrato para o
pagamento dos exércitos de todas as fronteiras do reino, dois anos depois. Continuou,
então, a destacar-se nos contratos de provimento dos exércitos, enriquecendo à custa das
necessidades militares da coroa. Acumulava esses contratos com o ofício de tesoureiro
da alfândega de Lisboa, do qual tomou posse a 1 de Janeiro de 1655, depois do
pagamento de 20.000 cruzados à fazenda real880
.
A fortuna trouxe-lhe o reconhecimento social, apesar do sangue hebraico que lhe
corria nas veias e do passado manchado por um processo inquisitorial. Em 1652, D. João
IV concedeu-lhe o foro de fidalgo, em recompensa pelos serviços prestados à coroa. Seis
876
Cf. ANTT, IL, proc. 7911. 877
Cf. ANTT, Chancelaria de D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 18, fls. 168v-169. 878
António da Gama Nunes entrou na Companhia Geral do Comércio do Brasil com 1.600 mil réis. Os
seus herdeiros acabaram por trespassar este valor à fazenda real, sendo-lhes passado um padrão de juro de
80 mil réis anuais. Ainda em vida, António da Gama comprara um padrão no valor de 200 mil réis sobre
o estanco do tabaco (Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso VI. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 2, fls. 153-
154; liv. 6, fls. 446v-447v; liv. 8, fls. 70v-72). 879
Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 29. 880
Cf. ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês da Torre do Tombo, liv. 22, fl. 493v. Em 1658, a
serventia do cargo foi prolongada por mais 3 anos, até 1660 (Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso VI.
Doações, Ofícios e Mercês, liv. 23, fl. 56v).
209
anos depois, Manuel da Gama tentou a habilitação à Ordem de Cristo881
. Uma dispensa
papal para os seus “defeitos de sangue” possibilitou-lhe a obtenção do hábito logo no ano
seguinte, tal como a comenda de S. Francisco da Ponte de Sôr882
. Anos depois, em 1673,
Manuel da Gama foi um dos três mercadores que propôs ao rei a criação da nova
Companhia Portuguesa das Índias Orientais, em troca da promulgação do perdão geral.
Esta foi a sua última luta. Já bastante idoso, viajou até Roma para negociar o perdão geral
e denunciar os abusos cometidos pela Inquisição. Ainda antes de concluídas as
negociações, encontrou a morte, no ano de 1679.
Os mesteres
Regressando aos números, os mesteirais cristãos-novos referidos na documentação
consultada distribuíam-se da seguinte forma:
Sapateiros 35%
Alfaiates 20%
Sirgueiros 9%
Ourives 9%
Tosadores 8%
Ferreiros 4%
Surradores 2%
Confeiteiros 2%
Sapateiros, alfaiates, sirgueiros, ourives e tosadores – seriam estes os cinco ofícios
artesanais mais comuns entre os cristãos-novos do Algarve. O que produziam destinava-
se, na sua maioria, aos mercados local e regional. Afinal, as poucas actividades
transformadoras que visavam a exportação quase se resumiam à produção de vinho e de
azeite. Da terra, mas sem necessidade de grande labor, também provinha o esparto e a
palma que, em estado bruto ou transformado através das actividades da cordoagem e
cestaria, eram produtos de exportação883
. Porém, não são particularmente significativas
881
Cf. ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra M, mç. 42, doc. 30. Vide em anexo, p. 462. 882
Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 50, fl. 338; liv. 51, fls. 106-106v, 119-119v, 152v,
175. Após a morte de Manuel da Gama de Pádua, a comenda de S. Francisco de Ponte de Sôr passou a
pertencer ao seu filho António da Gama de Pádua (Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 18, fl.
244v). Sobre a habilitação e concessão do hábito da Ordem de Cristo a Manuel da Gama de Pádua, vide
Olival, As Ordens Militares..., pp. 299-300. 883
Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., pp. 174-175. Os mercadores usavam as obras
feitas em esparto (alcofas, esteiras, cestas) no transporte de mercadorias. Em 1597, Simão Álvares
recordava como, anos antes, tinha ido à aldeia de Pêra “buscar empreita para enseirar o figo”, ou seja,
buscar esparto para fazer as seiras para transportar o figo (Cf. ANTT, IE, proc. 8928 (denúncia no
processo da irmã Violante Quaresma)).
210
as referências a cristãos-novos cordoeiros, cesteiros ou sombreireiros no Algarve.
Constituíam trabalhos efectuados, muitas vezes, em complemento doutras actividades.
O esparto e a palma cresciam espontaneamente em terrenos incultos e a sua colheita e
trabalho integrava a rotina das actividades agrícolas, associados à vindima e ao alacil do
figo e, com frequência, vinculados aos lavores femininos884
.
A manufactura têxtil limitava-se, praticamente, ao consumo doméstico. Tal não se
devia à escassez de matéria-prima, pois cultivava-se linho um pouco por toda a parte e,
na serra, abundava o gado ovino. Porém, a qualidade dos produtos era inferior à dos
panos importados da Flandres, Inglaterra, França e Castela885
. Os tosadores e sirgueiros
destinavam a sua produção às franjas mais pobres da população, sem recursos para
comprar os têxteis importados, bem mais caros do que os produzidos localmente.
A estreita relação entre os cristãos-novos e os ofícios de sapateiro e de alfaiate era
comum a outras comunidades886
. No Algarve, eram ofícios que registavam uma fraca
especialização. Veja-se o caso de João Lopes, sapateiro nas alcaçarias de Faro, em
meados do século XVI. Das três casas onde trabalhava, uma destinava-se aos banhos
para curtir as peles e outra à mó que triturava as cascas para o tratamento dos couros.
Frequentavam-nas outros sapateiros da cidade que ali iam preparar a matéria-prima para
as suas obras887
.
Quase um século depois, encontramos em Faro outros dois sapateiros cristãos-novos
também reconhecidos como curtidores – Baltazar Fernandes e Simão Rodrigues888
. Este
último, por volta de 1628, vivia com o sobrinho António Fernandes, mercador que
comerciava couros. Pouco depois, seguiu para Huelva, onde já residia em 1636889
. A
continuidade profissional no interior da família é mais flagrante no caso de Baltazar
884
Relativamente ao trabalho da palma, refere João Baptista da Silva Lopes: “Todo o trabalho he feito por
mulheres: ellas a vão colher no mais intenso calor de Verão; ellas a lanção ao sol, e sem mais preparo fazem
as vassouras; elas a preparão lavando e dando-lhe fumo de enxofre para fazerem as outras obras, como
condeças, esteiras, capachos redondos, golpelhas, alcofas, e a consideravel quantidade de seiras, em que se
mette todo o figo e passa de uva que se exporta: ellas ainda tingem alguma de preto e encarnado, com que
bordão e matizão aquellas obras, às quaes dão bonitos lavores: com a empreita mais estreita, e fina fazem
chapéos de que até algumas senhoras usão [...]” (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., p. 151). 885
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 218-219. 886
Juan Gil também concluiu que, entre os conversos penitenciados pela Inquisição de Sevilha, os ofícios
mais comuns eram os alfaiates (13,3%) e os sapateiros (11,3%) (Cf. Gil, Conversos y la Inquisición
Sevillana..., p. 73). Relativamente a Elvas, durante o reinado de D. João IV, Maria Teixeira Pinto divide os
artesãos cristãos-novos em dois grupos: um constituído por sapateiros e curtidores, e um outro por alfaiates e
sirgueiros (Cf. Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas..., p. 537). Segundo o estudo de Aida Carvalho,
os sapateiros também dominariam o cenário profissional dos cristãos-novos de Vila Nova de Foz Côa nos
séculos XVII e XVIII (Cf. Aida Carvalho, A comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa..., p. 42). 887
Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fls. 7-8. 888
Cf. ANTT, IE, proc. 329; proc. 462, fl. 20; proc. 756, fl. 26v. 889
Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fl. 36v.
211
Fernandes. O ofício de sapateiro era comum a boa parte dos elementos masculinos da
família: o irmão Manuel Gomes; o sogro Diogo Pires; o cunhado Luís Pestana; os
sobrinhos Francisco, Manuel e Sebastião Pestana; os filhos Brás das Candeias, Diogo
Pires e João Nunes890
. No seu dia-a-dia, as relações sociais também se desenvolviam
dentro de um círculo onde predominavam os sapateiros, os surradores e os curtidores.
Baltazar Fernandes e os filhos eram próximos dos Guterres, uma outra família de
sapateiros891
. Um dos filhos de Baltazar, Brás das Candeias, era amigo de João Fernandes,
um jovem surrador de Faro892
, cuja família revelava a mesma uniformidade profissional:
o irmão Manuel Gomes, o cunhado Vicente Ferreira, o pai Gabriel Gomes, os tios Luís
Fernandes e Tomás Fernandes e o avô paterno João Fernandes eram todos surradores893
.
Frequentavam as casas e as lojas uns dos outros e auxiliavam-se mutuamente no trabalho
dos campos que possuíam no termo da cidade. Os laços profissionais e de amizade
constituíam um aval de fiabilidade que não se espelhava apenas nos negócios, como
também na comunicação da fé interdita. A prisão de João Fernandes Guterres, em Março
de 1635, acabou por criar um efeito bola de neve e, nos anos seguintes, os cárceres da
Inquisição de Évora encheram-se de elementos destas três famílias.
A concentração dos ofícios sentia-se até na geografia das cidades e vilas. Em Tavira,
nas décadas de 20 e 30 do século XVII, perto da Porta de São Brás, residiam, nada mais,
nada menos, que 7 sapateiros894
. O nome de algumas ruas, só por si, indicava o mester ali
dominante: em Faro, havia a Rua dos Surradores, onde vivia a família de João Fernandes;
em Lagos, a Rua dos Ferreiros e a Rua dos Sombreireiros; em Vila Nova de Portimão, a
Rua dos Ourives. Ali, cristãos-novos e cristãos-velhos viviam porta a porta, partilhando e
concorrendo nos mesmos ofícios. À relação profissional sucediam os vínculos parentais.
Manuel Rodrigues, correeiro de Faro, era casado com uma cristã-velha, Maria Jorge, irmã
de José Dias, sapateiro e curtidor, e de Manuel Jorge, correeiro. Deste enlace, nasceram 6
filhos, entre eles: João Rodrigues, que iniciou a sua carreira como sapateiro antes de se
tornar mareante; Gaspar Rodrigues, correeiro; e Filipa Rodrigues, que se casou com um
coureiro cristão-velho, Nicolau Antunes895
. Coureiros, curtidores, sapateiros e correeiros,
890
Cf. ANTT, IE, proc. 4446, fls. 1v-3; proc. 6209, fls. 7-8v. 891
Eram-no Luís Guterres, dois dos seus tios paternos, Jerónimo e João Fernandes Guterres, e um
cunhado Francisco Pestana (Cf. ANTT, IE, proc. 5496, fls. 9-10v, 14v). 892
Cf. ANTT, IE, proc. 6209, fls. 2v-3. 893
Cf. ANTT, IE, proc. 5495, fls. 5-6; proc. 3559, fl. 4-5. 894
Eram eles: António Dias (Cf. ANTT, IE, proc. 7653); Domingos Gonçalves, Sebastião Gomes e
Francisco Rodrigues (Cf. ANTT, IE, proc. 4154, fls. 58v-59v); e Pedro Dias, Gaspar Rodrigues e Gabriel
Gomes, os três processados pela Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, procs. 1834, 3557 e 3624). 895
Cf. ANTT, IE, proc. 10967, fls. 45-45v; proc. 756, fls. 1v-2v; proc. 627, fls. 8v-9.
212
os Rodrigues eram uma família em que as actividades dos seus membros se conjugavam
harmoniosamente, influenciando os laços matrimoniais estabelecidos nas sucessivas
gerações. Os interesses profissionais parecem sobrepor-se à qualidade do sangue. Mas
sobre isso falaremos num capítulo adiante.
O trabalho da terra
Questionado pelos inquisidores se, no tempo em que andara a comerciar no termo
de Vila Nova de Portimão, tinha guardado os sábados na companhia de alguém,
Francisco da Gama disse que não, “[...] porquanto, nos ditos montes, não havia senão
lavradores e não cristãos-novos [...]”896
. Disse-o em 1560, na mesma altura em que
outros cristãos-novos de Vila Nova de Portimão, Lagos e Tavira, que povoavam os
cárceres da Inquisição de Lisboa, confessavam ter comunicado a sua fé secreta em
hortas, figueirais ou vinhas, próprias ou de amigos ou familiares897
.
Quase todos os cristãos-novos, com possibilidades para tal, detinham a sua vinha, o
seu olival ou o seu figueiral no termo. Porém, raramente aparecem mencionados como
lavradores. A actividade agrícola surgia como um complemento ao sustento familiar e
não como ofício principal. Encontramos algumas excepções com o avançar do século
XVII, em particular nos termos das cidades e em determinadas localidades mais
vinculadas à produção agrícola. Porém, esses cristãos-novos que tinham na agricultura a
sua principal actividade eram, maioritariamente, filhos de uniões mistas, sobretudo de
mãe cristã-nova e de pai cristão-velho, que herdavam do progenitor a terra e o estatuto
sócio-profissional. Portanto, a incompatibilidade entre os termos “lavrador” e “cristão-
novo”, alegada por Francisco da Gama, se já era redutora para o Algarve de meados do
século XVI, perderia ainda mais o sentido ao longo da centúria seguinte.
O vínculo dos cristãos-novos à terra evoluíu ao longo do período estudado. Na
década de 60 do século XVI, encontramos registos dispersos desse vínculo. Porém,
estes multiplicam-se na documentação referente à entrada da inquisição no Algarve no
final da centúria. Recordemo-nos que, na sequência da peste de 1580, muitos se
896
Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fls. 17v-18. 897
Eram os casos, por exemplo, de Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, que costumava ir a
Alcantarilha, à apanha do figo, por altura em que se guardava o jejum do Quipur (Cf. ANTT, IL, proc.
13285, fl. 8v), ou de Duarte Álvares, mercador de Lagos, que tinha uma horta no termo, onde recebia
outros cristãos-novos com quem comunicava a crença na lei de Moisés, segundo alega o seu colega Diogo
Gonçalves (Cf. ANTT, IL, proc. 3825, fl. 8v).
213
refugiaram nos campos, enquanto as cidades eram assoladas com maior violência.
Passado o flagelo, os campos continuaram a ser um espaço de convívio para os cristãos-
novos que residiam nos espaços urbanos. O movimento era sazonal e particularmente
intenso nos meses de Agosto e Setembro, tempo do alacil e da vindima.
Branca Henriques, de Vila Nova de Portimão, recordou como, em Setembro de
1580, teve muita gente a trabalhar numa vinha que possuía em Alcantarilha898
. Em
Junho, era o tempo das ameixas. A sua cultura aparece associada à da uva. Leonor
Fernandes contou que, pelo São João de 1590, fora à vinha de Simão Álvares colher
ameixas, na companhia doutras 5 mulheres de Vila Nova de Portimão. Eram todas
cristãs-novas e, segundo o testemunho, aproveitaram essa ocasião para comunicar a
crença na Lei de Moisés899
. Viajando no espaço e no tempo, encontramos a mesma
realidade. Paremos nos arredores de Faro, em 1629. Duarte de Orta, mercador de Faro,
tinha em São Bartolomeu de Messines uma quinta. A nora Beatriz Pinta, em Agosto
desse ano, havia lá estado a apanhar “figo verde” com as cunhadas900
. Simão Nunes, o
Sangue de Rei, também ajudara dois filhos de Duarte, Cristóvão e Jorge de Orta, na
colheita do figo e da amêndoa. Eram duas culturas-irmãs – recheava-se o figo seco com
amêndoa ou misturavam-se os dois frutos na confecção dos queijinhos de figo901
.
Em 1610, Duarte Nunes do Leão escrevia que os figos do Algarve, só por si, eram
“[...] bastantes para fartar um mundo [...]” e que “[...] assi como em outras partes os
campos estam semeados de trigo e cevada, assi naquelle reino tudo sam figueiraes, que
são a principal fazenda que os homens alli têm [...]”902
. A cultura do figo exigia muito
trabalho, em particular, a do figo de enxario903
. Colhido entre Julho e Outubro,
dependendo da espécie, só uma pequena parte do figo seguia fresco para o mercado. O
que se destinava à exportação tinha de ser seco. Estendido no almeixar, sobre esteiras de
898
Cf. ANTT, IE, proc. 11315. 899
Cf. ANTT, IE, proc. 10683. 900
Cf. ANTT, IE, proc. 2330, fls. 135v-136. Os “figos verdes” seriam os figos cotéus que, depois de
secos, eram a espécie mais exportada (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., vol. I, p. 141). 901
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 113. 902
Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino..., p. 203. 903
O processo de fecundação do fruto aparece bem descrito nas palavras de Frei João de São José: “A
maneira que têm no tocar é que colhem os figos a umas figueiras que eles procuram ter nas fazendas, e
poucas bastam, porque dão muito e vêm com a sua novidade madura, quando os outros figos estão
pequenos como azeitonas, e os enfiam a três e quatro e um fio de esparto, como ave-marias, e os
penduram pelos raminhos das outras que querem tocar, compassados ao redor [...]. Nestes figos assim
postos, que para outra nenhuma cousa prestam, se criam uns bichinhos, cada um de seu grãozinho, dos
que têm os figos dentro, como milho, e saem pelo olho do figo maduro, a maneira de mosquitos de vinho,
piquenos, e se põem nos olhos dos outros figuinhos que estão pequenos e verdes e os tocam. A maneira
que nisto têm não o alcancei, porque é um segredo maravilhoso da natureza [...]” (Cf. São José,
“Corografia...”, Duas Descrições..., p. 111).
214
esparto que todos os dias eram enroladas para o fruto não apanhar a humidade da noite,
o figo era seleccionado: o maior (“comadre”) e o médio (“marchante”) reservava-se ao
comércio, enquanto que o mais miúdo, o “figo chocho”, se destinava ao consumo dos
animais e dos servidores. Depois de seco, o figo era pisado, para “não lhe entrar bicho”,
e guardado em barris e cunhetes904
.
Era um trabalho feito a várias mãos. Na altura do alacil, parentes e amigos reuniam-
se nos figueirais para ajudar na colheita. Porém, desse esforço não resultava grandes
ganhos. Frei João de São José revela que “[...] os algarvios, que só nelas tratam, poucos
deles são ricos [...]”905
. Não obstante, continuava a ser um dos principais produtos de
exportação do Algarve.
Como os lucros auferidos não eram particularmente avultados, a maioria dos
agricultores acumulava a cultura da figueira com outras produções, nomeadamente a
vinha e a oliveira906
. Particularmente florescente nos termos de Lagos, Vila Nova de
Portimão e Silves, a produção vinícola contava com uma já longa tradição. A fama dos
vinhos algarvios remontava à Idade Média, considerados uma das maiores riquezas da
região907
. O tempo da vindima chegava a coincidir com a colheita do figo e o processo
também era similar. Tal como o figo, estendiam-se as uvas no almeixar após a
vindima908
. Durante 12 ou 13 dias, ali ficavam ao sol, aspergidas à noite com um pouco
de água, antes de serem levadas para o lagar909
. Outra parte das uvas, sobretudo as da
casta assaria (salira), era deixada a secar910
. A passa marcava presença na dieta dos
algarvios, mas uma boa parte da produção destinava-se ao mercado e, em particular, ao
mercado externo. Apesar do volume de negócios não se comparar com o do figo, a
passa constituía uma mercadoria com maior potencialidade de lucro. A sua produção era
mais simples e o seu preço chegava a ultrapassar o dobro do valor do figo911
.
904
Cf. Idem, Ibidem, pp. 112-113. 905
Cf. Idem, Ibidem, p. 110. 906
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 161. 907
Vide Alberto Iria, O Vinho no Algarve Medieval (Subsídios para a sua História). Separata de O Vinho
na História Portuguesa – Sécs. XIII-XIX, Porto, 1983. 908
Branca Henriques, de Vila Nova de Portimão, também referiu esse processo, dizendo que, na dita
vinha em Alcantarilha, também estendera as uvas no almeixar (Cf. ANTT, IE, proc. 11315). 909
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 118-119. 910
Sobre a secagem da uva, refere Frei João de São José: “[...] a mestria que lhe fazem não é outra senão
colhê-las como são maduras, e deitá-las a secar nuns terreiros, que fazem nas mesmas vinhas, sobre a
terra estendidas, à maneira de canteiros, por terem depois lugar de as virar e tomar o sol d‟ambas as
bandas e é bom cobri-las de noite por causa do orvalho que lhe faz mal.” (Cf. Idem, Ibidem, p. 118). 911
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 170.
215
Quanto à oliveira, enxertada em zambujeiros, crescia um pouco por toda a região912
.
Em Dezembro, fazia-se a apanha da azeitona, um trabalho que, tal como o alacil e a
vindima, reunia grupos mais ou menos extensos de pessoas. Normalmente, a oliveira não
era varejada – deixava-se a azeitona cair por si, sendo depois apanhada do chão. Só em
anos de seca, quando a chuva não propiciava o processo, é que o fruto era colhido na
árvore. À apanha seguia-se o tratamento da azeitona, ou conservada em pipas, ou
destinada ao fabrico de azeite913
. O termo de Loulé seria particularmente rico no cultivo
da azeitona. Na documentação proliferam as referências a olivais nos sítios de Santa
Luzia, Betunes, Vale de Rãs e Franqueada. Alguns eram propriedade de cristãos-novos914
.
O trabalho agrícola estava enraizado no quotidiano da gente de nação. O momento
do alacil e da vindima coincidia com o da celebração do jejum do Quipur. A
terminologia traça essa correspondência. Perante os inquisidores, muitos confessaram
ter guardado o jejum no tempo “das uvas” ou “dos marmelos”, ou mesmo no “tempo em
que recheiam os figos”915
. Os ritmos da terra identificavam os tempos da fé.
Médicos, cirurgiões e boticários
A 9 de Setembro de 1633, Pedro Gomes, filho de Branca Dias, foi examinado por
Diogo Dias, médico, e Manuel Luís, também médico e perito em cirurgia, os quais
comprovaram que o rapaz tinha sido circuncidado. Quase não houve escolha na
selecção dos examinadores “[...] por não haver nesta dita cidade mais outros médicos
que eles cristãos-velhos, nem cirurgião algum que o seja [...]”916
.
O caso de Faro, em 1633, não é extraordinário. Anos depois, nas cortes de 1641, os
representantes do povo solicitavam que os médicos passassem a receitar “as medicinas”
para os boticários apenas em português, de modo a serem facilmente entendidas por todos
“por quanto a mayor parte dos medicos, & boticarios, & cirurgiões são Christãos novos,
& também de pouca sciencia (como he notorio), & corre grande perigo em seu poder as
912
Cf. Idem, Ibidem, p. 170. 913
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 115-117. 914
Em 1632, Fernão Martins, mercador cristão-novo, residente em Loulé, vendeu um olival e uma terra
de pão, no sítio de Vale de Rãs, a João Moreira Palença, cristão-velho, por 25 mil réis (Cf. ADF, 1º
Cartório Notarial de Loulé, 1-1-16, fls. 38v-42). Vejam-se mais exemplos nos processos de Margarida de
Jesus e de Branca Dias, cristãs-novas de Loulé (Cf. ANTT, IE, proc. 4650, fl. 33v; proc. 6727, fl. 32). 915
Cf. ANTT, IL, proc. 10041, fl. 17; proc. 12483, fl. 27. 916
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 33.
216
vidas das gentes do Povo”917
. É, assim, revelador o desconforto dos cristãos-velhos ao
verem as suas vidas nas mãos de médicos, cirurgiões e boticários cristãos-novos918
.
O desconforto aumentava quando às origens acresciam as suspeitas de Judaísmo. O
Dr. Pedro Amado, reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuo no auto-de-fé
celebrado em Évora a 14 de Junho de 1637, foi proibido de voltar a exercer, mesmo
depois de levantada a penitência. Afinal, por carta de 1633, era interdito o exercício da
Medicina a todos os cristãos-novos que tivessem sido presos pela Inquisição. À revelia
de tais estipulações e tendo regressado a Silves, Pedro Amado continuou a prestar
serviços como médico. As queixas não tardaram:
“Dizem Manuel d‟Oliveira Monteiro, o Licenciado António d‟Arez Monteiro,
Pero Taborda e Mateus de Mesquita, capitão de infantaria, e mais moradores da
cidade de Silves e seu termo, do Reino do Algarve, que Pero Amado cura de
medicina na dita cidade e seu termo, não o podendo fazer porque foi preso por
mandado do Santo Ofício da cidade de Évora e saiu penitenciado por ser convicto e
porque os ditos moradores não têm segurança nas curas que o dito Pero Amado faz
e estão arriscados com ele a brigas e diferenças e ao matarem, o que se pode evitar,
sendo-lhe mandado que não cure na dita cidade e seu termo, além de lhe ser
proibido por ser convicto e penitenciado.”919
A 27 de Março de 1642, a Inquisição de Évora notificava Pedro Amado para que
não voltasse exercer. Porém, não sabemos até que ponto ele cumpriu a ordem.
No caso dos boticários, em quem residia o conhecimento das drogas que
propiciavam a cura mas também a morte, as desconfianças tiveram voz desde cedo. Não
muitos anos depois da conversão geral, nas cortes de 1525, foram apresentadas petições
para a interdição do ofício a cristãos-novos. Em 1565, os cristãos-novos ficaram
proibidos de aprender nas boticas de Lisboa. Tal não surtiu efeito. A inquirição da
qualidade de sangue do aprendiz nunca chegou a ser uma preocupação premente do
mestre boticário920
.
917
Cf. Capitulos Gerais apresentados a El Rey D. Ioão ... nas cortes celebradas em Lisboa com os tres
Estados em 28 de Ianeiro de 1641..., Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1645, cap. XXXXII (Povos), p. 14. 918
Em meados do século XVI, circulou uma carta alertando para tal “perigo”. Nela, entre outras
acusações, referiam-se casos em que médicos, cirurgiões e boticários cristãos-novos provocaram
voluntariamente a morte dos seus pacientes cristãos-velhos. (Cf. Maria Benedita Araújo, “Os médicos
portugueses e a Inquisição de Évora”, Universidade(s). História, Memória, Perspectivas. Actas do
Congresso “História da Universidade” (no 7º Centenário da sua Fundação). 5 a 9 de Março de 1990,
Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, 1991, pp. 274-275). 919
Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fl. 62. 920
Cf. José Pedro Sousa Dias, Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e sociedade na produção de
medicamentos na Lisboa de Setecentos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência
e Tecnologia, 2007, p. 225.
217
Para exercer legalmente o seu ofício, o boticário era obrigado a apresentar uma
certificação oficial, a carta de boticário921
. A sua obtenção dependia de um exame, ao
qual o aprendiz se sujeitava após 4 ou mais anos de aprendizagem nas boticas, junto de
um mestre que lhe conferia, além do ensino, alimentação e alojamento922
. Os cirurgiões
também aprendiam o ofício com um mestre, antes de se sujeitarem à aprovação do
cirurgião-mor923
. Só com a carta de cirurgia é que podiam exercer legalmente. Em 1559,
um alvará régio determinou que todos os aprendizes de cirurgião candidatos a exame
tinham de frequentar o Hospital de Todos os Santos por um período mínimo de 2
anos924
. Mesmo assim, a figura do mestre, que incutia os primeiros conhecimentos do
oficio, não desaparecera. Por vezes, este era o próprio pai. Veja-se o exemplo de Mestre
Simão, cirurgião natural de Tavira, neto, filho e irmão de cirurgiões925
.
Mas esta não seria uma carreira particularmente gratificante em termos financeiros.
Era-o bem menos do que a de médico. Em Lagos, quando o rei consignou, em 1624, a
obrigação de haver na cidade um médico e um cirurgião para o tratamento dos doentes
pobres, a discrepância entre as remunerações dos dois era acentuada: o médico ganharia
30 mil réis por ano, enquanto que o cirurgião ficar-se-ia pelos 10 mil réis926
.
Na finta de 1606 sobre os cristãos-novos de Tavira, os dois cirurgiões fintados,
João Gonçalves e Gaspar Mendes, desembolsaram, respectivamente, 600 réis e 300
réis, quantias módicas quando comparadas com os valores pagos por grande parte
dos mercadores ou até pelos dois boticários que constam do rol, cujas fintas
superaram o milhar927
.
Assim, alguns cirurgiões eram obrigados a acumular o ofício com outras actividades
para garantirem o seu sustento. Em meados de Quinhentos, Mestre Francisco alegava
que “[...] é cirurgião e dos melhores daquela terra [Faro] e outrossim trata em
921
Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “A saúde pública e os seus agentes em Portugal: o caso dos
boticários (1521-1557)”, Asclepio. Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia, vol. XLVI, fasc. 2,
1994, pp. 59-78. A autora analisou as cartas de boticário atribuídas durante o reinado de D. João III.
Relativamente ao Algarve, foram passadas doze cartas: oito para boticários de Tavira, três para Faro e
uma para Vila Nova de Portimão. 922
Cf. Sousa Dias, Droguistas..., p. 221-223. 923
O regimento do cirurgião-mor, em 1448, determinou que todos os candidatos ao ofício de cirurgia
tinham de se submeter a exame perante o cirurgião-mor, o qual também ficou com a incumbência de
inspeccionar o cumprimento desta determinação e de penalizar os que exerciam o ofício sem a devida
carta de cirurgia. (Cf. F. A. Gonçalves Ferreira, História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, pp. 83-84). 924
Cf. Joaquim Barradas, A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros, Lisboa, Livros Horizonte, 1999,
pp. 173-176. 925
Cf. ANTT, IL, proc. 4510, fls. 14v-15v. 926
Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., p. 281. 927
Cf. ANTT, TSO, mç. 40, doc. 57.
218
mercadorias, por se do ofício não poder sustentar [...]”928
. Tal como Mestre Francisco,
conhecemos outros cirurgiões que também se dedicavam ao comércio: Mestre Diogo, de
Lagos929
; Mestre Lopo, de Vila Nova de Portimão, que acabaria por se suicidar nos
cárceres de Évora, em 1560930
; ou Henrique Lopes de Leão, cirurgião e mercador de
loja, citado no rol de 1613 como ausente no Brasil931
.
Os ofícios de boticário, cirurgião e médico encontravam-se intimamente
relacionados. Às vezes confundiam-se, criando tensões. O médico Gaspar Dias, o
Mestre da Mula, teria entrado em querela com um boticário de Faro, Francisco Mendes,
por não lhe remeter as receitas, incumbindo-se ele próprio de preparar e aplicar as
mezinhas aos seus doentes932
.
A convivência no mesmo círculo relacional de boticários, cirurgiões e médicos
facilitava o desempenho dos respectivos ofícios. Esses laços tinham, frequentemente,
uma dimensão familiar. Exemplares eram os casos de João Leitão, médico em Loulé,
filho de Mestre Ricardo, médico e cirurgião, neto de Mestre João, também médico, e
cunhado de Fernão Martins, boticário933
; ou de Mestre Duarte, cirurgião em Tavira,
filho de um outro cirurgião, Gaspar Mendes, irmão de um boticário, João Gonçalves, e
pai de dois cirurgiões, Gaspar Mendes e Bento Duarte934
. Também encontramos
exemplos em que esses vínculos eram bem mais ténues. Baltazar Rodrigues, médico de
Tavira, era filho de um tendeiro e sobrinho de lavradores. Apesar da inexistência de
uma tradição familiar, formou-se em Medicina e um dos irmãos, Gaspar Fernandes, foi
boticário em Sevilha935
. Similar é a situação de Pedro Amado, oriundo de uma família
de sapateiros de Faro mas formado em Medicina na Universidade de Sevilha, cidade
onde vivia um tio paterno, com botica junto à Carneceria Mayor936
.
Pedro Amado formou-se em Sevilha, Baltazar Rodrigues em Salamanca. Ao
longo da documentação, verificamos que mais cristãos-novos do Algarve obtiveram
a sua graduação em universidades castelhanas. Também em Sevilha, Fernão
928
Cf. ANTT, IE, proc. 5718, fl. 7v. Uma carta da Câmara de Faro refere-o como um dos principais
cirurgiões do Algarve (Cf. ANTT, IE, proc. 7914, fls. 55-55v). 929
Cf. ANTT, IE, proc. 375. 930
Cf. ANTT, IL, proc. 2180. 931
Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618, fl. 2v. Neste documento, Henrique Lopes de Leão é citado
como cirurgião. Porém, nos processos da esposa Catarina Dias e da sogra Beatriz Dias, no início dos anos
90 de Quinhentos, Henrique Lopes aparece referido enquanto mercador de loja (Cf. ANTT, IE, procs.
10494 e 1762). 932
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 77. 933
Cf. ANTT, IE, proc. 2758, fls. 10v-11v. 934
Cf. ANTT, IE, proc. 7053, fls. 1v-4. 935
Cf. ANTT, IL, proc. 4400, fls. 1v, 10v. 936
Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fls. 4v, 12v-13.
219
Gonçalves de Tovar tornou-se bacharel em Cânones937
. Gonçalo Dias frequentou o
mesmo curso em Sevilha, por volta de 1630. Ele tinha iniciado os estudos ainda em
Faro, aprendendo Latim no colégio da Companhia de Jesus. Foi depois para Évora,
estudar Filosofia, e, passados dois anos, seguiu para Ossuna, onde iniciou o curso de
Cânones que continuou em Sevilha. Gonçalo Dias ainda cursou os primeiros dois
anos de Direito na Universidade de Coimbra, mas não chegou a graduar-se938
.
Quanto à Universidade de Salamanca, foi onde Diogo Lopes, deão da Sé de Faro em
1585, se formou em Teologia939
, e onde Nuno da Costa, depois de frequentar a
Universidade de Coimbra, obteve o bacharelato em Cânones, na segunda década de
Seiscentos940
. Pedro Machado, por sua vez, teve um percurso inverso – iniciou os
seus estudos em Salamanca e completou-os, em dois anos, na Universidade de
Coimbra941
. De facto, a Universidade de Salamanca é uma das instituições de ensino
mais citadas pelos réus algarvios. Não deixa de ser curioso, considerando que,
segundo os dados reunidos por Joaquim Veríssimo Serrão sobre os estudantes
portugueses em Salamanca na primeira metade do século XVI, só uma pequena
minoria provinha do Algarve942
.
Com a viragem do século, adensaram-se os apelos à aplicação dos estatutos de
limpeza de sangue na Universidade de Coimbra. O caso do Dr. António Homem
acabou por agravar a situação. Perante tal cenário, muitos foram os cristãos-novos que
optaram por prosseguir os seus estudos fora de Portugal. As universidades castelhanas
e, em particular, a de Salamanca encheram-se de estudantes cristãos-novos
portugueses943
. Frequentar uma universidade fora de Portugal passou a ser um indício
de mácula de sangue944
. A própria qualidade do ensino era questionada. Por alvará de
1608, os graduados no estrangeiro que desejassem exercer Medicina em Portugal
tinham de se sujeitar à aprovação do físico-mor. Havia quem se esquivasse, exercendo
ilegalmente.
937
Cf. ANTT, IE, proc. 3367, fl. 42. 938
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 3. 939
Cf. ANTT, IE, proc. 3205, fls. 130v-131. 940
Cf. ANTT, IL, proc. 11866, fl. 18. 941
Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 29-31; IE, mç. 23, fl. 100. 942
Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, Portugueses no Estudo de Salamanca, Lisboa, Imprensa de Coimbra,
1962, p. 147. O Algarve era a segunda província portuguesa com menor representatividade ao nível da
origem dos alunos. Só a Beira Litoral tinha menos estudantes em Salamanca. O Alentejo e a Beira Interior
eram as principais províncias de origem. 943
Cf. Figueirôa-Rêgo, A honra alheia..., pp. 214-220. 944
Cf. Maria Benedita Araújo, “Os médicos portugueses...”, Universidade(s)..., p. 275.
220
Possivelmente, foi esta a questão que serviu de pretexto à querela entre dois
médicos de Lagos. Afonso Claveiro, cristão-velho e familiar do Santo Ofício, suscitou
uma demanda contra Fernão Nunes, cristão-novo, por este exercer Medicina
indevidamente. O resultado foi o envio de um precatório a Lagos para a prisão de
Fernão Nunes, o qual nunca chegou a ser executado, por intercessão do governador.
Dizia-se na cidade que Afonso Claveiro não se ficou por ali. Jurou-lhe vingança por
outros meios e “[...] que havia de vender a fazenda e quanta tinha para o perseguir por
que não curasse por todos os tribunais e quando isso não bastasse, o havia de levar pela
Inquisição [...]”945
. Em 1647, por ocasião da afixação nas paredes de Lagos de alguns
papéis pró-judaicos, a convivência entre os dois médicos agravou-se, com trocas de
acusações e aleives946
.
Por detrás da denúncia de Afonso Claveiro estava a rivalidade profissional, muito
comum entre médicos cristãos-novos e cristãos-velhos. A concorrência, o maior
sucesso dos médicos “de nação”, que contavam, como vimos, com uma estrutura
familiar propiciadora do melhor desempenho da sua função, alguns com parentes na
diáspora que lhes transmitiam as mais recentes descobertas científicas, suscitavam aos
cristãos-velhos a necessidade de defenderem os seus interesses947
. Ainda durante o
reinado de D. Sebastião, um alvará determinou que, na Universidade de Coimbra,
passaria a haver permanentemente 30 estudantes cristãos-velhos no curso de
Medicina, a quem seriam entregues 20 mil réis por ano para o seu sustento. Porém, o
alvará não se cumpriu devidamente e, em 1604, D. Filipe II voltou a assinar um
regimento que regulamentou o partido, alargando-o aos que se preparavam para o
ofício de boticário. Assim, determinou que cada aprendiz de boticário havia de receber
16 mil réis anuais por um período máximo de 6 anos, tempo durante o qual
completaria os seus estudos de Latim e a aprendizagem do ofício. Terminados os anos
formativos, os médicos e boticários dos partidos tinham preferência sobre os outros no
acesso à profissão948
.
945
Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 433-433v, 370-370v, 316v. 946
Vide infra, pp. 308-314. 947
Cf. Maria Benedita Araújo, “Médicos e seus familiares na Inquisição de Évora”, Comunicações
apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, Lisboa, Sociedade Portuguesa de
Estudos do Século XVIII, 1989, pp. 65-66. 948
“E porque tendo passado provisão os anos atraz que está na minha mesa da Consciencia, em favor dos
Medicos Christãos velhos do partido, pera que depois de graduados, e terem sua pratica, elles, e não outro
algum, ajão os partidos das Cidades, Villas, Conselhos, Hospitais e Misericordias, que no Reino ouver: e
tenho informação que os dittos Medicos dão de si boa conta, e há muitos idoneos pelo Reino, e ao diante
averá mais, hei por bem que tambem ajão os partidos da casa da Supplicação e do Porto, e mais
Tribunais, e encomendo aos Prelados e Communidades Ecclesiasticas, que a elles dem os seus partidos.”
221
Até que ponto esta medida terá contribuído para minorar a concorrência dos
cristãos-novos? Segundo José Pedro Sousa Dias, o número de boticários partidistas em
Lisboa seria insignificante949
. Talvez a mesma realidade se repetisse por todo o reino.
Mas a principal ilação que se pode retirar do dito regimento é a ascendência dos
cristãos-novos no universo dos boticários, médicos e cirurgiões, ao ponto de ser
necessário regulamentar-se uma quota de estudantes cristãos-velhos na Universidade de
Coimbra. Uma ascendência intimidante, “[...] pois na fidelidade delles [boticários]
compondo, e ordenando as mezinhas, como os Medicos receitão, consiste
principalmente a segurança das vidas [...]”950
.
3. FAMÍLIA, SOLIDARIEDADES E QUOTIDIANO
Como identificar um cristão-novo? Conhecendo-lhe os pais e os avós, será, em
princípio, uma tarefa simples. A qualidade do sangue da família corria de boca em boca.
Mas se tal escapava ao juízo “público e notório”, outros indícios havia. Já vimos alguns:
os espaços de residência, o estatuto sócio-profissional. Um outro era a união do grupo.
Os que tentavam fugir à etiqueta “de nação” negavam qualquer contacto com cristãos-
novos, até a partilha do mesmo banco na igreja. Provavam a limpeza do seu sangue,
apontando o marido ou a esposa, cristãos-velhos, ou os filhos, cujos cônjuges não
tinham nesga de sangue hebraico. Os cristãos-novos casavam-se entre si e,
inclusivamente, dentro da própria família. Assim ditava o estigma.
(Cf. “Regimento dos Médicos e Boticarios Christãos Velhos”, in Estatutos da Universidade de
Coimbra..., Coimbra, Officina de Thome Carvalho, 1654, pp. 9-10). 949
Cf. Sousa Dias, Droguistas..., p. 222. 950
Cf. “Regimento dos Médicos...”, Estatutos..., p. 5.
222
A família cristã-nova. Uma tipologia?
A parcialidade, voluntária ou involuntária, das informações comunicadas pelos réus
perante os inquisidores constitui uma limitação indelével ao uso dos processos
inquisitoriais enquanto fonte para o estudo das estruturas familiares. Pensemos nas
sessões de genealogia. Não seria simples ao réu, depois de sujeito às agruras do cárcere,
recordar-se do nome de todos os tios e primos, ou mesmo dos avós que talvez nunca
chegara a conhecer. Alguns tentariam desvincular-se de determinado parente, já preso
ou mesmo condenado pela Inquisição. Outros esforçavam-se por proteger aqueles que
lhes eram mais próximos e ocultavam o nome de um filho ou diziam desconhecer o seu
paradeiro. Tentar qualquer tipo de datação é um esforço ainda mais inglório. Nem na
própria idade o réu conseguia ser exacto. 20 anos podiam muito bem significar 18 ou
22. Quando começava a enumerar a idade dos seus parentes, maior era a imprecisão. E
nem sempre o fazia inocentemente. Uma mãe poderia atribuir uma idade inferior ao
filho na esperança de salvá-lo do cárcere. Várias outras possibilidades acompanham a
leitura crítica das genealogias dos processos inquisitoriais. Porém, pôr de lado essa
documentação seria deitar fora a criança com a água do banho. A comparação entre
processos de indivíduos da mesma família permite-nos determinar as incoerências e
indagar os dados falaciosos. Conhecendo as circunstâncias da prisão, os parentes
envolvidos, eventualmente as rivalidades familiares expressas (e tantas vezes
hiperbolizadas) nos artigos de contraditas, é possível escavar a fonte até um fundo de
verdade. Ou, pelo menos, andar lá perto. Afinal, os processos inquisitoriais revelam
outras nuances sobre a realidade familiar, nem sempre percepcionáveis em fontes doutra
índole. Nas sessões de confissão, nos artigos de defesa ou em documentos anexados
como prova, encontramos autênticos frames do quotidiano familiar – a mobilidade, a
educação dos filhos, as formas de relacionamento, os conflitos, as rivalidades.
Mas centremo-nos no Algarve. Considerando a situação familiar dos cristãos-novos
processados, é possível retirar algumas ilações951
. Comecemos pelos celibatários. O
número de homens solteiros com mais de 30 anos é pouco significativo. As rés solteiras
tornam-se minoritárias ainda mais cedo: 25% na faixa dos 25-29 anos, 11% na dos 30-
34 e 6% a partir dos 35 anos. A tendência é naturalmente inversa no caso da viuvez. A
percentagem de viúvas processadas pela Inquisição (13%) é substancialmente superior à
951
Foram apenas considerados os cristãos-novos processados pela Inquisição, naturais e residentes no
Algarve, maiores de 15 anos, entre os anos de 1558-1651. Vide, em anexo, gráficos 9.1 e 9.2, p. 110.
223
registada entre os homens (3%). Mais de 30% das cristãs-novas, com idade superior a
35 anos, que entraram nos cárceres inquisitoriais eram viúvas. A esperança média de
vida feminina mais elevada e a disparidade etária entre os cônjuges contribuíam para a
discrepância entre o número de viúvas e viúvos. Só a partir da faixa dos 25-29 anos é
que o número de homens casados passa a igualar o dos solteiros, enquanto que, no caso
das processadas do sexo feminino com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos,
54% são casadas. Aliás, a percentagem de mulheres casadas entre as rés com menos de
20 anos é significativa: 25%.
Nesta amostra, considerámos apenas os réus com mais de 15 anos. Porém, os
processos revelam casos de mulheres que se casaram ainda antes desta idade. Nem
sequer era raro. Isabel Pinto Raposo tinha 13 anos quando se casou com Diogo de Faria
Moniz. Aos 42 anos, foi presa pela Inquisição. Na genealogia do seu processo
inquisitorial, em 1638, ela enumerou 6 filhos: a mais velha, Catarina, com 20 anos de
idade. Fazendo as contas, Isabel teve esta filha por volta dos 22 anos de idade, ou seja,
quase uma década após o casamento. Tal leva-nos a supôr que, antes de Catarina, teriam
nascido outros filhos que acabaram por não sobreviver952
.
A mortalidade infantil era elevada. Diogo Mendes, o Espada Larga, refere que, do seu
primeiro casamento, nasceram 7 filhos, mas 6 não atingiram os 3 anos de vida953
. Dos 16
filhos que Maria Fernandes deu à luz, só 4 chegaram à idade adulta954
. Nas genealogias
sucedem-se as referências a crianças que encontraram a morte ainda no berço.
Igualmente elevada seria a fertilidade, não obstante as inúmeras variantes. Factores
como a morte precoce do cônjuge, a infertilidade, ou as complicações na sequência dos
partos explicam a existência de muitos casais com poucos filhos ou mesmo sem
nenhum. Mas quando o infortúnio não batia à porta, a regra era uma descendência
numerosa955
. Por sua vez, o intervalo entre nascimentos tendia a ser curto. Branca Dias,
952
Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fls. 25 e 90. 953
Cf. ANTT, IE, proc. 6485. 954
Cf. ANTT, IE, proc. 4386, fls. 62-62v. 955
Alguns exemplos: os casais Leonor Quitéria e Francisco Lopes, de Faro; e Margarida Lopes e Jorge
Fernandes, de Lagos, foram pais de 10 filhos cada um (Cf. ANTT, IE, proc. 4504; IL, proc. 11668, fls. 6-
6v). Fernão Mendes e Mor Gomes, residentes em Tavira, tiveram 9 filhos (Cf. ANTT, IL, proc. 5759, fls.
