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DirEiTo CiviLParte Geral
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DirEiTo CiviLParte Geral
2015
ISBN 978-85-02-63540-1
Direito civil : parte geral / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia e Thaís de Camargo Rodrigues. – São Paulo : Saraiva, 2015.
1. Direito civil - I. Curia, Luiz Roberto. II. Rodrigues, Thaís de Camargo. III. Título.
CDU-347
Índice para catálogo sistemático:
1. Direito Civil 347
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Data de fechamento da edição: 16-7-2015
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Direção editorial Luiz Roberto CuriaGerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues
Coordenação geral Clarissa Boraschi MariaPreparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e
Ana Cristina Garcia (coords.)Projeto gráfico Isabela Agrela Teles VerasArte e diagramação Isabela Agrela Teles Veras
Lais SorianoRevisão de provas Amélia Kassis Ward e
Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.) Rita de Cássia Sorrocha Pereira
Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva Kelli Priscila Pinto Marília Cordeiro
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Sumário
1. O CódigO Civil BrasileirO, 15
1.1. O que é direito?, 16
1.2. A relação entre o direito e a moral, 17
1.3. Quais as fontes do direito?, 18
1.4. Como se organiza o direito?, 20
1.5. O direito civil, 21
1.6. O fenômeno da codificação, 21
1.7. O Estado Liberal e o Código de Napoleão, 22
1.8. O Código Civil Brasileiro, 24
1.9. A estrutura do Código Civil Brasileiro, 25
1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação Civil, 25
1.9.2. O Sistema Misto – As Cláusulas Gerais e os Conceitos Vagos, 29
1.9.3. Os Princípios Norteadores do Código Civil, 31
1.10. O campo de incidência do Código Civil, 32
1.11. Direito Civil e a Constituição Federal de 1988, 34
1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana 34
1.12. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, 38
1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica, 38
1.12.2. Prazos para Vigência de Lei, 38
1.12.3. A Revogação da Lei, 39
1.12.4. A Vigência Temporária da Lei, 39
1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei, 39
1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei, 40
1.12.7. As Antinomias, 40
1.12.8. A Repristinação da Lei, 41
1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas, 41
1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica, 41
1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica, 42
1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica, 43
1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo, 44
1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço, 45
2. a pessOa natural, 47
2.1. A pessoa natural, 48
6
2.2. A personalidade jurídica, 48
2.3. A natureza jurídica do nascituro, 48
2.3.1. A Capacidade Civil e suas Classifi cações, 51
2.4. A incapacidade. As restrições de direito, 52
2.5. O suprimento e a cessação da incapacidade civil, 52
2.5.1. Cessação da Incapacidade Civil, 52
2.5.2. Suprimento da Incapacidade Civil, 53
2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica, 53
2.6. O nome civil, o estado civil e o domicílio civil, 54
2.6.1. Os Modos de Individualização da Pessoa Natural, 54
2.6.2. O Nome Civil, 54
2.6.3. A Classifi cação do Nome Civil, 54
2.6.4. A Composição do Nome Civil, 55
2.6.5. Da Alteração do Nome Civil, 56
2.6.6. Da Modifi cação Administrativa, 56
2.6.7. Da Modifi cação Judicial, 58
2.6.8. O Estado Civil, 61
2.6.9. O Domicílio Civil, 61
2.7. A comoriência e a ausência: ca racterização e efeitos jurídicos, 62
2.8. A morte presumida: caracterização, 63
3. pessOa e direitOs da persOnalidade, 65
3.1. Conceito, 66
3.2. Fundamento, 66
3.3. Características dos direitos da personalidade, 67
3.3.1. Direito ao corpo, 71
3.3.1.1. Doação do corpo, 71
3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico, 73
3.3.2. Direito ao nome, 73
3.3.2.1. Elementos do nome, 74
3.3.2.2. Pseudônimo, 74
3.3.3. Direito à imagem, 74
3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade, 76
3.4. Proteção dos direitos da personalidade, 76
3.4.1. Medidas preventivas, 77
3.4.2. Medidas reparatórias, 77
3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a reparação, 77
Direito Civil
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4. a pessOa JurídiCa, 79
4.1. Conceito, 80
4.2. Natureza jurídica, 80
4.3. Elementos estruturais (pressupostos existenciais da pessoa jurí-
dica), 81
4.4. Personalidade jurídica, 82
4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade, 82
4.4.2. Início da personalidade, 83
4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direi-
to público, 83
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direi-
to privado, 83
4.4.3. Ato constitutivo e registro da pessoa jurídica, 84
4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas jurídicas, 85
4.4.3.2. Local do registro, 85
4.4.4. Fim da personalidade, 88
4.5. Representação da pessoa jurídica, 88
4.6. Responsabilidade da pessoa jurídica, 89
4.7. Das diversas classificações das pessoas jurídicas, 90
4.7.1. Classificação quanto à estrutura interna, 90
4.7.2. Classificação quanto à função, 90
4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público, 90
4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 91
4.8. Sociedades, 92
4.9. Empresa individual de responsabilidade limitada, 93
4.10. Associações, 93
4.10.1. Constituição de uma associação, 94
4.10.2. Composição da associação, 94
4.10.2.1. Associados, 94
4.10.2.2. Diretoria, 95
4.10.2.3. Assembleia geral, 95
4.10.3. Dissolução da associação, 95
4.11. Fundações, 96
4.11.1. Constituição das fundações, 97
4.11.2. Alteração do estatuto da fundação, 99
4.11.3. Fiscalização, 99
4.11.4. Extinção da fundação, 100
8
4.12. Nacionalidade, 100
4.13. Domicílio da pessoa jurídica, 101
4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público, 101
4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 101
4.14. Desconsideração da personalidade jurídica, 102
4.14.1. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica, 104
5. Os Bens, 107
5.1. Conceito, 108
5.1.1. Bens e coisas: distinção, 108
5.2. Patrimônio, 109
5.3. Das diversas classifi cações dos bens, 109
5.4. Classifi cação dos bens de acordo com a mobilidade, 110
5.4.1. Bens imóveis, 110
5.4.2. Bens móveis, 111
5.5. Classifi cação dos bens de acordo com a fungibilidade, 112
5.5.1. Bens fungíveis, 112
5.5.2. Bens infungíveis, 112
5.6. Classifi cação dos bens de acordo com a consuntibilidade, 113
5.6.1. Bens consumíveis, 113
5.6.2. Bens inconsumíveis, 113
5.7. Classifi cação dos bens de acordo com a divisibilidade, 113
5.7.1. Bens divisíveis, 113
5.7.2. Bens indivisíveis, 114
5.8. Classifi cação dos bens de acordo com a materialidade, 114
5.8.1. Bens materiais (res corporalis), 114
5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis), 114
5.9. Classifi cação dos bens de acordo com a individualidade, 115
5.9.1. Bens singulares, 115
5.9.2. Bens coletivos, 115
5.10. Classifi cação dos bens de acordo com a dependência ou recipro-
cidade, 116
5.10.1. Bem principal, 116
5.10.2. Bem acessório, 116
5.10.2.1. Fruto, 117
5.10.2.2. Produtos, 117
5.10.2.3. Benfeitorias, 118
Direito Civil
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5.10.2.4. Pertenças, 119
5.11. Classificação dos bens de acordo com a titularidade, 119
5.11.1. Bens particulares, 119
5.11.2. Bens públicos, 120
5.11.2.1. Características dos bens públicos, 120
6. dOs FatOs JurídiCOs, 123
6.1. Fato jurídico, 124
6.2. Fato jurídico natural, 124
6.2.1. Fato jurídico natural ordinário, 125
6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário, 125
6.3. Fato jurídico humano, 125
6.3.1. Fato jurídico humano ilícito, 125
6.3.2. Fato jurídico humano lícito, 126
6.3.2.1. Ato jurídico stricto sensu, 126
6.3.2.2. Negócio jurídico, 127
6.3.2.3. Ato-fato jurídico, 127
7. dOs negóCiOs JurídiCOs, 129
7.1. Teoria geral do negócio jurídico, 130
7.2. Classificações do negócio jurídico, 130
7.2.1. Classificação quanto à manifestação de vontade, 130
7.2.2. Classificação quanto às vantagens para as partes, 130
7. 2.3. Classificação quanto ao momento da produção dos efeitos, 131
7.2.4. Classificação quanto à forma, 131
7.2.5. Classificação quanto à independência ou autonomia, 131
7.2.6. Classificação quanto às condições pessoais dos negociantes, 132
7.2.7. Classificação quanto à causa determinante, 132
7.2.8. Classificação quanto ao momento da eficácia, 132
7.2.9. Classificação quanto à extensão dos efeitos, 132
7.3. Interpretação do negócio jurídico, 133
7.4. Elementos constitutivos do negócio jurídico, 134
7.5. Planos do negócio jurídico, 134
7.5.1. Plano de existência, 135
7.5.2. Plano de validade, 135
7.5.2.1. Partes, 136
10
7.5.2.2. Objeto, 136
7.5.2.3. Forma, 137
7.5.2.4. Vontade, 138
7.5.2.4.1. Reserva mental, 138
7.5.2.4.2. Representação, 139
7.5.3. Plano de efi cácia, 140
7.6. Elementos acidentais, 141
7.6.1. Condição, 141
7.6.1.1. Requisitos da condição, 141
7.6.1.2. Classifi cação da condição quanto à certeza, 142
7.6.1.3. Classifi cação da condição quanto aos efeitos, 142
7.6.1.4. Classifi cação da condição quanto à licitude, 143
7.6.1.5. Classifi cação da condição quanto à possibilidade, 144
7.6.1.6. Classifi cação da condição quanto à natureza (ou
fonte), 144
7.6.2. Termo, 145
7.6.2.1. Classifi cação do termo quanto aos efeitos, 145
7.6.2.2. Classifi cação do termo quanto à certeza, 146
7.6.2.3. Contagem do prazo, 146
7.6.3. Modo ou encargo, 147
8. deFeitOs nOs negóCiOs JurídiCOs, 149
8.1. Introdução, 150
8.2. Erro ou ignorância (Código Civil, arts. 138 a 145), 150
8.2.1. Consequências do erro, 150
8.2.2. Classifi cação do erro quanto à determinação, 151
8.2.2.1. Erro substancial, 151
8.2.2.2. Erro acidental, 152
8.2.2.3. Erro obstativo, 152
8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidade, 153
8.3. Dolo, 153
8.3.1. Consequências do dolo, 153
8.3.2. Classifi cação do dolo quanto à determinação, 154
8.3.2.1. Dolo essencial, 154
8.3.2.2. Dolo acidental, 154
8.3.3. Classifi cação do dolo quanto à conduta, 154
Direito Civil
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8.3.3.1. Dolo positivo, 154
8.3.3.2. Dolo negativo, 154
8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco, 155
8.3.4. Classificação do dolo quanto ao conteúdo, 155
8.3.4.1. Dolo mau, 155
8.3.4.2. Dolo bom, 155
8.3.5. Dolo de terceiro, 155
8.3.6. Dolo do representante, 156
8.4. Coação, 156
8.4.1. Espécies de coação, 156
8.4.1.1. Coação absoluta, 156
8.4.1.2. Coação relativa, 157
8.4.2. Requisitos da coação, 157
8.4.3. Consequências da coação, 159
8.4.4. Coação por terceiro, 159
8.5. Estado de perigo a coação, 159
8.5.1. Requisitos do estado de perigo, 160
8.5.2. Consequências, 161
8.6. Lesão, 161
8.6.1. Requisitos da lesão, 162
8.6.2. Consequências da lesão, 163
8.7. Fraude contra credores, 164
8.7.1. Requisitos para caracterização da fraude contra credores, 164
8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores, 166
8.7.3. Consequências da fraude contra credores, 167
8.7.4. Fraude contra credores versus fraude à execução, 168
9. invalidade dOs negóCiOs JurídiCOs, 171
9.1. Invalidade, 172
9.1.1. Invalidade versus inexistência, 172
9.2. Nulidade, 173
9.2.1. Hipóteses de nulidade, 173
9.2.2. Regras da nulidade, 174
9.3. Anulabilidade, 175
9.3.1. Hipóteses de anulabilidade, 175
9.3.2. Consequências da anulabilidade, 176
12
9.4. Simulação, 177
9.4.1. Natureza jurídica, 177
9.4.2. Requisitos da simulação, 178
9.4.3. Consequências da simulação, 178
9.4.4. Classifi cação da simulação quanto ao seu conteúdo, 179
9.4.4.1. Simulação absoluta, 179
9.4.4.2. Simulação relativa, 180
10. presCriÇÃO e deCadÊnCia, 181
10.1. Introdução, 182
10.2. Prescrição, 182
10.2.1. Conceito de prescrição, 182
10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição aquisitiva, 183
10.2.3. Prescrição da exceção, 183
10.2.4. Alegação da prescrição, 184
10.2.5. Renúncia da prescrição, 184
10.2.6. Declaração de ofício da prescrição, 184
10.2.7. Previsão legal da prescrição, 185
10.2.7.1. Prazos especiais, 185
10.2.8. Contagem do prazo de prescrição, 189
10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar, 190
10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros, 190
10.2.9. Prescrição intercorrente, 191
10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição, 191
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão, 192
10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obri-
gações solidárias, 195
10.2.11. Interrupção da prescrição, 195
10.2.11.1. Hipóteses de interrupção da prescrição, 196
10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção, 197
10.3. Decadência, 198
10.3.1. Conceito de decadência, 198
10.3.2. Alegação da decadência, 199
10.3.3. Espécies de decadência, 199
10.3.3.1. Decadência legal, 199
10.3.3.2. Decadência convencional, 200
Direito Civil
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10.3.4. Contagem do prazo de decadência, 200
10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadên-
cia, 200
10.3.6. Prazos de decadência, 201
10.3.6.1. Principais prazos de decadência, 201
11. atOs ilíCitOs e respOnsaBilidade Civil, 205
11.1. Conceitos, espécies e distinções necessárias, generalidade civil, 206
11.1.1. Atos ilícitos, 206
11.1.2. Responsabilidade civil e responsabilidade criminal, 206
11.1.3. Elementos da responsabilidade civil, 207
11.1.4. Responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva, 208
11.1.5. Abuso de direito, 209
14
o Código Civil Brasileiro1
16
Aristóteles (384 a.C. a 322 a. C.) – Filósofo grego, nascido em Es-tagira. Foi aluno de Platão e pro-
fessor de Alexandre o Grande. Entre suas grandes obras, desta-cam-se pela contribuição ao Di-reito: A Política e Ética a Nicôma-co. Platão, o professor de Aristóte-les fora aluno de Sócrates.
Georg Jellinek (16-06-1851 a 12-01-1911) – Juiz e fi lósofo do direito, nascido em Leipzig, Alema-nha. Este professor que lecionou nas
Universidades de Basileia e Hei-delberg na Alemanha, foi quem desenvolveu a “Teoria do Mínimo Ético. O mínimo ético, segundo sua teoria, é o conjunto mínimo de regras morais obrigatórias para se sobreviver em sociedade.
Antes de ingressarmos no estudo do Código Civil Brasileiro, é ne-cessário identifi car o campo de estudo do direito civil, e para isto é pre-ciso entender com clareza o conceito comum de direito.
1.1 o QuE É DirEiTo?
A palavra direito deriva do latim, directum, que signifi ca “aquilo
que é reto”.
Mas para conceituar o que é direito, torna-se necessário estudar-
mos a sua origem primária, que é o anseio de satisfação das necessidades
humanas. De fato, faz-se necessário compreender também os fenôme-
nos que são relevantes à existência do homem, a fi m de se obter o escla-
recimento quanto ao conceito comum do que é o direito.
O pensador grego Aristóteles foi o primeiro a observar que o ho-
mem é um ser gregário e que se distingue de todos os outros animais da
Terra por ser o único a experimentar o sentimento do bem e do mal, do
justo e do injusto e das outras qualidades morais. Segundo este pensa-
dor grego, a cidade é uma criação natural do homem, a qual precede até
mesmo a família. Para sobreviver e ser feliz, o homem, como ser gregário
e racional, precisa da vida social, necessita da convivência com outros
seres semelhantes (viver em sociedade).
O convívio em sociedade é uma atividade que demanda obrigató-
rio respeito a um “conjunto mínimo de condições essenciais para ma-
nutenção da paz e segurança”. Este conjunto de condições, que procura
estabelecer a paz e a segurança entre os homens (o dever ser), é o que
hoje se defi ne por conceito comum de direito.
No mesmo sentido, George Jellinek, com base nos ensinos de Je-
remy Bentham, defi ne o direito por este conjunto mínimo de condições
e regras morais obrigatórias para sobrevivência moral e conservação da
paz social, da segurança da vida em sociedade (bem comum).
Assim, para que seja possível viver em sociedade, devem ser obser-
vados os limites e restrições morais impostos aos indivíduos, justamente
com a intenção de se manter a paz e a segurança entre todos, pois o
direito nasce e se desenvolve através da sociedade – ubi homo, ibi jus,
a expressão em latim, por tradução livre, que quer dizer “onde está o
homem, está o direito”.
Agora que já estudamos o conceito comum do direito, é preciso en-
tender a dicotomia, a divisão, as semelhanças e diferenças entre o direito
e a moral.
Conceito: Direito é o conjunto mínimo de condições e regras essenciais morais para manter a paz e a segurança na convi-vência entre os seres humanos (vida em sociedade).
“Sócrates”, fi lme de Roberto Ros-selline, exibe com clareza o início do conceito de direito e justiça na Grécia antiga. Imaginava-se o di-reito como algo provindo dos deu-ses. Note que o tribunal de Helias-tas, e sua composição como júri popular, era formado por milhares de pessoas escolhidas por sorte. O juiz era um leigo que tomava suas decisões por meio do costume. Os crimes contra a polis eram conde-nados com a morte. Sócrates foi punido com a morte por questio-nar racionalmente o conceito de justiça da polis, segundo eles, “por perverter a juventude e os bons costumes”.
CiNEmATECA
AuTor
Direito Civil
17
1.2 A rELAÇÃo ENTrE o DirEiTo E A morAL
teoria dos círculos concêntricos ou teoria do mínimo ético:
Como pudemos perceber, George Jellinek, após estudar os aponta-
mentos de Jeremy Bentham, compreendeu o direito como parte da
moral. Sua teoria dos círculos concêntricos ou teoria do mínimo éti-
co ficou conhecida por indicar que o direito (ordenamento jurídico)
estaria contido na moral. A figura abaixo ilustra o entendimento de
Jellinek:
Contudo, existem outras teorias que buscam explicar a relação en-
tre o direito e a moral, vejamos então...
teoria dos círculos secantes: Para Claude Du Pasquier, o direito e
a moral são independentes, interligando-se em alguns momentos. Com
base neste pensamento, compõe a figura abaixo para representar a teoria
dos círculos secantes:
teoria dos círculos independentes: Hans Kelsen afirma que o di-
reito possui normatização, enquanto a Moral se refere a atos praticados
com observação de princípios éticos. Pelo direito possuir aspectos mo-
rais, não se faz confundir com aquela. Assevera que o direito e a moral
são distintos, compondo sua teoria dos círculos independentes, como
sugere a imagem abaixo:
Jeremy Bentham (15-02-1748 a 06-06-1832). Filósofo e jurista inglês, nasceu em Lon-dres. Foi um dos últimos iluministas.
Difundiu o utilitarismo ao lado de John Stuart Mill e James Mill. Seu importante estudo sobre a moral, exposto pela teoria dos círculos concêntricos, possibilitou a Georg Jellinek a construção do conceito do direito como o mínimo ético.
Claude Du Pas-quier. Para o ju-rista francês, que viveu no século XIX, o direito e a moral coexis-
tem, não se separam, pois há um campo comum de competência, onde existem regras de qualida-de jurídica com caráter moral.
Hans Kelsen (11-10-1881 a 19-04-1973) – Jurista e filósofo austríaco, nascido em Ber- kley. Autor da Te-oria Pura do Di-
reito, que trouxe relevante contri-buição quanto ao estudo do po-sitivismo jurídico, introduzindo os conceitos de norma fundamental e justiça. Reconhecido como um dos maiores teóricos do Direito do século XX.
TEoriA Do mÍNimo ÉTiCo – Para Jellinek o direito seria o mí-nimo de moral imposto para que a sociedade possa viver em har-monia.
CurioSiDADE
AuTor
18
teoria tridimensional: Miguel Reale, diversamente dos demais,
entende que a moral é apenas um dos vetores que compõem o direito.
Para o jusfi lósofo brasileiro, o direito é fato, valor e norma. Fato é o fe-
nômeno que importa ao direito identifi car, enquanto valor seria aquele
que abrange o conceito moral relativo àquele fato concreto, e a norma
é como o ordenamento jurídico tratará aquele fato relevante ao direito.
A teoria tridimensional do direito pode ser representada pela ilustração
abaixo:
valor
fato norma
ponto comum e de divergência: O que existe em comum entre as
normas jurídicas e as morais é o fato de ambas constituírem regras de
comportamento. Contudo, existe uma distinção fundamental entre as
normas jurídicas e as normas morais, pois no caso das primeiras é o
Estado que impõe a sanção.
As normas morais se traduzem na consciência individual de cada
ser humano em relação à sociedade em que vive, são identifi cadas pelos
costumes estabelecidos pela sociedade.
O estudo dos fundamentados desses valores morais que orientam
o comportamento do homem em sociedade, no uso de sua opção de
escolha, é conhecido como ética.
Uma conduta ética indica que a opção realizada pela pessoa não
ofende os valores morais e normas jurídicas da sociedade, conservando
a paz social.
1.3 QuAiS AS foNTES Do DirEiTo?
Partindo da dicotomia, da distinção entre a moral e o direito, po-
demos notar que o costume (normas morais) é a fonte primitiva do
direito, de onde nasceram suas normas jurídicas (a lei – o dever ser),
compondo estas duas, a lei e o costume, suas fontes diretas. Foi a partir
do costume que o direito foi evoluindo, surgindo a lei e outras fontes
relevantes ao seu estudo (fontes indiretas), as quais podem ser descritas
na seguinte ordem de importância:
miguel reale (06-11-1910 a 14-04-2006). Nascido em São Bento do Sul, o fi lósofo, jurista, educador e poeta brasilei-
ro contribuiu signifi cativamente com os estudos jurídicos, criador da teoria tridimensional do direito. Autor de inúmeros livros e obras jurídicas, ocupou a cadeira 14, tornando-se imortal da Acade-mia Brasileira de Letras. Responsá-vel pelo Projeto que deu origem ao Código Civil de 2002.
AuTor
Direito Civil
19
lei – As normas jurídicas, ou leis, são a fonte direta e primária do
direito. Elas são impostas pelo Estado organizado à obediência de todas
pessoas que estiverem sob sua soberania. Não dependem da vontade dos
cidadãos, sendo impossível alegar sua ignorância. Configura-se como
fonte autêntica do direito, representada por texto expresso, escrito.
Costume – O costume, como já descrito, se configura pela prática
reiterada de comportamento geral aceito na sociedade, observando sem-
pre a continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obriga-
toriedade. Embora seja a mais antiga entre as demais fontes do direito,
contemporaneamente é fonte secundária.
Jurisprudência – Como a própria palavra indica, a jurisprudência
é a prudência dos Tribunais, que se constrói pelas decisões de casos se-
melhantes, entendimento que, aos poucos, vai se tornando pacífico pelas
semelhanças dos casos concretos julgados, servindo tais fundamentos
como fonte secundária do direito, destinada ao estudo e à aplicação prá-
tica, a evidenciar também a tendência das correntes jurisprudenciais e
da compreensão prévia sobre cada caso, fornecendo relevantes elemen-
tos para aplicação em casos novos análogos, concedendo assim certa
previsibilidade, que muito contribui com a segurança jurídica. Trata-se
de fonte intelectiva do direito muito útil à pesquisa e ao estudo, pois exi-
be o esforço realizado pelo Poder Judiciário na decisão de conflitos reais,
um acervo de inteligência prévio.
princípios gerais do direito – Os princípios gerais do direito reves-
tem as condutas mínimas que o Estado espera de cada cidadão. Embora
não estejam escritos, os princípios são conhecidos de todos, pois, como
se fossem mandamentos morais, estão impregnados na consciência in-
dividual das pessoas, orientando e informando o direito. São identifica-
dos por três condutas básicas, cujas expressões latinas também seguem
abaixo:
a) viver honestamente – honeste vivere;
b) dar a cada um o que é seu – suum cuique tribuere, e
c) não lesar o próximo – alterum non laedere.
doutrina – A doutrina reflete a construção do intelecto dos estu-
diosos da ciência jurídica. Os doutrinadores são aqueles que interpre-
tam as leis, levando em conta o comportamento humano e o contexto
social de seu tempo, considerando todos os fenômenos sob os mais
variados aspectos, construindo teorias, conceitos e elementos relevan-
tes ao direito.
Podemos notar que as fontes do direito, sejam elas primárias ou
secundárias, diretas ou indiretas, são os meios pelos quais se formam as
regras jurídicas.
Por questão didática e para facilitar a memorização, trataremos
da aplicação das fontes do direito na formação da norma jurídica mais
adiante, quando estudarmos a LINDB, Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, no tópico 5 desta Unidade I.
20
1.4 Como SE orGANiZA o DirEiTo?
O direito se organiza, se classifi ca ou se divide pelo campo desti-
nado ao seu estudo e aplicação à norma jurídica (lei). O organograma
abaixo descreve as referidas classifi cações mais comuns na doutrina:
direito natural – O direito natural compreende as regras de convi-
vência humana que foram estabelecidas pela própria natureza. Para os
antigos gregos, havia a crença de que o direito natural se sobrepunha às
leis humanas, evidenciando-se esta compreensão na declaração de He-
ráclito, quando disse que: “Todas as leis humanas se alimentam de uma,
qual seja a divina; esta manda quando quer, basta a todos e as supera”. Os
Jusnaturalistas são os que compõem a corrente que defende que o direito
esteja ligado a princípios superiores, identifi cados na natureza racional
e social do homem.
direito positivo – O Estado compõe seu ordenamento jurídico
através das leis vigentes, as quais representam a vontade do povo em
determinada época, por meio de princípios para convivência pacífi ca. O
ordenamento jurídico é, portanto, o conjunto de todas as leis vigentes
em um país, compondo assim o seu direito positivo.
direito objetivo – O conjunto de normas impostas pelo Estado que
possuem caráter geral (norma agendi), pois obrigam a todos indistinta-
mente através da coerção – dever ser. O direito objetivo é assim chama-
do por atender ao objetivo do Estado, que é obrigatório, imposto erga
omnes através da lei.
direito subjetivo – Enquanto o direito objetivo impõe uma con-
duta geral (dever ser), anulando a vontade ou escolha, o direito sub-
jetivo (facultas agendi) protege a vontade, permitindo que qualquer
pessoa física ou jurídica busque o Estado para impelir outrem a um
determinado comportamento, toda vez que houver lesão ou ameaça de
lesão a direitos (vinculando-se à vontade do sujeito quanto ao impulso
da tutela do Estado).
direito público – Esta classifi cação é anterior ao Direito Romano;
compreende-se do ramo do direito público tudo o que diga respeito à
coisa pública (do Estado), deste modo, poderíamos dizer que o direito
O francês Augusto Comte (1789 a 1857) foi o responsável pela construção da te-oria na sociologia conhecida como
positivismo. A teoria atribui fato-res humanos para explicações de diversos temas, contrariando o primado da razão, da teologia e da metafísica. Em vez de se pre-ocupar com a origem do homem e sua criação, os positivistas bus-cam explicar as coisas práticas e úteis às relações sociais (lei).
ComENTário
O pensamento positivista in-fl uenciou nosso país. A frase "Or-dem e Progresso" na bandeira brasileira se inspirou na máxima ética buscada pelo positivismo de Augusto Comte: "O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fi m."
CurioSiDADE
voCABuLário
Erga omnes (latim): Efeito vin-culante a todos; oponível a to-dos; contra todos.
Direito Civil
21
público abrange o estudo do Direito Constitucional, Direito Tributário,
Direito Administrativo, Direito Penal e Processual Penal, Direito Inter-
nacional, etc.
direito privado – Se destinam ao ramo do direito privado todos
os temas de estudo que não abrangidos pelo direito público, ou seja,
aqueles temas que interessam à solução de conflitos entre os particu-
lares e grupos sociais. Exemplos: Direito Civil, Direito Comercial ou
Empresarial.
1.5 o DirEiTo CiviL
O direito Civil, por sua vez, orienta, regula e estuda a relação entre
os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. As relações entre os particula-
res é campo do Direito Privado, e divide-se em relações pessoais, familia-
res, patrimoniais e obrigacionais, estando disciplinadas no Código Civil,
conhecido entre os estudiosos por “constituição do homem comum”.
Diante do que estudamos até aqui, podemos notar que a sociedade
requeria muito a organização das leis por meios de códigos, pois se en-
tendia que só este seria o caminho para uniformizar as condutas espera-
das dos indivíduos pelo Estado. Surge então o fenômeno da codificação,
a começar pelo direito civil.
1.6 o fENômENo DA CoDifiCAÇÃo
A dinâmica, amplitude e complexidade das relações privadas in-
dicavam a necessidade de sua codificação, com vistas a tornar claro e
uniforme a aplicação do direito a cada caso concreto.
Francisco Amaral esclarece que o fenômeno da codificação pretendia
organizar estruturalmente a disciplina das relações privadas para propor-
cionar igualdade e coordenação, pois expressava o racionalismo do direito,
que era influenciado naquela época pelo pensamento iluminista, o qual
marcou a ciência jurídica da modernidade (séculos XVIII e XIX).
Analisando o processo histórico, é possível identificar a codificação
do direito como uma consequência lógica a que se chegou por razões
políticas, filosóficas e técnicas daquela época. Regular e sistematizar o
tratamento para solução das questões, tanto no âmbito privado quanto
público, realmente apontava ser o melhor caminho para criação de uma
sociedade melhor, mais justa.
Desse modo, a codificação trazia alguns paradigmas de sua cultu-
ra, a saber: a influência iluminista; o racionalismo; o individualismo; a
consideração da norma jurídica como comando imperativo lógico-hi-
potético do Estado; o desenvolvimento do pensamento sistemático na
O Iluminismo, ou Século das Luzes, marcou o início de uma era em que o poder da razão buscou reformar a sociedade, livrando-se dos arcaicos conceitos impregna-dos pela Era das Sombras (Idade Medieval). O conhecimento da natureza passou a ter um objetivo mais claro de utilidade ao homem moderno. Esse movimento cultural do Século XVIII teve impulso na Eu-ropa. Do iluminismo surgiu a ideia de mecanização, organização e controle, que influenciou o direito.
Immanuel Kant foi um grande pensador do iluminismo e contri-buiu muito com o direito por suas obras, das quais destaca-se: “Crí-tica da Razão Pura”. Ele descreve o iluminismo assim:
"O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram inca-pazes de fazer uso da própria ra-zão independentemente da dire-ção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de re-solução e coragem para se fazer uso do entendimento indepen-dentemente da direção de ou-trem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria ra-zão! – esse é o lema do iluminismo"
ComENTário
voCABuLário
Codificação: Processo cultural e histórico oitocentista que re-alizou a ordenação e sistema-tização do direito, proporcio-nando o seu desenvolvimento técnico como ciência jurídi-ca, dada sua uniformização e prescrição abstrata de situa-ções e condutas.
22
aplicação e interpretação do direito; a teoria monista das fontes do di-
reito, que compreende o direito como sistema unitário, positivo e criado
pelo Estado; a generalidade e abstração como características da lei e das
normas jurídicas, tornando possível a existência de norma antes do caso
concreto por sujeitos descritos pelas condutas previsíveis; a segurança
jurídica, que justifi cava o formalismo para se identifi car a justiça por
todos almejada; a simplifi cação jurídica e a técnica da ciência jurídica;
a centralidade do Código Civil no sistema das fontes do direito, por sua
posição central em face da política e da fi losofi a (constituição do homem
comum); a divisão dos papéis e relações entre Estado (Direito Público)
e particulares (Direito Privado); a redução do processo interpretativo,
primando por seguir a previsão do que contido na norma jurídica; e,
por fi m, a separação radical entre os conceitos de criação e aplicação
do direito, neste aspecto, transportando por competência à própria lei
dizer, por previsão nela contida, qual a decisão a ser tomada, consistindo
a sua aplicação em atividade meramente mecânica do juiz, que fazia a
subsunção, agindo como “a boca da lei ”.
1.7 o ESTADo LiBErAL E o CÓDiGo DE NAPoLEÃo
O Direito Civil teve o seu auge no “Estado Liberal”, período his-
tórico marcado pela Revolução Francesa, em 1789, no qual se exaltava
a liberdade e a autonomia dos indivíduos nas relações privadas, sob o
grito de liberdade, igualdade e fraternidade.
voCABuLário
Subsunção: do latim sumo, as-sumir, tendo o prefi xo sub, em lugar de. Literalmente, quer dizer tomar o lugar de. No contexto de sua leitura, a sub-sunção do juiz era a atividade lógica dedutiva, que apenas adequava o resultado ao fato já previsto na lei.
Ao examinar as formas de governo, Montesquieu identifi ca a Monarquia (princípio, a honra), o Despotismo (princípio, o medo) e a República (princípio, a virtude). Por infl uência da esquecida Cons-tituição Inglesa, Montesquieu identifi ca a harmonia da atuação de três poderes, e a necessidade de respeito quanto ao âmbito de atuação de cada um deles. Para Montesquieu as leis compreendiam um comando normativo hermético, fechado, em respeito à teoria da tripartição dos poderes e o juiz tinha a atividade de ser meramente “a boca da lei”. Cabia ao magistrado apenas aplicar a norma jurídica ao caso concreto previsto na lei. Não podia o juiz interpretar a lei, de modo diverso do que nela expresso, sob pena de quebrar a harmonia democrática sustentada no que a lei representa (a vonta-de de todos). Cada Poder deveria, portanto, estar restrito apenas à sua função própria. A relevância do respeito à norma jurídica como prescrição absoluta e completa pode ser identifi cada pela leitura de sua obra “O Espírito das Leis”, da qual extraímos pequeno trecho abaixo:
“As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho ou do arbítrio de quem legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da História concreta própria ao povo considerado. Não existem leis justas ou injus-tas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou lugar. O autor procura estabe-lecer a relação das leis com as sociedades, ou ainda, com o espírito dessas.”
ComENTário
Charles-louis de secondat,
Barão de Montesquieu
(18-1-1689 a 10-2-1755).
ComENTário
Para a teoria monista, o Es-tado é a fonte única do direito, porque quem dá vida ao Direito é o Estado através da “força co-ativa” de que só ele dispõe. Des-se modo, como só existe o Direi-to quando emanado do Estado, ambos se confundem em uma só realidade. Esta concepção fi cou ultrapassada, pois não havendo norma jurídica que disponha so-bre a questão, não poderia o juiz decidir.
Direito Civil
23
Após lograr êxito no golpe do 18 de Brumário (1799), Napoleão Bonaparte, um ano depois, pela nova Constituição promulgada, assu-miu o cargo de cônsul vitalício. Entre seus esforços de unificação do Es-tado francês reabilitou a Igreja Católica, promovendo reformas no clero, controlando-a até a instituição do Código Civil (1804).
O Código Civil da era do imperador Napoleão Bonaparte (1804) foi um avanço estupendo para sua época, tanto que, pela sua complexidade, serviu de base para o Direito Constitucional e Internacional moderno em todo mundo.
O referido Código se preocupava muito em garantir a liberdade ampla e o irrestrito direito de contratar (autonomia de vontade), enfati-zando também a defesa ao direito de propriedade. Isto porque naquele período se compreendia que a lei seria suficiente para demonstrar o de-sejo do Estado. O contrato, por sua vez, consentido pelas partes, passava a fazer lei entre elas (pacta sunt servanda).
Para a elaboração do Código francês, os estudiosos juristas de Na-poleão buscaram inspiração na inteligência do Código Justiniano, do Corpus Juris Civilis e das institutas, que apresentam noções gerais, de-finições e classificações em três temas: pessoas, coisas e ações. Assim, o Código Napoleão apresentava uma parte preliminar, que tratava das regras de publicação e da não retroatividade das leis; o livro primeiro, que tratava das pessoas; o segundo livro, de bens, e o terceiro livro, de aspectos ligados à aquisição da propriedade.
Como se pode observar, o Estado Liberal marcou profundamente o Direito Civil por permitir com a codificação sistematizá-lo. Entretanto, tinha o viés patrimonialista, haja vista a preocupação do Código Civil francês em estabelecer a máxima liberdade de contratar e a autonomia na defesa dos bens e da propriedade.
A revolução francesa (1789), marcou a divisão entre a Idade Moderna e a Contemporânea. A França vivia sob o governo absolutista do monarca rei Luís XVI, o qual personificava em si mesmo o Estado, reunin-do portanto a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A população daquela época na estrutura do Estado Absolutista se representava por três classes sociais: a) Os bispos de alto Clero, identifica-dos como o primeiro Estado; b) A nobreza, ou aristocracia francesa, identificada como segundo Estado, e c) Burguesia, que contava com apoio de membros do baixo clero, comerciantes, empresários, banqueiros, trabalhadores urbanos e camponeses.
O terceiro estado, conhecido por “burguesia”, representava 97% (noventa e sete por cento) da Fran-ça. Influenciados pelo pensamento iluminista e motivados pela crise financeira, falta de modernização econômica e desinteresse pelo investimento no setor industrial, os burgueses deflagraram a Revolução, tomando à força a Bastilha no dia 14 de julho de 1789.
No esforço de combater a Revolução, o Rei Luis XVI pediu apoio à monarquia austríaca e prussia-na, sendo que no ano de 1792, a Áustria invadiu a França, quando o Rei declarou guerra. Ocasião em que a burguesia aproveitou para exterminar a corte, decapitando o rei Luís XVI e sua esposa Maria An-tonieta, os quais ostentavam um luxo absurdo com suas festas e gastos incompatíveis e que contribuía significativamente com a crise econômica. A crise social contribuiu com a crise econômica e culminou na crise política com a mutação do paradigma de Governo através da Revolução.
CurioSiDADE
Estado Liberal: O Estado Libe-ral sucedeu o Estado Absolutista. O liberalismo se refere ao período do Estado Liberal, que foi marca-do pela liberdade e autonomia dos indivíduos, que se configura-va na defesa dos bens e de sua propriedade.
ComENTário
CODE CIVIL DES FRANÇAIS – Disponível em <http://www.assemblee-nationale.fr/evene-ments/code-civil-1804-1.asp>. Acesso em 26 fev. 2015.
BiBLioTECA
voCABuLário
pacta sunt servanda: Brocardo do latim que quer dizer: “os pactos devem ser respeita-dos”, “os acordos devem ser cumpridos”.
24
1.8 o CÓDiGo CiviL BrASiLEiro
O Brasil, no período colonial, era regido pelo sistema jurídico vi-
gente em Portugal, quando então vigiam as Ordenações Filipinas1 que
tratavam de todos os aspectos jurídicos do país, desde a proclamação da
independência em 1822, até o dia 1º de janeiro de 1917, quando entrou
em vigor o Código Civil (1916) elaborado pelo jurista Clóvis Beviláqua.
Antes do Código Civil de 1916, a Constituição de 1824 previa
a elaboração de um Código Civil, cuja tarefa, de início, fora confi a-
da ao jurista Augusto Teixeira de Freitas, apresentada sob o nome de
“ConSolidação das Leis Civis”2. O referido esboço do Código Civil
continha cinco mil artigos e não foi aceito por críticas da comissão
revisora, que culminaram em desestimular o jurista a continuar. En-
tretanto, o esboço de Teixeira de Freitas infl uenciou o Código Civil
Argentino. Com efeito, somente após a proclamação da República do
Brasil (1889) é que foi possível concluir o nosso primeiro Código
Civil (1916), por Clóvis Beviláqua, o qual sofreu forte infl uência da
Escola dos Pandectas.
O Código Civil (1916) era precedido por uma pequena lei, a LICC,
Lei de Introdução ao Código Civil, que na realidade ao longo de décadas
serviu como parâmetro de interpretação de todas as leis brasileiras. Após
o texto da LICC, o Código Civil surgia trazendo a parte geral, que apre-
sentava princípios gerais aplicáveis aos livros da Parte Especial.
A exposição de motivos do Código Civil (2002) vigente, demonstra
os objetivos da lei na ocasião em que o referido Diploma fora publica-
do. O direito se realiza, em atenção às necessidades da sociedade de sua
época, por isto é imprescindível que quem estuda o direito busque com-
preender sua evolução histórica, e sua incidência no espaço e no tempo.
