«Inúmeras manufaturas, entre elas algumas emblemáticas ... · depois, começava o escândalo...

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COLEÇÃO AUDEMARS PIGUET ROYAL OAK

Royal Oak: há 40 anos a navegar com sucesso

Foi o primeiro relógio desportivo de luxo, rompendo conceitos estéticos  

e usando o aço como se fosse um metal precioso. O Royal Oak ajudou  

a Audemars Piguet a ultrapassar a crise do quartzo e mantém-se hoje  

como modelo e ícone da manufatura.

Por Fernando Correia de Oliveira

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Há 40 anos, a Península Ibérica vivia em ditadura, mas os regimes de Lisboa e Madrid começavam a dar já sinais de desgaste e fraqueza. A comunidade internacional isolara um e outro, e as transições democráticas iriam chegar brevemente. Mas 1972 começara de forma sangrenta na Europa: em janeiro, em Derry, na Irlanda do Norte, a repressão do exército britânico sobre os independentistas católicos saldava-se em 13 mortos (o episódio, conhecido como Bloody Sunday, iria inspirar uma das mais conhecidas canções dos U2). O presi-denteÊdosÊEstadosÊUnidos,ÊRichardÊNixon,ÊiriaÊÞcarÊna história pelos melhores e piores motivos: em fevereiro, fazia uma inesperada visita à China; meses depois, começava o escândalo Watergate, que iria levar ao seu afastamento. O mundo vivia a tensão da Guerra Fria e a Europa 

mantinha-se dividida, num quadro saído da II Guerra Mundial. Nos Jogos Olímpicos, em Munique, os pa- lestinianos do Setembro Negro atacavam a delega-ção israelita, tendo sido assassinados onze atletas. A Alemanha Federal sagrava-se campeã da Europa em futebol, o alemão Heinrich Böll era Prémio Nobel da Literatura. Em Londres, estreava-se Jesus Cristo Superstar, de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber. OÊÞlmeÊO Último Tango em Paris, de Bernardo Berttolucci, com Marlon Brando e Maria Schneider, provocava o escândalo generalizado. A França apresentava o TGV. Nascia o conceito de tempo universal coordenado (UTC), que vinha substituir o conceito de tempo médio de Greenwich (GMT).  E a indústria relojoeira suíça morria uma morte  que parecia rápida e inexorável.O aparecimento da tecnologia do quartzo e a 

inunda��oÊdosÊmercadosÊcomÊrel�giosÊÞ�veisÊeÊbaratos por parte do Japão provocaram uma he- catombe no setor, na década de 70 e no início  dos anos 80. Segundo números da Fédération  de l’industrie horlogère suisse (FH), a indústria relojo-eira tinha 90 mil trabalhadores em 1970 e chegou aos 30 mil em 1984. O número de empresas di- mi nuiu de 1.600, em 1970, para menos de 300  no auge da crise. Hoje em dia, há cerca de  600 empresas, que empregam aproximadamente 50ÊmilÊpessoas.

«Os efeitos do quartzo sobre a indústria relojoeira tradicionalÊs�oÊdevastadoresÈ,ÊreßeteÊDominiqueÊFléchon na sua mais recente obra, La Conquête du Temps (Flammarion, 2011). «Inúmeras manufaturas, entre elas algumas emblemáticas, como a francesa Lip, desaparecem. Os relojoeiros mais velhos são reformados, os outros tentam reconverter-se. As escolas de relojoaria fecham. Uma placa de chumbo abate-seÊsobreÊumaÊproÞss�oÊsinistrada.ÈPerante este cenário, não será difícil visualizar 

o clima de desesperança, de algum desespero mesmo, que rodeava a edição de 1972 da Feira de Basileia, já naquela altura a montra principal do setor a nível mundial.Embora a pesquisa e o desenvolvimento se 