16v-17). Nos três casos, apenas são mencionados os filhos que atingiram a idade adulta. Um dos filhos de
Fernão Mendes e Mor Gomes é Álvaro Mendes, referido no processo do irmão Rui Gomes enquanto
“lapidário em Goa” (Cf. ANTT, IL, proc. 13048), que acabaria por seguir para a Turquia, onde se
converteu ao judaísmo e adoptou o nome de Salomon ibn Ya‟ish (ou Salomon Aben-Ayish). Pelos
serviços diplomáticos prestados ao sultão Murad III, foi agraciado com várias mercês, entre as quais o
arrendamento das alfândegas da ilha de Mytilene. Vide Avram Galante, Don Salomon Aben Yaèce Duc de
Mételin, Constantinopla, Societé Anonyme de Papeterie et d‟Imprimerie (Fr. Haïm), 1936; José Alberto
Tavim: “Conversos: «A península desejada». Reflexões em torno de alguns casos paradigmáticos (séculos
224
que faleceu com pouco mais de 30 anos, deixou órfãos sete filhos pequenos, todos
nascidos no período de uma década956
. Aldonça Gramaxo, com 19 anos de idade, tinha
já três filhos, o mais velho com 5 anos957
. A irmã Inês Gramaxo, com a mesma idade,
era viúva e mãe de dois filhos. Poucos anos depois, voltou a casar-se, então com Fernão
Álvares Gramaxo, enlace do qual tinham nascido dois filhos à data da sua prisão, em
1586: Álvaro e Vicente, este ainda um bebé de meses958
. Em Fevereiro de 1588, Inês foi
autorizada a regressar a Vila Nova de Portimão e, meses depois, voltou a engravidar959
.
Se os intervalos inter-genésicos eram curtos, a idade fértil podia prolongar-se até
bem tarde. Voltemos ao caso de Inês Pinto Raposo, filha de Branca dos Santos. Do
segundo casamento da mãe, ela tinha sete meios-irmãos, um deles com apenas 11 anos
em 1638. Como já vimos, Isabel contava então com 42 anos de idade. Portanto, Branca
dos Santos, quando teve o filho mais novo, Pedro, deveria ser quase quinquagenária960
.
Não é um caso extraordinário mas, geralmente, a idade fértil feminina prolongava-se até
por volta dos 40 anos. Considerando o quão comuns eram as mulheres que se casavam
antes dos 20, muitos lares assistiam ao nascimento sucessivo de filhos durante duas
décadas ou mais.
Eram comuns as segundas núpcias, e em ambos os sexos. O período de viuvez podia
mesmo ser muito curto. Diogo Lopes ficou viúvo no final de Julho de 1560 e casou-se
novamente em Setembro, com uma parente da sua primeira mulher961
. Manuel
Henriques casou com Inês da Costa quinze dias após enviuvar de Leonor Gomes, o que
foi motivo de escândalo entre a família da falecida, chegando mesmo a acusá-lo de ser o
responsável pela sua morte962
.
As genealogias não denunciam um acentuado número de uniões ilegítimas ou de
filhos naturais. Dos poucos casos mencionados, predominam os filhos nascidos de
relações entre senhores e criadas ou escravas. Vejamos o que aconteceu na família
Preto, de Faro. Manuel Filipe Preto assumiu ter duas filhas ilegítimas, uma delas, Maria
XVI-XVII)”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 6, 2006, pp. 259-295; “La «Materia Oriental» en el
trayecto de dos personalidades judías del Imperio Otomano: João Micas / D. Yosef Nasí, Álvaro Mendes /
D. Shelomó Ibn Ya‟ish”, Hispania Judaica Bulletin. Articles, reviews, bibliography and manuscripts on
Sefarad, vol. 7, 2010, pp. 211-232. 956
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 23. 957
Cf. ANTT, IE, proc. 4603, fl. 32. 958
Cf. ANTT, IE, proc. 8925. 959
Fernão de Álvares, na sessão de genealogia do seu processo (2 de Dezembro de 1589), mencionou
mais um filho, Francisco, então com um ano (Cf. ANTT, IE, proc. 5071). 960
Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fls. 23v-24v. 961
Cf. ANTT, IL, proc. 3278, fl. 11v. 962
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 108v. Vide, em anexo, p. 431.
225
Filipe, filha da escrava Petronilha Ribeiro. O seu filho Francisco Filipe Preto também
foi pai, fora do casamento, de um rapaz, identificado como sendo mulato963
. Decerto
que o número de filhos bastardos seria bem superior ao que a documentação demonstra.
A questão era socialmente delicada, embora, ao nível sucessório e fora do estrato nobre,
as Ordenações Filipinas equiparassem os filhos legítimos e ilegítimos964
.
A acentuada nupcialidade, a precocidade do casamento feminino e a alta fertilidade
são algumas das características evidenciadas nas famílias alvo do nosso estudo. Mas
estas constituem também as tónicas definidoras dos padrões demográficos do sul do
Mediterrâneo965
. Portanto, segundo estes indicadores, no Algarve dos séculos XVI e
XVII, as famílias cristãs-novas não se distinguiriam das demais.
Resta-nos, portanto, a questão da endogamia. A tendência endogâmica entre os
cristãos-novos prender-se-ia, segundo Pilar de Huerga Criado, com duas ordens de
factores: uma externa, dados os obstáculos que o conceito de limpeza de sangue criou
aos casamentos mistos; e outra interna, considerando o interesse dos cristãos-novos em
constituírem laços matrimoniais dentro do próprio grupo966
. A endogamia garantiria a
sua sobrevivência enquanto minoria. Além da perpetuação do sangue hebraico, o
casamento entre cristãos-novos iria assegurar a transmissão de uma prática religiosa
clandestina às gerações vindouras e a solidez dos laços entre famílias da mesma estirpe,
cimentando alianças não só sociais, como económicas967
. Os laços de parentesco
consagravam a confiança e o crédito, elementos basilares no desenvolvimento de
qualquer negócio e na construção de uma rede de agentes capaz de abranger alguns dos
principais pontos do comércio internacional. Assim se constituíam as casas de negócio,
estruturas formadas por vários núcleos interligados por laços de parentesco968
. Segundo
963
Refere Sebastião Dias na sua confissão: “[...] pelo São João que passou fez cinco anos, em Faro, foi
ele, confitente, à casa de Francisco Filipe Preto, cristão-novo, mercador, e estando com ele e com sua
mulher, que é cristã-nova, à qual não sabe o nome, e com dois filhos do mesmo, um dos quais é bastardo
e mulato, e ambos são solteiros [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 176). 964
Cf. António Manuel Hespanha, “Fundamentos antropológicos da Família de Antigo Regime”, História
de Portugal. Dir. José Mattoso, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 273-279. 965
Cf. Robert Rowland, “Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal: questões para uma
investigação comparada”, Ler História, n.º 3, 1984, pp. 13-32. O autor questiona a tipologia da família
mediterrânea delineada por Peter Laslett, salientando as variações regionais dentro do território
português. Vide também Álvaro Ferreira da Silva, “A «família mediterrânica». Um trajecto
bibliográfico”, Penélope, n.º 3, Jun. 1989, pp. 112-127. 966
Cf. Huerga Criado, En la raya..., pp. 67-68. 967
Cf. Huerga Criado, “Entre Castilla...”, Familia, Religión y Negocio..., pp. 41-42. 968
Cf. Bernardo López Belinchón, “Familia, negocios y sefarditismo”, Familia, Religión y Negocio..., p.
351. Sobre a questão das redes familiares, vide Susana Bastos Mateus, “Família e poder: a importância
dos laços de parentesco”, CES, n.º 3, 2003, pp. 115-126; Florbela Veiga Frade, As relações económicas e
sociais das comunidades sefarditas portuguesas: o trato e a família (1532-1632). Tese de doutoramento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006, exemplar policopiado.
226
Jaime Contreras, esses vínculos parentais, nos quais se sustentavam as redes de negócio
e de solidariedades expandidas para lá da Península Ibérica, pelos espaços da diáspora,
revelaram-se fundamentais para a ascendência financeira e económica dos cristãos-
novos durante os séculos XVI e XVII969
.
Regressemos ao Algarve. Ao longo de grande parte do século XVI, só
esporadicamente encontramos referências a casais constituídos por um cônjuge cristão-
novo e outro cristão-velho, embora estes se tornem mais frequentes já no final da
centúria e, sobretudo, ao longo do século seguinte970
. Por outro lado, os casamentos
consanguíneos também não seriam usuais. O Concílio de Trento havia proibido as
uniões matrimoniais de indivíduos com laços de parentesco até ao quarto grau,
teoricamente, é certo, pois a possibilidade de uma dispensa eclesiástica permitia
contornar a situação. Mesmo assim, e pelo que podemos constatar das fontes, entre os
cristãos-novos algarvios, as uniões de tios com sobrinhas seriam raras e os casamentos
entre primos direitos, embora mais comuns, não deixariam de constituir uma minoria
pouco significativa. Possivelmente, a proporção de casamentos consanguíneos não
diferiria particularmente do que se registava entre a maioria cristã-velha.
Contudo, as conexões entre as famílias cristãs-novas estendiam-se por toda a região.
Encontramos indivíduos de Lagos, Vila Nova de Portimão, Faro ou Tavira que partilhavam
laços de parentesco. Diferentes famílias interligavam-se por um ou mais elos, formando
uma extensa teia de ligações de parentesco que se desenvolvia à escala regional, com alguns
ramos a atingir, ou mesmo a partir, das localidades alentejanas, sobretudo do Baixo
Alentejo. Através de uma reconstituição das genealogias dos cristãos-novos algarvios
processados pela Inquisição durante o período estudado, conclui-se que a maioria partilhava
laços de parentesco, mais ou menos distantes, por consanguinidade ou afinidade971
.
Mas até que ponto é possível falar de uma estratégia matrimonial promotora dessa
coesão parental entre os cristãos-novos? Esta questão leva-nos ao debate sobre o valor
dos sentimentos individuais e dos interesses familiares no casamento. Apesar do
Concílio de Trento ter determinado a necessidade do consentimento sincero dos noivos
para a realização do matrimónio, a legislação zelou pela manutenção da influência da
969
Cf. Jaime Contreras, “Family and patronage. The judeo-converso minority in Spain”, Cultural
encounters. The impact of the Inquisition in Spain and the New World. Org. Mary Elizabeth Perry e Anne
J. Cruz, Los Angeles, University of California Press, 1991, p. 140. 970
Vide infra, pp. 288-292. 971
Vide em anexo, pp. 121-233. Convém voltar a sublinhar as limitações encontradas no acesso à
documentação. Caso fosse possível consultar todos os processos inventariados, decerto se concluiria uma
ainda maior abrangência dessas ligações familiares.
227
família972
. Afinal, o casamento era um elemento básico da política familiar. Porém, a
tensão entre a vontade da família e a do indivíduo era comum. Quando Fernão
Gonçalves Duarte, o Cego, regressou da Guiné, com os bolsos cheios e planos de se vir
a casar, Isabel Lopes viu no cunhado a oportunidade da sua irmã Maria de Tovar fazer
um bom casamento. Mas os seus projectos foram gorados e Fernão Gonçalves acabou
por escolher outra noiva973
. Casos similares multiplicam-se na documentação. Para
Fernão Gonçalves, a recusa do casamento “arranjado” ter-lhe-ia custado a hostilidade do
irmão e da cunhada.
De facto, quando indesejado pela família, o casamento tornava-se motivo de
conflito. Outro factor de ruptura era o dote. A sua concessão aos filhos, por ocasião de
“matrimónios carnais ou religiosos”, constituía uma obrigação paterna974
. Contudo, o
seu valor poderia representar um encargo demasiado elevado para ser assumido
exclusivamente pelos progenitores. Outros parentes entravam então em jogo, auxiliando
na constituição do dote. Veja-se o caso de Maria Guieira, noiva de Brás de Azevedo,
primo de Manuel da Gama de Pádua. Os seus pais dotaram-na de um olival, uns chãos,
móveis e apetrechos domésticos, além de 30 mil réis em dinheiro. Uma tia solteira,
Maria Fernandes, por sua vez, prometeu-lhe um quinhão “nas estalagens do Rossio da
vila” de Loulé, com quintal e casas, no valor de 12 mil réis975
.
Mas nem sempre esta solidariedade familiar se fazia notar e, então, os
ressentimentos emergiam976
. Fosse pelo dote ou por um casamento à revelia da família,
ou mesmo pelos conflitos e traições dentro do casal, as questões matrimoniais
972
Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, “Casa, casamento e nome: fragmentos sobre relações familiares e
indivíduos”, História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna, Lisboa, Temas & Debates /
Círculo de Leitores, 2011, p. 132. O artigo das Ordenações Filipinas relativo ao casamento de mulheres
menores de 25 anos revela-se algo dúbio no que respeita à necessidade do consentimento parental:
“Defendemos que nenhum homem case com alguma mulher virgem, ou viuva honesta, que não passar de
vinte cinco annos, que stê em poder de seu pai, ou mãi, ou avô, vivendo com elles em sua caza, ou stando
em poder de outra alguma pessoa, com quem viver, ou a em caza tiver, sem consentimento de cada huma
das sobreditas pessoas [...] Porém, se fôr pessoa, que notoriamente seja conhecido, que ella casou melhor
com elle, do que a seu pai, ou mãi, ou pessoa, em cujo poder stava, podéra casar, não incorrerá elle, nem
as testemunhas na dita pena.” (Cf. Ordenações Filipinas, liv. V, tit. XXII, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1985, p. 1172). 973
Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fls. 82-82v. 974
Cf. António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos
histórico-antropológicos da família na época moderna”, Análise Social, vol. XXVIII, n.º 123-124, 1993,
pp. 958-959. 975
Cf. ADF, 1º Cartório Notarial de Loulé, 1-1-13, fls. 173-176v. Maria Guieira era cristã-velha e irmã de
Estêvão Guieiro, clérigo de missa do hábito de S. Pedro. A 25 de Setembro de 1640, este doava à irmã e
ao cunhado uma morada de casas na Rua de S. Sebastião, arrabaldes de Loulé (Cf. ADF, 1º Cartório
Notarial de Loulé, 1-1-18, fls. 122v-123). 976
Um exemplo é o caso de Beatriz Filipe, cujos irmãos não quiseram ajudar o pai a compor-lhe o dote, o
que criou uma divisão na família, alegada na defesa da ré (Cf. ANTT, IE, proc. 9071).
228
constituem, ao lado doutras de domínio familiar (sobretudo, heranças) e profissional
(dívidas, fraudes, concorrência), a matéria privilegiada dos artigos de contraditas. E
raramente se restringiam aos visados. Se o marido agredia a esposa, ou se o pai se
recusava a dar um bom dote à filha, tal não era apenas uma questão do casal ou entre
pai, filha e genro. Até nos negócios, a vindicta nunca era individual, mas sempre a uma
escala familiar, alargando-se não só aos pais e irmãos, como também a primos, tios,
sobrinhos, cunhados... e até a criados e escravos. Na tentativa de descredibilizar as
testemunhas acusatórias, enumerando rivalidades e desejos de vingança, torna-se
evidente o quão alargado era o conceito de família e o quanto determinava o sentido dos
(des)afectos pessoais. A união familiar exprimia-se até no ódio.
A existência ou não de uma estratégia matrimonial dependeria muito do estatuto
social da família. Surge com maior evidência nos estratos superiores, em que o
casamento é uma possibilidade de sagrar a relação entre famílias do mesmo nível ou de
perspectivar a ascensão social, através da aproximação a uma elite ou mesmo à
aristocracia local, legando à descendência a combinação perfeita de dinheiro e honra977
.
Nas camadas inferiores, essa visão estratégica já não se verificaria tão intensamente.
Talvez o afecto pesasse mais do que a vontade familiar. Contudo, mesmo assim, as
uniões continuam a realizar-se, preferencialmente, entre famílias do mesmo universo
sócio-profissional. Nada de mais natural, diríamos. Um indivíduo casa-se dentro do
universo onde se movimenta. No Algarve, até os principais núcleos urbanos tinham uma
dimensão modesta. Os homens que se dedicavam à actividade mercantil viviam em
constante mobilidade, mas as mulheres, e em particular as solteiras, encontravam-se
confinadas a um domínio bastante acanhado. Era, sobretudo, através do pai e da sua
realidade profissional que a donzela tomava contacto com outros homens. Mesmo
quando não era o pai a ajustar o casamento, as suas perspectivas de afectuosidade
encontravam-se limitadas a um panorama muito restrito. Quanto ao homem,
normalmente só interagia com mulheres que reuniam os atributos necessários para o
lugar de sua esposa por via das relações profissionais, de amizade ou familiares. A
escolha do cônjuge encontrava-se, nos dois lados da questão, restrita a uma dimensão
mais ou menos limitada, dependendo dos níveis de mobilidade ou da polivalência
profissional. O esquema pode ser aplicado a cristãos-novos e a cristãos-velhos. Se
focássemos a nossa atenção nas famílias cristãs-velhas, talvez observássemos a mesma
977
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 349.
229
uniformidade sócio-profissional na reprodução familiar, mas decerto que não
encontraríamos uma tão abrangente teia de ligações de parentesco, capaz de abarcar
toda a região algarvia. A maior mobilidade do cristão-novo marca essa diferença.
O casamento é consequência de relações sociais preestabelecidas. Assim, o aumento
gradual da exogamia ao longo do período estudado pode traduzir uma crescente
aproximação dos cristãos-novos algarvios à maioria cristã-velha. Contudo, salvo raras
excepções espacialmente bem delimitadas (e sublinho aqui os casos de Loulé e,
sobretudo, Albufeira), tal não significou um corte com o grupo de origem. Um ou outro
filho ligava-se através do matrimónio a famílias cristãs-velhas, enquanto que os outros
continuavam a casar-se dentro do grupo. Em muitos casos, tal era consequência da
proximidade entre iguais, gerada por mecanismos de inclusão – a proximidade
residencial, a comunhão do mesmo estatuto sócio-profissional, comportamentos,
tradições e crenças comuns – e de exclusão – o ostracismo a que eram votados pela
maioria cristã-velha.
Em casa
Mais do que dados concretos, as informações sobre a composição dos agregados
familiares insinuam-se ao longo da documentação processual. Tal permite-nos traçar um
retrato não mais do que aproximativo. Usando a terminologia estabelecida por Peter
Laslett, o modelo de agregado familiar predominante entre os cristãos-novos, no
Algarve dos séculos XVI e XVII, é a família nuclear (um casal com ou sem filhos),
evoluindo, ao longo do tempo e pela força das circunstâncias, para uma família extensa
(um casal, com ou sem filhos, ao qual se juntou um ou mais parentes)978
. Como a
bibliografia tem notado, a tipologia delineada por Laslett apresenta-se demasiado
estante para uma estrutura em constante mutação como é a família, acabando por não
representar mais do que os diversos estádios da sua evolução979
. Um outro limite
prende-se com a sua inadequação ao conceito de família no Antigo Regime, o qual
978
Vide Peter Laslett, “Introduction: the history of the family”, Household and Family in Past Time,
Cambridge, Cambridge University Press, 1972, pp. 1-89. Laslett define três tipologias de agregados
familiares: simple family, a família nuclear, constituída pelo casal com ou sem filhos; extended family, a
família nuclear com um ou mais parentes; multiple family, duas ou mais unidades conjugais unidas por
consanguinidade ou afinidade. Fora destas três tipologias, encontravam-se os elementos que viviam
sozinhos e os que partilhavam a residência sem uma ligação conjugal. 979
Cf. Peter Burke, Sociologia e História, Porto, Afrontamento, 1990, p. 50.
230
englobava não só os elementos com laços de consanguinidade ou de afinidade, como
todo o conjunto de indivíduos que viviam debaixo do mesmo tecto e com o mesmo
património, incluindo aprendizes, criados e escravos980
. Dependendo da actividade do
chefe de família e da sua condição económica, a presença desses elementos extra-
parentais revelava-se mais ou menos significativa. Note-se que, no caso das famílias
cristãs-novas, tais elementos, muitas vezes, não comungavam a mesma “qualidade” dos
seus senhores. Encontramos criados e escravos cristãos-velhos a servir em casa de
cristãos-novos. Ora, o convívio entre senhores e subordinados nem sempre foi pacífico
e, muito menos, inócuo. Já vimos o que aconteceu durante a visitação de 1585, quando
criados e escravos denunciaram os próprios patrões.
Tendencialmente, os filhos abandonavam a casa paterna depois do casamento,
formando o seu próprio lar. Também aqui não existiria uma diferença marcada entre
os lares cristãos-novos e cristãos-velhos. Afinal, o sistema familiar nuclear e a regra
de residência neolocal após o casamento são predominantes no sul do
Mediterrâneo981
. E o Algarve não era excepção. Num estudo com base nos róis de
confessados de Moncarapacho dos anos de 1541 a 1546, João Alves Dias concluiu
que as estruturas predominantes dos fogos da freguesia, nesse período, eram os
casais com ou sem filhos982
.
Na maioria dos casos, a decisão sobre onde se iria constituir o novo lar partia do
marido, sendo a mulher a mudar de local de residência na sequência do casamento. Foi
o que aconteceu com Leonor de Caminha, que casou aos 18 anos de idade com Fernão
Ximenes. Pouco tempo depois, acompanhou o marido até Cádis, onde viveu até 1587,
quando, já viúva e devido ao ataque de Francis Drake à cidade, regressou a Portugal983
.
O homem mantinha uma presença menos regular na residência conjugal, sobretudo
quando tinha no comércio a sua fonte de sustento. Maridos ausentes, alguns com
paradeiro desconhecido (ou, pelo menos, alegadamente desconhecido), são uma
constante. Violante Ribeira, de Lagos, era casada com Luís Rodrigues, comerciante de
980
Cf. João José Alves Dias, “A população”, Nova História de Portugal, vol. V – Portugal do
Renascimento à Crise Dinástica, Lisboa, Presença, 1998, p. 39. 981
Cf. Robert Rowland, “Sistemas familiares...”, Ler História..., p. 30. 982
Cf. João José Alves Dias, Gentes e espaços..., pp. 66-69, 118. O autor esclarece que o conceito de fogo
e de família nem sempre correspondia à totalidade de pessoas que viviam numa casa, sendo possível, e até
comum em alguns casos, duas ou mais famílias, sem nenhum laço de parentesco, partilharem o mesmo
tecto. Vide também a análise do rol de confessados de Moncarapacho do ano de 1545 por Teresa Ferreira
Rodrigues e Célia Ferreira Reis em “A vida familiar no Algarve na primeira metade do século XVI:
alguns aspectos do quotidiano”, Actas das III Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia,
Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 1989, pp. 291-308. 983
Cf. ANTT, IL, proc. 5498, fls. 37-43, 93v-94.
231
vinhos que passava longas temporadas em Mazagão. À data da sua prisão, em 1562, o
negócio do marido não estaria a render o suficiente para garantir o sustento da família.
Violante dizia-se pobre, com o marido longe e obrigada a trabalhar984
.
De facto, perante a ausência do marido, muitas mulheres tinham de alargar o seu
papel na estrutura familiar. Além das tradicionais funções domésticas, muitas
assumiam os negócios dos cônjuges enquanto estes andavam a mercadejar de feira em
feira, ou de porto em porto. Francisca Lopes, de Vila Nova de Portimão, trabalhava na
loja de panos do marido, Luís Guterres – vendia mercadorias e encomendava trabalhos
a tosadores e a tecedeiras da vila985
. A mesma situação era comum nas famílias dos
mesteirais. Grácia Lopes, além de criar 10 filhos, trabalhava como costureira, decerto
auxiliando o marido, Pedro Fernandes, alfaiate986
. Em Faro, Joana de Barros era
confeiteira, tal como o cônjuge987
.
Às mulheres cabiam determinados ofícios que, embora considerados socialmente
menores, tinham uma função primordial na vida das cidades. Encontramo-las activas no
pequeno comércio, principalmente de produtos alimentícios, e em algumas actividades
transformadoras relacionadas com os tradicionais lavores femininos988
. Acrescente-se
ainda outras profissões exclusivamente femininas, como a criada doméstica ou a
parteira. Em meados de Quinhentos, Maria Gonçalves e Isabel Dias eram parteiras em
Faro e Loulé, respectivamente989
. Pela mesma altura, na cidade de Tavira, Beatriz
Fernandes vivia de fazer botões, Beatriz Mendes de trabalhos de tecelagem, enquanto
que Isabel Fernandes ganhava a vida como padeira990
. Já na década de 30 do século
seguinte, as irmãs Catarina Amada e Leonor Eanes, as duas quinquagenárias e solteiras,
dedicavam-se à costura, trabalho do qual colhiam o seu sustento991
. Costureiras,
tendeiras, tecedeiras, botoeiras, padeiras – eram estes os ofícios que predominavam
entre as cristãs-novas do Algarve.
984
Cf. ANTT, IL, proc. 5520, fls. 4v-5. 985
Cf. ANTT, IE, proc. 3194. 986
Cf. ANTT, IE, proc. 8185. 987
Cf. ANTT, IE, proc. 2197, fl. 135. 988
Cf. Aurélio Oliveira, “A mulher no tecido urbano dos séculos XVII-XVIII (tópicos para uma
abordagem)”, A mulher na sociedade portuguesa. Visão histórica e perspectivas actuais. Actas do
colóquio, vol. I, Coimbra, Instituto de História Económica e Social / Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 1986, pp. 309-333; Maria Luísa de Alarcão e Silva, “A mulher e a
alimentação à época dos Descobrimentos. Imagens do quotidiano”, O Rosto Feminino da Expansão
Portuguesa. Congresso Internacional. Actas, vol. I, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres, 1995, pp. 77-88. 989
Cf. ANTT, IL, proc. 6586, fl. 11; proc. 3845, fl. 8. 990
Cf. ANTT, IL, proc. 895; proc. 2511, fl. 10v; proc. 3114. 991
Cf. ANTT, IE, proc. 5103, fl. 50.
232
Parte destas profissionais eram viúvas. Perante a morte do marido, a condição da
mulher modificava-se: ou contava com o apoio da família mais próxima, que a acolhia e
a amparava economicamente, ou era obrigada a tomar a iniciativa do seu sustento e do
sustento dos seus filhos. Algumas assumiam o negócio do cônjuge falecido, como fez
Mor Fernandes, a Migas. Aos 80 anos de idade, ainda estava à frente da tenda de
marçaria que, no passado, pertencera ao marido992
. Outras punham a render os lavores
que haviam aprendido em jovens.
Numa situação similar, encontramos órfãs obrigadas a zelar pela sua sobrevivência
através do labor das suas mãos. As Salgadas, ou seja, as irmãs Maria e Isabel Mendes,
costuravam para fora e faziam botões. O seu pai, que fora alfaiate, havia falecido quando
ainda eram muito novas e dois dos seus irmãos viviam nas Índias de Castela. Maria e
Isabel estavam entregues à própria sorte, mas as dificuldades eram muitas: chegavam a
não ter com que pagar a renda da casa e deviam até as botinas que calçavam993
. A
situação das Salgadas era relativamente comum – mulheres que, após a morte dos pais ou
dos maridos, passavam a chefiar o agregado, com todas as obrigações daí advindas994
.
A desprotecção familiar e a carência económica constituíam factores decisivos para o
enquadramento da mulher no mundo profissional. Fora dessas conjunturas, encontramos
as esposas que auxiliavam os maridos nos seus negócios ou no desempenho dos seus
mesteres, mas que raramente são reconhecidas enquanto tal. Assim, se muitas cristãs-
novas admitiram a comunicação da crença na Lei de Moisés enquanto assistiam na loja do
marido ou negociavam alguma mercadoria, muito poucas aparecem referidas, ao longo
dos processos, enquanto tendeiras ou negociantes. A ajuda profissional ao cônjuge era
apenas mais uma obrigação da mulher, enquanto esposa e mãe, ao lado das tarefas
domésticas e da educação dos filhos. Aliás, em última instância, as próprias fronteiras
entre o espaço de trabalho e o espaço doméstico nem sequer se revelavam estanques995
.
Prioritárias eram as outras funções para as quais a mulher se preparava desde a mais
tenra idade – o cuidado da casa, do marido e dos filhos. Embora esse papel se
inscrevesse num plano doméstico, a sua esfera de relações não se limitava às pessoas da
casa ou aos parentes mais próximos. Foquemo-nos nas cristãs-novas do Algarve. A
992
Cf. ANTT, IE, proc. 9039. 993
Cf. ANTT, IE, proc. 3163. 994
No numeramento dos moradores de Portugal elaborado entre 1527 e 1532, 21% dos fogos eram
chefiados por mulheres (Cf. João José Alves Dias, “Os fogos femininos nos municípios do séc. XVI”, A
mulher na sociedade portuguesa..., vol. II, pp. 223-224). 995
Cf. Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d‟Água, 1988, pp.
295-298.
233
trabalhar na loja do marido ou do pai, elas tinham ali uma janela para o mundo. Depois,
havia as obrigações religiosas. No interior das igrejas, ou a caminho destas, os contactos
multiplicavam-se. A própria casa não era um espaço fechado. Recebiam visitas,
acolhiam parentes que vinham de fora, ensinavam lavores a jovens. À porta, batiam
pedintes e vendedores ambulantes, alguns oriundos doutras terras e com notícias frescas
de paragens longínquas. Não era um mundo exclusivamente doméstico ou familiar, mas
era um mundo onde reinavam os elementos femininos. Assim, quando presas e
pressionadas a confessar o que fizeram e o que não fizeram, as cristãs-novas tendiam a
incidir as suas denúncias noutras mulheres.
O protagonismo na primeira fase da educação dos filhos era da mulher. Na
ausência da mãe, a função passava para uma irmã mais velha, para a avó ou mesmo
para uma tia. Nos lares mais abastados, havia também a figura da ama996
. Mas a
educação ganhava outros contornos numa família cristã-nova judaizante. A mãe,
tradicionalmente a responsável pela primeira catequização da criança997
, deveria zelar
pelo ensino da duplicidade religiosa aos filhos a partir do momento em que estes
começavam a entender a necessidade do segredo. O seu papel era primordial na
transmissão e preservação do criptojudaísmo, reduzido a uma série de rituais inerentes
ao quotidiano do lar, como os jejuns e as restrições dietéticas, regulados por quem
tinha sob a sua responsabilidade a rotina alimentar da família998
. Em determinados
espaços de Portugal e do Brasil, até foram identificados casos de mulheres líderes de
grupos de judaizantes999
. “Do homem a praça, da mulher a casa”, dizia o povo1000
.
996
Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “As crianças e as idades da vida”, História da Vida Privada em
Portugal. Idade Moderna..., pp. 77-80. 997
Vide Marcel Bernos, “La catéchèse des filles par les femmes aux XVIIe et XVIII
e siècles”, La religion de
ma mére. La rôle des femmes dans la transmission de la foi, Paris, Les Éditions du Cerf, 1992, pp. 269-285. 998
Vide Anita Novinsky, “O papel da mulher no cripto-judaísmo português”, O Rosto Feminino da
Expansão Portuguesa...., pp. 549-555; Joseph Abraham Levi, “A mulher sefardita das diásporas ibéricas:
ponte entre culturas”, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, n.º 9, 2003, pp. 35-58; Angelo Adriano Faria
de Assis, Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – Séculos XVI-XVII. Tese de
doutoramento apresentada à Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004, exemplar policopiado; Natalia
Muchnik, “De la ville inquisitoriale à la ville de tolerance: identités féminines judaïsantes en Europe
occidentale (XVIIe siècle)”, Annales de Bretagne et des Pays de l’Ouest, t. 113, n.º 2, 2006, pp. 29-42. 999
Vide os exemplos apresentados em: Angelo Adriano Faria de Assis, “As «mulheres-rabi» e a
Inquisição na colônia: narrativas de resistência judaica e criptojudaísmo feminino – os Antunes,
macabeus da Bahia (séculos XVI-XVII)”, A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso.
Organização de Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler e Lana Lage, Rio de Janeiro, Editora da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2006, pp. 179-191; Susana Bastos Mateus, “A acção do Santo Ofício sobre a
comunidade cristã-nova de Lamego (1541-1544): o caso de Isabel Mendes”, CES, n.º 7, 2007, pp. 301-
320; Alex Silva Monteiro, “Conventículo Herético”: Cristãs-novas, criptojudaísmo e Inquisição na
Leiria Seiscentista. Tese de doutoramento em História apresentada à Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2011, exemplar policopiado.
234
Ora, o Algarve não era excepção nessa divisão sexual das esferas pública e privada e
na forma como tal influenciava a transmissão de uma fé secretamente professada e,
por isso, circunscrita ao universo doméstico, onde a mulher era dona e senhora.
Rapazes e raparigas conheciam, desde cedo, quais as suas respectivas funções na
estrutura social. Era no seio da família que começavam a ser definidas. Às raparigas
eram ensinados os lavores domésticos, controlados os comportamentos e as atitudes e
preparadas para um futuro enquanto esposas e mães. Algumas raparigas aprendiam a
costurar ou a bordar fora de casa, junto de uma vizinha ou de uma parente mais versada
em tais prendas1001
. O processo educativo terminava com o casamento que, como já
vimos, podia ser bastante precoce. Uma outra situação em que a mulher escapava ainda
em tenra idade ao domínio paterno e à educação materna acontecia com o ingresso na
vida religiosa. Isabel, filha do mercador Manuel Henriques, aos 9 anos já se encontrava
reclusa no mosteiro de São Bernardo, em Tavira1002
. Joana Rodrigues era mãe duas
jovens freiras em Montemor-o-Novo, Maria de São Bartolomeu e Isabel do Presépio,
com 16 e 15 anos, respectivamente1003
.
Se aprender a ler e a escrever não eram prioridades na educação das raparigas, o que
se traduzia nas altas taxas de iliteracia feminina, o mesmo já não se pode dizer dos
rapazes, para os quais as letras e os números eram fundamentais ao desempenho do
ofício que lhes garantiria o sustento futuro1004
. Ora, não seria a mãe, muitas vezes
analfabeta, a sua mestre. Alguns aprendiam a ler, a escrever e, sobretudo, a contar com
o pai ou com um irmão mais velho, outros recebiam as lições fora de casa. Nos anos 30,
em Faro, João Rodrigues, o Bom Cristão, além de mercador e escrivão, também
“ensinava meninos”1005
. Pela mesma altura, o filho de Branca Dias, Pedro Gomes, aos 6
anos de idade, frequentava a “escola de Paulo Pinto”, junto à igreja de São Pedro1006
.
1000
Na Carta de Guia de Casados, D. Francisco Manuel de Melo aconselhava o marido a fazer com que a
esposa se ocupasse das tarefas domésticas, pois “Cousas tão meudas não he bem que pejem o pensamento
de hum homem; & para os da mulher são muito convenientes. [...] Diz bem por isso o rifão: Do homem a
praça, da mulher a casa.” (Cf. Ângela Mendes de Almeida, “Casamento, sexualidade e pecado – os
manuais portugueses de casamento dos séculos XVI e XVII”, Ler História, n.º 12, 1988, p. 10). 1001
Alguns exemplos: Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, afirma ter aprendido “certo lavor e
costura” com a prima Branca de Sousa (Cf. ANTT, IE, proc. 4753); Filipa de Cea, que acabaria por ser
presa pela Inquisição em 1636, “ensinava meninas”, segundo uma denúncia de Inês Lourenço (ANTT, IE,
proc. 1657). 1002
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 67. 1003
Cf. ANTT, IE, proc. 6021, fl. 66v. 1004
Vide infra, pp. 268-269. 1005
Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fl. 123; proc. 8603, fl. 318. 1006
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 33v.
235
Então, Martim de Oliveira, com 14 anos, aprendia Gramática num estudo na cidade1007
.
O irmão mais novo, Pedro Machado, preso pela Inquisição aos 10 anos de idade,
afirmava ter aprendido uns princípios de latim1008
.
Portanto, desde cedo, a educação dos filhos varões transferia-se para outros
mestres e até para outros lares1009
. A partir de uma determinada idade, a influência da
mulher apenas era considerada benéfica na educação de uma igual1010
. Havia casos,
bastante comuns até, em que era o pai a assumir essa função junto dos filhos,
promovendo uma continuidade profissional na família. Noutros, a formação do rapaz
completava-se fora de casa, junto de um parente ou mesmo de alguém exterior à
família. Manuel Fernandes, apesar de nascido numa prole de sapateiros, era ferreiro e
o seu mestre fora um cristão-novo de Faro com quem não tinha qualquer ligação de
parentesco1011
. Diogo Lopes Simões foi mais longe. Aos 17 anos, partiu de Lagos
rumo a Lisboa, onde aprendeu o ofício de sirgueiro junto de um parente1012
. Não
existe uma particular precocidade no abandono do lar paterno por parte de Diogo
Lopes. Branca Fernandes, por exemplo, tinha dois filhos no Peru – Diogo, com 14
anos de idade, era surrador, e Vicente, com 12, sapateiro –, possivelmente ao cuidado
do tio Belchior de Barros, também ele ainda muito jovem1013
. Cristóvão Pousado, por
volta dos 12 anos de idade, já tinha embarcado de Vila Nova de Portimão rumo a
Cabo Verde, onde viveu durante 10 anos. O irmão Jorge Pousado estabeleceu-se em
São Tomé e o pai, João Pousado, dirigia os negócios a partir de Lisboa1014
. Cristóvão
iniciara a sua vida profissional integrando a rede de negócios da família, tal como
acontecia com outros jovens cristãos-novos.
Contudo, para alguns, o percurso formativo acabou por ser interrompido pela
prisão. Uma vaga de detenções na família colocava o jovem sob a mira do Santo
Oficio. O alegado judaísmo dos pais lançava a suspeita sobre os filhos, mesmo os
1007
Cf. ANTT, IE, proc. 468, fl. 53. 1008
Cf. ANTT, IE, proc. 10523. 1009
Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “Up and out. Children in Portugal and the Empire (1500-1800)”,
Raising an Empire. Children in Early Modern Iberia and Colonial Latin America. Ed. Ondina E.
González e Bianca Premo, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2007, pp. 17-40. 1010
Cf. António Gomes Ferreira, Gerar, Criar, Educar. A criança no Portugal do Antigo Regime,
Coimbra, Quarteto Editora, 2000, pp. 408-409. Sobre os princípios da educação feminina emanados na
tratadística e literatura da época, vide Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, cartas e guias.
Casamento e espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Porto, Instituto de Cultura Portuguesa /
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, pp. 101-142, 191-197. 1011
Cf. ANTT, IE, proc. 1604, fls. 1v-2. 1012
Cf. ANTT, IE, proc. 3276, fl. 28. 1013
Cf. ANTT, IE, proc. 6970. Belchior de Barros tinha, então, 17 anos de idade. 1014
Cf. ANTT, IL, proc. 4095, fls. 21-22v.
236
mais novos. As irmãs Maria Lopes e Constança Lopes foram presas em 1588, quando
tinham 11 e 12 anos, respectivamente1015
. Já vimos o caso de Pedro Machado, com 10
anos de idade e já a penar nos cárceres de Évora1016
. Estas prisões não foram feitas à
margem da lei1017
. Os regimentos de 1552 e o de 1613 contemplavam a prisão de
menores da “idade de discrição” (14 anos para os rapazes e 12 anos para as raparigas),
salvaguardando-os apenas da abjuração pública. A partir dessa idade, já seriam “doli
capazes”, conscientes do valor moral das suas acções1018
. Mas esta salvaguarda era
contornada através do prolongamento do processo. Pedro Machado permaneceu nos
cárceres de Évora durante 6 anos – foi preso em 1634, junto com o pai e o irmão, e só
saiu reconciliado em 1640. A decisão sobre a sua pena não foi unânime. O inquisidor
Bartolomeu de Monteagudo e os deputados Francisco de Miranda Henriques e Manuel
de Magalhães de Menezes consideravam que Pedro Machado deveria ser julgado
como convicto no crime de heresia e apostasia. O jovem não confessara nenhuma das
culpas, alegando que, quando o pai tentou a fuga para Castela, ainda era muito novo e
fora obrigado a acatar a sua vontade. Contudo, Monteagudo e os dois deputados não
acreditavam na sua inocência. Pedro Machado era “[...] de raiz infecta, filho, irmão,
sobrinho e parente de pessoas presas pelo mesmo crime de judaísmo [...]”. Pediam a
pena máxima. No lado oposto estava o inquisidor João Delgado Figueira e os
deputados Manuel do Vale de Moura e João Estaço, que advogavam o pouco crédito
das testemunhas acusatórias e a constância do réu na declaração da sua inocência. No
fim, foram estes os argumentos que mais pesaram e Pedro Machado foi sentenciado a
cárcere ao arbítrio dos inquisidores1019
.
A resolução do processo de Gaspar Dias, também de Faro, revelou-se mais rápida
mas não tão favorável. Na altura da prisão, em 1633, tinha cerca de 12 anos de idade.
A 25 de Março de 1635, quando abjurou em forma os seus “heréticos erros”, estaria
no limite da “idade de discrição”. A misericórdia que os regimentos aconselhavam no
1015
Os processos de Constança Lopes e de Maria Lopes encontram-se desaparecidos. Porém, sabemos da
sua existência através das denúncias trasladadas no processo das irmãs Isabel e Grácia Lopes e do tio
Francisco Lopes (Cf. ANTT, IE, procs. 7881, 7842 e 7534) 1016
Esta é a idade que Pedro Machado alega na sessão de genealogia. Porém, os inquisidores duvidam.
Uma nota à margem alerta: “parece de 14”. Mais tarde, quando é debatida a pena a aplicar ao jovem,
refere-se que ele foi preso aos 13 anos de idade (Cf. ANTT, IE, proc. 10523). 1017
Vide Alex Silva Monteiro, A Heresia dos Anjos: A Infância na Inquisição Portuguesa nos Séculos
XVI, XVII e XVIII. Dissertação de pós-graduação apresentada à Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2005, pp. 95-113. 1018
Cf. “Regimento... (1552)”, As Metamorfoses..., p. 112 (cap. 16); “Regimento... (1613)”, Ibidem, p. 157
(tit. III, cap. IX). 1019
Cf. ANTT, IE, proc. 10523. Sobre a tentativa de fuga de Pedro Machado, vide infra, pp. 132-133.
237
tratamento dos presos menores de 20 anos não se aplicou no seu caso. Sem atenuantes,
Gaspar Dias foi sujeito a tormento e acabou sentenciado a cárcere e hábito penitencial
perpétuos1020
.
O amparo dos desprotegidos
Pouco mais de um mês após ter saído no auto-de-fé, Gaspar Dias foi autorizado a
acabar de cumprir a penitência em Faro. Mas a sua vida sofrera uma mudança drástica.
O pai, Jorge Lopes Cutelo, que saíra no mesmo auto, faleceu 15 dias depois. A mãe,
Leonor Duarte, estava presa, tal como parte dos seus tios e primos. Gaspar ficara
entregue à própria sorte. Envergando o humilhante hábito penitencial, mendigava por
Beja. A 28 de Maio de 1638, os inquisidores de Évora libertaram-no desse estigma e
então, com cerca de 17 anos, pôde reconstruir a sua vida. Seguindo as pisadas do
falecido pai, dedicou-se ao comércio. Em 1640, pedia licença para andar armado com
uma espada, pois “[...] vai a feiras e outras partes deste reino em razão de seu trato e, em
algumas das partes aonde vai, tem inimigos que o pretendem matar e afrontar e corre
perigo a sua vida não trazendo arma [...]”1021
.
Nas famílias mais violentamente atingidas pela repressão inquisitorial, a vida dos
menores que conseguiam escapar ao cárcere sofria igualmente uma drástica
transformação. Perante a prisão dos pais, o menor ficava a cargo doutros parentes, mais
ou menos próximos. Com apenas 16 anos e na sequência da detenção da mãe, Genebra
Álvares tornou-se responsável pela educação dos seus 6 irmãos mais novos1022
. Na
mesma situação, Beatriz Gonçalves foi entregue aos cuidados de uma vizinha, com a
recomendação de seguir para a casa da tia Leonor Quitéria, em Tavira1023
.
Já vimos anteriormente como, em 1580, a calamidade da peste desabara sobre muitos
lares do Algarve, causando a morte dos elementos basilares da estrutura familiar.
Conhecemos o caso de Pedro Lopes, de Faro1024
. Com o falecimento de ambos
progenitores, coube ao jovem zelar pelo sustento das irmãs. O irmão mais novo, Nicolau,
então ainda um bebé, foi entregue aos cuidados da tia Branca Rodrigues, residente em
Beja. Mesmo assim, o fardo tornou-se demasiado pesado para Pedro, compelido a partir
1020
Cf. ANTT, IE, proc. 5677. 1021
Cf. Idem, fls. 66-70. 1022
Cf. ANTT, IL, proc. 3116, fls. 14-14v. 1023
Cf. ANTT, IE, proc. 4195, fl. 55v. 1024
Vide supra, pp. 73-77.
238
para Sevilha, em busca de novas oportunidades de negócio. Não terá sido o suficiente.
Uma das irmãs, Violante Lopes, dizia ter apenas o que ganhava “[...] com as mãos e a
agulha [...]”, talvez com saudades do tempo em que, com os pais vivos, ela e os irmãos
“[...] sempre folgavam porque tinham quem os servisse [...]”, como testemunhou a sua
antiga ama perante o visitador Manuel Álvares Tavares1025
. A mais nova, Guiomar Lopes,
depois de sair dos cárceres de Évora, foi entregue aos cuidados de um casal cristão-velho,
Rui Mendes de Vasconcelos e D. Ana1026
. Este era um procedimento regularmente
adoptado face aos menores reconciliados. Os cuidados de uma família cristã-velha seriam
salutares para a sua reeducação nos princípios da doutrina católica1027
. Guiomar viveu
com esse casal durante 10 anos, ao fim dos quais o cunhado Martim d‟Ares (marido da
irmã mais velha, Ana Lopes) acolheu-a na sua casa. Guiomar, que adoptou o sobrenome
Pereira, viria a casar-se três vezes, sempre com lavradores cristãos-velhos. Regressou aos
cárceres inquisitoriais em 1636, já com cerca de 50 anos de idade1028
.