A comissão de juristas foi nomeada em 1967, sob a supervisão de
Miguel Reale, sendo que o projeto do Código Civil veio a ser aprova-
do somente em 1984, após o cuidadoso debate e estudo de suas 1.063
emendas, apresentando seu texto fi nal consolidado com cerca de 2.046
artigos. Faziam parte da comissão conhecidos e renomados nomes do
direito brasileiro, sendo José Carlos Moreira Alves (São Paulo) destina-
do a escrever sobre a Parte Geral, Agostinho de Arruda Alvim (São Pau-
lo), Direito das Obrigações, Sylvio Marcondes (São Paulo), Direito de
Empresa, Ebert Vianna Chamoun (Rio de Janeiro), Direito das Coisas,
1. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Código Philippi-no, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733.
2. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. FREITAS, Au-gusto Teixeira de. A consolidação das leis civis. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242360.
voCABuLário
Exposição de motivos é a justi-fi cativa temporal histórica que demonstra os pontos impor-tantes da alteração pela legis-lação introduzida no ordena-mento jurídico.
ORDENAÇÕES FILIPINAS – As Or-denações Filipinas, foram compostas pela junção das Ordenações reais, as quais surgiram em 1595 no reina-
do de Felipe I. Contudo só vieram a entrar em vigor em1603, já no reinado de Felipe II. As Ordena-ções Filipinas foram compostas aproveitando o que já havia nas Ordenações Reais anteriores, ou seja, sintetizou de modo a ajustar os textos das Ordenações Afon-sinas de 1446, das Ordenações Manuelinas de 1521, e outras le-gislações extravagantes da épo-ca do reinado de Felipe. As Or-denações Filipinas não buscavam inovar, mas consolidar o que já existia, surgiram como um resul-tado do domínio castelhano. As Ordenações Filipinas tratavam de regular diversos ramos do direito, incluindo o público e o privado, dividia-se em cinco livros, dispon-do dos temas na seguinte ordem: Livro I – O Direito Administrativo e a Organização Judiciária, Livro II – O Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros, Li-vro III – O Processo Civil, Livro IV – O Direito Civil e o Direito Comercial e no Livro V – O Direito Penal e o Di-reito Processual Penal. Não havia igualdade entre as pessoas, fato notório pela existência do Livro II.
ComENTário
Direito Civil
25
Clóvis do Couto e Silva (Rio Grande do Sul), Direito de Família e Tor-
quato Castro (Pernambuco), Direito das Sucessões.
Os juristas buscaram manter a estrutura e as disposições do Código
Civil anterior (1916), ajustando aos valores sociais e éticos com atenção
à jurisprudência e legislação da época, olhando para o futuro.
Elaborado de modo a facilitar sua compreensão e uso prático, tor-
nou-se muito mais didático que o Código Civil de 1916, desligando-se
também da visão individualista, que brindava o cunho patrimonialista,
inquinando-se a zelar pela socialização e por valorizar mais a dignidade
da pessoa humana.
Entre suas características marcantes, enfaticamente citadas na ex-
posição de motivos da lei, o Código Civil (2002) buscou unificar o direi-
to das obrigações, exclui matéria de ordem processual e adota o sistema
de cláusulas gerais, permitindo ao juiz uma margem mais flexível de in-
terpretação para proferir suas decisões a cada caso em concreto.
1.9 A ESTruTurA Do CÓDiGo CiviL BrASiLEiro
1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação CivilObservando o quadro abaixo, notamos a evolução histórica da co-
dificação civil no Brasil. As Ordenações Filipinas, que regiam Portugal
desde 1603, regulavam também o Brasil-Colônia, tratando de aspectos
ligados a outras áreas do direito e organização judiciária:
AS ORDENAÇÕES FILIPINAS
LIVRO I Direito Administrativo e Organização Judiciária
LIVRO II Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros
LIVRO III O Processo Civil
LIVRO IV O Direito Civil e o Direito Comercial
LIVRO V O Direito Penal e o Processo Penal
É possível identificar sem nenhuma dificuldade o alto grau de dis-
tinção que se fazia dos indivíduos, e a consolidação do poder da mo-
narquia, no sistema jurídico imposto pelo sistema Brasil-Colonial, pois
A ESCoLA DAS PANDECTAS – Na busca de interpretar o di-reito, surgiram várias escolas.
Pandectas era o nome grego que se dava ao Digesto, expressão la-tina que se traduz como “pôr em ordem”, nome do antigo Corpus Juris Civilis, código estabelecido no Direito Romano por Justiniano. O curioso é que na interpretação jurídica dos casos, a Alemanha passou a admitir a aplicação do direito romano, não através do Legislativo, mas pelo direito con-suetudinário, pela prática comum de aplicação dos juristas, os pan-dectas, que se valiam desse re-gramento para fundamentarem suas decisões e pareceres.
ComENTário
26
as leis administrativas, a organização judiciária, os direitos do rei, dos
fi dalgos, dos estrangeiros e até mesmo os direitos civis, comerciais, o di-
reito penal e o processo penal, fi cavam sob o seu comando e supervisão.
Conforme já estudamos, por infl uência da Revolução Francesa, a
codifi cação civil brasileira adotou valores do Estado Liberal, inspirando-
-se Clóvis Beviláqua na estrutura do Código de Napoleão para constru-
ção do nosso Código Civil de 1916. O Código de Napoleão, como co-
nhecido fi cou o Código Civil Francês (Code Civil des Français), trazia em
sua estrutura quatro livros, sendo o primeiro deles um título preliminar
que procurava descrever o efeito das leis no espaço tempo:
Code Civil des Français 1804 – Código Civil Francês – Código de Napoleão
PRELIMINAR Arts. 1º a 6º Da publicação, dos efeitos e da aplicação das leis em geral
LIVRO I Arts. 7º a 515 Das pessoas
LIVRO II Arts. 516 a 710 Dos bens e das modificações da propriedade
LIVRO III Arts. 711 a 2302 Dos modos de aquisição da propriedade
O Código Civil de 1916, Lei n. 3.071/1916, sob a supervisão do ju-
rista Clóvis Beviláqua, sofreu infl uência do iluminismo, adotando valo-
res do Estado Liberal, com um viés burguês e patrimonialista, por força
da Revolução Francesa, inspirando-se também no Código de Napoleão,
trazia ainda a compreensão oitocentista de que o Código representava o
sistema jurídico em completude (fechado). Tinha três pilares: a família,
a propriedade e o contrato. Antes do seu texto, era precedido pela LICC
– Lei de Introdução ao Código Civil, uma pequena lei de 21 artigos que
identifi cava o início da vigência, a obrigatoriedade, a integração, a inter-
pretação e aplicação das Normas no Tempo e no Espaço:
CÓDIGO CIVIL 1916 – Clóvis Beviláqua
LICC Arts. 1º a 21 Introdução
PARTE GERAL
LIVRO I Arts. 2º a 42 Das Pessoas
LIVRO II Arts. 43 a 73 Dos Bens
LIVRO III Arts. 74 a 179 Dos Fatos Jurídicos
PARTE ESPECIAL
LIVRO I Arts. 180 a 484 Do Direito de Família
LIVRO II Arts. 485 a 862 Do Direito das Coisas
LIVRO III Arts. 863 a 1.571 Do Direito das Obrigações
LIVRO IV Arts. 1.572 a 1.805 Do Direito das Sucessões
Arts. 1.806 e 1.807 Disposições Finais
“Danton, o pro-cesso da re-volução” (dire-ção de Andrzej Wajda, 1982). O fi lme retrata a situação econô-mica da França,
quatro anos após a Revolução Francesa.
CiNEmATECA
Direito Civil
27
O Código de 1916 teve influência predominantemente francesa (in-
dividualismo quanto conteúdo do Código), além da influência germâni-
ca (quanto à estruturação formal do Código). No revogado Código Civil
havia uma parte geral, tal qual a codificação alemã – BGB (O Código dos
franceses não tem parte geral). Aquele Diploma legal adotava a ideia da
codificação total, de completude. Deste modo, o Código Civil era uma
lei considerada completa, não precisava de leis especiais. Ao analisarmos
comparativamente os Códigos Civis de 1916 e 2002, devemos ressaltar
suas diferenças, em razão dos momentos históricos de cada século (XIX
e XX). Houve a influência também da reforma das situações jurídicas,
novos fatores sociais como o advento da Lei do Divórcio (n. 6.515/77);
Lei dos Conviventes (n. 9.278/96) e a Lei do Inquilinato (n. 8.245/91).
E claro, primordialmente, a Constituição Federal de 1988. Reportando-
-nos ao Código Civil vigente, este conservou sua estrutura semelhante,
tanto na parte geral quanto na especial. Adicionou as obrigações mer-
cantis (comerciais) às cíveis. Prestigiou os microssistemas, cedendo a
diversas influências do Código de Defesa do Consumidor. No tocante a
sua recodificação, prestigiou as matérias e as interpretações consolidadas
a partir do Código Civil de 1916.
O Código Civil de 2002 não foi uma obra solo, mas teve a parti-
cipação de juristas de diversas regiões do Brasil, que ocuparam dife-
rentes papéis como operadores do direito (magistrados, advogados e
professores de direito), por conta do notável saber jurídico, houve qua-
tro versões iniciais do projeto, publicadas na imprensa oficial (1972,
1973,1974 e 1975).
Sob a supervisão de Miguel Reale, o qual esclareceu que a inicia-
tiva de um novo Código Civil não surgiu de repente, mas foi conse-
quência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as condições
que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas. Não houve a
intenção de unificar o Direito Privado em um só Código, como erro-
neamente se pensa; o intento era consolidar e aperfeiçoar o que já era
seguido no país. Se refere à superação do Código Comercial de 1850 e às
questões comerciais que por ele não eram mais abrangidas, o que força-
va os juízes a se socorrerem no Código Civil de 1916, situação que pro-
vocou a necessidade de adequação da parte que tratava das obrigações.
Então, deixou-se de lado a ideia de fazer um Código das Obrigações em
separado, aproveitando o trabalho já desenvolvido naquele sentido pe-
los juristas Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de
Azevedo, desempenhado no anteprojeto do Código das Obrigações; e,
depois, do trabalho realizado por Orlando Gomes e Caio Mário da Sil-
va Pereira, quando da proposta de elaboração separada de um Código
Civil e de um Código das Obrigações, contando com a colaboração, nes-
te caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias
Gueiros. Optar pelo aproveitamento do trabalho já realizado daqueles
juristas foi o motivo da alteração da ordem da matéria.
28
Como bem se pode notar, o Código atual, levou em consideração a
realidade de uma sociedade de natureza agrária, começando a tratar do
Direito de Família, passando pelo Direito de Propriedade e das Obriga-
ções, até chegar ao das Sucessões.
CÓDIGO CIVIL 2002 – Miguel Reale
PARTE GERAL
LIVRO I Arts. 1º a 78 Pessoas
LIVRO II Arts. 79 a 103 Bens
LIVRO III Arts. 104 a 232 Fatos Jurídicos
PARTE ESPECIAL
LIVRO I Arts. 233 a 965 Direito das Obrigações
LIVRO II Arts. 966 a 1.195 Direito de Empresa
LIVRO III Arts. 1.196 a 1.510 Direito das Coisas
LIVRO IV Arts. 1.511 a 1.783 Direito de Família
LIVRO V Arts. 1.784 a 2.027 Direito das Sucessões
Livro Complementar Arts. 2.028 a 2.046 Disposições finais e transitórias
A antiga LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, instituída pelo
Decreto-Lei n. 4.657/42, por muito tempo serviu como tábua rasa de
auxílio a todas as demais normas do direito brasileiro, deixando de se
tratar apenas de introdução ao Código Civil. Passou então a ser chama-
da de LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por
alteração legislativa introduzida pela Lei n. 12.376/2010, desaparecendo
da parte introdutória do Código Civil novo.
A Parte Geral passou a enunciar os direitos e deveres gerais da pes-
soa humana e estabelecer pressupostos gerais da vida civil. Na Parte Es-
pecial, disciplina as obrigações que emergem dos direitos pessoais. Pode-
-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, passa-se
a tratar de sua projeção natural, que são as obrigações e os contratos.
O direito obrigacional traz extensa essa disciplina, diante da neces-
sidade de tratar as questões já não abrangidas pelo Código Comercial
de 1850, unifi cando as obrigações civis com as obrigações empresariais,
termo adotado preferencialmente por Miguel Reale, pois a atividade
econômica não se assinalava mais pelos atos de comércio de outrora,
tendo uma projeção maior, por relevantes aspectos de natureza indus-
trial ou fi nanceira.
Após o Direito das Obrigações, o Código Civil de 2002 trouxe uma
parte nova, que é o Direito de Empresa, também no sentido de atender
às necessidades de uma norma que pudesse regular situações em que as
Direito Civil
29
pessoas se associam e se organizam a fim de, em conjunto, dar eficácia e
realidade ao que pactuam. Sem dúvida nenhuma esta foi uma inovação
inigualável, por não existir codificação semelhante.
O próximo livro trata do Direito das Coisas, trazendo para o Direi-
to Real uma nova forma de identificar o conceito de propriedade, já sob
a influência do princípio constitucional, que empresta função social à
propriedade, abandonando o conceito burguês anterior em que prima-
va o interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor.
Concluído o livro do Direito das Coisas, surge o Livro do Direito de Fa-
mília, seguido do Livro do Direito das Sucessões. Aqui outro ponto que
merece destaque, pois trouxe alteração relevante na estrutura do código,
a qual não encontra símile na codificação dos demais países.
A Comissão trabalhou no sentido de buscar preservar e respeitar o
trabalho intelectivo do saber jurídico que construiu a estrutura do siste-
ma civil, mantendo a mesma disposição da Parte Geral do Código Civil,
conquistada desde Teixeira de Freitas, organizando a matéria em coerên-
cia lógica com as recentes codificações3.
Excluiu a matéria de ordem processual, restringindo-se apenas
aquelas que profundamente ligadas à natureza material.
1.9.2. o Sistema misto – as Cláusulas Gerais e os Conceitos vagos
A estrutura ideal de um sistema jurídico dotado de cláusulas gerais
é aquela que se admite incompleta, aberta e com mobilidade em cer-
tas áreas (novo pensamento sistemático). Para que as cláusulas gerais
ocupem sua função, demandam flexibilidade do sistema. Desse modo, o
sistema deve ser aberto ou elástico o suficiente para permitir o melhor
desempenho de suas cláusulas gerais.
Segundo muitos autores, o Código Civil Brasileiro de 2002 seria ca-
racterizado, então, como um sistema misto, eis que constituído por uma
parcela de disposições rígidas, por meio das quais o legislador lançou
mão do método casuístico, que obriga o aplicador da norma a valer-se
do método lógico-subsuntivo, e outra parcela de disposições flexíveis,
típicas de um sistema aberto e móvel, possibilitando a incidência de
cláusulas gerais.
Adotou a possibilidade do uso das cláusulas gerais e conceitos ju-
rídicos indeterminados ou vagos, através da linguagem, como forma
de flexibilização do sistema jurídico, dilatando ao juiz a possibilidade de
interpretação para aplicação da norma ao caso concreto. Desprendendo-
3. BRASIL, SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Quadro com-parativo entre o novo Código Civil e o Código Civil antigo. Disponível em < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?se-quence=2 > . Acesso em 30 mar. 2015.
30
-se do falso conceito que existia quanto à completude do sistema jurí-
dico positivado em Código, a mudança na técnica legislativa, incluindo
cláusulas gerais e conceitos vagos, permitiu a abertura ao sistema jurídi-
co, tornando-o de fechado em misto, o que quer dizer que não é aberto,
mas apenas permite sua abertura quando diante de um caso concre-
to aplicável. Esta técnica pós-moderna surgiu das transformações que
ocorreram após a Revolução Industrial; diante das enormes mudanças
ocorridas na sociedade, não havia mais condições de manter a antiga
estrutura tradicional, atendendo muito melhor a integração do sistema
jurídico através das cláusulas gerais.
Judith Martins-Costa descreve como a linguagem empregada per-
mite que a codifi cação funcione como um sistema aberto, facilitando a
constante incorporação de soluções de novos problemas, pela jurispru-
dência ou por atividades de complementação legislativa. A jurista afi rma
que as cláusulas gerais são como janelas deixadas pelo legislador civil em
razão da mobilidade da vida:
“Estas janelas, bem denominadas por Irti de ‘concetti di collegamen-
to’, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais,
técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o in-
gresso, no ordenamento jurídico codifi cado, de princípios valorati-
vos ainda não expressos legislativamente, de standards , arquétipos
exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previs-
tos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não
advindos da autonomia privada), de direitos e deveres confi gura-
dos segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas,
sociais e políticas, de normas, enfi m, constantes de universos meta-
jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressiste-
matização no ordenamento positivo.
Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida
mediante o emprego de conceitos cujos termos têm signifi cado
intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídi-
cos indeterminados’. Por vezes, e aí encontraremos as cláusulas
gerais propriamente ditas – o seu enunciado, em vez de traçar
pontualmente a hipótese e as consequências, é desenhado como
uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que ca-
racteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas
de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codifi cados, do
que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios,
diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de no-
vas normas”.
A utilização de cláusulas gerais é uma técnica legislativa que per-
mite fazer uso de normas formuladas a partir do uso de concei-
tos jurídicos indeterminados. A vagueza de conteúdo semântico
possibilita a incorporação, no momento da aplicação do direito, de
valores fi losófi cos, sociológicos e econômicos.
Direito Civil
31
Segundo Rodrigo Reis Mazzei, existem três espécies de cláusulas ge-rais no Código Civil de 2002:
1. Cláusulas gerais restritivas – que restringem em certas situações o âmbito de um conjunto de permissões advindas da regra ou prin-cípio jurídico. Por exemplo: a liberdade de contratar está restrita à função social do contrato (CC, art. 421)4;
2. Cláusulas gerais regulativas – que regulam com base em um prin-cípio, hipóteses de fato ou não previstas em lei. Por exemplo: a re-gulação da responsabilidade civil por culpa (CC, arts. 927 e 943), e
3. Cláusulas gerais extensivas – que ampliam a regulação jurídica, permitindo a introdução de princípios e regras de outros textos normativos. Por exemplo: O que dispõe o Código de Defesa do Consumidor (artigo 7º)5.
1.9.3. os Princípios Norteadores do Código CivilMiguel Reale também se preocupou em dar ao Código Civil de 2002
princípios norteadores básicos, os quais deverão ser sempre observados, por serem considerados valores essenciais, são eles:
a) princípio da eticidade;
b) princípio da socialidade; e
c) princípio da Operabilidade.
Quanto à eticidade, procurou-se superar o apego ao formalismo jurídico, conservando as conquistas das técnicas jurídicas (normas ge-néricas ou cláusulas gerais), sem a preocupação com o rigorismo con-ceitual, buscando com ênfase proteger a pessoa humana, priorizando a boa-fé, a justa causa, a equidade e outros critérios éticos. No que tange a sociabilidade, buscou-se afastar o caráter individualista da lei, priman-
4. Código Civil, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na con-clusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
5. Código de defesa do Consumidor, art. 7º – Os direitos previstos neste Códi-go não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos ex-pedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que de-rivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais“Neste sentido, NELSON NERY
JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY anotam: “A cláusula geral contida no art. 422 do novo Có-digo Civil impõe ao juiz interpre-tar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes.” (Código Civil Anotado e legislação extra-vagante, Saraiva, 2ª Edição, 2003, p. 340-341). Apelação Cível n. 1.0024.04.262215-9/001, rel. Des. Tarcísio Martins Costa, j. 6.3.2007).
JuriSPruDÊNCiA
32
do pelo predomínio do social, dos valores coletivos sobre os individuais (surge então a função social nos direitos: posse, contrato, propriedade, etc.). A operabilidade busca as soluções simples que se estabeleçam de modo a facilitar a interpretação e aplicação e dar maior efetividade ao operador do direito. Característica que permeia o Código Civil, tornan-do-o mais didático e prático.
Deste modo, o sistema jurídico misto brasileiro permite que as questões cíveis sejam julgadas conforme cada caso concreto. Isto é possí-vel por conta dos conceitos vagos, que para obterem a melhor aplicação diante de casos em que exista dúvida ou lacuna interpretativa, permite a aplicação das cláusulas gerais, sempre primando por manter o respeito aos princípios norteadores do Código Civil.
Ainda estudaremos, logo adiante, as regras de interpretação da nor-ma jurídica para a correta aplicação do direito em cada caso, por meio da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
1.10 o CAmPo DE iNCiDÊNCiA Do CÓDiGo CiviL
O campo de incidência do Código Civil se refere a área que abrange o seu alcance. Conforme pudemos aprender durante o estudo da es-trutura do Código Civil, no seu Livro Geral, cuida das situações que envolvem o direito subjetivo relacionado às pessoas, aos bens e aos fa-tos jurídicos. Na Parte Especial, desenvolve a regulação do direito das obrigações, do direito empresarial, do direito das coisas, do direito de família e, fi nalmente, do direito das sucessões.
Ao entrar em vigor, o Código Civil de 2002 provocou mudanças não apenas em relação ao direito das obrigações. Além das mudanças que já apontamos nos dois últimos tópicos de estudo, Rosa Maria de Andrade Nery6 esclarece que a legislação civil vigente revogou a Parte Primeira do Código Comercial (arts. 1º a 456), poupando apenas sua Segunda Parte (Arts. 457 a 796), que cuida do Comércio Marítimo.
6. NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. Editora RT: São Paulo, 2008, p. 81.
oS TrÊS TiPoS DE DiáLoGoS DAS foNTES:
Para o Ministro João Otávio de Noronha, no entendimento de Claudia Lima Marques, existem três tipos de diálogo das fontes entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor: 1) o diálogo sistemático de coerên-cia – a aplicação simultânea das duas leis; 2) a incidência coorde-nada de duas leis – quando uma lei pode complementar a aplica-ção de outra, conforme o caso concreto, valendo também aos princípios; 3) o diálogo de infl uên-cias recíprocas com uma possível redefi nição do campo de aplica-ção de uma lei. Exemplo: defi ni-ção de consumidor stricto sensu e a de consumidor equiparado, que pode sofrer infl uência fi nalís-tica do Código Civil.
NORONHA, João Otávio. Cri-se de fontes normativas: Código Civil x Código de Defesa do Con-sumidor. Disponível em <http://www.editorajc.com.br/2011/10/crise-de-fontes-normativas-codi-go-civil-x-codigo-de-defesa-do-consumidor-parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015.
ComENTário
Direito Civil
33
Em razão da vigência anterior do Código de Defesa do Consumi-dor, cogitou-se uma crise das fontes (Código Civil e Código de Defesa do Consumidor), contudo a doutrina superou este entendimento ao com-preender possível a coexistência de ambas, contribuindo neste sentido o esclarecimento de Claudia Lima Marques, quando trouxe ao Brasil a teo-ria do diálogo das fontes de seu orientador e mestre alemão, Erik Jaime7.
Entretanto, não se pode esquecer que o Código Civil de 2002 con-serva a possibilidade de servir como fonte subsidiária do direito, ou seja, trata-se de fonte de integração da norma jurídica, aplicável quan-do houver alguma lacuna de norma, utilizado como instrumento de in-tegração interpretativa do juiz, ao julgar o caso concreto. Estudaremos mais detidamente esta atividade do juiz, quando observarmos o contido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Como se pode notar, o uso do Código Civil como fonte de integração da norma jurídi-ca pelo juiz, sem dúvida nenhuma, dilata aumentando ainda mais o seu campo de incidência.
O Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-ger-mânico, sempre ocupou um lugar normativo privilegiado, e ao seu lado as normas do direito civil, como pudemos perceber, são as mais antigas formas de regulação das relações interpessoais da sociedade, transcen-dendo as mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo dos séculos. Diante desta condição inegável, que descreve sua robusta e portentosa composição ao longo dos séculos, o direito civil sempre forneceu as ca-tegorias, os conceitos e classificações que consolidaram diversos ramos do direito público, inclusive o constitucional.
A migração do Estado Liberal para o Estado Social a partir do sé-culo XX, pode ser percebida pela intervenção estatal nas relações pri-vadas. No Estado Social, passou a ocorrer uma mitigação da amplitude da autonomia da vontade, restringindo condicionalmente a autonomia privada para garantir os interesses dos mais fracos, pela influência dos direitos fundamentais e direitos humanos que surgiram após a Segunda
Guerra Mundial.
Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos • Arts. 1º a 103 CC
Obrigações, Empresa, Coisas, • Arts. 104 a 2.027 CC
Família e Sucessões
Aplicação Subsidiária • Fonte de integração
7. NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de Defesa do Consumidor. Disponível em <http://www.editorajc.com.br/2011/10/crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-do-consumidor-parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015.
Veja “o merca-dor de veneza” (direção de Mi-chael Radford, 2004); observe que no contrato da época figura-va a autonomia
da vontade, não a autonomia privada. Compare a diferença na visão de direito no Estado Liberal para o Estado Social.
CiNEmATECA
A autonomia da vontade trazia o conceito de que uma vez manifestada a vontade, como por exemplo, em um contrato as-sinado, deveria ela ser obedeci-da. Este era o conceito do Estado Liberal, fazer garantir a liberdade plena, enquanto, na autonomia privada, o Estado intervém sem-pre que a vontade das partes ex-pressa no contrato vier a ofender o ordenamento jurídico. Desse modo, se existir um valor resguar-dado pelo ordenamento, não podem as partes usar de tal liber-dade de contratar para tornarem válido o contrato. Exemplo: loca-dor que aluga imóvel e faz con-trato, sendo o objeto da locação uso industrial que ofende ao meio ambiente. Pode o Estado intervir e tornar sem efeito o contrato, por ofensa a preceito de ordem pública.
CurioSiDADE
34
1.11 O DIREITO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana
Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência em defesa da humanidade provocada pela refl exão quanto às atrocida-des cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Uni-das, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Orga-nização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dig-nidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça e à paz8. De acordo com Karl Larenz9, rompe-se assim com o antigo o paradigma patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio para efetivação dos direitos individuais, passando a fi rmar-se o direito das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar de pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como personalismo ético.
Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garan-tia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Na visão antiga, sob infl uência do iluminismo, o homem só era compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito ampara-do por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade.
Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rom-peu defi nitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Ca-naris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos por meio d e Constituiç ões, organizando sua legislação hie-rarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Priva-do e em toda legislação infraconstitucional e na jurisprudência.
No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pes-soa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado So-
8. UNESCO. Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em 26 fev. 2015.
9. LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Tradução de Miguel Izquierdo y Macías. Picavea. Madri:Ed. Revista de Derecho Privado, 1978. § 2º.
VOCABULÁRIO
Infraconstitucional: é a legislação que está abaixo da Constituição.
O julgamento de Nu-remberg. O fi lme re-trata de modo claro, com cenas reais, o motivo que provocou
a existência do personalismo ético.
CINEMATECA
KARL LARENZ (1903 a 1993). Jurista alemão que foi professor nas duas mais importan-tes universidades da
Alemanha: Kiel e Munique. Dedi-cava-se ao estudo do Direito Civil, tendo publicado diversas obras jurídicas. Entre suas obras mais importantes, além do estudo da jurisprudência e valores, trouxe o conceito de personalismo ético.
CLAUS-WILHELM CA-NARIS (01-07-1937). Notável jurista ale-mão, nascido em Liegnitz, que identifi -cou as lacunas na lei.
Professor e doutrinador com 16 li-vros publicados em diversos países, além de mais de 180 artigos cientí-fi cos. Por sua destacada atuação e contribuição jurídica e fi losófi ca com o Brasil, recebeu em 2012 o título de doutor honoris causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Sobre o tema sugerimos a leitura de: CANARIS, Claus-Wilhelm. A infl uência dos di-reitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 225. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Cons-tituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livra-ria do Advogado, 2010, p. 206-207.
AUTOR
Direito Civil
35
cial, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de
direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contrato, posse
ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo
ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo).
Dentro desta compreensão, emergiu como garantia fundamental a todos cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana, através do qual se contempla a evolução social histórica do personalismo ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito (descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988).
Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, obser-va-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação hu-mana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis.
Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à soli-dariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, res-ponsabilidade civil, família e empresas) para atender melhor à tutela dos mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção estatal com aplicação direta e dos direitos fundamentais às relações pri-vadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras nor-mas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia de questões de ordem pública envolvendo direitos transindividuais (O Estatuto da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, etc.).
Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi res-ponsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na pro-teção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitu-cional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplica-ção, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.
Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço por acomodar estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constitui-
ção Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este
fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimo-
Teoria da eficácia horizontal ou irradiante dos direitos funda-mentais.
Os direitos são transindividu-ais por zelarem por uma classe específica de cidadãos, indepen-dentemente de exprimirem sua vontade. Por exemplo: o Ministé-rio Público tem legitimidade para intervir quando existir interesse das crianças e adolescentes, dos idosos, dos consumidores etc. A organização dessas leis infracons-titucionais, quando apresenta conjunto complexo e capaz de lhe conceder certa autonomia, chama a doutrina de microssiste-ma jurídico.
CURIOSIDADE
NETTO LOBO, Paulo Luiz. Cons-titucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa. Senado Federal. Brasília, ano 36, n. 141 jan./mar. 1999.
SAIBA MAIS
36
nialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A
doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo
metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional, a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como
eixo norteador os princípios constitucionais (a dignidade da pessoa humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a
igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III
e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos
no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que ir-
radiam efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se
tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da
dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) prin-
cípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto
no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princí-
pio também; quando isto ocorrer, poderemos afi rmar que o Direito
Civil Constitucional estuda a infl uência dos princípios constitucio-
nais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade
social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade
do princípio da igualdade substancial.
Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constitui-
ção Federal de 1988 passou a infl uenciar diretamente toda a legislação
brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cida-
dãos. No direito de família, consolidou-se a família núcleo natural e fun-
damental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou
as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os fi lhos havidos
no casamento e fora dele.
Por força e infl uência da Constituição Federal de 1988, também o
direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contra-
to etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua inter-
venção imediata nas relações privadas.
A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determi-
nadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de invalidação
do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou
cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade.No que diz
VOCABULÁRIO
equidade: traz consigo a ideia de distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso concreto.
Direito Civil
37
respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo
421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os
limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte
contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de
direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente,
quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na exe-
cução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé.
Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil
existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo
5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá
sempre a sua função social.
As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem
ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias
em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Có-
digo Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado
para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, conservar os princípios
da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais.
CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL
Art. Texto PALAVRAS-CHAVE
112Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem.
PRINCÍPIO DA IN-TENÇÃO
113Os negócios jurídicos devem ser interpreta-dos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
PRINCÍPIO DA BOA -FÉ OBJETIVA E COSTUMES
114Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
INTERPRETAÇÃO RESTRITA
negócios gratuitos, doação e renúncia
421A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do con-trato.
FUNÇÃO SOCIAL
422
Os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios da probidade e da boa-fé.
PRINCÍPIO DA PROBIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA
423
Quando houver no contrato de adesão cláu-sulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
INTERPRETAÇÃO BENÉFICA AO MAIS FRACO
A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às
relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos
fundamentais.
A influên-cia dos direitos f u n d a m e n t a i s garantidos pela C o n s t i t u i ç ã o sobre o Direito Privado recebe vários nomes si-
nônimos pela doutrina, tais como: constitucionalização do direito civil ou direito privado; descodi-ficação do direito civil; reperso-nalização do direito privado ou dos direitos civis, despatrimoniali-zação etc. Alguns doutrinadores cogitam ainda o surgimento de um outro ramo do direito: o Direi-to Civil Constitucional.
CURIOSIDADE
Personalismo Ético: Teoria ins-pirada no pensamento iluminista de Kant, desenvolvida por Karl Larenz, na qual a pessoa deve ser considerada o fim e não o meio, pois não possui um preço. Base fundamental para a construção do princípio da dignidade da pes-soa humana adotado pela Cons-tituição Federal de 1988.
REALE, Miguel. Função Social do Contrato, 2003. Disponível em http://www.miguelreale.com.br/artigos.
SAIBA MAIS
VOCABULÁRIO
abuso de direito: ocorre quan-do o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifesta-mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons cos-tumes, conforme descreve o Art. 187 do Código Civil.
COMENTÁRIO
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1.12 A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO
1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n.
12.376/2010), antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657/1942), embora pequena, com apenas dezenove artigos, apresenta diversas regras destinadas a orientar o operador e aplicador do direito:
LINDB
Arts. 1º e 2º Vigência das normas
Art. 3º Obrigatoriedade das normas
Art. 4º Integração da norma
Art. 5º Interpretação da norma
Art. 6º Aplicação da norma no tempo
Arts. 7º a 19 Aplicação da norma no espaço
A LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro aplica-se na orientação de todas as normas do ordenamento jurídico brasileiro, seja no âmbito Privado ou Público, inclusive no Direito In-ternacional.
1.12.2. Prazos para Vigência de LeiOs prazos para vigência de uma lei são em regra contados a partir
da sua publicação ofi cial.
Ao lapso temporal entre a publicação e a vigência de uma lei cha-mamos de vacatio legis. A vacatio legis é o prazo razoável para que nin-guém alegue a ignorância da lei. Durante a vacatio, a lei existe mas não é obrigatória, contudo para garantir o seu texto integral, será considerada vigente retroativamente desde o dia da sua publicação, após exaurido o lapso da vacatio, conforme esclarece o Art. 8º, § 1º da LC n. 95/98.
O prazo para vigência de uma lei no Brasil é de quarenta e cinco dias após sua publicação ofi cial. Admitindo exceção, quando o próprio texto de lei expressar disposição contrária. Contudo para vigorar no es-trangeiro, se aceita a lei, o prazo é de noventa dias a partir da publicação ofi cial.
Toda legislação antes de entrar em vigor passa por um processo, que envolve cinco fases: a) a elaboração; b) a promulgação; c) a publica-ção; d) a vacatio legis; e e) a vigência.
Se vier a ocorrer nova publicação da lei, desde que ainda não te-nha entrado em vigor e mesmo que exclusivamente para correção de meros erros materiais, sua obrigatoriedade fi cará condicionada a novo
período de vacatio, a contar da última publicação. Se a lei corrigida já
Lei Complementar n. 95/98, art. 8º – A vigência da Lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo ra-zoável, para que dela se tenha amplo conhecimento, reserva-da a cláusula "entra em vigor na data da sua publicação" para as leis de pequena repercussão. § 1º – A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que es-tabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação.
ATENÇÃO
Direito Civil
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estava em vigor, será considerada a versão corrigida e última como lei nova (LINDB, Art. 1º, § 4º).
1.12.3. A Revogação da LeiNão se tratando de lei temporária, a vigência de uma lei permane-
ce até que outra a modifique ou revogue, este é o princípio da conti-nuidade das leis.
1.12.4. A Vigência Temporária da LeiExaminando o Art. 2º, caput, da LINDB é possível verificar que
existem dois tipos de leis, as leis de vigência permanente e as leis de vi-gência temporária. Em regra, todas as leis são de vigência permanente. No entanto, serão de vigência temporária quando expressamente delas constar: a) prazo de duração; b) condição resolutiva; ou c) se é alcançada sua finalidade. Nestes casos ocorre a caducidade da norma, quando a circunstância torna a norma sem eficácia.
1.12.5. Da Extensão da Revogação da LeiA revogação da lei se divide em duas classes, a primeira refere-se à
sua extensão e a segunda quanto à forma de execução.
A revogação quanto à I) extensão, pode ser: a) total ou b) parcial.
A revogação total, também denominada por ab-rogação, configu-ra-se quando o texto da lei nova sepulta por completo a vigência do texto anterior, sem qualquer ressalva.
A revogação parcial, também chamada de derrogação, afeta apenas parcialmente a norma anterior, permitindo que ainda vigore parte do texto legal.
Além das duas situações acima, em que temos a perda de eficácia da norma jurídica, cumpre salientar também que o Supremo Tribunal Fe-deral pode afastar vigência das leis que julgar inconstitucionais quando suspensas pelo Senado Federal através do controle difuso de constitu-cionalidade (art. 52 da CF).
VOCABULÁRIO
revogar: é retirar a eficácia da lei anterior. A lei nova, em re-gra, revoga a lei velha.
A lei temporária, em regra, trará expressamente em seu texto o prazo da sua duração ou da vi-gência integral.
LINDB:– Art. 2º. Não se destinando à
vigência temporária, a lei terá vi-gor até que outra a modifique ou revogue.
– Art. 2º – § 1º – A lei posterior revoga a anterior quando expres-samente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
– Art. 2º – § 2º – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
– Art. 4º – Quando a lei for omis-sa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
– Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
– Art. 2º, § 3º – Salvo disposi-ção em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revo-gadora perdido a vigência.
– Art. 3º – Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
ATENÇÃO
ATENÇÃO
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1.12.6. Da Forma de Revogação da LeiQuanto à classe de revogação pela forma de II) execução, pode ser:
a) expressa ou b) tácita.
A revogação será expressa quando a lei nova descrever de modo
expresso que revoga a lei anterior, é o que diz a primeira parte do § 1º
do Art. 2º da LINDB.
A revogação de forma tácita exige um maior esforço interpretativo
do aplicador da norma, pois a situação pode apresentar uma antino-
mia, ou seja, um confl ito de normas (antiga e nova), obrigando-o a
adotar certos critérios para a sua solução, como explica Maria Helena
Diniz (DINIZ, Confl ito de normas. 2009):
a) critério cronológico – lex derogat legi priori
b) critério hierárquico – lex superior derogat legi inferior, e
c) critério especial – lex specialis derogat legi generali.
a) Critério cronológico, lex derogat legi priori, é aplicável quando a
lei nova for incompatível com a lei anterior ou regule de modo integral
a mesma matéria, como se pode notar da segunda parte do § 1º do Art.
2º da LINDB.
b) Critério hierárquico, lex superior derogat legi inferiori, prevê a
possibilidade de revogação tácita, quando uma lei hierarquicamente in-
ferior cuidar de matéria dita por uma lei de maior grau hierárquico.
Por exemplo: A Constituição Federal revogou de forma tácita diversas
disposições legais de leis infraconstitucionais.
c) Critério Especial – O critério da especialidade ou critério espe-
cial, lex specialis derogat legi generali, prevê que a lei especial prevalece
sobre a lei geral, revogando-a. Contudo se a lei nova estabelecer dispo-
sições gerais ou especiais, a par das já existentes, não revoga, nem mo-
difi ca a lei anterior. Isto quer dizer que, se a lei nova nada disser sobre a
conservação do conteúdo existente em lei anterior, e com aquele texto
anterior vier a confl itar sua matéria, poderá ser revogada tacitamente,
pela lei especial, ainda que mais velha (critério da especialidade). A co-
existência de normas tratando do mesmo assunto é possível, desde que
não exista entre elas incompatibilidade. Quando esta surgir, competirá
ao aplicador da norma aplicar os critérios para afastar a antinomia.
1.12.7. As AntinomiasOs confl itos de normas, que recebem o nome de antinomias, pos-
suem então três critérios para sua solução, conforme já estudamos no
que era tratado quanto à revogação tácita da norma. Os critérios cro-
nológico, hierárquico e especial obedecem a mesma lógica já exposta. A
antinomia aparente é um confl ito que se resolve pelos critérios de modo
simples, não trazendo maiores difi culdades. Enquanto a antinomia real
não se resolve tão somente pela aplicação dos critérios, sendo necessário
aplicar a técnica de integração para lacunas da lei. A antinomia será de
VOCABULÁRIO
antinomia: trata-se de confl i-to de normas. Ocorre quando duas ou mais normas dispõem da mesma matéria. Segundo Maria Helena Diniz, a antinomia pode ser real ou aparente.
lex derogat legi priori: do la-tim, lei posterior revoga a lei anterior.
Direito Civil
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primeiro grau, quando um critério for suficiente à resolução do conflito e de segundo grau quando envolver mais outro.
1.12.8. A Repristinação da LeiA repristinação da lei é o fenômeno que permitiria devolver o esta-
do anterior de vigência de uma lei já revogada. Embora nosso ordena-mento não permita que uma lei revogada restaure sua vigência, se a lei nova fizer expressa menção à lei revogada (note o art. 2º, § 3º, o qual diz "salvo o contrário...") para que o efeito repristinatório se aplique, isto será possível.
1.12.9. A Obrigatoriedade das NormasA vacatio legis, que se inicia com o período de publicação de uma
lei, após seu longo trâmite legislativo, tem a função de dar amplo conhe-
cimento da lei, sendo que a partir de sua vigência a lei opera erga omnes
Como se percebe, não se pode alegar ignorância da lei, pois ela possui eficácia global, pelo princípio da obrigatoriedade. Entretanto, de acordo com Rene Gustavo Nicolau, quando excepcionalmente em casos nos quais a ignorância ou errônea compreensão da lei ocorrer, poderá a pena deixar de ser aplicada, nos moldes do que dispõe o Art. 8º do DL n.
3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). Exemplo: emissão de fumaça
que impede o motorista de ver a placa de trânsito ou semáforo.