centrassem então, mesmo na Europa, no melho-ramento da medição eletrónica do tempo, «alguns raros mestres relojoeiros perseveravam, ignorando o perigo, como se a mecânica, por milagre, pudesse virÊaÊresponderÊaosÊnovosÊdesaÞosÊimpostosÊpeloÊprogresso ávido de uma precisão que os meios tradicionais não podiam, inexoravelmente, satisfazer mais», escreve Fléchon.Mas, ao mesmo tempo, começava a surgir por 

esta altura uma nova clientela – ousada, ativa, adeptaÊdosÊdesaÞosÊproÞssionaisÊeÊdesportivos,ÊdeÊum estilo de vida dinâmico. Os relojoeiros tiveram então de inventar relógios suscetíveis de acom-panhar os homens de ação em todas as suas atividadesÊquotidianas,ÊproÞssionaisÊouÊdeÊlazer.ÊO cronógrafo, sobretudo o automático, acabado de inventar (1969), popularizava-se. Respondendo aÊestaÊrealidade,ÊnoÊÞnalÊdosÊanosÊ60ÊeÊin�cioÊdosÊanos 70, uma nova abordagem estilística começa a 

« Inúmeras manufaturas, entre elas algumas emblemáticas, como a francesa Lip, desaparecem. Os relojoeiros mais velhos são reformados, os outros tentam reconverter-se. As escolas de relojoaria fecham. Uma placa de chumbo abate-se sobre uma profissão sinistrada»

Dominique Fléchon

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atingir o design dos relógios de pulso. Após várias décadas, o relógio técnico adota a forma tonneau, dando-lhe um lado masculino, reforçado pela caixa em aço, menos caro que o ouro. Clássico e robusto, o relógio desportivo atrai agora aqueles que veem nele também um objeto elegante, um acessório e, ao mesmo tempo, um instrumento que evoca o ambiente das corridas de automóveis. Aparecem as caixas quadradas.É por esta altura que, «procurando um relógio que 

nunca tenha existido», a respeitável e histórica ma- nufatura Audemars Piguet aborda o designer Gerald Genta. E, na Feira de Basileia de 1972, é apresen-tado o Royal Oak, o primeiro relógio desportivo de 

luxo, com caixa em aço, «metal deliberadamente promovido à categoria dos metais preciosos», lem-bra Fléchon. A sua luneta octogonal, com parafusos aparentes e montada numa caixa com oito lados, alinha-se ao gosto da época, num revivalismo do tonneau Art Déco.Durante a apresentação do Royal Oak, «o mundo 

relojoeiro está tão surpreendido como cético: este relógio em aço é, na verdade, mais caro que muitos relógios em ouro!», sublinha o historiador. «No entanto, o Royal Oak conhecerá um sucesso planetário e durável.»O Royal Oak original (49 x 39 x 3 mm) tinha o 

mostrador com decoração guilloché, tipo tapeçaria. E vinha com um calibre automático, com rotor central,ÊoÊmaisÊÞnoÊdaÊsuaÊ�poca.ÊIndicavaÊhoras,Êminutos e data (numa janela, nas três horas). Outro aspeto revolucionário e tecnicamente difícil de re-solver era o facto de ter pulseira em aço, totalmente integrada na caixa.Gerald Genta, falecido em agosto do ano pas-

sado,ÊaosÊ80Êanos,ÊnasceuÊemÊGenebraÊeÊeraÊÞlhoÊde mãe suíça e pai italiano. A sua formação inicial foi em joalharia e ourivesaria, mas o primeiro em-pregoÊqueÊteve,ÊnosÊanosÊ50,ÊfoiÊlogoÊnaÊrelojoariaÊ– contratado pela Universal Genève, desenvolveu ali um calibre automático, com microrrotor, que colocou no primeiro relógio que desenhou, o Poler-outer. Seguiram-se, para a mesma marca, o Golden e o White Shadow (equipados com microrrotores e calibres elétricos Unisonic e Accutron, a tentativa de 

O sucesso do Royal Oak rapidamente levou a Audemars Piguet a conceber variações sobre o modelo. Do aço, passou-se ao ouro e até às invulgares declinações em aço  e ouro, denominadas bicolores.