Os dois momentos em que Guiomar Lopes/Pereira teve de enfrentar o cárcere
inquisitorial fornecem-nos pistas sobre como esta mulher, presa pela primeira vez
quando tinha pouco mais de 10 anos de idade, conseguiu refazer a sua vida e até tentar
escapar aos estigmas do passado e do sangue. Não foi completamente bem sucedida,
como prova a segunda prisão. Porém, casos houve em que a mancha do cárcere se
incrustou tão profundamente no interior da estrutura familiar que as marcas perduraram
de geração em geração.
Com Catarina Lopes, cuja pomposa alcunha Sangue de Rei escondia uma vida de
miséria, a morte e o cárcere determinaram um percurso de infortúnio. Em 1633, era
viúva e sobrevivia à custa da caridade alheia. O marido, Duarte Nunes, deixou a família
numa situação de indigência ao morrer durante o saque inglês a Faro1029
.
1592 foi um ano fatal para Catarina Lopes, marcado pela prisão dos pais e da irmã mais
velha. É um facto que, mesmo antes da repressão inquisitorial se abater sobre a sua casa, a
1025
Cf. ANTT, IE, proc. 4504. 1026
Cf. ANTT, IE, proc. 3561, fl. 4v. 1027
O regimento de 1613 aconselhava os inquisidores a informarem-se sobre a situação dos filhos dos
réus menores de 14 anos, inquirindo sobre a sua pobreza e mandando-os doutrinar. O objectivo era que os
ensinamentos recebidos pelos pais, contrários à ortodoxia, fossem esquecidos e substituídos pela doutrina
cristã. (Cf. Alex Silva Monteiro, A Heresia dos Anjos..., pp. 102-103). 1028
Cf. ANTT, IE, proc. 3561. 1029
A 5 de Outubro de 1596, Isabel Vaz, mãe de Catarina Lopes, pedia autorização aos inquisidores para
acabar de cumprir a sua pena no Algarve, pois as suas filhas precisavam da sua ajuda: Maria Lopes, tinha
o marido muito doente, enquanto que Catarina era viúva “porque lhe mataram o marido os ingleses na
revolta”. Isabel queria ir para Vila Nova de Portimão, pois Faro era uma cidade em ruínas (Cf. ANTT, IE,
proc. 4248).
239
família não viveria numa situação de desafogo financeiro. A mãe, Isabel Vaz, já então se
queixava da sua pobreza. Residiam todos no andar de baixo de uma casa e, por vezes, não
tinham dinheiro para o aluguer1030
. Mas o pai, Francisco Lopes, o Barca, tinha tenda de
marçaria e conseguiu que a sua filha mais velha, Maria Lopes, se casasse com um mercador
endinheirado1031
. Porém, tudo mudou com a prisão. Francisco Lopes faleceu no cárcere, na
sequência de uma peleja com os companheiros de cela. Nem os seus restos mortais
puderam descansar em paz, exumados e queimados em 15971032
. Isabel Vaz e Maria Lopes
conseguiram a reconciliação, mas a um custo muito alto. Maria terá regressado para junto
do marido, mas Isabel teve de tomar em mãos um lar reduzido a três mulheres
desprotegidas – ela e Catarina, ambas viúvas, e uma outra filha Beatriz, então ainda solteira.
Catarina Lopes, que escapara ao cárcere inquisitorial na sua juventude, teve de
enfrentá-lo na velhice. O processo fornece algumas pistas sobre o que aconteceu à sua
família após as prisões nos anos 901033
. Em 1633, Maria Lopes já não era viva e os dois
únicos filhos que sobreviveram à infância, Francisco Nunes de Castro e Tomás de
Castro, ambos mercadores, haviam rumado às Índias Castelhanas. A irmã Beatriz casou
com um tratante de Vila Nova de Portimão, Vicente Rodrigues. Quanto a Catarina, a
sua sorte não fora nada auspiciosa. Viúva e com quatro filhos para criar, ela vivia de
costurar para fora. Quando a costura não era suficiente, pedia de porta em porta. Apesar
das dificuldades, por vezes acolhia em casa Mor Gonçalves, abandonada pelo próprio
filho devido aos seus “furores” e acessos de loucura1034
.
As filhas de Catarina, Isabel Nunes e Maria de Castro, eram casadas com dois
irmãos músicos, António e Domingos Pereira, conhecidos como os Charamelas, então
emigrados em Jerez de la Frontera. A situação dos outros dois filhos seria ainda mais
periclitante. Inês Nunes, que teria já perto de 40 anos, nunca chegara a casar1035
. O
irmão Simão vivia de biscates – era agente comercial, fazia trabalhos agrícolas, revendia
mercadorias (muitas compradas fiado)... e, quando havia necessidade, mendigava1036
.
1030
Cf. ANTT, IE, proc. 4248. 1031
Cf. ANTT, IE, proc. 11045. 1032
Cf. ANTT, IE, proc. 6438. 1033
Cf. ANTT, IE, proc. 10785. 1034
Mor Gonçalves foi presa pela Inquisição de Évora em 1633 e acabou internada no Hospital de Todos-
os-Santos, onde veio falecer (Cf. ANTT, IE, proc. 3588). 1035
Cf. ANTT, IE, proc. 3069. As idades dos filhos de Catarina Lopes são um bom exemplo do quão pouco
exactas podiam ser as idades indicadas pelos réus. Segundo os respectivos processos, em 1633, Simão
Nunes teria 34 anos, Inês e Isabel Nunes 30 e Maria de Castro 27. Só que, de acordo com o processo da avó
Isabel Vaz, Duarte Nunes teria falecido em 1596. Ora, Catarina Lopes não refere nenhum segundo marido e
apresenta os quatro filhos como legítimos. Assim, nenhum deles poderia ter menos de 37 anos em 1633. 1036
Cf. ANTT, IE, proc. 736.
240
Os quatro filhos de Catarina Lopes não escaparam ao cárcere. Quanto à matriarca,
51 denúncias foram quantas acumulou ao longo do seu processo. Perante um tão
extenso número de acusações, a sua confissão pareceu pouco credível aos inquisidores.
“[...] Só cria na Lei de Moisés para ser rica e ter remédio [...]”, alegava1037
. Expectativas
nunca concretizadas. Catarina Lopes acabou relaxada em carne à justiça secular.
A abundância das provas reunidas pela Inquisição contra os Sangue de Rei espelhava
o quanto conhecidos eram em Faro, embora nem sempre pelos melhores motivos. Eram
“[...] pessoas de mui baixa qualidade, mendigas e pobres e quase doidas [...]”, segundo
alegou Francisco Nunes1038
. Guiomar Mendes, a mulher de Manuel Filipe Preto, referiu
as ameaças que Catarina Lopes e os filhos faziam a quem não lhes dava esmola1039
.
“Miseráveis e infames”, assim os via Manuel Henriques1040
.
A mendicidade punha-os em contacto com muita gente, sobretudo com outros
cristãos-novos. Pedro de Seixas recordou como, por volta de 1629, Catarina fora à sua
casa pedir esmola para o casamento de uma das filhas e ele concedeu-lha “[...] porque
eram todos da mesma nação [...]”1041
. Este critério é revelador da consciência da
necessidade, ou mesmo obrigação, da solidariedade entre cristãos-novos. Mas também
havia uma troca de favores, mesmo que numa dimensão não material. Por exemplo,
Simão Fernandes, sapateiro de Tavira, recebia dinheiro e géneros de outros cristãos-novos
e, em troca, prometia rezar pelas suas almas e guardar os jejuns judaicos na sua vez1042
.
As solidariedades fora do domínio familiar também emergiam noutras
circunstâncias. Já vimos como Catarina Lopes protegia Mor Gonçalves, desamparada
pela família mais próxima. A situação era similar à de Beatriz Gomes, “[...] mulher mui
louca e douda do miolo [...]”, segundo o seu cunhado Francisco Nunes. Expulsa da casa
de uma irmã, foi viver com “[...] uma beata, a Freira por alcunha [...]”1043
. Por outras
razões, nomeadamente pela penhora da casa onde viviam, as filhas de Jorge Fernandes,
tosador de Vila Nova de Portimão, foram acolhidas na casa de Beatriz Brandoa1044
. Em
nenhum destes casos encontramos qualquer ligação de parentesco entre protector e
protegido. Poderiam ser amigos ou mesmo vizinhos. Eram todos cristãos-novos. Pelo
1037
Cf. ANTT, IE, proc. 10785, fl. 191v. 1038
Cf. ANTT, IE, proc. 3030, fl. 63. 1039
Cf. ANTT, IE, proc. 2197, fl. 90. 1040
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 109. 1041
Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 198v. 1042
Cf. ANTT, IL, proc. 4527, fl. 21v-23v. 1043
Cf. ANTT, IE, proc. 3030, fls. 64-64v. 1044
Cf. ANTT, IE, proc. 4603, fls. 165v-166.
241
parentesco ou pela vizinhança, no trabalho ou na alegada comunhão de uma fé guardada
em segredo, eles partilhavam o quotidiano. Como podiam não partilhar o sofrimento?
Quotidiano e festa
Os binómios privado-público, feminino-masculino, rural-urbano, trabalho-festa
definiam o quotidiano do cristão-novo como o de qualquer outro indivíduo no Algarve
dos séculos XVI e XVII. Porém, no seu caso específico, há uma outra dualidade a ter
em conta, o confronto entre a necessidade de integração numa sociedade
repressivamente cristã e a perene referência à ancestralidade judaica, móbil de exclusão
dessa mesma sociedade.
Comecemos pela casa, o espaço privado por excelência. Comum nos meios urbanos
era a casa sobradada1045
. Na loja, tornada tenda, botica ou oficina, o chefe de família
desenvolvia a sua actividade profissional, reservando o andar de cima para a
residência1046
. Nos lares mais modestos, trabalho e residência conviviam mais
intimamente – dormia-se, comia-se e trabalhava-se no mesmo espaço, com cortinas ou
repartimentos de madeira que separavam as diferentes áreas da habitação1047
.
Nalgumas casas cristãs-novas, havia rumores da existência de câmaras secretas,
espaços interditos até aos criados, onde se dava lugar a comportamentos heterodoxos.
Leonor, escrava de Maria Rodrigues, de Vila Nova de Portimão, espreitara pelo buraco
da porta de uma câmara que a sua senhora trazia sempre fechada à chave e vira-a a
açoitar um crucifixo1048
.
Por outro lado, o cristão-novo sentia necessidade de dar provas públicas da sua
afeição à “Santa Igreja Católica”. A excessiva manifestação de provas exteriores de
piedade cristã acaba por se colar à imagem do judaizante – cristão na obra, judeu na
vontade. Uma prática religiosa mais discreta, sem a intenção de chamar as atenções
alheias, passa a servir de prova de uma fé sincera. Vêmo-lo a servir de argumento de
defesa. É o que alega Custódio Mendes: confessava-se secretamente, frequentava as
igrejas fora de horas, punha velas nos altares dos santos “em tempo que não fosse
1045
Em Silves medieval, porém, predominariam as casas térreas (Cf. Luisa Trindade, “A habitação
corrente em Portugal”, A casa corrente em Coimbra dos finais da Idade Média aos Inícios da Época
Moderna, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, 2002, p. 40). É possível que a situação se tenha
mantido durante a Época Moderna, dado o decréscimo populacional da cidade. 1046
Cf. João Carlos Oliveira, “A casa”, Nova História de Portugal..., vol. V, p. 633. 1047
Cf. Alves Dias, Gentes e espaços..., p. 101. 1048
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 87-88.
242
visto”. Em casa, construiu um altar a São Brás, cuja devoção o salvara de um osso
atravessado na garganta1049
.
Possuir um oratório em casa, espaço de reclusão e de oração, evidenciava uma fé
sincera e discreta1050
. Porém, o uso indevido do oratório também suscitava denúncias.
Uma visita da casa de João Baptista, mercador de Lagoa, referiu que ele tinha um
oratório, num dos quartos, com duas imagens de Nossa Senhora penduradas de cabeça
para baixo e duas candeias acesas postas em cima1051
. Em Faro, Marcos Rodrigues
possuiria um oratório, com imagens de Cristo e de Nossa Senhora, no aposento onde
dormia e “[...] cada vez que queria fazer suas necessidades, mandava passar o serviço
doutro aposento por uma escrava sua e pô-lo ao pé do dito oratório e depois que fazia suas
necessidades o mandava tirar, isto em desprezo das ditas imagens [...]”1052
.
Marcos Rodrigues era um mercador de consideráveis cabedais, fintado em 1631, que
vivia numa casa com vários aposentos e contava com os serviços de escravos. Quem não
usufruía de uma condição financeira tão favorável mas, mesmo assim, possuía residência
própria, podia obter uma outra fonte de rendimento ao alugar parte da casa a outra família.
Em geral, era a loja, menos digna do que o sobrado1053
. Ora, a comunicação entre os dois
níveis da casa acabava por ser inevitável, embora nem sempre desejada. Em 1588, Beatriz
Pinta confessou que, por um buraco do sobrado onde vivia, ouvira Mor Rodrigues dizer à
mãe que havia guardado o jejum da Rainha Ester1054
. A privacidade era difícil quando,
numa mesma casa, podiam viver duas ou mais famílias. Vejamos o caso que Margarida
Fernandes, cristã-velha, denunciou durante a visita do inquisidor Manuel Álvares Tavares
a Silves. No Outono de 1584, ela foi viver para Alcantarilha com o marido. Beatriz
Simões deixou-os ficar numa câmara da casa da sua filha Branca Henriques. Segundo
Margarida, quando Beatriz ia a Alcantarilha, “[...] abre todas as portas e vivem todos
juntos [...]”. Assim, acabou por testemunhar que, aos sábados, a cristã-nova vestia sempre
roupa lavada e não fiava na sua roca1055
.
Nos meios urbanos, a estrutura das casas e a organização urbanística promoviam a
comunicação – as ruas estreitas, as casas geminadas. Quase tudo se sabia entre vizinhos,
1049
Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 140v-141. 1050
Vide José Adriano de Freitas Carvalho, “Um espaço de oração na Época Moderna. O oratório
particular: os usos. E também os abusos?”, Via Spiritus, n.º 7, 2000, pp. 145-162. 1051
Cf. ANTT, IE, liv. 229, fl. 460v. 1052
Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 431. 1053
“Lança o Santo Ofício suas redes e colhe os de sobrado e os de loja, e a estes, que o vulgo chama de
menos sorte [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 335). 1054
Cf. ANTT, IE, proc. 1682, fls. 122v-123. 1055
Cf. ANTT, IE, proc. 8844.
243
o que tinha prós e contras para quem vivia numa duplicidade de crenças e de
comportamentos. Por um lado, constituía uma ameaça ao segredo. Por outro, potenciava
a comunicação da fé judaizante e a prática de uma ritualidade em comum. Era o que
acontecia na Praça Velha de Faro, em finais de Quinhentos. Após a morte do marido,
Estevainha Gomes foi morar com Bárbara Filipe e Inês de Caminha, moças solteiras e
órfãs. Na casa em frente, vivia Isabel Nunes, casada com Gonçalo Martins, parente do
marido de Estevainha. Era ela quem as avisava do tempo de celebração dos jejuns1056
.
Ora, a casa de Inês de Caminha e Bárbara Filipe comunicava com a das suas sobrinhas
Margarida Lopes e Leonor de Caminha através de “[...] um buraco por onde algumas
vezes se serviam para uma parte com outra [...]”1057
. Os jejuns eram guardados em
conjunto, mas longe dos olhares dos outros vizinhos.
No espaço público, o cristão-novo esforçava-se por dar provas da solidez do seu
catolicismo. A participação em manifestações públicas de religiosidade tornava-o
mais credível. A maioria dos processados revelava frequentar assiduamente romarias,
procissões e festas religiosas. Para alguns, nem sequer era incompatível com a fé que
guardavam em segredo. Inês Fernandes, quando questionada pela prima Ana
Fernandes porque ia à ermida de Nossa Senhora de Porches se acreditava na Lei de
Moisés, teria respondido “[...] que cria na dita lei mas que nem por isso deixava de ir a
romaria [...]”1058
. Afinal, não era só uma romaria, era um momento de ruptura com o
quotidiano, de festa.
Celebrada no mesmo cenário da vida quotidiana, metamorfoseado provisoriamente para
marcar a ruptura com o que era comum a todos os dias, a festa desempenhava uma função
que ia muito para além do mero divertimento1059
. Como refere José António Maravall, a
festa visava distrair o povo das suas inquietações e causar a admiração por quem a
realizava, pelo seu poder de ordenar e concretizar tanto esplendor1060
. De uma forma
espectacular e admirável, reproduzia a realidade e solidificava a consciência do lugar de
cada um na sociedade, evidenciando as fronteiras entre quem promovia a festa, quem
participava e assim se sentia parte desse universo, e quem apenas assistia e se maravilhava
com o aparato. Ora, no Portugal Moderno, a maior parte das festas a que a população tinha
1056
Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fl. 96v-97. 1057
Cf. ANTT, IL, proc. 11669, fls. 1-9. 1058
Cf. ANTT, IE, proc. 875. 1059
Cf. André Chastel, “Le Lieu de la Fête”, Les Fêtes de la Renaissance. Ed. Jean Jacquot, t. I, Paris,
Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1956, pp. 419-423. 1060
Cf. José Antonio Maravall, La cultura del Barroco, Barcelona, Ariel, 2000, p. 492.
244
acesso eram de foro religioso. A Igreja encontrava, assim, uma forma eficaz de chegar aos
fiéis, causando maior comoção do que com o mais arrebatado sermão dominical 1061
.
A festa era também um momento de encontro e de fomento dos laços sociais. Para
uma minoria constantemente arrastada para as margens da sociedade, a participação
em celebrações festivas provava a integração. Havia quem investisse largos cabedais
nesse sentido. Manuel Nunes de Moura alegou que, em dois anos seguidos, gastara
mais de 6 mil réis na festa de S. Tomás1062
. O mercador era oficial da confraria do
santo e uma figura admirada em Faro. Ao contribuir financeiramente para a realização
da festa, consolidava essa posição.
As ocasiões festivas seriam particularmente apreciadas pelos mais jovens.
Acompanhemos Isabel Duarte e Joana Rodrigues de Orta, que tinham 14 e 20 anos de
idade, respectivamente, quando foram presas pela Inquisição de Évora. Isabel recordou
a comédia que vira, por volta de 1629, na casa de Francisco Rodrigues de Abreu,
boticário cristão-velho. Um ano depois, a partir das janelas da casa da prima Isabel
Pereira, tinha assistido a uma “comédia de Nossa Senhora dos Prazeres”, na Praça
Velha. Nesse dia, a casa de Isabel Pereira enchera-se com perto de 20 pessoas1063
. Além
da comédia, também se fizeram “festas de cavalo”, segundo alegou Joana Rodrigues1064
.
À festa religiosa aliavam-se os espectáculos profanos – não só as comédias e as “festas
de cavalo”, como também os fogos1065
e as corridas de touros. Em 1631, houve touros
pelo Santo António. Isabel Duarte foi vê-los à casa de José Dias, na Rua de Santo
António, enquanto que Joana Rodrigues esteve à janela de Diogo de Tovar, na Rua do
Rego1066
. Possivelmente, as corridas realizar-se-iam na Praça Velha, para onde
confluíam as duas artérias1067
.
1061
Helena Pinto Janeiro, “A procissão do Corpo de Deus na Lisboa Barroca – o espaço e o poder”,
Arqueologia do Estado. 1as
Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do
Sul, Séculos XIII-XVIII, vol. II, Lisboa, História & Crítica, 1988, pp. 734-735. 1062
Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fl. 55. Vide, em anexo, pp. 389-391. 1063
Cf. ANTT, IE, proc. 2218. Catarina da Assunção, também de Faro, contou que, em Novembro de
1636, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Vitória, fora ver uma comédia à casa de Diogo
Rodrigues, pedreiro, onde se encontravam reunidos mais 18 cristãos-novos (Cf. ANTT, IE, proc. 10932). 1064
Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 46. 1065
Maria Baptista, de Faro, recorda a ocasião em que fora à casa de Custódio Mendes ver “umas festas
de fogo” (Cf. ANTT, IE, proc. 4724, fl. 20). 1066
Cf. ANTT, IE, proc. 2218; proc. 3208, fl. 39. 1067
Constança Simões, também de Faro, refere que, em 1631, fora à casa de Isabel Lopes, viúva de Diogo
Gonçalves de Tovar, para “[...] ver uns touros que corriam na praça [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 6091, fl.
36v). Em Vila Nova de Portimão, encontramos testemunhos de corridas de touros na Rua do Peru (Cf.
ANTT, IE, proc. 4603, fls. 157-157v). As corridas de touros também integravam a festa de Santo António
em Lisboa, realizadas no Rossio (Cf. Maria Eugénia Reis Gomes, Contribuição para o estudo da festa em
Lisboa do Antigo Regime, Lisboa, Instituto Português de Ensino à Distância, 1985, p. 27).
245
A convivência entre o sagrado e o profano era particularmente visível nas procissões, o
que não deixava de causar o espanto, e até o escândalo, de quem vinha de fora1068
. A
procissão do Corpo de Deus constituía um caso paradigmático1069
. Em Tavira, a “gaiola”
com o Santíssimo Sacramento era levada por 10 clérigos e, à frente, a procissão organizava-
se tendo como modelo a própria hierarquia social – os nobres, os tabeliães, os mercadores
“de loja e de panos”, os clérigos, os frades, os lavradores, os mareantes, os boticários, os
mesteirais e os militares desfilavam em grupos, envergando os símbolos do seu ofício1070
.
Os moradores reuniam-se na casa uns dos outros e, das janelas e dos varandins, assistiam à
passagem do cortejo e a toda a sorte de eventos que o acompanhavam1071
.
Não só o Corpus Christi e o Santo António animavam o Verão no Algarve. As
celebrações do São João em Tavira atraíam muita gente de fora. Em 1624, até o Marquês
de Aiamonte foi assistir às festividades1072
. O mês de Agosto era particularmente
generoso em festas religiosas. Em Lagos, realizavam-se as procissões de Nossa Senhora
de Guadalupe e do Santíssimo Sacramento1073
, enquanto que, em Faro, havia as festas de
Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Vitória e de São Tomás1074
.
Na Quaresma, a penitência limitava a euforia festiva mas tornava mais intenso o
fervor religioso, manifestado nas procissões do Senhor dos Passos que se multiplicavam
por toda a região. A procissão de Loulé era particularmente popular, atraindo fiéis
doutras localidades, em particular de Faro1075
.
A vivência religiosa constituía um dos poucos impulsionadores da mobilidade
feminina. Embora os homens também participassem em romarias aos templos de maior
devoção, proliferam os testemunhos de mulheres que, sozinhas ou em pequenos grupos,
deslocavam-se a ermidas ou igrejas, quer nas proximidades do seu local de residência,
1068
Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “Entre o sagrado e o profano: as procissões em Portugal no
século XVIII segundo alguns relatos de estrangeiros”, A Festa. Comunicações apresentadas no VIII
Congresso Internacional da Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII. Lisboa, 18 a 22 de
Novembro de 1992, vol. II, Lisboa, Universitária Editora, 1992, pp. 455-468. 1069
Vide Helena Pinto Janeiro, “A procissão do Corpo de Deus...”, Arqueologia..., pp. 723-742; Iria
Gonçalves, “As festas do «Corpus Christi» do Porto na segunda metade do século XV: a participação do
concelho”, Um olhar sobre a cidade medieval, Cascais, Patrimonia, 1996, pp. 153-176. 1070
Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Padrões, doações, ofícios e mercês, liv. 52, fl. 152. 1071
Cf. ANTT, IE, proc. 2815, fl. 14; proc. 3208, fls. 51v-52. 1072
“Armavam-se nas ruas públicas ou nos largos, bonitos mastros engrinaldados e revestidos de murta e
alecrim com as denominações das capelas de São João, flores próprias da época. Na parte superior,
colocava-se a Imagem do Santo feita de massa cozida no forno. Ao anoitecer acendiam-se fogueiras e
ornavam-se os mastros de luzes. Chegada a ocasião, começavam os bailes e descantes em que entravam
os rapazes e as raparigas alternadamente ou em coro.” (Cf. Damião Augusto de Brito Vasconcelos,
Notícias Históricas de Tavira..., p. 276). 1073
Cf. BN, Reservados, cod. 10835, fl. 352-355v. 1074
Cf. ANTT, IE, proc. 3069, fls. 136v-137; proc. 3166, fl. 174; proc. 1836, fl. 77v. 1075
Cf. ANTT, IE, proc. 738; proc. 824, fls. 56-56v; proc. 4086.
246
quer mais longe. Regressemos a Isabel Duarte e a Joana Rodrigues de Orta. Em Junho de
1630, Isabel foi à romaria de Nossa Senhora da Esperança, na companhia de duas outras
mulheres1076
. Joana, por sua vez, recordou uma romaria à ermida de São Cristóvão, em
Setembro de 16321077
. As duas jovens mencionaram pequenas deslocações a ermidas no
termo de Faro, mas havia quem empreendesse viagens de dias, pernoitando na casa de
familiares ou de pessoas de confiança1078
. Nos templos de maior devoção, existiam
mesmo instalações próprias para o acolhimento dos peregrinos. Era o caso da ermida do
Santo Cristo, em Moncarapacho, com a sua “casa de romagem”1079
. O santuário recebia,
então, uma das maiores romarias do Algarve. A festa anual celebrava-se a 14 de
Setembro, data em que fora inaugurada a capela, no ano de 16321080
. Ainda antes da
construção do templo, já acorriam ao Santo Cristo fiéis oriundos de toda a região, mas
também do Alentejo, Beiras e até da Andaluzia1081
. No Barlavento, a ermida de Nossa
Senhora do Verde era um outro importante centro de peregrinação1082
.
As festas religiosas suscitavam movimentos sazonais da população, urbana e rural,
rumo aos locais de culto, normalmente situados fora dos núcleos urbanos, em espaços
de menor concentração demográfica. Outros momentos de circulação da população da
cidade para o campo, e vice-versa, relacionavam-se com o calendário agrícola e com a
actividade pesqueira. De Agosto a Outubro, tempo da apanha do figo e da uva, todos os
caminhos iam dar ao campo:
“Aos santos domingos pouca gente fica nas povoações, porque ou estão nas
fazendas continuamente os de casa ou esses que nelas ficam nestes dias vão a ver e
desenfadar-se com os outros; e é tanto o regozijo e contentamento que mostram
neste tempo, a que chamam alacil, uns dum cabo e outros d‟outro, com diversos
cantares e tangeres, que facilmente se pode deles entender que pera eles aquela é a
melhor parte do ano e ainda o mais alegre da vida. Todos neste tempo andam fartos
e contentes, assi ricos como pobres, e se melhoram nos vestidos de suas pessoas e
alfaias de casa, de maneira que este tempo, no Algarve, é como a ceifa em
Alentejo, quando anda o trigo polas eiras.”1083
1076
Cf. ANTT, IE, proc. 2618. A romaria de Nossa Senhora da Esperança é frequentemente referida (Cf.
ANTT, IE, proc. 463, fl. 73; proc. 590, fls. 37v-38; proc. 6722, fl. 109; proc. 1341, fl. 37v). 1077
Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 61v. 1078
Grácia Lopes, de Loulé, quando foi em romaria à ermida de Santa Bárbara, no termo de Faro, pousou
na casa de Belchior Vaz, com quem não tinha, aparentemente, qualquer ligação de parentesco (Cf. ANTT,
IE, proc. 2841, fl. 43-43v). Também Guiomar Ilhoa, por volta de 1626, empreendeu uma viagem de Loulé
até à ermida de S. Marcos, nos arredores de Faro, tendo ficado agasalhada na casa de Rui Lopes, sapateiro
(Cf. ANTT, IE, proc. 2815, fls. 14v-15). 1079
Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fl. 2; proc. 4403, fls. 2-2v. 1080
Cf. Antero Nobre, O Santo Cristo.... 1081
Cf. Fernandes Mascarenhas, Santo Cristo...., 1971. 1082
Cf. Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, 3ª edição, Faro, Algarve em Foco, 1993, p. 170; C. A.
Ferreira de Almeida, “Religiosidade Popular e Ermidas”, Studium Generale. Estudos Contemporáneos.
Religiosidade popular, n.º 6, 1984, p. 77. 1083
Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 110-111.
247
Um movimento inverso era registado a partir de Março e até ao final de Julho,
quando os barcos do atum saíam para o mar. Frei João de São José refere-o como um
outro alacil no Algarve, um tempo de abastança e de convívio1084
. A costa enchia-se de
gente e o alvoroço era tal que merecia ser visto. Assim pensariam Leonor Filipe e Maria
Filipe que, por ocasião de uma visita a Joana Rodrigues de Orta, em Maio de 1628,
pediram-lhe que as levasse ao eirado para ali “verem o atum”1085
.
A apanha do figo, a pesca e venda do atum, tal como as festividades religiosas,
tornavam-se momentos de sociabilização. Para os cristãos-novos judaizantes,
constituiriam também oportunidades para a comunicação da crença na Lei de Moisés
para lá do círculo de relações em que se moviam quotidianamente1086
. A reunião com
mais cristãos-novos, o desvio das atenções alheias para outros focos de interesse e a
euforia exacerbada pelos abusos próprios do ambiente festivo encorajavam a tomada de
atitudes tão arriscadas quanto a partilha de uma fé que se queria secreta. E tal parecia
suficientemente credível para ser exposto na mesa da Inquisição.
As mulheres tinham na casa o espaço de trabalho mas também de lazer. Recebiam
visitas e retribuíam-nas. Havia ocasiões em que a casa se enchia de gente – no parto, na
morte, na festa. Sabiam das novas da terra, falavam dos filhos e dos maridos que
estavam longe, lamentavam-se da sua desdita ou rejubilavam pela boa sorte que Deus
lhes dera. Trocavam receitas para uma vida melhor, que podiam passar pela crença na
“lei velha” e pela observação dos seus rituais.
Aos homens estava reservado um conjunto mais alargado de divertimentos.
Caçavam1087
, iam “ao mar folgar”1088
, jogavam xadrez1089
e às cartas. Reuniam-se nas
casas ou nos quintais para jogar “ao trunfo”1090
. António da Gama refere uma casa em
Albufeira onde se “dava jogo”1091
. As cartas eram um divertimento comum e transversal
a todos estratos sociais, porém, legalmente reprovável, sobretudo quando envolvia
dinheiro. As constituições sinodais interditavam-no aos clérigos, as Ordenações
Filipinas proibiam-no a todos. Contudo, o jogo continuou a ser praticado e até tolerado
1084
Cf. Idem, Ibidem, p. 122. 1085
Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 36v. 1086
Elvira Mea também identificou esta relação entre os tempos de lazer e os momentos de comunicação
da fé judaizante nos processos da Inquisição de Coimbra (Cf. Mea, A Inquisição de Coimbra..., p. 465). 1087
Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fl. 82v. 1088
Cf. ANTT, IE, proc. 6921, fls. 2v-3. 1089
Cf. ANTT, IL, proc. 1688, fl. 21; proc. 7773, fl. 15. 1090
Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fl. 6; IL, proc. 10960, fl. 32v. 1091
Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fls. 138v.
248
pelas autoridades1092
. Em meados de Seiscentos, na vila de Albufeira, até se jogava na
casa de um escrivão do judicial1093
. E entre uma mão e outra, falava-se sobre a Lei de
Moisés. Todos os momentos de sociabilidade poderiam servir para a disseminação da
“herética fé dos judeus” – assim pensavam os inquisidores, assim confessavam os réus.
A proximidade também suscitava o conflito. No jogo faziam-se dívidas, nas visitas
domésticas surgiam discussões e nas festas havia toda a sorte de excessos que podiam
deflagrar em confrontos. Na sociedade dos séculos XVI e XVII, a violência fazia parte
do quotidiano. Dentro de portas, a relação entre marido e esposa chegava a tomar
contornos fatais, como no caso de Isabel de Sousa, que, segundo se dizia, tentara matar
o marido por duas vezes: a primeira com veneno, a segunda com a espada1094
. Saindo
para a rua, a mais simples discussão poderia terminar em cutiladas. As famílias
dividiam-se, os ódios passavam de geração em geração.
O risco de viver à mercê dos perigos trazidos pelo mar endurecia os homens.
Recordemo-nos como a cidade de Faro fora devastada em 1596, depois do saque das hostes
do conde de Essex. Nos anos finais da monarquia filipina, os ataques corsários adensaram-
se. Pedro Gomes, meses depois de lhe ter sido levantada a penitência, pedia licença para
andar armado. Justificava-se: “[...] por ser costa de mar e andarem nela sempre inimigos,
lhe é necessário trazer armas para defesa da sua pátria e pessoa, o que não pode fazer sem
licença de Vossas Senhorias [...]”1095
. Além dos inimigos do mar, os cristãos-novos estavam
sujeitos a investidas por terra, a partir de Évora. A ameaça vinha de duas direcções. O medo
impregnava-lhes o quotidiano.
4. “POR OBSERVÂNCIA DA LEI DE MOISÉS”. FÉ E RITUALIDADE.
A 18 de Novembro de 1536, menos de um mês após o estabelecimento oficial da
Inquisição em Portugal, o inquisidor-geral D. Diogo da Silva assinava um monitório,
enumerando todas as práticas heréticas que deveriam ser denunciadas perante o novo
Tribunal. A lista registava uma série de ritos e cerimónias identificados como
1092
Cf. Vítor Ferreira e António Gomes Ferreira, “Os jogos e a moral no Antigo Regime”, Desporto.
Ética. Sociedade. Actas, Porto, Universidade do Porto, 1990, pp. 191-199. 1093
João Nunes, meio cristão-novo, denunciado por Rodrigo Álvares (Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fl. 84v). 1094
Cf. ANTT, IE, proc. 6056. 1095
Cf. ANTT, IE, proc. 4871, fl. 56.
249
judaicos1096
. Era, porém, um rol demasiado breve para traduzir, na íntegra, a ritualidade
praticada pelos cristãos-novos forçados a abraçar a fé cristã, mas que, secretamente,
continuariam fiéis à religião dos seus pais. Haviam passado menos de 40 anos e alguns
teriam nascido ainda antes da conversão geral.
Não obstante, o Monitório estabeleceu o cânone do que a Inquisição entendia por
“culpas de judaísmo”. Fosse em Évora, Lisboa ou Coimbra, as confissões dos réus
presos também se repetiam incessantemente. Raras eram as que fugiam a esse cânone.
E, entre os cristãos-novos algarvios, a situação não diferiu particularmente.
O ensino da Lei Velha
O tempo do primeiro contacto com a Lei de Moisés era uma questão omnipresente.
“Quantos anos há que, depois do último perdão geral concedido aos cristãos novos deste
Reino, se apartou da nossa Santa Fé Católica e Lei Evangélica e se passou à Lei de
Moisés, esperando salvar-se nela [...]”1097
– nenhum preso conseguia escapar a esta
pergunta. Mesmo quando se mantinham negativos nas primeiras sessões, a maioria
acabava por ceder e confirmar as acusações.
Segundo I.-S. Révah, é possível distinguir duas formas de transmissão do
criptojudaísmo: uma contínua, de geração para geração; e outra descontínua, com
“rupturas cristãs no caminho do criptojudaísmo”. A cada uma correspondia um espaço
de doutrinação – o meio familiar ou o meio profissional1098
. A segunda forma de
trasmissão abrangia igualmente círculos de sociabilidade extra-profissionais (os
vizinhos, os amigos, os simples conhecidos). À formulação de Révah acrescentaríamos
mais uma destrinça, evidenciada nos processos: a iniciação na infância e a que ocorre já
na idade adulta. Na primeira vaga de prisões no Algarve, a maioria dos réus remontou a
aprendizagem dos primeiros rudimentos da Lei de Moisés à idade adulta, enquanto que,
nas duas entradas seguintes, predominaram os testemunhos de uma iniciação antes dos
1096
“Monitorio do Inquisidor Geral per que manda a todas as pessoas que souberem doutras que forem
culpadas no crime de heresia e apostasia o venham denunciar em termo de trinta dias” in Collectorio de
diversas letras apostolicas, provisões reaes, e outros papeis, em que se contém a Instituição, e primeiro
progresso do Sancto Officio em Portugal, e varios Privilegios que os Summos Pontifices, e Reis destes
Reynos lhe concederão..., Lisboa, 1596. Vide Herman P. Salomon, “The «Monitorio do Inquisidor Geral»
of 1536. Background and sources of some «judaic» customs listed therein”, Arquivos do Centro Cultural
Português, vol. XVII, 1982, pp. 41-64. 1097
Cf. ANTT, IE, proc. 8789. 1098
Cf. I. S. Révah, “Les Marranes Portugaises et l‟Inquisition au XVIe siècle”, Études Portugaises, Paris,
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1975, p. 224.
250
20 anos de idade. Porém, se, nos processos de finais do século XVI, o ensino foi
atribuído maioritariamente aos pais, já nas décadas de 30 e 40 de Seiscentos, tal como
em meados da centúria anterior, foram mais os réus que referiram a iniciação por via
doutros cristãos-novos com quem não tinham qualquer ligação de parentesco.
Coloque-se as devidas reticências a estas confissões. Afinal, ao invés de delatar o
pai, a mãe ou mesmo um irmão mais velho, seria menos penoso denunciar um indivíduo
pouco conhecido e vagamente identificado – um estrangeiro que aparecera na cidade,
um parente distante do qual nem se sabia o nome. Em 1562, Isabel Fernandes confessou
que, havia 4 ou 5 anos, quando ainda vivia em Lagos, tinha estado com uma mulher de
Mazagão que lhe dissera para jejuar nesse dia. Relativamente ao nome da mulher, ela
hesitou: chamar-se-ia Beatriz Fernandes ou Beatriz Dias, não tinha a certeza1099
. Anos
mais tarde, em 1633, Beatriz Mendes referiu um cristão-novo de Huelva que, estando
em Faro a vender trigo, lhe ensinara a guardar os sábados de trabalho, a não comer
porco nem peixe sem escama e a rezar o Pai Nosso em honra de Moisés1100
.
Recordemos ainda como, pela mesma altura, Branca Dias e o irmão Custódio Mendes
mencionaram a doutrinação por parte de um parente distante, oriundo de Nantes1101
. De
facto, o Algarve era uma região permeável ao contacto com o estrangeiro, povoada de
mercadores e mareantes de origens remotas, alguns até de espaços onde se professava
livremente o judaísmo. Contudo, o ensino e a comunicação de uma fé proibida
dificilmente se processariam fora de um círculo de confiança sustentado por laços
familiares ou de amizade. Os próprios inquisidores sabiam-no e raramente davam
crédito à confissão de quem dizia ter sido ensinado por fulano que viera de longe, do
qual não sabia o nome, nem o paradeiro.
Preso em 1562, Gaspar Fernandes confessou que ensinara a Lei de Moisés aos seus
três filhos: Simão Vaz, então a aprender o ofício de ourives em Lisboa, Heitor e Grácia,
os dois ainda a viver na sua casa, em Tavira. Ensinou-os “[...] cada um como era sua
idade e lhe parecia que teria capacidade para isso [...]”1102
. E que idade seria essa?
Segundo refere, Gaspar começara a ensinar os filhos havia então perto de 6 anos. Em
1562, o filho mais velho tinha cerca de 20 anos – ou seja, fora iniciado por volta dos 14.
Os testemunhos presentes noutros processos, de réus que admitiam a iniciação no
criptojudaísmo antes da idade adulta, confirmam que o primeiro ensino ocorria entre os
1099
Cf. ANTT, IL, proc. 623, fls. 6-6v. 1100
Cf. ANTT, IE, proc. 2331, fls. 133v-134. 1101
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 15-15v; proc. 6954, fls. 83v-84. 1102
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 65v. Sobre Gaspar Fernandes, vide supra, pp. 54-55.
251
10 e os 15 anos: em média, 13 anos para as raparigas e 15 anos para os rapazes1103
. Esta
era, aproximadamente, a “idade da discrição”, referida pelos regimentos inquisitoriais1104
.
Num lar onde os pais eram judaizantes, o ensino dos preceitos da Lei de Moisés
sucedia a uma primeira educação nos princípios da Lei de Cristo. Ora, a criança tinha de
atingir a “discrição” suficiente para compreender a necessidade desse comportamento
ambíguo1105
. Contudo, os limites etários não eram rigorosos e nem sempre uma
determinada idade era garantia de discernimento. Alguns réus usaram esse argumento,
justificando que, apesar de iniciados na fé judaica, tal acontecera quando ainda eram
demasiado jovens para compreenderem que estavam a enveredar pelos caminhos da
heresia. Vejamos o caso de Francisca Dias, presa em 1594, em Campo de Ourique.
Quinze anos antes, quando ainda vivia em Vila Nova de Portimão, por ocasião da morte
de uma vizinha, Francisca lançara fora a água que havia em casa para beber. Na
primeira sessão, afirmou que o fizera sem qualquer intenção judaizante e só porque a
avó lho ordenara. Nessa altura, Francisca tinha 15 anos de idade e “[...] era de muito
pouca idade e de menos perfeito juízo e entendimento e que o que fez foi
inconsideradamente e sem saber o que fazia [...]”. Interrogada sobre a sua fé, disse que,
nesse tempo, não cria em nada “[...] porque não tinha idade nem saber para isso [...]”.
Os inquisidores não ficaram convencidos: “[...] que esta idade era bastante para saber
em que Deus havia de crer e que necessariamente lho haviam de dizer as pessoas que a
ensinaram [...]”. Ainda no final dessa sessão, Francisca acabou por confirmar que já
acreditava na Lei de Moisés no momento em que lançara fora a água1106
.
Devido à repressão inquisitorial, o ensino do criptojudaísmo passou a restringir-se a
espaços e círculos sociais cada vez mais fechados. Assim confessavam os réus. No caso
dos rapazes, cujo percurso formativo os afastava ainda cedo do lar paterno, alguns
encontravam os seus mestres fora do núcleo familiar, preferencialmente noutras figuras
masculinas a quem deviam obediência. Encontramos dois exemplos em Francisco
Fernandes, o mancebo de Lagos relaxado em 1627, cujo patrão foi também o seu mestre
na Lei de Moisés, e em Henrique Dias, de Vila Nova de Portimão, iniciado pelo tio
Gabriel Dias, quando aprendia com ele ofício de sirgueiro1107
. Como também já se disse,
o pai estaria mais presente na educação dos filhos varões. Francisco Mendes fora iniciado
1103
Cálculo da média sobre todos os processados que confessaram a iniciação antes dos 18 anos de idade. 1104
Vide supra, p. 236. 1105
Cf. Huerga Criado, En la raya..., pp. 176-177. 1106
Cf. ANTT, IE, proc. 6441, fls. 43v, 79v-81v. 1107
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 74-76; proc. 11297.
252
no criptojudaísmo pelo pai, Diogo de Tovar, um ensino consolidado por alguns letrados
de Faro, na casa dos quais “[...] ouvia praticar cousas da sua Lei e que, de os ouvir, ficava
sabendo algumas tocantes à dita Lei [...]”1108
. Quem seriam esses letrados? Noutras
localidades portuguesas, há testemunhos de indivíduos com fama de rabis. Maria José
Ferro Tavares, no seu estudo sobre a comunidade de Trancoso, menciona a existência de
cristãos-novos com essa reputação, que presidiam ao amortalhamento dos defuntos e à
degolação ritual dos animais, comunicavam o tempo em que deveriam ser guardados os
jejuns, ensinavam as orações judaicas e possuíam livros proibidos1109
. No caso do
Algarve, não encontrámos referências similares, mas há nomes que se repetem ao longo
dos processos, constantemente denunciados pela transmissão dos princípios da Lei de
Moisés – homens e mulheres de idade já avançada que zelavam pela perpetuação dessa fé.
Se os primeiros rudimentos seriam preferencialmente ensinados dentro de um
círculo restrito, a partilha da fé e da ritualidade praticada tendia a extravasar esses
limites, enquadrando-se nas relações sociais e profissionais do dia-a-dia, cuja
abrangência variava conforme os diferentes níveis de mobilidade. Filipa Lopes Pinto,
presa em 1637, comunicara a sua fé com mais quatro cristãos-novos, num pomar no
lugar do Pombal, termo de Loulé. Numa romaria à ermida de Santa Catarina, a meia
légua da vila, tinha voltado a tocar no assunto. Mais ou menos pela mesma altura,
estivera num olival, junto ao sítio de Vale de Rãs, com um grupo de familiares, ocasião
na qual todos se tinham confessado judaizantes. Seis anos antes de ser presa, indo a
caminho da ermida de Nossa Senhora dos Pobres, na companhia de Isabel Coelha e da
filha Filipa Fernandes, encontrara na Rua de Nossa Senhora, em Loulé, mais dois
cristãos-novos e “entre outras práticas”, haviam falado sobre a Lei de Moisés. A
confissão de Filipa Lopes prosseguiu nesta mesma dinâmica – a comunicação da fé em
grupos mais ou menos numerosos, com indivíduos mais ou menos próximos, em
ocasiões mais ou menos identificadas no tempo e no espaço1110
.
Construíam-se redes de sociabilidade que preenchiam o quotidiano das famílias
cristãs-novas. Essas redes eram fomentadas na confiança, o alicerce da comunicação de
uma fé que se sabia ilícita e votada à clandestinidade. A confiança era testada. Branca
Ribeira, indo um dia à casa de Beatriz Fernandes, foi convidada pela anfitriã para jantar.
Porém, Branca declinou o convite. Estava de jejum. Beatriz soube, então, que lhe
1108
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 305v-306v. 1109
Cf. Ferro Tavares, “Os judeus da Beira interior...”, Sefarad..., p. 398. 1110
Cf. ANTT, IE, proc. 6826.
253
poderia confiar o segredo: também ela não iria comer nada, pois era segunda-feira e
jejuava em honra da Lei de Moisés1111
. A partilha do segredo solidificava os laços.
Constituía um ritual iniciático de entrada no grupo dos que, secretamente, mantinham
viva a fé dos ancestrais.
Guardar os sábados e jejuar de estrela a estrela
O descanso sabático e todo o cerimonial de sexta-feira à noite – a preparação das
refeições para sábado, a troca da roupa da cama, as torcidas novas e o azeite limpo nas
candeias, deixadas acesas noite adentro – eram das práticas mais citadas pelos cristãos-
novos na mesa da Inquisição1112
.