1.12.10. Da Integração da Norma JurídicaConforme pudemos observar, o sistema jurídico para solução dos
conflitos judiciais privados é misto sendo, portanto, possível o uso das
técnicas legislativas de integração da norma jurídica. Estudamos a apli-
cação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, além
da influência dos princípios constitucionais (princípio da dignidade da
pessoa humana, princípio da solidariedade e princípio da isonomia), da
função social e dos princípios norteadores do Código Civil (eticidade,
socialidade e operabilidade), para auxílio do magistrado na decisão do
caso concreto.
Nosso ordenamento jurídico não permite ao juiz invocar a cláusula
non liquet, deste modo, está o magistrado obrigado a julgar todos os
pedidos que receber, ainda que não exista norma jurídica que discipli-
ne a matéria. Caso não exista norma (lacuna) ou persistindo dúvida, o
sistema se abre para que o aplicador lance mãos das técnicas de integra-
ção da norma, até que, após ponderar, decida, julgando o caso concreto.
Desse modo, o juiz cria através de seu julgamento a norma para aquele
caso, colmatando a lacuna, afastando o conflito, e a coisa julgada, quan-
do emergir, fecha o sistema em relação àquela disputa específica.
A atividade de interpretação das normas jurídicas se destina a for-
necer ao juiz subsídios para auxiliá-lo no julgamento da causa, mesmo
quando estiver diante de uma lacuna da lei ou de um conflito de normas.
VOCABULÁRIO
Non liquet, do latim, não está claro. A cláusula non liquet era muito comum no período do Estado Liberal, em que se acreditava que o ordenamen-to jurídico se resumia no direito positivado. Era invocado pelos juízes de tribunais para que es-tes pudessem deixar de julgar quando um caso trouxesse questões obscuras ou sem disci-plina clara na lei. Esta cláusula foi afastada do ordenamento brasileiro.
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Temos vários recursos a auxiliarem o magistrado nesta tarefa de
integração da norma, inicialmente o juiz dispõe, como vimos, dos prin-
cípios constitucionais, das cláusulas gerais, dos conceitos jurídicos inde-
terminados e da função social. Não sendo bastantes, seguirá ao estudo
das fontes do direito. Vamos recordar as fontes diretas e indiretas estu-
dadas no início desta obra, conforme ilustração aqui repetida:
1.12.11. As Lacunas da Norma JurídicaComo o juiz está impedido de deixar de julgar o caso concreto,
quando a lei for omissa, ou seja, existindo uma lacuna da norma, ele
recorrerá as fontes do direito, na seguinte ordem de preferência: a) ana-logia; b) costumes e c) princípios gerais do direito. Sem difi culdade se
observa pela ilustração abaixo em comparação com a anterior que as
fontes do direito são o recurso primário para integração da norma, em
especial, a jurisprudência (analogia), o costume e os princípios gerais
do direito.
Quando vimos as fontes do direito observamos que a Lei é fonte
primária, e o costume fonte secundária, além de outras fontes suple-
tórias como a Jurisprudência, a Doutrina e os Princípios Gerais do
Direito.
Para aplicação da analogia, é necessário: 1) a constatação da exis-
tência da lacuna; 2) a semelhança entre o caso concreto e outra lei ou
julgado; e 3) os fundamentos jurídicos e lógicos devem ser semelhan-
tes ao caso em concreto. Convém salientar que é possível recorrer a
analogia legislativa, situação na qual se busca reger por legislação
diversa caso semelhante, ou analogia jurisprudencial, na qual o juiz
poderá se socorrer de julgados de questões semelhantes analisados
pelos tribunais.
Os costumes são fonte supletória ou secundária, tratam da prática
uniforme, conhecida de todos quanto a determinado ato. Podem ser:
VOCABULÁRIO
Analogia é o estudo das seme-lhanças. No direito a Jurispru-dência se compõe de decisões dos Tribunais referentes a casos semelhantes. Portanto, quando a lei dispõe sobre analogia, po-demos entender que se trata de julgamentos análogos sobre a mesma matéria em estudo.
Direito Civil
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a) Praeter legem – quando aplicáveis subsidiariamente pela omissão de
lei, e b) Secundum legem – quando o próprio legislador determinar. Os
costumes não são aplicáveis quando forem contra legem. Isto porquê a
aplicação dos costumes quando a lei estiver em desuso pode configurar
abuso de direito (art. 187 do CC).
Os princípios gerais do direito, como já vimos quando estuda-
mos as fontes do direito na introdução desta obra, são regras incuti-
das na consciência dos povos, universalmente aceitas, resumidas em
três categorias: a) viver honestamente – honeste vivere; b) dar a cada
um o que é seu – suum cuique; e c) não lesar o próximo – suun cuique
tribuere.
A equidade é a atividade do aplicador da lei que traz a ideia de
distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso
concreto. Embora não se qualifique como elemento de integração da
norma, ocupa espaço para tal finalidade sempre que a própria lei fizer
sua previsão10. Se a lei não expressar sua aplicação para este fim a equi-
dade não deverá ser aplicada11.
1.12.12. Da Interpretação da Norma JurídicaInterpretar consiste em descobrir sua essência, a ratio legis. Para que
o juiz possa aplicar a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências
do bem comum é necessário que proceda à sua interpretação quanto à
origem, quanto ao método ou quanto ao resultado, considerando seu
contexto social contemporâneo, em harmonia com todo o ordenamento
jurídico, levando em conta o caso concreto através das provas lícitas nele
contidas, valorando-as, e, ao final decidindo por sentença, a pacificação
do conflito, não violando direito alheio12.
Portanto, a aplicação e a interpretação da norma jurídica pelo ma-
gistrado se dará quanto: 1) à origem, 2) ao método ou 3) ao resultado.
1) Quanto à origem, pode ser: a) Autêntica – quando decorre
do próprio legislador, pois seu sentido é explicado por outra lei; b)
Doutrinária – quando sua interpretação vier da doutrina, das obras
científicas, e c) Jurisprudencial – quando proveniente da jurisprudên-
cia dos tribunais.
2) Quanto ao método, pode ser: a) Gramatical – quando buscar
auxílio nas regras da língua; b) Lógica – quando procura reconstituir o
pensamento do legislador; c) Histórica- busca o momento da criação
da norma; d) Sistemática – quando visa harmonizar o texto ao sistema
10. CPC, Art. 127. O Juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.
11. Nota Explicativa: O legislador desejou limitar a aplicação da equidade para evitar sua evocação pelo magistrado em casos nos quais ela não é devida.
12. LINDB, Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
VOCABULÁRIO
Desuso e dessuetude são pala-vras sinônimas.
Ratio Legis, o espírito da lei, seu objeto, sua razão de existir, seu sentido e extensão.
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jurídico como um todo; e e) Teleológica – quando se apega aos fi ns para
os quais a lei foi editada.
3) Quanto ao resultado, pode ser: a) Declaratória – quando se
limita a dizer qual é o sentido da norma; b) Restritiva – quando se res-
tringe ao sentido da lei, por ter o legislador dito mais do que deveria
dizer; e c) Ampliativa – quando se amplia a interpretação do sentido da
lei, por ter o legislador dito menos do que deveria dizer.
1.12.13. Da Aplicação da Norma no TempoA lei visa atender às situações que ocorrem durante a sua vigên-
cia, ou seja, projeta-se ao futuro. Em solução às dúvidas que venham a
surgir, em razão da intertemporalidade, a lei obedece aos critérios das
disposições transitórias e da irretroatividade.
No Código Civil, encontraremos as disposições fi nais e transitórias,
nos artigos 2.028 a 2.046. Trata-se de critérios que visam facilitar a apli-
cação da norma no tempo, a fi m de evitar confl itos entre normas.
Como vimos, existirá um confl ito de normas (antinomia) quando
duas ou mais leis regularem a mesma relação jurídica.
Para compreensão da aplicação da norma no tempo, o estudo da
noção básica do direito intertemporal se faz necessário. Este divide as
relações jurídicas em três hipóteses de ocorrências: a) A retroativida-
de da lei nova; b) O efeito imediato da lei; e c) Se dá a sobrevida da
lei antiga.
A lei em regra não retroage a fatos anteriores à sua vigência13, a não
ser quando ela formalmente expresse em seu texto esta fi nalidade e não
ofenda ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Tam-
bém é possível que a lei retroaja em benefício do réu no direito penal14.
A lei nova, conforme já estudamos, produz efeitos imediatos após
seu período de vacatio legis, aplicando-se aos casos passados e futuros.
13. Nota Explicativa: O direito brasileiro aplica o princípio da irretroatividade da lei. Deste modo a lei vigente aplica-se a partir de sua entrada em vigor a todos os casos presentes e futuros.
14. Nota Explicativa: Princípio da retroatividade benéfi ca penal, na Consti-tuição Federal de 1988, Art. 5º, XL, que dispõe que: “A lei penal não retroagirá, salvo para benefi ciar o réu.”
Direito Civil
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A sobrevida ou manutenção dos efeitos de legislação anterior se refere a três situações: a) ato jurídico perfeito; b) direito adquirido; e c) coisa julgada.
A lei antiga continuará emanando seus efeitos sobre relações ju-
rídicas definidas pelas hipóteses acima descritas, em razão de terem se
consubstanciado de modo pleno antes da vigência da lei nova.
a) Ato jurídico perfeito – se consumou de modo cabal anterior-
mente à lei nova15;
b) Direito adquirido – se incorporou ao patrimônio de seu titu-lar16; e
c) Coisa julgada – decisão judicial irrecorrível17.
1.12.14. Da Aplicação da Norma no EspaçoNos artigos 7º a 19 da LINDB encontraremos a descrição da aplica-
ção da norma no espaço. Trata-se das disposições de Direito Internacio-
nal Público e Privado.
O legislador dispõe que é o domicílio da pessoa, em ânimo definiti-
vo, que determinará as regras sobre o início e o fim da personalidade, o
nome, a capacidade e os direitos de família18.
Quanto ao casamento existem algumas regras específicas. Confor-
me abaixo descrevemos:
Quanto ao local onde é celebrado o casamento, se a questão ju-
dicial busca arguir impedimentos ou questões ligadas às formalidades
do casamento, pouco importará se os nubentes não são brasileiros; será
competente o Brasil para apurar a questão, afastando-se a regra do foro
de domicílio19.
15. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
16. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 2º. Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pre-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
17. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 3º. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
18. LINDB, Art. 7º, caput. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.
19. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras so-bre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 1º. Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira, quanto aos impedimentos dirimentes às formalidades da celebração.
46
Considera-se efi caz o casamento brasileiro feito no estrangeiro, ou vice-versa, perante autoridades diplomáticas ou consulares de ambos os nubentes20.
Quando se pleitear a invalidade do casamento, e havendo domicílio diverso entre os nubentes, restará efi caz a lei que viger no lugar do pri-meiro domicílio conjugal21.
A lei que regerá o regime de bens no casamento, seja legal ou con-
vencional, será aquela vigente no lugar onde forem domiciliados, ou no
local do primeiro domicílio conjugal22.
Quanto aos bens, aplica-se a lei de onde estiverem localizados, ou
a lei do domicílio de seu proprietário quando este estiver de transporte
para outro lugar23.
As obrigações se cumprirão no local onde foram constituídas24.
Ainda restam alguns poucos artigos os quais não são indispensáveis
ao estudo proposto.
20. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fi m da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de famí-lia. § 2º. O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes.
21. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fi m da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de famí-lia. § 3º. Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal.
22. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fi m da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. § 4º. O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal.
23. LINDB, Art. 8º. Para qualifi car os bens e regular as relações a eles concer-nentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. § 1º. Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
24. LINDB, Art. 9º. Para qualifi car e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que constituírem.
A pessoa natural2
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2.1 A PESSOA NATURAL
A etimologia da palavra pessoa indica que os indivíduos possuem
um papel a representar na sociedade. Este papel se expressa pela perso-
nalidade de cada ser. Pessoa natural é o nome que o direito civil atri-
bui ao ser da espécie humana, considerado enquanto sujeito de direito
e obrigações1. Para ser pessoa natural, basta existir, enquanto ser da es-
pécie humana.
2.2 A PERSONALIDADE JURÍDICA
Ao desempenho deste papel na sociedade, que permite à pessoa
humana ser sujeito de direitos e obrigações ou deveres, chamamos de
personalidade civil ou jurídica.
A personalidade civil ou jurídica é a aptidão genérica para ser su-
jeito de direitos e deveres, aptidão esta que poderá ser exercida a partir
do seu nascimento com vida2 e dura até a sua morte. O simples fato de
nascer, constatado pela oxigenação de seus pulmões, é sufi ciente a lhe
garantir a personalidade jurídica. Contudo, ainda que não nascido, mas
concebido, vivo e aguardando nascimento no ventre materno, garan-
te-lhe o Estado a proteção da personalidade jurídica, pela qualidade de
nascituro, ser humano concepto.
A existência de vida humana, ainda que em estado uterino, é o fato
jurídico que torna o ser apto a ser considerado sujeito de direitos e obri-
gações na ordem civil. Tal aptidão da pessoa natural abre condições para
que se estabeleçam as relações jurídicas com outros seres semelhantes a
si mesmo (sociedade).
2.3 A NATUREZA JURÍDICA DO NASCITURO
O nascituro é o ser já concebido, aquele que está por nascer. Nas-
cituro é o ser humano em estágio fetal que se mantém vivo e ligado à
sua mãe, aguardando que ela lhe dê à luz. A potencialidade do seu nas-
cimento com vida deve ser certa, fato que pode ser constatado através
de exames médicos. Não se deve confundir com nascituro, o natimorto,
pois enquanto o primeiro permanece vivo com a expectativa de vida
1. Código Civil, Art. 1º – Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
2. Código Civil, Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimen-to com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
VOCABULÁRIO
Concepto: concebido, em pro-cesso gestacional.
O estudo da origem da pa-lavra pessoa demonstra que ela deriva do latim persona, que signi-fi ca indivíduo, seja homem ou mu-lher, a personagem. Personagem, pois a palavra deriva da atuação dos atores do teatro grego da an-tiguidade, os quais emprestavam a voz para dar vida a seus perso-nagens fi ctícios, sempre represen-tados por máscaras que eram uti-lizadas para ocultar a identidade de quem os animava. Então, sob a atuação sonora que dava vida aos personagens, surgiu o con-ceito de pessoa. Pessoa é aquela que ocupa papel ou papéis na sociedade, sendo que na acep-ção jurídica do termo, pessoa é todo ente físico ou moral, suscetí-vel de direitos e obrigações, sinô-nimo de sujeito de direitos e sujeito da relação jurídica.
CURIOSIDADE
A nidação ocorre quando se dá depósito do óvulo fecundado no útero da mulher. Após a fecun-dação do óvulo nas trompas, ele se movimenta até o endométrio, passando a fi xar-se nesta espé-cie de parede do útero, permitin-do que ocorra a gravidez. Neste momento, desde que possível ser constatada a gravidez, no en-tendimento do STF, haveria um ser potencial, digno de proteção como pessoa humana.
CURIOSIDADE
Direito Civil
49
fora do útero, este último já se acha morto, embora ainda ligado ao útero
materno. O natimorto não tem expectativa de deixar o útero materno
com vida, pois o óbito ocorre durante o seu período gestacional.
Descreve claramente o Art. 2º do Código Civil que: “A personalida-
de civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Como se pode notar pela nossa atual lei civil, a condição de nas-
cituro é que marca o início à aquisição da personalidade civil ou jurí-
dica das pessoas naturais, mas o fato da concepção também é relevante
ao direito. Pois em torno destas peculiaridades, que tornam complexa
a resolução da questão quanto à personalidade jurídica do nascituro, a
doutrina desenvolveu algumas teorias, das quais aqui descreveremos as
três mais recorrentes:
a) TEORIA NATALISTA OU NATIVISTA
A teoria natalista ou nativista defende que o ser humano adquire
personalidade civil ou jurídica somente a partir do seu nascimento com
vida, antes disto o que se tem é mera expectativa de direito. Esta teo-
ria está incorporada ao Direito Civil brasileiro desde o Código Civil de
1916, na ocasião defendida por Silvio Rodrigues, Caio Mario da Silva Pe-
reira, Vicente Ráo e Eduardo Espínola. Para os natalistas o feto enquanto
não nascido é apenas uma extensão do corpo de sua mãe.
Esta teoria também foi adotada em parte pelo Supremo Tribunal
Federal, ao julgar o emblemático caso das células-tronco embrionárias.
Quando do julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
n. 3.5103, o então Ministro Ayres Brito consignou que a Constituição
Federal de 1988 se refere sempre a dignidade da pessoa humana e aos
direitos da pessoa humana, bem como aos direitos e garantias individu-
ais. No entendimento do Excelentíssimo Ministro, ao lidar com referidas
terminologias o Legislador Constituinte teria deixado claro se tratar de
direitos do indivíduo-pessoa; deste modo, não haveria dúvidas de que a
intenção era proteger um estágio da vida humana, mas a vida que já é
própria de uma pessoa concreta, ou seja, de um indivíduo já persona-
lizado. Tal expectativa, segundo o Ministro Ayres Brito, não se aplicaria
aos embriões excedentários (dos quais seriam colhidas as células-tronco
para fins de pesquisa), pois ainda não chegaram a ser inseminados no
útero materno. Concluiu assim o STF que somente se poderia consi-
derar pessoa humana aquele ser humano concepto, alimentado e vivo
intrauterinamente. Com este entendimento, o STF afastou o entendi-
mento narrado pela teoria concepcionista.
Como se pode observar, para os natalistas ou nativistas, a lei apenas
protege os direitos que o nascituro adquirirá quando nascer com vida,
3. BRASIL, STF. Adin n. 3510. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/ge-ral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20ADI%20/%203510>. Acesso em 30 mar 2015.
Conforme Maria Helena Diniz, no direito civil francês e holandês não basta o nascimento com vida; é necessário que o recém--nascido seja viável, isto é, apto para a vida. O direito espanhol exige que o recém-nascido deve ter a forma humana e viver pelo menos 24 horas, para que possa adquirir a personalidade. No direi-to português, se condicionava à vida à figura humana. No argen-tino e húngaro, a concepção já dá origem à personalidade. No direito civil brasileiro, afastaram-se todas estas hipóteses para evitar dúvidas, condicionando ao nasci-mento com vida (DINIZ, Maria He-lena. Curso de Direito Civil Brasilei-ro, Teoria Geral do Direito, 1º Vol. 22ª Ed. Saraiva, p. 191-192).
COMENTÁRIO
Células- -tronco são células com ca pa cidade de regene-ração, ca-
pazes de originar tipos especia-lizados de células, que formam diferentes tecidos do corpo hu-mano. As células-tronco embrio-nárias são as células-tronco dos embriões que excedem (embri-ões excedentários) às tentativas de inseminação artificial. O STF foi confrontado a decidir se permitia ou não o uso das células-tronco embrionárias dos embriões fecun-dados que se encontravam con-gelados em laboratórios. A Lei de Biossegurança estava em ques-tão, para se saber se haveria vida humana digna de proteção na-queles embriões, ou se poderiam ser utilizados para a pesquisa.
CURIOSIDADE
50
sendo estes descritos de modo restrito (direito à vida, direito à herança,
posse).
b) TEORIA CONCEPCIONISTA
Para os concepcionistas, é possível o ser humano adquirir a per-
sonalidade civil ou jurídica desde a concepção, ou seja, antes de nascer.
A lei ressalva em seu benefício alguns direitos patrimoniais originados
de herança, doação ou legados, os quais fi carão condicionados ao seu
nascimento com vida. Ao contrário do que presume a teoria da perso-
nalidade condicional.
Existem diversas situações que demonstram conceder direitos da
personalidade ao nascituro enquanto concepto, os quais passaremos a
elencar alguns: 1) o direito ao reconhecimento de paternidade4; 2) o di-
reito à curatela5; 3) ser donatário6; 4) ter o direito à herança7; 5) direito
à vocação hereditária por indicação em testamento (prole eventual)8;6)
direito à indenização9; 7) direito aos alimentos10; 8) proteção criminal
quanto à vida, entre outros11.
São inúmeros os casos concretos através dos quais podemos no-
tar que o posicionamento da lei e da jurisprudência dão o sentido de
que o nascituro tem o direito da personalidade jurídica ou civil reco-
4. Código Civil, Art. 1.609 – O reconhecimento dos fi lhos havidos fora do casa-mento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expres-sa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode pre-ceder o nascimento do fi lho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.
5. Código Civil, Art. 1.779 – Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar.
6. Código Civil, Art. 542 – A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal.
7. Código Civil, Art. 1.798 – Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
8. Código Civil, Art. 1.799 – Na sucessão testamentária podem ainda ser cha-mados a suceder: I – os fi lhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
9. CONJUR. STJ concede indenização para nascituro por danos morais. Dis-ponível em <http://www.conjur.com.br/2008-jun-19/stj_concede_indeniza-cao_nascituro_danos_morais>. Acesso em 31 mar 2015.
10. Lei de Alimentos Gravídicos. Lei n. 11.804/2008, Art. 6.º – Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fi xará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré. Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos fi cam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
11. Código Penal, Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
I JORNADA DE DIREITO CIVILEnunciado n. 1 Art. 2.º: a proteção que o Có-
digo defere ao nascituro alcan-ça o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura.
ATENÇÃO
Direito Civil
51
nhecido pelo simples fato de ter sido concebido. E ainda que não fos-
se nascituro, se estivesse morto no útero materno (natimorto), ainda
assim possuiria o resguardo de alguns direitos da personalidade (nome,
imagem e sepultura).
c) TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL
Embora concorde que a personalidade jurídica do nascituro se ini-
cie a partir da concepção, a teoria da personalidade condicional, conhe-
cida como teoria mista, apresentada pela jurista Maria Helena Diniz,
entende que a personalidade do nascituro assume uma condição sus-
pensiva. Tal condição suspensiva ficaria condicionada ao nascimento
com vida do nascituro para sua implementação, e, nascendo este com
vida, retroagiriam os efeitos da personalidade jurídica desde a concep-
ção. Para esta teoria, o nascituro é uma “pessoa condicional”, e por este
motivo a lei lhe garante expectativas de direitos, que dependem do seu
nascimento com vida para que se convalidem.
Deste modo, os direitos patrimoniais do nascituro na teoria da per-
sonalidade condicional devem ficar resguardados por seu curador até
o seu nascimento com vida, enquanto os direitos da personalidade são
tutelados desde a concepção.
Concluído o estudo quanto à natureza jurídica e as teorias da per-
sonalidade do nascituro, observamos que se torna sujeito de direitos e
deveres a pessoa natural, que é o ser humano que nasce com vida ou
enquanto concepto for representado.
2.3.1.ACapacidadeCivilesuasClassificaçõesPara que o sujeito de direitos possa exercer os poderes inerentes à
personalidade jurídica ou civil, necessita do que o direito chama de ca-
pacidade civil. Chamamos de capacidade civil, ou capacidade jurídica,
a medida ou proporção do exercício da personalidade jurídica de cada
pessoa, que pode ser classificada em: a) capacidade de direito; b) capaci-
dade de fato; c) capacidade plena; ou d) capacidade limitada.
a) Capacidade de direito é a capacidade que todas as pessoas pos-
suem, não sendo necessário o implemento de nenhuma condição para
aquisição ou gozo de direitos, basta nascer com vida para possuir capa-
cidade de direito;
b) Capacidade de fato exige uma aptidão descrita na lei, é aquela
que se adquire quando atingida a maioridade civil, aos dezoito anos de
idade completos, ou por escritura de emancipação, passando a poder
exercer por si mesmo todos os atos da vida civil;
c) Capacidade plena se identifica presente quando a pessoa possui
tanto a capacidade de direito quanto a de fato ao mesmo tempo;
d) Capacidade limitada se dá quando uma pessoa possui a capa-
cidade de direito, mas não possui a capacidade de fato.
Como podemos notar, a capacidade civil está ligada à personalidade
jurídica e garante à pessoa o exercício de direitos e obrigações na ordem
52
civil. Contudo, sua ausência também provoca efeitos no ordenamento
jurídico, confi gurando restrições ao exercício de tais poderes, sendo ne-cessário identifi carmos suas hipóteses de incidência.
2.4 A INCAPACIDADE. AS RESTRIÇÕES DE DIREITO
A incapacidade nada mais é do que a restrição ao exercício dos
direitos e obrigações da pessoa, e pode ser classifi cada em: a) absoluta
ou b) relativa.
a) Incapacidade absoluta: A prática de um ato por pessoa abso-
lutamente incapaz acarreta a sua nulidade12, pois se trata de proibição
total. Desse modo, para que o absolutamente incapaz possa praticar
algum ato civil, ele deverá ser representado por outra pessoa capaz.
São absolutamente incapazes aqueles descritos no Art. 3.º do Código
Civil.
b) Incapacidade relativa – A lei permite aos relativamente capa-
zes13 que pratiquem os atos da vida civil, desde que assistidos; se pra-
ticarem atos sozinhos, o ato será anulável. São relativamente incapazes
aqueles elencados no Art. 4.º do Código Civil.
2.5 O SUPRIMENTO E A CESSAÇÃO DA INCAPACIDADE CIVIL
2.5.1.CessaçãodaIncapacidadeCivilA incapacidade civil cessará de modo natural quando a pessoa
adquirir a maioridade civil, completando dezoito anos14, a partir de
quando exercerá a capacidade civil de fato e de direito (capacidade
civil plena).
12. Código Civil, Art. 3.º – São absolutamente incapazes de exercer pessoal-mente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por en-fermidade ou defi ciência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
13. Código Civil, Art. 4.º – São incapazes, relativamente a certos atos, ou à ma-neira de os exercer: I – os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por defi ciência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único – A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
14. Código Civil, Art. 5.º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fi ca habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Direito Civil
53
2.5.2. Suprimento da Incapacidade CivilO suprimento da incapacidade civil ocorrerá por meio da emanci-
pação, sendo que existem três formas de emancipar a capacidade civil da
pessoa natural: a) Emancipação voluntária; b) Emancipação judicial; e
c) Emancipação legal.
A) EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA
Esta emancipação ocorre quando os pais, por ato voluntário, reco-
nhecem que o filho adquiriu maturidade suficiente para zelar por sua
pessoa e suas posses, seus bens, não necessitando mais da proteção pelo
Estado na qualidade de incapaz. Esta espécie de emancipação exige que
os pais sejam titulares do poder familiar e é ato unilateral de cada um
deles, lavrado obrigatoriamente por escritura pública, produzindo efei-
tos apenas após o registro15. Se um dos pais discordar, deverá se buscar a
outorga daquele que se nega por suprimento judicial16.
B) EMANCIPAÇÃO JUDICIAL
Quando completados dezesseis anos, torna-se possível a emancipa-
ção da pessoa natural, desde que ouvido o tutor em favor do tutelado17.
Também condicionada a escritura pública e registro para produzir efei-
tos (CC, Art. 9º, II).
C) EMANCIPAÇÃO LEGAL
A lei descreve determinados fatos em a pessoa natural supre sua in-
capacidade civil: a) casamento; b) exercício de emprego público efetivo;
c) colação de grau em curso de ensino superior; e d) abertura de estabe-
lecimento civil ou comercial ou relação de emprego, desde que possua
economia própria. Independe de escritura pública e registro, surtindo
efeitos a partir do dia do fato jurídico.
2.5.3.ExtinçãodaPersonalidadeJurídicaExtingue-se a personalidade jurídica da pessoa natural quando esta
vier a morrer. A morte da pessoa natural pode ser real ou presumida.
15. Código Civil, Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nasci-mentos, casamentos e óbitos; II– a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz;
16. Código Civil, Art. 1.631 – Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.
17. Código Civil, Art. 5º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independente-mente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
54
A morte real ocorre quando cessam as atividades cardíacas ou res-
piratórias da pessoa, ou quando se dá a morte cerebral ou encefálica.
A personalidade jurídica da pessoa natural também se extingue
quando ocorre a morte presumida, a qual estudaremos logo à frente,
após o instituto da ausência.
2.6 O NOME CIVIL, O ESTADO CIVIL E O DOMICÍLIO CIVIL
2.6.1.OsModosdeIndividualizaçãodaPessoaNatural
Para que o sujeito de direitos e deveres seja identifi cável, torna-se
imprescindível que exista segurança quanto aos modos pelos quais ele
poderá ser encontrando na sociedade. Os principais elementos de indi-
vidualização da pessoa natural são: a) o nome civil; b) o estado civil; e
c) o domicílio civil.
2.6.2. O Nome CivilConforme já estudamos, o homem é um ser gregário, e por ne-
cessitar viver em sociedade torna-se imprescindível que seja possível a
individualização para identifi car a cada pessoa como titular de direitos
e deveres na sociedade. Os elementos fundamentais de individualização
do homem civil, são o nome, o estado civil e o domicílio.
Toda pessoa natural tem direito à identidade civil, e o nome civil
ocupa o relevante papel de tornar cada pessoa um ser único, inte-
grando ao nome civil sua personalidade pessoal, que permanece viva
durante toda sua existência, e, após a morte, indicando suas origens e
família. O nome civil é um direito da personalidade da pessoa natural.
2.6.3.AClassificaçãodoNomeCivilA identidade civil, segundo Silmara Juny Chinellato, logo se per-
cebe pelo nome civil da pessoa natural, e se divide ou se classifi ca em:
pessoal, familiar e profi ssional, sendo que no âmbito pessoal o nome
civil tem grande relevância, pois é considerado entre os povos mais pri-
mitivos como sendo um direito natural. O nome civil é composto por
duas partes, sendo mencionado pelo Código Civil (Código Civil, Lei n.
10.406/2002) em “prenome” e “sobrenome”18.
O direito ao nome é o primeiro da personalidade e tem garantia
constitucional. A República Federativa garante aos nascidos no Brasil o
18. Código Civil, Art. 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendi-dos o prenome e o sobrenome.
VOCABULÁRIO
morte cerebral ou encefálica: quando por laudo médico, atesta-se que a atividade neu-ral da pessoa não possui mais condições de reagir.
Direito Civil
55
nome como identidade civil, isentando de custo o seu registro de nasci-
mento, obrigando os familiares a efetuarem esse documento.
Antes de concluirmos de modo visual a classificação sugerida por
Silmara Juny Chinellato, conforme descrito acima (pessoal, familiar e
profissional) vamos estudar a composição do nome como meio de iden-
tidade civil da pessoa natural.
2.6.4.AComposiçãodoNomeCivilA identificação civil possui como principal finalidade dar seguran-
ça jurídica à sociedade, na medida em que não deixa dúvidas quanto à
pessoa natural, facilitando desse modo ao Estado punir os autores de
crimes, bem como aos terceiros interessados (credores), promoverem
ações judiciais para tutelar e salvaguardar os seus interesses.
O nome civil é regido pelo princípio da imutabilidade, o que im-
plica concluir de modo geral que o sistema jurídico não admite requeri-
mentos de mudança do nome, sem uma justificativa legal plausível, em
casos excepcionais, como veremos neste estudo.
A composição do nome obedece, portanto, a um padrão preestabe-
lecido no direito civil. É composto de duas partes distintas: o prenome
e o sobrenome.
O prenome ou nome próprio é o primeiro nome que a pessoa pos-
sui, aquele que é dado ao nascer por escolha dos seus pais. Por exemplo:
José da Silva, prenome: José. O prenome pode ser simples ou composto;
no exemplo referido o prenome é simples, pois só existe uma palavra
para indicar o prenome; quando houver mais de uma palavra, teremos
o prenome composto. Por exemplo: José Carlos da Silva, prenome: José
Carlos.
É importante frisar que na escolha do nome pelos pais, a Lei de
Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) proíbe que se utilizem de nomes
pejorativos, vexatórios ou ridículos19.
Sobrenome, cognome ou patronímico é o apelido de família,
transmitido na identificação do parentesco sucessório. Por exemplo:
José da Silva, sobrenome: da Silva.
Além destes nomes, temos ainda outros que auxiliam a composição
do nome e maior certeza na identidade civil, são eles o agnome e o nome
vocatório.
19. Lei n. 6.015/73, Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome comple-to, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e, na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores. Quan-do os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por es-crito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.
56
O agnome serve para diferenciar os membros da mesma família
que possuam o mesmo nome; eles são inseridos ao fi nal da composição
nominal sob a referência de: Filho, Júnior, Neto, Sobrinho, ou ainda por
números ordinais: Primeiro, Segundo, Terceiro, etc. Por exemplo: José
da Silva Júnior, agnome: Júnior.
O nome vocatório ou profi ssional é a abreviação do nome com-
pleto da pessoa, que visa facilitar a identifi cação. Por exemplo: Marco
Aurélio Mendes de Farias Mello, vocatório: Marco Aurélio (Ministro
do STF). Não se deve confundir o nome vocatório ou profi ssional com
alcunha ou apelido, estes últimos são conhecidos como variações de
cognome, que são formas pejorativas ou afetivas de se identifi car uma
pessoa.
2.6.5.DaAlteraçãodoNomeCivilA regra geral que subsiste quanto à alteração do nome civil, como
vimos, baseia-se no princípio da imutabilidade do nome civil. Contudo,
este princípio não é absoluto. A possibilidade de alteração do nome ci-
vil mostra-se viável quando demonstrado de modo claro e específi co o
motivo que fundamenta o pedido. De acordo com a orientação do Supe-
rior Tribunal de Justiça, a motivação para alteração do nome é legítima
quando a pessoa: a) deseja acrescer ou excluir sobrenome de genitores
ou padrastos; b) é conhecida no meio social por outro prenome, o qual
pretende acrescer, ou c) provar que esteja sofrendo constrangimentos
ou situações ridicularizantes por homônimo depreciativo . Em tais hi-
pótese, a lei autoriza a modifi cação do nome civil, o que quanto à forma
pode se dar pela via administrativa ou judicial.
Observamos, então, que apenas nos casos excepcionais, como estu-
daremos adiante, a jurisprudência prefere sempre que ocorra o acrésci-
mo de um prenome ou sobrenome, mantendo-se os demais existentes,
raríssimas vezes excluindo, e substituindo quando necessário. Em todas
as situações, após demonstrada a efetiva motivação necessária no âmbi-
to administrativo ou judicial.
2.6.6.DaModificaçãoAdministrativaA Lei de Registros Públicos identifi ca algumas situações nas quais
é possível iniciar administrativamente o pedido de alteração do nome
pelo próprio interessado ou procurador por meio de requisição direta
ao Ofi cial do Cartório do Registro Civil onde foi registrado o seu nasci-
mento, independentemente do pagamento de selos e taxas.
a) Maioridade civil – Ao completar os dezoito anos (maioridade
civil) e até o último dia antes de completar dezenove é possível a pes-
soa natural requerer a alteração do seu nome diretamente ao Ofi cial do
Cartório do Registro Civil. Esta é a única possibilidade imotivada de
alteração do nome civil. O pedido administrativo poderá ser atendido
desde que não prejudique os apelidos da família, como descreve a Lei
Boletim Informativo n. 245 do STJTERCEIRA TURMA
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.A jurisprudência deste Supe-
rior Tribunal autoriza a alteração do nome civil quando o nome que a pessoa deseja adotar é aquele pelo qual ela é conhecida no seu meio social ou quando a pessoa quer acrescer ou excluir sobre-nome de genitores ou padrastos. Na espécie, o recorrente não é conhecido no meio social pelo prenome que pretende acrescer. Ademais, o Tribunal a quo reco-nheceu, com base nas provas, que o recorrente não se expõe a circunstâncias vexatórias e de constrangimento em razão de ho-mônimos existentes. Assim a Turma não conheceu do recurso. Prece-dentes citados: REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/5/2005.
JURISPRUDÊNCIA
Direito Civil
57
de Registros Públicos20. Nesta oportunidade o interessado pode pedir a
inclusão ou a exclusão do nome de genitores ou padrastos.
Interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça, sobre a refe-
rida questão, flexibilizou o princípio da imutabilidade do nome civil,
permitindo a um filho abandonado por seu pai, adotar o sobrenome da
avó que o criou desde a infância. O Tribunal de Justiça de São Paulo ha-
via negado o pedido com base no artigo 56 da Lei de Registros Públicos,
entendendo que haveria prejuízo ao apelido de família paterno. Entre-
tanto, a decisão foi reformada pelo STJ, pois não haveria modificação na
sua filiação, tão somente seria alterado o seu nome civil, além de evitar o
constante sofrimento de recordar angústias vividas na infância toda vez
que mencionar seu nome civil.
b) Erros aparentes de grafia – Desde que visivelmente tenha ocor-
rido um erro na posição das letras do nome, ou a inserção ou escrita er-
20. Lei n. 6.015/73, Art. 56 – O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos da família, averbando-se a altera-ção que será publicada na imprensa.
Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou.No recurso julgado pela Terceira Turma, o rapaz sustentou que a decisão violou o artigo 56 da Lei
6.015/73, já que estariam presentes todos os requisitos legais exigidos para a alteração do nome no pri-meiro ano após ele ter atingido a maioridade civil. Argumentou, ainda, que não pediu a modificação da sua paternidade no registro de nascimento, mas somente a exclusão do sobrenome do genitor, com quem não desenvolveu nenhum vínculo afetivo.
PosiçãoflexívelCitando vários precedentes, o ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, ressaltou que o STJ tem
sido mais flexível em relação à imutabilidade do nome civil em razão do próprio papel que o nome de-sempenha na formação e consolidação da personalidade.
Para o relator, considerando que o nome é elemento da personalidade, identificador e individu-alizador da pessoa na sociedade e no âmbito familiar, a pretensão do recorrente está perfeitamente justificada nos autos, pois, abandonado pelo pai desde criança, foi criado exclusivamente pela mãe e pela avó materna.
“Ademais, o direito da pessoa de portar um nome que não lhe remeta às angústias decorrentes do abandono paterno e, especialmente, corresponda à sua realidade familiar, parece sobrepor-se ao interesse público de imutabilidade do nome, já excepcionado pela própria Lei de Registros Públicos” – ressaltou o ministro em seu voto.
Ao acolher o pedido de retificação, Sanseverino enfatizou que a supressão do sobrenome paterno não altera a filiação, já que o nome do pai permanecerá na certidão de nascimento. A decisão foi unânime.
Número do recurso omitido por segredo de Justiça.Fonte: STJ. Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou. Disponível
em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Filho-abandonado-poderá-trocar-so-brenome-do-pai-pelo-da-avó-que-o-criou>. Acesso em 20 mar. 2015.
COMENTÁRIO
58
rônea (troca do L pelo R, por exemplo: Cráudia, quando o correto seria
Cláudia), inversão ou outros erros aparentes no nome civil, é possível a
requisição administrativa de sua correção. A Lei de Registros Públicos
requer apenas que seja possível a imediata constatação do erro na grafi a
do nome para ser possível o pedido21, o qual será corrigido pelo Ofi cial
do Cartório de ofício, após manifestação do Ministério Público pelo rito
sumaríssimo.
2.6.7.DaModificaçãoJudiciala) Nomes ridículos, exóticos ou vexatórios – Como já mencio-
nado nesta obra, a Lei de Registros Públicos proíbe aos pais escolherem
para seus fi lhos nomes ridículos, vexatórios, que os exponham ao ri-
dículo (LRP, Art. 55, parágrafo único). Contudo, caso tenham surgido
nomes atribuídos à pessoa, que a exponha a tais circunstâncias, poderá
ela requerer a alteração, demonstrada a motivação pela via judicial.
b) Vítimas, réus delatores ou testemunhas de crimes – Admite-
-se a mudança do nome em proteção às testemunhas (conforme disposi-
ções da Lei de Proteção às Testemunhas)22, às vítimas ou aos réus delatores
que colaborem com a Justiça no esclarecimento de atos criminosos, sem-
pre que presente a coação ou ameaça (LRP, Art. 58, parágrafo único)23.
c) Uso prolongado – O uso prolongado e constante de nome di-
verso que conste do registro de nascimento também justifi ca a altera-
ção24, pois, o “prenome imutável é aquele que foi posto em uso, embora não
conste do registro” (STJ, REsp 146.558/PR).
21. Lei n. 6.015/73, Art. 110 – Os erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de ofício pelo ofi cial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assenta-mento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou pro-curador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação conclusiva do Ministério Público.
22. Lei n. 9.807/99, Art. 9º – Em casos excepcionais e considerando as carac-terísticas e gravidade da coação ou ameaça, poderá o conselho deliberativo en-caminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros públicos objetivando a alteração do nome completo. § 1º – A alteração de nome completo poderá estender-se às pessoas mencionadas no § 1º do Art. 2º desta Lei, inclusive aos fi lhos menores, e será precedida das providências necessárias ao resguardo de direito de terceiros.
23. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será defi nitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único – A substi-tuição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sen-tença de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
24. Lei n. 6.015/73, Art. 57 – A alteração posterior de nome, somente por ex-ceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei.
CASO ANTERIOR À MODIFICAÇÂO DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS
Em meados de 1995 e 1996, uma propaganda veiculada em todo o Brasil pelo Ministério da Saúde na televisão em combate à AIDS, popularizou o nome de Bráulio.
A LRP ainda não tinha sido modifi cada pela Lei n. 9.807/99, obrigando o interessado na modi-fi cação do nome ir à Justiça.