COLEÇÃO AUDEMARS PIGUET ROYAL OAK

É por essa altura que, “procurando um relógio que nunca tenha existido”, a res-peitável e histórica manufatura Audemars Piguet aborda o designer Gerald Genta.  E, na Feira de Basileia de 1972, é apresen-tado o Royal Oak, o primeiro relógio des-portivo de luxo, com caixa em aço, “metal deliberadamente promovido à categoria dos metais preciosos”, lembra Fléchon.

Gerald Genta e o esboço daquele que viria a ser o primeiro Royal Oak. As declinações do mostrador em azul e em preto sempre acompanharam o modelodesde a sua criação.

Os desenhos técnicos submetidos para a atribuição da patente do Royal Oak.

A caixa, a luneta octogonal e os caraterísticos parafusos do Royal Oak são a sua assinatura. Inconfundível marca do ADN estético do relógio.

Um bilhete de entrada na Feira de Basileia de 1972 onde foi apresentado o Royal Oak pela primeira vez. Face ao sucesso do modelo a Audemars Piguet iniciou a produção de variações, incluindo peças para senhora e em ouro.

resposta suíça ao quartzo). Gerald Genta começa a ser conhecido como designer e a ser solicitado por muitas manufaturas. Além do Royal Oak, criou alguns dos modelos mais conhecidos de sempre na relojoariaÊdeÊpulsoÊÐÊoÊOmegaÊConstellationÊ(1959),Êo IWC Ingenieur (1976), o Patek Philippe Nautilus (1976) ou o Cartier Pasha (1997). Desde 1969, tem a sua própria marca, especializada em sonneries e em encomendas especiais para ricos e famosos. Durante os anos 80, Genta obteve licença da Walt Disney e produziu séries limitadas onde persona-gens como Rato Mickey, a Minnie, o Pato Donald ou o Pateta aparecem em relógios em ouro.Como surgiu a ideia do Royal Oak? Gerald Genta 

nunca foi muito preciso quanto a isso: invocava a falta de documentos, de memória…Gregory Pons, jornalista francês que acompanha 

há quatro décadas o setor, dá-nos alguns porme-nores, depois de várias conversas com Genta e, principalmente,ÊcomÊaÊvi�vaÊeÊaÊÞlha,ÊqueÊtrabalha-vam com ele no atelier de Genebra. «Os primeiros traços a lápis não foram propriamente para um relógio desportivo, mas para um trabalho sobre a caixa», refere o especialista. «A forma octogonal já lá estava há muito na sua cabeça, ele sempre teve in-tenção de fazer um relógio com essa forma. A ideia dos parafusos ou a inspiração no portaló da linha de 

veleiros Royal Oak surgiu muito mais tarde.»Pons revela ainda outro pormenor inédito: foi um 

pedido do importador da Audemars Piguet para Itália, Roberto Carlotti, que terá desencadeado o processo de encomenda do Royal Oak. O mer-cado italiano era, na altura, o mais importante para a marca e, tal como hoje, marcava as tendências est�ticas.ÊCarlottiÊcome�avaÊaÊterÊdiÞculdadeÊemÊvender relógios suíços, de grande qualidade, mas com caixas de estética demasiado conservadora.  E pediu à manufatura do Brassus que criasse algo de novo, em aço, para que não fosse tão caro como os de ouro, com movimento simples, mas de formas modernas, adaptadas a uma clientela mais nova e dinâmica.«Existia, assim, do lado de Genta, uma caixa 

octogonal; e do lado do importador italiano, um pe-dido para um relógio simples, em aço. O Royal Oak nasceu desta dupla realidade», diz Pons.Na primavera de 1971, o projeto para o novo 

relógio é aprovado internamente pela Audemars Piguet. Mas as máquinas de produção não estavam preparadas para o fabrico de caixas em aço e o investimento, em tempos de crise, ia ser volumoso. Mesmo assim, o relógio fez-se. Genta e Carlotti acreditavam muito no Royal Oak. O designer terá mesmo oferecido o projeto à manufatura, para 