Uns guardavam o sábado “na obra”, outros apenas “no coração”. O escrutínio dos
vizinhos, dos criados e de todos os que participavam do seu dia-a-dia obrigava o cristão-
novo a, por vezes, ficar-se pela intenção, ou mesmo a ludibriar a forma como cumpria o
preceito. Aproveitava as festas cristãs que calhavam ao sábado para vestir roupa nova, ia
visitar parentes que viviam noutras localidades. As mulheres simulavam trabalhar no tear
ou na almofada de bordar, os homens iam para fora em negócios e assim podiam cumprir
o descanso sabático longe da vista de quem os conhecia. Veja-se o exemplo de Manuel
Mendes, de Tavira, que só guardava os sábados na vontade “por não ousar”, mas que
chegou a mudar de camisa em dois sábados, no tempo em que esteve fora de casa1113
.
Na década de 30 e 40 do século XVII, proliferam as confissões de réus que diziam
não comer carne de porco, coelho, lebre ou peixe sem escama e que descreviam a forma
como retiravam todo o sangue e gordura à carne e a cozinhavam em azeite e cebola. Estes
preceitos dietéticos não têm grande expressão nos processos da primeira entrada da
Inquisição no Algarve, embora comecem a ser mais prolixamente referidos já no final do
século XVI. A tendência é inversa relativamente à guarda dos jejuns judaicos1114
.
De facto, nos processos dos anos 60 do século XVI, o jejum “que vinha pelo mês de
Setembro” é prolixamente mencionado. Seriam poucos os cristãos-novos que não
conheciam essa cerimónia, mesmo que não a praticassem. «Então vós andais fora do curral,
não sabeis que amanhã é o dia grande que nossos padres jejuavam» - Álvaro Nunes ouvira
1111
Cf. ANTT, IL, proc. 12778, fls. 66v-67. 1112
Vide em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1113
Cf. ANTT, IL, proc. 7175, fl. 5v. 1114
Vide, em anexo, gráfico 11.1, p. 114.
254
estas palavras a João Lopes Cristino, quando estavam os dois na feira de Nossa Senhora da
Luz, em Tavira. O seu desconhecimento e a falta de interesse em guardar o jejum também
causara a consternação de Duarte Lopes Cristino, irmão de João Lopes: «Então esse
cavaleiro tem mais cuidado de andar em velhacarias que em cousas de Deus»1115
.
Os dois irmãos referiam-se ao jejum do Quipur. Dez dias depois do Rosh Hashana, o
“Dia Grande” é dedicado à oração e à penitência1116
. Devido à perseguição inquisitorial e
à perda da memória sobre o ritual, a celebração do Quipur passou a resumir-se, na grande
maioria dos casos, à prática do jejum. O Monitório de 1536 referia ainda outros
comportamentos: os celebrantes passavam o dia descalços e, depois de sair a primeira
estrela, comiam carne e tigeladas e pediam perdão uns aos outros1117
. Mas, nos processos
estudados, não encontrámos qualquer referência a outro ritual além da não ingestão de
qualquer alimento desde o anoitecer até ao surgir da primeira estrela do dia seguinte.
O grande obstáculo à prática do jejum do Quipur residia na determinação do dia em
que havia de ser guardado. Era senso comum que se celebrava em Setembro (o próprio
Monitório o refere1118
), mas poucos sabiam o dia exacto. Em Tavira, Clara Fernandes,
que vivera em Mazagão, onde fora “criada entre judeus”, sabia-o e comunicava-o a
outros cristãos-novos da cidade1119
. Mas este tipo de comunicação tendeu a retrair-se. A
observação de um jejum, necessariamente cumprido num tempo específico, exigia uma
arriscada troca de informações. Talvez tal explique a redução de menções ao “Dia
Grande” nos processos ulteriores, pouco mencionado na entrada de finais do século XVI
e ainda menos na vaga dos anos 30 e 40 da centúria seguinte.
O mesmo se aplica ao jejum da Rainha Ester, reminiscência da festa do Purim, na
qual se celebrava da libertação dos judeus da Pérsia. No cerimonial judaico, o jejum
antecedia a festa. João de Águila, em Amesterdão, participara dessa festividade,
celebrada no final de Fevereiro e inícios de Março “[...] com festas e alegrias e tendo
muitas iguarias e banquetes depois de saídas as estrelas, quando hão-de cear, e que o
outro dia, em honra da mesma lembrança, fazia festa com os mesmo judeus e se
1115
Cf. ANTT, IL, proc. 4135, fls. 8-8v. 1116
“Isto será para vós uma lei perpétua: no décimo dia do sétimo mês, jejuareis e não fareis trabalho
algum, tanto os que são naturais da terra, como os estrangeiros que residirem no meio de vós. Porque,
nesse dia, far-se-á por vós o rito da purificação, para serdes purificados, ficareis purificados de todos os
vossos pecados diante do Senhor.” (Lv. 16, 29-30). De acordo com esta determinação bíblica, o Quipur
era celebrado a 10 do mês de Tishré (Setembro-Outubro). 1117
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1118
“[...] jejuam o jejum maior dos Judeus, que cai no mês de Setembro [...]” (Cf. Idem, fl. 5). 1119
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 66-66v.
255
embebedava como os demais [...]”1120
. Na clandestinidade, este clima de euforia
desapareceu e apenas restou a penitência. Bárbara Filipe fora ensinada por Beatriz Rica
que, depois do Natal, vinha o jejum da Rainha Ester, “[...] o qual havia de jejuar três
dias a réu, sem comer senão à noite e que melhor seria quem pudesse não cear senão no
terceiro dia [...]”1121
. As cristãs-novas partilhavam com Ester a condição de mulher
perseguida pela fé1122
. De facto, este jejum revelava-se particularmente popular entre as
mulheres judaizantes, mas não só1123
.
Por influência do Cristianismo envolvente, mas também para melhor ocultá-lo, o
jejum era guardado durante a Quaresma, o que, em determinados anos, deveria mesmo
coincidir com o tempo da festa do Purim, celebrada a 14 de Adar (Fevereiro-Março)1124
.
Porém, também encontramos indícios da observação do jejum da Rainha Ester fora
deste tempo. No final de Janeiro de 1555, antes de partir para Santo Domingo, nas
Índias de Castela, Garcia Gonçalves fizera um jejum da Rainha Ester por conselho da
sua mãe – Deus dar-lhe-ia boa viagem se o guardasse1125
. Anos depois, em 1587,
Guiomar Mendes, de Faro, admitia que, no mês de Dezembro do ano anterior, guardara
o jejum com Beatriz Pinta, sua companheira de cárcere1126
. Catarina Lopes, presa em
1592 e residente em Vila Nova de Portimão, disse perante os inquisidores que a mãe lhe
ensinara a jejuar às segundas e quartas-feiras e a oferecer esse sacrifício à Rainha
Ester1127
. Aliás, pela mesma altura, outras cristãs-novas de Portimão repetiram este
mesmo equívoco, associando os jejuns semanais ao ritual em honra da Rainha Ester.
Talvez fosse um costume que se disseminara entre as cristãs-novas da vila.
O nome do ritual não escapou à adulteração. Por afinidade fonética, “Ester” tornou-se
“estrela”. Em 1589, Violante Lopes, de Vila Nova de Portimão, denunciou que, algum
tempo antes da peste, vira da sua janela as vizinhas Grácia Gonçalves e Violante Dias a
rezarem no quintal. Ao perguntar-lhes o que estavam a fazer, Violante Dias respondera-
1120
Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fl. 4. 1121
Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fl. 71v. 1122
Cf. Miriam Bodian, “«Men of the Nation»: The Shaping of Converso identity in Early Modern
Europe”, Past and Present, n.º 143, Maio 1994, p. 63. 1123
Em 1563, António Vaz, disse ter feito o jejum da Rainha Ester na companhia da esposa, Leonor Dias,
e que, na casa do irmão Gaspar Fernandes, toda a família guardava este jejum e o do Quipur (Cf. ANTT,
IL, proc. 12419, fls. 20v-21v). Pela mesma altura, o seu conterrâneo Duarte Fernandes também admitiu
que costumava jejuar o último dia do jejum da Rainha Ester (Cf. ANTT, IL 12745, fl. 10). Muitos anos
mais tarde, em 1636, António Fernandes Castanho confessou que praticara esse jejum durante 3 ou 4 anos
(Cf. ANTT, IE, proc. 10531). 1124
Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 84. 1125
Cf. ANTT, IE, proc. 8491, fls. 4v-5. 1126
Cf. ANTT, IE, proc. 9012, fl. 139. 1127
Cf. ANTT, IE, proc. 7711.
256
lhe que era “[...] um jejum da lei dos judeus à estrela [...]”1128
. Na origem de tal corruptela
poderá estar a forma como se definiam os jejuns judaicos – de estrela a estrela.
Em tempos de perseguição, seria mais simples cumprir os jejuns com uma
periodicidade regular. Guardados todas as segundas e quintas-feiras da semana, os
thanis (do hebraico ta’anit, jejum1129
) tornaram-se numa das práticas mais confessadas
pelos réus algarvios no final do século XVI1130
. Embora facultativos no Judaísmo
normativo, acabaram por constituir “um dos pilares invisíveis do judaísmo secreto”, nas
palavras de Elias Lipiner, chegando mesmo a superar, entre os cristãos-novos
portugueses, a observação dos jejuns obrigatórios1131
. Jejuar às segundas e quintas-
feiras seria uma forma de se penitenciarem dos ritos cristãos que eram obrigados a
cumprir e das cerimónias judaicas que deixavam para trás1132
.
Já no cárcere, alguns réus continuaram a guardar esses jejuns. São vários os casos que
encontramos ao longo dos processos, como o de Isabel Nunes, que entrara nos calabouços
da Inquisição a 26 de Julho de 1587. No início de Outubro, praticara uma série de “jejuns
pequenos”, tentando iludir os guardas em contrário: mantinha a rotina de preparação das
refeições mas não ingeria qualquer alimento antes de anoitecer1133
. Vejamos um outro
exemplo. Pedro Fernandes, alcaide do cárcere, testemunhou uma sequência de jejuns
praticados por Mécia Vaz, de Vila Nova de Portimão, no mês de Julho de 1560. Num
Domingo, o guarda levou-lhe uma panela com carne de vaca cozida, pão, dois cachos de
uvas e um pouco de queijo. Mécia cortou a carne muito miúda e lançou-a no lixo.
Reservou o resto e só comeu perto da meia-noite. Na terça-feira seguinte, voltou a receber
a refeição por volta das 11-12 horas: carne de carneiro, pão, uvas e queijo. Mécia
desossou a carne e cortou-a aos pedacinhos, oferecendo-a a um gato que entrara por uma
fresta da cela. Depois, tomou o pão, migou-o no caldo da carne e deu-o também ao
animal. Durante todo o dia, andou descalça no cárcere e só comeu quando o sol se pôs.
Mécia Vaz continuou a não comer até de noite nos dias seguintes, apesar da crescente
debilidade1134
. Pressionados pelos inquisidores a confessar o que criam e o que não criam,
obrigados a mentir para salvar a própria vida, os réus valorizavam a penitência do jejum,
intensificando o seu rigor e alargando-o no tempo.
1128
Cf. ANTT, IE, proc. 8751, fls. 3-3v. 1129
Cf. Gitlitz, Secrecy and Deceit..., p. 396. 1130
Vide, em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1131
Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 397. 1132
Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 92. 1133
Cf. ANTT, IE, proc. 4195, fls. 15v-16. 1134
Cf. ANTT, IL, proc. 2373, fls. 73-83v.
257
Nas décadas de 30 e 40 do século XVII, os jejuns semanais e o da Rainha Ester
ainda ocupavam um lugar relevante entre as práticas criptojudaicas mais confessadas
pelos réus algarvios, mas os testemunhos da observação do jejum do Quipur tornou-se
meramente residual1135
. Em compensação, surgiram outros rituais, alguns sem paralelo
no Judaísmo normativo. Era o caso do costume de “varrer a casa às avessas”. Ausente
do Monitório de 1536, esta prática já constava no édito de fé da visitação de 15851136
.
Mas é no século seguinte que encontramos mais cristãos-novos a confessá-la1137
. A sua
origem é controversa. Elias Lipiner cita um autor do século XVII, Moisés Haguiz, que a
explica pelo facto de, nas casas judias, haver o costume de se fixar, nos umbrais das
portas, a mezuzah, rolo de pergaminho contendo os versículos do Deuteronómio citados
no Sema Israel. Assim, varria-se a casa da porta para dentro por respeito à mezuzah. Na
generalidade dos lares cristãos-novos já não haveriam mezuzot nos umbrais, mas o
costume ter-se-ia mantido1138
.
Da Páscoa ao São João
Escassas foram as festividades judaicas que se mantiveram na clandestinidade. Já
falámos de duas, o Quipur e o Purim, cujos resquícios permaneceram até bastante tarde.
A Páscoa judaica também continuou a ser mencionada nos processos inquisitoriais dos
cristãos-novos algarvios, embora parcamente.
O Monitório de 1536 enumerava três páscoas celebradas pelos judaizantes: a do Pão
Ázimo, a das Cabanas e a do Corno1139
. A Páscoa do Corno correspondia ao Rosh
Hashana, a celebração do início do ano litúrgico judaico, no primeiro dia do mês de
Tishri (Agosto-Setembro)1140
. Quinze dias depois, era a altura da Páscoa das Cabanas
1135
A mesma tendência foi registada entre os cristãos-novos de Elvas (Cf. Maria do Carmo Teixeira
Pinto, “Comportamentos e vivências quotidianas dos cristãos-novos seiscentistas: o caso de Elvas”,
Inquisição Portuguesa. Tempo, Razão e Circunstância. Coordenação de Luís Filipe Barreto et alii, São
Paulo, Lisboa, Prefácio, 2007, p. 531). 1136
Branca Simões refere que, após a visitação ter passado por Lagos, viu a sua vizinha Violante Fernandes
a varrer a casa da porta para dentro e alertou-a para que não o fizesse, “[...] que agora não podiam fazer o
que era defeso na visitação, como varrer a casa daquele modo [...]”. (Cf. ANTT, IE, proc. 5286). 1137
Por exemplo, Beatriz Álvares, de Faro, confessou que Maria Gomes lhe ensinara, entre outras
práticas, que “[...] varresse as casas às avessas, da porta para dentro, porque se lhe não fossem os bens
para fora [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 4406, fl. 2v). 1138
Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 140. 1139
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, op. cit., fl. 5. 1140
O testemunho de um judeu de Fez, Felipe d‟Austria, consultado pela Inquisição de Lisboa em 1587,
revela a razão da celebração desta Páscoa e da sua designação: “A razão de guardar esta Páscoa era
segundo diziam os sábios do Talmude porque no primeiro dia da lua de aquele mês de Agosto havia
258
ou dos Tabernáculos, o Sukkot, na qual os fiéis armavam cabanas de ramos de palmeiras
e ali viviam durante 8 dias, de sábado a sábado1141
.
Porém, só a Páscoa do Pão Ázimo é mencionada pelos réus algarvios. Nos processos
dos anos 50-60 do século XVI, ainda aparece com alguma frequência, diminuindo
drasticamente nas entradas seguintes1142
. O cerimonial consistia numa série de gestos
simplificados ao máximo, desempenhados sigilosamente e restritos ao ambiente familiar.
Em 1563, Gaspar Fernandes, de Tavira, confessou que chegara a guardar algumas páscoas
na companhia da esposa1143
. Leonor Fernandes, durante o tempo em que vivera em
Mazagão, celebrava a Páscoa e, ao regressar a Tavira, continuou a festejá-la1144
.
Tradicionalmente, a celebração da Páscoa judaica dura 8 dias. Foi o que Beatriz
Rica ensinou a Bárbara Filipe: “[...] que havia de guardar oito dias a réu e neles havia de
comer pão ázimo [...]”1145
. Porém, este período não era rigidamente cumprido por todos.
Para evitar suspeitas, reduziam-se os dias de celebração1146
. O calendário também
sofreu mutações, tentando coincidir com a celebração da Páscoa cristã1147
.
Mas nem todos os cuidados conseguiam evitar a denúncia. Aos ouvidos dos
inquisidores, chegavam notícias de fulano que fazia pães ázimos em casa e sicrano que
havia comprado louça nova para celebrar a “páscoa dos judeus”. Os pães eram
confeccionados sem fermento, cozidos em casa, no borralho, e acompanhados por
alfaces, a erva amarga que recordava o cativeiro no Egipto1148
. Os alimentos – não só o
subido o patriarca Abraão com seu filho Isaac ao monte de Moria a o sacrificar, segundo Deus o havia
mandado. E feito no dito monte o lume, tomou Abraão o dito seu filho Isaac e atado, estendido no chão e
tomando o cutelo para o degolar, ouvia uma voz do céu que lhe disse «Abraão, Abraão, no tiendas tu
mano al mozo ni hagas a él nada que ahora sé que temiente de Señor tu». Entonces alçou os olhos e viu
um carneiro preso dos cornos em uma rama e tomou-o Abraão e em lugar de seu filho sacrificou-o. Em
memória disto guardavam esta Páscoa e tangiam na sinagoga com certas cerimónias um corno que
chamavam sofar e por isso chamavam a primeira Páscoa «do corno»” (Cf. Herman Prins Salomon, “Uma
descrição em primeira mão e em português da vida religiosa judaica numa comunidade de Marrocos no
último quartel do século XVI”, CES, n.º 8, 2008, pp. 257-258) 1141
Cf. Gitlitz, Secrecy and Deceit..., pp. 356-357, 371-375. 1142
Vide em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1143
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 71v. 1144
Cf. ANTT, IL, proc. 11v. 1145
Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fl. 71v. 1146
Estêvão Dias confessa que, na companhia do pai e das irmãs, comia os “bolos ázimos” só durante três
ou quatro dias (Cf. ANTT, IL, proc. 364, fl. 15). 1147
Maria Antonieta Garcia nota-o na evolução da comunidade de Belmonte. (Cf. Maria Antonieta
Garcia, Judaísmo no Feminino. Tradição Popular e Ortodoxia em Belmonte, Lisboa, Instituto de
Sociologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1999, p. 79). Segundo Maria José
Ferro Tavares, na comunidade de Trancoso, os criptojudeus festejavam a Páscoa judaica no Domingo de
Ramos e, na semana seguinte, reuniam-se aos cristãos para a celebração da Páscoa cristã (Cf. Ferro
Tavares, “Os judeus da Beira interior...”, Sefarad..., p. 398). 1148
Gaspar Fernandes, de Tavira, confessou que, durante 3 ou 4 anos, havia guardado alguns dias da Páscoa
dos judeus e “[...] comido bolos asmos que se faziam assim em sua casa e se coziam no borrelho e lhe
parece também comiam alfaces [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 71v). A sua conterrânea Mor Mendes
259
pão e as “ervas amargas”, como também grão, arroz, castanhas e outros géneros que não
carne – eram servidos em louça nova1149
. Rui Dias, rendeiro da louça de Tavira, teria
pedido ao sócio, Gonçalo Tojo, alguma louça nova “para fazer uma páscoa dos
judeus”1150
.
Menos comuns são as referências ao cordeiro pascal. O ritual tendeu a cair em
desuso, mas não desapareceu por completo no Algarve. Em 1634, Manuel Mendes de
Oliveira, mercador de Faro, era denunciado na sequência de um episódio que ocorrera
no mês de Maio desse ano, na armação do Zimbral. Manuel estava com o filho Afonso,
de 14 anos de idade, que, ao ver um lavrador pronto para matar um cordeiro, comentara
que era melhor guardá-lo para a “festa grande”1151
. Outras menções revelam-se bem
mais nebulosas. Vejam-se os casos do Lic. João Fernandes Quaresma, que “[...] correra
um bode em sexta feira ou sábado da semana santa na Fortaleza de Ferragudo [...]”1152
,
ou de Gaspar de Barros, acusado pelos vizinhos de, em sexta-feira de Endoenças, matar
um “bode ruivo” à porta de casa1153
.
O enquadramento de cerimónias ditas judaizantes no calendário de festividades
cristãs regista-se também no caso do Natal e do São João. Em ambas as datas, a
ritualidade repetia-se: eram deitadas brasas acesas na água que havia em casa para
beber. Notam-se, porém, algumas variantes. Em 1595, Catarina Dias confessava que,
pelo São João, tinha o costume de deitar um pedaço de pão na água1154
. Alguns anos
antes, Isabel Rodrigues cumpria o mesmo ritual porque, segundo lhe ensinaram, nesses
dias, “se turvavam as águas”1155
. Mais elaborada é a prática testemunhada por Mariana
dos Anjos, presa a 1636: nas noites de Natal e de São João, deitava na água que tinha
para beber pedras de sal, gotas de vinho, brasas acesas e miolo de pão1156
.
O Monitório de 1536 referia esse ritual: “[...] lançarão, & lanção às noites de Sam
Ioão Bautista, & do Natal, na agoa dos cantaros, & potes ferros, ou pão, ou vinho,
também aludiu que “[...] celebrou e guardou algumas vezes a páscoa do pão asmo, comendo-o nela sete ou
oito dias, e que ela fazia o dito pão asmo e que nos ditos dias da páscoa, comia castanhas, arroz e alfaces e
outras cousas que os judeus nos tais dias costumam comer [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 12530, fl. 4v). 1149
Cf. Maria José Ferro Tavares, “A religiosidade judaica”, Actas do Congresso Internacional
«Bartolomeu Dias e a sua época», vol. V, Porto, Universidade do Porto, Comissão Nacional para a
Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1989, p. 373. 1150
Cf. ANTT, IL, proc. 7773, fl. 8v-10 1151
Cf. ANTT, IL, liv. 213, fl. 123. 1152
Cf. ANTT, IE, proc. 5071. 1153
Cf. ANTT, IE, liv. 221, fls. 41-44v. 1154
Cf. ANTT, IE, proc. 3446, fls. 146-146v. 1155
Cf. ANTT, IL, proc. 3874, fl. 46. 1156
Cf. ANTT, IE, proc. 4086, fl. 20.
260
dizẽdo, que aquellas noites se torna a agoa em sangue [...]”1157
. Porém, não se tratava de
uma cerimónia judaica mas sim da reminiscência de uma superstição pagã vinculada aos
solstícios do Verão e do Inverno1158
– um tipo de “contaminação” ritual que seria
corrente na religiosidade criptojudaica.
No nascer e no morrer
A religião encontra-se presente na vida do judeu desde o berço. Recordando a
aliança consagrada entre Deus e Abraão, o ritual da circuncisão marca a entrada do fiel
na comunidade. Entre os criptojudeus, este terá sido um dos primeiros rituais a ser
abandonado. A marca física constituía um risco demasiado elevado. Pilar Huerga
Criado sublinha que, nas comunidades da raia da Extremadura, a circuncisão foi
substituída por uma outra cerimónia – a “de las hadas” – na qual familiares e amigos se
reuniam na casa dos pais da criança sete dias após o seu nascimento para comemorarem
e oferecerem presentes; o recém-nascido era banhado numa bacia cheia de ouro, prata,
aljôfar, trigo e cevada, enquanto se pronunciava uma oração1159
.
No Algarve, não encontramos nenhuma cerimónia similar. Porém, ao longo dos
processos, registam-se menções pontuais a indivíduos alegadamente circuncidados. Em
1620, no Convento dos Religiosos da Província da Piedade em Lagos, o deputado Lopo
Soares de Castro, enquanto recolhia testemunhos sobre o assassinato de Francisco
Lopes Serralvo, o pantufeiro de Beja degolado em Monchique, escutou que um
sobrinho de Beatriz Filipe teria sido circuncidado em bebé. Maria Cordovil, que numa
ocasião albergara Beatriz Filipe e outras mulheres na sua casa no lugar da Torre, termo
de Odiáxere, referiu um menino de 5 anos que as acompanhava, Pancrácio Tinoco, filho
de Branca Lopes de Mesquita. E continuou:
“estando à noite para se lançarem na cama, por serem muitas e não caberem,
disse ela, testemunha, que queria levar consigo o menino Pancrácio para dormir
com ela na sua cama, para ficarem mais à sua vontade, o que elas não queriam
consentir por nenhum caso, mostrando sentirem muito o querer ela, testemunha,
levar o dito menino, o qual, com efeito, levou, [...] todas as sobreditas mulheres
diziam para uma sua mulata que não despisse a camisa ao dito menino Pancrácio
e, mandando ela, testemunha, uma sua mulata, por nome Catarina, que levasse o
dito menino a urinar para não sujar, viu a dita mulata que o menino estava
1157
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5v. 1158
Cf. Herman P. Salomon, “The «Monitorio do Inquisidor Geral» of 1536. Background and sources of
some «judaic» customs listed therein”, Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVII, 1982, p. 48. 1159
Cf. Huerga Criado, En la raya...., p. 178.
261
circuncidado e logo chamou a ela, testemunha, e lhe mostrou o dito menino com
o dito sinal da circuncisão [...]”1160
.
Nos capítulos anteriores, já abordámos outros dois casos de circuncisão: o de Gaspar
Dias, filho de Jorge Lopes, e o de Pedro Gomes, o primogénito de Branca Dias1161
.
Note-se que todos os testemunhos datam do século XVII. Mas são só três casos em
centenas de processos.
Mais frequentes são as menções a rituais ditos judaizantes praticados no outro
extremo do percurso da vida do crente. Na tradição judaica, o ritual da morte integrava
uma sequência de gestos: o corpo do morto era lavado em água quente e perfumada;
cortavam-se-lhe as unhas e rapavam-se-lhe os pêlos; vestiam-no com roupa nova e
amortalhavam-no num lençol novo, dobrado uma ponta sobre a outra e sem costura;
colocava-se o corpo numa câmara para ser pranteado pelos familiares e amigos; e, no
final, era enterrado em terra virgem, deitando-se fora toda a água que havia em casa
para beber1162
. O enterro em terra virgem foi um dos primeiros rituais a desaparecer
entre os criptojudeus. Seria muito difícil cumpri-lo sem levantar suspeitas. As outras
práticas também sofreram mutações e adquiriram uma maior discrição. Afinal, no
momento da morte, as portas não se encontravam fechadas aos cristãos-velhos. A
preparação do corpo e o velório eram momentos de partilha, independentemente da
“qualidade do sangue”, e seria arriscado vivê-lo de forma distinta da maioria1163
.
Vila Nova de Portimão, inícios dos anos 80: Beatriz Carrilhas amortalha o corpo da mãe
de Grácia Fernandes, Domingas Matosa cose a camisa que envolveria Isabel Gramaxa,
Constança Rodrigues assiste ao amortalhamento do corpo do filho de Beatriz Simões1164
.
As três são cristãs-velhas, os defuntos cristãos-novos. Quando Manuel Álvares Tavares
visita a vila, elas apresentam-se e denunciam comportamentos que tinham então achado
estranhos, mas que só associaram à fé judaica após a leitura do édito de fé – o
amortalhamento em pano novo e o vazamento da água que havia em casa1165
.
Ao contrário do que acontecia noutras comunidades, entre os cristãos-novos do
Algarve, o amortalhamento do corpo do morto era uma tarefa feminina, independentemente
1160
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 87-87v. 1161
Cf. ANTT, IE, proc. 5677, fls. 4-11; proc. 3739, fl. 5. Vide supra, pp. 136, 124, 215. 1162
Cf. Ferro Tavares, “A religiosidade judaica”..., p. 376. 1163
Cf. Olival, “A visita da Inquisição...”, III Colóquio Internacional..., pp. 510-511. 1164
Cf. ANTT, IE, procs. 7765, 7330 e 8844. 1165
Segundo Maria do Carmo Teixeira Pinto, também foram estas as duas práticas fúnebres que melhor
sobreviveram entre os cristãos-novos de Elvas (Cf. Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas..., pp. 226-227).
262
do sexo do defunto1166
. Por exemplo, o corpo de Francisco Lopes, pai de Pedro Lopes, foi
amortalhado por duas mulheres1167
. Também Filipa Henriques confessou que ela e a mãe
haviam feito a mortalha com que envolveram o corpo de um filho de Leonor de Santarém,
cristã-nova de Vila Nova de Portimão1168
. O morto era vestido com uma camisa comprida e
coberto com um lençol novo, em geral de linho. Para disfarçar, havia quem vestisse um
hábito franciscano por cima1169
. Outros colocavam na mão do defunto uma moeda, num
ritual que extravasava tradição judaica1170
.
Preparado o corpo, era altura de velá-lo. A casa abria-se a familiares, amigos,
conhecidos. Como é natural, a maioria abandonara o costume de carpir o morto com
cantigas da “lei velha”. A maioria, mas nem todos. Em 1578, faleceu Gaspar
Domingues, lavrador do lugar de Rogel, termo de Silves. Guiomar Tomé, cristã-velha,
estranhou o comportamento da família. A viúva, Branca Henriques, andava pela casa a
cantar: «Andechas, Andechas, Andechas direchas de mi perdiçon»1171
. Quando foi velar
o morto, Guiomar viu-a chorar, tal como à mãe, Beatriz Simões:
“[...] chorava cada uma delas um pouco e, quando uma chorava, não chorava a
outra, e logo ambas juntas fechavam as mãos e as lançavam à cabeça e diziam estas
palavras juntamente: «Hui por ele, hui por o escuro, hui pelo sem ventura, hui por
ele». E isto continuavam grande espaço de tempo [...]”1172
.
Durante a visitação de 1585, Branca Henriques apresentou-se e disse que tais
lamentos não passavam de expressões de dor pela morte inesperada do marido1173
. Mas
não convenceu o visitador – Branca Henriques e Beatriz Simões estariam a carpir o
1166
Maria José Ferro Tavares constatou o contrário na comunidade de Trancoso: aos homens cabia a
preparação e amortalhamento do corpo, enquanto que as mulheres ficavam responsáveis por velar e carpir
o morto e por lançar fora a água que havia em casa para beber. (Cf. Ferro Tavares, “Os judeus da Beira
interior...”, Sefarad..., pp. 396-397). 1167
Cf. ANTT, IE, proc. 8790, fls. 4-4v. 1168
Cf. ANTT, IE, proc. 5530. 1169
Maria Lourença, criada de Diogo Martins, cristão-novo de Lagos, contou que a mulher deste fora
amortalhada numa camisa nova de linho curado e, por cima, vestiram-lhe um hábito de S. Francisco. (Cf.
ANTT, IE, proc. 5286). 1170
Cf. Huerga Criado, En la raya..., p. 180. Isabel Jorge acusou Filipa Henriques e Beatriz Fernandes de
terem amortalhado o corpo de Isabel Mendes, mãe de Beatriz ao modo judaico, “[...] vestindo-lhe uma
camisa comprida e um lençol de linho que tiraram de uma arca, o qual diziam que lhe mandara uma
cristã-nova que não conhece, nem sabe o nome, nem sabe se o dito lençol era velho, se novo, porque era
moça e não atentou por isso e que, antes de a amortalharem, viu que as ditas duas mulheres lavaram a
defunta primeiro e que, depois de amortalhada, a dita Filipa Henriques lhe meteu na mão uma moeda de
real e meio [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 8654). 1171
Quase pela mesma altura, em Marrocos, as comunidades judaicas também pronunciavam a lamentação
das “endechas” por ocasião dos rituais fúnebres (Cf. Salomon, “Uma descrição...”, CES..., pp. 294-295). 1172
Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 1173
Cf. ANTT, IE, proc. 11315.
263
morto “ao modo judaico”. Já o Monitório de 1536 referia o modo como os judeus
choravam os defuntos “com suas diteiras cantando”1174
.
Porém, entre as cerimónias fúnebres citadas no Monitório, a que melhor sobreviveu no
Algarve foi o vazamento da água que havia para beber, quando alguém da casa ou da
vizinhança falecia1175
. Diziam alguns que “[...] a morte, depois que matava o defunto, vinha
lavar a espada na dita água que tinha para beber e, por isso, não era bom bebê-la [...]” e
outros que “[...] quando alguém morre, a alma do defunto se vai lavar na dita água e fica
lavada dos pecados [...]”1176
. Uma e outra justificação têm paralelo em superstições
populares de inspiração judaica mas também cristã: o anjo da morte a lavar a sua espada, a
alma a banhar-se antes de partir para a vida eterna. Segundo Herman P. Salomon, esta
prática não possui qualquer fundamento na Bíblia ou no Talmud e nem sequer nos códigos
judaicos. As suas raízes encontram-se no Cristianismo medieval do Norte da Europa,
posteriormente adaptada à tradição judaica, através da lenda do anjo da morte1177
.
A Torá e a toura
Em 1585, Belchior da Fonseca, vigário-geral do Algarve, escrevia uma carta ao
visitador, na qual narrava um episódio ocorrido em Faro:
“Um homem mareante cristão-velho achou em uma parte do muro desta cidade, em
parte escura, um resto de tourá já antigo, dourado. Trouxe-me este homem esta boa
peça a casa e a mandei depositar na mão de Belchior da Costa, escrivão, [...] julgam
que é cousa já velha e que é rosto de vaca de tamanho de duas mãos [...]”1178
.
As “touras” continuavam a aparecer em Faro. Em 1633, no inventário da fazenda
de Afonso Pinto Duarte, encontraram-se “[...] seis touras pequenas de barro de
Estremoz douradas, digo, borrifadas de ouro, com seus cornos, assim e da maneira de
uma vaca [...]”, todas embrulhadas em papel e guardadas numa gaveta. A Rodrigo
Lopes, familiar do Santo Ofício, pareceu “mal tanta toura junta” e remeteu-as à
Inquisição de Évora1179
. Pela mesma altura, algumas testemunhas acusaram Grácia
Mendes, sobrinha de Custódio Mendes, de dizer que fora ensinada pela mãe a rezar
1174
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1175
Nas comunidades da raia castelhana, este teria sido um dos primeiros rituais a desaparecer (Cf. Huerga
Criado, En la raya., p. 180). 1176
Cf. ANTT, IE, proc. 5286 e 1548. 1177
Cf. Salomon, “The Monitorio...”, Arquivos do Centro..., pp. 48-60. 1178
Cf. ANTT, IE, proc. 4668. 1179
Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 44.
264
uma oração “ao boizinho de ouro”. “É a lei de Moisés um boi?” – perguntara a Inês
Pousada, quando interrogada se cria na Lei de Cristo ou na de Moisés1180
.
A resposta à questão de Grácia Mendes é, num certo prisma, afirmativa. Tudo
decorre de um equívoco fonético. A “toura” é a Torá. Com o passar de gerações e
gerações de vivência clandestina da fé, em que quase não havia acesso aos textos
sagrados do Judaísmo, a recordação do que realmente era a Torá esfumara-se para
muitos. E a Torá tornou-se toura, e a toura, boizinho, bezerra, bezerrinha. Como se
chegou de uma coisa à outra? Segundo Maria Antonieta Garcia, poderia ser uma
associação à passagem do Êxodo em que o povo hebreu, sentindo-se abandonado por
Moisés, construiu um bezerro de ouro e passou a adorá-lo1181
.
O culto dessas imagens, considerado pelos inquisidores como prática judaizante, era
completamente contrário ao Judaísmo normativo. Resvalava para a idolatria. E não se
limitava às touras ou bezerras douradas. Sebastião Rodrigues Janeiro, cristão-novo
residente em Faro, tinha em casa uma figura de barro que representava Moisés, à qual
prestava culto1182
.
Estas deturpações da doutrina judaica nasceram do progressivo desconhecimento
dos textos sagrados em que se alicerçava a religião dos antepassados. Por um lado,
havia a repressão religiosa, a proibição da circulação de tais textos. Por outro, a perda
do conhecimento da língua hebraica e, em última instância, a baixa literacia que
afastava o judaizante da compreensão do texto que, comum às duas religiões, ainda
poderia constituir um ponto de contacto com a “lei velha”, a Bíblia, lida em latim nos
púlpitos das igrejas.
Porém, estes eram obstáculos contornáveis. Sobretudo, o segundo.
Nos espaços onde o Judaísmo era professado livremente, cedo se tomou consciência
de que os judeus expulsos da Península Ibérica e os cristãos-novos que, na diáspora,
regressavam à fé dos seus antepassados, tinham um conhecimento muito deficitário, ou
mesmo nulo, da língua hebraica. Conscientes desta situação, os líderes religiosos
promoveram a tradução dos textos basilares do Judaísmo para vernáculo. Logo no início
da década de 40 do século XVI, em Ferrara, tentou-se a tradução da liturgia do hebraico
para o português, mas só anos depois, em 1552, surgiram os primeiros livros impressos
1180
Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 419-422v. Vide também Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 423-424. 1181
Cf. Maria Antonieta Garcia, Denúncias em nome da fé. Perseguição aos judeus no distrito da Guarda
de 1607 a 1625. «Caderno de culpas do bispado da Guarda e seu distrito e das visitações», Lisboa,
Instituto de Sociologa e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1996, p. 71. 1182
Cf. ANTT, IE, proc. 4837.
265
de orações judaicas em castelhano1183
. No ano seguinte, na oficina de Abraão Usque, era
impressa a tradução castelhana da Bíblia, a célebre Bíblia de Ferrara. Este movimento
de tradução e impressão de textos litúrgicos judaicos acabou por passar para as
emergentes comunidades sefarditas do Norte da Europa1184
. Perdurou o método de
tradução, palavra a palavra, mantendo a construção sintáctica do hebraico1185
.
Teriam estas vulgarizações dos textos litúrgicos judaicos chegado à Península
Ibérica, mesmo à revelia do controlo inquisitorial? Era impossível vedar todas as
brechas e, de alguma forma, houve cristãos-novos peninsulares que tomaram contacto
com esses textos1186
. No caso do Algarve, são muito raras as referências a livros de
orações. Recordemo-nos, porém, que Francisco Fernandes trouxera de Veneza um livro
com orações, cujo conteúdo consistia em:
“[...]os salmos de David, sem Gloria Patri, et cetera, e a oração que dizia «Adonai,
Adonai», que quer dizer que amaria o Senhor com todo o coração e com toda a alma
e com toda a vida e com todo o haver e aquele que bendiz Abraão, Isaac, Jacob, José,
Moisés e Aarão, David, Salomão, bendiga aos filhos de Jacob, grandes e pequenos, a
eles e a seus filhos, e a seus discípulos e lhe dê graças para o qual serviam e os leve
ao Monte de Sião e a Jerusalém, terra prometida a seus pais [...]”1187
.
Tratar-se-ia, possivelmente, de um Sidur. Quando regressou a Lagos, para ocultá-lo
do pai, enterrou-o ao pé de uma cepa de vinha, no termo da cidade.
A parcimónia das menções a textos litúrgicos judaicos no processos consultados
colide com o facto de o Algarve ser uma região prolixamente frequentada por
mercadores e homens de negócios oriundos do estrangeiro e, muitos deles, de espaços
onde o Judaísmo era livremente professado. Mais comum é a alusão a textos de teor
1183
Libro de Oracyones de todo el anno..., Ferrara, Yom Tob Atias, 1552; Sedur de Oraciones de mes...,
Ferrara, Yom Tob Atias, 1552; Orden de Silhot el qual comienxa en la luna nueva de Elul..., Ferrara,
Yom Tob Atias, 1552. (Cf. Meyer Kayserling, Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, Nova Iorque,
KTAV Publishing House, 1971, pp. 81-86). 1184
Cf. Salomon, Portrait of a New Christian..., pp. 145-152; Aron di Leone Leoni, The Orden de
oraciones de mês arreo (Ferrara 1555) and a Bakasah composed by Abraham Usque”, Sefarad, n.º 62,
2002, pp. 99-124; Idem, “Il Sedur de Oraciones de mes di Yom Tob Atias (Ferrara, 1552)”, Sefarad, n.º
63:1, 2003, pp. 89-117; Fernando Diaz Esteban, “Literatura hebrea y literatura castellana”, Espacio,
Tiempo y Forma, série III, tomo 6, 1993, pp. 517-542. 1185
Vide Haïm Vidal Sephiha, Le Judéo-Espagnol, Paris, Editions Entente, 1986; Manuel Alvar, El
ladino, judeo-español calco, Madrid, Real Academia de la Historia, 2000. 1186
Vejamos alguns exemplos. Maria Gomes, esposa de um mercador de Lisboa, foi presa em 1662, quando
tentava esconder dos oficiais do Santo Ofício uma cópia manuscrita do Tefillah Quotidiano (Cf. Carla da
Costa Vieira, Maria Fernanda Guimarães e Susana Bastos Mateus, “Um tefilah manuscrito num processo da
Inquisição de Lisboa”, Caderno de Estudos Sefarditas, n.os
10-11, 2011, pp. 537-568). Tomás Gomes,
mercador de Celorico da Beira, possuía, em 1645, um caderno manuscrito com o Selihot (Cf. ANTT, IL,
proc. 11560, fls. 61-80v. Vide a transcrição deste caderno in “SelliRoth. Um caderno de orações apenso ao
processo de Tomás Gomes”, [Consult. 20 Fevereiro 2012]. Disponível online: http://www.catedra-alberto-
benveniste.org/_fich/15/Sellihoth_edicao_paleografica.pdf). Um outro exemplo é o de António Rodrigues
Ferreirinha, preso pela Inquisição em 1588, ao ser denunciado por um sócio que lhe vira escapar do bolso
um caderno com orações judaicas manuscritas (Cf. ANTT, IC, proc. 653, fls. 19-36v). 1187
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 80-80v. Vide em anexo, p. 398.
266
cristão que, por abordarem temáticas relativas ao Antigo Testamento e à história do
povo judeu, eram apropriados pelos judaizantes. Lidos à margem da interpretação
oficial da Igreja, tendiam a suscitar o reforço de atitudes e crenças heterodoxas e, dada a
difusão de interpretações marginais, alguns acabaram por integrar o Índex1188
.
A 16 de Outubro de 1652, o comissário do Santo Oficio apreendeu, no porto de Faro,
30 obras que haviam chegado num barco castelhano, destinadas a Frei Lourenço, capelão
da igreja de São Luís, em Lisboa. Entre estas, encontravam-se as duas partes do Flos
Sanctorum de Alonso Villegas (edições de Toledo, 1591, e Alcalá de Henares, 1609)1189
.
A primeira parte da obra de Villegas é dedicada, como refere o título, à “historia geral
da vida e feitos de Jesu Christo Deos Nosso Senhor [...] & de todos os mais sanctos de
que reza & faz festa a Igreja Catholica”, enquanto que, na segunda parte, o autor discorre
sobre a vida de Maria e “de los sanctos antiguos”, entre os quais, os patriarcas de
Israel1190
. Era uma obra piedosa que visava a educação dos crentes cristãos nos conteúdos
do texto bíblico. Porém, a segunda parte do Flos Sanctorum tornou-se particularmente
popular entre os judaizantes que, sem acesso à Torá, encontravam ali uma fonte
doutrinal1191
. Foi através deste texto que Francisco Fernandes descobriu a sua nova fé1192
.
Em 1636, Frei Ângelo de Santa Maria, capelão do convento das carmelitas em Lagos,
encontrou um exemplar do Flos Sanctorum com a seguinte inscrição manuscrita:
“Primeiro, sem dúvida que não deve de ser vindo o Mexias. 2º E assi temos por
cousa certa e tradição de nossos passados que há-de reinar no mundo e sujeitá-lo
todo a seu mando e império, pois se isto assi é, como o não vemos se é vindo?
Como, se ele está em o mundo, se não se vê? Como estamos ainda sujeitos aos
Romanos e ao Rei que eles puseram, estrangeiros à nossa nação que ainda professa
a Lei de Moisés, não é descendente de Abraão? 3º Virá de longe e com grande
furor e como deitando fogo de sua boca e como corrente grande de caudaloso rio
para perder as gentes que são os gentios que têm oprimido seu povo, como se vê ao
presente nos Romanos, e assi nos livrará de seu poder.”1193
Foi realizada uma diligência em Lagos, junto dos religiosos do convento. Era o ano
de 1636 e o Algarve sofria a mais intensa vaga de prisões inquisitoriais de que havia
memória. Por outro lado, os inquisidores reconheciam a popularidade do Flos
Sanctorum entre os judaizantes. O autor da inscrição foi revelado. Frei Ângelo
1188
Cf. Peña Díaz, “Libros permitidos...”, Cuadernos de Historia..., pp. 89-101. 1189
Cf. Rau, Subsídios para o estudo do movimento dos portos...., p. 260. 1190
Cf. Alonso de Vilhegas, Flos Sanctorum e historia geral da vida e feitos de Jesu Christo Deos Nosso
Senhor..., Lisboa, Simão Lopes, 1598; Idem, Flos Sanctorum: Segunda parte y Historia General en que
se escriue la vida de la Virgen sacratissima madre de Dios, y señora nuestra: y las de los sanctos
antiguos..., Toledo, Juan Rodriguez, 1586. 1191
Cf. Salomon, “Spanish Marranism Re-examined”, Sefarad, vol. 68:1, Jan.-Jun. 2008, pp. 404-406. 1192
Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 74-74v. Vide supra, pp. 115-118. 1193
Cf. ANTT, IE, liv. 240, fls.449-449v.
267
reconhecera a letra como sendo de Madre Bernarda da Anunciação, da qual não se
conhecia qualquer ascendência cristã-nova. Tal pesou muito para o crédito dado aos
argumentos da freira: fizera esses escritos para o presépio e iria colocá-los junto a uns
profetas da Lei1194
. Encerrou-se o caso. Porém, o facto de ter chegado aos ouvidos dos
inquisidores de Évora indicia o clima de suspeita que se vivia então no Algarve, mesmo
numa cidade pouco atingida pela entrada dos anos 30, como era o caso de Lagos.
Outros livros de teor similar atraíam o interesse dos judaizantes. Em Fevereiro de 1564,
Gaspar Lopes confessou aos inquisidores que, indo de Tavira a Serpa, havia então 10 anos,
encontrara Diogo Fernandes, que lhe “[...] deu um livro que se chama Arpa de David e ele,
confessante, o levou para sua casa e lia por ele, e levava contentamento em ler por ele por
falar em David [...]”1195
– referir-se-ia, talvez, ao saltério parafraseado em castelhano por
Benito Villa, frade do mosteiro beneditino de Nossa Senhora de Monserrate, em Barcelona,
cuja primeira edição conhecida data de 15381196
. Quase pela mesma altura, em 1563, Luís
Fernandes denunciava o seu companheiro de cárcere, Gaspar Fernandes, também de Tavira.