O jornalista Bráulio de S., foi aos tribunais e obteve a modifi ca-ção do nome para Cláudio Lira, em virtude da popularização na-cional do seu nome, que o colo-cou em situação constrangedora, vexatória, expondo-o ao ridículo. (JTJ – Lex 204/136, Rel. Osvaldo Caron)
CURIOSIDADE
Direito Civil
59
d) Alcunha ou apelido – Na mesma compreensão, pelo uso pro-
longado do nome, constante e habitual, a Lei25 permite a alteração do
nome civil, para inclusão do apelido ou alcunha. Obviamente que a
agregação da alcunha atinge apenas o prenome, ampliando-o. Exemplo:
Maria da Graça Xuxa Meneghel, alcunha inserida: Xuxa.
e) Inclusão do sobrenome de ascendente – Estudamos ser possí-
vel a inclusão do nome do ascendente quando o interessado requer, ad-
ministrativamente, dentro de um ano de quando adquire a maioridade
civil. Entretanto, poderá ainda requer a alteração judicial do sobrenome,
quando superado aquele prazo, pugnando pela inserção do sobrenome
do ascendente, mesmo que este sobrenome não tenha sido usado por
uma ou mais gerações. E após inserto o sobrenome do pai, poderá ainda
requer a inserção do sobrenome da mãe .
f) Inclusão de sobrenome do padrasto ou madrasta – No mesmo
sentido, é possível a inserção do sobrenome do padrasto ou da madrasta
desde que estes concordem26.
g) Homonímia – O simples fato de possuir um nome muito co-
mum ou popular não é sozinho motivação suficiente ao ensejo de alte-
ração do nome civil. Se a intenção de afastar a homonímia for apenas
evitar equívoco ou confusão da pessoa, antes de ingressar com o pedido
para alteração do nome, deve estudar primeiro a possibilidade de afas-
tá-la pelo acréscimo do sobrenome de seus ascendentes, sob pena de
ver indeferido seu pedido. Há que demonstrar o interessado, para que
justifique seu pedido de alteração judicial, os prejuízos e as humilhações
sofridas, os constrangimentos caso permaneça a homonímia. Por isto, a
chamamos de homonímia depreciativa, pois a homonímia para justifi-
car a mudança do nome deve depreciar a pessoa quando pronunciado o
seu nome. Desse modo, só se entende possível o pedido de alteração do
prenome por homonímia quando demonstrado de modo cabal que a tal
homonímia está lhe causando problemas sociais (REsp n. 647.296/MT).
h) Alteração do prenome do adotado – É facultado aos pais da
criança adotada requererem judicialmente a alteração do prenome do
adotando, por disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente27.
25. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios.
26. Lei de Registros Públicos, Art. 57, § 8º – O enteado ou enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome da famí-lia de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.
27. Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 47 – O vínculo da adoção cons-titui-se por sentença judicial, que deverá ser inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão; § 5º – A sentença conferirá ao ado-tado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome.
VOCABULÁRIO
homonímia:Qualidade do que é homônimo. Ou seja, nome idêntico a outro.
TribunaldeJustiçadeMinasGeraisNOME - Acréscimo de sobre-
nome materno omitido no assento de nascimento, após o nome do pai - Admissibilidade por não en-contrar qualquer vedação legal (TJMG) RT 775/345.
JURISPRUDÊNCIA
Boletim Informativo n. 245 do Su-periorTribunaldeJustiça
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.A jurisprudência deste Supe-
rior Tribunal autoriza a alteração do nome civil quando o nome que a pessoa deseja adotar é aquele pelo qual ela é conheci-da no seu meio social ou quan-do a pessoa quer acrescer ou excluir sobrenome de genitores ou padrastos. Na espécie, o re-corrente não é conhecido no meio social pelo prenome que pretende acrescer. Ademais, o Tribunal a quo reconheceu, com base nas provas, que o recorren-te não se expõe a circunstâncias vexatórias e de constrangimento em razão de homônimos existen-tes. Assim a Turma não conheceu do recurso. Precedentes citados: REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andri-ghi, julgado em 3/5/2005.
JURISPRUDÊNCIA
60
i) Tradução de nome estrangeiro – É admitida a alteração do
prenome estrangeiro traduzindo-o para o português com a fi nalida-
de de tornar mais clara e precisa sua identidade civil no Brasil (Lei n.
6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro)28. Havendo erros materiais, poderão
ser corrigidos de ofício (EE, Art. 43, § 2º).
j) Inclusão ou exclusão do sobrenome do cônjuge – O Código
Civil atual29 permite aos noivos, facultativamente, incluírem o sobreno-
me do consorte em seu nome civil quando casados. Se ocorrer o divór-
cio ou a anulação do casamento poderão optar por excluir o nome de
seu ex-cônjuge quando não houver dado causa a extinção do casamen-
to. Reservado ao cônjuge inocente renunciar ao direito de uso do nome
de casado30.
k) Inclusão ou exclusão do sobrenome do companheiro – Os
companheiros são aqueles que vivem em união estável. A união estável31
se equiparou ao casamento, com garantia constitucional, no mesmo
artigo que protege a família32. Não poderia ser diferente, pois a união
estável é entidade familiar que constitui a família, neste sentido já houve
registro do Enunciado n. 99 da I Jornada de Direito Civil .
28. Estatuto do Estrangeiro, Art.43 – O nome do estrangeiro, constante do registro (art. 30), poderá ser alterado: I – se estiver comprovadamente errado; II – se tiver sentido pejorativo ou expuser o titular ao ridículo; ou III – se for de pronunciação e compreensão difíceis e puder ser traduzido ou adaptado à prosódia da língua portuguesa.
29. Código Civil, Art. 1.565 – Pelo casamento, homem e mulher assumem mu-tuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 1º – Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.
30. Código Civil, Art. 1.578 – O cônjuge declarado culpado na ação de se-paração judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que ex-pressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I – evidente prejuízo para sua identifi cação; II – manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos fi lhos havidos da união dissolvida; III – dano grave reconhecido na decisão judicial. § 1º – O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro. § 2º – Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado.
31. Código Civil, Art. 1.723 – É reconhecida como entidade familiar a união es-tável entre o homem e a mulher, confi gurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família.
32. Constituição Federal, Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento. § 7º – Fundado nos princípios da digni-dade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científi cos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições ofi ciais ou privadas.
I JORNADA DE DIREITO CIVIL
ENUNCIADO 99“O Art. 1.525, § 2º, do Códi-
go Civil não é norma destinada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheirismo, nos termos do Art. 226, caput e §§ 3º e 7º, e não revogou o disposto na Lei nº 9.263/96.”
A Lei n. 9.263/96 se refere ao planejamento familiar, aplicável tanto aos casados quanto aos companheiros, em atenção ao Art. 226, § 7º, da Constituição Fe-deral de 1988.
COMENTÁRIO
Direito Civil
61
Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal interpretou ser
possível a constituição de união estável por pessoas do mesmo sexo, apli-
cando-se portanto as mesmas possibilidades quanto ao nome civil.
l) Concubinato33 – A lei permite que ao concubina(o) obtenha o
sobrenome do(a) companheiro(a) enquanto durar o concubinato, mas
isto só será possível quando houver concordância mútua, vida em co-
mum por mais de cinco anos ou a existência de filho(s) comum(ns).
Contudo, nenhum deles pode ser casado, embora exista a impossibilida-
de de se casarem.
m) Transgenitalização – Com a evolução da ciência e da medici-
na, a mudança de sexo cirúrgica tornou-se uma realidade. Não haveria
nenhuma lógica conservar o nome de homem naquele que por cirurgia
deixou de guardar todas as características masculinas. O Superior Tribu-
nal de Justiça enfrentou o referido caso, dando ao requerente o direito
à modificação de seu nome civil, inclusive determinando que não deve-
riam constar do teor das novas certidões a referida alteração para evitar
constrangimentos (STJ, REsp 1.008.398/SP; REsp 679.933/RS e REsp
737.993/MG).
2.6.8. O Estado CivilDe acordo com Carlos Roberto Gonçalves, a soma das qualificações
de uma pessoa na sociedade, que indicariam o modo peculiar inerente
à pessoa, constitui o estado civil, ou status como deriva do latim34, e dis-
tingue-se na ordem: a) individual – através da descrição física do ser, cor,
altura, sexo, idade, capaz ou incapaz, criança, adolescente ou adulto; b)
familiar – a indicar sua descrição quanto à solteiro, casado, divorciado,
viúvo, bem como graus de parentes e origem da família, e c) política –
quanto a se tratar de brasileiro nato ou estrangeiro. Como o estado está
ligado à pessoa, pode-se afirmar que recebe proteção jurídica por suas
características: indivisível, indisponível e imprescritível.
2.6.9.ODomicílioCivilA localização certa dos sujeitos de direito é muito relevante, pois
permite o cumprimento das relações jurídicas, concedendo segurança
ao cumprimento das obrigações e facilidade na implementação da paz
social. O domicílio civil é o ponto no qual o sujeito de direitos e obri-
gações se permite ser localizado, onde reside, ou mora. É no domicílio
que a pessoa se presume presente para dar cumprimento aos seus atos e
negócios jurídicos.
33. Código Civil, Art. 1.727 – As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
34. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 1. Esquematizado. Parte Geral, Obrigações e Contratos. Coord. Pedro Lenza. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 141.
O Supremo Tribunal Fede-ral entendeu, ao julgar a Ação Declaratória de Inconstituciona-lidade (ADIN) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que o artigo 1.723 do Código Civil abran-ge o entendimento de se tratar de união de pessoas e não limita-tivamente homem e mulher. Com isto, tornou-se possível a união es-tável de pessoas do mesmo sexo, incluindo todos os benefícios pre-vistos às uniões estáveis de sexos diversos, inclusive a sua conversão em casamento.
COMENTÁRIO
62
Existem dois elementos que caracterizam o domicílio: o elemento
objetivo, que é o local propriamente dito, a residência da pessoa, e o ele-
mento subjetivo, que se refere ao ânimo defi nitivo, que é a intenção de
permanecer e ali fi xar moradia (domicílio residencial)35 ou exercer sua
atividade central (domicílio profi ssional)36.
Quanto ao número, o domicílio pode ser único ou plúrimo37.
Quanto à existência, é real ou presumido38. Quanto à liberdade de esco-
lha, pode ser necessário ou voluntário, sendo que o necessário é aquele
descrito por lei39, e o voluntário o que pode ser estipulado pelas partes
em relação jurídica40.
2.7 A COMORIÊNCIA E A AUSÊNCIA: CA-RACTERIZAÇÃO E EFEITOS JURÍDICOS
DA COMORIÊNCIA – Quando dois ou mais indivíduos vierem a
falecer ao mesmo tempo, havendo dúvidas quanto a quem tenha morri-
do primeiro, a legislação civil permite a aplicação da presunção de que
tenham morrido ao mesmo tempo41. Esta regra afasta a incidência da
sucessão entre os comorientes.
DA AUSÊNCIA – O instituto da ausência se aplica quando a pessoa
desaparece de seu domicílio sem deixar notícias, tampouco alguém que
o representante. As relações jurídicas e os bens que esta pessoa deixou
necessitam de cuidados e administração. Para garantir a continuidade
das relações jurídicas e manter a segurança jurídica, o Estado permite
a aplicação da morte presumida pela ausência da pessoa, que se pleiteia
em três fases: a) A declaração de ausência; b)A sucessão provisória; e c)
A sucessão defi nitiva.
A) Declaração de ausência – A requerimento do interessado ou
do representante do Ministério Público, o juiz declarará a ausência
35. Código Civil, Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela esta-belece sua residência com ânimo defi nitivo.
36. Código Civil, Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profi ssão, o lugar onde esta é exercida.
37. O direito brasileiro adotou o princípio da pluralidade domiciliar, como se observa nos artigos 71 e 72 do Código Civil.
38. O domicílio real é o físico e indubitável. O presumido é aquele que utiliza a regra da presunção, conforme o artigo 73 do Código Civil.
39. Código Civil, Art. 76.
40. Código Civil, Art. 78. Por exemplo o foro de eleição nos contratos, a cláu-sula arbitral, etc.
41. Código Civil, Art. 8º. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma oca-sião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.
Direito Civil
63
e nomeará um curador determinando que os bens deixados sejam
arrecadados42. Para garantir a defesa do ausente, são publicados edi-
tais por um ano, a cada bimestre43, pondo-se os filhos menores sob
tutela, se houver44.
B) Sucessão provisória – Após um ano do primeiro edital45, po-
derá ser aberta a sucessão provisória, passando-se aos herdeiros a
posse dos bens, desde que prestem garantia de devolvê-los integral-
mente caso o ausente apareça46.
C) Sucessão definitiva – Após dez anos da sucessão provisória47,
poderão os interessados requererem a sucessão definitiva levantan-
do as cauções que prestaram ao juízo48. Caso o ausente apareça, nos
dez anos seguintes, receberá os bens no estado em que se encon-
tram49. Se passado o referido prazo não surgir sucessor, o espólio
passará ao Estado por herança jacente50. Aberta a sucessão definiti-
va, a morte presumida extingue o vínculo conjugal51.
2.8 A MORTE PRESUMIDA: CARACTERIZAÇÃO
Como já tivemos a oportunidade de estudar, a personalidade ju-
rídica da pessoa natural se inicia a partir do nascimento com vida e se
extingue com a morte, que pode ser real (morte física) ou presumida.
A morte presumida é aplicável em duas situações distintas. Poderá
ser consequência de um processo de declaração de ausência (como vi-
mos anteriormente), ou quando houverem indícios veementes (perigo
de vida, desaparecimento em campanha, feito prisioneiro, não for en-
contrado após dois anos do término da guerra)52.
42. Código Civil, Art. 22 e Art. 1.159.
43. Código de Processo Civil, Art. 1.161. Feita a arrecadação, o juiz mandará publicar editais durante 1 (um) ano, reproduzidos de dois em dois meses, anun-ciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens.
44. Código Civil, Art. 1.728, I.
45. Código Civil, Art. 26. Ou após três anos se o ausente deixou procurador.
46. Código Civil, Art. 30.
47. Ou caso o ausente tivesse mais de oitenta anos de idade, passados cinco anos das últimas notícias.
48. As garantias fornecidas para a sucessão provisória poderão ser restituídas.
49. Código Civil, Art. 39.
50. Código Civil, Art. 39, parágrafo único. Entende-se por herança jacente a si-tuação na qual o Município inicia a arrecadação dos bens deixados pelo falecido, por inexistirem herdeiros.
51. Código Civil, Arts. 6º e 1.571, § 1º.
52. Código Civil, Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decreta-
64
A sentença que declara a morte presumida dissolve o vínculo con-
jugal53 e põe fi m à sucessão defi nitiva quanto ao espólio54.
ção de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o termino da guerra. § único. A declara-ção da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fi xar a data provável do falecimento.
53. Código Civil, Art. 1.571, § 1º, e Art. 6º.
54. Código Civil, Art. 37.
Pessoa e Direitos da Personalidade3
66
3.1 ConCeito
Direitos da personalidade são direitos subjetivos conferidos a todas
as pessoas naturais (seres humanos) com o intuito de proteger a sua in-tegridade física, moral e intelectual. Impõem a todas as pessoas o dever
legal de não causar dano, isto é, de não violar a integridade dos outros.
Por causa da imposição desse dever jurídico todas as pessoas (refl etindo
um direito “contra todos” ou, em latim, erga omnes), podemos afi rmar
que os direitos da personalidade são do tipo excludendi alios. Isto é,
exclui as outras pessoas. Mas essa obrigação de respeito não é imposta
apenas para terceiros. Também o titular (o “dono”) do direito deve abs-
ter-se de (ou seja, deixar de) praticar qualquer ato que possa prejudicar
sua própria integridade.
3.2 FUnDaMento
Todos os direitos da personalidade encontram fundamento no
princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III
do art. 1º da Constituição Federal de 1988 (“A República Federativa do
Direitos da personalidade e as pessoas jurídicasPara a doutrina majoritária, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, são detentoras de personalida-
de jurídica. Consequentemente, também se defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalidade. Contudo, essas posições não são pacífi cas, havendo autores que sustentam que as pessoas jurídicas não são titulares de direitos da personalidade.
Tal polêmica não foi eliminada pelo legislador, que adotou enigmática redação no art. 52 do Có-digo Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. A leitura do dispositivo pode resultar em duas conclusões absolutamente distintas: a de que as pessoas jurídicas teriam direitos da personalidade; e a de que não teriam. Na doutrina podemos encontrar essas duas correntes:
1ª Corrente (majoritária): defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalida-de, por serem detentoras de atributos que a individualizam e que a inserem no meio social, tais como o nome, identidade, marcas e símbolos que lhes são próprios etc. Para os defensores dessa corrente, o art. 52 do Código Civil defere direitos da personalidade às pessoas jurídicas.
2ª Corrente (minoritária): defende que as pessoas jurídicas não são detentoras de direitos da per-sonalidade, sendo estes exclusivos das pessoas naturais (físicas). Essa corrente sustenta que todos os direitos da personalidade têm por objetivo a proteção da dignidade do ser humano, logo, não seria admissível estender essa proteção às pessoas jurídicas. Nesse sentido, o enunciado 286/CJF prescreve que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. O art. 52 é interpretado da se-guinte forma: por não serem as pessoas jurídicas titulares de direitos da personalidade, o ordenamento confere uma proteção semelhante àquela da qual gozam as pessoas naturais para proteção dos seus interesses extrapatrimoniais (ou seja, não patrimoniais).
CUriosiDaDe
VoCaBUlÁrio
intuito: objetivo, intenção.
Direito Civil
67
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana”). Este
princípio é uma cláusula geral de proteção da pessoa humana, que vin-
cula todas as esferas do Direito e irradia-se por todos os seus ramos. Não
seria diferente em relação ao Direito Civil: a leitura das regras presentes
no Código Civil deve se dar sempre à luz dos preceitos constitucionais
(isto é, das determinações previstas na Constituição).
3.3 CaraCterístiCas Dos Direitos Da PersonaliDaDe
A doutrina nacional aponta a existência de diversas característi-
cas comuns aos direitos da personalidade. Em especial, afirma-se que
são inatos, vitalícios, absolutos, ilimitados, extrapatrimoniais, impres-
critíveis, intransmissíveis, indisponíveis ou relativamente disponíveis,
irrenunciáveis e inexpropriáveis. Vejamos uma a uma, a seguir.
a) Inatos: todos os seres humanos, ao nascer, já se encontram do-
tados de direitos da personalidade. A aquisição é automática
Dano moral da pessoa jurídicaNo estudo dos direitos da personalidade da pessoa jurídica, surge outra questão polêmica: a de
definir se pessoa jurídica pode sofrer dano moral. A indagação é pertinente, pois, atualmente, o dano moral é definido como toda e qualquer forma de lesão a direito da personalidade, não devendo ser confundido com suas consequências: dor, tristeza, angústia etc. Desta forma, dependendo da atri-buição, ou não, de personalidade jurídica às pessoas jurídicas, abre-se a possibilidade para que estas sofram dano moral. Sobre a questão podem ser apontadas as seguintes correntes:
1ª Corrente (doutrina majoritária): defende que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral quando condutas alheias repercutem de forma negativa sobre a sua imagem, abalando a credibilida-de conquistada (ofensa à honra objetiva). Podemos afirmar que esse é o posicionamento majoritário na doutrina e na jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, que já sumulou a questão (súmula 227/stJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral).
2ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não possui direitos da personalidade e, portanto, não pode sofrer dano moral. Não nega, contudo, o direito à reparação dos danos extrapatrimoniais ou patrimoniais de difícil liquidação, quando atingida a credibilidade ou reputação da instituição. Na verdade, o que os defensores dessa corrente propõem é a substituição da expressão dano moral por dano institucional, reservando a primeira expressão apenas para a caracterização de lesão a direitos da personalidade dos seres humanos.
3ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não pode sofrer dano moral, mas tão só dano patri-monial. Apenas o prejuízo patrimonial demonstrado (danos emergentes e lucros cessantes) pode ser ressarcido. Esta corrente, minoritária, é muito criticada, pois não consegue solucionar as ofensas extra-patrimoniais dirigidas a uma pessoa jurídica sem intuito lucrativo (p. ex.: associação filantrópica).
CUriosiDaDe
68
(quer dizer, independentemente de qualquer ato jurídico). Para
os defensores da teoria natalista, o termo inicial da aquisição
dos direitos da personalidade é o nascimento com vida (art.
2º do Código Civil). Por outro lado, para os defensores da te-
oria concepcionista, o termo inicial é a concepção (art. 4º do
Pacto de São José da Costa Rica). Devemos destacar que alguns
autores utilizam o termo “inato” para designar que os direitos
da personalidade são direitos naturais, surgindo assim nova
divergência doutrinária:
Jusnaturalistas: defendem que os direitos da personalidade são
inerentes ao ser humano, não dependendo de previsão legal. Dessa for-
ma, os direitos da personalidade são considerados como espécie de di-
reito natural. Nesse sentido: Maria Helena Diniz, Rubens Limongi Fran-
ça, Carlos Alberto Bittar, Rizzato Nunes.
Positivistas: defendem que a existência dos direitos da persona-
lidade depende de previsão específi ca do ordenamento jurídico. Nesse
sentido: Pietro Perlingieri, Adriano de Cupis, Miguel Reale.
Observação: não se pode afi rmar que uma das correntes acima seja
majoritária.
b) Vitalícios: os direitos da personalidade acompanham o ser
humano ao longo da vida. Com a morte, extinguem-se a per-
sonalidade jurídica e, consequentemente, os direitos da perso-
nalidade. A sucessão causa mortis é capaz de transmitir apenas
direitos patrimoniais. Contudo, se uma pessoa já morta for alvo
de uma ofensa, seus familiares ainda vivos são lesados de for-
ma indireta, podendo exigir em juízo a reparação pelo dano
moral em ricochete. Nesse sentido, o art. 12, parágrafo único,
do Código Civil de 2002 dispõe que, “em se tratando de morto,
terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo
o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou
colateral até o quarto grau”.
c) Absolutos: os direitos da personalidade impõem um dever ge-
ral de abstenção a todas as pessoas (sujeição passiva universal);
todas as pessoas devem abster-se de praticar qualquer ato que
possa prejudicar a integridade de um ser humano. O desrespei-
to a esse dever, ou até mesmo a ameaça de desrespeito, dá ao
ofendido a possibilidade de requerer medidas para prevenção
desse dano ou para sua repressão, conforme previsão do caput
do art. 12 do Código Civil (“Pode-se exigir que cesse a ameaça,
ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e da-
nos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”).
O termo “absoluto” só não pode ser utilizado para designar a ine-xistência de limites no exercício do direito, uma vez que não existe
no ordenamento jurídico nenhum direito absoluto. Nem mesmo os
direitos fundamentais podem ser tidos como absolutos. Os direitos da
personalidade têm seus limites impostos por outros direitos funda-
Direito Civil
69
mentais, pela lei, pelos bons costumes, pela moral etc. Nesse sentido, o
Enunciado 139 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ assim afir-
ma: “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que
não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”.
d) Ilimitados: não há dúvidas de que o rol dos direitos fundamen-tais listados pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Fede-ral são meramente exemplificativos (ao que se refere a expres-são latina numerus apertus). Compete à doutrina e ao trabalho dos tribunais a identificação e o reconhecimento de novos di-reitos da personalidade diante da evolução da sociedade, com seu progresso econômico, cultural, científico etc. Atualmente, estão positivados (isto é, descritos textualmente) no Código Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988 os seguintes direitos da personalidade:
CÓDIGO CIVIL DE 2002 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Direito à imagem (art. 20) Direito à imagem (art. 5º, V, X e XXVIII)
Direito à honra (art. 20) Direito à honra (art. 5º, X)
Direito à vida privada (art. 21) Direito à vida privada (art. 5º, X)
Direito ao próprio corpo (arts. 13 a 15)
Direito à vida (art. 5º, caput)
Direito ao nome (arts. 16 a 19) Direito à intimidade (art. 5º, X e LX)
Direito à liberdade (art. 5º, caput)
Direito ao sigilo (art. 5º, XII)
Direito autoral (art. 5º, XXVII)
Direito à voz (art. 5º, XXVIII)
e) Extrapatrimoniais: é impossível atribuir valor econômico aos direitos da personalidade, pois não integram o patrimônio da pessoa (ou seja, dizem respeito ao ser, e não ao ter). O fato de a lesão aos direitos da personalidade ser reparada de forma pe-cuniária (isto é, mediante o pagamento de uma indenização em dinheiro) não afasta sua extrapatrimonialidade. Entende-se que a condenação monetária é uma forma de diminuir o dano causado à vítima e uma forma de evitar repetição do ato pelo causador do dano (função educativa da condenação), mas nunca uma valoração, em dinheiro, do direito em si. Também não des-virtua a extrapatrimonialidade o fato de o exercício do direito da personalidade poder ter repercussão econômica (p. ex.: a re-muneração recebida por um artista que autorizou a exploração de sua imagem).
f) Imprescritíveis: os direitos da personalidade são considerados
imprescritíveis, pois o não exercício pelo seu titular não acarreta
No que diz respeito às medi-das reparatórias (p. ex.: pretensão de indenização por dano moral), a doutrina diverge a respeito da existência ou não de prazo de prescrição para a propositura da ação (exercício da pretensão em juízo), podendo ser apontadas as seguintes correntes:
1ª Corrente: defende que a pretensão de reparação de da-nos morais é sempre imprescritível, em virtude da natureza dos direi-tos da personalidade.
2ª Corrente: defende que a pretensão de reparação de da-nos morais prescreve no mesmo prazo que a pretensão de repara-ção de danos materiais. Se a re-lação for civil, o prazo de prescri-ção será de 3 (três) anos, aplican-do-se à hipótese o art. 206, § 3º, V, do CC/2002. Se a relação for de consumo, o prazo de prescri-ção será de 5 (cinco) anos para o consumidor pleitear a indeniza-ção, em atenção ao disposto no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor.
CoMentÁrio
Na reparação de danos cau-sados em razão de crime de tor-tura, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que a pretensão indenizatória é imprescritível (REsp 1.002.009/PE, j. 12-2-2008, DJ 21-2-2008, Rel. Min. Humberto Martins).
atenÇÃo
70
a extinção do direito nem o afastamento da proteção dada pelo
ordenamento jurídico. Desse modo, a qualquer momento po-
de-se exigir que cesse a violação a um direito da personalidade
(medidas preventivas/protetivas).
g) Intransmissíveis: os direitos da personalidade estão ligados de
tal forma à personalidade jurídica de cada ser humano que não
se admite a sua transmissão. Não podem ser transferidos em
vida (inter vivos), mediante contrato, nem após a morte (causa
mortis), por meio de sucessão. É absolutamente inconcebível
que uma pessoa exerça direito da personalidade de outra (p. ex.:
direito à vida). Afi rma-se, portanto, que esses direitos surgem e
desaparecem ope legis (por força da lei) com o seu titular.
h) Relativamente disponíveis: embora não se admita a transmis-
são dos direitos da personalidade, nada impede que uma pessoa
disponha de algum aspecto de sua personalidade de forma rela-
tiva e temporária. Podemos citar, por exemplo, a possibilidade
de uma pessoa autorizar a exploração de sua imagem para uma
propaganda, de forma gratuita ou onerosa (ou seja, mediante
pagamento).
i) Irrenunciáveis: os titulares dos direitos da personalidade não
podem ser renunciados, pois surgem com o ser humano e o
acompanham ao longo da vida (vitalícios). A cessão de alguns
direitos de forma relativa também não descaracteriza a irre-
nunciabilidade. Pelo contrário, reforça a ideia da titularidade
do direito e prevê que, no exercício dele, poderão acontecer ne-
gócios jurídicos voluntários.
j) Inexpropriáveis: por serem inatos e ligados à pessoa, os direi-
tos da personalidade não podem ser retirados da esfera de seu
titular. Não podem, dessa forma, ser arrematados, adjudicados
ou utilizados com o objetivo de garantir uma obrigação, carac-
terísticas estas reforçadas pelo art. 832 do novo CPC: “não estão
sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis
ou inalienáveis”.
Não há consenso na doutrina quanto à taxonomia (classifi cação)
dos direitos da personalidade. Autores como Pontes de Miranda, Ale-
xandre De Cupis, Orlando Gomes, Francisco Amaral, Rubens Limongi
França e Carlos Alberto Bittar propõem distintas formas de classifi ca-
ção, levando em consideração elementos diversos. Contudo, ainda que
a discussão seja intensa, não há importância prática na adoção de uma
ou outra classifi cação.
Exatamente por isso, o próprio legislador também se furtou de tal
tarefa ao enumerar alguns dos direitos da personalidade no Código Civil
de 2002 e na Constituição Federal de 1988. Sem a pretensão de esgotar
o estudo de todos os direitos da personalidade existentes, observemos
quais as regras presentes em nosso Código Civil.
Também podemos falar em legítima disponibilidade relativa quando uma pessoa realiza uma tatuagem em seu corpo, uma vez que esta prática revela um costu-me social.
Quanto à disponibilidade do corpo humano, o Enunciado 401 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ dispõe que “não contraria os bons costumes a cessão gratui-ta de direitos de uso de material biológico para fi ns de pesquisa científi ca, desde que a manifesta-ção de vontade tenha sido livre e esclarecida e puder ser revogada a qualquer tempo, conforme as normas éticas que regem a pes-quisa científi ca e o respeito aos direitos fundamentais”.
CoMentÁrio
Direito Civil
71
transexual é a pessoa que re-jeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamen-te com o gênero oposto. Difere, portanto, do homossexual, pois este se sente atraído por pesso-as do mesmo sexo, mas não tem qualquer problema de rejeição quanto a sua própria anatomia.
atenÇÃo3.3.1. Direito ao corpoNos termos do art. 13 do Código Civil, “salvo por exigência médica,
é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar dimi-nuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costu-mes”. O dispositivo proíbe todo e qualquer ato de disposição do corpo quando importar diminuição permanente da integridade física (p. ex.: amputação de membro sem exigência médica) ou contrariar os bons costumes (p. ex.: prostituição, venda de órgãos humanos etc.). As cirur-gias plásticas, reparadoras ou estéticas, são admitidas por não ser, em regra, prejudiciais à saúde.
Constituem exceções as hipóteses de exigência médica, como, por exemplo, a amputação de membro gangrenado, a cirurgia de adequação de sexo do hermafrodita, a cirurgia de mudança de sexo do transexual etc. Ampliando o conceito de exigência médica, o Enunciado 6 da I Jor-nada de Direito Civil do CJF propõe que “a expressão ‘exigência médica’, contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-es-tar psíquico do disponente”.
E quanto aos transexuais, o Enunciado 276 da IV Jornada de Di-reito Civil do CJF defende que “o art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabe-lecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”.
3.3.1.1. Doação do corpoAlém das hipóteses de exigência médica, a disposição do corpo
também é admitida para fins de transplante. Nesse sentido, o art. 13,
parágrafo único, do Código Civil dispõe que “o ato previsto neste artigo
será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei es-
pecial”. A doação de partes do corpo humano pode ser feita em vida ou
após a morte.
A doação em vida (inter vivos) de parte do corpo humano por pes-
soa viva para fins terapêuticos ou para transplantes deve obedecer às
regras presentes no art. 9º da Lei n. 9.434/97, em especial: a) capacidade: o doador deve ser pessoa juridicamente capaz, mas admite-se a doação
por pessoas incapazes em situações excepcionais mediante autorização
judicial; b) gratuidade: a doação só poder ser realizada gratuitamente;
c) favorecido: se a doação for feita em favor de cônjuge ou parentes con-
sanguíneos até o quarto grau, a autorização deverá ser concedida prefe-
rencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificando o teci-
do, o órgão ou a parte do corpo objeto da retirada. Se a doação for feita
a pessoas diversas, é necessária autorização judicial, dispensada esta em
relação à medula óssea (art. 9º da Lei n. 9.434/97); d) objeto: só é permi-
tida a doação de órgãos duplos (p. ex.: rins), de partes de órgãos, tecidos
ou partes do corpo, cuja retirada não impeça o organismo do doador
de continuar vivendo sem risco para a sua integridade, não represen-
VoCaBUlÁrio
hermafrodita: ser vivo que pos-sui os órgãos genitais de ambos os sexos.
transgenitalização: procedimen-to cirúrgico popularmente co-nhecido como “mudança de sexo”.
72
te grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, não cause mutilação ou deformação inaceitável (p. ex.: leite, sangue, medula óssea, pele, óvulo, esperma) e corresponda a uma necessidade terapêu-tica comprovadamente indispensável à pessoa receptora; e e) revogabi-lidade: a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.
Quanto à doação após a morte (post mortem), o art. 14 do Código Civil determina que é válida, com objetivo científi co, ou altruístico, a dispo-sição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
A doação post mortem pode ser feita para fi ns de transplante ou para fi ns científi cos (p. ex.: pesquisa de doença, estudo de anatomia etc.), ob-servados os seguintes requisitos: a) gratuidade: os titulares não podem ser remunerados; b) benefi ciário: pode ser indicado para fi ns científi cos (p. ex.: deixar o corpo para a faculdade de medicina da Santa Casa de São Paulo), mas não pode ser indicado para fi ns de transplante, deven-do ser respeitada uma lista de espera para esse fi m; c) revogabilidade: a disposição manifestada mediante testamento ou escritura pública pode ser revogada a qualquer momento (sine die) pelo doador.
Em sua redação original, o art. 4º da Lei n. 9.434/97 estabelecia pre-
sunção relativa de que toda pessoa era doadora de órgãos (princípio do consenso presumido – presumed consent ou opting out). Se esta não fosse a vontade da pessoa, bastava inscrever na Carteira de Identidade ou na Carteira de Habilitação que não era doadora de órgãos e tecidos.
Infelizmente, a inovação legislativa não agradou a todos, e o dis-positivo foi alterado pela Lei n. 10.211/2001 para determinar que “a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra fi nalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, fi rmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verifi cação da morte” (prin-cípio do consenso afi rmativo – affi rmative consent ou opting in).
O maior problema da alteração legislativa é que o dispositivo não confere ao falecido o direito de disposição do corpo, mas, sim, aos seus parentes. Esse problema foi resolvido com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que confere à pessoa o direito de dispor sobre seu pró-prio corpo para após a morte, somente devendo ser respeitada a vontade de parentes se o falecido foi omisso (vide Enunciado 277/CJF abaixo). Contudo, observa-se que, na prática, médicos e hospitais têm, equivo-cadamente, exigido a manifestação de vontade dos parentes do falecido.
Enunciado 277 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Jus-tiça Federal: “O art. 14 do Código Civil, ao afi rmar a validade da dispo-sição gratuita do próprio corpo, com objetivo científi co ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doa-dor de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portan-to, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 fi cou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”.
VoCaBUlÁrio
revogado: tornado sem efeito, inválido.
altruístico: dotado de amor ao próximo, desprendido, fi lantró-pico. Altruísmo é termo que se opõe à ideia de egoísmo.
disposição: uso, emprego.
omisso: aquele que deixa de manifestar ou de fazer algo.
revogabilidade: possibilidade de ser desfeito, de ser invalidado.
presumido: admitido como cer-to ou verdadeiro, algo que se supõe ou se admite sobre de-terminado objeto, pessoa ou situação. Deriva da palavra “presunção”.
não me abandone jamais. (Direção de Mark Romanek, 2011) Uma revela-ção surpreendente sobre doação de órgãos muda as vi-
das de três jovens que cresceram juntos num internato.
Outros fi lmes com a mesma temática:
Feitiço do coração, Um ato de coragem, sete vidas, Coisas belas e sujas, tudo sobre minha mãe, Uma prova de amor, 21 gramas.
CineMateCa
Direito Civil
73
3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médicoTodo paciente tem direito de receber as informações sobre o tra-
tamento a que será submetido e, a partir daí, concordar ou não com o referido tratamento (consentimento informado). Isto porque a pessoa, tendo ciência dos riscos e consequências que pode sofrer, poderá esco-lher entre as opções apresentadas a que julgar ser a melhor para si. Tal consentimento é dispensado nos casos de iminente perigo de vida e de intervenção necessária e inadiável, como, por exemplo, na hipótese em que a pessoa fica desacordada após um acidente de trânsito.
Nesse sentido, o art. 31 do Código de Ética Médica determina que é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu represen-tante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósti-cas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (Resolu-ção 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina).
De acordo com o art. 15 do Código Civil, ninguém pode ser cons-trangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Interpretando o dispositivo, o Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado 403 na V Jornada de Direito Civil, com o seguinte teor: “o direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pes-soa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante”.
3.3.2. Direito ao nome O nome da pessoa integra a sua própria personalidade, permitindo
que ela seja identificada e individualizada perante a sociedade. A prote-ção do nome é matéria de ordem pública, tendo em vista o interesse do Estado na identificação das pessoas. É por essa razão que impõe diversas restrições à alteração de qualquer um dos seus elementos (prenome ou sobrenome).
O Código Civil dispõe sobre a proteção do nome, impedindo sua divulgação em publicações ou representações que exponham a pessoa ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória, e proi-bindo sua utilização em propaganda comercial não autorizada (art. 17).
De acordo com o art. 18 do mesmo Código, o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamató-
ria. Consoante determina a Súmula 221 do STJ, “são civilmente responsáveis
pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.
Além das normas do Código Civil de 2002, a Lei de Registros Públi-cos também regulamenta o nome nos arts. 54 a 58.
VoCaBUlÁrio
inviolabilidade: proibição ou impossibilidade de violar, infrin-gir, ferir.
intenção difamatória: intenção de difamar, ofender a reputa-ção de alguém, desacreditar ou desabonar alguém publica-mente.
“É válida a declaração de vontade expressa em documen-to autêntico, também chama-do ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade” (Enunciado n. 527 aprovado na V Jornada de Direito Civil).
Ver também a Portaria n. 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina
reFleXÃo
Há uma colisão de direi-tos fundamentais, em especial o direito à vida e o direito à liber-dade (o qual engloba as liber-dades de crença, religião e cul-to), na recusa das Testemunhas de Jeová ao recebimento de transfusões de sangue? Leia o artigo disponível em http://jus.com.br/artigos/27471/as-teste-munhas-de-jeova-e-o-direito-fun-damental-de-recusa-as-trans-fusoes-de-sangue-na-const i -tu icao-bras i le i ra-de-1988#ix-zz3fImGNwTs e discuta com seus colegas e professor.
CoMentÁrio
74
3.3.2.1. Elementos do nomea) Prenome: é popularmente conhecido como “primeiro nome”,
e pode ser simples (João, Flávio, Fernando etc.) ou composto (Maria Clara, João Pedro, Ana Carolina etc.). É escolhido livre-mente pelos pais, desde que não exponha o fi lho ao ridículo, devendo, nessa hipótese, o ofi cial do Registro Civil se recusar a registrá-lo e encaminhar a questão ao juiz.
b) Sobrenome: também conhecido como nome, patronímico ou apelido de família, é o sinal que indica a procedência da pes-soa, sua família e fi liação. A Lei n. 11.924/2009 (Lei Clodovil) alterou o § 8º da Lei de Registros Públicos, permitindo que o enteado ou a enteada acrescente o nome de família do padrasto ou da madrasta, mediante requerimento judicial.
c) Agnome: é o sinal que distingue membros da família que utili-zam o mesmo nome e sobrenome (p. ex.: Filho, Neto, Sobrinho, Júnior etc.).
d) Partícula: é utilizada entre o prenome e o sobrenome ou entre os sobrenomes (p. ex.: de, da, dos etc.).
e) Alcunha: também conhecida como cognome ou epíteto, é a designação atribuída a uma pessoa em razão de alguma par-ticularidade ou características, tais como habilidade, profi ssão, aparência, local de nascimento (p. ex.: Aleijadinho, Tiradentes etc.). Apenas por sentença judicial pode a alcunha passar a fazer parte do nome da pessoa.
3.3.2.2. PseudônimoO pseudônimo pode ser defi nido como o nome fi ctício utilizado
por uma pessoa no exercício de seu trabalho ou profi ssão. É comumente utilizado por literatos e artistas, podendo ser citados como exemplos: Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque de Melo), Sílvio Santos (Senor Abravanel) etc.
O pseudônimo não deve ser confundido com o heterônimo, em que há a criação não só de um nome fi ctício, mas de uma personalidade fi ctícia. É o que ocorria com Fernando Pessoa, que escrevia e assinava suas poesias em nome próprio e também por meio de seus heterônimos (Ricardo Reis, Álvaro Campos, Alberto Caeiro etc.), cada qual com seu estilo, sentimentos e biografi as próprias.
Nos termos do art. 19 do Código Civil, “o pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome”. Embora exista distinção entre os conceitos, e o art. 19 do Código Civil somente se refi ra ao pseudônimo, ambos recebem a mesma proteção conferida ao nome. Contudo, requisito essencial para a proteção tanto de um quanto de outro é que sejam utilizados para atividades lícitas.