COLEÇÃO AUDEMARS PIGUET ROYAL OAK

ParaÊcomemorarÊoÊ40.¼Êaniversário do Royal Oak, o primeiro relógio desportivo de luxo, a Audemars Piguet patrocinou a edição de um livro de 300 páginas consagrado à história deste perene e lendário modelo, desenhado por Gerald Genta. A obra, profusamente ilustrada, traça os 137 anos de história da manufatura Audemars Piguet e narra as quatro décadas do Royal Oak, desde a sua criação, em 1972. O livro surge no contexto da exposição itineranteÊsobreÊoÊ40.¼Êaniversário do modelo, que se iniciou em Nova Iorque, e que seguirá depois para Milão, Paris, Beijing, Singapura e Dubai.Da autoria de Martin K. Wehrli e Heinz Heimann,  a obra Royal Oak custa  100 euros.

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apres sar a decisão de produção. E Carlotti enco-mendadoÊumÊn�meroÊdeÊpe�asÊsuÞcienteÊparaÊminimizar o risco.Na Feira de Basileia de 1972, prudentemente, a 

Audemars Piguet lança uma série muito limitada  de mil Royal Oak (tantos quantos Carlotti tinha encomendado…). «O mercado alemão iria enco-mendar mais 300, os outros mercados mais umas quantas centenas, o que irá dissuadir Georges Golay, o diretor fabril da Audemars Piguet, a não dispensar a máquina de caixas que tinha usado para os primeiros Royal Oak, como tinha pensado», garante Pons.Numa altura em que o marketing dava os primei-

ros passos e numa indústria muito conservadora, o lançamento do Royal Oak foi quase clandes-tino. Mas Gerald Genta, um iconoclasta criativo, sabia que tinha feito «o relógio em aço mais caro do mercado» e passou a comunicar este facto (o RoyalÊOakÊcustavaÊ3.650ÊfrancosÊsu��os,ÊquandoÊum Patek Philippe Calatrava, de quartzo, mas em ouro, custava 2.000 francos suíços). Pormenor que acumulava mais-valias entre o público novo e disponível que se estava a formar. As encomendas foram crescendo e a Audemars Piguet apercebeu-se do êxito que tinha em mãos. O Royal Oak iria gerar receitas que permitiriam às famílias Audemars 

e Piguet (ainda hoje à frente do negócio) sobre-viver ao período crítico do quartzo.Gérald Genta «sublinhou ao máximo o aspeto industrial do Royal Oak, ao colocar os parafusos na luneta. Parafusos inspirados, segundo colaboradores próximos, nos parafusos que se encontram nos capacetes dos es-cafandristas,ÊqueÊoÊfascinavamÈ,ÊaÞrmaÊoÊespecialis-ta. «No início dos anos 70, esta brutalidade técnica do design impõem-se como um fator de rutura dos códigos, aparentemente apreciado por uma nova geração de consumidores, mais jovens, menos con-formistas, muito diferentes dos colecionadores que tinham sido até então os principais clientes  da marca.»E o nome Royal Oak? Terá saído igualmente da 

imaginação de Gerald Genta. Inspirado no veleiro histórico, nos seus canhões e portalós.O Royal Oak foi depois sendo declinado, ao longo 

dos anos, pela designer da manufatura, Jacqueline Dimier. É ela a responsável pelo lançamento do modelo feminino ou pela utilização de calibres com-plicados na linha Royal Oak. Em 1993, surge  o Royal Oak Offshore, autoria do designer  Emmanuel Gueit. Depois, o Royal Oak Concept, com a utilização de novos materiais. Tudo isto tem feito do Royal Oak um dos modelos mais bem- -sucedidos e perenes de toda a indústria.

Tom Brady, Olivier Audemars, Philippe Merk e Arnold Schwarzenegger na abertura da exposição itinerante dedicada aos 40 anos do Royal Oak que se iniciou em Nova Iorque. Peça central do evento é oÊmagn�ÞcoÊexpositorÊqueÊcontém todos os modelos Royal Oak. História viva da relojoaria.