Um dia, depois de jantar, ter-lhe-ia sugerido que ambos dessem graças a Cristo, ao que ele
respondeu: «Dêmo-las ao criador do mundo». E continuou:
“Se lerdes, Luís Gomes, o livro de Consolação dos Tristes da maneira que vos eu
dizer, é uma cousa tão doce a lei velha que, se se vos meter na cabeça, será cousa
impossível desencasquetar-se-vos porque é uma cousa tão doce que é pasmo, e que
isto ousarei a dizer na mesa, porque isto bem o sabem eles, e para isso vos darei
uma razão muito boa: que quando Deus prometeu de salvar o povo de Israel e não o
salvou e quando eles dizem que veio e que depois vieram os apóstolos e se puseram
a pregar para os povos, não no creram senão os gentios, e não já o povo de Deus,
que eram os judeus, povo escolhido, sem embargo dos apóstolos pregarem que era
vindo o Messias”1197
O “livro da Consolação dos Tristes” era o Espejo de consolación de tristes, de Juan
de Dueñas. A obra apresentava uma série de exemplos bíblicos que espelhavam a
maneira de bem viver e como tal se poderia aprender até nas maiores adversidades. As
sucessivas reedições (segundo Amiel, só no período entre 1540 e 1591, foram 40 as
edições) tornaram-na numa das obras religiosas mais lidas na Península Ibérica durante
o século XVI e, como grande parte das passagens bíblicas que lhe serviam de mote
provinham do Antigo Testamento, era particularmente popular entre os criptojudeus,
1194
Cf. ANTT, IE, liv. 240, fls. 456-458. 1195
Cf. ANTT, IL, proc. 12848, fl. 44v. 1196
Além desta edição, impressa em Barcelona por Carlos Amoros, Paulau y Dulcet identificou mais duas
edições posteriores – Medina del Campo, 1545, e Burgos, 1548 – com o mesmo título, Harpa de David:
en la qual se declaran los ciento y cincuenta Psalmos del psalterio... (Cf. Antonio Palau y Dulcet,
Manuel del Librero Hispanoamericano, tomo XXVII, Barcelona, Oxford, Antonio Palau Dulcet, The
Dolphin Book, 1976, pp. 88-89). 1197
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 5v-6. Vide em anexo, pp. 268-269.
268
que o usavam como veículo de doutrinação. Consciente dessa realidade, a Inquisição
Portuguesa integrou-a no Índex em 15641198
. Três anos antes, Garcia Ribeiro referia-a
na sua confissão. Ele comentara com Henrique Nunes, ao vê-lo ler a “Consolação dos
tristes”: «Olhai quantos modos buscaram os letrados para, em linguagem, declararem a
Sagrada Escritura aos que não fossem letrados»1199
.
A observação de Garcia Ribeiro exprime o quanto o latim se tornara num obstáculo
para o acesso popular ao texto bíblico, dada a escassez de “letrados”, leia-se, de
versados em latim. Através dos processos inquisitoriais consultados, foi possível retirar
algumas ilações sobre os níveis de literacia dos cristãos-novos do Algarve. Nas sessões
de genealogia, os réus eram questionados sobre os seus conhecimentos literários.
Embora essa informação não esteja omnipresente nos processos decorrentes da primeira
vaga de prisões no Algarve, a ausência da assinatura do réu, só por si, indiciava o seu
analfabetismo. Com base nesse pressuposto, conclui-se o seguinte: a esmagadora
maioria das mulheres era analfabeta, enquanto que a maior parte dos homens sabia ler e
escrever ou, pelo menos, assinar o próprio nome, sendo que só uma minoria tinha
conhecimentos de latim, mesmo que rudimentares. Essa minoria encontrava-se,
geralmente, ligada a um determinado estatuto sócio-profissional: médicos,
procuradores, estudantes. Os números não variam muito para as décadas seguintes. A
discrepância entre a alfabetização feminina e a masculina mantém-se mas, nos dados
relativos aos anos 30 e 40 do século XVII, revela-se menos acentuada – são mais as rés
que assinam os seus processos ou que alegam saber ler e escrever1200
.
Os níveis de alfabetização registados na amostra estudada não corresponderão,
necessariamente, aos da generalidade da população portuguesa no mesmo período.
Francisco Ribeiro da Silva apresenta alguns dados sobre a alfabetização da população do
Porto e do seu termo no período da Monarquia Ibérica, sustentando-se no exame da
assinatura e dos sinais dos signatários dos livros oficiais da Câmara. Notando a
discrepância entre a população rural e urbana, o autor concluiu que a taxa de alfabetização
da população masculina nesse espaço, em 1600, não ascenderia aos 25%, mas também
não seria inferior a 16%1201
. Rita Marquilhas, tendo como base os registos do século XVII
1198
Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Revue de l’histoire des religions..., pp. 524-534. 1199
Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 40v-41. Vide em anexo, p. 267. 1200
Vide, em anexo, gráfico 10, p. 113. 1201
Francisco Ribeiro da Silva, “A alfabetização no Antigo Regime. O caso do Porto e da sua região
(1580-1650)”, RFL, II série, vol. III, 1986, pp. 101-163. O autor considerou quatro categorias: os que
assinam, os que não sabem assinar, substituindo a assinatura por um sinal; os que assinam tão mal que se
torna duvidoso que saibam escrever; os que não assinam nem deixam qualquer sinal (p. 111). As
269
dos livros de denúncias e dos cadernos do promotor da Inquisição, chegou a outros
números: no total dos três tribunais inquisitoriais, 78,4% das testemunhas masculinas
assinam, enquanto que só 9,4% das femininas o fazem. A percentagem total ronda, assim,
os 60%1202
. Mas a assinatura não era um indício seguro de alfabetização. Para muitos, a
capacidade literária começava e terminava no rabisco do próprio nome. Por outro lado, a
realidade social com que os dois autores trabalharam é diversa e tal reflecte-se na
disparidade dos resultados. Recordemo-nos como, em todos os tribunais inquisitoriais
portugueses, a maior parte dos visados das denúncias eram cristãos-novos. Aliás, no final
do seu trabalho, Ribeiro da Silva salientava três conclusões essenciais: “[...] a vantagem
do morador da cidade sobre o do campo, do homem sobre a mulher, das elites sociais e do
dinheiro sobre o homem comum [...]”1203
. Ora, o cristão-novo encontrava-se
correntemente vinculado ao meio urbano.
Charles Amiel, no seu estudo sobre os processos de cristãos-novos de duas
localidades de Castilla-La Mancha, Quintanar de la Orden e Alcázar de Consuegra, em
finais do seculo XVI, conclui a discrepância entre os níveis de literacia da “gente de
nação” e da população cristã-velha: 72,3% dos homens sabiam ler e escrever, enquanto
que, num outro estudo para um período coevo sobre os paroquianos da diocese de
Cuenca, essa percentagem não ia além dos 34%1204
.
Numa sociedade com baixos níveis de alfabetização, a leitura não era, essencialmente,
uma actividade isolada, mas sim de grupo. Para muitos, o acesso ao texto escrito só era
possível através de um outro elemento, o leitor, que intervinha directamente nele, não só
na selecção dos excertos, como também na transmissão da sua própria exegese. No caso
de textos escritos numa língua desconhecida ao ouvinte, a intervenção do leitor-
intermediário revelava-se ainda mais essencial. A Bíblia era, correntemente, mais
escutada do que lida pela maioria dos cristãos cuja prática religiosa se inscrevia dentro
conclusões finais sobre a taxa de alfabetização baseiam-se nos que se enquadravam na primeira categoria,
ou seja, aqueles que sabiam assinar devidamente o seu nome. 1202
Cf. Rita Marquilhas, A Faculdade das Letras. Leitura e escrita em Portugal no séc. XVII, Lisboa, IN-
CM, 2000, p. 118. A autora salienta, porém, uma discrepância entre os três tribunais, sendo que as
percentagens de testemunhas que sabem assinar os respectivos nomes é mais elevada no tribunal de
Lisboa (85,5% dos homens, 16,5% das mulheres) do que nos de Évora (75,9% dos homens, 7,3% das
mulheres) e Coimbra (72,8% dos homens, 4,2% das mulheres). 1203
Cf. Ribeiro da Silva, “A alfabetização...”, RFL..., p. 160. 1204
Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Révue de l’histoire..., pp. 511-512. Sobre a diocese de Cuenca, Amiel
cita o estudo de Sarah Nalle, “Literacy and Culture in Early Modern Castille”, Past and Present, n.º 125,
1989, pp. 65-98. Estes números referem-se ao período entre 1540 e 1600. Relativamente ao Brasil, mais
exactamente a Paraíba, Bruno Feitler também registou uma discrepância entre a alfabetização dos
cristãos-novos e do resto da população: de entre os processos com sessão de genealogia, todos os homens
sabiam ler e escrever e cerca de um terço das mulheres sabia, ao menos, ler (Cf. Bruno Feitler,
Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil, Leuven, Leuven University Press, 2003, p. 291).
270
dos limites da ortodoxia e que apenas acediam aos conteúdos doutrinais através da
interpretação do sacerdote no único momento da missa que lhes era inteligível, a
homilia1205
. Assim, a Igreja filtrava o acesso do fiel ao texto bíblico e monopolizava a sua
interpretação. Mas os próprios sermões, declamados nos púlpitos da igreja, também
inspiravam percepções marginais. Vejamos o caso relatado por Garcia Ribeiro:
“Um dia, pregando um frade de São Francisco da Santíssima Trindade, depois de
muitas razões e profecias que alegou, veio a dizer: «Quereis ver quão claro é o da
Santíssima Trindade além do que tenho dito, vós que sois curiosos vede a Joel no
primeiro ou segundo capítulo, e ali claramente está provado em dizer o profeta „A.
A. A. domine nascio loqui‟ porque aqui vereis que disse três vezes „A. A. A.
Domine‟ e fala em singular no „Domine‟ e se entende, por isto, o mistério da
Santíssima Trindade». E o dito seu cunhado olhara para ele, confessante, e lhe
dissera: «Que dizeis agora?». E que, acabada a missa, se vieram ambos para casa
dele, confessante, e viram o capítulo e ele, confessante, se sorrira. E o dito seu
cunhado lhe dissera: «De que diabo vós sorrides que não tem resposta o que diz o
pregador?». E ele, confessante, lhe respondera: «Este manjar não é pera vós,
porque o dizer o profeta três vezes „A. A. A. Domine nascio loqui‟ se entendia por
uma interjeição dolentis de que os gramáticos usam»”1206
Um estudante, um médico ou um advogado, versados em latim, prontificavam-se a
ler e a traduzir em voz alta passagens da Bíblia. Nos processos dos anos 50 e 60 de
Quinhentos, abundam os testemunhos de cristãos-novos que se reuniam para leituras
colectivas das Sagradas Escrituras. Havia, então, uma doutrinação para a heterodoxia,
um reavivar das crenças e da memória dos rituais dos antepassados através de uma
leitura seleccionada, da escolha de livros e excertos específicos. O Pentateuco e os
livros proféticos recolhiam as preferências: o primeiro constituía a base doutrinal do
Judaísmo, os segundos inspiravam o movimento messiânico emergente. Os salmos não
só eram ouvidos como também decorados e constituíam, para muitos, as únicas orações
recitadas “em observância da Lei de Moisés”.
Orar em segredo
Num contexto de perseguição religiosa, em que a fixação escrita da liturgia era um
risco corrido por poucos, a sua transmissão tendeu a inscrever-se no domínio da oralidade.
1205
Sobre a persistência da cultura oral, vide Ana Isabel Buescu, “Cultura impressa e cultura manuscrita
em Portugal na Época Moderna. Uma sondagem”, Memória e Poder. Ensaios de História Cultural
(Séculos XV-XVIII), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp. 29-48; José Luis Sánchez Lora, “Retórica,
oralidad, lectura en la Edad Moderna”, Cuadernos de Historia Moderna. Anejos, I, 2002, pp. 65-84. 1206
Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 32-32v.
271
Os conteúdos corromperam-se. Persistiu melhor o que havia de comum com a religião da
maioria, cuja ritualidade era livremente praticável, à margem de qualquer suspeita.
João Lopes Cristino rezava os salmos de David sem o Gloria Patri final. Só o
pronunciava quando estava alguém por perto, “[...] com a boca, mas não com o
coração [...]”1207
. Duarte Fernandes também costumava orar da mesma forma, apesar das
repreensões do pai, que lhe pedia “[...] que rezasse outra cousa [...]”1208
. Estes são só dois
exemplos de vários. A recitação dos salmos ateava suspeitas na sua selecção e na ausência
do Gloria Patri final. Os chamados sete salmos penitenciais (ou sete salmos de David)
eram constantemente associados às práticas judaizantes – os salmos 6, 31, 37, 50, 101,
129 e 142, recitados durante a Quaresma. Por outro lado, o Gloria Patri constituía a plena
afirmação da fé na Trindade e a sua ausência no final do salmo indiciava a recusa do
dogma cristão. O Monitório de 1536 já contemplava esta prática1209
.
Segundo Elvira Mea, desde meados do século XVI que há uma posição de quase
silêncio relativamente às orações judaicas, “[...] um misto de reacção de defesa e pudor
por algo de muito íntimo, o elo invisível que ligava o crente a Adonai [...]”, não
necessariamente um sinal da perda da memória das comunidades, mas uma ocultação,
uma forma de resistência e de protecção num momento em que a actividade inquisitorial
se tornava mais intensa1210
. Porém, não é um silêncio completo, sendo conhecidos
pontuais testemunhos da sobrevivência de orações alegadamente criptojudaicas, alguns
bem para lá da primeira metade de Quinhentos1211
.
No caso do Algarve, encontramos vestígios dispersos da sobrevivência na memória
dos cristãos-novos de algumas orações da “Lei Velha” ou, pelo menos, resquícios
destas. Francisco Nunes costumava rezar o Sema Israel na companhia doutros cristãos-
novos de Lagos que se reuniam na casa de Duarte Álvares1212
. Já no cárcere, Gaspar
Fernandes recitava a mesma oração1213
. Suprema afirmação da unicidade divina, o Sema
1207
Cf. ANTT, IL, proc. 1156, fl. 15v. 1208
Cf. ANTT, IL, proc. 12745, fl. 14. 1209
Cf. Salomon, Portrait of a New Christian..., p. 65. 1210
Cf. Mea, “A problemática do judaísmo...”, Inquisição Portuguesa..., p. 135. 1211
Vide, por exemplo, os casos apresentados por Maria Fernanda Guimarães e António Júlio Andrade, relativos
às comunidades de Lagoaça e de Carção, em Trás-os-Montes, in: Carção. A Capital do Marranismo, Carção,
Junta de Freguesia de Carção, 2008; “Marranos de Lagoaça no Tribunal da Inquisição”, Trás-os-Montes e Alto
Douro. Mosaico de Ciência e Cultura, Lagoaça, Comissão de Festas de Nossa Senhora da Graça, 2011, pp. 271-
282. Vide também Elvira Mea, “Orações judaicas na Inquisição Portuguesa: Século XVI”, Jews and conversos.
Studies in society and the Inquisition. Ed. Yosef Kaplan, Jerusalem, The Magnes Press, 1985, pp. 149-178. 1212
Cf. ANTT, IL, proc. 2601, fl. 22v. “Sema Israel Adonai Elohenu Adonai ehad baruch sem kebod
malchutho leholam vahed” correspondia ao versículo 4 do capítulo 6 do livro do Deuteronómio: “Escuta,
ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. 1213
Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 86v.
272
Israel foi a oração que melhor sobreviveu na clandestinidade. As primeiras palavras
continuaram a ser pronunciadas em hebraico, mesmo por quem não conhecia a língua.
Em 1561, Mor Mendes, a Buena Vida, também admitiu que rezava o Sema,
especialmente nos dias de jejum. Quem lhe ensinara a oração havia sido uma cristã-nova
de Santarém que viera fugida para Tavira e vivera durante dois meses na sua casa. Era
Isabel Fernandes, a Esquerda, conhecida no Algarve por Maria Rodrigues de Murça1214
.
Presa em Tavira, em 1558, Isabel Fernandes revelou conhecer outras orações:
«Lançou-se Moisés sobre suas faces e disse: Minha boca o diga e minha alma o
recebei, nunca me Nosso Senhor dê contas, nem preces por onde o esqueça.»
«Cedo coberto do alto e em sombra do abastado se adormece, digo eu: Meu Deus e
meu abrigo que me afiuso nele, que ele me guardará de laço, e de encantamento, e
de mortandades, que ele me guardará de trevas de talhamento.»1215
Fora a avó quem lhas ensinara. Isabel Fernandes tinha cerca de 60 anos de idade
quando foi presa. Portanto, a sua avó teria vivido a maior parte da sua vida antes da
conversão geral. De facto, os “mestres” desta primeira geração de judaizantes ainda
tinham frescas na memória as orações que rezavam na sua infância e juventude de
judeus públicos. Contemporânea de Isabel, Maria Lopes também aprendera com a avó
algumas orações que ensinou a uma outra cristã-nova, Grácia Mendes. Uma delas
começava assim:
«Lavarei cada manhã com lágrimas meu leito, andarei carreira limpa pelo
caminho direito.»1216
Voltamos a encontrar esta mesma oração, um pouco mais desenvolvida, no processo
de Mor Rodrigues, também natural de Loulé mas residente em Vila Nova de Portimão:
«Lavarei cada menhana com lagrimas my leito, andarei carreira lhana, caminho
direito, até que aya satisfeito todas mys culpas, danhos y malos, enganhos que a ty,
Senhor, tenho feitos.»1217
Rezava-a assim porque a aprendera com uma castelhana, da qual dizia não se
recordar do nome. A mesma oração, rezada em português e em castelhano, persistiu na
memória de duas mulheres, cujas fontes identificadas eram bem distintas – uma
castelhana anónima e uma decana de Loulé.
Maria Lopes fora interpelada por Grácia Mendes para que lhe ensinasse uma outra
oração, a qual começava assim:
1214
Isabel Fernandes era natural de Odemira e viveu durante muitos anos em Santarém. Devido à
perseguição inquisitorial, ela fugiu para o Algarve, disfarçada com hábito de freira, e acabou por mudar
de nome. (Cf. ANTT, IL, proc. 3114). 1215
Cf. ANTT, IL, proc. 3114, fl. 21v. 1216
Cf. ANTT, IL, proc. 3845, fl. 22. 1217
Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fl. 49v.
273
«Adonai é o teu nome, segundo nos é declarado, a quem deve todo hombre ser bem
inclinado por mais glorificado, em ti solo adorarei, em ti me afirmarei e livrar-me-ás
de pecado.»1218
Mor Mendes também ouvira Isabel Fernandes, a Esquerda, a rezar:
«Adonai es tu nombre que asy mo han declarado, onde deve todo hombre de crer
bem inclinado, en tu nombre adorarei, perdornarme as mi pecado.»1219
Cerca de 70 anos depois, em Faro, Branca Dias confessava perante o bispo D.
Francisco de Meneses que aprendera a seguinte oração:
«Adonai Senhor, es tu nombre segundo tens declarado a quien deve todo el hombre
crer en si, afirmando, lhorando porque hiseste este mundo de perdicion. Oye my
oracion por que yo no muera triste. Esta alma que hiziste no le desconsolacion, no
por mia perdicion, si no porque tu la hesiste.»1220
A sua prima Joana Jorge refere uma outra versão, mais desenvolvida e um pouco
mais próxima das mencionadas por Maria Lopes e Mor Mendes:
«Adonai é o teu nome, segundo é declarado para mais santificado, vosso nome
chamarei e em ti adorarei, livrai-me do meu pecado. Bendito seja el varon que em ti
tiene confiança, sacaste el Rei Faraó de tan grande tribulança, por debaixo de tu lança
passaram as doze tribos alegres, sanos e vivos, pues has mostrado vingança, cerca de
mar allegaron, Faraó ha perseguido, tan de vozes apellido a Moises se reclamaram e
serviram mui perdidos e Moises fizera o que o Senhor lhe mandou, o mar logo se lhe
abriu como a dous a pedido. Grande é teu poderio que não tem conto, nem par, nem
quem possa escrevê-lo, nem quem possa enumerá-lo. Deu-lhe certo alimento, sol,
luna, céu e estrelas, só Deus sabe o conto delas, pois as tem a seu contento.»1221
Que ligação têm estas quatro mulheres? Joana Jorge e Branca Dias eram primas
direitas. Mor Mendes era tia paterna de Grácia Mendes1222
, a mesma que pedira a Maria
Lopes para lhe ensinar a oração. Ora, Maria Lopes era bisavó do marido de Joana Jorge,
Manuel Camacho1223
. Teria esta oração passado, de boca em boca, entre quatro gerações?
É uma possibilidade, embora Joana afirme tê-la aprendido com a mãe. O pormenor com
que é recitada leva-nos a ponderar se não teria existido um suporte escrito que auxiliasse a
forma como foi memorizada e transmitida ao longo do tempo. Além do mais, a
linguagem, misto de português e castelhano, traz reminiscências do ladino dos livros de
orações impressos na diáspora. Mas estamos no terreno movediço das hipóteses.
Continuemos com as orações mencionadas pelos réus algarvios. Bárbara Filipe
aprendera com a mãe, quando tinha cerca de 16 anos, a oração “Fermosura de Adonai”:
1218
Cf. ANTT, IL, proc. 3845, fl. 22. 1219
Cf. ANTT, IL, proc. 13280. fls. 51-51v. 1220
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 23-23v. 1221
Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 25. 1222
Catarina Mendes, mãe de Grácia Mendes, denunciou Mor Mendes, “[...] que foi sua cunhada e que está
casada com Gaspar Gonçalves [...]”. Mor Mendes seria irmã de João Mendes, marido de Catarina e que, no
momento em que começaram as prisões na família, já havia falecido. (Cf. ANTT, IL, proc. 12909, fl. 58.) 1223
Vide, em anexo, genealogia 31, p. 181.
274
«Seja fermosura de Adonai e seus santos sobre mi feita de nossas mãos que ele
comporá si no coberto em o alto está o nome do abastado Maynira Maino e dito
Adonai es grande senhor, meu castelo, meu abrigo, em que me eu afirmo e afiuso,
bendito vós, senhor, me livrareis do laço do encantamento, da mortandade, da
tortura, vossa bendita mão nos livrará e me amparará, et cetera.»1224
A mãe também costumava contar-lhe histórias do Antigo Testamento: a fuga do
povo hebreu do Egipto, a salvação do profeta Daniel do lago dos leões, a protecção do
arcanjo Rafael a Tobias. Eram passagens correntemente repetidas nas preces
criptojudaicas. Veja-se a oração pronunciada por Tomás Gomes, em 1560:
«Oh Deus de Abraão, Isaac e Jacob, tu tiraste os filhos de Israel da catividade do
Egipto e lhes fizeste o mar em doze carreiras e os passastes em salvo e os filhos de
Israel viram vingança dos egípcios e os passaste ao deserto e dali os pusestes na
terra de promissão e os mantivestes quarenta anos ao maná e a manjares delicados,
assim como isto é verdade, assim creio que sois o Deus de Verdade e não das
mentiras, a vós me encomendo e em vós ponho minha esperança e não em outras
coisas, porque vós me haveis de livrar de todos os perigos e me haveis de salvar e
perdoar todos meus pecados.»1225
A passagem do êxodo do Egipto é aludida ao longo do Sema Israel e doutras orações
e salmos que integram o serviço litúrgico diário. Também não podemos ignorar os
paralelismos entre a situação dos cristãos-novos na Península Ibérica e a do povo hebreu
escravizado no Egipto: a libertação do jugo de um elemento opressor (Faraó/Inquisição)
por intermédio de um escolhido de Deus (Moisés/Messias), os quarenta dias de provação
no deserto e os desvios do povo judeu (bezerro de ouro/Cristianismo), a condução à terra
prometida – a esperança numa nova era de livre confissão da fé dos antepassados.
A condição de judeu secreto, obrigado a renegar em público a fé que professava
secretamente, conduzia a um dilema moral, a um sentimento de culpa que teria
contribuído para popularidade das orações de contrição. Branca Dias refere uma prece
que costumava rezar:
«Tem misericórdia de mim, Senhor, segundo tua grande misericórdia e segundo a
multidão de tuas misericórdias apaga minha maldade mas me lava a maldade minha
e me limpa de meu pecado, porque eu conheço a minha maldade e meu pecado está
sempre contra mim.»1226
Esta oração corresponde ao início do salmo 50, um dos sete salmos penitenciais1227
.
A temática é a mesma de uma outra prece recitada por Mor Rodrigues, mais de sete
décadas antes:
1224
Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fls. 70v-71. 1225
Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 15v-16. 1226
Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 23-23v. 1227
“Tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; pela tua grande misericórdia, apaga o meu
pecado. Lava-me de toda a iniquidade; purifica-me dos meus delitos. Reconheço as minhas culpas e tenho
sempre diante de mim os meus pecados” (Sl. 51 [50], 3-5).
275
«Ouvi Senhor mi boz y mi lhoro y mi gimido, quitai-me este dolor que me priva
my sentido se de ti for socorrida e de tua Santa misericordia, seria muy asinha meus
pecados perdoados e meus deseios cumpridos.»1228
Mor Rodrigues rezava-a quando cumpria os jejuns judaicos. Também Simão Nunes,
de Vila Nova de Portimão, pronunciava uma oração no dia do jejum do Quipur, ao ver a
primeira estrela:
«Bento, louvado, e exaltado e santificado seja vosso santo nome, Senhor, por tantos
bens, mercês e esmolas que nos fazeis hoje, este dia e cada dia, Senhor, perdoai-me
meus pecados pela vossa santa misericórdia e piedade porque vós sois meu
verdadeiro Senhor e sereis pera sempre.»1229
Os rituais eram acompanhados por orações específicas. Isabel Fernandes, a
Esquerda, aprendera com a avó que, nas noites de sexta-feira, quando acendesse a
candeia, deveria repetir as seguintes palavras:
«Bendito seja Nosso Senhor que nos encomendou suas encomendanças e acender
candeia à sexta-feira.»1230
E, ao amassar o pão, rezaria:
«Bendito seja o Senhor que nos encomendou suas encomendanças e a tirar a hala
do pão.»1231
A halá consistia no costume de deitar ao fogo um pedaço de massa do pão.
Encontramos testemunhos desta prática nos lares dos cristãos-novos algarvios até ao
final do período estudado1232
. Aliás, a tradição sobreviveu, sendo ainda praticada, no
século XX, em Belmonte1233
.
Com o avançar dos anos de repressão inquisitorial, as referências a orações
criptojudaicas tornaram-se mais escassas. Os casos de Branca Dias e da prima Joana
Jorge parecem ser uma excepção. Contudo, não nos esqueçamos das condições em que
ambas testemunharam, apresentando-se voluntariamente perante o bispo. Fora estes dois
casos, as menções revelam-se vagas e confusas. Em 1633, Isabel Pinta, de Faro,
1228
Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fls. 44v. 1229
Cf. ANTT, IL, proc. 9243, fl. 4v. 1230
Um judeu de Marrocos, em 1587, referiu algumas fórmulas similares, como, por exemplo: “Bendito tu
Adonai nosso Deu, rei do mundo, que nos santificou com suas encomendanças e nos encomendou a pôr
tefelins”; “Bendito tu Adonai nosso Deu, rei do mundo que nos santificou com suas encomendanças e nos
encomendou por acender a candeia de Hanuca” (Cf. Salomon, “Uma descrição em primeira mão...”, CES...,
pp. 277, 280). Já no séc. XX, Samuel Schwartz testemunhou, na comunidade de Belmonte, a seguinte prece,
recitada nas noites de sexta-feira: “Bemdito meu Deus, meu senhor, meu Adonai, que nos mandou e nos
encomendou com suas encomendanças bemditas e bem-santas que acendessemos esta santa torcida para
alumiar e festejar a noite santa do Senhor, para que o Senhor nos alumie a nossa alma e nos livre de culpas,
penas e pecados” (Cf. Samuel Schwartz, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, Lisboa, Instituto de
Sociologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1993, pp. 82-83). 1231
Cf. ANTT, IL, proc. 3114, fl. 21v. 1232
Em 1646, Domingos Rodrigues, de Albufeira, ainda referia que era costume, na sua casa, lançar fora
três pedaços de massa quando se amassava o pão (Cf. ANTT, IE, proc. 6059). 1233
Cf. Schwartz, Os Cristãos-Novos...., p. 31.
276
confessou que Francisca Duarte lhe ensinara uma oração do “Santo Moisés”, da qual só
recordava as primeiras palavras: «As tribos de Israel por aquele mar vermelho e mar
salgado»1234
. Sebastião Dias ouvira, na casa da prima Beatriz Álvares, rezar uma oração
“[...] que entre outras palavras dizia: «Bendito e louvado sejais, Povo de Israel, Adonai
para sempre»”1235
. Anos antes, em 1592, Margarida Fernandes disse que Filipa Caldeira
lhe ensinara uma prece para que os seus filhos regressassem das Índias:
«Oma de maty madona, rica dona e rica senhora, mercês que fazeis às outras, fazei-
as a mi, assi como os peixes se não podem manter sem água, nem o corpo sem
alma, assi meus filhos não possam estar sem me vir ver ou me mandar.»1236
A origem da oração é ambígua. Tanto poderia ser dirigida a Santa Maria como à
“Santa” Rainha Ester. Aliás, Margarida alegou que, ao início, rezava-a como cristã e só
mais tarde ficou a saber que “[...] a dita oração era da Lei de Moisés [...]”.
O sincretismo entre a fé secreta e a religião publicamente professada abrangia
também a gestualidade que acompanhava a oração. Joana Jorge contou que fora
ensinada pela mãe a rezar com o terço nas mãos, dizendo a cada conta: «De nascente a
poente, bendito Adonai para sempre»1237
. Acabadas as contas, voltaria a corrê-las até
completar as 140, rezando «Bendita e louvada seja a formosura de Adonai», ou «Adonai
seja por mim, o povo de Israel não seja contra mim»1238
.
Não eram só as palavras invocadas que indiciavam um comportamento judaizante.
O Monitório de 1536 alertava:
“[...] se rezarão ou rezão orações Iudaicas, assi como são os psalmos penitenciaes
sem gloria patri, e filio, e spiritui sancto, e outras orações de Iudeos, fazendo
oração contra a parede sabbadejando, abaxando a cabeça, e alevandandoa, a forma
& modo Iudaico, tendo quando assi rezão os ataphalijs, que são hűas correas atadas
nos braços, ou postas sobre a cabeça.”1239
Nos processos consultados, não encontrámos qualquer referência ao uso do
“ataphalijs” (tefelins ou filactérios), pequenas caixas de couro, nas quais se guardavam
excertos dos textos sagrados, e que, durante a oração da manhã, eram presas ao braço
esquerdo e à cabeça através de correias1240
. No criptojudaísmo, os acessórios judaicos
de oração foram substituídos por símbolos cristãos, como o rosário. Porém, outros
comportamentos permaneceram. É o caso da lavagem das mãos que precedia a
1234
Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fl. 76. 1235
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 147-147v. 1236
Cf. ANTT, IE, proc. 7330. 1237
Esta frase continuou a ser repetida pela comunidade de Belmonte no séc. XX: “Desde o nascente até o
poente, seja o grande Deus de Israel louvado para sempre” (Cf. Schwartz, Os Cristãos-Novos..., p. 69). 1238
Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 25v. 1239
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1240
Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., pp. 28-29.
277
oração1241
. A sua referência é relativamente comum nos processos, sobretudo entre os
presos vigiados no cárcere. O mesmo se aplicava à postura no momento da oração: de
pé, voltado para a parede ou para uma janela, meneando a cabeça e o corpo para a frente
e para trás, de braços afastados, mãos abertas e olhos erguidos para o céu. No cárcere,
Bárbara Filipe fora vista a rezar assim:
“[...] Bárbara Filipe se pôs defronte da fresta em pé, com as mãos erguidas debaixo
da toalha, a rezar por espaço de uma ora e, de quando em quando, as abria fora da
toalha com as palmas para diante e bulia com os beiços e meneava a cabeça para
baixo e andou passeando e rezando por espaço de uma ora com as mãos debaixo da
toalha erguidas [...].”1242
Outro gesto a que o Monitório de 1536 aludia era a chamada “bênção ao modo
judaico”: “[...] se os pays deitam a benção aos filhos, pondolhes as mãos sobre a cabeça,
abaxandolhe a mão pelo rosto abaxo, sem fazer o sinal da Cruz, a forma, & modo
judaico [...]”1243
. A menção a esta forma de benzer também é corrente nas confissões
dos réus algarvios, inclusivamente nos processos dos anos 30 e 40 do século XVII.
Alguns acrescentam as fórmulas que acompanhavam o gesto: «Deus de Abraão, Deus
de Isaac, Deus de Jacob, que deu a lei no Monte Sinai»1244
, «Benta sejas da bênção de
Deus», «A bênção de Deus vos cubra e vos faça boas mulheres»1245
.
Mas a vigilância inquisitorial obrigou à dissimulação deste e doutros comportamentos.
Por volta de 1622, Baltazar Rodrigues fora ensinado por Aires Gomes, jurista de Tavira:
“[...] que, quando lançasse a bênção a seus afilhados, fosse pondo-lhe a mão aberta
na cabeça, correndo-lha pelo rosto abaixo até lha beijar na boca e, então, lhe lançasse
a bênção, fazendo uma cruz com a mão, como se costuma, sem dizer nada [...].”1246
.
Um comportamento judaizante protegia-se de olhares devassadores ao envergar os
trajes da ortodoxia cristã.
Um Padre Nosso ao Santo Moisés
Retomemos o processo de Mor Mendes, a Buena Vida. Já depois de presa,
continuou a endereçar as suas orações ao Deus dos Céus, suplicando-lhe que a livrasse
das agruras do cárcere:
1241
Mor Mendes, a Buena Vida, fora ensinada a lavar as mãos com terra, quando não tivesse água por perto
(Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fl. 57v). 1242
Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fls. 32-32v. 1243
Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5v. 1244
Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fl. 4v. 1245
Cf. ANTT, IL, proc. 874, fl. 103v e 85. 1246
Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fl. 19v.
278
«Senhor, assim como vós abristes o mar por doze carreiras e passaram as doze
tribos de Israel, me queirais vós livrar assim, Senhor, como vós livrastes a Jonas,
profeta, do ventre da baleia, me queirais livrar, Senhor. Senhor, assim como vós
livrastes a Daniel, profeta, do lago dos leões, assim queirais me livrar a mim.»
Por vezes, acrescentava à sua súplica:
«Senhor, assim como vós livrastes a Santa Susana de quantos aleives lhe puseram,
me livrai, Senhor piedoso, e assim como vós encaminhastes pela Santa Estrela os
três Reis Magos, assim me encaminhes, Senhor, em bem.»1247
A referência às histórias de Daniel e de Jonas, enquanto exemplos da misericórdia
divina é comum a várias orações criptojudaicas. Charles Amiel encontrou uma súplica
similar no processo de um cristão-novo de Quintanar de la Orden, Juan de Mora1248
.
Segundo o autor, era inspirada numa litania cristã que enumerava várias personagens
bíblicas milagrosamente salvas da morte, mas também num selihah invocando os
milagres operados pelo poder de Adonai1249
.
Ora, Mor Mendes também coloca Jonas e Daniel, figuras do Antigo Testamento, ao
lado de elementos da narrativa da natividade, como os três Reis Magos ou a “santa
estrela”. Ela própria confessa que “misturava tudo junto”, que tanto guardava os jejuns
judaicos, como tomava as contas na mão e rezava por elas o Padre Nosso, a Avé Maria,
o Credo e a Salvé Rainha, tudo com intenção de cristã1250
.
Poderia ser apenas uma estratégia de Mor Mendes para desvalorizar o seu “desvio”.
Contudo, a absoluta necessidade de manter o sigilo sobre a fé e a ritualidade criptojudaica
potenciava não só a simplificação (e até a fragilização) doutrinal, como também o contágio
de elementos da única religião licitamente professada. O processo de Mor Mendes remonta
aos anos 60 do século XVI. Porém, com a sucessão de décadas e décadas de repressão
religiosa, os processos inquisitoriais indiciam a tendência para o avolumar dos exemplos de
contaminação doutrinal. Um caso paradigmático é a oferta da oração do Padre Nosso a
Moisés ou, como também aparece na documentação, ao “Santo Moisés”1251
. A sua
1247
Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fls. 61-61v. 1248
“Librame, Señor, como libraste a Daniel del lago de los leones, para que yo te sirva. Líbrame, Señor,
como libraste a Jonás profeta del vientre de la vallena, en las honduras de la mar, para que yo te sirua”
(Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Révue de l’histoire..., p. 575) 1249
Cf. Idem, Ibidem, pp. 505-506. A oração a que Amiel alude é a seguinte: “Salvanos y respondenos oy, y
en todo dia y dia por nuestra oracion, que nuestro loor tu. El que respondió á pobres, respondenos. [...] El
que respondió à Ionáh en entrañas del pesce, respondenos. [...] El que respondió à Daniel en pozo de leones,
respondenos. [...]” (Cf. Orden de Ros Asanah y Kipur traduzido en español y de nuevo enmendado y
añadido el Keter Malhut y otras cosas, Amesterdão, David de Castro Tartas, 1663, pp. 33-35). 1250
Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fls. 60-62. 1251
Isabel Pinta alegou que fora aconselhada por Estêvão Rodrigues, mercador, a encomendar-se ao
“Santo Moisés” para se livrar de uma dor de cabeça que a afligia (Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fls. 87-87v).
A invocação do “Santo Moisés” (ou “Santo Moisésinho”) e também da “Santa Rainha Ester” manteve-se,
279
confissão torna-se mais comum durante a terceira entrada da Inquisição no Algarve, quando
começam a rarear as referências a preces judaicas ou à simples invocação de Adonai. Note-
se que o Monitório de 1536 não contemplava esta prática, o que nos leva a crer que talvez
tenha sido adoptada posteriormente, fruto do recrudescer da opressão religiosa e, assim, de
um eventual processo de substituição da liturgia judaica pela cristã, mantendo a intenção
judaizante. Aliás, as confissões indiciam um esforço gradual em reduzir a exteriorização da
fé ilícita ao mínimo. E a este corresponde um segundo esforço – o de aproximação, pelo
menos aparente, ao Catolicismo.
Salvo casos extraordinários, todos os que se confessavam judaizantes também admitiam
fazer “obras de cristão para cumprimento do mundo”. Iam à missa, comungavam,
confessavam-se pelo Natal e pela Páscoa, jejuavam na Quaresma1252
. Examinados sobre os
conhecimentos doutrinais, a maioria recitava sem erros as principais orações cristãs (Pai
Nosso, Avé Maria, Credo e Salvé Rainha), em vernáculo ou latim, e referia os dez
mandamentos da Lei de Deus sem grandes dúvidas. Alguns até enumeravam os
mandamentos da Santa Madre Igreja, os artigos de fé, as obras de misericórdia e os sete
pecados capitais1253
. Sabiam a doutrina católica, talvez até melhor do que a maioria dos
cristãos-velhos, um conhecimento que se acentuava à medida que os anos avançavam e se
sucediam as entradas inquisitoriais1254
. Ao mesmo tempo, no segredo do lar, deixavam as
candeias acesas nas noites de sexta-feira, não trabalhavam aos sábados, jejuavam de estrela
a estrela. Esta dualidade angustiava alguns. Manuel Lopes rezava: «Senhor, leva-me à parte
onde vos possa servir sem temor», com a intenção de que “[...] Nosso Senhor o levasse para
terra de judeus para lá servir como judeu [...]”1255
.
Vestiram tão bem a pele que se lhes colou ao corpo? Elias Lipiner refere-se a esta
geração de cristãos-novos que tentou equilibrar a fé na “Lei Velha” com a que lhe foi
imposta pelo baptismo como a criadora de “[...] um judaísmo confuso, consistente num
misto de preceitos bíblicos e ritos católicos, uma espécie de sincretismo religioso tendente
até ao século XX, na comunidade marrana de Belmonte, onde ainda havia quem guardasse retratos dos
dois “santos” (Cf. Amílcar Paulo, Os Criptojudeus, Porto, Livraria Athena, [1970], p. 80). 1252
Inês Guterres ensinara ao neto António Francisco que, quando fosse à igreja, não deixasse de tomar a
água benta, mas dissesse: «Tomo-te por amor da gente e não por te haver mister». Quando estivesse na
missa e recebesse a hóstia, deveria pronunciar para si próprio: «Venho-te receber, não por te crer, nem te
adorar, senão por crer na Lei de Moisés bem e verdadeiramente». (Cf. ANTT, IE, proc. 5519, fls. 1v-2). 1253
Embora não seja uma discrepância muito acentuada, nos processos estudados verificamos que os homens
apresentam um conhecimento doutrinal mais sólido do que as mulheres, cuja grande maioria se limita a recitar
as quatro orações principais. Possivelmente, tal relaciona-se com os diferentes níveis de literacia. 1254
Vide, em anexo, gráfico 11.4, pp. 117-118. 1255
Cf. ANTT, IL, proc. 4467, fl. 53v.
280
a caracterizar-se por um novo ritual [...]”1256
. A identidade do criptojudaísmo reside
exactamente nessa hibridez, propiciadora de uma heterogeneidade de comportamentos
religiosos. É uma realidade complexa, repleta de nuances. Nathan Wachtel define-a como
um “[...] largo leque que se abre entre os dois pólos dos judaizantes fervorosos e dos
cristãos sinceros, passando por toda uma série de casos intermédios e de combinações
sincréticas [...]”, um conjunto de práticas e crenças composto por elementos que chegam a
ser contraditórios mas que, ao mesmo tempo, apresentam uma unidade, sustentada na
reminiscência de um passado comum, na fé dos ancestrais1257
.
As confissões presentes nos processos da Inquisição revelam essa diversidade.
Havia os que conheciam alguns princípios da religião judaica com a profundidade
possível num contexto de clandestinidade. Eventualmente, até tinham vivido em terras
onde o Judaísmo era livremente professado ou mantido contacto com alguém de lá
oriundo. Sabiam quando celebrar os jejuns, o que fazer nas noites de sexta-feira,
conheciam uma ou outra oração judaica. Sabiam e transmitiam esses conhecimentos a
quem lhes era mais próximo. No outro extremo, encontravam-se os que apenas tinham
acesso a alguns resquícios dessa religiosidade, tornados senso comum a partir do
momento em que a Inquisição passou a estar mais presente e com ela os éditos de fé, os
sermões dos autos, a pregação antijudaica nos púlpitos das igrejas.
Uns criam na Lei de Moisés. Outros na Lei de Cristo. Outros ainda nem sabiam
bem no que criam. Como Domingos Rodrigues, trabalhador no lugar da Taboeira,
termo de Albufeira, preso nos cárceres da Inquisição de Évora em 1646. Segundo
referiu na sua confissão, a mãe ensinara-lhe que “[...] queresse na Lei de Moisés e que
rezasse um Padre Nosso pela alma do mesmo Moisés e que quisesse na Lei de Moisés
e não ofendesse a Cristo [...]”. Tal como vira fazer a outros cristãos-novos, Domingos
lançava imundices no vinho que tinha para vender e entendia que isso também “era
judiar”. E continuou a confissão:
“Perguntado que cousa era querer na Lei de Moisés, disse que era rezar um Padre
Nosso por salvamento de Moisés e que isto fazia ele, confitente, todos os dias, e
que sempre crera firmemente na fé de Cristo Nosso Senhor e nela espera e esperou
sempre salvar-se e rezava o terço do rosário à Virgem Nossa Senhora do Rosário e
que o querer na Lei de Moisés fora por sua mãe lho ensinar e entender que nisso
não ofendia a Cristo Nosso Senhor, nem à sua santa fé [...]”
Domingos Fernandes “queria” na Lei de Moisés e “cria” na de Cristo, uma
distinção que equivocou os inquisidores. Ao longo do processo, a confusão
1256
Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 397. 1257
Cf. Nathan Wachtel, A fé da lembrança. Labirintos marranos, Lisboa, Caminho, 2003, p. 15.
281
permaneceu. Disse, na sessão de crença, que “[...] cria na lei de Moisés e a ele tinha
por Deus [...]”. Dias depois, explicava que “[...] entendia que querer na lei de Moisés
era o mesmo que crer nela [...]”1258
.
No fundo, Domingos Fernandes demonstrava não conhecer a natureza da sua fé. Era
cristão-novo e, como tal, naturalmente suspeito. Porém, mesmo quem se encontrava livre
de tais suspeitas, quem nascera sem o estigma do “sangue infecto”, não tinha,
necessariamente, um conhecimento mais profundo sobre os princípios que norteavam a
religião professada. A inacessibilidade aos textos sagrados fragilizava a educação
doutrinal do crente, fosse na Lei de Cristo, fosse na de Moisés.
Ao longo das sessões de confissão, os réus cristãos-novos deixaram transparecer um
manifesto pragmatismo na vivência da fé. Maria Pinta ouvira dizer que, se quisesse ter paz
com o marido e com os cunhados, deveria observar a Lei de Moisés, a qual também era boa
para salvar a sua alma e para ser rica e honrada1259
. Em Julho de 1631, Sebastião Dias
escutara Francisco Mendes, boticário de Faro, afirmar “[...] que esperava ter muita novidade
na sua vinha e em um pomar que ali tinha, porquanto cria na Lei de Moisés, que dava bens
a quem nela cria [...]”. Noutra ocasião, fora à casa do Dr. Gaspar Dias, o Mestre da Mula,
para lhe pedir um remédio para as pernas, ao que ele lhe respondera que o principal remédio
era crer na lei de Moisés1260
. A salvação eterna, a riqueza, a felicidade conjugal, a saúde, o
regresso dos que estavam longe, tudo era reservado a quem acreditasse na “lei velha”. E
isso tornava-a sedutora. Era essa a justificação que os réus apresentavam perante os
inquisidores. “Crer a lei de Moisés para salvação da alma” tornou-se numa fórmula,
permanentemente repetida. Aliás, demasiado repetida para se crer sincera.
A voz dos réus, escondida debaixo de inúmeras camadas de informação filtrada pela
instituição repressora, é predominantemente monocórdica. A maioria das confissões não
vai além da enumeração de um número restrito de práticas e de referências vagas aos
princípios doutrinais, muitas vezes confusas ou mesmo contraditórias. Segundo Amiel,
a opressão inquisitorial e a necessidade de uma disciplina de ocultação da fé, levou os
criptojudeus, como aconteceu com outras comunidades perseguidas, a reduzir o dogma
em proveito da ritualidade, entendida como uma forma de consciencialização e de
1258
Cf. ANTT, IE, proc. 6059. 1259
Cf. ANTT, IE, proc. 3939, fls. 165-165v. 1260
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 108, 182v-183.