3.3.3. Direito à imagemO direito à imagem é o direito da personalidade conferido a todos
os seres humanos para que possam controlar o uso e a exploração de sua
o casamento de Muriel. (Direção de P. J. Hogan, 1994) Retrata uma adolescente que, ao fugir da casa de seus pais após praticar um ilícito,
muda seu nome para não poder ser localizada e também para vi-ver uma nova experiência. Expõe, assim, os aspectos jurídicos e psi-cológicos da alteração do nome.
CineMateCa
Sob proteção especial por se tratar de direito da personalidade, o uso da imagem de uma pessoa não requer autorização quando feito no contexto de uma notícia jornalística, sem exploração co-mercial e sem identifi cação de seus componentes, especialmen-te se retratar uma coletividade de pessoas. Já as pessoas publi-camente conhecidas (famosos, celebridades) têm certa restrição quanto ao direito de reclamar contra o uso indevido de sua ima-gem, comparativamente ao de pessoas “comuns”. Há nesses ca-sos uma presunção de consenti-mento, devendo-se preservar a sua vida privada. Sobre o tema, acesse o artigo disponível em http://psilvafreitas.jusbrasil.com.br/artigos/149456872/a-inexisten-cia-de-autorizacao-no-uso-da-imagem-do-artista
atenÇÃo
Direito Civil
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imagem, como a representação fiel de seus aspectos físicos (fotografia,
retratos pintados, gravuras etc.), sua aparência individual e distinguível,
concreta ou abstrata.
Além da Constituição Federal, o Código Civil também veio prote-
ger o direito à imagem ao dispor que, “salvo se autorizadas, ou se neces-
sárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública,
a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibi-
das, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem
a fins comerciais” (art. 20).
O objetivo do dispositivo é o de proteger o direito à imagem e ou-
tros direitos conexos, conferindo ao titular a disponibilidade sobre a
divulgação de escritos, transmissão da palavra e sua publicação, a expo-
sição ou utilização de imagem. Cabe ao indivíduo autorizar ou proibir
a exploração desses aspectos de sua personalidade. Contudo, essa dispo-
nibilidade é relativa e cede diante de interesses sociais maiores como a
administração da justiça ou a manutenção da ordem pública.
Segundo o Enunciado 279/CJF, “a proteção à imagem deve ser pon-
derada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especial-
mente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de
imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do re-
tratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as
CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFI-CIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI 6.015/1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JU-RISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I - O NOME PODE SER MODIFICADO DESDE QUE MOTIVADAMENTE JUSTIFICADO. NO CASO, ALÉM DO ABANDONO PELO PAI, O AUTOR SEMPRE FOI CONHECIDO POR OU-TRO PATRONÍMICO. II - A JURISPRUDÊNCIA, COMO REGISTROU BENEDITO SILVERIO RIBEIRO, AO BUSCAR A CORRETA INTELIGÊNCIA DA LEI, AFINADA COM A “LÓGICA DO RAZOÁVEL”, TEM SIDO SENSÍVEL AO EN-TENDIMENTO DE QUE O QUE SE PRETENDE COM O NOME CIVIL É A REAL INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA PERANTE A FAMÍLIA E A SOCIEDADE (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial 1995/0025391-7, julgado em 21/10/1997, publicado no DJ em 9/12/1997, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CASAMENTO. NOME CIVIL. SUPRESSÃO DO PATRONÍMI-
CO MATERNO. POSSIBILIDADE. JUSTO MOTIVO. DIREITO DA PERSONALIDADE. INTEGRIDADE PSICOLÓGI-CA. LAÇOS FAMILIARES ROMPIDOS. AUTONOMIA DE VONTADE. 1. Excepcionalmente, desde que pre-servados os interesses de terceiro e demonstrado justo motivo, é possível a supressão do patronímico materno por ocasião do casamento. 2. A supressão devidamente justificada de um patronímico em virtude do casamento realiza importante direito da personalidade, desde que não prejudique a plena ancestralidade nem a sociedade. 3. Preservação da autonomia de vontade e da integridade psico-lógica perante a unidade familiar no caso concreto. 4. Recurso especial não provido (STJ, RECURSO ESPECIAL, Terceira Turma, n. 2014/0022694-1, julgado em 26/5/2015, publicado no DOJe em 2/6/2015, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
VoCaBUlÁrio
veracidade: qualidade de ver-dadeiro, que demonstra cor-responder à verdade.
notoriedade: fama, consagra-ção, reconhecimento por todos.
JUrisPrUDÊnCia
76
características de sua utilização (comercial, informativa, biográfi ca), pri-
vilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.
E, sobre o tema, a Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça deter-mina que independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fi ns econômicos ou comerciais.
3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade De acordo com o art. 21 do Código Civil, a vida privada da pessoa
natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou interromper ato que desres-peite essa norma.
Enquanto alguns autores defendem que os termos privacidade e in-timidade são equivalentes, outros, como Maria Helena Diniz, apontam diferenças. Enquanto a privacidade protege os aspectos externos da vida humana, como seus hábitos, e-mails, telefones e cartas, a intimidade refere-se aos aspectos internos da existência humana, como o segredo, o relacionamento amoroso, as situações de pudor, o sofrimento em razão de enfermidade ou a perda de uma pessoa próxima.
Privacidade e intimidade são bens jurídicos tutelados não só pelo Direito Civil, mas pela própria Constituição Federal, em diversos incisos do art. 5º (V, X, XI, XII e LX). Protege, assim, a vida privada de viola-ções à casa, à correspondência, ao estilo de vida e aos demais aspectos próprios de cada pessoa em sua individualidade. Essa tutela também é sentida no Direito Penal, que pune o desrespeito a esses direitos, consi-derando crimes a violação de correspondência, a violação de domicílio e a interceptação telefônica, entre outras práticas.
Ao tutelar a privacidade e a intimidade, o art. 20 do Código Civil também protege a honra das pessoas. De acordo com a doutrina, a hon-ra pode ser dividida em duas espécies, ambas protegidas pelo direito.
Honra subjetiva é o sentimento que a pessoa tem de si mesma, senti-
mentos internos de autoestima e dignidade. Por sua vez, honra objetiva é a forma como a pessoa é vista pelas outras pessoas, o seu conceito perante a sociedade, sua reputação.
Evidente que as ofensas dirigidas a um ser humano podem acar-retar a violação tanto da honra subjetiva quanto da objetiva, ensejando o direito à reparação dos danos. Se as ofensas forem dirigidas a pessoas jurídicas, com ou sem intuito lucrativo, haverá apenas violação à honra objetiva, visto que elas não possuem honra subjetiva.
3.4 ProteÇÃo Dos Direitos Da PersonaliDaDe
Além de regular alguns direitos da personalidade, o Código Civil também se preocupou em garantir que eles sejam respeitados, estabele-cendo um tratamento especial. Em caso de ameaça, o titular do direito
CoMentÁrio
exigência prévia de autoriza-çãoparabiografias
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal jul-gou, em 10/6/2015, procedente a Ação Direta de Inconstitucio-nalidade (ADI) 4815. Seguindo o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação conforme a Constituição da Re-pública aos artigos 20 e 21 do Có-digo Civil, em consonância com os direitos fundamentais à liber-dade de expressão da atividade intelectual, artística, científi ca e de comunicação, independente-mente de censura ou licença de pessoa biografada, relativamente a obras biográfi cas literárias ou audiovisuais (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). O tema havia sido objeto de audi-ência pública convocada pela relatora em novembro de 2013, com a participação de 17 ex-positores. Decisão disponível em http://www.stf.jus.br/portal/pro-cesso/verProcessoAndamento.as-p?numero=4815&classe=ADI&o-rigem=AP&recurso=0&tipoJulga-mento=M. Acesso em 7-jul-2015.
o voo. (Direção de Robert Zemeckis, 2013) A trama con-fronta a questão da honra subjetiva e da honra objeti-va quando um pi-
loto comercial, vivido por Denzel Washington, com problemas liga-dos a bebida e drogas, salva vi-das após controlar uma pane na aeronave por ele conduzida.
CineMateCa
Direito Civil
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pode se valer de medidas judiciais preventivas; em caso de lesão, o titular do direito pode buscar a reparação dos danos morais.
3.4.1. Medidas preventivasAs medidas preventivas ou inibitórias têm por objetivo influir de
forma eficaz na vontade daquele que possa vir a violar direitos da per-sonalidade. Essas medidas judiciais podem, inclusive, apresentar-se por tutela inaudita altera pars (ou seja, antes mesmo de a parte supostamen-te agressora ser ouvida pelo juiz), visto que a atuação deverá ser efetiva e primar pela proteção do bem jurídico de maior valor no caso concreto.
O Código de Processo Civil tutela as formas de coibir lesão a direi-tos prevendo multas, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, garantindo inclusive a possibilida-de de requisição policial para seu cumprimento (art. 536, § 1º). Como exemplo concreto de tais medidas, podemos citar a exclusão de sites na internet contendo fotos não autorizadas.
3.4.2. Medidas reparatóriasAs medidas reparatórias têm por objetivo amenizar as consequên-
cias da violação ao direito da personalidade (em observância do princí-pio da satisfação compensatória). Devemos lembrar que o dano moral é a lesão a qualquer direito da personalidade e não deve ser confundido com as suas consequências: dor, angústia, tristeza, depressão etc. Embora não se confundam, o objetivo da reparação do dano moral é justamente o de afastar as consequências da violação ao direito da personalidade, proporcionando à vítima algo que amenize o sofrimento suportado.
Na jurisprudência, restou afastada a discussão do passado sobre a impossibilidade de se pleitear indenização por dano material cumulada com indenização por dano moral. Na atualidade, o entendimento pela possibilidade da cumulação é pacífico e sedimentado no STJ. Nesse sen-tido, a Súmula 37 do STJ dispõe que “são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato” (publicada em 17-3-1992).
3.4.3. legitimidade para requerer a proteção e a reparação
Quem pode requerer a tutela jurisdicional de proteção ou de repa-ração a direito da personalidade é o próprio lesado. O lesado direto é a pessoa que está sofrendo a lesão em seus direitos da personalidade. Além do lesado direto, o parágrafo único do art. 12 do Código Civil prevê que lesados indiretos possam pleitear a proteção e a reparação a direitos da personalidade de pessoa morta, ao dispor que também têm legitimida-de, para tal fim, o cônjuge sobrevivente e qualquer parente em linha reta
e colateral até o quarto grau.
De acordo com o Enunciado 398 da V Jornada de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal, “as medidas previstas no art. 12, pará-
INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – HERDEIROS – LEGITIMIDADE – 1. Os pais estão legitimados, por terem in-teresse jurídico, para acionarem o Estado na busca de indenização por danos morais sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos pra-ticados por agentes públicos que de-ram publicidade ao fato de a vítima ser portadora do vírus HIV. 2. Os auto-res, no caso, são herdeiros da vítima, pelo que exigem indenização pela dor (dano moral) sofrida, em vida, pelo filho já falecido, em virtude de publicação de edital, pelos agentes do Estado réu, referente à sua con-dição de portador do vírus HIV. 3. O direito que, na situação analisada, poderia ser reconhecido ao falecido, transmite-se, induvidosamente, aos seus pais. 4. A regra, em nossa ordem jurídica, impõe a transmissibilidade dos direitos não personalíssimos, sal-vo expressão legal. 5. O direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol. 71/183). 6. A perda de pessoa queri-da pode provocar duas espécies de dano: o material e o moral. 7. “O her-deiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se pro-longasse ou se entendesse (deve ser estendesse) ao herdeiro e este, fazen-do sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, ti-nha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de indeni-zação do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores” (Leon Mazeaud, em magistério publicado no Recueil Cri-tique Dalloz, 1943, p. 46, citado por Mário Moacyr Porto, conforme referi-do no acórdão recorrido). 8. Recurso improvido. (STJ – REsp – 324886 – PR – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 03.09.2001 – p. 159)
JUrisPrUDÊnCia
78
grafo único, do Código Civil podem ser invocadas por qualquer uma
das pessoas ali mencionadas de forma concorrente e autônoma”. Esse
enunciado tem por objetivo afastar a tese de que haveria uma ordem de
vocação hereditária, semelhante àquela existente no Código Civil para
estabelecer quem são os herdeiros, para pleitear indenização por dano
moral. Afi nal, o sofrimento pela ofensa dirigida ao ente querido não tem
qualquer relação com eventual direito hereditário.
Especifi camente quanto ao direito de imagem, o art. 20, parágra-
fo único, do Código Civil dispõe que, “em se tratando de morto ou de
ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes”. De acordo com o Enunciado 275 do
Conselho da Justiça Federal, “o rol dos legitimados de que tratam os
arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também
compreende o companheiro”.
a Pessoa Jurídica4
80
4.1 ConCeito
Denominam-se pessoas jurídicas os entes formados pela coletivi-dade de bens ou de pessoas a quem a lei atribui personalidade jurídica, com o objetivo de que seja atingida uma determinada fi nalidade au-torizada ou não proibida por Lei (ou seja, lícita). Em outras palavras, para que a coletividade possa agir como uma unidade, o ordenamento jurídico confere uma personalidade própria, que não deve ser confun-dida com a personalidade de cada um de seus integrantes (conforme a expressão latina universitas distat a singulis).
Quando o agrupamento é de pessoas, afi rma-se que a pessoa jurídi-ca é intersubjetiva, podendo assumir a forma de uma associação ou de uma sociedade. Quando é resultado do agrupamento de bens, a pessoa jurídica é patrimonial, sendo denominada fundação. Excepcionalmen-te, o ordenamento jurídico também confere personalidade a entidades sem coletividade, podendo ser citada como exemplo a Eireli (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada).
4.2 natUreZa JUríDiCa
É pacífi co o entendimento na atualidade de que as pessoas jurídicas devem ser classifi cadas como sujeitos de direito, justamente por serem entes dotados de capacidade e personalidade jurídica própria. Entretan-to, por muito tempo não houve consenso com relação à natureza jurídi-ca das pessoas jurídicas. No passado, não foram poucos os autores que negaram a qualidade de sujeito de direito à pessoa jurídica (Duguit, Pla-niol, Berthélemy, Ihering, Wieland, Bolze etc.). Consideravam a pessoa jurídica uma forma especial de patrimônio (mera forma de condomínio ou propriedade coletiva), em que as decisões eram tomadas pelos seus proprietários de forma coletiva.
Paulatinamente, as teorias negativistas da pessoa jurídica foram sendo rebatidas e hoje a posição majoritária é no sentido de que as pesso-as jurídicas têm personalidade jurídica própria. Contudo, os autores di-vergem sobre a tese que fundamentara a personalidade. Dentre as diver-sas teorias afi rmativistas da pessoa jurídica, destacam-se as seguintes:
a) Teoria da equiparação: baseia-se na ideia de que a pessoa jurí-dica é um patrimônio que recebe do ordenamento jurídico, por equiparação, o mesmo tratamento dispensado às pessoas natu-rais (seres humanos). Por tratar bens como sujeitos de direitos, essa teoria é muito criticada pela doutrina, havendo até mesmo quem entenda que pertença ao grupo das teorias negativistas da pessoa jurídica. Dentre os defensores dessa teoria, destacam--se Windscheid e Brinz.
b) Teoria da fi cção legal: para essa teoria, a pessoa jurídica é uma mera abstração legal, isto é, uma criação artifi cial do legislador.
A crítica recai sobre o fato de que esta teoria reconhece apenas a
VoCaBUlÁrio
ficção:no sentido empregado nesse texto, fantasia, algo cria-do artifi cialmente
león Duguit (1859-1928) foi um doutrinador francês que tra-tou do direito público e das
limitações ao poder do Estado.Marcel Fer-
dinand Planiol (1861-1959) foi o jurista que deu ao Direito Civil francês um olhar diferenciado na
chamada Belle Époque.rudolf Von
Jhering (1818-1892), autor ale-mão, teve gran-de infl uência para a ciência jurídica ociden-tal. Seu livro “A
Luta pelo Direito” é obra clássica que introduz a concepção fi nalis-ta do Direito.
aUtor
Direito Civil
81
existência ideal da pessoa jurídica, negando sua existência real
e colocando a lei como força criativa, e não como uma força
confirmativa da personalidade jurídica. Além disso, se a perso-
nalidade das pessoas jurídicas é fruto de ficção, fictício será o
direito que dela deriva. O desenvolvimento da teoria de ficção
legal é atribuído a Savigny, sendo defendida também por Or-
lando Gomes. Importante salientar a existência de outra teoria,
decorrente dela, que defende que a personalidade da pessoa ju-
rídica é resultado de invenção dos estudiosos do direito (teoria
da ficção doutrinária). Trata-se de posicionamento pouco di-
fundido, e que é alvo das mesmas críticas acima mencionadas.
c) Teoria da realidade objetiva: a teoria da realidade objetiva, também conhecida como teoria da realidade orgânica, teoria orgânica ou teoria organicionista, defende exatamente o opos-to da teoria da ficção legal. As pessoas jurídicas são, portanto, entes de existência real (detentoras de identidade organiza-cional própria), cuja personalidade jurídica independe do re-conhecimento legal. Reconhece-se a dimensão sociológica das pessoas jurídicas ao considerá-las um organismo social vivo. A formulação dessa teoria é atribuída a Gierke e Zitelmann.
d) Teoria da realidade técnica: mesclando as ideias das teorias ante-riores, a teoria da realidade técnica defende que a personalidade da pessoa jurídica é resultado de sua existência real aliada à sua existência ideal. Reconhece, desta feita, a importância da dimen-são social e legal das pessoas jurídicas, sem ignorar o lado fictício da pessoa jurídica (criação legal). Assim sendo, a personalidade jurídica seria conferida pela lei a qualquer agrupamento suscetí-vel de ter uma vontade própria e de defender seus próprios inte-resses. Defende essa posição Caio Mário da Silva Pereira.
4.3 eleMentos estrUtUrais (PressUPostos eXistenCiais Da Pessoa JUríDiCa)
Para que a pessoa jurídica possa ser constituída de forma válida, são exigidos diversos requisitos. Importante observar que a doutrina está longe de chegar a um consenso com relação ao tema. Contudo, en-tendemos que os principais pressupostos gerais são: a vontade humana criadora; a coletividade de pessoas ou de bens; e a finalidade lícita. E diz-se “gerais” porque, além destes, deverão ser observados outros exi-gidos pela lei, a depender do tipo específico de pessoa jurídica que será constituída. A título de exemplo podemos citar: a elaboração do estatuto ou contrato social; a inscrição do ato constitutivo; a autorização prévia do Poder Executivo exigida em hipóteses excepcionais (p. ex.: institui-
ções bancárias e seguradoras) etc.
Vejamos, agora, de forma detalhada, os três principais requisitos:
Friedrich Carl von savigny (1779-1861) foi um jurista alemão de grande influência nos paí-ses de tradição ju-rídica romano-ger-mânica, além de
ter sido o grande nome da Escola Histórica do Direito e ter tratado em sua obra de conceitos como relação jurídica e fato jurídico.
o r l a n d o Gomes (1909-1988), brasileiro de Salvador, Bahia, foi jurista de grande im-portância para o Direito Civil. Tratou de todos
os temas da disciplina e consoli-dou vários dos seus conceitos fun-damentais no Brasil.
aUtor
82
1º Requisito: vontade humana criadora
A vontade humana criadora é sempre um requisito essencial para a constituição da pessoa jurídica formada, não importando se é compos-ta pela coletividade de pessoas ou de bens. Nas pessoas jurídicas inter-subjetivas, há uma conversão de vontades de todos os participantes do grupo para que os fi ns comuns sejam alcançados. Nas pessoas jurídicas patrimoniais, o fundador manifesta a sua vontade para que a coletivi-dade de bens adquira personalidade jurídica (vontade heterônoma). A vontade humana criadora deve ser manifestada de forma livre e cons-ciente por pessoa capaz ou devidamente representada.
2º Requisito: coletividade de pessoas ou bens
A coletividade de pessoas (nas sociedades e nas associações) ou a coletividade de bens (nas fundações) é a base estrutural da pessoa jurí-dica. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico confere personalidade jurídica a entes despidos de coletividade, como ocorre com a Eireli (Em-presa Individual de Responsabilidade Limitada).
3º Requisito: fi nalidade lícita (liceidade)
Uma pessoa jurídica sempre será constituída com o fi m de alcançar uma fi nalidade específi ca, seja lucrativa (p. ex.: sociedade) ou não (p. ex.: associação fi lantrópica, educativa, recreativa, política, religiosa etc.). Qualquer que seja esse objetivo, certo é que não poderá estar desconfor-me o ordenamento jurídico, devendo respeitar a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes.
Caso tenha sido constituída com fi nalidade lícita e durante sua existência se desvirtuado, o Ministério Público poderá requerer sua dis-solução. Cite-se como exemplo, aqui, o episódio envolvendo algumas torcidas organizadas de clubes de futebol do Estado de São Paulo.
4.4 PersonaliDaDe JUríDiCa
Já se estudou que, no que concerne às pessoas naturais, todos os seres humanos são dotados de personalidade jurídica e, por isso, podem titularizar relações jurídicas. O mesmo ocorre com as pessoas jurídi-cas: assim como a lei confere personalidade jurídica às pessoas naturais, também a confere às pessoas jurídicas, permitindo que sejam titulares de direitos e deveres. Daí resulta que as pessoas jurídicas também são detentoras de capacidade jurídica, podendo praticar diversos atos da vida civil, como, por exemplo, celebrar contratos, adquirir bens móveis e imóveis, receber herança etc. Contudo, não se pode afi rmar que as pessoas jurídicas podem praticar todos os atos da vida civil, pois alguns são reservados aos seres humanos, como a adoção, o casamento, a cele-bração de testamento etc.
4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade
Com relação à titularidade de direitos da personalidade, vimos no
a Firma. (Direção de Sydney Polla-ck, 1993) Retrata uma sociedade de advogados cuja fi nalidade é a lavagem de dinheiro de uma
organização criminosa, demons-trando a falta de liceidade da pessoa jurídica.
CineMateCa
Direito Civil
83
capítulo anterior (Direitos da Personalidade) que a posição doutriná-
ria majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas possuem alguns
direitos da personalidade, tais como o direito à imagem e à honra ob-
jetiva. Nesse sentido, o art. 52 do Código Civil determina: “aplica-se às
pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personali-
dade”. Por serem detentoras de direitos da personalidade, podem sofrer
dano moral, como, aliás, prevê a Súmula 227/STJ. Recomendamos a
leitura da Unidade anterior para conferir as posições doutrinárias so-
bre o tema.
4.4.2. início da personalidadeJá estudamos as diversas teorias existentes quanto à determinação
do momento em que os seres humanos adquirem personalidade jurídica
(se a partir do nascimento ou da concepção). Com relação às pessoas ju-
rídicas, a questão também não é simples, mas, diferentemente da pessoa
física, que surge de um fato jurídico natural (biológico), a pessoa jurí-
dica surge a partir de um fato jurídico humano: a vontade.
Para determinação do momento do surgimento da personalidade
da pessoa jurídica, deve ser feita a distinção entre as pessoas jurídicas de
direito público e as pessoas jurídicas de direito privado.
4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito público
As pessoas jurídicas de direito público são normalmente constitu-
ídas por lei e, desta forma, adquirem personalidade no exato momen-
to em que a lei instituidora entrar em vigor. Excepcionalmente, a lei
assume papel secundário, autorizando que o chefe do Poder Executivo
(municipal, estadual ou federal) crie uma pessoa jurídica por força de
decreto, adquirindo personalidade a partir da vigência deste. Além da
criação por força de lei e por força de decreto, as pessoas jurídicas tam-
bém podem ser constituídas por meio da promulgação de uma nova constituição, de um fato histórico ou de um tratado internacional. Vale lembrar que os tratados internacionais são normalmente utilizados
para a criação de pessoas jurídicas de direito público externo – ONU,
OIT, OMS etc.
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direito privado
O legislador brasileiro adotou como regra o sistema das disposi-ções normativas ao exigir a observância de determinados requisitos le-
gais, dentre eles o registro (a inscrição) do ato constitutivo. De acordo
com o art. 45 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respec-
tivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação
do Poder Executivo. Antes da análise detalhada do registro de cada uma
Súmula 227 – STJ:“A pessoa jurídica pode so-
frer dano moral".
o sexto membro permanen-te: o Brasil e a criação da ONU, de Eugênio Vargas Garcia, que discorre, especialmente em seus capítulos iniciais, sobre o planeja-mento político que culminou na criação da organização suprana-cional que sobrevive até os dias atuais.
oswaldo aranha – uma bio-
grafia, de Stanley Hilton, sobre o brasileiro que viveu à época da criação da ONU e participou da sua Assembleia Geral, em que aprovou-se, no ano de 1947, a di-visão do território palestino em um Estado judeu e outro árabe, por meio da Resolução n. 181.
BiBlioteCa
JUrisPrUDÊnCia
84
das pessoas jurídicas, devemos verifi car cada um dos sistemas que tra-
tam da existência das pessoas jurídicas:
Sistema da livre formação: foi o sistema adotado no Brasil até
setembro de 1983, contudo era atacado por diversas críticas. Defende
que a existência da pessoa jurídica tem início a partir da simples ma-nifestação de vontade dos membros que a compõem, bastando, assim,
a elaboração do ato constitutivo. Ao dispensar o registro do ato, não
oferece qualquer segurança para as pessoas que contratam com a pessoa
jurídica.
Sistema do reconhecimento: defende que a pessoa jurídica somen-
te existe a partir do momento em que o Estado a reconhece, mediante
um decreto de reconhecimento. Esse sistema, que tem suas origens no
direito romano, ainda é adotado na Itália, França e Portugal.
Sistema das disposições normativas: sistema atualmente adotado
no Brasil, representa uma posição intermediária entre os dois anteriores,
ao estabelecer que a existência da pessoa jurídica não depende do reco-
nhecimento ou da autorização estatal, mas do cumprimento de certos requisitos legais (p. ex.: o registro). Em situações excepcionais, exige-se
no nosso país prévia autorização do Estado para criação da pessoa jurí-
dica (p. ex.: instituições fi nanceiras).
4.4.3. ato constitutivo e registro da pessoa jurídicaAs pessoas jurídicas passam por duas fases quando de sua criação:
a primeira, consistente na elaboração do ato constitutivo; e a segunda,
representada pelo registro do ato constitutivo. O ato constitutivo de
uma sociedade é denominado contrato social; já o de uma associação
ou de uma fundação é chamando estatuto. De acordo com o art. 46
do Código Civil, o registro deverá mencionar os seguintes requisitos:
I – a denominação, os fi ns, a sede, o tempo de duração e o fundo social,
quando houver; II – o nome e a individualização dos fundadores ou ins-
tituidores, e dos diretores; III – o modo por que se administra e repre-
senta, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV – se o ato
constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V
– se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações
sociais; VI – as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do
seu patrimônio, nesse caso.
A Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73 – art. 115) também
estabelece regras para a constituição da pessoa jurídica, proibindo o seu
registro “quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem
destino ou atividade ilícitos, ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem
público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou so-
cial, à moral e aos bons costumes”. Caso um estatuto ou contrato social
seja levado a registro e o ofi cial que o receber perceber que se trata de
pessoa jurídica cujo objeto a lei proíbe, deverá sobrestar o feito, de ofício
ou por provocação de qualquer autoridade, e suscitar dúvida para que
o juiz decida.
Direito Civil
85
Em regra, a constituição de uma pessoa jurídica não depende de prévia autorização do Poder Executivo, somente exigida em situações
excepcionais, como, por exemplo, para entidades financeiras (que reque-
rem autorização do Banco Central), e seguradoras (as quais dependem
de autorização da SUSEP).
4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas jurídicas
Diferentemente do que acontece com as pessoas físicas, em que o
registro tem natureza meramente declaratória (retroagindo ao momen-
to do nascimento/concepção – portanto, dotadas de eficácia ex tunc),
o registro das pessoas jurídicas tem natureza constitutiva, pois a per-
sonalidade somente é adquirida a partir dele. Dessa forma, podemos
afirmar que o registro das pessoas jurídicas tem eficácia ex nunc, não
legitimando ou convalidando atos pretéritos. Essa é a posição majori-
tária na doutrina, mas devemos destacar que alguns autores do direi-
to empresarial, como Fábio Ulhoa Coelho, defendem que o registro é
declaratório e que a pessoa jurídica existe desde o momento em que o
contrato social é celebrado.
Denominam-se entes despersonalizados as sociedades de fato (ine-
xiste o ato constitutivo) e as sociedades irregulares (que possuem ato
constitutivo, mas este não se encontra devidamente registrado). Ambas
recebem o mesmo tratamento jurídico e dentre os diversos problemas
enfrentados por uma sociedade despersonificada podemos destacar os
seguintes:
• Responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada dos sócios em face
de quem contratou com a pessoa jurídica e de terceiros lesados.
• Impossibilidade de obter número de inscrição no Cadastro Nacio-
nal das Pessoas Jurídicas – CNPJ, perante a Receita Federal.
• Impossibilidade de participar de uma licitação ou de obter em-
préstimos ou financiamentos bancários.
• Impossibilidade de ingressar em juízo em face de terceiros (em
regra).
4.4.3.2. Local do registroA determinação do local onde deve ser levado a registro o ato cons-
titutivo varia de acordo com o tipo de pessoa jurídica que se pretende
registrar. A questão nem sempre é simples, pois, além das leis federais
sobre a matéria (p. ex.: Lei de Registros Públicos), as Corregedorias dos
Tribunais de Justiça estaduais estabelecem normas sobre competência
registral.
a) Junta comercial (Registro Público de Empresa): nas Juntas
Comerciais Estaduais devem ser registradas as sociedades empresárias
(antigamente denominadas de sociedades mercantis), conforme dispõe
a Lei n. 8.934/94. Também são registradas na Junta Comercial:
CARTÓRIO. ENTE DESPERSO-NALIZADO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. RESOLUÇÃO SEM MÉRITO. HONORÁRIOS ADVOCA-TÍCIOS. CABIMENTO. Na condição de ente despersonalizado e des-provido de patrimônio próprio, a serventia extrajudicial não possui personalidade jurídica nem ju-diciária que lhe permita figurar no polo ativo ou passivo de uma demanda judicial. TRF-3 - APELA-ÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO APE-LREE 63639 SP 1999.03.99.063639-7 (TRF-3). Data de publicação: 17/02/2011.
JUrisPrUDÊnCia
86
Seguradoras: o ato constitutivo das seguradoras deve ser registra-
do na Junta Comercial do Estado em que se constituírem. Esse registro
somente é possível após prévia autorização da Superintendência de Se-
guros Privados – SUSEP, consoante Resolução 166/2007 do Conselho
Nacional de Segurados Privados – CNSP.
Operadoras de plano de saúde: a constituição de uma operadora
de plano privado de assistência à saúde depende de registro na Junta
Comercial, na Agência Nacional de Saúde – ANS, bem como de registro
nos Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, conforme o caso,
em cumprimento ao disposto no art. 1º da Lei n. 6.839, de 30 de outubro
de 1980, e conforme o disposto no art. 8º da Lei n. 9.656/98.
Instituições fi nanceiras: a existência legal das instituições fi nan-
ceiras também depende do registro de seus atos constitutivos na Junta
Comercial. Para que o registro seja promovido, exige-se prévia autoriza-
ção do Banco Central, consoante determinação da Lei n. 4.595/64, que
instituiu o Conselho Monetário Nacional.
b) Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (CRCPJ):
para que possam ser consideradas regularmente constituídas, as asso-
ciações e fundações deverão ter seus estatutos devidamente registra-
dos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (“Livro A”) do
município onde se estabelecerem. No mesmo local também deverão
ser levados a registro os contratos sociais das sociedades simples (con-
forme art. 114 da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/77). Além das
associações, fundações e sociedades simples, devem ser destacadas as
seguintes entidades:
Sociedades de profi ssionais liberais: devem ser registradas no Car-
tório de Registro Civil das Pessoas jurídicas por desenvolverem atividade
intelectual. De acordo com o art. 966 do Código Civil de 2002, “não
se considera empresário quem exerce profi ssão intelectual, de nature-
za científi ca, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares
ou colaboradores, salvo se o exercício da profi ssão constituir elemento
de empresa”. Como exemplo, podemos citar as sociedades de médicos,
dentistas, engenheiros, contadores etc. Além do registro no CRCPJ, es-
sas sociedades também devem ser registradas na respectiva entidade de
classe (CRM, CRO, CREA, CRC etc.).
Partidos políticos: devem ter seus estatutos registrados no Cartó-
rio de Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Distrito Federal e, poste-
riormente, no Tribunal Superior Eleitoral (Constituição Federal, art. 17,
§ 2º; Lei n. 9.096/95, arts. 7º e 8º e Lei de Registros Públicos, art. 114, III).
Sindicatos: o registro do sindicato deve ser feito no Cartório de
Registro Civil das Pessoas Jurídicas no “Livro A” (Constituição Federal,
art. 8º, I e Lei de Registros Públicos, art. 114, I). Nos termos do art. 518
e seguintes da CLT, o sindicato também deverá ser cadastrado no Minis-
tério do Trabalho. De acordo com a jurisprudência do STJ o sindicato
adquire sua personalidade jurídica a partir do registro no CRCPJ, sendo
desnecessário o registro junto ao Ministério do Trabalho. Contudo, para
Direito Civil
87
o Supremo Tribunal Federal, a constituição válida dos sindicatos depen-
de do duplo registro.
Cooperativas: existe divergência doutrinária a respeito do local
onde devem ser registradas as atas das assembleias constitutivas das co-
operativas, podendo ser apontadas duas correntes. A primeira corrente
defende que as cooperativas devem ser registradas na Junta Comercial, de acordo com as Leis ns. 5.764/71 (Lei das Cooperativas) e 8.934/94
(art. 32, II). A segunda corrente defende que as cooperativas devem ser
registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois
teriam sido tratadas como sociedades simples pelo Código Civil de 2002
(arts. 982, II; 1.093 e seguintes). A questão é bem polêmica, e podemos
afirmar que na prática tem prevalecido a primeira corrente, tendo a Re-
ceita Federal recusado a emissão de CNPJ para cooperativas registradas
no CRCPJ.
ONGs: as Organizações Não Governamentais são entidades filan-
trópicas que adquirem personalidade jurídica a partir do registro dos
seus estatutos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Para
adequação das pessoas jurídicas ao Código Civil de 2002O art. 2.031 do Código Civil dispõe que “as associações, sociedades e fundações, constituídas na
forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007”. Em sua redação original, o prazo era de um ano, depois foi dilatado para dois anos (pela Lei n. 10.838/2004) e, finalmente, para quatro anos – 11-1-2007 (Lei n. 11.127/2005). O parágrafo único do art. 2.031 (incluído pela Lei n. 10.825/2003) ressalvou as organizações religiosas e os partidos políticos, dispensando-os de promover qualquer regularização.
A aplicabilidade do caput do art. 2.031 do Código Civil é objeto de controvérsia doutrinária, pois estabelece uma obrigação para pessoas jurídicas já constituí das. Sobre a questão podem ser apresen-tadas duas correntes:
1ª Corrente: defende que o caput do art. 2.031 do Código Civil é válido e que as pessoas jurídicas constituídas anteriormente devem se adequar ao novo diploma. Essa é a corrente majoritária. O pro-blema é que o CC/2002 não estabeleceu qual seria a consequência da inobservância do dispositivo. Entendemos que a melhor solução é a equiparação das pessoas jurídicas que não se adequaram às sociedades irregulares, suportando as consequências desse tratamento. Assim, enquanto não se regularizarem, não poderão participar de licitações; não poderão obter empréstimos bancários; não poderão receber verba pública etc.
2ª Corrente: defende que o dispositivo é inconstitucional por violar a proteção do ato jurídico per-feito, em afronta ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Essa corrente é minoritária.
Quanto às fundações, o art. 2.032 determina que aquelas instituídas segundo a legislação anterior, inclusive as de fins diversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se, quanto ao seu funcionamento, ao disposto no Código Civil de 2002.
Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referi-das no art. 44 (p. ex.: sociedades, associações, fundações etc.), bem como a sua transformação, incor-poração, cisão ou fusão, regem-se desde logo por esse Código (art. 2.033). Diversamente, a dissolução e a liquidação dessas mesmas pessoas jurídicas, quando iniciadas antes da vigência do Código Civil de 2002, obedecerão ao disposto nas leis anteriores.
atenÇÃo
88
que possam receber o Certifi cado de Fins Filantrópicos, devem ser ins-critas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, que é o ór-gão responsável pela regulamentação da política nacional de assistência social. A inscrição das entidades no CNAS somente é possível após a inscrição no Conselho Municipal da localidade em que exercem suas atividades (art. 9º, § 3º, da Lei n. 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social). Caso o município ainda não tenha instituído o Conselho Muni-cipal de Assistência Social, a entidade deverá inscrever-se no Conselho Estadual do estado em que estiver localizada sua sede.
Empresas de comunicação: de acordo com o disposto nos arts. 116, II, e 122 e seguintes da Lei de Registros Públicos, o registro de jornais, ofi -cinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias deverá ser feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (no “Livro B”). De acordo com o art. 125 da Lei de Registros Públicos, considera--se clandestino o jornal, ou outra publicação periódica, não matriculado (registrado) nos termos do art. 122 ou de cuja matrícula não constem os nomes e as qualifi cações do diretor ou redator e do proprietário.
c) Outros locais: algumas pessoas jurídicas são registradas em ou-tros locais, como, por exemplo, as sociedades de advogados, que devem ser registradas exclusivamente na Ordem dos Advogados do Brasil, no Conselho Seccional em cuja base territorial tiverem sede, conforme dis-põe o art. 15, § 1º, do Estatuto da OAB.
4.4.4. Fim da personalidadeAssim como ocorre com as pessoas naturais, a extinção da pessoa
jurídica determina o fi m de sua personalidade jurídica. Deve ser lem-brado que a extinção nunca é instantânea, pois, seja qual for a hipótese, deverá ser feita sua liquidação, com a realização do ativo (créditos) e o pagamento do passivo (débitos). Encerrada a liquidação, poderá ser requerido o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica.
Como hipóteses de extinção, podemos citar o decurso do prazo de sua duração; a sua dissolução; a deliberação dos sócios; a falta de plu-ralidade dos sócios; uma determinação legal; um ato governamental; a dissolução judicial; a morte de sócio etc.
Com a extinção da pessoa jurídica, deve ser dado um destino aos bens remanescentes. Nas sociedades, os bens remanescentes vão para os sócios. Nas associações e nas fundações, os bens devem ser destinados, em regra, a outra instituição com fi ns semelhantes, como veremos nos respectivos tópicos mais à frente.
4.5 rePresentaÇÃo Da Pessoa JUríDiCa
A forma pela qual será representada a pessoa jurídica deve cons-tar do ato constitutivo no momento do registro. A representação é feita pelos administradores nomeados, nos limites dos poderes conferidos
VoCaBUlÁrio
decurso: esgotamento ou tér-mino (de um prazo).
Direito Civil
89
(Código Civil, art. 47). De acordo com o Enunciado 145 da III Jornada
de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o art. 47 não afasta a
aplicação da teoria da aparência”, nos casos de responsabilização do só-
cio por atos praticados em nome da pessoa jurídica.
Se a administração da pessoa jurídica for coletiva, as decisões serão
tomadas pela maioria dos votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo
dispuser de modo diverso. Podem ser anuladas no prazo decadencial de
3 (três) anos as decisões tomadas pela maioria em caso de violação do
estatuto ou lei, erro, dolo, simulação ou fraude. Se a administração da
pessoa jurídica vier a faltar, o juiz, a requerimento de qualquer interessa-
do, nomear-lhe-á administrador provisório (ad hoc).
4.6 resPonsaBiliDaDe Da Pessoa JUríDiCa
Por serem detentoras de personalidade jurídica própria, as pessoas
jurídicas de direito privado respondem com seu próprio patrimônio pe-
los danos que causarem a terceiros (responsabilidade extracontratual) e
pelas obrigações assumidas pelos seus administradores, nos limites esta-
belecidos em seus estatutos (responsabilidade contratual).
Os atos praticados por administradores que extrapolem os poderes
definidos no estatuto, bem como os atos praticados por falsos adminis-
tradores, em regra, não geram responsabilidade para as pessoas jurídi-
cas. Excepcionalmente, a pessoa jurídica poderá ser chamada a respon-
der por esses atos diante da aplicação da teoria da aparência (boa-fé sub-
jetiva). Exemplo: uma empresa pode ser obrigada a honrar um contrato
celebrado por um administrador que foi demitido se o fornecedor não
tinha conhecimento da demissão (agiu de boa-fé).
Nos termos do art. 53 do Código Civil, as pessoas jurídicas de direi-
to público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regres-
sivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa
ou dolo. Em outras palavras, as pessoas jurídicas de direito público in-
terno têm, em regra, responsabilidade objetiva pelos danos causados a
terceiros. Em situações excepcionais, relacionadas a conduta omissiva, a
responsabilidade será subjetiva.
Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade
civil também é, em princípio, do tipo objetiva, pela incidência dos arts.
932 e 933 do Código Civil de 2002, que determinam que, ainda que não
haja culpa de sua parte, o empregador responde pelos atos de seus em-
pregados, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Essa afirmação é reforçada por outros dispositivos, como o art. 927
do Código Civil, que estabelece responsabilidade objetiva quando a ati-
vidade desenvolvida implicar risco aos direitos de outrem (atividade de
Logo após a entrada em vi-gor do Código Civil de 2002, sur-giu divergência sobre qual seria o prazo de prescrição aplicável à pretensão indenizatória exerci-da em face do Estado: o prazo de 3 anos, previsto no art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002 ou o prazo de 5 anos, previsto no art. 1º do Decreto n. 20.910/32. Na ju-risprudência do Superior Tribunal de Justiça, prevaleceu o enten-dimento de que deve ser aplica-do o prazo previsto no referido decreto.
atenÇÃo
erin Brockovich – Uma Mulher de talento. (Di-reção de Ste-ven Soderber-gh, 2000) Narra a história verídi-ca da mulher
que lutou contra a empresa de energia Pacific Gas and Electric Company (PG&E), que contami-na o ambiente de uma comuni-dade de moradores próximos às suas instalações, causando-lhes câncer. Aborda a questão da res-ponsabilidade civil objetiva das pessoas jurídicas.
CineMateCa
90
risco – art. 927, parágrafo único). Também será objetiva pelos danos
causados pelos produtos postos em circulação (art. 931), bem como pe-
los acidentes de consumo na prestação de serviços e fornecimento de
produtos no mercado de consumo (Código de Defesa do Consumidor,
arts. 12 a 17).
4.7 Das DiVersas ClassiFiCaÇões Das Pessoas JUríDiCas
As pessoas jurídicas podem ser classifi cadas levando-se em consi-
deração a sua nacionalidade, a estrutura interna, ou a função a que se
submetem. Vejamos cada uma dessas classifi cações e as principais con-
sequências:
4.7.1.ClassificaçãoquantoàestruturainternaQuanto à estrutura interna, as pessoas jurídicas podem ser dividi-
das em corporações (universitas personarum) e fundações (universitas
bonorum). Corporações são pessoas jurídicas formadas pela reunião de
pessoas, podendo assumir a forma de sociedade ou de associação. Fun-dações são pessoas jurídicas formadas pela coletividade de bens. O estu-
do das sociedades, das associações e das fundações é realizado de forma
detalhada mais à frente nesta obra.
4.7.2.ClassificaçãoquantoàfunçãoClassifi cadas em atenção à função que desempenham, as pessoas
jurídicas podem ser divididas em pessoas jurídicas de direito públi-co e pessoas jurídicas de direito privado. Esta é a principal forma de
classifi cação das pessoas jurídicas e foi adotada nos arts. 40 a 44 do
Código Civil.
4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito públicoAs pessoas jurídicas de direito público são aquelas reguladas por
normas de direito público e estudadas pelo Direito Administrativo, po-
dendo ser divididas em pessoas jurídicas de direito público externo e
interno:
a) Pessoas jurídicas de direito público externo: de acordo com
o art. 42 do Código Civil, são consideradas pessoas jurídicas
de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as
pessoas regidas pelo direito internacional público (ONU,
OIT, OMC, FMI, OEA, UNESCO, INTERPOL, Santa Sé, Cruz
Vermelha, MERCOSUL, ALCA, União Europeia etc.).
b) Pessoas jurídicas de direito público interno: de acordo com o
art. 41 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito público
Sociedades de economia mista e empresas públicas são consideradas pessoas jurídicas de direito privado, em que pese inte-grarem a administração indireta, conforme art. 4º do Decreto-lei n. 200/67.
atenÇÃo
Direito Civil
91
interno: I – a União; II – os Estados, o Distrito Federal e os Ter-
ritórios; III – os Municípios; IV – as autarquias, inclusive as as-
sociações públicas (redação dada pela Lei n. 11.107, de 2005); e
V – as demais entidades de caráter público criadas por lei. Salvo
disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público,
a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no
que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas desse
Código.
Portanto, são consideradas pessoas jurídicas de direito público in-
terno:
UNIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL, TERRITÓRIOS E MU-
NICÍPIOS: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
compõem a administração direta, enquanto os Territórios Federais
são considerados entes da administração indireta.
AUTARQUIAS, INCLUSIVE AS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS: as
autarquias e as associações públicas compõem a administração in-
direta. Como exemplo de autarquias podemos citar: USP, INCRA,
INPI, INSS, IPHAN, CADE, as agências reguladoras (Anatel, Aneel,
Anvisa, ANP) e as agências executivas também (Lei n. 9.649/98).
DEMAIS ENTIDADES DE CARÁTER PÚBLICO CRIADAS POR
LEI: como exemplo, podemos citar os consórcios públicos forma-
dos por pessoas jurídicas de direito público interno que compõem
a administração indireta.
4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado As pessoas jurídicas de direito privado são aquelas reguladas por
normas de direito privado, tais como o Código Civil e a CLT – Consoli-
dação das Leis do Trabalho. Nos termos do art. 44 do Código Civil, são
pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades;
III – as fundações; IV – as organizações religiosas (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); V – os partidos políticos (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); e VI – as empresas individuais de responsabili-
dade limitada (Eireli).
De acordo com o Enunciado 144 da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “a relação das pessoas jurídicas de direito
privado estabelecida no art. 44, I a V, do Código Civil, não é exaustiva”.
E, segundo o Enunciado 142 da mesma Jornada, “os partidos políticos,
sindicatos e associações religiosas possuem natureza associativa, apli-
cando-lhes o Código Civil”.
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o fun-
cionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público
negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e neces-
sários ao seu funcionamento. Os partidos políticos serão organizados
e funcionarão conforme o disposto em lei específica (Lei n. 9.096/95).
92
Como não há dispositivos do Código Civil regulando os partidos
políticos e as entidades religiosas, não iremos aprofundar aqui o estudo
dessas pessoas jurídicas.
4.8 soCieDaDes
São pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pes-
soas (universitas personarum), que se organizam para desenvolver uma
atividade econômica com intuito lucrativo. Antigamente as sociedades
eram reguladas pelo Código Comercial de 1850. Com a introdução do
Código Civil de 2002 as obrigações civis e comerciais foram unifi cadas
em um mesmo diploma e a matéria passou a ser tratada em seus arts.
981 e seguintes.
No Código Comercial de 1850 as sociedades eram classifi cadas em
civis e comerciais. Essas expressões foram substituídas por sociedades
simples e empresárias. Embora não exista perfeita correspondência, po-
demos dizer que, em geral, as sociedades simples correspondem às civis,
e as sociedades empresárias correspondem às comerciais.
As sociedades simples são aquelas sem fi ns comerciais que visam
ao lucro mediante prestação de serviços relativos a determinada pro-
fi ssão ou serviços técnicos. Como exemplos podemos citar uma socie-
dade em escritório de advocacia, uma cooperativa, uma empresa de
consultoria etc.
As sociedades empresárias são aquelas com fi ns comerciais. Visam
ao lucro mediante o exercício de atividade econômica organizada para
a produção ou circulação de bens ou serviços. Para ser empresária, exi-
gem-se o requisito material (atividade empresarial) e o requisito formal
(registro na Junta Comercial), conforme previsão dos arts. 982 e 967 do
Código Civil. Independentemente de seu objeto, considera-se empresá-
ria a sociedade por ações; e simples a cooperativa.
Conforme determinação dos arts. 1.039 a 1.092 do Código Civil
de 2002, as sociedades empresárias podem assumir diversas formas:
sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, socie-
dade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade anônima
ou por ações.
Sociedade entre cônjuges: os cônjuges podem contratar sociedade,
entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da
comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória. Indepen-
dentemente do regime de bens, o empresário casado pode, sem necessi-
dade de outorga conjugal, alienar os imóveis que integrem o patrimônio
da empresa ou gravá-los de ônus real (Código Civil, arts. 977 e 978).
Serão arquivados e averbados no Registro Civil e no Registro Pú-
blico de Empresas Mercantis os pactos e declarações antenupciais do
empresário, o título de doação, herança, ou legado, de bens clausulados
de incomunicabilidade ou inalienabilidade.
VoCaBUlÁrio
cláusulas de incomunicabilida-de e inalienabilidade: regras, em geral previstas em um con-trato, que determinam que um bem não pode ser objeto de comunhão ou compartilha-mento (incomunicável) nem pode ser alienado, isto é, ter sua propriedade transferida a outra pessoal (inalienável).
Direito Civil
93
4.9 eMPresa inDiViDUal De resPonsaBiliDaDe liMitaDa
A Lei n. 12.441/2011 acrescentou mais uma modalidade de pessoa
jurídica de direito privado ao rol do art. 44 do Código Civil: a empresa
individual de responsabilidade limitada. Suas regras estão estabelecidas
no art. 980-A.
A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída
por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamen-
te integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário
mínimo vigente no País. O nome empresarial deverá ser formado pela
inclusão da expressão “Eireli” após a firma ou a denominação social da
empresa individual de responsabilidade limitada. A pessoa natural que
constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente po-
derá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá
resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num
único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concen-
tração. Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade
limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a
remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou
de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa
jurídica, vinculados à atividade profissional.
Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no
que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
4.10 assoCiaÇões
As associações são pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pessoas (universitas personarum) que se organizam para desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não tenha intuito lucrativo. Podem, portanto, desenvolver atividade educa-cional, pia (isto é, filantrópica), religiosa, esportiva, científica, literária, recreativa, política etc. (exemplos: sindicatos, grêmios estudantis, escolas de samba, clubes esportivos). Diferenciam-se das fundações por serem formadas pela coletividade de pessoas, e não de bens, e diferenciam-se das sociedades por não terem finalidade lucrativa.
Entretanto, a ausência de intuito lucrativo não as impede de ter pa-trimônio e desenvolver atividades visando arrecadar valores para que possam atingir seus fins (p. ex.: uma associação filantrópica pode reali-zar bingos; uma associação educacional pode cobrar mensalidades etc.). Desta forma, o lucro pode ser um meio, mas nunca o fim de uma asso-ciação, sendo absolutamente vedada (proibida) qualquer repartição de receita (valores recebidos) entre os associados.
Microempreendedor Indivi-dual (MEI) é a pessoa que traba-lha por conta própria e que se legaliza como pequeno empresá-rio. Para ser um microempreende-dor individual, é necessário faturar no máximo até R$ 60.000,00 por ano e não ter participação em outra empresa como sócio ou ti-tular. O MEI também pode ter um empregado contratado que re-ceba o salário mínimo ou o piso da categoria. A Lei Complemen-tar nº 128, de 19/12/2008, criou condições especiais para que o trabalhador conhecido como in-formal possa se tornar um MEI le-galizado. Entre as vantagens ofe-recidas por essa lei está o registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), o que facilita a abertura de conta bancária, o pe-dido de empréstimos e a emissão de notas fiscais. Além disso, o MEI será enquadrado no Simples Na-cional e ficará isento dos tributos federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL). Assim, pagará apenas o valor fixo mensal de R$ 40,40 (comércio ou indústria), R$ 44,40 (prestação de serviços) ou R$ 45,40 (comércio e serviços), que será destinado à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS. Essas quantias serão atualizadas anual-mente, de acordo com o salário mínimo. Com essas contribuições, o Microempreendedor Individual tem acesso a benefícios como auxílio-maternidade, auxílio-doen-ça, aposentadoria, entre outros. Caso o empreendedor não tenha a intenção de possuir sócios e sua atividade não se enquadre nos requisitos legais do MEI, poderá ele optar pela abertura da EIRELI (Fonte: http://www.portaldoem-preendedor.gov.br/mei-microem-preendedor-individual, acesso em 7-7-2015).
CUriosiDaDe
94
4.10.1. Constituição de uma associaçãoEm capítulo anterior vimos que a associação somente adquire per-
sonalidade jurídica por meio do registro do seu ato constitutivo (estatu-
to) no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. A criação de uma
associação não depende de prévia autorização do Poder Executivo por
ser um direito fundamental da pessoa humana (princípio da liberdade
de associação – Constituição Federal, art. 5º, XVII).
O estatuto de uma associação deve ser feito por escrito (mediante
instrumento público ou particular) e, de acordo com o art. 54 do Có-
digo Civil, deverá indicar, sob pena de nulidade: I – a denominação, os
fi ns e a sede da associação; II – os requisitos para a admissão, demissão
e exclusão dos associados; III – os direitos e deveres dos associados; IV –
as fontes de recursos para sua manutenção; V – o modo de constituição
e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a
alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e VII – a forma
de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
4.10.2. Composição da associaçãoA análise da estrutura interna de uma associação revela a existência
de três órgãos em sua composição: a assembleia geral, os órgãos delibe-
rativos e os associados. De acordo com a jurisprudência do STJ, as as-
sociações são “dotadas de autonomia de organização e funcionamento”.
Vejamos, então, as principais características de cada um dos órgãos que
compõem a associação:
4.10.2.1. AssociadosOs associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá ins-
tituir categorias com vantagens especiais (Código Civil, art. 55), seja
em razão de serviços prestados, tempo de associação, mérito, ou qual-
quer outro fundamento que não constitua forma de preconceito em ra-
zão de raça, sexo, orientação sexual etc. É em virtude dessa possibilidade
de distinção de categorias entre os associados que surgem expressões
como: sócio-fundador, sócio-remido, sócio-proprietário, sócio-bene-
mérito etc. O estatuto não poderá estabelecer direitos e obrigações recíprocos entre os associados (art. 53, parágrafo único), mas poderá
estabelecer outras obrigações, como o pagamento de uma quantia para
ingresso na associação, o pagamento de contribuições periódicas ou o
cumprimento de determinadas atividades.
Do princípio da liberdade de associação extrai-se que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”
(Constituição Federal, art. 5º, XX). Isso não signifi ca, contudo, que o
associado não possa ser excluído da associação. De acordo com o art. 57
do Código Civil, a exclusão do associado só é admissível havendo justa
causa, assim reconhecida em procedimento que assegure a este direito
de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.
VoCaBUlÁrio
órgãos deliberativos: grupos ou conselhos que examinam e discutem questões dentro de uma determinada instituição, tomando decisões que passam a ser obrigatórias sobre os as-suntos tratados.
Direito Civil
95
Deve ser lembrado que a qualidade de associado é intransmissível (gratuita ou onerosamente), salvo disposição em sentido contrário no
estatuto (Código Civil, art. 56). Se o associado for titular de quota ou
fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não
importará, por si só, na atribuição da qualidade de associado ao ad-
quirente ou ao herdeiro, salvo orientação contrária do estatuto.
Por fim, o art. 58 do Código Civil assegura a invulnerabilidade dos direitos individuais dos associados ao estabelecer que nenhum associa-
do poderá ser impedido de exercer direito (p. ex.: direito à presidência)
ou função que lhes tenham sido legitimamente conferidos, a não ser nos
casos e pela forma previstos na lei ou no estatuto.
4.10.2.2. DiretoriaCompete à diretoria o dever de regular o funcionamento da asso-
ciação e de cobrar o cumprimento das normas previstas no estatuto,
podendo impor sanções disciplinares, como multas, suspensão ou até
mesmo a expulsão dos associados que violarem o estatuto, sempre res-
peitando o direito de defesa. Os membros que irão compor a diretoria
devem ser eleitos de acordo com as regras estipuladas no estatuto. Com a
nomeação, os administradores (diretores) passam a ser mandatários da
associação, podendo representá-la judicial ou extrajudicialmente.
4.10.2.3. Assembleia geralA assembleia geral é considerada o órgão máximo dentro da associa-
ção, podendo, dentre outras deliberações, de forma privativa, destituir os administradores e promover a alteração do estatuto (Código Civil,
art. 59). Qualquer alteração do estatuto sem determinação da assembleia
geral é considerada nula. A convocação dos órgãos deliberativos será
feita na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados
o direito de promovê-la (art. 60). A lei não exige requisitos específicos
para as deliberações em geral, mas para a destituição de administradores
ou alteração estatutária a assembleia deverá ter sido convocada especial-
mente para esse fim.
Em atenção ao art. 48 do Código Civil, as deliberações assembleares
são tomadas pela maioria simples dos presentes, salvo se o ato consti-
tutivo dispuser de modo diverso. O estatuto poderá, desta forma, de-
terminar quorum especial para certas deliberações, como, por exemplo,
a de alteração do estatuto. Aprovada a deliberação, todos os associados
deverão a ela se submeter, inclusive os dissidentes, restando-lhes, apenas,
o direito de retirar-se da entidade.
4.10.3. Dissolução da associaçãoEm caso de dissolução de uma associação, o caput do art. 61 do
Código Civil determina que os bens remanescentes do seu patrimônio
líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais
VoCaBUlÁrio
invulnerabilidade: impossibili-dade de ser atacado, blinda-gem, proteção contra possíveis ameaças ou danos a direitos.
sanções disciplinares: penas (“castigos”) aplicadas para correção de comportamento, previstas previamente em leis, estatutos ou contratos, buscan-do evitar que atitudes indeseja-das ocorram ou se repitam (ex.: multa, suspensão etc.).
mandatário: representante com poderes para agir em nome de alguém.
quorum: número mínimo de pessoas presentes exigido por uma Constituição, lei, estatuto ou regulamento para que as decisões por elas tomadas se-jam válidas (termo latino).
96
referidas no parágrafo único do art. 56, serão destinados à entidade de
fi ns não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por delibe-
ração dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fi ns
idênticos ou semelhantes.
Por cláusula do estatuto ou, no seu silêncio, por deliberação dos
associados, podem estes, antes da destinação do remanescente referi-
da nesse artigo, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as
contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação (Códi-
go Civil, art. 61, § 1º).
Essas quotas ou frações ideais a que se refere o caput do art. 61
dizem respeito ao valor eventualmente pago para aquisição do título,
como é comum em clubes esportivos, e correspondem a uma fração do
patrimônio da associação. Nada mais justo do que recuperar o capital
eventualmente investido na aquisição das cotas e nas contribuições pres-
tadas. Mas deve ser destacado que os associados não podem retirar ou-
tros valores, como, por exemplo, aqueles obtidos por doações de outras
pessoas ou arrecadados em campanhas.
Não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no
Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições in-
dicadas nesse artigo, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à
Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União.
4.11 FUnDaÇões
As fundações são pessoas jurídicas de direito privado formadas por
um patrimônio, uma coletividade de bens (universitas bonorum) para
desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não
tenha intuito lucrativo. Diferenciam-se das associações por serem for-
madas pela coletividade de bens, e não de pessoas, mas, assim como as
associações, não possuem fi nalidade lucrativa.
Outra característica marcante das fundações é a fi scalização realiza-
da pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelas respectivas curadorias das
fundações. Ao contrário das sociedades e das associações, as fundações
não possuem sócios nem associados para fi scalizar o cumprimento
de suas normas e de seus fi ns sociais, justifi cando a legitimidade do
Ministério Público.
As fundações foram concebidas originalmente como pessoas
jurídicas de direito privado, mas na atualidade o Estado também pode
constituir fundações. As fundações privadas são aquelas constituídas
por particulares (pessoas naturais ou jurídicas) e regidas pelos arts. 62
a 69 do Código Civil. As fundações públicas são aquelas instituídas pelo
Estado (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) e são reguladas
por normas próprias de direito administrativo. Contudo, iremos aqui
analisar apenas as fundações privadas, pois são as únicas afeitas ao Di-
reito Civil.
Direito Civil
97
4.11.1. Constituição das fundaçõesPara que uma fundação possa ser regularmente constituída, é
necessário percorrer quatro etapas. Vejamos:
1ª ETAPA – Manifestação de vontade do instituidor: para criar
uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamen-
to, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina,
e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la (art. 62, parágrafo
único). Da norma extrai-se que a fundação pode ser instituída mediante
manifestação de vontade em vida (inter vivos) por escritura pública ou
mediante declaração de última vontade (causa mortis) por testamento
de qualquer espécie (público, cerrado ou particular). Essa manifestação
de vontade possui dois requisitos essenciais (dotação de bens e indicação
da finalidade) e um dispensável (a forma de administração). Vejamos,
então, os requisitos essenciais:
a) Finalidade: as fundações têm como finalidade um bem social,
de interesse da própria sociedade, não podendo ter fins lucrati-
vos. Compete ao instituidor definir a finalidade a ser cumprida
e, uma vez determinada, esta é imutável. Nos termos do art. 62,
parágrafo único, “a fundação somente poderá constituir-se para
fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
O uso do termo “somente” conduz a uma interpretação de que o rol
presente no dispositivo é taxativo (numerus clausus), contudo o enten-
dimento majoritário na doutrina é no sentido de que ele é meramente
exemplificativo (numerus apertus). Nesse sentido, Maria Helena Diniz
defende que a finalidade da fundação deve apenas ser nobre, isto é, lícita,
social (interesse público) e não lucrativa.
Corroboram esse entendimento: o Enunciado 8 da I Jornada de Di-
reito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a constituição de fundação
para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente
está compreendida no CC, art. 62, parágrafo único”; e o Enunciado 9
da mesma Jornada: “o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado de
modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos”.
b) Dotação de bens livres e suficientes: a escritura pública ou o
testamento devem especificar os bens livres e suficientes que
irão constituir a fundação: podem ser móveis, imóveis, fun-
gíveis, infungíveis, créditos etc. Bens livres são aqueles sobre
os quais não se apresenta qualquer constrição jurídica (p. ex.:
penhora, arresto, hipoteca etc.). Também devem ser observa-
das as regras que protegem a legítima dos herdeiros necessários
(descendentes, ascendentes e cônjuges). Bens suficientes são os
exigidos para que possa ser cumprida a finalidade da fundação,
pois a ideia é de que esses bens possam produzir renda mensal
suficiente para que sejam alcançados os objetivos da fundação.
Se os bens forem insuficientes para constituir a fundação, deverão
ser incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou
98
semelhante, salvo se o instituidor dispuser de forma diversa. Constituída
a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a
transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dota-
dos, e, se não o fi zer, serão registrados, em nome dela, por mandado
judicial (Código Civil, art. 64).
A norma supracitada estabelece que nas instituições inter vivos o
instituidor não poderá revogar a sua doação, pois os bens serão adjudi-
cados compulsoriamente à fundação que está sendo instituída. Se ins-
tituída mortis causa (por testamento), a manifestação de vontade pode-
rá ser revogada. Não haverá a compulsoriedade do registro, pois nada
impede que o testamento (cerrado, público ou particular) venha a ser
revogado por qualquer motivo, ocasionando assim a revogabilidade dos
bens doados para a constituição da fundação.
2ª ETAPA – Elaboração do estatuto: a celebração do estatuto
pode ser direta ou própria, quando feita pelo próprio instituidor, ou
fi duciária, quando o instituidor destina terceira pessoa de confi ança,
para que esta realize a elaboração do estatuto. Nos termos do art. 65,
caput, do Código Civil, “aqueles a quem o instituidor cometer a apli-
cação do patrimônio, em tendo ciência do encargo, formularão logo,
de acordo com as suas bases (art. 62), o estatuto da fundação projetada,
submetendo-o, em seguida, à aprovação da autoridade competente, com
recurso ao juiz”.
Caso o estatuto não venha a ser elaborado no prazo estabelecido,
ou quando o instituidor não designar pessoa de sua confi ança para rea-
lizá-lo, transcorrido 180 (cento e oitenta) dias competirá ao Ministério
Público realizar a sua elaboração.
3ª ETAPA – Aprovação do estatuto: para que o estatuto da funda-
ção possa ser registrado, é necessário que seja devidamente aprovado
pelo Ministério Público estadual (ou distrital) da localidade em que será
registrado. O Ministério Público, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá
adotar uma das seguintes medidas: a) aprovar o estatuto, dando a devi-
da autorização para seu registro; b) indicar as modifi cações que com-
preender necessárias; ou c) denegar a aprovação.
Se o interessado na instituição da fundação entender como inca-
bíveis as modifi cações propostas ou a denegação da aprovação, poderá
solicitar o suprimento do magistrado. Devemos destacar que o juiz tam-
bém tem poder para requerer as alterações ou para diretamente alterar
as cláusulas do estatuto, requerendo modifi cações. Da decisão de proce-
dência ou improcedência caberá recurso de apelação. Quando o estatuto
é elaborado pelo Ministério Público também deverá ser submetido à
homologação judicial.
4ª ETAPA – Registro: o registro da fundação deverá ser realizado
no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. É considerado como
ato essencial, pois somente com o registro é que a fundação adquirirá a
personalidade, passando a ter existência legal (arts. 114 a 121 da Lei de
Registros Públicos).
VoCaBUlÁrio
mandado judicial: ordem judi-cial expedida por meio de um despacho em processo, para que alguém faça, entregue ou deixe de fazer algo.
compulsoriedade: obrigatorie-dade.
denegação: recusa, negação, indeferimento.
homologação judicial: valida-ção judicial, aprovação por um juiz que torna válido ou ofi -cial determinado ato ou docu-mento.
Direito Civil
99
4.11.2. alteração do estatuto da fundaçãoSe for necessária qualquer alteração nas disposições presentes no
estatuto da fundação, será essencial que este passe por aprovação do
Ministério Público. De acordo com o art. 67 do Código Civil, para que
se possa alterar o estatuto da fundação, é mister que a reforma: I – seja
deliberada por dois terços dos competentes para gerir e representar a
fundação; II – não contrarie ou desvirtue o fim desta; III – seja aprovada
pelo órgão do Ministério Público, e, caso este a denegue, poderá o juiz
supri-la, a requerimento do interessado.
Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime,
os administradores da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do
Ministério Público, requererão que se dê ciência à minoria vencida para
impugná-la, se quiser, em dez dias. As alterações não podem abranger a
finalidade da fundação, pois esta é imutável.
Em princípio, também não é possível a alienação dos bens que com-
põem o patrimônio da fundação. Entretanto, essa inalienabilidade pode
ser afastada mediante autorização judicial desde que seja comprovada a
necessidade da venda dos bens. O produto obtido com a alienação deve
ser aplicado na aquisição de outros bens necessários ao funcionamento
da fundação. A alienação, sem autorização judicial, dos bens que com-
põem a fundação deve ser considerada nula.
4.11.3. Fiscalização Como já mencionado anteriormente, compete ao Ministério Pú-
blico a fiscalização das fundações. Velará pelas fundações o Ministério
Público do Estado onde situadas. Se estenderem a atividade por mais de
um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao respectivo Ministério
Público.
De acordo com o art. 66, § 1º, do Código Civil, se as fundações
funcionarem no Distrito Federal, ou em Território, caberá o encargo
ao Ministério Público Federal. Esse dispositivo foi declarado inconsti-
tucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 2.794-8), pois a com-
petência é do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, con-
forme prescreve a Constituição Federal.
Se a fundação for de natureza previdenciária, sua fiscalização não
compete ao Ministério Público.
Em se tratando de fundação pública (aquela constituída pelo Esta-
do com personalidade jurídica de direito público), deverá ser fiscalizada
pelo Tribunal de Contas, conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição
Federal. Mas tal fiscalização não afasta a competência do Ministério Pú-
blico para investigar eventuais ilícitos. Se a fundação pública for instituí-
da pela União, a competência será do Ministério Público Federal e, se for
instituída por Estado, Município ou pelo Distrito Federal, a competên-
cia será do respectivo Ministério Público Estadual ou pelo Ministério
Público do Distrito Federal, na última hipótese.
100
Durante a III Jornada de Direito Civil do CJF foi aprovado o Enun-
ciado 147 dispondo que “a expressão ‘por mais de um Estado’, contida
no § 2º do art. 66, não exclui o Distrito Federal e os Territórios. A atri-
buição de velar pelas fundações, prevista no art. 66 e seus parágrafos,
ao Ministério Público local – isto é, dos Estados ou do Distrito Federal,
onde situadas – não exclui a necessidade de fi scalização de tais pessoas
jurídicas pelo Ministério Público Federal, quando se tratar de fundações
instituídas ou mantidas pela União, autarquia ou empresa pública fede-
ral, ou que destas recebam verbas, nos termos da Constituição, da Lei
Complementar n. 75/93 e da Lei de Improbidade”.
4.11.4. extinção da fundaçãoTornando-se ilícita, impossível ou inútil a fi nalidade a que visa a
fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério
Público, ou qualquer interessado, promoverá sua extinção, incorporan-
do-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato consti-
tutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se
proponha a fi m igual ou semelhante.
A fi nalidade da fundação se torna ilícita quando o seu objeto passa
a ser contrário ao ordenamento jurídico, afrontando a lei, a moral, os
bons costumes ou a ordem pública. A impossibilidade é verifi cada quan-
do a fundação não possuir mais meios para sua manutenção (ex.: falta
de recursos fi nanceiros, falta de voluntários, falta de profi ssionais espe-
cializados para tratamento de pessoas portadoras de defi ciência física
etc.). A inutilidade é normalmente verifi cada quando o objetivo preten-dido com a constituição da fundação já foi alcançado (p. ex.: erradicação de uma determinada doença).
A extinção da fundação pelo decurso do tempo é hipótese excep-cional, pois são raras as fundações em que o seu instituidor estabelece prazo de duração. Se este não foi estabelecido, não poderá ser presumi-do, e a fundação somente poderá ser extinta se se tornar ilícita, impos-sível ou inútil a fi nalidade a que visava.
A extinção da fundação por qualquer um dos motivos elencados poderá ser solicitada por qualquer interessado ou pelo representante do Ministério Público.
4.12 naCionaliDaDe
A ideia de nacionalidade da pessoa jurídica leva em consideração a ordem jurídica a que se submetem, não importando a nacionalidade dos membros que a compõem ou a origem do controle fi nanceiro. De acor-do com o art. 11 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “as organizações destinadas a fi ns de interesse coletivo, como as socie-dades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”. Assim, classifi cadas quanto à nacionalidade, as pessoas jurídicas podem
Direito Civil
101
ser divididas em nacionais e estrangeiras. Pessoas jurídicas nacionais
são aquelas constituídas à luz do ordenamento jurídico brasileiro e que
mantêm aqui a sede de sua administração (Código Civil, art. 1.126). Não
basta, portanto, que a pessoa jurídica tenha sido constituída no Brasil
(teoria da constituição), exigindo-se que mantenha aqui a sua sede. Por
outro lado, as pessoas jurídicas estrangeiras são aquelas constituídas
fora do Brasil ou que, mesmo constituídas no Brasil, mantêm a sua sede
fora do País. Independentemente de qual seja o seu objeto (isto é, seu
ramo de atividade), as sociedades estrangeiras somente poderão fun-
cionar no País com autorização do Poder Executivo (Código Civil, art.
1.134).
4.13 DoMiCílio Da Pessoa JUríDiCa
O domicílio da pessoa natural é, em regra, determinado pela
residência com o animus (ou seja, sua vontade) de permanência. Como
a pessoa jurídica não tem residência, seu domicílio é determinado, em
regra, pela sua sede ou estabelecimento, por ser o local onde costuma
celebrar seus negócios jurídicos. Com base no art. 75 do Código Civil
podem ser extraídas as seguintes regras sobre o domicílio das pessoas
jurídicas:
4.13.1. Pessoas jurídicas de direito públicoAs pessoas jurídicas de direito público interno que compõem a
administração direta têm como domicílio a sede de seu governo: o
domicílio da União é o Distrito Federal; o domicílio dos Estados e Ter-
ritórios são as respectivas capitais; e o domicílio dos Municípios é o
lugar onde funcionar a administração municipal.
O Código Civil estabelece apenas regras sobre domicílio, e não so-
bre o foro competente para a propositura de ações. Exemplificando: o
Código Civil de 2002 estabelece que o domicílio da União é o Distrito
Federal, mas a União deve propor ações no foro do domicílio da outra
parte. Quando a União for ré, a ação poderá ser proposta no foro do
domicílio do autor, no local dos fatos, no local onde situa do o bem ou
Distrito Federal (Constituição Federal, art. 109, §§ 1º e 2º).
Quanto às pessoas jurídicas de direito público que compõem a ad-ministração indireta (as autarquias), o entendimento doutrinário é no
sentido de que o seu domicílio é determinado pelo ente a que estão su-
bordinadas (União, Estado, Distrito Federal ou Município).
4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privadoApós dispor sobre o domicílio das pessoas jurídicas de direito pú-
blico, o caput do art. 75 do Código Civil determina que o domicílio das
demais pessoas jurídicas é o lugar onde funcionarem as respectivas di-
102
retorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu
estatuto ou atos constitutivos (domicílio de eleição). De acordo com a
Súmula 363/STF, “a pessoa jurídica de direito privado pode ser demanda-
da no domicílio da agência ou estabelecimento em que se praticou o ato”.
Se a pessoa jurídica tiver diversos estabelecimentos em lugares dife-
rentes (p. ex.: fi liais), cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados, facilitando a vida das pessoas que litigarem com
as pessoas jurídicas. Como essa pluralidade de domicílio é estabelecida
em favor da pessoa que precisar litigar contra a pessoa jurídica, admite-se
que o demandante opte pelo domicílio da sede.
Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-
-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações con-
traídas por suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a
que ela corresponder (Código Civil, art. 75, § 2º). O objetivo da norma
é a proteção das pessoas que litigarem contra as pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, que não precisarão ingressar com ações
em outros países.
4.14 DesConsiDeraÇÃo Da PersonaliDaDe JUríDiCa
A responsabilidade civil das pessoas jurídicas incide diretamente sobre o seu próprio patrimônio. Entretanto, em determinadas situações a responsabilidade pode ser ampliada ao patrimônio dos seus sócios ou administradores pelo instituto da desconsideração da personalidade ju-rídica, como veremos neste tópico.
Vimos que na atualidade é indiscutível que as pessoas jurídicas possuem personalidade jurídica própria. Isso signifi ca que as pessoas jurídicas têm aptidão para serem titulares de direitos e deveres distintos dos direitos e deveres de seus sócios ou administradores. Como a soma de direitos e deveres de uma pessoa é denominada patrimônio, podemos afi rmar que as pessoas jurídicas possuem um patrimônio distinto dos membros que as compõem.
Essa distinção estava prevista no art. 20 do Código Civil de 1916, que estabelecia o denominado princípio da separação patrimonial, consagrado na parêmia societatis distat a singulis. Embora não exista dispositivo semelhante no Código Civil de 2002, entende-se que a regra continua existindo de forma implícita no nosso ordenamento jurídico, pois negar a existência dessa regra signifi caria negar a própria existência da pessoa jurídica.
Excepcionalmente, admite-se que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica para que os sócios ou administradores de uma pessoa jurídica sejam responsabilizados pelas obrigações desta.
A desconsideração da personalidade jurídica pode ser defi nida
como a simples medida processual em que o juiz determina a inclusão
Direito Civil
103
dos sócios ou administradores de uma pessoa jurídica no polo passivo
da demanda para que respondam com seu patrimônio particular pelas
dívidas dela.
Devemos alertar que a desconsideração não determina a extinção
da pessoa jurídica, nem mesmo sua liquidação, dissolução ou anulação
dos atos constitutivos. Seus efeitos são restritos ao plano processual e
não afetam a existência ou o funcionamento da pessoa jurídica. Tecnica-
mente, a desconsideração não afeta em nada a pessoa jurídica, mas tão
só seus sócios ou administradores.
A desconsideração da personalidade não pode ser confundida com
a despersonalização, pois esta importa na dissolução da pessoa jurídica
ou na cassação da autorização para o seu funcionamento.
Direito CiVil. liMites À aPliCaBiliDaDe Do art. 50 Do CC.o encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são
causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC. Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social – adotada pelo CC –, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucio-nais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo CC, a aplicação do instituto em comento. Especificamente em relação à hipótese a que se refere o art. 50 do CC, tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se restringir a aplicação desse disposto legal a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instru-mento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial. Dessa forma, a ausência de intuito fraudulento afasta o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, ao menos quando se tem o CC como o microssistema legislativo norteador do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como causa bastante para a aplicação do disregard doctrine. Ressalte-se que não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial. Assim é que o enunciado 146, da III Jornada de Direito Civil, orienta o intérprete a adotar exegese restritiva no exame do artigo 50 do CC, haja vista que o instituto da desconsideração, embora não determine a despersonalização da sociedade – visto que aplicável a certo ou determinado negócio e que impõe apenas a ineficácia da pessoa jurídica frente ao lesado –, constitui restrição ao princípio da autonomia patrimonial. Ade-mais, evidenciando a interpretação restritiva que se deve dar ao dispositivo em exame, a IV Jornada de Direito Civil firmou o Enunciado 282, que expressamente afasta o encerramento irregular da pessoa jurídica como causa para desconsideração de sua personalidade: "O encerramento irregular das ati-vidades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica". Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da atividade econômica. Precedentes citados: AgRg no REsp 762.555-SC, Quarta Turma, DJe 25/10/2012; e AgRg no REsp 1.173.067/RS, Terceira Turma, DJe 19/6/2012. eresp 1.306.553-sC, rel. Min. Maria isabel Gallotti, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014.
JUrisPrUDÊnCia
104
Nos termos do art. 50 do Código Civil, “em caso de abuso da per-
sonalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou pela
confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou
do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Além da tradicional desconsideração da personalidade jurídica, a
doutrina e a jurisprudência apontam a possibilidade da desconsidera-ção inversa da personalidade jurídica, consistente na responsabilização
da pessoa jurídica pelas dívidas pessoais de seus sócios ou administra-
dores. Nesse sentido, o Enunciado 283 do CJF aponta que “é cabível a
desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para
alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou
desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.
4.14.1. teorias da desconsideração da personalidade jurídica
A primeira lei brasileira a consagrar o instituto da desconsideração
da personalidade jurídica foi o Código Tributário Nacional, que em seu
art. 135 permitia a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou
representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos cor-
respondentes às obrigações tributárias. Posteriormente, também trou-
xeram previsões do instituto o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.
8.078/90), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 9.605/98)
e o Código Civil em vigor.
Mas antes da previsão legal a desconsideração da personalidade já
era aplicada por nossos Tribunais pela construção de diversas teorias.
Aliás, o termo “teoria” refere-se justamente a uma construção doutri-
nária. A partir do momento em que a lei consagra essa construção, po-
demos nos referir simplesmente a “instituto”. Não obstante, o estudo
das teorias da desconsideração, também conhecidas como teorias da penetração ou disregard doctrine, auxilia a compreensão do instituto
e da ratio legis.
a) Teoria Maior da Desconsideração: é aquela que exige um mo-
tivo para que ocorra a desconsideração da personalidade, não
bastando a simples inexistência ou insufi ciência de bens da pes-
soa jurídica executada. A teoria maior se subdivide em subjetiva
e objetiva:
Teoria Maior Subjetiva: o motivo para que seja deferida a descon-
sideração repousa na conduta dos sócios ou administradores. Como
exemplo de fatos atribuíveis a estes, podem ser citados a fraude e o abuso
de direito. Essa teoria é defendida em nosso país por Rubens Requião.
Teoria Maior Objetiva: para que ocorra a desconsideração, basta o
desvio de função (disfunção), caracterizado quando ocorre o desvio de
fi nalidade ou a confusão patrimonial entre controlador (sócio ou admi-
nistrador) e controlado (pessoa jurídica). No direito americano, fala-se
Direito Civil
105
em comingling of funds (= promiscuidade de fundos). Essa teoria é de-
fendida em nosso país por Fábio Konder Comparato, que foi o redator
do art. 50 do Código Civil.
b) Teoria Menor da Desconsideração: é aquela que não exige mo-
tivos para que seja decretada a desconsideração, bastando a ine-
xistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada.
A teoria menor da desconsideração está presente no § 5º do art.
28 do Código de Defesa do Consumidor: “Também poderá ser
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores”.
Sobre a desconsideração da personalidade jurídica existem inte-ressantes Enunciados do Conselho da Justiça Federal, além daqueles já analisados acima. Vejamos:
enunciado 7/CJF: só se aplica a desconsideração da personalida-de jurídica quando houver a práti-ca de ato irregular e, limitadamen-te, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.
enunciado 51/CJF: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na cons-trução jurídica sobre o tema.
enunciado 146/CJF: nas rela-ções civis, interpretam-se restritiva-mente os parâmetros de desconsi-deração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de fina-lidade social ou confusão patrimo-nial). (Este enunciado não prejudi-ca o Enunciado n. 7.)
enunciado 281/CJF: a aplica-ção da teoria da desconsideração, descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de in-solvência da pessoa jurídica.
enunciado 282/CJF: o encerra-mento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso de perso-nalidade jurídica.
enunciado 284/CJF: as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômi-cos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica.
enunciado 285/CJF: a teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor.
enunciado 406/CJF: a descon-sideração da personalidade jurídi-ca alcança os grupos de sociedade quando presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limi-te transferido entre as sociedades.
atenÇÃo
106
os Bens5
108
5.1 ConCeito
Bens são todos os objetos materiais e imateriais existentes na na-
tureza, que proporcionam uma utilidade às pessoas. O estudo dos bens
é importante, pois são considerados objetos de direitos nas relações
jurídicas, cujos titulares são as pessoas (sujeitos de direitos). A matéria
tem implicações no Direito Civil, Penal, Administrativo, Tributário e em
vários outros ramos do ordenamento jurídico.