282
comunhão entre os elementos de um grupo ameaçado1261
. Já vimos, porém, que muitos
elementos do “grupo” nem sequer comungariam essa fé oculta.
Os éditos de fé também privilegiavam a ritualidade. Herman P. Salomon sublinha a
sua dupla função pedagógica: do lado dos inquisidores, educavam a população para ser
capaz de identificar judaizantes entre os cristãos-novos; do lado dos cristãos-novos,
ensinavam às potenciais vítimas o que precisavam de confessar para garantirem a
sobrevivência. Os inquisidores também estariam conscientes de uma terceira função dos
éditos: o reavivar da memória, servindo de “manual de ritos e costumes judaicos ou
pseudo-judaicos”1262
. Discutível é se essa terceira função também constava dos
objectivos dos próprios éditos.
Verificamos que algumas práticas mencionadas no Monitório de 1536 tenderam a
desaparecer nos éditos posteriores, enquanto outras foram acrescentadas. Em 1611, um
édito de fé da Inquisição de Lisboa já não mencionava a celebração da “Páscoa do
Corno”, mas incluía o costume da halá e o de retirar a gordura à carne e a landoa do
quarto traseiro da rês miúda, práticas não mencionadas no Monitório1263
. Anos mais
tarde, um edital de 1640 omitia a degolação ritual das aves, os costumes das noites de
São João e do Natal, a bênção “ao modo judaico”, a circuncisão e a raspagem dos óleos
sagrados impostos no baptismo e no crisma1264
. As práticas que progressivamente
desapareceram ou foram acrescentadas ao conteúdo dos éditos de fé têm, em geral,
paralelo com a matéria das confissões dos réus.
Até que ponto terão sido os cristãos-novos influenciados pelo que escutavam ou
liam nos éditos? Qual a importância destes no reavivar de celebrações e costumes
ameaçados pelo esquecimento? É necessário distinguir o que era confessado do que era
vivido. Como refere Miriam Bodian, os padrões de comportamento dos conversos
também reflectem a mobilização de estratégias humanas para lidar com o conflito, o
estigma e a sobrevivência1265
. A sucessão de décadas e décadas de perseguição religiosa
teve reflexo na própria atitude dos cristãos-novos face à perseguição inquisitorial.
Ganharam defesas. Aprenderam a confessar aos inquisidores o que os inquisidores
esperavam ouvir. Sabiam como funcionava a máquina. Os éditos, os sermões, os
interrogatórios instruíam os confessantes, orientavam as confissões. Uns confessavam
1261
Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Revue de l’histoire..., p. 541. 1262
Cf. Salomon, “Spanish Marranism...”, Sefarad, vol. 67:2, Jul.-Dez. 2007, pp. 385-386. 1263
Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 256, fls. 247-250. Este édito é idêntico a um outro datado de 12 de Fevereiro
de 1594, também emitido pela Inquisição de Lisboa (Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 369, fls. 303-308). 1264
Vide tabela comparativa, em anexo, pp. 86-88. 1265
Cf. Bodian, “Men of the Nation...”, Past and Present..., p. 50.
283
“culpas” não cometidas porque sabiam que assim conquistariam um tempo de cárcere
mais curto e uma pena mais leve. Outros limitavam-se a satisfazer as expectativas dos
inquisidores. Entre um e outro caso, havia uma série de variações: os que seriam
realmente sinceros na sua confissão, os que não conseguiam fazer coincidir o que
confessavam com o rol de culpas e eram acusados de diminutos, os que se mantinham
negativos, ou então convictos no seu “judaísmo” até ao fim, ambos condenados à morte,
uns a invocar Cristo, outros Adonai. Mas o que ia na consciência de cada réu não se
reflecte, infelizmente, nos fólios dos processos.
Já constatámos, anteriormente, o quão comuns eram as violações do segredo
inquisitorial. Com a multiplicação das prisões no interior da comunidade, poucos
entrariam ingenuamente no cárcere, sem saber o porquê da sua prisão, quem os
denunciara e o que denunciara. Vejamos os processos resultantes da vaga de prisões em
Faro, na década de 30 do século XVII. A maioria das confissões parecem formatadas:
guardavam os sábados de trabalho em honra da Lei de Moisés, não comiam carne de
porco, lebre, coelho, ou peixe sem escama, jejuavam às segundas e quintas-feiras de
estrela a estrela, rezavam um Padre Nosso ao Deus dos Céus (ou a Moisés), varriam a
casa às avessas. Era isto o que restava da “lei velha”? Faro, primeira metade do século
XVII: uma cidade voltada para o comércio, com um porto muito frequentado por
mercadores estrangeiros, em constante movimento de mercadorias, pessoas e, por
conseguinte, de informações, de rumores, de ideias. Muitos réus tinham parentes a residir
fora de Portugal, inclusive em locais onde o Judaísmo era tolerado. Alguns até chegaram
a viver no estrangeiro. Como ignorar o que vinha de fora? Como soltar a amarra?
5. NÓS E ELES. ENTRE A ASSIMILAÇÃO E O OSTRACISMO
Uma religiosidade repleta de contaminações doutrinais e de vivências distintas – assim
poderíamos definir, em traços largos, a fé evidenciada pelos cristãos-novos que
povoaram os cárceres inquisitoriais e sobre a qual apenas restam testemunhos parciais e,
por vezes, muito ambíguos.
I. S. Révah distingue três tipos de atitudes religiosas: os cristãos-novos que abraçaram
sinceramente o Catolicismo; os que não possuíam convicções religiosas bem definidas,
fazendo-as depender dos seus interesses económicos; e os que realmente praticavam o que
284
se pode chamar de “religião marrana”1266
. Talvez a realidade fosse ainda mais complexa,
incapaz de se inscrever em qualquer tipologia. Ora, essa diversidade extravasava o
domínio religioso, reflectindo-se no posicionamento do indivíduo na sociedade e, mais
especificamente, na interacção com a maioria cristã-velha.
Judeu!
O Corpo de Deus em Julho e a festa de Nossa Senhora da Vitória em Agosto – por
ocasião das duas festividades, fazia-se “a dança dos judeus” em Faro. Os participantes
andavam pelas ruas a berrar “mil vitupérios e injúrias” às portas dos cristãos-novos. É
Pedro de Seixas quem o refere, em 1635, nas contraditas do seu processo inquisitorial.
Alguns parentes da sua mulher eram dos mais assíduos participantes na “dança” e, por
isso, os cristãos-novos da cidade haviam jurado vingança. Ele fora a vítima1267
.
A “dança dos judeus” não era um reflexo da perseguição inquisitorial que, naqueles
anos, abalava a cidade de Faro. Tratava-se de algo mais enraizado, de uma tradição.
Recuando no tempo, encontramos outros exemplos do quanto o sentimento antijudaico
estava implantado na sociedade. Por altura da Quaresma de 1561, João Rodrigues,
andando a passear por Tavira com Garcia Fernandes, o Codorniz, viu uma altercação
entre dois rapazes – um chamara «judeu» ao outro. João ainda tentou apartá-los mas
Garcia Fernandes aconselhou-o a não o fazer: «Deixai-os que até aí pode chegar que, por
derradeiro, esses são filhos de Deus e toda a lei há-de ser a dos judeus e essa é a
melhor»1268
. Em 1561, a Inquisição ainda não havia entrado em força na cidade de Tavira,
como aconteceria logo no ano seguinte. Mesmo assim, “judeu” era já uma ofensa
suficientemente grave para acicatar os ânimos. Havia séculos que traduzia todos os vícios.
Obras medievais de apologética antijudaica traduziam os estigmas que viriam a
perdurar na memória colectiva: o deicídio, a usura, a traição, a cobardia, a maldade
congénita. A legislação promovia a segregação dos judeus, limitando-os a bairros
próprios e vedando-lhes o acesso a determinados cargos e ofícios. A convivência entre
os dois grupos era entendida como um perigo para a fé cristã. Com a expulsão e a
conversão geral, a minoria judaica foi substituída pela minoria cristã-nova. Em termos
legais, os recém-convertidos eram igualados aos cristãos-velhos, o que lhes permitiu,
1266
Cf. I.-S. Révah, “Les Marranes”, REJ, t. CXVIII, 1959-1960, p. 53. 1267
Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fls. 77v-78. 1268
Cf. ANTT, IE, proc. 12818, fls. 23v-24.
285
num primeiro momento, o acesso a cargos e profissões até então interditos. Os mais
altos estratos da sociedade abriam-se aos que haviam nascido judeus ou de pais judeus.
As rivalidades exacerbavam-se1269
. Em 1506, o massacre de Lisboa reflectiu os ódios
efervescentes1270
.
A abertura da sociedade aos recém-convertidos não foi plena. As disparidades
persistiram. Em Lagos, os cristãos-novos lamentavam-se da desigualdade na
tributação fiscal: “[...] dizendo que, quando nessa vila dá alguma aposentadoria, sendo
eles poucos, os cristãos velhos muitos, toda ou a maior parte da aposentadoria se lança
a eles [...]”. A mesma situação repetia-se no lançamento das fintas. A 3 de Dezembro
de 1521, D. João III respondia ao apelo dos cristãos-novos lacobrigenses,
determinando que “[...] se nessa vila houver de lançar alguma finta, se não lance sem
ser presente algum cristão novo com os lançadores, o qual será elegido pelos cristãos
novos dessa vila para estar por sua parte ao lançar as ditas fintas e taxas [...]”1271
.
Veremos que, anos mais tarde, o cristão-novo eleito lançador da finta seria
constantemente renegado pelos seus congéneres1272
.
O preconceito sobrevivera à conversão geral, alimentado pelas dúvidas sobre a
sinceridade da sua adesão ao Cristianismo. Ao cristão-novo era associada a propensão
para a heresia, para a traição da fé que abraçara, mesmo que só aparentemente, pelo
sacramento do baptismo. Sobre ele caía a suspeita de continuar fiel à “Lei Velha”.
Ao enumerar, nos éditos de fé, os comportamentos estranhos à ortodoxia católica, a
Inquisição definia o método de identificar o Outro e tornava a denúncia numa obrigação
moral do bom cristão, com vista à preservação pela integridade da Igreja e da própria
alma. O silêncio seria punido com a excomunhão. A questão da consciência, da
necessidade de uma boa confissão, servia de pretexto à vingança de ódios passados,
1269
Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, “O Judeu na mentalidade portuguesa do século XVI”, I
Simpósio Interdisciplinar de Estudos Portugueses. Actas, vol. I, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1985, pp. 147-169; Idem, “Mentalidade antijudaica em
Portugal (séculos XIV-XVI)”, Judaísmo e Inquisição...., pp. 67-104; Humberto Baquero Moreno,
“Movimentos sociais antijudaicos em Portugal no século XV”, Marginalidade e conflitos sociais em
Portugal nos séculos XIV e XV. Estudos de História, Lisboa, Editorial Presença, 1985, pp. 79-88. 1270
Vide Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto, Lisboa, 19 de Abril de 1506. O Massacre dos
Judeus, Lisboa, Alêtheia Editores, 2007. 1271
Esta carta foi confirmada por D. Sebastião a 28 de Março de 1578. (Cf. ANTT, Confirmações gerais,
liv. 9, fl. 189). 1272
Segundo artigos de contraditas, alguns cristãos-novos, ao servirem de lançadores de fintas, teriam
passado a atrair os desafectos da gente de nação. São os casos de Manuel Nunes (mencionado nas
contraditas do processo da cunhada Branca Dias: Cf. ANTT, IE, proc. 6726, fl. 87); Manuel Henriques e o
cunhado Francisco Lopes, lançadores em 1633 e 1630, respectivamente (Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 107.
Vide em anexo, p. 431); e Matias Dias, o Velho (referido no processo de Pedro de Seixas: Cf. ANTT, IE,
proc. 1836, fl. 77).
286
uma catarse para o cristão-velho que se sentia lesado pelo crescente poder dos
descendentes da “raça hebreia”.
O baptismo não apagara os “vícios” dos antepassados. Vejamos alguns dos
argumentos apresentados por Cristóvão de Mendonça, na sua defesa:
“Que os Judeus façam mal e jurem falso, seu costume e ofício é antigo, mas que
sejam cridos é mais mofina e desgraça de quem se eles lembram que falta de seu
conhecimento [...].
“[...] mais que esta nação é toda feita de uma inveja que é um mal atractivo e
raivoso e que mais costuma tomar as dores na boa capa alheia do que sente a ruim
com que se cobre [...].
“[...] quando juram, mais se pode temer que põem mãos violentas nos Evangelhos
do que outorgam consentimento neles [...].
“ [...] a riqueza que ela [gente de nação] tem nós lha damos e de nós procede,
aproveitando-nos de seus cabedais para nossas misérias com que as acrescentam e
no-las fazem maiores, assim que o maná de que hoje se sustentam não é mais que
uma cobiça pouco escrupulosa e um modo de furtar com menos perigo que o das
estradas, a quem chamam trato e mercancia e outros disfarçam com nome de
negócio por se livrarem da pena das leis, porque em todas é proibido levar o alheio,
cuja malícia o direito preveniu, pois cada dia os castiga por onzeneiros [...].
“[...] ninguém lhe pode tirar serem homens de conta, peso e medida mas é porque
todas as suas são falsas, os pesos tão diminutos como eles nas confissões e a conta
só à espécie de multiplicar por qualquer caminho que seja [...]. 1273
A mentira, a inveja, a usura – as acusações de Cristóvão de Mendonça não diferem
muito das que povoavam os escritos antijudaicos medievais. O mesmo discurso
persistiu para lá da conversão.
Num contexto de perseguição, “judeu”, mais do que uma ofensa, era uma ameaça,
um nome potenciador de todas as suspeitas. António Vilarinho sentiu-o na pele. A 19 de
Junho de 1640, o seu filho, um bebé de 6 meses, foi atacado por uma porca pertencente
a duas irmãs de Faro, Maria e Domingas de Barros. O animal mordeu a mão da criança
e António, em reacção, esfaqueou-o. As duas mulheres acudiram, chamando-lhe
“[...] nomes muito infames e muito afrontosos [...]” e, ainda mais grave, caluniaram-no
de judeu, “[...] cuja afronta sentiu ele tanto que perdera antes trezentos cruzados e
quatrocentos que ver-se assim afrontado e injuriado por gente tão humilde [...]”. A
versão das duas irmãs é diferente. Além de ter ferido a porca, António Vilarinho
ameaçara que lhes faria o mesmo. Seguiu-se um chorrilho de calúnias. Maria e
Domingas responderam “[...] que melhor era ser mulata e ser seu irmão cão, como lhe
ele chamava, do que ser judeu, nem serem elas judias [...]”. Não o tinham chamado
judeu, diziam. Porém, António afirmava o contrário: “[...] com ânimo de o publicarem
1273
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 326-341.
287
por tal e por palavras expressas, lhe chamaram o dito nome [...]”. O caso prosseguiu
com trocas mútuas de acusações – António Vilarinho era “soberbo e mal falante”,
Domingas e Maria de Barros tinham “[...] parido de pessoas que não foram seus
maridos e é gente de lavadoiro e poço, pelo que mal articulam de recolhimento [...]”1274
.
Bem sucedido na sua defesa, António Vilarinho foi absolvido como cristão-velho.
O uso do hábito penitencial acentuava o estigma. Francisca Dias, a cumprir em
Ourique a pena que lhe fora imposta no auto-de-fé de 28 de Setembro de 1597,
costumava andar pela rua sem o sambenito, porque tinha “[...] medo de os moços lhe
tirarem as pedradas, porque o costumam a fazer na dita vila às pessoas que trazem
penitência [...]”1275
. Através do hábito penitencial, a Inquisição penalizava o judaizante
com a humilhação pública. A família também não ficava imune. No lugar da Raposeira,
termo de Lagos, Branca Dias era alvo de injúrias devido à prisão do marido, Fernão
Pinto, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores no auto
de 2 de Agosto de 1587. Ainda nesse mês, numa manhã de domingo, alguém colocou à
sua porta um boneco de palha vestido com um sambenito. Aos pés do boneco, estava
um rótulo. Segundo o padre Salvador Tomás, tratava-se de “[...] um papel pequeno,
escrito com umas letras que, segundo sua lembrança, estavam a modo de trovas e
falavam em sambenito [...]”. Um rapaz que pegou no boneco, quando Branca Dias o
arrancou da porta, referiu que “[...] nele se dizia que, por os tratos que ao dito Fernão
Pinto deram, confessara tudo [...]”. Sobre os responsáveis existiam suspeitas, mas
poucas certezas. Talvez dois rapazes da terra, cristãos-velhos, de famílias rivais do
casal. A única evidência era que o boneco representava Fernão Pinto, então a cumprir a
pena em Évora, e servia de afronta à sua família1276
.
Para o cristão-velho, cujo cônjuge fora penitenciado pela Inquisição enquanto
judaizante, a humilhação ganhava outros contornos. Ele via abater -se sobre si um
estigma que lhe era estranho pelo nascimento, mas comum aos seus descendentes. O
“sangue infecto” entrara-lhe na genealogia e o sambenito envergado pelo cônjuge
constituía a prova inequívoca de tal.
1274
Cf. ANTT, IE, proc. 133, fls. 67-71v. 1275
Cf. ANTT, IE, proc. 6441. 1276
Cf. ANTT, IE, proc. 2891.
288
O que Deus uniu o sangue separou
“Maria Rodrigues,
Cá tive por notícia que se fizera o auto da fé e que não saístes como eu esperava.
Bom é confessar a verdade que quem assim o não fizer, não fará como cristã. Agora
o que resta é que me não escreva porque eu não sou o que vós cuidavas para haver de
virdes para meu poder, porque não quero ver em minha casa penitência de mulher
que tive por cristã. Podeis tratar de vossa vida como vos parecer melhor, pois sabeis
minha qualidade, que na vila ninguém me faz vantagem de muito nobre. Sendo esta
vila tão autorizada, me haverão a predicar se tal me viera para casa, pela boa
reputação em que estou, pois sendo cristão-velho, sem nenhuma raça, não posso nem
quero mulher com penitência, e com isto me resolvo. Albufeira, 15 de Abril de 1651.
Gaspar de Ataíde Mascarenhas, vosso marido que foi e já não é”1277
Maria Rodrigues tinha sido presa em Março de 1649. Uma quinta, figueirais, vinhas,
terras de pão e casas na vila de Albufeira - o inventário do seu processo evidenciava
alguma riqueza, fruto de um passado familiar ligado à terra e de um casamento anterior
com Domingos Nobre, lavrador cristão-velho. O pai também era lavrador e o seu avô,
Gonçalo Filipe, fora procurador do número. Através do casamento com cristãos-velhos,
a sua família fora “limpando o sangue”, geração após geração. Resultado: Maria
Rodrigues, tal como a maioria dos seus primos direitos, tinha apenas um quarto de
cristã-nova. Mas isso não poupou a família do cárcere inquisitorial. O pai, três dos
irmãos e alguns dos tios paternos foram presos pela Inquisição de Évora. Quanto ao
marido, temia a vergonha pública de receber em casa uma mulher de sambenito vestido.
Renegou-a, apesar dos quatro filhos em comum, todos ainda crianças, a mais pequena
com dois anos de idade. Pouco mais de um mês após a dita carta, os inquisidores
levantaram a penitência de Maria Rodrigues e mandaram-na em paz. Desconhecemos se
Gaspar de Ataíde a teria então recebido de volta.
O caso de Maria Rodrigues não foi o único. Em 1587, Leonor Simões suplicava que
lhe fosse levantada a pena porque era “[...] casada com um Pero Mendes, homem honrado
de Lagos, o qual não quer fazer vida com ela, antes se quer ir e deixá-la por não viver com
tanta honra [...]”1278
. Anos mais tarde, em 1637, o Padre Diogo Afonso Cabrita, de Loulé,
intercedia por Maria Custódia, casada com um cristão-velho, Bartolomeu Afonso, que
jurava abandoná-la se não lhe tirassem a penitência, deixando desamparados os seus
filhos, “[...] que são pequeninos e de peito [...]”1279
. Os maridos cristãos-velhos
ameaçavam deixar à sua sorte as mulheres penitentes. Por outro lado, as esposas cristãs-
1277
Cf. ANTT, IE, proc. 4264. 1278
Cf. ANTT, IE, proc. 6773. 1279
Cf. ANTT, IE, proc. 5281, fl. 32.
289
velhas tentavam evitar a vergonha e o desprezo da família, pedindo aos inquisidores o
levantamento da penitência dos cônjuges ou, simplesmente, a sua permanência longe do
lar. Foi o que suplicou Maria Ribeira, de Vila Nova de Portimão, em 1592:
“[...] porque ela, suplicante, é de parentes muito honrados e dos principais da terra
e do regimento dela, com os quais se tiveram por mui afrontados em ela suplicante
casar com o dito seu marido, por ser cristão novo, e se o virem na dita vila com sua
penitência tratarão mal a ela, suplicante, e a vexarão e a porão em condição de não
fazer vida com seu marido e fará muito escândalo na terra e, além disso, tem duas
filhas mulheres de idade para casar e em termos de as casar e será parte, vendo-o na
dita vila com sua penitência, de não haver efeito ou amparo delas.”1280
Pela sua honra e pela das suas filhas, Maria Ribeira terminava pedindo que o
marido, Francisco Lopes, continuasse a cumprir a pena em Évora. Os inquisidores
acederam em parte – ele permaneceria na cidade, caso o desejasse. Mas não foi esse o
desejo de Francisco Lopes que, no ano seguinte, já estava em Vila Nova de Portimão,
preso na cadeia pública por incumprimento da penitência1281
.
Estes episódios são exemplares do número crescente de casamentos mistos no
Algarve. Se, nos anos 50 e 60 do século XVI, apenas uma minoria dos cristãos-novos
então processados estavam casados com cristãos-velhos (5%), com o avançar dos anos
e, sobretudo, com a crescente repressão inquisitorial, os casamentos mistos perderam o
seu carácter excepcional. Na segunda vaga de prisões no Algarve, entre os réus cristãos-
novos casados, cerca de 23% eram-no com cristãos-velhos. Já nas décadas de 30 e 40 do
século XVII, essa percentagem rondava os 50%1282
.
O casamento com um cristão-velho podia constituir um veículo de ascensão social.
Por outro lado, a fortuna associada a determinadas famílias cristãs-novas revelava-se um
atractivo. Não obstante as medidas propostas para desencorajar os enlaces entre nobres e
cristãos-novos1283
, ao longo do século XVII, assistimos, no Algarve, à crescente
aproximação da gente de nação endinheirada à nobreza local, vinculada à terra e ao poder
concelhio1284
. Recordemos o caso da morte de Francisco Lopes Serralvo: uma das
suspeitas, Guiomar de Leão, cristã-nova dos quatro costados, era casada com um vereador
1280
Cf. ANTT, IE, proc. 7534. 1281
Cf. ANTT, IE, proc. 6982. 1282
Vide em anexo, gráfico 9.3, p. 111. 1283
Em 1614 e 1642, foram publicados decretos proibindo o casamento de cristãos-novos com nobres.
(Cf. Francisco Bethencourt, “Cronologia....”, A Inquisição em Portugal..., pp. 25, 27). Porém, na
prática, tais enlaces continuaram a realizar-se. Aliás, em 1629, a Junta de Tomar aprovou outras duas
medidas que visavam impedir o casamento entre nobres e cristãos-novos, determinando que o dote da
noiva cristã-nova não poderia exceder os dois mil cruzados e que, caso o casamento se realizasse, o
noivo perderia o foro de fidalgo, honras, privilégios e cargos que detivesse (Cf. Figueirôa-Rêgo, A
honra alheia..., pp. 452-453). 1284
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 348-349.
290
de Lagos, também ele suspeito do crime1285
. Em Loulé, Inês de Sousa era filha de Manuel
da Aragão, homem nobre, e de Branca dos Santos, cristã-nova. Duas das irmãs tinha-se
casado com cristãos-velhos que “viviam de sua fazenda” e descendentes de ilustres
famílias da vila: Maria de Sousa com Diogo Ribeiro de Ataíde e Isabel Pinta com Diogo
de Faria Moniz1286
. Este último alegou, em defesa da esposa, que a sua família nunca fora
alvo da acção do Santo Ofício “[...] por ser gente grave e se emparentarem sempre com
gente honrada [...]”1287
. Não é por acaso que, em 1637, alegando-se inocente, Francisco
Mendes de Góis dizia-se alvo de uma conjura de “[...] todas as pessoas de nação e pessoas
nobres da cidade de Faro, por estarem misturadas com os da nação [...]”1288
.
A aproximação entre as famílias cristãs-novas e a aristocracia local não se limitava
aos laços matrimoniais, mas também ao vínculo espiritual criado através do
apadrinhamento1289
. Vejamos dois exemplos. O comendador Jorge Furtado de Mendonça
era padrinho de baptismo de Martim Pinto (filho do advogado Pedro Fernandes de
Oliveira) e de Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, além de padrinho de crisma do
contratador Jorge Lopes da Gama1290
. Quanto a Beatriz Filipe, mãe de Guiomar de Leão e
uma das envolvidas no assassinato de Francisco Lopes Serralvo, dizia-se afilhada de um
homem nobre de Vila Nova de Portimão, Cristóvão Rodrigues1291
.
Os casamentos mistos quebravam o estigma de que os cristãos-novos apenas se
casavam entre si, visando a sobrevivência da fé mantida em segredo. Desta forma, tal
poderia servir de prova do quanto o réu se apartara do convívio com a “gente de nação”.
Assim argumentou Estêvão Lopes, mercador natural de Almodôvar e residente em Vila
Nova de Portimão, preso em 1619:
“Provaria que por ele ser tão bom cristão e ser pouco afeiçoado às pessoas de
nação, pretendeu apresentar seus filhos como cristãos-velhos, como o fez, casando
o seu filho Sebastião de Carvalho com Dona Margarida Cabral, filha de Nuno
Fernandes Cabral e de Dona Inês, sua mulher, que são fidalgos nobres e honrados,
e outro filho que ele, réu, tem o ia ordenando para clérigo e havia de tomar ordens
de epístola agora e por não ter idade, as não tem já há muitos dias [...]”1292
Desconhecemos se Nuno Fernandes Cabral teria promovido, com tamanho
entusiasmo, o casamento da filha com um cristão-novo. Com os exemplos de Maria
1285
Vide supra, pp. 104-109. 1286
Cf. ANTT, IE, proc. 8173. 1287
Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fl. 87. 1288
Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fl. 132. 1289
Cf. Miguel Maria Telles Moniz Côrte-Real, Fidalgos de cota de armas do Algarve, Camarate, Edição
de autor, 2003, p. 491. 1290
Cf. ANTT, IL 9829, fl. 16v ; IL, proc. 7941, fl. 45v; IE, proc. 3363, fl. 29v. 1291
Cf. ANTT, IE 5908. 1292
Cf. ANTT, IL, proc. 3071, fl. 31.
291
Rodrigues, Leonor Simões e Mor Ribeira, vimos como as tensões se mantiveram no
seio das famílias, ateadas pela perseguição inquisitorial.
Retomemos o caso de Cristóvão de Mendonça que, não obstante os ofícios
desempenhados ao serviço da coroa – era executor da propriedade do reino do Algarve,
fora juiz da alfândega de Faro e chegara mesmo a substituir o capitão-geral –, também
acabou nos cárceres da Inquisição de Évora, acusado de judaizante. Ele nascera em
Lisboa, onde viveu até aos 15 anos, idade com que partiu para Coimbra e se colocou ao
serviço do reitor Afonso Furtado de Mendonça. A sua família era pouco conhecida em
Faro, salvo o seu pai, Jorge de Mendonça, que também desempenhara o cargo de executor
da propriedade. Ao casar-se com uma mulher “de nação”, Cristóvão consolidou a fama de
cristão-novo. Quando a Inquisição prendeu a sua esposa, a situação agravou-se.
O arrependimento por este enlace e o ódio da família da mulher alicerçaram a defesa
de Cristóvão de Mendonça. Toda a sua desdita começara no casamento, quando tomou
“[...] uma embarcação tão perigosa como a de uma mulher em que fiz naufrágio [...]”.
Tudo não passara de um erro “[...] em que a juventude embica muitas vezes e em que
uns acertam, outros se despenham, e muitos, de diferentes qualidade, as honras
empenharam na cobiça [...]”. O pai tinha falecido havia pouco tempo e a família de
Beatriz Gomes era afamada de muito rica. Cristóvão deixou-se enlear e casou-se. As
consequências fizeram-se sentir mais tarde1293
.
A ameaça de um casamento misto seria outra na perspectiva dos cristãos-novos, em
particular dos que judaizavam. O marido ou a esposa, sendo cristãos-velhos, tornavam-
se potenciais denunciantes. O lar deixava de ser um refúgio para a vivência clandestina
da fé interdita. Havia que esconder, havia que dissimular, mesmo entre quatro paredes.
Apesar de tudo, alguns conseguiram manter a dualidade religiosa longe das suspeitas do
cônjuge. Quando se apresentou perante a Inquisição de Évora, em 1561, Branca de
Sousa confessou que continuara a celebrar a Páscoa do Pão Ázimo, a guardar o
descanso sabático e a fazer os jejuns judaicos mesmo após o casamento com Francisco
Ribeiro, cristão-velho. Afinal, o marido era mercador e ausentava-se de Lagos por
largos períodos de tempo. Não passava 8 dias seguidos em terra, dizia Branca1294
. Ela
1293
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 341v-342v. Vide o texto completo da defesa de Cristóvão de
Mendonça em Carla da Costa Vieira, “«Da cor do cárcere vestido». A defesa de Cristóvão de Mendonça
perante a Inquisição de Évora”, CES, n.º 10, 2010, pp. 503-536. 1294
Cf. ANTT, IL, proc. 6571, fls. 3-4.
292
chegara mesmo a confidenciar a Diogo Lobo, também cristão-novo: «Vedes-me aqui,
estou casada com Francisco Ribeiro e ainda faço os jejuns da Rainha Ester»1295
.
A integração de um elemento estranho na família comportava riscos. Porém, entre os
processos estudados, não encontrámos qualquer testemunho de um cristão-velho que
tenha denunciado o seu cônjuge cristão-novo, isto apesar da profusão de casamentos
mistos. Nem sequer durante a visita inquisitorial de 1585. Embora não se tenha
concretizado na prática, a ameaça continuava a existir. Beatriz Lopes proibiu o casamento
da filha Guiomar Simões com um cristão-velho, Álvaro Lourenço, escrivão de notas.
Apesar da oposição dos pais, Guiomar acabou por se casar “a furto”. Não evitou, porém,
o castigo – foi trancada numa câmara da casa, sozinha e à fome. Segundo uma vizinha,
Beatriz Lopes repreendia a filha, clamando: «Mal aventurada, para que te casaste com
cristão velho? Casaras te com um da minha lei e dera-te quanto tinha». Álvaro Lourenço
havia reclamado o dote, mas o pai de Guiomar Simões recusara-se a dá-lo por ele não ser
cristão-novo1296
. Talvez reconhecesse as consequências do casamento da filha com um
homem que não era “de nação”: afastá-la-ia da fé em que fora clandestinamente educada,
mas também da própria família. Longe do círculo familiar, ela tornar-se-ia numa potencial
delatora, o que, de facto, veio a acontecer – Guiomar Simões acabou por denunciar os
pais durante a visitação de 1585. Além disso, havia as crianças fruto dessa união,
permanentemente num limbo, meio cristãos-novos, meio cristãos-velhos.
“Uma migalha de cristão-novo”
“Os judeus deste tempo não é só geração mas ofício, pois em todos se ocupam, e há
alguns que têm uns quartos e nesgas tão cerzidas que se o tempo, em uma ocasião
destas, lhe não descobre o fio, apenas se lhe enxerga a costura e em que, algumas
vezes, os comissários desta mesa se embaraçam [...]”1297
As palavras são novamente de Cristóvão de Mendonça. Consequência directa do
aumento do número de casamentos mistos, multiplicavam-se os indivíduos que apenas
possuíam as tais “nesgas” de cristão-novo. Ora, o executor não se enganava ao afirmar
que, por vezes, essas eram bem “cerzidas”. Alguém com dezasseis avos de cristão-novo,
ou seja, com um trisavô “de nação” perdido algures na sua genealogia, ainda era julgado
1295
Cf. ANTT, IL, proc. 3270, fls. 15v-16. 1296
Cf. ANTT, IE, proc. 8086, fls. 3-8v. 1297
Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 349.
293
enquanto cristão-novo. Porém, a determinação da qualidade de sangue desses indivíduos
poderia ser muito problemática e criar os ditos “embaraços” à Inquisição.
Guiomar de Ataíde foi presa por culpas de judaísmo em 1638, junto com a irmã
Antónia Mascarenhas. As duas eram cristãs-novas da parte da mãe, segundo afirmavam
as testemunhas acusatórias. O “sangue hebraico” proviria do seu bisavô, Clemente Filipe,
cujas origens eram algo obscuras. Enjeitado à porta da igreja de S. Clemente, em Loulé,
Clemente Filipe fora criado na casa do governador D. Pedro de Mascarenhas, tendo-o
acompanhado para a Índia. Em África, combatera ao lado de D. Nuno de Mascarenhas e
fora armado cavaleiro. Numa devassa em Loulé, falou-se sobre um filho de Clemente que
teria sido preso pela Inquisição, Fernão Baldaia1298
. Porém, não se encontrou no Tribunal
de Évora qualquer notícia sobre a prisão desse alegado tio-avô de Guiomar de Ataíde. Na
verdade, Fernão Baldaia fora preso pela Inquisição de Lisboa, em 1566, acusado de
blasfémia, e, na mesa, afirmara ser cristão-novo por parte do pai1299
. Supostamente
desconhecido dos inquisidores de Évora, o processo de Fernão Baldaia não pesou na
resolução dos casos de Guiomar de Ataíde e Antónia de Mascarenhas. Quanto a Clemente
Filipe, segundo determinava a lei, a qualidade do seu sangue estava livre de qualquer
suspeita, “[...] pois os enjeitados, a que se não dá pai, nem mãe, serem sempre, conforme
a direito, tidos por cristãos-velhos [...]”1300
. Teria também pesado a ascendência social das
duas irmãs, ambas casadas com homens honrados de Loulé. Assim, a hipotética parte,
bem ínfima, de “sangue judeu” que correria nas suas veias foi esquecida. Antónia
Mascarenhas e Guiomar de Ataíde acabaram reconciliadas como cristãs-velhas.
As questões levantadas na determinação da qualidade do sangue dos réus não tiveram a
mesma expressão durante a primeira vaga de prisões no Algarve, na qual os cristãos-novos
inteiros constituíram uma maioria esmagadora entre os processados - 98%. O número
decresceu na vaga seguinte (84%) e, já no século XVII, a percentagem de cristãos-novos
inteiros presos durante as décadas de 30 e 40 tornou-se minoritária (35%)1301
.
Perante os processos inquisitoriais, é difícil avaliar a posição na sociedade de quem
só tinha uma parte de cristão-novo. As perspectivas chegam a ser contraditórias. Por um
lado, a documentação indicia que a mácula do “sangue infecto”, por mínima que fosse,
continuava a ser motivo de exclusão. Por outro, muitos réus sublinhavam a sua parte de
1298
Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fls. 14-14v, 54-54v. Vide em anexo, pp. 445-447. 1299
Cf. ANTT, IL, proc. 12096. Fernão Baldaia era tabelião em Loulé, por carta de 6 de Junho de 1535
(Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Padrões, Doações, Ofícios e Mercês, liv. 73, fl. 6v). 1300
Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fl. 90. 1301
Vide em anexo, gráfico 9.4, p. 112.
294
cristãos-velhos e, na sessão de genealogia, tentavam ocultar ou desvalorizar a “nesga de
sangue hebraico” que lhes corria nas veias.
Inês Martins, de Vila Nova de Portimão, referia que era cristã-velha, mas ouvira dizer
que a sua avó materna tinha “uma migalha de cristã-nova”. Também cristão-velho era o seu
marido, Manuel Gonçalves, almocreve que morrera em Alcácer Quibir ao serviço de D.
Sebastião. Recusando-se a corroborar as culpas que a conduziram aos cárceres, Inês Martins
apresentou as contraditas. O argumento era simples: a animosidade de todos os cristãos-
novos da vila por ela se recusar a manter qualquer tipo de conversação com eles1302
. Este
género de raciocínio é comum a muitos outros processos. Na sua defesa, o réu dizia ser bom
cristão, pertencer às confrarias paroquiais, auferir de cargos na Misericórdia, ser parente de
religiosos e da gente mais honrada da região e, sobretudo, não se relacionar com outros
cristãos-novos. Preso em 1635, Gonçalo Dias, neto de um cristão-velho, alegou que fora
irmão das confrarias das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário. A sua irmã
Júlia da Silva era casada com um cristão-velho, Manuel Mendes Neto, e os outros cinco
irmãos ingressaram na vida religiosa: Jerónimo Baptista, entretanto já defunto, fora cónego
da Sé de Faro; Francisco da Silva era clérigo teólogo; Isabel Baptista, freira professa no
convento de Nossa Senhora da Assunção; Serafina de São Francisco, freira no mosteiro de
Santa Catarina, em Évora; e Maria da Apresentação, também freira professa em Alcácer do
Sal1303
. Ele próprio, como já vimos anteriormente, estudara Cânones em Ossuna e em
Sevilha, antes de cursar Direito na Universidade de Coimbra1304
. A sua família evitava o
contacto com outros cristãos-novos:
“Provaria que sua mãe e irmã não tratavam com gente de nação e, nas igrejas, se
punham separadas delas, como era no colégio e em outras partes, pelas quais razões
toda a gente de nação lhe chamava a D. Ana Fidalga em desprezo, pelo que, em
ódio, juravam mal e contra ele e suas cousas [...]”1305
Mas Gonçalo Dias acabaria por admitir as culpas de judaísmo e, ao longo da sua
confissão, contradisse tudo o que alegara na defesa – mantinha, sim, contacto com muitos
outros cristãos-novos da terra, com quem partilhava a sua fé na Lei de Moisés. No auto de
14 de Junho de 1637, saiu com cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão, e
condenado a degredo nas galés por cinco anos, onde serviria a remo e sem receber soldo.
Teriam os que possuíam apenas uma parte de cristãos-novos mais possibilidades de
convencer os inquisidores da sua inocência e de beneficiar de uma pena mais leve?
1302
Cf. ANTT, IE, proc. 9408. 1303
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fls. 1v-3. 1304
Vide supra, p. 219. 1305
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 80.
295
Analisando apenas os processos da terceira vaga de prisões no Algarve que, como já
vimos, apresenta uma maior diversidade ao nível da qualidade do sangue dos réus,
verificamos que não existe uma diferença sensível entre as penas aplicadas aos cristãos-
novos inteiros e aos que eram, em parte, descendentes de cristãos-velhos.
Os filhos de um casamento misto sujeitavam-se a ter de enfrentar as consequências
da prisão de um dos progenitores. A família encarava, então, a vergonha e a exclusão
social. A reputação das filhas era abalada, tal como a esperança de um futuro bom
casamento. Aos filhos ficava vedado o acesso a cargos que poderiam garantir-lhes não
só o sustento, como também a ascendência social e o desvanecimento do miasma do
“sangue hebraico”. E estas eram as consequências menores. A prisão de um ou de
ambos progenitores colocava-os também sob a mira do Santo Ofício.
Foi o que aconteceu com Leonor Domingues, presa em 1589, quando tinha pouco
mais de 15 anos de idade. A sua mãe era Inês Martins, meia cristã-nova. O seu pai,
Vicente Gonçalves, era cristão-velho. Pouco depois de ter entrado nos cárceres de Évora,
Leonor Domingues confessou que fora iniciada na crença na Lei de Moisés pela mãe.
Acabaria reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Mas
as consequências da sua prisão não terminaram na penitência. O tio António Domingues,
em nome do seu pai que, na altura, se encontrava nas Índias de Castela, apresentou uma
petição aos inquisidores. Ele não conseguira encontrar em Évora nenhuma casa que
pudesse acolher a sobrinha em segurança. Além disso, Inês Martins ainda estava na cidade
a cumprir a pena e, segundo o tio, tentava aproximar-se da filha. Por ser “[...] mulher mui
infame e por tal conhecida em toda a cidade e sua conversação ser-lhe muito nociva [...]”,
António Domingues pedia licença para levar a sobrinha para o Algarve, onde as suas tias
paternas, cristãs-velhas, a instruíriam nos princípios do Catolicismo. Os inquisidores
aceitaram o pedido e, a 13 de Maio de 1591, cerca de mês e meio após ter saído no auto-
de-fé, Leonor Domingues foi enviada de regresso a Vila Nova de Portimão, já sem hábito
penitencial. A família paterna afastara-a do contacto com a mãe, numa tentativa de cortar-
lhe os laços com a gente de nação.1306
1306
Cf. ANTT, IE, proc. 8088.
296
Apartar a “infecta nação”
Tal tentativa não apagaria a marca que Leonor Domingues herdara da mãe. Por
melhor “instruída” que fosse, continuaria sujeita à segregação sustentada num critério
imutável e que extravasava a forma como vivia e sentia a fé cristã – o sangue.
Com a conversão geral, a religião deixara de ser um elemento distintivo. Pelo
menos publicamente, todos eram cristãos. A equivalência legislativa atribuída então
aos conversos não agradou à maioria cristã-velha, lesada nas suas expectativas e
sujeita à concorrência de quem passou a poder ocupar os lugares mais cimeiros da
hierarquia social. Como salienta Yosef Haim Yerushalmi, havia que engendrar um
outro critério que justificasse a segregação e o sangue foi a resposta encontrada.
Segundo esta concepção, não era mais a fé que determinava a amplitude dos direitos
de cada um, mas sim a sua origem familiar1307
. Referindo-se, em particular, à
realidade castelhana, Juan Hernández Franco sublinha como a limpeza de sangue se
tornou num elemento de controlo dos conversos e, sobretudo, das suas aspirações
sociais e políticas. Por outro lado, a limpeza de sangue converteu-se num privilégio
dos cristãos-velhos, uma forma de distinção e de reconhecimento da sua condição de
“verdadeiros cristãos”, em oposição aos cristãos-novos, a quem o sangue inclinava à
mesma conduta e costumes dos antepassados judeus1308
.
A ascendência judaica precisava de ser reconhecida e provada. Os inquéritos à
limpeza de sangue devassavam a qualidade dos pais, dos avós, dos bisavós e até de
gerações mais remotas. Mas havia excepções. Já vimos, no caso de Clemente Felipe, a
questão dos enjeitados, considerados cristãos-velhos quando ignorada a identidade dos
progenitores. A ênfase era dada ao reconhecimento “público e notório” da qualidade dos
ascendentes e na consciência que o próprio indivíduo tinha dessa herança. “[...] Nas
cousas antigas, principalmente quando se trata de provar pureza ou impureza de sangue,
1307
Cf. Yosef Hayim Yerushalmi, “Propos de Spinoza sur la survivance du peuple juif”, Sefardica. Essais
sur l’histoire des Juifs, des marranes & des nouveaux-chrétiens d’origine hispano-portugaise, Paris,
Éditions Chandeigne, 1998, pp. 195-196 1308
Cf. Juan Hernández Franco, “El pecado de los padres. Construcción de la identidad conversa en
Castilla a partir de los discursos sobre limpieza de sangre”, Hispania, vol. LXIV, n.º 217, 2004, pp. 515-
542. O autor aborda a construção de um discurso, por parte dos cristãos-velhos, para justificar a limpeza
de sangue, sustentado, sobretudo, em dois “depósitos doutrinais” – as autoridades escolásticas, às quais
foi beber os argumentos que associam os cristãos-novos, enquanto descendentes dos judeus, a uma série
de características que ameaçam a harmonia religiosa e política da sociedade; e a tratadística nobiliárquica,
na definição de honra e virtude, valores apenas transmitidos através do nascimento.
297
não haja outra prova mais que a comum reputação [...]”, acrescentava o acórdão final do
processo de Antónia de Mascarenhas1309
.
Ao contrário de Castela, a aplicação dos estatutos de limpeza de sangue em Portugal
fez-se gradualmente e nunca chegou a constituir uma lei geral. As ordens regulares
foram as primeiras a adoptá-los. Em 1558, um breve vedava aos cristãos-novos a
possibilidade de ingresso na ordem franciscana. Os jesuítas só perfilhariam os estatutos
de limpeza de sangue já em finais do século, depois de muitas reticências1310
. Quanto às
ordens militares, os estatutos foram aplicados na sequência da bula Ad Regie Maiestatis,
publicada a 18 de Agosto de 15701311
.
Dentro do Santo Ofício, a imposição da limpeza de sangue no acesso a determinados
cargos aparece determinada logo no Regimento de 1552, referindo-se, em particular, aos
procuradores, que não poderiam ter “[...] suspeita de raça de Judeu ou Mouro [...]”1312
.
Mas é no Regimento do Conselho Geral da Inquisição, em 1570, que se estabelece a
obrigatoriedade de todos os oficiais do Santo Ofício, em particular dos elegíveis para o
Conselho Geral, não terem “[...] raça de mouro, judeu ou infiel [...]”, nem descenderem
“[...] de relaxados, reconciliados ou penitenciados pelo Santo Ofício [...]”1313
.
Porém, tais determinações acabavam por ser, na prática, contornáveis. Nas ordens
militares são conhecidos alguns casos de cristãos-novos que conseguiram obter a
habilitação1314
. Foquemo-nos no Algarve. Manuel do Rego da Silva, habilitado à
Ordem de Avis em 1674, era filho de Pedro do Rego Freire, cavaleiro-fidalgo da Casa
Real, que servira de vereador da Câmara de Lagos, e de D. Guiomar da Silva, também
ela filha de um nobre. Porém, a avó materna de Manuel do Rego, Beatriz de Sousa,
era cristã-nova, filha de Fernão Martins e de Isabel Gramaxo e, assim, oriunda de uma
das famílias mais lesadas pela entrada da Inquisição em Vila Nova de Portimão nas
décadas de 80 e 90 de Quinhentos1315
.
A mesma permeabilidade é visível no acesso a cargos públicos. Durante o século XVII,
os estatutos de limpeza de sangue alargaram-se ao poder central e local. Em 1611, D.
1309
Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fl. 88v. 1310
Cf. Albert A. Sicroff, Los estatutos de limpieza de sangre. Controversias entre los siglos XV y XVII,
Newark, Juan de la Cuesta - Hispanic Monographs, 2010, pp. 361-378. 1311
Cf. Fernanda Olival, “Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal”, CES, n.º 4,
2004, pp. 151-182. 1312
Cf. “Regimento (1552)”...., As Metamorfoses..., p. 130 (cap. 130). 1313
Cf. “Regimento do Conselho Geral da Inquisição”, As Metamorfoses...., p. 140 (cap. VII). 1314
Vide Fernanda Olival, “O acesso de uma família de cristãos-novos portugueses à Ordem de Cristo”,
Ler História, n.º 33, 1997, pp. 67-82. 1315
Cf. Côrte-Real, Fidalgos de cota de armas..., p. 269.
298
Filipe III determinava que só os cristãos-velhos poderiam servir nas “governações” locais.
Sete anos depois, o cargo de almotacé também ficava vedado aos cristãos-novos. Estes
alvarás seriam confirmados por Filipe IV, numa carta de 13 de Abril de 1633, alargando a
exigência de limpeza de sangue a todos os “lugares públicos”, honras, ofícios de
governança, justiça, graça e fazenda. Em 1640, um novo alvará voltava a confirmar estas
restrições. Ora, tal insistência é, só por si, reveladora do incumprimento.
As brechas eram muitas e os cargos públicos continuaram permeáveis à entrada de
cristãos-novos. No Algarve, bem longe da administração central, tal era evidente.
Lourenço Fernandes, preso em 1635, desempenhava o ofício de tabelião de notas em
Faro1316
. Dois anos antes, em Lagos, fora detido Duarte Mendes, tesoureiro da
Câmara1317
. Pela mesma altura, Vicente Leitão era prioste das rendas do cabido da Sé de
Faro1318
. Antes, no tempo do bispo D. João Coutinho, o mesmo ofício estivera nas mãos
de Sebastião Reves, mercador e rendeiro de Faro que, em 1636, foi preso pela
Inquisição de Évora1319
. Todos tinham parte de cristãos-novos.
À falta do “sangue limpo” e da ascendência aristocrática, restava o poder
económico. Em 1620, na sequência do assassinato de Francisco Lopes Serralvo em
Monchique, o juiz de Silves aconselhava a adopção de uma medida exemplar para os
responsáveis: “[...] deve ser castigada com sumo rigor tanta ousadia e atrevimento da
gente de nação que, se nestas partes se não refrearem, se farão mais poderosos e
absolutos do que são [...]”1320
. Alguns anos mais tarde, Manuel Henriques afirmava-se
“o mais rico homem de Faro”, a quem até o bispo D. Francisco de Meneses devia uma
avultada quantia de dinheiro1321
.
Havia quem usasse esse poder económico para “comprar” o reconhecimento social.
Financiavam as festas dos padroeiros e as reformas dos altares, aplicavam grossos
cabedais em obras pias, tentavam o ingresso nas confrarias que reuniam a gente mais
1316
Cf. ANTT, IE, proc. 9942. 1317
Cf. ANTT, IE, proc. 4151. 1318
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 102v-103. 1319
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 199v. Sebastião Reves foi reconciliado com cárcere e hábito penitencial
perpétuos no auto de 1638, mas acabaria por ser novamente preso no ano seguinte, acusado de testemunhar
em falso contra cristãos-velhos (Cf. ANTT, IE, proc. 10501). Era natural de Almodôvar e, antes de se
estabelecer em Faro, estivera na Índia. Refere Cristóvão de Mendonça: “Porque Sebastião Reves é um
homem natural do Almodôvar e é de muito má consciência e rendeiro que ordinariamente anda em pessoas
vis e baixas, costumadas a jurar falso e assim o podia fazer contra ele, réu, por ocasião de vir com ele em
companhia, na qual chamando por ele, disse: «Ó senhor executor». Arregaçando o braço esquerdo, mostrou
nele o santo nome de Jesus e Maria, dizendo que na Índia o havia ali impresso [...]” (Cf. ANTT, IE, proc.
2699, fl. 98). Em 1633, Sebastião Reves era rendeiro da comenda de Santa Maria de Tavira (Cf. ADF,
Cartório Notarial de Tavira, 8-IV-155). 1320
Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 4v. 1321
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 112v. Vide, em anexo, pp. 433-434.
299
honrosa da terra. Instrumentos de coesão social e de integração dos leigos na vida
religiosa, as confrarias garantiam o auxílio material e espiritual aos seus membros e
inspiravam um sentimento de equidade susceptível de criar uma consciência de grupo,
capaz de exercer pressão sobre os poderes locais1322
.
O ingresso na irmandade da misericórdia local era particularmente almejável,
sobretudo a partir do momento em que os compromissos incluíram o critério de limpeza
de sangue na selecção dos seus irmãos. Como refere Romero Magalhães, o acesso às
misericórdias tornou-se numa sólida manifestação de “pureza de sangue”, o único lugar
onde o mesteiral podia ser “irmão” do nobre, numa ilusão de equivalência da qual os
cristãos-novos estavam, à partida, excluídos1323
. Nem as divisões no interior da
instituição, entre irmãos nobres e oficiais, impediam que se continuasse a “[...] alimentar
uma ficção de justiça na ordem social instituída [...]”1324
.
Em 1580, um alvará régio autorizava à Misericórdia de Lagos a adopção do mesmo
compromisso atribuído à sua congénere de Lisboa três anos antes. O acesso à irmandade
ficava, então, interdito aos cristãos-novos1325
. As outras misericórdias do Algarve
acabaram por também seguir os compromissos da Misericórdia de Lisboa (o de 1577 ou
o de 1618), tal como aconteceu um pouco por todo o reino1326
. Em comum, exigiam que
todos os irmãos fossem “limpos”.
“Jorge de Oliveira e seus irmãos servem nas confrarias e irmandades da
Misericórdia, aonde se não admitem senão cristãos-velhos e de que se riscam os de
nação [...]”, referia o memorial apresentado em defesa de Jorge de Oliveira, de Loulé,
preso pela Inquisição de Évora em 16481327
. Também Pedro de Seixas, para provar que
era cristão-velho, recordou o tempo em que servira de irmão da Misericórdia de Faro e
1322
Vide Pedro Penteado, “Confrarias portuguesas da época moderna: problemas, resultados e tendências
de investigação”, Lusitania Sacra, 2ª série, tomo VII, 1995, pp. 15-52. 1323
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 344-346. 1324
Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “As Misericórdias nas sociedades portuguesas do Período Moderno”,
Cadernos do Noroeste, Série História I, n.º 15 (1-2), 2001, p. 353. 1325
Cf. Fernando Cecílio Calapez Corrêa, Elementos para a história da Misericórdia de Lagos, Lagos,
Santa Casa da Misericórdia de Lagos, 1998, pp. 42-50. 1326
Cf. Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império
português 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997, pp. 89-91; Maria Helena Mendes Pinto e Victor Mendes Pinto, As Misericórdias do
Algarve, Lisboa, Ministério da Saúde e Assistência / Direcção-Geral de Assistência, 1968, pp. 26, 50, 150
e 267. Vide também Portugaliae Monumental Misericordiarum, vol. 5: Reforço da interferência régia e
elitização: o governo dos Filipes. Coordenação de José Pedro Paiva, Lisboa, Centro de Estudos de
História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 2002. 1327
Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 123.
300
como, em 1634, havia até promovido a exclusão das listas da irmandade de João
Fernandes Guterres, Rui Gomes e Manuel Ribeiro, cristãos-novos1328
.
Quer Jorge de Oliveira, quer Pedro de Seixas, independentemente de todos os
argumentos, foram julgados como cristãos-novos. A própria Inquisição confirmava a
existência de brechas. Aliás, era público que, na prática, as misericórdias continuavam
permeáveis ao ingresso da “gente de nação”1329
. Ouvido sobre o caso de Jorge de
Oliveira, o Padre Álvaro Nunes, vigário de vara de Loulé, admitiu que o cargo de
tesoureiro da Misericórdia era, de vez em quando, desempenhado por cristãos-novos1330
.
Anos antes, em 1619, Estêvão Lopes referiu que fora tesoureiro da Misericórdia de Vila
Nova de Portimão durante 5 anos. Ele nunca escondeu ser cristão-novo. O ingresso nos
corpos da Misericórdia servia apenas de mais uma prova da sua piedade cristã, ao lado
doutras como não ser “[...] afeiçoado às pessoas de nação [...]” ou ter casado todos os
seus filhos com cristãos-velhos1331
.
Além das misericórdias, outras confrarias também envergavam o estandarte da
limpeza de sangue como elemento distintivo dos seus membros. António Vilarinho, na
sua defesa, alegou ter integrado a irmandade das Almas e as confrarias de São Pedro e
de São Sebastião, em Faro. Dizia que o ingresso nestas estava vedado a cristãos-
novos1332
. Duvidamos da rigidez deste critério. O que se passava nestas confrarias seria,
possivelmente, o mesmo que ocorria na irmandade das Almas na igreja de São
Clemente, em Loulé. Afirmou Manuel Gomes de Tomar, cristão-velho e uma das
testemunhas ouvidas sobre a qualidade de sangue de Jorge de Oliveira:
“[...] o compromisso da dita irmandade assim mandava que não aceitassem por irmão
nenhuma pessoa da infecta nação, mas que, contudo, aceitavam muitos que eram
infamados de cristãos-novos e que, servindo ele, testemunha, de recebedor da dita
irmandade no ano de mil seiscentos e quarenta, quisera o dito Domingos de Oliveira
[irmão de Jorge de Oliveira], serralheiro, assentar-se por irmão da dita Irmandade das
Almas, e um João Dias Carneiro, casado nesta cidade e irmão da dita irmandade, lhe
pôs embargos ao aceitarem o dito Domingos de Oliveira por irmão, dizendo
publicamente diante dos irmãos da mesa que era cristão-novo o dito Domingos de
Oliveira e, se o queria aceitar por irmão, o não conseguiu, mas que, no ano vindouro,
o aceitaram por irmão e logo no outro saiu por recebedor da dita irmandade [...]”1333
.
1328
Cf. ANTT, IE, proc. 6212, fls. 193, 195v. 1329
Isabel Guimarães Sá frisa como, décadas depois do compromisso de 1577, as Mesas das Misericórdias
de Coimbra e do Porto continuavam a perguntar ao rei como haviam de proceder com os cristãos-novos que
as integravam. (Cf. Guimarães Sá, “As Misericórdias...”, Cadernos do Noroeste..., p. 342). 1330
Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 34v. 1331
Cf. ANTT, IL, proc. 3071, fls. 30-31. 1332
Cf. ANTT, IE, proc. 133, fl. 18v. 1333
Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 45v.
301
As exigências de limpeza de sangue poderiam ser contornadas mediante a rede de
influências construída no seio das confrarias. Podemos considerá-las um microcosmos.
O que se passava no seu interior repetia-se nos cargos públicos, nas instituições laicas e
eclesiásticas e até na hierarquia inquisitorial. As relações sociais e de parentesco
funcionavam tentacularmente nas sociedades de Antigo Regime, capazes de ocultar até
os estigmas mais enraizados, tudo mediante os jogos de influências e de poderes. E
havia cristãos-novos que conheciam bem as regras desse jogo.
As entreabertas portas da Igreja
Voltemos a Manuel Henriques. A sua família apresentava uma forte ligação a
instituições e ordens religiosas. Os primos Lourenço Soares e Henrique Soares eram
clérigos – este em Lagos e o primeiro no Peru, onde veio a falecer. Um outro primo,
Pedro Álvares, entretanto falecido, fora frade capucho de Santo António, em Roma.
Também algumas das suas primas ingressaram em conventos: Maria Soares, em Torres
Novas; Joana do Espírito Santo, no Mosteiro do Carmo, em Lagos; e Isabel Soares, no
Mosteiro de S. Bernardo de Tavira, onde já se encontrava recolhida uma filha de
Manuel Henriques, Isabel, então com apenas 9 anos de idade1334
.
Ora, como se viu, em 1633, grande parte das instituições religiosas em Portugal já
haviam adoptado os estatutos de limpeza de sangue. Porém, a integração de cristãos-
novos na hierarquia eclesiástica continuou a ser uma realidade no Algarve, tal como no
resto do reino. A aproximação aos órgãos da Igreja até se tornara mais apetecível,
passando a constituir não só um veículo de ascensão social ou uma prova de piedade
cristã, como também um sinal de distanciamento face à gente de nação.
Muitas aspirações concentravam-se no cabido. Apesar da proibição decretada por
Sisto V aos cristãos-novos no acesso aos benefícios reservados à Sé apostólica, e a
confirmação desse mesmo decreto pelo seu sucessor, Clemente VII, acrescentando que
nenhum descendente de judeus até à sétima geração poderia receber canonicatos,
prebendas e dignidades nas catedrais1335
, a aplicação de tais restrições tardou na Sé de
1334
Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 66-67v. 1335
Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja..., vol. II, p. 59.
302
Faro. Só em 1641 é que o bispo D. Francisco Barreto incluiu a exigência de limpeza de
sangue nos estatutos do cabido1336
.
De facto, até então, a presença de cristãos-novos no cabido de Faro era uma
constante e inclusivamente, como já vimos, o cargo mais elevado na hierarquia capitular
chegou a estar nas mãos de um cristão-novo, Diogo Lopes1337
. Foi no tempo de D. João
de Melo que ele alcançou a conezia magistral e, em 1585, era um sexagenário com uma
longa carreira no cabido. Porém, a sua relação com os prelados que sucessivamente
ocuparam a cadeira episcopal foi pautada por constantes tensões e querelas, as quais
serviram de argumento de defesa, quando acusado perante a Inquisição. Sobre D.
Afonso de Castelo Branco alegou que “[...] oferecendo-se algumas cousas em que
queria agravar ao cabido sobre os beneficiados da igreja de Silves e tirar os quartanários
da Sé, que ele, réu, como daião, defendia por razão de sua dignidade, tiveram muitas
diferenças públicas, dizendo o dito bispo muitos males dele [...]”1338
. Com o sucessor,
D. Jerónimo Barreto, a convivência não foi melhor, sobretudo com a insistência de
Diogo Lopes em gerar polémica com os seus sermões. Em 1587, novamente durante o
tempo pascal, o deão afirmara numa homilia que Cristo fora concebido como todas as
outras criaturas. Resultado: mais uma acusação remetida ao Santo Ofício. E assim
prosseguiu durante os anos seguintes.
Mas o passado do deão jogava a seu favor: fora pregador do cardeal D. Henrique,
com 40 mil reis de ordenado, e chegou a pregar “nos principais púlpitos” de Lisboa,
“[...] diante de prelados e letrados, teólogos e juristas, e de religiosos e pessoas de bom
entendimento, e sua doutrina foi sempre bem recebida e havida por católica [...]”1339
.
Este e outros argumentos teriam convencido os inquisidores a reconciliá-lo com uma
pena leve. Quando Diogo Lopes ouviu a sentença final, a 31 de Janeiro de 1596, D.
Fernão Martins Mascarenhas já se encontrava à frente do episcopado algarvio. Sem sair
em auto público, o deão abjurou de levi e ficou suspenso de pregar durante um período
ao arbítrio do inquisidor-geral. A sua posição hierárquica servira de atenuante. O
próprio acórdão afirmou-o1340
.
1336
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 355-356. 1337
Cf. ANTT, IL, proc. 3205. Vide supra, p. 62. 1338
Cf. Idem, fls. 143-143v. 1339
Cf. Idem, fls. 142v-143. 1340
Cf. Idem, fl. 327v.
303
Note-se que, de entre as centenas de processos estudados, o número de religiosos
cristãos-novos residentes no Algarve que entraram nos cárceres inquisitoriais resumiu-
se a um. Mais frequentes eram as denúncias.
Exemplar é o caso do cónego Pedro de Barros Carneiro. Em Julho de 1634, acedeu a
uma carta de Lopo Soares de Castro destinada ao irmão Diogo Osório de Castro. O
primeiro era inquisidor no tribunal de Coimbra e o segundo em Lisboa. O cónego não
só abriu a carta, como a mostrou a outros dois padres do cabido, o cónego António
Farto e o beneficiado Sebastião Pinto. Tratava-se de uma “[...] grave ofensa e porque o
conhecimento dela pertencia ao Santo Ofício [...]”, arguiu Diogo Osório de Castro.
Depois de ouvidas as testemunhas de acusação e o próprio Pedro de Barros, o caso foi
remetido ao Conselho Geral, o qual decretou que o seu conteúdo não pertencia Santo
Ofício1341
. Fechava-se o caso sem se descobrir quais as razões que teriam levado o
cónego a abrir a dita carta. Sabemos que a sua relação com Lopo Soares de Castro não
seria a mais amistosa1342
.
Mas as denúncias contra Pedro de Barros já vinham de trás. Em 1627, o cónego
Duarte Mena de Almeida acusara-o de ter posto em causa o dogma da imaculada
concepção. Na diligência que se seguiu, a reputação do cónego foi alvo de acérrimas
críticas. Segundo o padre Luís Álvares, beneficiado da Sé de Faro, ele era “[...] homem
de má vida e costumes e revoltoso, e tanto que tirou um preso da cadeia desta cidade
que estava preso por culpas graves, abrindo as portas da cadeia com chave falsa, pelo
qual caso esteve preso e inda ora se livra no auditório da cidade de Évora [...]”1343
.
Cerca de uma década depois, as palavras e o comportamento de Pedro de Barros
Carneiro continuavam a gerar escândalo em Faro. Segundo António Figueira de Castelo
Branco, deão da Sé de Faro, ele “[...] dava ruim conta de si na matéria de honestidade e,
de presente, está amancebado e, de porta a dentro, tem a manceba e que, quando está no
coro às horas canónicas, ordinariamente está dormindo e sem rezar e que, quando vai
fora, não leva consigo breviário e que é mui desonesto em suas palavras e não lhe pesa de
ser tido e havido por tal [...]”1344
. O deão referia ainda uma carta anónima que circulara
pela cidade e cujo autor seria o próprio Pedro de Barros. Essa “carta infamatória”
parodiava uma sessão do cabido. Retratava-o povoado de “guelfos e gibelinos”, em que o
mestre-escola “[...] não sabe latim nem português [...]” e cónegos palavrosos, como o Dr.
1341
Cf. ANTT, IL, proc. 3255. 1342
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 2-2v. Vide supra, p. 113. 1343
Cf. Idem, fl. 11v. 1344
Cf. Idem, fl. 59v.
304
Francisco da Fonseca, “[...] com mais escrúpulos que receita de médico [...]”, provocavam
o tédio doutros que não se continham a ridicularizar a situação – como o cónego “Nunes”
(seria Francisco Nunes da Costa, cónego da Sé de Faro em 1621?1345
) que “[...] estava
retendo o riso de ver a salsada do doutor [...]” e acabou a dar “[...] dois bocejos com que
encheu a casa de um insuprível vapor de vinho e alhos [...]”1346
.
Os anos passavam e Pedro de Barros continuava acutilante nos seus comentários. Ele
tinha um alvo preciso – a Inquisição. Em 1642, mais uma acusação chegava a Évora:
“[...] nesta mesa há informação que Pedro de Barros, cónego da Sé da cidade de
Faro, falando sobre os traidores presos e sobre as apertadas prisões em que estava o
Senhor Inquisidor Geral e o Arcebispo de Braga e António de Mendonça, dissera a
Miguel Pereira Borralho, capitão e alcaide, morador de vila de Castro Marim e ora
capitão de uma fortaleza da vila de Setúbal, as palavras seguintes: «É justo juízo de
Deus que estejam em casinhas tão apertadas quem tem os judeus em casinhas tão
apertadas, porque todos estes eclesiásticos presos ou foram inquisidores ou
deputados». E replicando-lhe o dito Miguel Pereira: «Não estão eles por isso
presos, porque fazem o que devem aos judeus». E o dito Pedro de Barros
respondeu: «Não fazem, senhor, que já na Inquisição não há justiça, nem fazem o
que devem, porque levam lá gente com falsidades»” 1347
Com ou sem “falsidades”, Pedro de Barros Carneiro nunca chegou a ser “levado” à
Inquisição. Não obstante as múltiplas acusações, dispersas por quase duas décadas,
nenhum processo lhe foi movido. Qual a razão dessa situação, com tantos cristãos-
novos presos por bem menos? Podemos buscar uma resposta à sentença do deão Diogo
Lopes, ou à entrada de Domingos Gomes na confraria das Almas de Loulé, ou a tantos
outros exemplos, no Algarve e fora dele, em que o poder e as influências revelaram-se
instrumentos capazes de ultrapassar os estatutos de limpeza de sangue mas também a
própria máquina inquisitorial.
“Todos eram uns”. A construção de uma identidade?
«Mal aventurada era a cristã nova que deixava uma cousa a cristã velha e que era
melhor lançá-la no rio que lha dar» - comentou Maria Rodrigues relativamente à notícia
1345
Cf. Pinheiro e Rosa, A Catedral do Algarve..., vol. II, p. 14. 1346
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 33-34. 1347
Cf. Idem, fls. 37-37v. Pedro de Barros Carneiro referia-se às prisões decorrentes da conspiração
planeada contra D. João IV em 1641. A iniciativa da conjura teria partido do arcebispo de Braga, D.
Sebastião Matos de Noronha (antes Inquisidor em Coimbra, depois em Lisboa e, por fim, deputado do
Conselho Geral), a quem se juntaram outras individualidades do alto clero e da alta nobreza, entre os
quais os referidos D. António de Mendonça, comissário da Cruzada, e o inquisidor-geral D. Francisco de
Castro. Primeiramente, o inquisidor-geral e o arcebispo de Braga estiveram presos no forte do Paço e,
mais tarde, foram transferidos para a Torre de Belém. Depois de quase dois anos de cárcere, D. Francisco
de Castro foi libertado a 5 de Fevereiro de 1643. (Cf. Teresa Leonor M. Vale, “D. Francisco de Castro
(1574-1653), reitor da Universidade de Coimbra, bispo da Guarda e inquisidor geral”, Lusitania Sacra, 2ª
série, tomo VII, 1995, pp. 352-356).
305
que corria em Silves sobre o testamento de uma cristã-nova que deixara alguns bens a
uma cristã-velha. A herdeira andava a propagar a notícia e tal causou “reboliço” na
cidade1348
. Corria o ano de 1559. A Inquisição ainda não entrara em Silves, ao contrário
do que acontecia, mesmo ali ao lado, em Vila Nova de Portimão. Mas as palavras de
Maria Rodrigues revelavam a consciência de uma fractura social. A proximidade entre
os dois grupos parecia perturbar uma ordem preestabelecida.
Como já vimos, os vínculos familiares entre cristãos-novos e cristãos-velhos eram,
então, raros. Com o avançar dos anos, embora esses laços se tenham vulgarizado, a
“mancha” do sangue não desaparecera. A exclusão social e a ameaça do cárcere
inquisitorial persistiam.
No século XVIII, António Ribeiro Sanches notara como o ostracismo encorajava a
perpetuação da “cegueira judaica”. O cristão-novo, educado no medo da Inquisição e
“[...] no desprezo e odio, com que foi tratado pelos Christãos velhos, vem por si no
conhecimento errado da Ley de Moysés”1349
. Bem antes, Espinosa advogara a mesma
ideia no seu Tratado Teológico-Político: o ódio das nações ajudou a assegurar a
conservação dos judeus. Esta tese foi pioneira ao atribuir a sobrevivência do povo judeu
ao anti-semitismo e não à Providência Divina, embora, segundo Yosef Yerushalmi, se
tenha inspirado no debate então corrente sobre a validade dos estatutos de limpeza de
sangue e, por conseguinte, da discriminação legislativa dos cristãos-novos1350
.
De acordo com Nathan Wachtel, a construção de uma identidade criptojudaica
assentaria em dois pilares: a demarcação face a uma maioria que a marginalizava e a
aproximação entre quem sustentava na memória uma ancestralidade comum, a “fé da
lembrança”1351
. A noção de diferença de sangue, materializada nos estatutos, foi
interiorizada pelos próprios cristãos-novos, que passaram a manifestar orgulho no
mesmo sangue que os outros chamavam de infecto1352
.
Durante a visitação de 1585, Jordão Fernandes, bombardeiro na fortaleza da
Baleeira, apresentou-se perante o inquisidor Manuel Álvares Tavares e contou um
episódio ocorrido quase 30 anos antes. Por esse tempo, ele e Fernão Pinto (o marido de
Branca Dias, parodiado no boneco de palha) partiram de Raposeira, termo de Lagos,
para um “rebate de mouros”. Confiante nas proezas militares que o dia prometia, Fernão
1348
Cf. ANTT, IL, proc. 6370, fl. 15v. 1349
Cf. António Ribeiro Sanches, Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal, Porto, Livraria
Paisagem, 1973, p. 48. 1350
Cf. Yerushalmi, “Propos de Spinoza...”, Sefardica..., pp. 175-206. 1351
Cf. Wachtel, A fé da lembrança..., pp. 30-32. 1352
Cf. Contreras, “Family and patronage...”, Cultural encounters..., pp. 131-133.
306
afirmara com orgulho que “[...] vinha do género que vencera o maior cavaleiro que
havia no mundo [...]”. Acabaria por ser preso na sequência desta denúncia. Na mesa da
Inquisição de Évora, Fernão revelou que, noutra ocasião, ao ver o seu brio posto em
causa por um cristão-velho, afirmara com orgulho: «Melhores cavaleiros são os meus
parentes, pois que mataram a Jesus Cristo»1353
. Anos mais tarde, em 1630, encontramos
o mesmo sentimento em Jorge Lopes de Castro, o beneficiado da igreja de S. Clemente,
em Loulé, que chegou a estar preso na cadeia de Faro1354
. Dizia-se cristão-novo e “[...]
por qualquer gota de sangue outro que tivera, me fora enforcar [...]”. Afinal, era essa a
“melhor posta” que tinha1355
.
O cristão-novo, independentemente da sua parcela de “sangue hebraico”, era sempre
o Outro, um estigma que tendia a aproximar quem o suportava desde o berço. O
sentimento de pertença a um grupo distinto estaria bem vivo entre muitos cristãos-
novos. Veja-se o convite que Luís Fernandes, surrador de Faro, recebera de um
escudeiro cristão-novo, Gomes Moniz:
“[...] se queria ele, confitente, escrever-se em um livro que ali tinha sobre um bufete
que era dos confrades da Lei de Moisés, e ele, confitente, lhe respondeu que sim, e o
dito Gomes Moniz lhe disse que havia de dar uns sete ou oito tostões de entrada e,
respondendo ele, confitente, que era pobre e os não tinha, disse o dito Gomes Moniz
que ele os pagaria, porquanto ele, confitente, era de sua obrigação e havia sido criado
de seu pai. E logo o dito Gomes Moniz escreveu a ele, confitente, no dito livro, o
qual seria de uma mão de papel encadernado em pergaminho [...]”1356
Este testemunho suscita algumas dúvidas. Afinal, não encontramos qualquer
referência à dita “confraria da Lei de Moisés” noutros processos, nem o próprio Luís
Fernandes adianta mais informações sobre esta ao longo da sua confissão. Porém, mesmo
que não passasse de um artifício para, eventualmente, culpar o dito Gomes Moniz, Luís
Fernandes julgava que tal seria credível. E isso é, só por si, bastante significativo.
A consciência de pertença a um grupo distinto ia muito além da vivência de uma fé
clandestina, espelhando-se noutras dimensões quotidiano. Em Faro, Gaspar Mendes era
conhecido de todos os mercadores da cidade, sobretudo dos cristãos-novos. Filho
ilegítimo de Manuel Filipe Preto, Gaspar vivia da tanoaria. Segundo Sebastião Dias,
todos os mercadores cristãos-novos encomendavam-lhe os barris para o figo e para o
atum porque ele era “de nação”1357
. Gonçalo Dias também recorria aos seus serviços.
Numa ocasião em que lhe encomendou uns cunhetes para o atum, Gaspar Mendes
1353
Cf. ANTT, IE, proc. 2891. 1354
Vide supra, pp. 164-165. 1355
Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 435-436. 1356
Cf. ANTT, IE, proc. 5495, fls. 13-13v. 1357
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 101v-102.
307
recusou-se a receber o pagamento, não só porque serviam no mesmo ofício, mas
também por ambos “crerem na Lei de Moisés”1358
.
Vender fiado ou mesmo não cobrar aos clientes cristãos-novos são atitudes que se
repetem insistentemente nas confissões. A partilha da mesma “qualidade de sangue”
garantia a confiança no parceiro de negócio. Voltemos ao processo de Sebastião Dias.
Indo um dia pagar a dívida das rendas do cabido ao prioste Vicente Leitão, mas
faltando-lhe mil réis para saldá-la, este dissera-lhe que não tinha importância, pois
ambos eram cristãos-novos. Noutra ocasião, ele recorreu a Rui Gomes, avaliador do
conselho, e ao perguntar quanto lhe havia de pagar, este respondera-lhe que pagaria o
que quisesse porque “[...] todos eram uns [...]”1359
.
Já vimos, nas décadas de 30 e 40 do século XVII, casos de cristãos-velhos presos
nos cárceres da Inquisição de Évora, acusados de judaizarem e com indícios de sangue
hebraico. Os denunciantes eram cristãos-novos que aprenderam a usar as armas da
suspeita e da denúncia contra um inimigo comum. Os cristãos-velhos presos, por sua
vez, alegavam as conjuras da gente de nação e vinganças pessoais. Vendo por outro
prisma, é necessário sublinhar, novamente, que estamos perante um discurso construído.
A alegada “união” seria algo que os inquisidores esperavam ouvir e os réus sabiam-no.
Resta-nos ponderar até que ponto os próprios cristãos-novos não fomentavam esse
estereótipo na esperança de se salvarem da mordaça inquisitorial.
Mas também não podemos ignorar as consequências, entre os cristãos-novos, das
sucessivas entradas da Inquisição. As reacções revelam-se contraditórias. Vislumbra-se, até,
uma divisão. Para alguns, teria encorajado a construção de uma identidade de grupo e feito
recrudescer a consciência de uma herança comum. Independentemente do quanto a
herança dos ancestrais se encontrava viva nas suas crenças e no seu quotidiano, eles
partilhavam a mesma condição e uma ameaça afim. Para outros, promovera a
aproximação à maioria cristã-velha, expressa no crescente número de uniões exogâmicas e
de indivíduos de “sangue misturado” que viviam de lavrar a terra e não do comércio, que
pregavam nos púlpitos das igrejas e que conseguiam penetrar em cargos teoricamente
vedados pelos estatutos de limpeza de sangue.
1358
Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fls. 182v-183. 1359
Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 102v-103, 191v.
308
Oito escritos suspeitos aparecem em Lagos
Na manhã de 10 de Julho de 1647, quem se deslocou à Igreja da Misericórdia, em
Lagos, para assistir à primeira missa do dia, deparou-se com um cenário insólito.
Alguns homens olhavam perplexos para um papel na parede da igreja. Nele, lia-se:
«Viva a Nossa Santa Lei de Moisés». Por baixo, em letra menores: «D.º e Ant.º». Nessa
mesma manhã, descobriram-se mais 6 papéis iguais espalhados pela cidade. Um oitavo
escrito só seria encontrado no dia seguinte. Segundo alguns testemunhos, os papéis
foram afixados nos locais por onde passava a procissão do Senhor dos Passos. O
simbolismo era revelador – escritos pró-judaicos estrategicamente colocados no espaço
de celebração da morte de Cristo1360
.
Poucos dias depois, o juiz de fora de Lagos, Luís de Melo de Sequeira, recebia
ordens do governador para recolher depoimentos sobre o sucedido. Com igual rapidez, a
notícia chegou a Évora e a Lisboa. Passado menos de uma semana, o Conselho Geral já
havia sido informado pelo tribunal eborense de “tão grande excesso”. Sem mais
demoras, o inquisidor Manuel de Magalhães de Meneses foi enviado a Lagos1361
.
A 9 de Agosto, já se encontrava na cidade e, dois dias depois, começou a ouvir as
testemunhas. A diligência acabou por se estender para lá do esperado. As contradições
dos testemunhos, os vários suspeitos e os indícios contra alguns dos elementos mais
notáveis da sociedade lacobrigense exigiram a multiplicação das inquirições. Durante
quatro meses, Manuel de Magalhães de Meneses ouviu, pelo menos, 230 testemunhas,
na tentativa de descobrir o que realmente se passara na noite de 9 de Julho de 1647.
Não fora uma noite tranquila. Afinal, em pleno Verão, numa “noite de calma” e de lua,
muitas janelas permaneciam abertas, alguns homens conversavam até tarde nas escadas da
igreja do Espírito Santo ou junto à Praça do Cano, uns passeavam pelas ruas depois da ceia,
outros ainda reuniam-se a jogar às cartas até altas horas da noite. Ainda de madrugada, os
pescadores começavam a sair para a faina e os militares vigiavam as muralhas e as portas da
cidade, que enceravam entre as 9 da noite e as 5 da manhã. «Nesta cidade, anda toda a noite
muita gente», comentava uma das testemunhas inquiridas1362
.
Houve quem presenciasse movimentos suspeitos. Os depoimentos referem dois ou
três homens que vagueavam pela cidade, ora confidenciando entre si, ora andando
1360
Sobre uma eventual influência criptojudaica presente na proliferação em Portugal dos cultos
relacionados com a morte de Jesus Cristo, vide Moisés Espírito Santo, “O que é um judeu”, in Schwartz,
Os Cristãos-Novos em Portugal..., p. XX. 1361
Cf. ANTT, IE, liv. 629, fl. 388. 1362
Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fl. 253.
309
apressadamente, como que em fuga. Mas a identificação desses homens revelou-se
confusa e até contraditória.As certezas eram poucas, as suspeitas muitas. Logo que os
escritos foram encontrados, as culpas recaíram sobre os cristãos-novos da cidade. Afonso
Claveiro, familiar do Santo Ofício, enquanto recolhia o papel afixado na parede da igreja
da Misericórdia, teria afirmado: «Ainda há diabos nesta cidade». Rodrigo Landeiro,
escrivão das fortificações, completara-o: “[...] que vivesse a Lei de Cristo, que essa era a
verdadeira e que todos eram uns cães, falando em geral pela gente de nação [...]”1363
.
O inquisidor tentou averiguar até que ponto o conteúdo dos escritos indiciava a sua
origem e isso tornou-se num dos alicerces da inquirição. Segundo Diogo Ribeiro de
Alvarenga, escrivão dos órfãos, o autor só poderia ser alguém de letras, “[...] porquanto a
palavra «Moyses» estava escrita com Y grande, sendo que todos, ordinariamente, dizemos
«Mouses» com U [...]”1364
. Depois, havia a assinatura: “D.º e Ant.º”, ou seja, Diogo e
António. E muito se especulou sobre estes dois nomes. Manuel Rodrigues Verdelho,
mercador cristão-velho, ouvira dizer que “[...] se entendia Diogo por um frade capucho e
outro por António Homem, que foram queimados pela Inquisição [...]”. Em 1647, na cidade
de Lagos, ainda se recordavam os casos de Frei Diogo de Assunção e António Homem,
condenados pelo Santo Ofício décadas antes. Mas surgiram ainda outras interpretações.
Domingos Gomes, tendeiro sevilhano, julgava que um dos nomes se referia a António
Rodrigues Castanho, boticário cristão-novo1365
. O seu passado não estava livre de mácula.
Alguns anos antes, António Rodrigues fora preso pela Inquisição1366
. Além disso, era
reconhecida a sua rivalidade com alguns cristãos-velhos de Lagos.
Porém, outras testemunhas duvidavam que a produção e a publicação dos escritos
fosse obra de um único homem. Dizia-se na cidade que, noites antes do sucedido,
Fernão Nunes, médico e também cristão-novo, visitara frequentemente António
Rodrigues Castanho1367
. Os dois costumavam ter discussões com os frades do convento
da ordem da Trindade sobre a interpretação das Escrituras. Frei Sebastião de Paiva
desconfiava do profundo conhecimento que eles tinham do Antigo Testamento,
chegando mesmo a repetir “[...] de memória muitos lugares [...]”1368
. Também havia
quem apontasse o nome de Diogo Rodrigues, hortelão. Este poderia ter actuado em
conjunto com António Rodrigues, pois eram “[...] grandes amigos e poetas [...]” –
1363
Cf. Idem, fls. 436-436v. 1364
Cf. Idem, fl. 82v. 1365
Cf. Idem, fl. 95. 1366
Cf. ANTT, IE, proc. 1030. 1367
Cf. IE, mç. 1, doc. 5, fl. 133v. 1368
Cf. Idem, fl. 199v.
310
especulou Domingos Gomes, tendeiro cristão-velho, que lançou uma outra suspeita
sobre Diogo Nunes Álvares, mercador cristão-novo, também amigo de António
Rodrigues e cuja caligrafia era muito similar à dos escritos1369
.
Mas não seria algo assim tão temerário mera obra de rapazes? Diogo Ribeiro de
Alvarenga ponderou essa hipótese e até adiantou dois nomes – Brás Rodrigues, filho de
António Rodrigues Castanho, e António Fernandes, ambos cristãos-novos1370
. Brás
Rodrigues, em particular, costumava andar pela cidade noite adentro, na companhia doutros
estudantes, e tinha fama de ser um “semeador” de rumores1371
. O Padre Manuel de Abreu,
clérigo de epístola, queixava-se desse “moço intrometido” que, não obstante saber pouco
latim, ousava entrar em disputas teológicas com ele e com outros religiosos. Algumas
testemunhas referiam o orgulho com que ele afirmava ser “de nação”1372
.
Outros saíam em defesa dos cristãos-novos. O Padre Pedro de Sousa “[...] julgou
sempre que o feito não era de gente de nação, porquanto se não devia de querer entregar por
esta maneira à morte [...]” e que tudo não passara de uma vingança dos cristãos-velhos1373
.
Note-se que ele próprio era “de nação”. Porém, nada era tão linear quanto parecia. Joana
Gamboa, filha de um nobre da cidade, também não acreditava que os escritos fossem obra
de cristãos-novos porque “[...] estando ricos e poderosos na terra, não deviam de se querer
perder por essa via e quisesse Deus não fosse algum cristão-velho [...]”1374
.
Seria uma tentativa de incriminar a gente de nação? Esta suspeita espalhou-se pela
cidade e arredores. Duarte Rodrigues, mercador cristão-novo residente em Vila Nova de
Portimão, ouvira umas moças de Lagos a comentar que, na noite em que os escritos foram
afixados, tinham visto três homens na rua e um deles dissera: «Deste ferro nem o que está
em Lisboa há-de escapar»1375
. Referia-se a Marcos Pereira, cristão-novo, então a viver em
Lisboa e inimigo figadal dos vereadores Diogo Borges de Sousa e Manuel Jaques de Paiva.
No passado, Marcos Pereira fora agredido pelos dois e por um outro cristão-velho de Lagos,
Pedro Marreiro. Consequentemente, os três acabaram presos no Castelo de Sagres por
ordem do governador. Os cristãos-velhos de Lagos escandalizaram-se – como é que três
homens tão distintos foram presos por causa de “um judeu”1376
? Falava-se em vingança.
Além disso, algumas testemunhas identificaram-nos com os homens que, na noite do
1369
Cf. Idem, fl. 154v-156. 1370
Cf. Idem, fls. 86-87. 1371
Cf. Idem, fls. 112, 160-160v, 191, 238. 1372
Cf. Idem, fls. 191v-192, 200, 238v. 1373
Cf. Idem, fl. 265. 1374
Cf. Idem, fl. 343v. 1375
Cf. Idem, fls. 373v-374. 1376
Cf. Idem, fl. 396v.
311
sucedido, andavam a vaguear pelas ruas de Lagos. Uma delas foi Aldonça Álvares. Mas
questionou-se a validade do seu testemunho. Segundo o capitão Vicente Neto, Aldonça e a
sua família, embora cristãos-velhos, tinham amizade com “os da nação”1377
.
Perante o inquisidor, Diogo Borges de Sousa tentou afastar todas as suspeitas de si e
do seu irmão, Manuel Jaques de Paiva. Segundo alegou, tal aleive fora levantado pela
família de Marcos Pereira, na qual se incluía o Padre Afonso da Costa, prior da igreja da
Misericórdia. Na noite do sucedido, estivera até perto da meia-noite na rua, na
companhia do irmão e de Pedro Marreiro, tal como costumavam fazer nas “noites de
calma” mas, depois, os três voltaram para as suas casas1378
. Tal não coincidia com o
conteúdo doutros testemunhos, mas o inquisidor não insistiu. Note-se que Maria
Francisca Abrantes, aguardenteira que, nessa noite, estivera a trabalhar madrugada
adentro, disse ter visto três homens suspeitos na rua quando já passava das duas horas
da manhã – respectivamente, Diogo Borges, Manuel Jaques e Pedro Marreiro. Porém,
corria o rumor de que Maria Francisca reconhecera um dos ditos homens como sendo
Afonso Claveiro, o familiar do Santo Ofício que recolhera dos escritos1379
.
De facto, Afonso Claveiro tornou-se no suspeito mais citado ao longo de toda
inquirição. António Rodrigues Castanho disse ter estranhado o “[...] modo e certeza com
que os [os papéis] foi tirar às partes donde estavam postos e também por ser um dos
primeiros homens que apareceu na dita manhã na praça, pelas seis horas ou antes delas, não
sendo acostumado a vir tão cedo a ela [...]”1380
. Porém, não era este o único motivo de
suspeita sobre Claveiro. Embora fosse familiar do Santo Ofício desde 16391381
, alguns dos
seus comportamentos pouco dignificavam tal posição. Dizia-se que era “homem de mau
viver” e que andava amancebado com uma mulata cristã-nova1382
. No passado, teria sido
acusado de escrever pasquins infamatórios anónimos1383
. Além do mais, sendo médico e
assistindo no convento do Carmo, suspeitou-se que andava a perverter as freiras, o que
acabou por lhe arruinar a carreira1384
. E motivos não lhe faltavam para compor e afixar
aqueles papéis. Era conhecida a sua rivalidade com um outro médico, Fernão Nunes,
cristão-novo. Este, chamado a depor, confirmou-a e acrescentou que Afonso Claveiro
1377
Cf. Idem, fl. 227. 1378
Cf. Idem, fls. 437v-438v 1379
Cf. Idem, fls. 35, 38v-40, 225. 1380
Cf. Idem, fls. 30v-31. 1381
Cf. ANTT, TSO, CG, Habilitações, Afonso, mç. 1, doc. 17. 1382
Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 371, 378, 431. 1383
Cf. Idem, fls. 34, 392v-393. 1384
Cf. Idem, fls. 34v, 344, 348.
312
costumava ameaçá-lo com as insígnias do Santo Ofício1385
. A sua situação agravou-se com
a angústia e o desespero evidenciados a partir do momento em que os rumores de que seria
o autor dos escritos começaram a circular pela cidade. A sua mulher, Leonor Claveira,
chegou mesmo a ser acusada de tentar subornar uma das testemunhas para que não o
denunciasse1386
.
Quando foi chamado a testemunhar, Afonso Claveiro desvalorizou a rivalidade com
Fernão Nunes e negou ter-lhe feito qualquer tipo de ameaça. Passara toda a noite de 9
de Julho em casa e só soube do sucedido no outro dia de manhã, bem cedo, quando foi
assistir um paciente. Embora o seu testemunho tenha entrado em contradição com o
doutras testemunhas, o inquisidor não insistiu.
O número de suspeitos crescia a um ritmo inversamente proporcional às conclusões
de Manuel de Magalhães de Meneses. A 27 de Setembro, um fidalgo de Lagos, Martim
Afonso Coelho, referia que já se tinham levantado suspeitas contra perto de 50 cristãos-
velhos, inclusivamente homens nobres como ele. Quase um mês depois, na recta final
da devassa, Frei Diogo de Lagos, guardião do convento da Esperança, fazia um balanço
sobre o estado da questão:
“[...] logo do princípio que ele, Senhor Inquisidor, veio para esta cidade, correu fama
contra cristãos-velhos, nomeando Afonso Claveiro, Diogo Borges e Manuel Jaques,
seu irmão. Porém, que hoje está mais calada e esta andou em algumas pessoas com que
falou, que das mais não sabe por não saber, por não sair fora de seu convento, e que o
fundamento que lhe davam era haverem as ditas pessoas tido brigas e diferenças com a
gente de nação e que, por lhe haverem mal, fariam os ditos escritos. E hoje se diz na
dita vila commumente que as testemunhas que souberam, ouviram alguma coisa a
princípio, estão subornadas e encobrem a ver de que a gente de nação anda hoje mais
pensativa e melancolizada, como que se receiam de alguma coisa [...]”1387
As trocas de acusações semeavam a dúvida. Martim Afonso Coelho acusava a
“gente de nação” de trazer espias pela cidade e que “[...] depois do sucesso, anda toda
em ranchos com maior continuação [...]”1388
. Com o avançar da devassa, surgiram
acusações de depoimentos forjados e de subornos a testemunhas. Dizia-se que Jorge
Pinto, armador, parente de Fernão Nunes, fora agredido por um filho do capitão da
fortaleza de Boliche, sobrinho de Afonso Claveiro, que o ameaçara “[...] que visse em
que se metia e olhasse como falava [...]”1389
. As rivalidades alargavam-se às famílias e
1385
Cf. Idem, fl. 333. 1386
Cf. Idem, fls. 269v-270. 1387
Cf. Idem, fls. 356-356v. 1388
Cf. Idem, fl. 172. 1389
Cf. Idem, fl. 253.