Embora toda relação jurídica subjetiva exija um objeto, nem sem-
pre este será algo material (p. ex.: um livro). Também podem ser consi-
derados objeto de relações jurídicas os direitos (direito autoral, direito
de crédito etc.) e as obrigações (de dar, de fazer, de não fazer).
5.1.1. Bens e coisas: distinçãoExiste forte divergência doutrinária sobre a defi nição de bens
e coisas. Como são infi nitas as posições doutrinárias sobre o tema,
procuramos reproduzir abaixo quatro correntes consideradas princi-
pais. Vejamos:
1ª Corrente: defende que coisas são todos os objetos existentes na
natureza, com exceção das pessoas. Ao passo que bens são apenas aque-
las coisas que têm valor econômico e que são suscetíveis de apropriação
(animais, livros, automóveis etc.). Em síntese, defende que coisa é o gê-
nero do qual bem é uma espécie. Esta é a posição de Maria Helena Diniz,
Agostinho Alvim, Silvio Rodrigues e Francisco Amaral.
2ª Corrente: aponta exatamente o oposto da primeira corrente ao
defender que coisas são os objetos materiais suscetíveis de valoração
econômica. Já os bens têm acepção mais ampla, abrangendo os objetos
dotados ou não de conteúdo patrimonial. Para essa corrente, bem seria
o gênero; e coisa, a espécie. Esta é a posição de Orlando Gomes.
3ª Corrente: bens podem ser considerados em sentido amplo ou
estrito. Amplo ou genérico, o termo bens representa tudo aquilo que
pode ser objeto da relação jurídica, sem distinção da materialidade ou
da patrimonialidade. Em sentido estrito, são os imateriais (aqueles que
não podem ser tocados – p. ex.: o direito de crédito) e as coisas (os mate-
riais – aqueles que podem ser tocados – p. ex.: um livro). Esta é a posição
de Caio Mário da Silva Pereira.
4ª Corrente: a distinção tem por base o conteúdo jurídico: bens
jurídicos são todos os bens da vida submetidos à tutela jurídica. Ao pas-
so que as coisas, em sua acepção comum, representam o elemento ma-
terial do conceito jurídico de bem (noção pré-jurídica). Esta é a posição
de Gustavo Tepedino.
Com relação à divergência doutrinária exposta, entendemos que a
posição mais adequada é a esposada na primeira corrente, que, a propó-
sito, é majoritária. Contudo, no âmbito legal, é de notar que o legislador
silvio ro-drigues (1917-2004), advogado e professor pau-lista, cuja obra completa sobre Direito Civil con-sistiu num marco
para o ensino jurídico no Brasil. Com ideias liberais e sempre ar-rojadas, seu nome logrou reper-cussão também no exterior.
Caio Mário da silva Perei-ra (1913-2004), natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, deixou como principal legado suas Ins-tituições de Di-
reito Civil, com grande impacto na doutrina da disciplina.
aUtor
“Filosofi camente, bem é tudo quanto pode proporcionar ao ho-mem qualquer satisfação. Nesse sentido se diz que a saúde é um bem, que a amizade é um bem, que Deus é o sumo bem. Mas, se fi losofi camente, saúde, amizade e Deus são bens, na linguagem jurí-dica não podem receber tal qua-lifi cação” (Washington de Barros Monteiro).
reFleXÃo
Direito Civil
109
parece ter adotado a segunda corrente no Código Civil de 2002, pois na
parte geral há um capítulo dedicado aos bens (abrangendo os materiais
e os imateriais) e, na parte especial, um capítulo dedicado ao direito das coisas, para tratar da posse e dos direitos reais que incidem sobre alguns
bens (as coisas).
5.2 PatriMônio
É o complexo de relações jurídico-materiais (valoráveis economi-
camente) de uma pessoa física ou jurídica, abrangendo os direitos reais
e obrigacionais (pessoais). A noção de patrimônio tem íntima relação
com a de personalidade jurídica, pois representa o conjunto de bens
(universalidade de direito) sobre o qual incide as relações jurídicas
econômicas.
O estudo do tema tem especial importância na matéria de respon-
sabilidade civil e no direito processual civil, pois é o patrimônio de uma
pessoa, atual e futuro, que responde por suas dívidas (Código Civil, art.
391 e Código de Processo Civil de 2015, art. 789).
A classificação do patrimônio pode se dar:
Patrimônio global: é o patrimônio que abrange todas as relações
jurídicas de conteúdo econômico de uma pessoa. Engloba créditos e
débitos.
Patrimônio ativo: restringe-se às relações jurídicas em que a
pessoa é credora (sujeito ativo). Aplica-se somente aos casos em que
a pessoa tenha um crédito a receber. Pode ser subdividido em bruto
(soma de todos os créditos de uma pessoa) e líquido (composto pelo
resultado de todos os créditos, subtraídos os débitos e as obrigações de
uma pessoa).
5.3 Das DiVersas ClassiFiCaÇões Dos Bens
A classificação dos bens tem por objetivo facilitar o trabalho dos
operadores do Direito, permitindo a aplicação das mesmas regras
jurídicas àqueles que se apresentem com características semelhantes.
Com esse propósito o legislador do Código Civil de 2002 classificou os
bens de acordo com três critérios: a) bens considerados em si mesmos
(imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis;
divisíveis e indivisíveis; materiais e imateriais; singulares e coletivos); b)
bens reciprocamente considerados (principais e acessórios); e c) con-
siderados em relação ao titular (particulares e públicos). Vejamos cada
uma destas classificações:
110
5.4 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a MoBiliDaDe
5.4.1. Bens imóveisBens imóveis ou bens de raiz são aqueles que não podem ser trans-
portados, sem destruição, de um lugar para outro. A remoção causaria alteração de sua substância ou de sua forma. O conceito legal de bem imóvel, conferido pelo Código Civil, compreende o solo e tudo quanto lhe for incorporado de maneira natural ou artifi cial (art. 79).
Na doutrina, apresentam-se diversas espécies de bens imóveis:
a) Por natureza (ou por essência): trata-se do solo e tudo quanto lhe for incorporado de forma natural (p. ex.: árvores, frutos, pedras etc.). Compreende também o espaço aéreo e o subsolo, mas os arts. 1.229 e 1.230 do Código Civil apresentam limitações ao direito de propriedade sobre estes.
b) Por acessão física artifi cial: são todos os bens que as pessoas incorporam ao solo de forma artifi cial e permanente – não podem ser reti-rados, em regra, sem destruição, modifi cação, fratura ou dano. De acor-do com o art. 81 do Código Civil, não perdem a característica de bens imóveis:
As edifi cações que, separadas do solo, mas conservando a sua uni-dade, forem removidas para outro local. Exemplo: o deslocamento de uma casa de madeira ou mesmo de alvenaria de um lugar para outro.
Os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem: para o Direito Civil, prédio é toda construção que tem a característica de imóvel. Pode ser uma casa, um galpão, uma pon-te etc. Se o prédio for demolido para reconstrução, os materiais con-tinuarão sendo tratados como imóveis. Se a demolição não tiver esse propósito, os materiais passarão à condição de móveis.
c) Por acessão intelectual (ou por destinação): são todos os bens móveis que o proprietário mantém empregados de forma duradoura e intencional na exploração industrial, aformoseamento (embelezamen-to) ou comodidade do bem imóvel. Para que ocorra a acessão, o bem móvel deve pertencer ao proprietário do imóvel e estar à disposição do bem imóvel, e não da pessoa. Essa imobilização pode cessar a qualquer momento, bastando manifestação de vontade do proprietário.
Como exemplos de bens imóveis por acessão intelectual, a doutri-na costumeiramente aponta os ornamentos (vasos, estátuas nos jardins, cortinas etc.), máquinas agrícolas, animais e materiais utilizados para plantação, escadas de emergência justapostas nos edifícios, geradores, aquecedores, aparelhos de ar-condicionado etc.
No Código Civil de 1916, o art. 43, III, consagrava expressamente os bens imóveis por acessão intelectual, que foram retirados do rol dos bens imóveis no Código Civil de 2002 (art. 79), fazendo a doutrina ques-
tionar a continuidade desta classifi cação:
Direito Civil
111
1ª Corrente: defende que a classificação persiste no Código Civil de 2002, pois o legislador apenas deslocou o tema para um dispositivo à parte – o art. 93, que trata das pertenças. Para os defensores desta cor-rente, os bens imóveis por acessão intelectual e as pertenças devem ser tratados como sinônimos. Vale dizer que a redação é semelhante entre os arts. 43, III, do Código Civil de 1916 e 93 do Código Civil de 2002. Esta é posição de Maria Helena Diniz, com quem concordamos.
2ª Corrente: defende que a categoria de bens imóveis por acessão intelectual foi eliminada do sistema e não deve ser confundida com as pertenças, pois estas não constituem partes integrantes do imóvel. Além do que, em regra, as pertenças não seguem o destino do principal. Nesse sentido, o Enunciado 11 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Ce-lina Bodin de Moraes.
d) Por determinação legal: são os bens considerados imóveis
por força da lei para receber maior proteção jurídica, consistente, em
regra, na exigência de escritura pública para a disposição de direitos. É
o caso da herança (direito à sucessão aberta – Código Civil, art. 80, I),
considerada bem imóvel ainda que composta só de bens móveis. Para
a cessão de direitos hereditários, é exigida a escritura pública (Código
Civil, art. 1.793).
Também são considerados imóveis por determinação legal os direi-
tos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram (Código Civil, art. 80,
II). Portanto, podem ser considerados bens imóveis os seguintes direitos
constituídos sobre imóveis: propriedade, superfície, servidão, usufruto,
uso, habitação, direito do promitente comprador, hipoteca e anticrese.
Com relação às ações que asseguram os direitos reais (ação reivindica-
tória, hipotecária, negatória de servidão, anulatória ou declaratória de
nulidade de negócio etc.), entendemos que não são propriamente bens e
que a referência legal é equivocada, mas tal posição é minoritária.
Devemos, ainda, destacar os seguintes pontos:
Navios e aeronaves: embora sejam registrados e transmitidos da
mesma forma que os bens imóveis (podendo inclusive ser oferecido em
hipoteca – Código Civil, art. 1.473, VI e VII), são classificados como bens
móveis. O tratamento de imóvel é utilizado como uma forma de com-
pensar a instabilidade existente em razão do constante deslocamento
desses bens com a estabilidade do registro.
Penhor agrícola: o Código anterior definia o penhor agrícola como
bem imóvel (art. 44, I). O Código atual não o inclui entre os bens
imóveis, mas determina que o penhor rural (que compreende o agrícola
e o pecuário) deva ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis
(art. 1.438).
5.4.2. Bens móveisSão aqueles que podem ser movidos de um local para outro sem que
seja alterada a substância ou a destinação econômico-social. A remoção
112
de um lugar a outro pode ocorrer por força própria (semoventes), no
caso dos animais, ou por força alheia, que são os móveis propriamente
ditos (p. ex.: livro, caneta, fruta etc.). Os bens móveis podem ser classi-
fi cados em:
a) Por natureza: compreendem tanto os semoventes (aqueles que
se movem por força própria – exemplo: os animais) como as coisas ina-
nimadas que possam ser transportadas de um lugar a outro, sem que se
destruam, isto é, sem que ocorra alteração de sua substância ou de sua
destinação social (Código Civil, art. 82) – exemplos: carro, lápis, cadeira
etc. O bem móvel por natureza é sempre uma coisa corpórea.
b) Por antecipação: são aqueles mobilizados (transformados em
bens móveis) pelos seres humanos em atenção a sua fi nalidade econômi-
ca (p. ex.: fruta colhida, madeira cortada, pedra extraída, casa vendida
para ser demolida etc.). Por receberem o tratamento de bens móveis,
não exigem escritura pública para sua alienação e dispensam a vênia
conjugal (autorização do cônjuge).
c) Por determinação legal: são: a) as energias que têm valor econô-
mico: elétrica, térmica, solar, nuclear, eólica, radioativa, radiante, sonora,
da água represada etc.; b) os direitos reais sobre bens móveis (direito de
propriedade, usufruto, penhor e propriedade fi duciária) e as ações cor-
respondentes; c) os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas
ações: direitos obrigacionais, também denominados de crédito; d) os di-
reitos autorais: nos termos do art. 3º da Lei n. 9.610/98; e e) a propriedade
industrial: nos termos do art. 5º da Lei n. 9.279/96.
5.5 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a FUnGiBiliDaDe
5.5.1. Bens fungíveisSão os móveis passíveis de substituição por outros da mesma espé-
cie (gênero), qualidade e quantidade. Como exemplo de bens fungíveis,
podemos citar dinheiro, milho, água etc.
A fungibilidade é uma característica natural dos bens móveis, mas
as partes podem transformar, mediante simples manifestação de vonta-
de (contrato), um bem fungível em infungível. Como exemplo, pode-
mos citar o empréstimo ad pompam vel ostentationem de uma garrafa de
vinho para exposição com a obrigação de ser restituída ao fi nal.
5.5.2. Bens infungíveisSão os bens que não podem ser substituídos por outros em razão
de determinadas qualidades individuais e específi cas. A infungibilidade
é uma característica própria dos bens imóveis, mas também se encontra
presente em alguns bens móveis, como os veículos automotores (indi-
Tenha corporalidade (como o gás) ou não (como a corrente elétrica), toda energia dotada de valor econômico é considerada bem móvel, nos termos do art. 83, I, do Código Civil. O mesmo ocor-re no Direito Penal, para o qual a energia com valor econômico é equiparada à coisa móvel (Códi-go Penal, art. 155, § 3º).
atenÇÃo
Direito Civil
113
vidualizados por seu chassi, placa etc.), obras de arte (p. ex.: a escultura O pensador, de Rodin). A infungibilidade pode resultar da natureza do bem ou da vontade das partes.
5.6 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a ConsUntiBiliDaDe
5.6.1. Bens consumíveisBens consumíveis são os destinados à satisfação de necessidades e
interesses das pessoas. Os bens consumíveis podem ser de duas espécies:
a) Consumíveis de fato: são os bens cujo uso importa na destrui-ção imediata da própria substância ou na sua extinção – a consuntibili-
dade é natural – p. ex.: frutas, verduras etc.;
b) Consumíveis de direito: são os bens destinados à alienação – a consuntibilidade (característica dos bens consumíveis) é jurídica – ex.: livros e automóveis à venda em uma loja (Código Civil, art. 86).
5.6.2. Bens inconsumíveisSão os que podem ser usados de forma contínua e reiterada, sem
que isso importe na sua destruição imediata. Os bens inconsumíveis ca-
racterizam-se pela possiblidade de retirada de suas utilidades, sem que
seja atingida sua integridade.
As partes podem transformar um bem consumível em incon-sumível por meio de disposição contratual. Exemplo: com o contrato de empréstimo ad pompam vel ostentationem que impede a alienação e o consumo do bem (p. ex.: o empréstimo de uma garrafa de vinho para exposição).
5.7 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a DiVisiBiliDaDe
A classificação dos bens de acordo com a divisibilidade tem impac-to em diversos dispositivos do Código Civil: capacidade civil (art. 105), compra e venda (art. 504), depósito (art. 639), transação (art. 844), con-domínio (art. 1.322), condomínio edilício (arts. 1.331 e 1.336) e legado (art. 1.968, § 1º).
5.7.1. Bens divisíveisOs bens divisíveis são os que podem ser fracionados em partes ho-
mogêneas e distintas, sem alteração na sua substância, diminuição con-siderável de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam (Código
Civil, art. 87).
É possível transformar um bem inconsumível em consumível. Isso ocorre, por exemplo, quando um automóvel é comercializado em uma revenda e passa a ser consi-derado consumível de direito.
atenÇÃo
reFleXÃo
A classificação dos bens como consumíveis está apoiada em seu sentido econômico. Com o Código de Defesa do Consu-midor, criado em 1990, deu-se grande destaque a esta classe de bens, em função do papel por eles desempenhado na econo-mia de massa ante a necessidade imperiosa de se proteger a figura do consumidor.
A maior parte dos bens fun-gíveis são também consumíveis, mas nem por isso fungibilidade e consuntibilidade se confundem. Há bens industriais que são fun-gíveis, porém não consumíveis, como é o caso, por exemplo, do mobiliário de uma residência.
atenÇÃo
114
Para que o bem possa ser considerado divisível, cada fração autôno-ma deve manter as mesmas utilidades e qualidades essenciais do todo. Exemplo: um saco de feijão é divisível, pois pode ser fracionado em duas ou mais partes, mantendo as suas características originais.
Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação legal ou por vontade das partes.
5.7.2. Bens indivisíveisSão naturalmente indivisíveis os bens que não podem ser fraciona-
dos, sob pena de perderem sua utilidade, valor ou qualidades essenciais. A indivisibilidade de um bem pode ser de três espécies:
a) Por sua natureza: são os bens que não podem ser divididos sob pena de alterarem sua substância, perderem sua utilidade ou reduzirem consideravelmente o seu valor. Exemplos: touro reprodutor, automóvel, obra de arte etc.
b) Por determinação legal: são os bens considerados indivisíveis por força de dispositivo legal expresso. A lei rotula o bem como indivisível. Exemplos: o direito à sucessão aberta/herança, que é considerado indi-visível até o momento da partilha (Código Civil, art. 1.791, parágrafo único); as servidões prediais (Código Civil, art. 1.386); o direito de hi-poteca (art. 1.421); o condomínio forçado instituído pela usucapião co-letiva (Lei n. 10.251/2001, art. 10, § 4º) etc.
c) Por vontade das partes: são os bens divisíveis transformados em indivisíveis por força da vontade manifestada em contrato (exercício da autonomia privada), deixando seu aspecto de divisibilidade para trás. Temos duas hipóteses legais previstas no Código Civil que bem retratam a indivisibilidade por vontade das partes: quando duas ou mais pessoas forem proprietárias de um mesmo bem (ou seja, o tiverem em condo-mínio), poderão contratar a indivisibilidade por prazo não superior a cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior (Código Civil, art. 1.320, § 1º); a indivisibilidade também poderá ser imposta pelo doador ou pelo testador por prazo não superior a cinco anos, sem possibilidade de pror-rogação (art. 1.320, § 2º).
5.8 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a MaterialiDaDe
5.8.1. Bens materiais (res corporalis)Também denominados bens corpóreos ou tangíveis, são aqueles que
têm existência material, podendo ser percebidos por nossos sentidos. Exemplos: armários, lâmpadas, telefones celulares, livros etc.
5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis)Também denominados bens incorpóreos ou intangíveis, são todos
os bens que possuem existência abstrata, não podendo ser sentidos/toca-
VoCaBUlÁrio
usucapião: aquisição da pro-priedade de um bem por meio da posse pacífi ca e ininterrup-ta deste por um determinado período de tempo, implicando, consequentemente, a perda deste mesmo bem por seu an-terior proprietário.
Direito Civil
115
dos fisicamente pelos seres humanos. São bens que consistem em direitos. Somente existem porque a lei assim determina, por força de determi-nação jurídica. Exemplo: direitos autorais de quem escreveu um livro, direitos de crédito, direito à herança, invenções, direitos reais, direitos obrigacionais etc.
O Código Civil atual não prevê a classificação dos bens quanto à tangibilidade. A classificação continua relevante, mesmo não expressa em lei, pois somente os bens corpóreos podem ser objeto de posse e, portanto, de proteção possessória (interditos possessórios). Somente os bens corpóreos podem ser objeto de tradição (entrega) e de aquisição por usucapião.
5.9 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a inDiViDUaliDaDe
Vejamos agora a classificação dos bens de acordo com a individua-
lidade no atual Código Civil:
5.9.1. Bens singularesBens singulares ou individuais são aqueles que, embora reunidos, se
consideram de per si, independentemente dos demais (Código Civil, art. 89). Em regra os bens são singulares. Somente serão considerados cole-tivos quando houver determinação legal ou determinação das partes. Os bens singulares podem ser de duas espécies:
a) Bens singulares simples: são os bens cujas partes formam um todo homogêneo e estão agrupadas em razão da sua própria natureza (a coesão é natural). Podem ser materiais (p. ex.: árvore) ou imateriais (p. ex.: crédito).
b) Bens singulares compostos: são aqueles bens que, reunidos,
formam um só todo, mas sem desaparecer a condição jurídica de cada
parte (a coesão é artificial – p. ex.: navios, materiais utilizados na cons-
trução de uma casa etc.).
5.9.2. Bens coletivosBens coletivos ou universais são aqueles formados por vários bens
singulares que, reunidos, passam a formar uma coisa só (individualidade incomum), mas sem que desapareça a condição jurídica de cada parte (autonomia funcional).
Dessa forma, o titular dos bens pode contratar sobre a coletividade dos bens (p. ex.: vender uma biblioteca) ou sobre um dos bens de forma individualizada (p. ex.: alienar apenas um livro de uma biblioteca). A coletividade aqui mencionada pode ser de duas espécies:
a) Universalidade de fato (universitas rerum): é a pluralidade de
bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação
116
unitária (Código Civil, art. 90). A universalidade de fato é formada pela coletividade de bens singulares, corpóreos e homogêneos, pertencentes a uma mesma pessoa. Exemplos: rebanho, biblioteca, pinacoteca, frota, fl oresta, cardume etc. Como visto acima, nada impede que os bens sin-gulares que formam a universalidade de fato sejam objeto de relações jurídicas próprias, podendo ser alienados separadamente.
b) Universalidade de direito (universitas iuri): complexo de re-
lações jurídicas de uma mesma pessoa, dotadas de valor econômico
(Código Civil, art. 91). É formada pela coletividade de bens singulares
incorpóreos (direitos) e, eventualmente, entre estes e bens corpóreos hete-
rogêneos (na verdade, reúne os direitos existentes sobre os bens corpóreos).
Exemplo: herança, patrimônio, massa falida.
5.10 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a DePenDÊnCia oU reCiProCiDaDe
Reciprocamente considerados, os bens são classifi cados em princi-pais e acessórios. Os bens acessórios são subdivididos em frutos, produ-tos, benfeitorias e pertenças.
5.10.1. Bem principalConsidera-se bem principal todo aquele que tem sua existência in-
dependente de qualquer outro. O bem principal existe sobre si mesmo, abstrata ou concretamente (Código Civil, art. 92), enquanto o acessório depende de outro para sua existência.
Quanto aos imóveis, o solo é o bem principal e tudo que se incor-pora nele de forma permanente é acessório. Quanto aos móveis, bem principal é aquele para o qual os outros bens se destinam (para enfeitar, permitir o uso ou servir como complemento). Exemplos: a caneta é o principal, a tampa é o acessório; o computador é o principal, o teclado é o acessório; o automóvel é o principal, o pneu é o acessório; o capital é o principal, os juros são acessórios etc.
5,10.2. Bem acessórioBem acessório é aquele cuja existência pressupõe a do principal,
isto é, sua existência é subordinada à existência de outro bem considerado principal (vide exemplos acima). A maior consequência que se extrai da distinção é o princípio da gravitação jurídica: o acessório segue o prin-cipal (acessorium sequitur principale). Embora essa seja a regra, ela não é absoluta, podendo haver disposição das partes ou da própria lei em sentido contrário (como ocorre com as pertenças – Código Civil, arts. 93 e 94). De acordo com a doutrina, os bens acessórios podem ser clas-
sifi cados em naturais, civis e industriais.
Direito Civil
117
Naturais: aqueles que aderem naturalmente ao bem principal (p. ex.: árvores e frutos – ainda que venha a existir atividade humana volta-da a melhoria ou aumento de produção).
Civis: aqueles que aderem ao bem por determinação legal (abstra-
ção jurídica), não dependendo de vinculação material (p. ex.: aluguel,
juros, dividendos, ônus reais em relação à coisa gravada etc.).
Industriais: aqueles que aderem ao bem principal por força do en-genho humano (p. ex.: prédio erigido sobre um lote, um vestido cos-turado com uso de um tecido, um desenho sobre a folha de papel, uma escultura desenvolvida a partir da argila etc.).
Os bens acessórios também podem ser de diversas espécies: frutos, produtos, benfeitorias e pertenças. Vejamos, então, as regras aplicáveis a cada um desses bens acessórios:
5.10.2.1. FrutoFruto é toda utilidade que um bem produz de forma periódica e cuja
percepção mantém intacta a substância do bem que a produziu. Embora
sejam bens acessórios, podem ser objeto de relação jurídica independen-
temente do bem principal. Em relação à sua natureza, os frutos podem
ser classificados em: naturais ou verdadeiros (p. ex.: frutas), civis (p. ex.:
aluguel) e industriais (p. ex.: canetas fabricadas). Os frutos também po-
dem ser classificados de acordo com a vinculação com o bem principal e
o seu estado em:
Percebidos ou colhidos: aqueles que já foram colhidos, isto é, já fo-
ram destacados do bem principal. Se o fruto for natural ou industrial,
reputa-se colhido e percebido logo que é separado do bem principal. Se o
fruto for civil, reputa-se percebido dia por dia (Código Civil, art. 1.215).
Pendentes: aqueles que ainda estão unidos naturalmente ao bem
principal (p. ex.: uma fruta que está ligada à árvore que a produziu).
Percipiendos: aqueles que deveriam ter sido colhidos, mas não o
foram.
Estantes: são os frutos que já foram colhidos e encontram-se arma-
zenados ou acondicionados para venda.
Consumidos: são os frutos que não mais existem em razão de seu
destino normal (consumo), ou que pereceram.
Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos,
logo que são separados; os civis reputam-se percebidos dia por dia. O pos-
suidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem
como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em
que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio.
5.10.2.2. ProdutosEmbora seja comum a utilização das expressões frutos e produtos
como sinônimas, existe uma distinção entre os termos que deve ser ob-
servada. Enquanto os frutos são bens que se reproduzem periodicamente,
A distinção entre os frutos percebidos e pendentes tem im-portância na determinação dos efeitos da posse exercida sobre o bem (Código Civil, arts. 1.214 a 1.216). O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos. Os frutos pen-dentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser restituídos, de-pois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser também restituí dos os frutos colhi-dos com antecipação.
atenÇÃo
118
os produtos são bens que se retiram da coisa desfalcando a sua substância
e diminuindo a sua quantidade. As frutas colhidas de um pomar são
frutos, pois nascem e renascem de forma periódica. Os cereais colhidos
de uma plantação de arroz, assim como os minerais extraídos de uma
jazida e o petróleo extraído de um poço, são produtos, por não se reno-
varem. Assim como os frutos, os produtos também pode ser objeto de
negócio jurídico autônomo.
Carlos Roberto Gonçalves compreende que os minerais foram transformados em bens principais em razão do art. 176 da Constituição Federal, que dispõe que as jazidas pertencem à União, constituindo pro-priedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamen-to industrial, sendo assegurada ao proprietário do solo participação nos resultados da lavra.
5.10.2.3. BenfeitoriasBenfeitoria é toda espécie de despesa ou obra (melhoramento) reali-
zada em um bem, com o objetivo de evitar sua deterioração (benfeitoria
necessária), aumentar seu uso (benfeitoria útil), ou dar mais comodidade
(benfeitoria voluptuária). Os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos
ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor, não
devem ser considerados como benfeitorias (Código Civil, art. 97).
Assim, não são consideradas benfeitorias as acessões naturais, isto é, as melhorias e acréscimos produzidos pela natureza (p. ex.: alusão, aluvião etc.). Também não são benfeitorias as acessões artifi ciais, isto é, as obras que criam uma coisa nova que adere a outra já existente (p. ex.: a construção de uma casa, uma plantação etc.). A benfeitoria não cria uma coisa nova, apenas incrementa. É por essa razão que a pintura em relação à tela e a escultura em relação à matéria-prima não podem ser consideradas benfeitorias.
Sobre o tema preparamos o seguinte quadro comparativo:
OBJETIVO CONSEQUÊNCIAS
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
Conservar a coisa ou evitar que se deteriore (p. ex.: con-serto de telhado, porta, enca-namento, muro etc.).
O possuidor de boa-fé tem direito à indenização e à retenção. O de má-fé tem direito à indenização, mas não à retenção.
BENFEITORIAS ÚTEIS
Aumentar ou facilitar o uso da coisa (p. ex.: construção de um quarto ou garagem, ampliação de um galpão etc.).
O possuidor de boa-fé tem direito à indenização e re-tenção. O de má-fé não tem direito à indenização (não tem direito a nada).
BENFEITORIAS VOLUPTUÁRIAS
Deleite ou recreio. Tornar o uso da coisa mais agradável e cômoda (p. ex.: piscina, sau-na, churrasqueira em uma casa, decoração luxuosa ou pintura).
O possuidor de boa-fé não tem direito a cobrar indeni-zação. Se esta não for paga espontaneamente, poderá levantar (retirar) a benfei-toria. O de má-fé não tem direito à indenização (não tem direito a nada).
A classifi cação das benfeito-rias em necessárias, úteis e volup-tuárias tem importância no estudo das consequências do exercício da posse sobre o bem (Código Ci-vil, arts. 1.219 a 1.222).
atenÇÃo
Direito Civil
119
Valor da indenização: se o possuidor for de boa-fé, o reivindican-
te será obrigado a indenizar as benfeitorias pelo valor atual delas. Se o
possuidor for de má-fé, o reivindicante tem o direito de optar entre o
seu valor atual e o de seu custo (Código Civil, art. 1.222). Em ambas
as hipóteses, as benfeitorias podem ser compensadas com os danos e
só obrigam ao ressarcimento se ao tempo da evicção ainda existirem
(art. 1.221).
5.10.2.4. PertençasPertenças são os bens que, não constituindo partes integrantes, des-
tinam-se, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento
de outro (p. ex.: trator em uma fazenda, cama, mesa ou armários de uma
casa, o ar-condicionado de uma loja etc.). Em regra, são bens móveis
que servem a um imóvel, mas, excepcionalmente, um bem imóvel tam-
bém pode ser pertença. São consideradas coisas anexadas (res annexa)
ao bem principal, embora não o integrem.
Conforme prescreve o art. 94 do Código Civil, os negócios jurídicos
que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo
se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade ou das circun-
stâncias do caso.
5.11 ClassiFiCaÇÃo Dos Bens De aCorDo CoM a titUlariDaDe
O Código Civil realiza a classificação dos bens públicos e particu-
lares utilizando o critério da titularidade em razão de sua simplicidade.
Todavia, a doutrina é unânime em criticar a permanência dessa classi-
ficação no Código Civil de 2002, principalmente na parte em que dis-
ciplina o regime dos bens públicos, por se tratar de matéria estranha
ao Direito Civil (é matéria de Direito Constitucional e Administrativo).
Em que pese a crítica doutrinária, traçaremos algumas linhas sobre o
assunto.
Além dos bens particulares e públicos, existem aqueles que não per-
tencem a ninguém, por nunca terem sido apropriados (res nullius) ou por
terem sido abandonados (res derelictae). Exemplos: animais selvagens,
conchas na praia, águas pluviais não captadas etc. Devemos lembrar que
os bens imóveis nunca serão res nullius, pois, se forem abandonados,
serão arrecadados como bens vagos e incorporados ao patrimônio do
Município ou do Distrito Federal.
5.11.1. Bens particularesO conceito de bens particulares é extraído por exclusão do conceito
de bens públicos, tendo em vista que o Código Civil de 2002 limitou-se a
definir apenas estes últimos. Assim, são bens particulares todos aqueles
A distinção entre as benfeito-rias necessárias, úteis e voluptuá-rias também tem importância no estudo do Direito das Obrigações (Código Civil, arts. 453, 578 e 878), do condomínio (art. 1.322), do Di-reito de Família (art. 1.660, IV), do Direito das Sucessões (art. 2.004, § 2º), da Locação de imóveis urba-nos (Lei n. 8.245/91, arts. 35 e 36).
iMPortante
120
que não forem públicos, isto é, que não pertencerem às pessoas jurídicas
de direito público interno.
5.11.2. Bens públicosSão públicos os bens de domínio nacional, pertencentes às pes-
soas jurídicas de direito público interno, como os de propriedade da
União, Estados e Municípios. Os bens públicos podem ser classifi cados
em três tipos:
Bens públicos de uso comum do povo: aqueles bens que, embora
pertencentes a uma pessoa jurídica de direito público, podem ser uti-
lizados por qualquer pessoa do povo. O domínio é da entidade de direito
público e o uso é do povo (p. ex.: mares, rios, estradas, ruas, praças etc.).
Importante ressaltar que os bens públicos não perdem a sua característi-
ca ainda que a administração pública limite ou suspenda o seu uso ou
imponha o pagamento de retribuição (p. ex.: cobrança de pedágio etc.),
conforme previsão do art. 103 do Código Civil.
Bens públicos de uso especial são os bens que as pessoas jurídicas
de direito público interno destinam aos seus serviços ou outros fi ns de-
terminados. Como exemplos, podem ser citados os imóveis onde estão
instalados prefeituras, escolas, creches, hospitais, quartéis, museus e te-
atros públicos e os móveis utilizados na realização dos serviços públicos
(radar, caneta, computador etc.). De acordo com o Código Civil, abran-
gem não só aqueles destinados a serviço ou estabelecimento da adminis-
tração federal, estadual, territorial ou municipal, como também os de
suas autarquias (art. 99, II).
Bens públicos dominicais: também conhecidos como patrimo-
niais, são aqueles que compõem o patrimônio das pessoas jurídicas de
direito público interno, como objeto de direito pessoal ou real, de cada
uma dessas entidades (Código Civil, art. 99, III). Não dispondo a lei
em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pes-
soas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito
privado. Admite-se, assim, que a lei instituidora dessas pessoas jurídicas
qualifi que seus bens como públicos ou particulares. Os bens dominicais
consideram-se desafetados, enquanto os de uso comum e os de uso es-
pecial são bens afetados.
5.11.2.1. Características dos bens públicosa) Inalienabilidade: é uma característica dos bens afetados, logo os
bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inaliená-
veis, enquanto conservarem a sua qualifi cação (Código Civil, art. 100).
Por outro lado, os bens públicos desafetados, também denominados
como bens dominicais, podem ser alienados (art. 101), observadas as
exigências da lei: em regra, deve haver prévia avaliação e a alienação deve
ser realizada mediante licitação (Lei n. 8.666/93, arts. 17 e 19). Deve ser
lembrado que os bens públicos afetados podem ser desafetados mediante
VoCaBUlÁrio
bens afetados: bens públicos sendo utilizados para determi-nado fi m, não podendo ser alie-nados enquanto se mantenha tal situação.
Direito Civil
121
disposição expressa de lei ordinária. No que diz respeito às terras indíge-
nas, o art. 231, § 4º, da Constituição Federal impõe a inalienabilidade e a
indisponibilidade.
b) Imprescritibilidade: são imprescritíveis as pretensões da admi-
nistração pública com relação aos bens públicos. Como efeito da im-
prescritibilidade, os bens públicos também não podem ser adquiridos por
usucapião. Embora os bens desafetados possam ser alienados, o Código
Civil de 2002, em consonância com os arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo
único, da Constituição Federal, dispôs que os bens públicos (afetados ou
desafetados) não estão sujeitos a usucapião (art. 102). Essa proibição se
justifica pelo descaso da administração pública na conservação de seu
patrimônio. Todavia, alguns autores ainda defendem a possibilidade de
usucapião de bens dominicais, sobretudo de terras devolutas (terras que
não pertencem a particulares e não estão sendo destinadas a qualquer
uso público).
c) Impenhorabilidade: a impenhorabilidade dos bens públicos
decorre de sua inalienabilidade. Desta forma, os bens públicos não po-
dem ser dados em garantia e não podem ser objeto de execução judicial
(adjudicação ou arrematação).
sÚMUla 340 do stF: desde a vigência do Código Civil (1916), os bens dominicais, como os de-mais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.
JUrisPrUDÊnCia
VoCaBUlÁrio
indisponibilidade: impossibilida-de da pessoa usar de manei-ra completamente ilimitada ou de dispor (vender, alugar, transferir, emprestar a terceiros) algum objeto ou algum direito que lhe pertence.
imprescritibilidade: impossibili-dade de um direito prescrever, ou seja, de seu titular (proprietá-rio desse direito) perder o direi-to de ação. Também se aplica a crimes que não prescrevem (não deixam de ser penaliza-dos por decurso do prazo para a propositura da ação penal).
bens desafetados: bens públi-cos sem utilização, podendo ser alienados enquanto assim se encontrarem. O mesmo que bens dominicais.
impenhorabilidade: impossibi-lidade de ser dado como ga-rantia de uma dívida, apreen-dido, executado, confiscado.
122
Dos Fatos Jurídicos6
124
6.1. Fato JUríDiCo
A distinção entre os fatos jurídicos e os fatos não jurídicos é razão
de controvérsia entre os autores. Para alguns, fato jurídico (lato sensu) é
todo fato que produz efeitos jurídicos, seja pela criação, modifi cação,
extinção ou conservação de direitos e deveres. Para outros, fato jurídico
é aquele que estabelece uma relação jurídica. Não é necessária a efetiva
produção de efeitos jurídicos, bastando que o fato seja capaz de produ-
zir efeitos jurídicos. Assim, a incidência de regras jurídicas sobre um
determinado evento já seria sufi ciente para caracterização dele como
um fato jurídico.
Essa segunda posição, defendida por Pontes de Miranda, apresenta
perfeita compatibilidade com a teoria que desenvolveu, distinguindo os
planos de existência, validade e efi cácia do negócio jurídico, como vere-
mos mais adiante.
De outro lado, o fato não jurídico, também conhecido como fato
material ou fato ajurídico, é defi nido como aquele irrelevante para o
Direito, por não acarretar consequências jurídicas. Portanto, para deter-
minar se o fato é jurídico, ou não, deve ser observado se este tem impor-
tância para o Direito. Assim, um simples evento como a chuva pode ou
não ser um fato jurídico.
Defi nido o que é um fato jurídico, resta observar que este comporta
algumas classifi cações. De acordo com a função na relação jurídica, os
fatos jurídicos podem ser classifi cados em: a) constitutivos: são os fatos
que criam uma relação jurídica; b) extintivos: os fatos que põem fi m
a uma relação jurídica; ou c) modifi cativos: aqueles que alteram uma
relação jurídica já existente.
Todavia, a principal classifi cação dos fatos jurídicos continua sendo
a que leva em consideração a natureza do fato, isto é, se o evento foi um
fato humano (p. ex.: a celebração de um contrato) ou um fato da natu-
reza (p. ex.: a aluvião – forma de aquisição originária de propriedade
imóvel). Assim, o fato jurídico em sentido amplo (lato sensu) divide-se
em fato natural e fato humano.
6.2. Fato JUríDiCo natUral
O fato jurídico natural, também conhecido como fato jurídico em
sentido estrito (stricto sensu), é todo evento capaz de provocar conse-
quências jurídicas que independem da vontade humana. Ressalte-se,
contudo, que o fato jurídico natural não é estranho aos seres humanos,
pois a eles interessam na qualidade de sujeitos de direitos.
Os fatos jurídicos naturais podem ser devidos em duas espécies: os
ordinários e os extraordinários:
VoCaBUlÁrio
irrelevante: sem importância, cuja existência ou opinião é in-diferente para os demais.
Um dos maio-res juristas brasi-leiros, natural de Alagoas, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-
1979) escreveu uma obra vastíssi-ma sobre os mais variados temas, entre eles o direito privado. A par-tir da infl uência alemã e do diá-logo com outras ciências, como, por exemplo, a Física Clássica, aproximou vários ramos do nosso Direito a conceitos completamen-te inéditos no estudo da disciplina até então.
aUtor
Direito Civil
125
6.2.1. Fato jurídico natural ordinárioConsidera-se fato jurídico natural ordinário todo fato comum da
vida que tem importância para o Direito. Como exemplos, podemos ci-
tar: a concepção e o nascimento, que determinam o início da personali-
dade jurídica; a morte, que põe fim à mesma personalidade; a maiorida-
de, que confere à pessoa capacidade civil plena.
Da mesma forma, podemos considerar a prescrição e a decadência
como exemplos de fatos jurídicos naturais ordinários, pois o simples de-
curso do tempo produz consequências jurídicas: a prescrição extingue a
pretensão, e a decadência extingue o direito.
6.2.2. Fato jurídico natural extraordinárioOs fatos jurídicos naturais extraordinários são os fatos incomuns
da vida, isto é, os fatos do acaso: caso fortuito e força maior. Questão
complexa é a distinção entre esses dois institutos. Tamanha é a confusão
entre eles que concordamos com os autores que defendem a ideia de que
devem ser tratados como sinônimos.
Com efeito, não existe razão para promover a distinção entre eles
se a importância para o Direito é a mesma: tanto o caso fortuito como a
força maior são excludentes de responsabilidade civil. Exemplos: raios,
terremotos, tsunamis, tempestades etc.