313
aos círculos sociais. Existiam autênticas conspirações. João Álvares de Vilalobos,
escrivão das dízimas da comarca de Lagos, testemunhou o seguinte:
“[... ] ele, denunciante, se persuadiu logo que os escritos eram obra da gente de nação
desta cidade, a qual ele tem toda por judia, em tanto que nem missa ouve de sacerdote
cristão-novo, e a dita gente imediatamente lançou fama que cristãos-velhos o fizeram,
pondo boca em Diogo Borges de Sousa e Manuel Jaques, seu irmão, e Pero Marreiro,
escrivão de almotaçaria, cristãos velhos e homens nobres, e no dito Licenciado
Claveiro, e que esta fama foi fácil de se publicar em razão da muita gente pobre que há
neste lugar, que depende da de nação e vive de seu empréstimos e a causa que davam é
pelos ditos três homens primeiros haverem dado em Marcos Pereira, cristão-novo, que
a gente de nação venera por dizerem que é da melhor tribo de Israel e, em razão de lhe
haverem dado, cobrou a gente de nação aos sobreditos ódio [...]”1390
Os argumentos de João Álvares de Vilalobos revelam uma acesa oposição, não
simplesmente entre cristãos-novos e cristãos-velhos, mas sobretudo entre alguns dos
elementos mais notáveis dos dois grupos. Era um choque de titãs. Por outro lado, os
apoios a uma ou a outra facção não se regiam, necessariamente, pelo critério do
“sangue”. Vilalobos refere a “gente pobre” de Lagos, facilmente aliciada ou pressionada
pelo poder financeiro de alguns cristãos-novos. Tal reflectiu-se na devassa. Alguns
cristãos-velhos acusaram os seus congéneres e, em contrapartida, saíram em defesa da
gente de nação. Eram escravos ou criados de cristãos-novos, mas não só. Aliás, a maior
autoridade ouvida, o governador D. Vasco de Mascarenhas, revelou suspeitar dos
cristãos-velhos da cidade que, devido ao episódio ocorrido com Marcos Pereira e a
consequente prisão de Diogo Borges e de Manuel Jaques, poderiam querer vingar-se da
gente de nação. Apontou mesmo o dedo a Afonso Claveiro, do qual conhecia a má
fama. Foi o que lhe ocorreu logo que soube dos escritos1391
.
Não deixa de ser curiosa esta primeira impressão do governador quando informado do
aparecimento de oito escritos exortando a Lei de Moisés. Segundo Frei Sebastião de Paiva,
religioso do convento da ordem da Trindade, D. Vasco de Mascarenhas tentara proteger os
cristãos-novos de eventuais acusações. Logo no dia a seguir à descoberta dos escritos, o
governador escreveu ao ministro do convento para que aconselhasse Frei Sebastião a ser
“pouco fogoso” na sua homilia e a não “[...] falar em alguém em particular [...]”. Referir-se-
ia à gente de nação – assim entendeu o frade, visto “[...] que o governador lhe difere em
razão de correspondências e empréstimos que lhe faz a dita gente [...]”1392
.
A devassa de Manuel de Magalhães de Meneses não chegou a bom porto. No fim,
nenhuma conclusão. Nunca houve um culpado a dar entrada nos cárceres da Inquisição.
1390
Cf. Idem, fls. 233-233v. 1391
Cf. Idem, fls. 394v-397v. 1392
Cf. Idem, fl. 21v.
314
Nos anos que se seguiram, as prisões em Lagos foram meramente residuais e nunca
relacionadas com o que acontecera na noite de 9 de Julho de 1647. Se nos ficássemos pelo
desenlace, este seria um episódio completamente irrelevante. Além do mais, nem sequer
fora inédito. A publicação de pasquins e escritos alegadamente pró-judaicos repetira-se
noutros momentos e noutros espaços do reino. Rita Marquilhas menciona um caso muito
similar ocorrido em Santarém, em 1689, quando foram encontrados, afixados nas portas das
igrejas, alguns escritos com uma inscrição semelhante à que se lera, anos antes, em Lagos:
«Viva a Lei de Moisés». A devassa inquisitorial revelou-se igualmente inconclusiva1393
.
Porém, a inquirição realizada durante o Verão e Outono de 1647, em Lagos, além de
nos fornecer um autêntico fresco da cidade e do dia-a-dia dos seus moradores, revela o
quanto as tensões sociais previamente existentes podiam ser exacerbadas pela ameaça
da actuação inquisitorial. Aliás, esta torna-se num instrumento de vindicta que, mais do
que sustentada num antagonismo étnico ou religioso, partia de questões pessoais e
sociais: o que separava Afonso Claveiro de Fernão Nunes era a rivalidade profissional;
o que opunha Diogo Borges e Manuel Jaques a Marcos Pereira era a humilhação de uma
pena considerada injusta e, sobretudo, desonrosa. A mácula do sangue estava presente, é
claro. A Afonso Claveiro revoltava ser superado por um outro médico, mais ainda se
cristão-novo. A prisão de Diogo Borges e Manuel Jaques fora particularmente
humilhante porque a justiça preterira a sua causa à de um “judeu”. Mas o sangue não
impedia Afonso Claveiro de andar amancebado com uma cristã-nova, nem D. Vasco de
Mascarenhas de, alegadamente, proteger a gente de nação. A permeabilidade das
relações entre cristãos-novos e cristãos-velhos era demasiado intensa para validar um
modelo de sociedade bipolarizada. Era-o em Lagos. Sê-lo-ia em todo o Algarve.
1393
Cf. Marquilhas, A Faculdade das Letras..., pp. 55-56. O caso de Santarém apresenta outras nuances
similares ao que ocorrera em Lagos: a forma dos pasquins, também escritos em grandes letras capitais; os
locais em que foram fixados (um deles na igreja da Misericórdia); as suspeitas sobre letrados ou estudantes.
315
CONCLUSÃO
Terminemos pelo início. Mais exactamente pela citação do processo de Francisco da
Gama parafraseada no título. Garcia Gonçalves, o Velho, dizia-se com “[...] duas
amarras, uma no mar e outra à terra, e que cria o que criam os judeus e o que criam os
cristãos [...]”1394
. Estávamos em 1558, a Inquisição iniciava a sua primeira investida no
Algarve e, confiando no testemunho de Francisco da Gama, Garcia Gonçalves sentia-se
ancorado a dois portos, a duas fés. Não pensemos no Garcia Gonçalves real, o alfaiate
que se tornara mercador, marido de Isabel Gonçalves, presa pela Inquisição de Lisboa
no ano seguinte. Sobre ele pouco se sabe. Nunca chegou a ser processado e as
informações emanadas doutros processos não permitem confirmar, nem negar as
palavras de Francisco da Gama. Mas foquemo-nos neste Garcia Gonçalves de fé dúbia,
quiçá mero fruto da imaginação de um velho mercador de Vila Nova de Portimão.
Judeu e cristão, um homem dividido entre a Lei de Cristo e a Lei de Moisés –
contraditório, mas não impossível. Na larga maioria dos processos, a confessa
duplicidade religiosa enquadrava-se na distinção entre o público e o privado. O
judaizante demonstrava “na obra” a sua piedade cristã, enquanto que, no domínio
privado, na segurança das quatro paredes do lar, guardava o descanso sabático,
observava os jejuns judaicos, não comia carne de porco ou peixe sem escama. Porém,
essa mesma religiosidade, vivida em segredo, também fora contaminada pela religião
dominante. O judaizante rezava o Padre-Nosso ao Santo Moisés, fazia coincidir as
celebrações judaicas com o calendário cristão, desfiava as contas do rosário durante as
preces. Originalmente, talvez não fossem mais do que simples estratégias de
dissimulação. Porém, com o devir dos anos e das gerações, tais práticas enraizaram-se.
1394
Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fl. 17.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Álvaro de Campos, “Tabacaria”
316
As confissões dos cristãos-novos algarvios revelam a construção de uma
religiosidade progressivamente híbrida. Os rituais mencionados nos primeiros processos
evidenciam uma maior proximidade ao Judaísmo normativo e uma expressão mais
pública ou, pelo menos, aberta a círculos mais alargados do que o núcleo familiar. Já
nos anos 30 de Seiscentos, as práticas judaizantes praticamente se circunscrevem à
guarda do sábado e às respectivas cerimónias de sexta-feira, aos jejuns semanais (não
sujeitos a uma calendarização desconhecida à mor parte dos judaizantes), às prescrições
dietéticas e ao Padre Nosso votado a Moisés. Eram rituais facilmente transmitidos e
memorizados, passíveis de serem inscritos num universo meramente doméstico.
Este é o panorama oferecido pelos processos inquisitoriais. Que ilações podemos
retirar? Por um lado, reflecte um esforço do judaizante em adaptar a sua vivência religiosa
à repressão, simplificando a ritualidade e adoptando práticas facilmente identificadas com
o cerimonial católico. Por outro, indicia uma progressiva perda da memória da fé
professada pelos ancestrais judeus, dado o difícil acesso à liturgia judaica, quase só
possível por via do Cristianismo e dos seus textos sagrados. Pensemos em mais uma
hipótese, já adiantada atrás. O deficitário conhecimento que os inquisidores tinham sobre
o Judaísmo surgia sintetizado nos éditos de fé, lidos e escutados pelos cristãos-novos que,
dessa forma, tomavam consciência do que eles indagavam, do que esperavam ouvir. Com
o avançar da perseguição inquisitorial, eles passaram a saber o que era e como havia de
ser feita uma “boa confissão”. É isso o que exprime o conteúdo das suas confissões, cada
vez mais padronizado, cada vez mais repetitivo. Confissões verosímeis, não
necessariamente verdadeiras.
Afinal, se os alegados judaizantes realmente guardavam “no coração” a Lei de
Moisés, isso é algo ainda mais insondável para nós, no início do século XXI, do que o
fora para os inquisidores, seus contemporâneos. Sobre esses “corações” apenas
podemos tecer hipóteses. Certa seria, porém, a diversidade dos sentimentos e
comportamentos religiosos. Entre o Catolicismo mais ortodoxo e o Judaísmo normativo,
multiplicavam-se as matizes. As duas amarras não nos parecem assim tão absurdas.
Alguém poderia perfeitamente ser judeu e cristão em simultâneo e sem as fronteiras do
público e do secreto. Talvez Garcia Gonçalves vestisse as suas melhores roupas ao
sábado e não trabalhasse durante todo o dia, por observação sincera da Lei de Moisés, e,
no dia seguinte, ainda fosse à missa e recebesse a hóstia, crendo piamente que estava a
comungar o corpo de Cristo. Talvez, em momentos de aziago, rezasse aos santos da
Igreja e, não lhe valendo estes, invocasse a Santa Rainha Ester ou o Santo Moisés,
317
pedindo a riqueza, ou a saúde, ou a sorte que lhe escasseavam. Talvez ajustasse as
crenças às suas vontades, às suas conveniências. Talvez outros, sem a mácula do
“sangue infecto”, fizessem exactamente o mesmo. Se perguntados sobre as matérias de
fé, provavelmente titubeariam na definição das suas crenças tanto, ou ainda mais, do
que os cristãos-novos que enchiam os cárceres da Inquisição. As “culpas de judaísmo”
muitas vezes não são mais do que meras questões de perspectiva. Um cristão-velho
poderia também varrer a sua casa da porta para dentro, jejuar do nascer ao pôr do sol e
duvidar do dogma da Santíssima Trindade, mas muito dificilmente seria acusado de
judaizar. Salvava-o o “sangue limpo”. Por isso, quando nos anos 30 do século XVII
alguns cristãos-velhos de Faro e de Loulé aparecem acusados de “culpas de judaísmo”,
a suspeita esvanece-se no momento em que conseguem provar a limpeza do seu sangue.
Na origem da dúvida não se encontra uma questão religiosa, mas sim “rácica”, a
qual alimenta a exclusão social. Um cristão-novo é naturalmente suspeito de ser
judaizante, como se a “heresia” lhe corresse no sangue. A bibliografia tem notado que a
alegada propensão natural do cristão-novo para o regresso à fé dos antepassados se
tornou um subterfúgio para justificar a exclusão de um grupo que, após a conversão
geral e, por conseguinte, com a abolição da distinção religiosa, pôde ascender aos mais
altos degraus da sociedade1395
. A maioria cristã-velha precisava de encontrar algo que a
distinguisse. Encontrou o sangue – o seu, limpo, o dos outros, conspurcado.
Refere Elvira Mea que “[...] o aproveitamento da paridade perante a lei de cristãos-
velhos e novos, por parte destes, determinou uma separação de tipo sociológico, não
consignado pela lei, determinando roturas e clivagens na sociedade portuguesa, uma
realidade que o funcionamento do Santo Ofício acentuou [...]”1396
. Duas questões emergem,
então: a “separação” social e a forma como a actuação inquisitorial a exacerbou.
Voltemos à problemática da construção da destrinça entre cristão-novo e cristão-velho.
Referi atrás que era uma questão “rácica”. Porque não “étnica”? Esclareçamos os conceitos
à luz da Sociologia. Anthony Giddens define o conceito de raça alicerçado em algo de fixo
e biológico, enquanto que etnia é uma noção puramente social, sem nada de inato, que
engloba “[...] práticas culturais e modos de entender o mundo que distinguem uma dada
comunidade das restantes. Os membros dos grupos étnicos vêem-se a si próprios como
1395
Cf. Ferro Tavares, Judaísmo e Inquisição..., p. 128; Yerushalmi, “Propos de Spinoza...”, Sefardica...,
pp. 195-196; Juan Hérnandez Franco, “El pecado de los padres...”, Hispania..., pp. 515-542. 1396
Cf. Elvira Mea, “Judeus e cristãos-novos em Portugal”, Minorias étnicas e religiosas em Portugal.
História e Actualidade, Coimbra, Instituto de História Económica e Social / Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2003, p. 138.
318
culturalmente distintos dos outros grupos de uma sociedade e são vistos por estes mesmos
grupos como tal [...]”. Prossegue o autor: “[...] através da socialização, os mais jovens
assimilam estilos de vida, normas e crenças das suas comunidades [...]”1397
.
O conceito de sangue é algo de fixo, biológico e inato, usando os termos de
Giddens. Trata-se, portanto, de um critério rácico. Um cristão-novo já nasce enquanto
tal e continua a sê-lo até ao fim dos seus dias, ciente de que irá transmitir às gerações
seguintes essa mesma condição, tal como a recebeu dos seus ascendentes. Só é possível
“limpar” o sangue através de uma contínua miscegenação – cinco gerações até que a
mácula desapareça. Alguém com um só trisavô cristão-novo continua a ser “de nação”.
Vimos, no Algarve, indivíduos com uma ínfima “migalha de cristão-novo” que não
conseguiram escapar ao cárcere inquisitorial. Alguns até tentaram negar essa “migalha”
ou simplesmente alegaram o quão plena era sua integração entre a maioria cristã-velha.
Porém, pressionados pelos inquisidores, muitos acabaram por ceder e confirmar as
culpas que os levaram aos calabouços. Natos em famílias cristãs-velhas, com um único
elo a ligá-los a um remoto antepassado cristão-novo (um bisavô, ou mesmo um trisavô),
que contacto teriam com o universo criptojudaico? As suas confissões podem revelá-lo,
referir a permanência da prática de um ou outro preceito judaizante, mas como confiar
em tais palavras depois de tanta pressão, depois até da tortura e da ameaça de morte na
fogueira? Não podemos partilhar do crédito dos inquisidores e afirmar convictamente
que eles, no seu íntimo, seriam de facto judaizantes. Afirmo novamente: esse é um
terreno insondável. Porém, sabemos o que os conduziu até ao cárcere. Foi o “sangue”.
Foi a memória que as testemunhas acusatórias tinham sobre a sua ascendência cristã-
nova. Foi o preconceito que lhes alimentou a suspeita. Estes ¼ ou 1/8 cristãos-novos
partilhavam entre si não necessariamente uma cultura comum ou uma “fé da
lembrança”, usando a expressão de Nathan Wachtel1398
, mas antes uma “lembrança da
fé”, não a sua ou a dos seus pais ou avós, mas sim a de um antepassado distante que
nascera judeu e morrera como cristão. Uma lembrança hetero-referencial que, para
muitos, se tornou auto-referencial. Colou-se-lhes ao corpo o fato imposto.
1397
Cf. Anthony Giddens, Sociologia, 8ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, pp. 248-249. 1398
Centrando-se nas comunidades da diáspora sefardita, Nathan Wachtel define assim o elo que unia os
seus elementos: “[...] a identidade da «gente de Nação» definia-se, em certo sentido, como reacção ao
ódio que as outras nações lhe dedicavam (segundo a tese de Espinosa), mas envolvia, ao mesmo tempo,
uma componente fundamental e positiva: a fidelidade aos antepassados – pois, a despeito da sua
diversidade, os membros da «nação» comungavam, de facto, numa fé comum, a fé da lembrança.” (Cf.
Wachtel, A fé da lembrança..., p. 32).
319
Porém, a associação do “sangue” a uma série de comportamentos – a disposição
para a heterodoxia, a endogamia, o comércio, a união do grupo, a residência em
determinados espaços –, perpetuada pelo Outro, confere uma dimensão étnica à noção
de cristão-novo. A dúvida reside se essa mesma dimensão se reflectia na forma como o
próprio se auto-percepcionava.
Salvo aqueles em que a dita “lembrança da fé” se desvanecera por completo, os
cristãos-novos tinham consciência da sua herança genealógica. Tal era-lhes recordado
quotidianamente, mesmo quando a ameaça inquisitorial se encontrava longe. O “sangue”
vedava-lhes o acesso a determinados cargos, o ingresso em várias instituições. Por outro
lado, também reconheciam os preconceitos que acompanhavam essa noção e, quando
presos, resistindo à confissão, alguns afirmavam que até se tinham casado com cristãos-
velhos, que se dedicavam ao labor da terra e que apenas mantinham comunicação com
gente de sangue limpo. Mais relevante ainda: alguns até conseguiam prová-lo.
Ver-se-ia o cristão-novo a si próprio como “culturalmente distinto” do cristão-
velho? Seria ele educado em “estilos de vida, normas e crenças” diferentes dos da
maioria? A resposta a estas questões acaba por esbarrar com o velho problema: a
heterogeneidade do conceito de cristão-novo, a sua multiplicidade, a ambivalência da
sua identidade. Yovel Yirmiyahu caracteriza a situação existencial do cristão-novo
como uma nova forma de alteridade, um Outro entre o Mesmo, um other within1399
.
Mas regressemos ao Algarve. Caracterizar univocamente o cristão-novo algarvio
revela-se uma tarefa ingrata, dada a diversidade de situações (as excepções, por vezes,
são tamanhas que inviabilizam qualquer regra) e a possibilidade de uma mesma
realidade suscitar várias leituras. A documentação inquisitorial é propícia a tal, já o
vimos logo no início. Exige um profundo trabalho crítico, que vislumbre para lá do que
está escrito, que leia nas entrelinhas. Assim, o cristão-novo algarvio é-nos revelado
gradualmente, através de sucessivas camadas de percepção.
Numa primeira camada – a mais imediata, a mais próxima da imagem transmitida
pela documentação –, encontramos um grupo distinto da maioria cristã-velha. Concentra a
sua residência nos núcleos urbanos e, em particular, em determinados espaços (alguns até
coincidentes com a localização das antigas judiarias), dedica-se preferencialmente ao
comércio e aos mesteres, os seus elementos tendem a casar-se dentro do grupo, uma parte
significativa mantém crenças e rituais estranhos à religião dominante. À primeira vista, no
1399
Cf. Yovel Yirmiyahu, The Other Within: the Marranos. Split identity and emerging modernity, New
Jersey, Princeton University Press, 2009, pp. 78-79.
320
Algarve, os cristãos-novos constituem uma minoria étnica, com características identitárias
próprias e facilmente diferenciáveis da maioria. É a imagem transmitida pelo Outro, o
Outro repressor. Ao longo do presente trabalho tentei desconstruí-la, ver o que existia por
detrás desta percepção, exterior ao objecto de estudo. Enfim, tentei alcançar as camadas
inferiores. Algumas foram atingidas através de um exercício hermenêutico. Às outras,
apenas consegui ver as pontas e delinear hipóteses de interpretativas.
Sobre a questão religiosa, não me demorarei mais. Fiquemo-nos pela complexidade
e pela diversidade dos sentimentos, crenças e práticas religiosas. Passemos, então, aos
outros elementos. Primeiro, a residência. Vimos como, em Tavira, pouco mais de meio
século após a conversão geral, muitos cristãos-novos já haviam galgado as muralhas da
cidade, fixando-se junto ao rio, longe da área ocupada pelos seus antepassados. A
circulação de gente e de mercadorias animava a zona ribeirinha e tornava-a num espaço
mais atractivo para quem colhia o seu sustento no comércio e nas actividades mesteirais.
A situação repete-se em Faro e até em Vila Nova de Portimão, onde os cristãos-novos
passam a concentrar-se em, pelo menos, três áreas distintas da localidade, junto a três
das portas das muralhas. O pragmatismo pesava mais do que a tradição.
Por outro lado, há indícios que a concentração residencial prevaleceu. Algumas
artérias aparecem manifestamente associadas aos cristãos-novos, como, por exemplo, a
Rua de Santo António, em Faro. Mas a generalidade das informações recolhidas
limitam-se à identificação da morada dos réus. Portanto, só temos acesso a uma parcela
da realidade. É natural que as denúncias caíssem sobre indivíduos com quem o réu
convivia diariamente, com quem partilhava o mesmo tecto ou simplesmente a mesma
rua. As denúncias revelam uma concentração em três círculos de relações: a família, a
vizinhança e a profissão. E os outros? Apenas podemos traçar conjecturas. É provável a
existência de uma continuidade residencial familiar – pelo menos um dos filhos herdaria
a casa dos pais, tornando-a na sua própria residência. Além disso, um critério com
grande peso na escolha do espaço de residência seria, como se viu, a conveniência
profissional. Considerando que os cristãos-novos partilhavam uma mesma história
genealógica – a descendência dos antigos judeus que, por sua vez, tinham a residência
confinada a um espaço determinado – e uma propensão para o desempenho de
determinadas actividades económicas, a concentração geográfica do grupo seria uma
consequência natural.
Até meados do século XVII, o comércio e os mesteres eram as actividades
dominantes entre os cristãos-novos algarvios, tal como haviam sido entre os judeus.
321
Uma continuidade profissional? Vimos a frequência com que um ofício perdurava numa
mesma família, de geração em geração. No Algarve, identificámos famílias de
mercadores, de sapateiros, de surradores. Predominavam os ofícios urbanos, mas não
existia uma desvinculação à terra e aos seus frutos. Embora sejam pouco significativos
os casos de cristãos-novos apresentados como lavradores, muitos dos mercadores e
mesteirais possuíam nos termos das cidades e vilas o seu quinhão de terra. Ali
cultivavam vinhas, oliveiras e árvores de fruto, especialmente figueiras. Na cidade, nas
tendas, nas feiras ou às embarcações que chegavam aos portos, vendiam vinho, azeite,
figo – enfim, vendiam (não só, mas também) aquilo que cultivavam. A actividade
agrícola vinculava-se com o mercado e não era um vínculo meramente estabelecido por
estes cristãos-novos mercadores-lavradores. Com uma economia especializada num
número restrito de produtos, o Algarve era uma região onde, como referem as relações e
corografias coevas, os figueirais, os olivais e as vinhas cobriam grande parte do
território agrícola, deixando pouco espaço à cultura de subsistência e, em particular, ao
trigo que, de quando em vez, escasseava nos mercados e nas mesas. As culturas que
povoavam as propriedades agrícolas dos cristãos-novos eram as mesmas que os
cristãos-velhos colhiam das suas terras. Não há uma diferenciação.
Provavelmente, a assimetria também não seria tão acentuada no que respeita às
actividades económicas desenvolvidas quanto se julga a uma primeira vista. Numa
região onde o comércio desempenhava um papel determinante no tecido económico, a
actividade mercantil atraía também capitais de cristãos-velhos, inclusivamente da
pequena nobreza algarvia1400
. A distinção sócio-profissional entre cristãos-novos e
cristãos-velhos talvez se operasse em termos de prioridades, os primeiros mercadores-
lavradores e os segundos lavradores-mercadores. Relativamente aos mesteirais, a
discrepância seria ainda menos significativa.
A situação mudava no acesso a determinados cargos administrativos e religiosos,
vedados aos cristãos-novos pelos estatutos de limpeza de sangue. Mas as barreiras não
eram impermeáveis, ainda para mais numa região tão afastada do poder central como
era o Algarve. Identificámos cristãos-novos no cabido de Faro, em ofícios
administrativos e até no seio de confrarias cujos estatutos exigiam aos seus membros o
sangue limpo. Lado a lado com cristãos-velhos.
1400
Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., p. 227.
322
Se a actividade económica condiciona a selecção do espaço de residência, também
determina as relações estabelecidas fora do círculo familiar. Correntemente, a escolha do
cônjuge ocorre dentro desse universo relacional. Olhando para as genealogias,
verificamos a tendência de sogro e genros partilharem a mesma actividade profissional ou
actividades complementares. No caso dos mercadores, o casamento solidifica alianças
profissionais, sela um vínculo que se quer de máxima confiança. O sucesso do negócio
sustenta-se no crédito entre os seus operantes e os laços matrimoniais sagram-no.
A endogamia não se limita ao grupo cristão-novo, como também ao grupo dos
mercadores, ou dos sapateiros, ou até dos cirurgiões, por exemplo. Subindo na escala
social, onde seria mais comum a existência de uma política matrimonial definida pelos
progenitores, não podemos negar o valor do “sangue”. Conhecemos pais cristãos-novos
que repudiaram o casamento “misto” dos filhos. A situação inversa seria ainda mais
comum. O enlace com alguém de “sangue infecto”, ainda para mais quando a família
suportava a mancha da prisão inquisitorial, era motivo de vergonha. Porém, a atraente
combinação honra-dinheiro acabava por falar mais alto. No Algarve, onde predominava
a pequena nobreza, assistimos a uma crescente aproximação dos cristãos-novos à
aristocracia local, o que lhes abria outras portas, outras perspectivas de ascensão social.
Esta é uma das transformações mais evidentes – o crescente número de casamentos
mistos e a multiplicação de indivíduos com “parte de sangue hebraico”. Nos processos
decorrentes dos anos 30 e 40 de Seiscentos, os réus cristãos-novos inteiros tornam-se
minoritários. Por outro lado, também passam a ser mais comuns as referências a
lavradores “de nação”, residentes nos termos das cidades ou nos espaços rurais do
barrocal. Detenhamo-nos, porém, num senão: esta vaga de prisões atinge Loulé e
Albufeira, até então praticamente livres da actuação inquisitorial, vilas onde a
actividade agrícola predominava.
Os cristãos-novos que encontramos na década de 30 do século XVII diferem
substancialmente dos que haviam sido presos pela Inquisição de Lisboa cerca de 70
anos antes. As características que os distinguiam da maioria cristã-velha atenuam-se:
multiplicam-se as uniões exogâmicas, a ligação à terra intensifica-se, alguns abandonam
a cidade rumo ao campo, as alegadas práticas judaizantes revelam-se mais simples, mais
padronizadas, mais distantes do Judaísmo normativo. Os cristãos-novos envelhecem.
No meio, três entradas da Inquisição, mais de 800 prisões.
É inegável que a acção inquisitorial constituiu um elemento desestabilizador das
comunidades cristãs-novas. Mas, sem a Inquisição, existiria o Cristão-Novo? Perante
323
um cenário não repressivo, não teria ocorrido uma assimilação plena dos descendentes
dos “baptizados em pé”? A historiografia tem ponderado insistentemente sobre estas
questões. Recordemos a tese de António José Saraiva – o marrano enquanto uma
construção do elemento repressor. Anita Novinsky não nega que a Inquisição tenha
criado o mito do judaizante, porém, este foi igualmente assumido pelos próprios
cristãos-novos, mas não necessariamente enquanto atitude e sentimento religiosos: “A
Inquisição criou o «mito do judaizante», recriou-o continuamente, mas o «judaizante»
foi uma realidade que também se revitalizou, na maior parte não como participante
consciente da comunidade religiosa judaica, mas enquanto homem condicionado por
uma «situação» que o identificava com os judeus através da «exclusão»”1401
. No século
XVII, ao qual Novinsky se reporta, a identidade neocristã construiu-se em resposta a
uma instituição repressiva e, acrescentaria, a uma sociedade ostracizante. Nos antípodas
desta perspectiva, encontramos Elias Lipiner. Segundo o autor, o Judaísmo nunca
chegou a extinguir-se em Portugal, apenas regrediu “[...] tornando-se cada vez mais
vago, consoante o seu exercício, por medo da Inquisição, se ia tornando mais difícil, e o
isolamento religioso, mesmo nas suas formas residuais, se mostrava extremamente
incómodo”1402
. Ora, as diferentes perspectivas sobre uma mesma questão evidenciam a
dualidade do comportamento do Cristão-Novo face à repressão inquisitorial. Perante o
verdugo, a vítima adopta um de dois comportamentos: identifica-se com o Mesmo ou
aproxima-se do Outro.
No Algarve, presenciamos ambas atitudes. Por um lado, assistimos à afirmação de
uma identidade própria, o orgulho na herança hebraica que cresce proporcionalmente
aos “episódios dramáticos da Inquisição”, usurpando a expressão a António Baião. As
notícias sobre as vítimas do Tribunal inspiram um sentimento de pertença ao grupo
perseguido e injustiçado. António Homem ainda era recordado no Algarve (a tantas
léguas do cenário dos acontecimentos) passados vários anos, décadas até. Diogo Lopes
Ulhoa, no Brasil, mandara erigir uma capela em honra da filha “mártir”. Tais episódios
também instigavam a revolta. Alguns ousavam criticar em alta voz a máquina
inquisitorial, falavam dos “Neros Vespasianos” de Évora, dos abusos dos familiares do
Santo Ofício. Outros bradavam contra os cristãos-velhos em geral e envaideciam-se da
sua “melhor posta” (a cristã-nova, é claro) e de descenderem dos maiores “cavaleiros”,
1401
Cf. Novinsky, “Um problema de historiografia”, Cristãos Novos na Bahia..., pp. 6-7. 1402
Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 413.
324
aqueles que haviam morto o próprio Cristo. Orgulhavam-se do sangue que o Outro
chamava de infecto.
Por outro lado, havia quem tentasse “limpar” esse mesmo sangue. E tal não passou
apenas pela progressiva exogamia e pelo desvanecimento da “cristã-novice” de geração
para geração. Houve um aproximar ao modus vivendi do Cristão-Velho. Trocaram a
mercancia pelo labor da terra, colocaram os filhos em conventos e mosteiros, tentaram
iludir os estatutos de limpeza de sangue e ingressaram nas misericórdias, nos cargos
municipais e até nas ordens militares.
Quando, no Verão de 1647, a suspeita ensombrou Lagos e o inquisidor devassou a
cidade em busca de culpados, os cristãos-novos passaram a “andar mais juntos”, como
referiu uma testemunha. Por outro lado, cristãos-velhos saíram em defesa da “gente de
nação”, apontando o dedo a quem se dizia de “sangue limpo”. A ameaça da prisão, que
nunca chegou a passar disso, acabou por criar uma clivagem – cresceram as suspeitas de
que haviam sido cristãos-velhos a tentar implicar cristãos-novos, ou cristãos-novos a
suscitar a dúvida sobre cristãos-velhos – que parece quase artificial no contexto da
sociedade lacobrigense de meados de Seiscentos. Cristãos-novos e cristãos-velhos eram
vizinhos, parceiros de negócios, amigos, parentes até.
A presença da Inquisição agudizou as fracturas, inclusivamente dentro do próprio
grupo. De 1647 passemos para 1585. Durante a visita inquisitorial de Manuel Álvares
Tavares ao Algarve, alguns cristãos-velhos testemunharam contra os vizinhos ou os
patrões. Porém, cristãos-novos também denunciaram os seus congéneres, alguns até
parentes muito próximos. Havia quem tentasse salvar a própria pele, atraído pela
misericórdia prometida pelos éditos de fé. Outros, porém, usaram a Inquisição para o seu
próprio interesse, em prol de vindictas pessoais. Não era só a pressão dos inquisidores ou
as agruras do cárcere que levavam à delação no interior do grupo ou mesmo da família.
Das três entradas da Inquisição no Algarve, só uma teve origem em denúncias de cristãos-
velhos. Na primeira e na terceira vagas, foram os próprios cristãos-novos a atear o
rastilho. Por detrás, encontramos desavenças familiares, sobretudo questões de heranças.
A multiplicação das prisões processou-se à margem dos cristãos-velhos. Estes só eram
convocados como testemunhas, nomeadamente na defesa dos réus. Então, muitos
confirmaram que os réus eram bons cristãos, que iam todos domingos à missa, que se
confessavam pelo Natal e pela Quaresma. Testemunharam em seu favor.
Portanto, a própria minoria cristã-nova encontrava-se dividida no seu interior. A
clivagem sentia-se até dentro da própria família. A Inquisição e, em particular, as
325
diferentes atitudes face à perseguição acabaram por acentuar as divisões. Era maior a
ameaça que vinha de dentro do que a surgida de fora.
Referi dois comportamentos adoptados pelos cristãos-novos perante a repressão
inquisitorial. Deveria mencionar três. Afinal, além da resistência e da assimilação, uma
outra atitude foi adoptada: a evasão. Em Faro, quando começaram as prisões nos anos
30 de Seiscentos, alguns dos mercadores de maiores cabedais conseguiram transpor a
fronteira e estabelecer-se nas cidades andaluzes. Em finais do século XVI, também Vila
Nova de Portimão sofreu uma debandada da “gente de nação”, alguns rumo a outras
urbes algarvias, outros para fora do reino, inclusivamente além-Atlântico.
No Algarve, a actuação inquisitorial não provocou apenas uma transformação das
comunidades cristãs-novas. Também fez baixas. É possível identificar uma tendência: a
Inquisição entrava em comunidades emergentes e “secava-as”. Ao actuar sobre um
grupo com tamanho peso na economia urbana e ao provocar a sua desestruturação, a
repressão inquisitorial hipotecava o desenvolvimento dos núcleos citadinos. À vaga de
prisões seguia-se uma fase de decadência – aconteceu em Tavira, em Vila Nova de
Portimão e, mais tarde, também em Faro.
Após 1650, a Inquisição ainda voltou ao Algarve, embora não com a intensidade de
outrora. Na segunda metade da década de 60, um número considerável de prisões
afectou Albufeira. Entre 1666 e 1670, foram presos perto de 40 cristãos-novos, a
maioria lavradores. A incidência da acção inquisitorial nesta vila, profundamente ligada
à actividade agrícola, espelha uma realidade mais ampla – a ruralização do Algarve,
segundo Romero Magalhães, “[...] um processo lento e complexo que resulta da
conjugação da crise estrutural dos impérios peninsulares, iniciada por 1620, da
perseguição inquisitorial, das guerras europeias, de um confinamento crescente dos
grupos dominantes”1403
. Embora não tenha sido o único factor a contribuir para a
tendência ruralizante sentida no Algarve com o avançar do século XVII, antes pelo
contrário, não podemos negar o papel determinante que a acção inquisitorial exerceu
nesse processo.
Garcia Gonçalves nunca chegou a largar nenhuma das amarras. O Algarve também
não. Cresceu com uma amarra ao mar e outra à terra: de um lado, a vocação marítima e
comercial, do outro, a especialização de parte desse comércio em produtos agrícolas. O
crescimento urbano sustentou-se em alicerces rurais1404
. Os próprios cristãos-novos,
1403
Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 395. 1404
Cf. Idem, Ibidem, p. 103.
326
maioritariamente mercadores e mesteirais, nunca chegaram a cortar o vínculo à terra.
Perante a perseguição inquisitorial, por um lado, e a retracção do desenvolvimento
urbano, por outro, esse vínculo fortaleceu. Economicamente, a distinção face aos
cristãos-velhos desvanecia-se. As cidades perdiam gente. Supomos que tal se
evidenciasse, com maior intensidade, nas áreas urbanas associadas aos cristãos-novos,
os pólos mais fervilhantes de uma actividade comercial que entrava em recessão.
Alguns haviam abandonado as suas casas na cidade por quintas no campo, outros
tinham partido definitivamente da região, até do reino. Os casamentos mistos
proliferavam, as dúvidas sobre a qualidade de sangue cresciam. E constatamos que não
era só no plano económico que se atenuava a distinção entre cristãos-novos e cristãos-
velhos. A maioria dos cristãos-novos do Algarve preterira a resistência à assimilação.
Cem anos após as palavras de Garcia Gonçalves, parecia que uma amarra se começava a
romper. Mas não para todos. Mas não para sempre. Aos 43 anos de idade, Belchior
Navarro, advogado de Loulé, cuja esposa pertencia à melhor nobreza da vila, confessou
a um frade do Convento de Nossa Senhora da Graça que, na casa paterna, todos
mantinham a crença a Lei de Moisés, observando-a com “alguns jejuns e rezas”1405
. Era
3 de Novembro de 1755 e a terra tremera.
1405
Cf. ANTT, IE, proc. 2174.
327
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15 (Manuel Mendes. 1630-1631); 1-1-16 (Manuel Mendes. 1632-1633); 1-1-17
(Diogo Rebelo. 1638-1639); 1-1-18 (Diogo Rebelo. 1640).
Cartório Notarial de Tavira
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1 (1597-1658) e 2 (1658).
Casamentos. Livro n.º 1 (1597-1738).
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Lisboa: Academia das Ciências
Série azul
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Códice 402 (“Collecção dos Documentos dos Cartorios do Algarve, Civis e
Ecclesiásticos, copiados por ordem da Academia Real das Sciencias em 1790”)
Códices 403 e 404 (“Continuação dos Documentos dos Cartorios do Algarve, Com.ca
de
Beja, Montr.º de S. Vicente, e Annexos, copiados por ordem da Acad. R. das Sc.as
”)
Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Chancelarias Reais
D. Afonso V, livro n.º 9
D. João III. Padrões, Doações, Ofícios e Mercês, livros n.os
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D. Filipe III. Perdões e Legitimações, livro n.º 15.
D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, livros n.os
18 e 25.
D. Afonso VI. Doações, Ofícios e Mercês, livros n.º 2 e 23.
Chancelaria da Ordem de Cristo, livros n.os
18 e 50.
Corpo Cronológico
Parte I, mç. 89, n.º 112; mç. 90, n.º 120; mç. 113, n.º 90.
Leitura Nova
Odiana, livro n.º 1.
Mesa da Consciência e Ordens
Habilitações da Ordem de Cristo, Letra M, mç. 42, doc. 30.
Núcleo Antigo
Doc. 893 (“Collecção dos documentos pertencentes ao Reyno do Algarve que se
achão no Real Archivo da Torre do Tombo, feita por ordem do Ill.mo
e Ex.mo
Senhor
Marquez de Pombal”).
Tribunal do Santo Oficio
Conselho Geral
Habilitações, Afonso, mç. 1, doc. 17; Baltazar, mç. 1, doc. 19; Lopo, mç. 1, doc. 2.
Livros n.os
44, 64, 97, 98, 164, 360, 367, 434, 461
Maço n.º 7
Inquisição de Coimbra, processos n.os
5453, 8686
Inquisição de Évora
Processos n.os
133, 191, 267, 309, 328, 331, 375, 376, 431, 458, 462, 463, 467,
468, 484, 584, 590, 627, 642, 680, 682, 736, 738, 756, 767, 824, 875, 1042,
1103, 1290, 1322, 1341, 1363, 1366, 1460, 1491, 1508, 1548, 1597, 1602, 1604,
1639, 1657, 1672, 1682, 1730, 1750, 1762, 1769, 1786, 1833, 1834, 1835, 1836,
2152, 2169, 2197, 2218, 2219, 2258, 2275, 2279, 2324, 2326, 2330, 2331, 2332,
2437, 2525, 2527, 2566, 2578, 2649, 2658, 2666, 2680, 2699, 2721, 2719, 2743,
2757, 2758, 2770, 2775, 2777, 2815, 2841, 2849, 2851, 2871, 2877, 2878, 2891,
2907, 2962, 2968, 2991, 3029, 3030, 3033, 3069, 3097, 3141, 3163, 3165, 3166,
3190, 3194, 3205, 3208, 3276, 3295, 3328, 3363, 3367, 3446, 3454, 3477, 3557,
3558, 3559, 3560, 3561, 3562, 3563, 3588, 3655, 3681, 3693, 3739, 3749, 3763,
3808, 3938, 3939, 3953, 3997, 4056, 4086, 4087, 4151, 4154, 4192, 4195, 4248,
4264, 4341, 4361, 4376, 4382, 4383, 4385, 4386, 4391, 4400, 4403, 4406, 4436,
4446, 4504, 4571, 4591, 4593, 4603, 4605, 4606, 4613, 4650, 4668, 4707, 4724,
4747, 4754, 4820, 4837, 4871, 4877, 4965, 5063, 5071, 5101, 5103, 5226, 5259,
5262, 5281, 5286, 5295, 5365, 5489, 5495, 5496, 5519, 5530, 5545, 5548, 5576,
329
5579, 5603, 5606, 5671, 5677, 5686, 5718, 5753, 5754, 5755, 5805, 5830, 5831,
5895, 5906, 5908, 5909, 5994, 6009, 6015, 6017, 6021, 6023, 6056, 6059, 6091,
6092, 6095, 6208, 6209, 6212, 6298, 6341, 6355, 6359, 6383, 6385, 6438, 6441,
6444, 6446, 6465, 6485, 6519, 6721, 6722, 6725, 6726, 6727, 6773, 6779, 6826,
6854, 6919, 6921, 6924, 6926, 6954, 6969, 6970, 6974, 6978, 6980, 6982, 6984,
6988, 7053, 7188, 7212, 7330, 7331, 7334, 7335, 7345, 7356, 7357, 7406, 7424,
7448, 7464, 7496, 7516, 7531, 7534, 7585, 7653, 7711, 7723, 7765, 7792, 7838,
7842, 7856, 7881, 7906, 7911, 7912, 7922, 7934, 7939, 7941, 7942, 7966,
7973, 7974, 7984, 8043, 8057, 8086, 8088, 8092, 8149, 8173, 8185, 8211, 8215,
8261, 8265, 8266, 8372, 8397, 8516, 8526, 8541, 8545, 8569, 8603, 8654, 8698,
8721, 8735, 8751, 8783, 8789, 8790, 8817, 8844, 8925, 8928, 8973, 9005, 9012,
9034, 9039, 9040, 9056, 9071, 9130, 9361, 9380, 9408, 9411, 9465, 9615, 9829,
10523, 10531, 10580, 10762, 10785, 10932, 10967, 11045, 11123, 11297,
11315, 11368, 11735, 16695.
Livros n.os
16, 90, 92, 147, 212, 213, 217, 222, 227, 228, 229, 230, 232, 238,
240, 261, 589, 601, 629.
Maços n.os
1, 2, 10, 20, 23, 26, 36, 53, 56.
Inquisição de Lisboa
Processos n.os
65, 108, 168, 364, 367, 604, 623, 872, 874, 882, 886, 888, 895,
1014, 1105, 1106, 1107, 1112, 1156, 1212, 1316, 1325, 1416, 1519, 1583, 1651,
1688, 1695, 1754, 1833, 1835, 1838, 1840, 1867, 2035, 2060, 2166, 2180, 2190,
2215, 2302, 2319, 2369, 2373, 2374, 2375, 2486, 2511, 2518, 2601, 2859, 2887,
2888, 2891, 2897, 2928, 3071, 3093, 3104, 3114, 3116, 3118, 3124, 3162, 3165,
3227, 3255, 3264, 3270, 3278, 3285, 3513, 3542, 3545, 3837, 3839, 3845, 3868,
3874, 3886, 4092, 4095, 4134, 4195, 4244, 4388, 4458, 4467, 4510, 4511, 4517,
4519, 4527, 4528, 4794, 4823, 4983, 5039, 5081, 5084, 5117, 5289, 5290, 5498,
5516, 5520, 5733, 5755, 5762, 5787, 5759, 5783, 5807, 5923, 6046, 6053, 6143,
6204, 63706514, 6568, 6571, 6586, 6854, 7169, 7175, 7222, 7285, 7286, 7310,
7359, 7377, 7434, 7469, 7479, 7739, 7742, 7748, 7750, 7751, 7773, 7786, 7938,
7941, 8056, 8071, 8134, 8301, 8303, 8318, 8351, 8418, 8484, 8489, 8491, 8514,
8540, 8549, 8703, 8925, 8965, 8981, 8983, 8985, 9243, 9445, 9829, 9783,
10041, 10043, 10045, 10211, 10325, 10326, 10375, 10392, 10397, 10504,
10569, 10742, 10778, 10779, 10813, 10883, 10884, 10886, 10959, 10960,
10964, 11102, 11144, 11388, 11627, 11660, 11668, 11669, 11689, 11866,
11981, 12017, 12032, 12096, 12184, 12185, 12190, 12191, 12331, 12342,
12344, 12346, 12419, 12434, 12444, 12475, 12479, 12482, 12483, 12485,
12493, 12496, 12503, 12508, 12528, 12529, 12530, 12531, 12694, 12745,
12751, 12752, 12762, 12778, 12806, 12811, 12816, 12818, 12821, 12825,
12848, 12940, 12976, 12981, 12982, 12983, 12997, 13002, 13039, 13040,
13049, 13117, 13193, 13280, 13285, 13394
Livro n.º 228
Maço n.º 40, doc. 57.
Manuscritos da Livraria
Ms. 2063 (“Memórias da Santa Província dos Algarves da Ordem Seráfica”).
330
Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal
Reservados
Códice 53 (“Catalogo dos Inquizidores Geraes, Inquizidores e Deputados das
Inquizições de Lisboa, Coimbra e Evora”).
Códices 224 e 10835 (Miscelânea de documentos relativos ao Algarve)
Códice 475 (“Geografia física e histórica do Brasil, das antigas possessões de
Portugal em África e na Ásia, e de Portugal”)
Códices 863 e 864 (“Collecção de listas impressas e manuscritas dos autos de fé
públicos e particulares da Inquisição de Lisboa [...]”).
Códices 867 a 869 (“Collecção de papeis impressos e manuscriptos originaes, mui
interessantes para conhecimento da historia da Inquisição em Portugal”).
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Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, IN-CM; Coimbra, Faculdade de Economia da
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Portugal, Madrid, Oficina de Joachin Ibarra, 1762
Capitulos Gerais apresentados a El Rey D. Ioão [...] nas cortes celebradas em Lisboa
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Collectorio de diuersas letras apostolicas, prouisões reaes, & outros papeis, em que se
contém a Instituição, e primeiro progresso do Sancto Officio em Portugal, & varios
Priuilegios que os Summos Pontifices, & Reis destes Reynos lhe concederão [...],
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