6.3. Fato JUríDiCo hUMano
O fato jurídico humano, também conhecido como fato jurídico
voluntário ou fato jurígeno, é toda conduta humana (comissiva ou
omissiva) que gera consequências jurídicas. É caracterizado, portanto,
pela presença da vontade humana (elemento volitivo). O fato jurídico
humano é classificado de acordo com a sua compatibilidade com o or-
denamento jurídico em lícito e ilícito.
6.3.1. Fato jurídico humano ilícitoTambém conhecido como ato ilícito, é todo comportamento hu-
mano contrário ao ordenamento jurídico: lei, moral, ordem pública e
bons costumes. No Direito Penal, a importância do ato ilícito está na ca-
racterização do crime e sua punição. No Direito Civil, a preocupação do
estudioso do Direito está na apuração da responsabilidade patrimonial
pelos danos causados.
A definição do ato ilícito civil está presente no art. 186 do Código
Civil, que dispõe: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negli-
gência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O dispositivo corresponde
parcialmente ao art. 159 do Código Civil de 1916, mas substitui o ter-
Apesar da confusão que as expressões possam causar na prá-tica, especialmente por causa de suas consequências serem idên-ticas, alguns autores esforçam-se por diferenciar os conceitos de caso fortuito e de força maior. En-tre eles, Yussef Said Cahali afirma que a força maior decorre de um fato externo, estranho ao objeto do negócio, o caso fortuito pro-vém do mau funcionamento des-se mesmo objeto. Por isso, é de-fensável a exclusão da responsa-bilidade no caso de força maior, subsistindo, entretanto, no caso fortuito, por estar incluído este últi-mo no risco assumido pelas partes ao contratarem.
atenÇÃo
VoCaBUlÁrio
conduta comissiva: ato de re-alizar algo indevido, ter uma ação efetiva.
conduta omissiva: Não realiza-ção de algo que era devido, deixar de fazer uma ação de-terminada.
A prescrição e a decadên-cia serão objetos de estudo mais adiante. Esses institutos estão dis-ciplinados nos artigos 189 a 211 do Código Civil.
O STJ analisa, caso a caso, se é a força maior ou o caso fortui-to que está na raiz dos acidentes que geram a maioria dos pedidos de indenização.
CoMentÁrio
CUriosiDaDe
126
mo “ou” por “e” (grifado acima), com o propósito de pôr fi m à antiga
discussão doutrinária quanto ao conceito de ato ilícito. Discutia-se se o
dano era um requisito necessário à caracterização do ato ilícito.
O legislador do Código Civil de 2002 inovou, igualmente, ao intro-
duzir o conceito de abuso de direito no art. 187: “também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes”.
O abuso de direito é uma espécie de ato ilícito, mas não se confunde
com o ato ilícito previsto no art. 186. O ato ilícito previsto no art. 186
é duplamente ilícito: ilícito em seu conteúdo (viola direito) e em sua
consequência (causa dano a outrem). Por sua vez, o abuso de direito é
parcialmente ilícito: é lícito em seu conteúdo (há um direito legítimo),
mas ilícito em suas consequências (causa dano a outrem).
Nos termos do art. 188 do Código Civil, não constituem atos ilíci-
tos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido; e II – a deterioração ou destruição da coisa alheia,
ou a lesão a pessoa, a fi m de remover perigo iminente. No caso do inciso
II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem ab-
solutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para
a remoção do perigo.
O estudo aprofundado do ato ilícito e dos arts. 186 a 188 do Código
Civil é objeto de outra parte do Direito Civil, a da chamada Responsa-
bilidade Civil.
6.3.2. Fato jurídico humano lícitoFato jurídico humano lícito ou ato jurídico em sentido amplo (lato
sensu) é toda ação humana (manifestação de vontade) que, estando de
acordo com o ordenamento, é capaz de produzir efeitos na órbita ju-
rídica. Devemos destacar que há quem entenda que o ato jurídico em
sentido amplo pode ser lícito ou ilícito, mas de acordo com a doutrina
majoritária só pode ser lícito.
O ato jurídico em sentido amplo pode ser dividido em três espécies:
ato jurídico stricto sensu, negócio jurídico e ato-fato jurídico.
6.3.2.1. Ato jurídico “stricto sensu”O ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu) é todo comporta-
mento humano lícito capaz de gerar consequências jurídicas impostas
por lei. Na verdade, tanto o conteúdo do ato como as suas consequências
estão predeterminados na lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade hu-
mana não tem o condão de determinar ou modifi car os efeitos previstos
na lei, daí a afi rmação de que sua efi cácia é ex lege (por força da lei).
Como exemplos de atos jurídicos stricto sensu, podemos citar a per-
fi lhação, a notifi cação para constituição em mora, a fi xação de domicílio
voluntário e o pagamento.
VoCaBUlÁrio
perfilhação: reconhecimento voluntário de fi lho/a.
atenÇÃo
Ato jurídico stricto sensu - efei-tos jurídicos não decorrem de ma-nifestação da vontade, mas dire-tamente da lei.
Classifi cação: 1. atos materiais: mera atuação da vontade (ex.: ocupação, achado de tesouro, es-pecifi cação); 2. participações: de-clarações para ciência ou comuni-cação de intenções ou tratos (ex.: intimação, interpelação).
Direito Civil
127
6.3.2.2. Negócio jurídicoNegócio jurídico é todo comportamento humano lícito capaz de
gerar consequências jurídicas permitidas pela lei e desejadas pela pes-
soa. Tanto o conteúdo do negócio como os seus efeitos são determinados
pela vontade das partes, gozando, portanto, de eficácia ex voluntate.
É justamente no negócio jurídico que a autonomia privada se
manifesta em sua plenitude, criando um instituto jurídico próprio
voltado à composição do interesse das partes, que buscam alcançar um
objetivo (finalidade) permitido pela lei. Como exemplos de negócios
jurídicos, podemos citar os contratos, a promessa de recompensa, o
testamento etc.
6.3.2.3. Ato-fato jurídicoO ato-fato jurídico é uma espécie de fato jurídico qualificado pela
conduta humana sem se levar em consideração a vontade de praticar
o ato ou não. Em outras palavras, no ato-fato jurídico não importa a
intenção da pessoa que realizou o ato (se houve, ou não, vontade de pra-
ticá-lo), tendo relevância apenas os efeitos que o ato produziu.
Assim como no Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002
não há regramento específico sobre o ato-fato jurídico, mas podem ser
encontrados exemplos como a caça, a pesca, a comissão, o achado do
tesouro, a especificação etc. Procurando facilitar a compreensão do ins-
tituto, podemos imaginar uma criança de 10 anos de idade que pescou
um peixe no mar. Ela será a dona do peixe, não tendo qualquer relevân-
cia o fato de ser absolutamente incapaz.
CineMateCa
Para refletir acerca dos com-portamentos hu-manos e das suas consequências ju-rídicas, sugere-se o filme "O Presente".
Ano de lançamento: 2006. Dire-ção: Michael O. Sajbel.
BiBlioteCa
MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da eficácia. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 20. ed. São Paulo: Sa-raiva, 2014.
128
Dos negócios Jurídicos7
130
7.1 teoria Geral Do neGóCio JUríDiCo
De todas as espécies de atos jurídicos, o mais importante é o negó-cio jurídico. Essa importância resta evidente da análise do Código Civil de 2002, que na parte geral dedicou os arts. 104 a 184 para tratar do negócio jurídico. Aos demais atos jurídicos reservou apenas o art. 185 do Código Civil, dispondo que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior” (o título anterior é o que trata do negócio jurídico). Vejamos então as principais regras envolvendo o negócio jurídico.
7.2 ClassiFiCaÇões Do neGóCio JUríDiCo
7.2.1.Classificaçãoquantoàmanifestaçãodevontade
Unilaterais: são os negócios jurídicos formados pela declaração de vontade de apenas uma pessoa (p. ex.: testamento, renúncia de crédito, promessa de recompensa). Subdividem-se em: a) receptícios: aqueles em que a declaração de vontade deve ser levada ao conhecimento do destinatário para que produza efeitos (p. ex.: promessa de recompensa); e b) não receptícios: aqueles em que o conhecimento do destinatário é irrelevante (p. ex.: testamento).
Bilaterais: aqueles em que há duas manifestações de vontade. Os contratos, por exemplo, exigem, ao menos, dois contratantes, duas ma-nifestações de vontade.
Plurilaterais: são os negócios jurídicos em que há mais de duas pessoas com interesses coincidentes. Essa situação é comumente verifi -cada em alguns contratos, como o de incorporação imobiliária.
7.2.2.Classificaçãoquantoàsvantagensparaas partes
Gratuitos: são os negócios jurídicos representados por atos de liberali-dade, isto é, atos que outorgam vantagens sem exigir uma contraprestação. Exemplos: contrato de doação pura, contrato de comodato, testamento etc.
Onerosos: são aqueles negócios que envolvem sacrifícios e van-tagens patrimoniais para todos os envolvidos. Exemplos: contrato de compra e venda, contrato de locação etc.
Bifrontes: são os negócios jurídicos que, de acordo com a vontade das partes, podem ser gratuitos ou onerosos. Exemplos: contrato de de-pósito, contrato de mútuo, contrato de mandato etc.
Neutros: são aqueles que não podem ser enquadrados na categoria de gratuitos nem de onerosos. Os negócios jurídicos neutros caracteri-
BiBlioteCa
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico – Existência, Validade e Efi cácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
UnilateralDIREITO CIVIL E SUCESSÓ-
RIO. APLICAÇÃO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. TESTAMENTO. VALIDADE. PARENTES DE LEGATÁRIO QUE FIGURARAM COMO TESTEMUNHAS DO ATO DE DISPOSIÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 1.650 DO CÓDIGO CIVIL. (...) 2.o testamento é um negócio jurídico, unilateral, personalíssimo, solene, revogável, que possibilita à pessoa dispor de seus bens para depois de sua morte. Justamente por essas características, tanto se faz necessário observar o preen-chimento de todos os seus requi-sitos egais para conceder-lhe va-lidade. (stJ, resp 176473-sP)
BilateralTRIBUTÁRIO. CONTRATO DE
CONCESSÃO DE USO. IPTU. INE-XIGÊNCIA. 1. o contrato de con-cessão de uso é negócio jurídico bilateral de natureza pessoal. (stJ, resp 681406-rJ)
JUrisPrUDÊnCia
Direito Civil
131
zam-se pela ausência de atribuição patrimonial. Exemplos: instituição
de bem de família (Código Civil, arts. 1.711 a 1.722), cláusula de inalie-
nabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade etc.
7.2.3.Classificaçãoquantoaomomentodaprodução dos efeitos
Inter vivos: são os negócios jurídicos que têm por objetivo a pro-dução de efeitos durante a vida dos participantes. Como exemplos de negócios inter vivos, podem ser citados os contratos, a promessa de re-compensa, o pacto antenupcial. Eventualmente, podem continuar pro-duzindo efeitos após a morte, como ocorre com alguns contratos.
Mortis causa: são aqueles que somente produzem efeitos após a morte da pessoa que manifestou a vontade. A morte é considerada requi-sito de eficácia do negócio jurídico. Exemplos: testamento e codicilo (ato simplificado de última vontade, para as disposições de pequena monta).
7.2.4.ClassificaçãoquantoàformaSolenes ou formais: são os negócios jurídicos que devem seguir
uma solenidade ou formalidade imposta pela lei para que sejam válidos. Há quem faça distinção entre os termos formalidade (exigência de for-ma escrita) e solenidade (exigência de instrumento público). Quando são requisitos de validade, diz-se que a solenidade ou a formalidade são do tipo ad solemnitatem ou ad substantiam. A sua não observância de-termina a nulidade do negócio jurídico, conforme previsão do art. 166 do Código Civil (p. ex.: testamentos, contrato de compra e venda ou doação de imóvel com valor superior a trinta salários mínimos). Quan-do são exigidas apenas para a prova do ato, são consideradas ad pro-bationem tantum (o art. 227 do Código Civil determina que, salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados).
Não solenes ou informais: são os negócios jurídicos que têm forma livre. No Direito Civil, os negócios são, em regra, não solenes e informais. Nesse sentido, o art. 107 do Código Civil dispõe que “a validade da de-claração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Exemplo: os contratos de comodato (contrato unilateral e gratuito, pelo qual alguém (comodante) entrega a outrem (co-modatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente e retituída no tempo combinado) e de locação podem ser celebrados verbalmente.
7.2.5.Classificaçãoquantoàindependênciaouautonomia
Principais (ou independentes): são os negócios jurídicos que têm existência própria, não dependendo de qualquer outro para que te-nham validade ou eficácia. A locação é um exemplo clássico de con-trato principal.
VoCaBUlÁrio
décuplo: dez vezes.
CineMateCa
Para refletir sobre a promes-sa de recom-pensa e a licitu-de no negócio, sugere-se o filme "A Recompen-sa". Ano de lan-
çamento: 2014. Direção: Richard Shepard.
132
Acessórios (ou dependentes): são aqueles cuja existência está su-bordinada a outro negócio jurídico. Exemplos: a cláusula penal e os con-tratos de fi ança, hipoteca, penhor e anticrese.
7.2.6.Classificaçãoquantoàscondiçõespessoais dos negociantes
Impessoais: são os negócios jurídicos que independem da condi-ção pessoal dos envolvidos. Se uma das partes não cumprir a obriga-ção assumida, outra pessoa poderá cumpri-la. Essa situação é comum em diversos contratos: na compra e venda, por exemplo, havendo a morte de um dos contratantes, seus herdeiros são obrigados a cum-prir o contrato.
Pessoais: também conhecidos como personalíssimos ou intuitu personae, são os negócios jurídicos que dependem de condição pessoal dos negociantes, havendo obrigação infungível (insubstituível). Em caso
de morte, os herdeiros não são obrigados a cumprir o contrato (p. ex.:
contrato de prestação de serviço e contrato de fi ança).
7.2.7.Classificação quanto à causa determinante
Causais (ou materiais): são os negócios jurídicos em que o motivo consta expressamente do seu conteúdo. Exemplo: termo de separação ou divórcio.
Abstratos (ou formais): são aqueles em que a razão não está inse-rida no conteúdo. Exemplo: termo de transmissão da propriedade; sim-ples emissão de título de crédito etc.
7.2.8.Classificaçãoquantoaomomentodaeficácia
Consensuais: são os negócios jurídicos que se consideram forma-dos a partir do momento em que há acordo de vontades. Exemplo: com-pra e venda pura.
Reais: são os negócios que somente se aperfeiçoam após a entrega do objeto. Exemplos: contrato de comodato, contrato de depósito e con-trato estimatório.
7.2.9.Classificaçãoquantoàextensãodosefeitos
Constitutivos: são os negócios jurídicos que geram efeitos ex nunc (não retroativos), a partir de sua celebração para o futuro. Em geral os contratos têm efi cácia constitutiva.
Declarativos: são aqueles que produzem efeitos ex tunc (retroa-tivos), a partir do momento em que ocorreu o fato que constitui seu objeto. Como exemplo de negócio declarativo, temos a partilha de bens
na sucessão de uma pessoa, que retroage ao momento da morte.
VoCaBUlÁrio
cláusula penal: consequência negativa, prevista em contrato, a ser sofrida pela parte que des-cumprir o que havia prometido.
fiança:contrato pelo qual o fi a-dor compromete-se a cumprir a obrigação prometida pelo devedor a um credor.
hipoteca: garantia real repre-sentada pela entrega ao cre-dor do próprio bem imóvel que é objeto de uma dívida, no caso desta não ser paga.
penhor: garantia real de pa-gamento representada por um bem móvel (ex.: uma joia, um equipamento, o salário de uma pessoa) para o caso de deter-minada dívida não ser paga.
anticrese: garantia real pela qual o devedor entrega ao cre-dor um bem imóvel para que os frutos provenientes deste amor-tizem uma determinada dívida.
comodato: empréstimo de um bem infungível. Difere do mú-tuo, que é o empréstimo de um bem fungível.
contrato estimatório: popular-mente conhecido como “ven-da em consignação”, é o ne-gócio pelo qual uma pessoa entrega um bem à outra para que esta o venda, restituindo o valor recebido ou o próprio bem ao fi nal de um prazo de-terminado.
Direito Civil
133
7.3 interPretaÇÃo Do neGóCio JUríDiCo
Assim como as leis, os contratos também devem ser interpreta-
dos para que possam ser cumpridos corretamente, afinal ambos criam
normas jurídicas. As leis criam normas jurídicas gerais e os contratos
criam normas jurídicas individuais, que devem ser observadas pelos
contratantes.
Interpretar é buscar o sentido e o alcance das normas ou, no caso,
das cláusulas contratuais. Trata-se de tarefa indispensável para identifi-
car a real vontade dos contratantes, que muitas vezes está escondida na
redação de cláusulas confusas, ambíguas, complexas etc. É por essa razão
que o art. 112 do Código Civil determina que “nas declarações de vonta-
de se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido
literal da linguagem”.
A redação do dispositivo exige cautela: a intenção que deve ser ob-
servada não é aquela presente na mente do contratante no momento
em que celebrou o contrato, mas aquela manifesta no contrato. Por essa
razão, a norma utiliza o termo “consubstanciada” em vez de “imaginada”.
Na sequência, o art. 113 do Código Civil declara que “os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração”. Esse dispositivo é considerado como um dos mais
importantes do Código Civil de 2002 por Miguel Reale. Ao dispor que
deve ser observada a boa-fé (objetiva) e também os usos do lugar de sua
celebração (costumes), a norma permite que o intérprete aplique a teo-ria tridimensional do direito, conjugando os valores ao lado do fato e
da norma para definir o direito no caso concreto.
Conforme o Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil do Con-
selho da Justiça Federal, “os negócios jurídicos devem ser interpretados
não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas tam-
bém de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes”.
Por fim, o art. 114 determina que “os negócios jurídicos benéficos e
a renúncia interpretam-se estritamente”. Os negócios benéficos, também
denominados gratuitos, são aqueles em que uma das partes pratica uma
liberalidade a favor de outra pessoa sem que exista uma contraprestação
(p. ex.: doação pura). A renúncia consiste na manifestação de vontade
de abdicar, independentemente de motivo, de um direito titularizado.
Como não existem vantagens ou contraprestações para quem prati-
ca ato benéfico e para quem renuncia a direitos, a lógica impõe que esses
atos sejam interpretados restritivamente. Em outras palavras, na dúvida,
tais atos devem ser interpretados a favor de quem praticou a liberalida-
de, e não de quem foi beneficiado por ela.
Na Parte Especial do Código Civil de 2002 ainda podem ser encon-
tradas outras normas restringindo a interpretação de negócios jurídicos:
a) art. 423: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas
VoCaBUlÁrio
liberalidade: concessão es-pontânea e gratuita de algu-ma vantagem, bem ou direito.
134
É válido o negócio que ocor-re no fi lme “Proposta indecente”? Ano de lançamento: 1993. Dire-ção: Adrian Lyne. Cumprimento ou não cumprimento poderiam ensejar alguma medida judicial?
ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”; b) art. 819: “a fi ança dar-se-á por escrito, e não admite in-terpretação extensiva”; c) art. 843: “a transação interpreta-se restritiva-mente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos”; e d) art. 1.899: “quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a obser-vância da vontade do testador”.
7.4 eleMentos ConstitUtiVos Do neGóCio JUríDiCo
Desde o direito romano o negócio jurídico é estudado a partir da análise de três elementos: os elementos essenciais (essentialia negotii), os elementos naturais (naturalia negotii) e os elementos acidentais (aciden-talia negotii).
Os elementos essenciais são aqueles que conferem a estrutura do negócio jurídico. São os requisitos indispensáveis à existência e à vali-dade do negócio celebrado. Os elementos essenciais podem ser dividi-dos em gerais e especiais. Gerais são os elementos mínimos exigidos em todos os negócios jurídicos (p. ex.: objeto lícito) e correspondem aos requisitos que compõem os planos de existência e validade na teoria de Pontes de Miranda, como veremos adiante. Especiais são aqueles exigi-dos somente para determinados negócios (p. ex.: na compra e venda são elementos essenciais a coisa, o preço e o consentimento).
Os elementos naturais são as regras comuns a determinados negó-cios jurídicos, sem que seja necessária sua previsão expressa no contrato. Da própria natureza do negócio celebrado, podem ser extraídas algumas consequências determinadas pela lei. Como exemplo de elemento na-tural, podemos citar a responsabilidade pelo vício redibitório (prevista nos arts. 441 e seguintes do Código Civil) nos contratos comutativos (p. ex.: contratos de compra e venda).
Elementos acidentais são cláusulas que as partes podem inserir nos negócios jurídicos com o objetivo de alterar a sua efi cácia natural. Nor-malmente, o negócio jurídico produz efeitos imediatamente após a sua formação. Então, quando as partes desejam postergar o início da pro-dução dos efeitos ou determinar o momento em que cessarão os efeitos de um negócio, podem (porque se trata de uma faculdade) inserir um elemento acidental. Como exemplos destes, temos a condição, o termo e o modo/encargo, que serão analisados mais adiante.
7.5 Planos Do neGóCio JUríDiCo
Com base no direito romano e no direito alemão, Pontes de Mi-
randa dividiu o estudo do negócio jurídico em três planos distintos:
reFleXÃo
Direito Civil
135
existência, validade e eficácia. Muitas vezes, esses termos são utilizados
pelos estudiosos do Direito como sinônimos, mas não podem ser con-
fundidos. Cada um desses planos possui significado distinto e elementos
específicos a ser analisados. E, seguindo as lições de Giselda Hironaka,
podemos visualizar o estudo dos planos do negócio jurídico como se
estes formassem uma escada:
A ideia de visualizar os planos no formato de uma escada facilita
muito a compreensão da matéria. Assim como subimos uma escada de-
grau por degrau, devemos estudar o negócio jurídico plano por plano.
Se não forem preenchidos os requisitos de existência, o negócio jurídico
será inexistente. Se não forem preenchidos os requisitos de validade,
o negócio será inválido, podendo ser nulo ou anulável, a depender da
situação específica. E se não forem preenchidos os requisitos de eficácia,
o negócio será ineficaz.
Antes de proceder à análise de cada um desses planos, devemos
alertar que o legislador do Código Civil de 2002 não adotou integral-
mente a teoria de Pontes de Miranda, pois referiu-se apenas à validade e
à eficácia dos negócios jurídicos, deixando de fora o plano de existência.
7.5.1. Plano de existênciaO plano de existência compreende os elementos mais básicos do
negócio jurídico: agente, objeto, vontade e forma. Esses elementos (subs-
tantivos) serão adjetivados (ou seja, têm suas qualidades examinadas)
somente no plano de validade. No plano de existência exige-se apenas
que o negócio contenha esses elementos e, caso não estejam presentes, o
negócio jurídico deverá ser considerado inexistente. Se necessário, pode-
rá ser proposta ação declaratória de inexistência.
A teoria dos atos inexistentes foi construída na França para justifi-
car a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entendia-se
que a diferença de sexo seria um requisito tão essencial para o casamento
que, se não fosse verificada, não existiria casamento.
7.5.2. Plano de validadeO plano de validade é a continuação do plano de existência, pois,
a partir dos elementos do negócio, impõe a análise dos seus requisitos.
Indaga-se, desta forma, o que cada um dos elementos do negócio deve
conter para que seja válido: os requisitos são as qualidades dos elementos.
Contudo, em nosso país, a união estável e o casamento en-tre pessoas do mesmo sexo são admitidos desde 2012, a partir de julgamentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. São negócios existentes, válidos e eficazes desde que res-peitadas as demais regras aplicá-veis aos institutos.
CoMentÁrio
136
O art. 104 do Código Civil inaugura o estudo do negócio jurídico,
dispondo que a validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma
prescrita ou não defesa em lei.
Procederemos à análise dos requisitos existentes na lei inserindo
outros de natureza doutrinária, com o propósito de acrescentar novos
elementos ao exame da matéria.
7.5.2.1. PartesPara que o negócio jurídico exista, vimos que deve conter agente
(parte, sujeito etc.) e, para que seja válido, o agente deve ser capaz e
legitimado. A capacidade exigida é, em princípio, a plena, que decorre
das somas da capacidade de direito/gozo (que todas as pessoas têm) com
a capacidade de fato/exercício/ação (que decorre do discernimento e é
normalmente adquirida com a maioridade).
Se o agente for incapaz, também poderá ser praticado o ato desde
que suprida a incapacidade. Os absolutamente incapazes (rol do art. 3º
do Código Civil) devem ser representados nos atos da vida civil, sob
pena de nulidade; o negócio será considerado nulo e deverá ser pro-
posta ação declaratória de nulidade. Os relativamente incapazes (rol do
art. 4º) devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabi-
lidade: o negócio será anulável (ou seja, poderá ou não ser considerado
nulo), devendo ser proposta ação anulatória.
Em situações excepcionais, a lei confere capacidade civil plena a
quem não completou a idade mínima para a prática de certos negócios
jurídicos. Exemplo: no contrato de mandato, o maior de dezesseis e me-
nor de dezoito anos não emancipado pode ser mandatário (Código Ci-
vil, art. 666). Também com dezesseis anos de idade é possível casar com
autorização dos pais (art. 1.517) e realizar testamento sem assistência,
mesmo não estando emancipado (art. 1.860, parágrafo único).
Embora o art. 104 do Código Civil mencione apenas a capacidade
do agente, a legitimidade também dever ser verifi cada para que o negó-
cio seja válido. A legitimidade é uma capacidade especial exigida para a
prática de certos negócios jurídicos. Exemplifi cando: uma pessoa maior
de dezoito anos tem capacidade para celebrar contratos de compra e
venda de imóvel. Mas, se for casada, dependerá, em regra, de autorização
do outro cônjuge – exemplo de legitimidade.
7.5.2.2. ObjetoTodo negócio jurídico possui um objeto, seja ele material ou imate-
rial, fungível ou infungível, com conteúdo econômico ou não. Para que
o negócio seja válido, exige-se apenas que o objeto seja lícito, possível,
determinado ou determinável. Se o objeto for ilícito, impossível ou in-
determinado, o negócio será considerado nulo, devendo ser proposta
ação declaratória de nulidade.
Direito Civil
137
Objeto lícito é aquele que está de acordo com o ordenamento jurí-
dico, pois não ofende a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes.
O negócio que tem objeto ilícito, além de ser nulo, pode gerar outras
consequências, como a propositura de ação de reparação de danos. Tam-
bém permite a aplicação do princípio geral de direito pelo qual ninguém
pode se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem
allegans), proibindo, por exemplo, a alegação do dolo recíproco ou bila-
teral (Código Civil, art. 150), e o pedido de repetição de pagamento feito
para obter fim ilícito ou imoral (art. 883).
Objeto possível é aquele que pode ser realizado do ponto de vista
físico e jurídico. A possibilidade física é examinada sob a luz das leis da
natureza. Somente a impossibilidade física absoluta (aquela que atinge a
todas as pessoas no universo) determina a nulidade do negócio. Exem-
plos: construir uma ponte ligando a Terra à lua; colocar toda a água do
rio São Francisco em um copo etc.
Se a impossibilidade for relativa (atingir o devedor, mas não outras
pessoas), em princípio o negócio será válido. Conforme o art. 106 do
Código Civil, a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio
jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que
ele estiver subordinado. Se a impossibilidade não cessar até o momento
do cumprimento da obrigação ou até o implemento da condição, o ne-
gócio será nulo.
Além da possibilidade física, alguns autores também se referem à
possibilidade jurídica como um requisito de validade do negócio. O ob-
jeto possível juridicamente é aquele que não está proibido pelo ordena-
mento jurídico. Como exemplo de objeto impossível juridicamente po-
demos citar a proibição de contratar tendo por objeto herança de pessoa
viva (Código Civil, art. 426). Todavia, entendemos que a impossibilidade
jurídica está compreendida na noção de licitude, estudada acima.
Objeto determinado é aquele que está individualizado no negócio
jurídico. No estudo das obrigações o objeto determinado é o conteúdo
da obrigação de dar coisa certa (Código Civil, art. 232). Objeto determi-nável é aquele que será individualizado no futuro, contendo, de início,
ao menos a indicação do gênero e da qualidade. No direito das obri-
gações o objeto determinável é o conteúdo da obrigação de dar coisa
incerta (art. 243). Se faltar a indicação do gênero ou da quantidade, a
obrigação e o negócio jurídico serão nulos.
7.5.2.3. FormaA forma é o meio pelo qual se revela a manifestação de vontade do
agente. Para que o negócio jurídico seja válido, a forma deve ser aquela
prescrita ou não defesa (não proibida) em lei. Contudo, no Direito Civil,
a regra é a forma livre e somente em situações excepcionais é exigida for-
malidade (forma escrita) ou solenidade (instrumento público). De acordo
com o art. 107 do Código Civil, a validade da declaração de vontade não
dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
VoCaBUlÁrio
dolo recíproco ou bilateral: dolo simultâneo de ambas as partes envolvidas num negócio de forma que nenhuma delas poderá alegá-lo, com o objeti-vo de anulá-lo ou de reclamar indenização.
138
Diversamente, será nulo o negócio jurídico que não revestir a for-ma prescrita em lei ou se for preterida alguma solenidade que a lei con-sidere essencial para a sua validade (Código Civil, art. 166, IV e V). Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem constituição, transferência, modifi ca-ção ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país (art. 108).
De acordo com o Enunciado 289 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o valor de 30 salários mínimos constante no art. 108 do Código Civil brasileiro, em referência à forma pública ou particular dos negócios jurídicos que envolvam bens imóveis, é o atribu-ído pelas partes contratantes e não qualquer outro valor arbitrado pela Administração Pública com fi nalidade tributária”.
Algumas vezes as próprias partes podem determinar que o negócio só será válido se for observada determinada forma. É o que se denomina forma contratual e está prevista no art. 109 do Código Civil: “no ne-gócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato”.
A forma também pode ser classifi cada em ad solemnitatem e ad pro-bationem, como vimos ao estudar as classifi cações do negócio jurídico. A forma ad solemnitatem, também conhecida como ad substantiam, é aquela exigida como requisito de validade do negócio (p. ex.: Código Civil, arts. 166, 108 e 109). A forma ad probationem tantum é aquela exigida para a prova do ato em juízo (p. ex.: arts. 227 e 1.536).
7.5.2.4. VontadeO negócio jurídico é uma manifestação de vontade que está de
acordo com o ordenamento jurídico e produz efeitos desejados pelo agente. Entretanto, para que o negócio seja válido, a vontade deve ser manifestada de forma livre.
Vontade livre é aquela manifestada de forma consciente e sem qualquer um dos defeitos ou vícios do negócio jurídico: erro, dolo, coa-ção, estado de perigo, lesão, fraude contra credores e simulação. Os cinco primeiros são denominados vícios da vontade ou do consentimento e contaminam a formação da vontade. Os dois últimos são denominados vícios sociais e contaminam a manifestação da vontade. O estudo dos vícios do negócio jurídico será realizado em capítulo próprio, adiante.
Devemos lembrar que o silêncio importa anuência (concordância), quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa (Código Civil, art. 111). Portanto, não se pode afi rmar que o direito tenha acolhido por completo o ditado po-pular “quem cala, consente”.
7.5.2.4.1. Reserva mentalDe acordo com o art. 110 do Código Civil, “a manifestação de von-
tade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não
Direito Civil
139
querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimen-
to”. A reserva mental é a emissão de uma vontade não desejada em seu
conteúdo nem em suas consequências.
Quando o negócio jurídico é celebrado sem que a outra parte tenha
conhecimento da reserva mental do agente, o negócio será válido. Com
efeito, nesta hipótese a reserva mental será irrelevante para o direito,
subsistindo a vontade declarada no negócio. Contudo, se a outra parte
tiver conhecimento da reserva mental, o negócio não subsistirá.
Não é simples, entretanto, determinar exatamente qual a conse-
quência que atingirá o negócio quando a reserva mental é conhecida
da outra parte. Alguns autores, como Moreira Alves, defendem que não
existirá a declaração de vontade, logo o negócio não será formado (plano
de existência). Contudo, vimos que o Código Civil de 2002 não adotou o
plano de existência do negócio. Parece-nos, então, que a melhor solução
na hipótese seria apontar a nulidade do negócio jurídico.
7.5.2.4.2. RepresentaçãoRepresentação é a legitimidade conferida a uma pessoa para prati-
car atos em nome de outra. A pessoa que atua é denominada represen-
tante e a pessoa em nome de quem são praticados atos é denominada
representado. Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo
interessado.
A representação legal é aquela conferida pela lei aos pais, tutores,
curadores, síndicos, administradores etc. Trata-se de um munus público
e somente pode ser exercida no interesse do representado. Na verdade,
os únicos representantes legais são os pais, tutores e curadores. Síndicos
e administradores da falência ou da recuperação são representantes ju-
diciais, contudo o Código Civil de 2002 unificou o tratamento das duas
espécies sob o título de representação legal.
A representação convencional, também denominada voluntária, é
aquela conferida mediante o contrato de mandato. Opera-se o mandato
quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar
atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do man-
dato (Código Civil, art. 653).
Diversamente da representação legal, em que o representante só
pode agir no interesse do representante, na representação voluntária
podem ser conferidos poderes para que o representante atue em causa
própria (procuração em causa própria).
Tanto na representação legal como na convencional exige-se que
o mandatário tenha capacidade civil plena (capacidade de direito/gozo
+ capacidade de fato/exercício/ação). Apesar disso, permite que o me-
nor com dezesseis ou dezessete anos e não emancipado seja nomeado
mandatário, mas o mandante não tem ação contra ele, senão segundo as
regras gerais, aplicáveis às obrigações contraídas por menores (Código
Civil, art. 655).
VoCaBUlÁrio
múnus: encargo, função que compreende a outorga de pode-res e deveres a quem a recebe.
140
Também em ambas as formas de representação compete ao repre-
sentante provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado,
a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo,
responder pelos atos que a estes excederem.
De acordo com o art. 116 do Código Civil, a manifestação de vonta-
de pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em re-
lação ao representado. O representante tem o dever de agir estritamente
de acordo com os poderes conferidos pelo representado. Se o represen-
tante ultrapassar os limites defi nidos, será considerado mero gestor de
negócios, enquanto o mandante não lhe ratifi car os atos (Código Civil,
arts. 665 e 861 a 875).
É anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse
ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo, se não existir autori-
zação legal ou do representado. Para esse efeito, tem-se como celebrado
pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes
houverem sido substabelecidos (art. 117).
Esse dispositivo admite a celebração do autocontrato ou contrato
consigo mesmo desde que presente autorização da lei ou do mandante.
O exemplo mais comum desta fi gura negocial é o mandato em causa
própria, em que o mandante transfere poderes ao mandatário para alie-
nar determinado bem, por certo preço, a terceiros ou a si próprio (art.
685).
O art. 119 do Código Civil dispõe que é anulável o negócio conclu-
ído pelo representante em confl ito de interesses com o representado, se
tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou.
A ação anulatória deve ser proposta no prazo decadencial de cento e
oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da inca-
pacidade.
A invalidade do negócio concluído pelo representante em confl ito
de interesses com o representado não deve ser confundida com a invali-
dade do negócio concluído por pessoa incapaz sem a devida represen-
tação. Se a pessoa absolutamente incapaz celebrar negócio jurídico sem
estar representada, este será nulo, devendo ser proposta ação declarató-
ria de nulidade (a qual não tem prazo para ser proposta). E se pessoa re-
lativamente incapaz celebrar negócio sem assistência, este será anulável,
devendo ser proposta ação anulatória no prazo de quatro anos, contados
a partir do dia em que cessar a incapacidade (Código Civil, art. 178, III).
Conforme dispõe o art. 120 do Código Civil, os requisitos e os efei-
tos da representação legal são os estabelecidos nas normas respectivas
(p. ex.: Código Civil, arts. 3º e 4º; Lei de Falências etc.); os da represen-
tação voluntária são os da Parte Especial do Código (arts. 653 a 692).
7.5.3.PlanodeeficáciaEm regra, o negócio jurídico que existe e é válido tem efi cácia ime-
diata, devendo as partes cumprir as obrigações assumidas logo após a
Embora o Código Civil de 2002 não tenha fi xado limites para o autocontrato, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem pontuado que a validade do ne-gócio depende da ausência de confl ito de interesses. Neste senti-do, a Súmula 60 do STJ determina que “é nula a obrigação cambial assumida por procurador do mu-tuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste”.
JUrisPrUDÊnCia
Direito Civil
141
sua formação. Contudo, nada impede que as partes insiram no negócio
jurídico uma cláusula acessória para modificar ou limitar os efeitos que
seriam produzidos ou até mesmo para determinar o surgimento de um
direito. Essas cláusulas acessórias são denominadas elementos aciden-
tais (acidentalia negotii), pois o negócio subsistiria e produziria efeitos
mesmo sem eles.
7.6 eleMentos aCiDentais
Os elementos acidentais mais comuns são a condição, o termo e o
modo ou encargo, mas nada impede que as partes criem outras formas
de elementos acidentais, exigindo-se, apenas, que sejam lícitos (ou seja,
que estejam de acordo com a lei, a moral, a ordem pública e os bons cos-
tumes). Os negócios jurídicos em geral admitem a aposição de elemento
acidental. Contudo, alguns negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sen-
su não admitem elementos acidentais, como aqueles que dizem respeito
ao estado das pessoas, os direitos de família puros e outros. Exemplos:
emancipação, casamento, adoção, reconhecimento de filho, aceitação e
renúncia da herança etc.
7.6.1. CondiçãoCondição é a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade
das partes, subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro
e incerto (Código Civil, art. 121). É normalmente inserida nos negócios
jurídicos pelos termos se ou enquanto (p. ex.: compro o seu guarda-
-chuva se chover amanhã) e pode subordinar tanto o surgimento do di-
reito (condição suspensiva) como a sua extinção (condição resolutiva).
Normalmente, atua apenas no plano de eficácia, mas em determinadas
situações atinge o plano de validade do negócio jurídico (p. ex.: a condi-
ção ilícita gera a invalidade do negócio), conforme estudaremos adiante.
A condição pode ser identificada sob três formas: a) pendente: é
o estado da condição que ainda se verificou ou frustrou; b) verificada
(implemento): é a condição em que se averiguou o seu cumprimen-
to, não importando se é suspensiva ou resolutiva; e c) frustrada: é a
condição que não foi verificada. Reputa-se verificada (isto é, considera-
se ocorrida), quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento
(ocorrência) for maliciosamente obstado (ocultado) pela parte a quem
desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição
maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu imple-
mento (Código Civil, art. 129).
7.6.1.1. Requisitos da condiçãoDo conceito básico da condição podemos extrair os seus três requi-
sitos: a voluntariedade, a futuridade e a incerteza. Vejamos:
142
a) Voluntariedade: a condição deve ser resultado da manifestação
de vontade das partes (vontade unilateral ou bilateral). Deve ter sido
inserida voluntariamente e expressamente no negócio jurídico, não se
admitindo condição tácita ou presumida. Esta é a verdadeira condição,
também denominada condição própria, e está regulada nos arts. 121
a 130 do Código Civil. Não deve ser confundida com a condição im-
própria (também denominada condição legal ou conditio iuris), que
nada mais é do que uma exigência legal (um requisito) para validade ou
efi cácia de um ato jurídico (p. ex.: a exigência de que o absolutamente
incapaz seja representado nos atos da vida civil; a exigência de que o
pacto antenupcial seja feito mediante escritura pública etc.).
b) Futuridade: o segundo requisito da condição é que o evento do
qual dependerá a efi cácia do negócio jurídico seja futuro, isto é, seja um
fato posterior à celebração do negócio. Se o evento for presente ou pre-
térito (conditio in praesens vel in preteritum collata) ou for apenas desco-
nhecido do agente (incerteza subjetiva), não há condição. Se o evento já
houver ocorrido, o negócio é considerado plenamente desenvolvido. Se
não, o negócio não se formou.
c) Incerteza: este último requisito permite a distinção entre a con-
dição (evento futuro e incerto) e o termo (evento futuro e certo). De
acordo com a doutrina, a incerteza que caracteriza a condição deve ter
natureza objetiva, isto é, deve ser um evento incerto no plano dos fatos,
independentemente da pessoa que celebra o negócio.
7.6.1.2. Classifi cação da condição quanto à certeza
a) Condição incerta (incertus an incertus quando): é aquela em
que as partes não sabem se o evento ocorrerá nem quando poderá ocor-
rer. Exemplo: “vou te dar um capacete quando o Rubinho ganhar uma
corrida de Fórmula 1” (não se sabe se irá ganhar nem quando irá ga-
nhar).
b) Condição certa (incertus an certus quando): é aquela em que
não se sabe se o evento ocorrerá, mas, se ocorrer, deverá ser em um mo-
mento determinado. Exemplo: “vou te dar um capacete se o Rubinho
ganhar a corrida do dia 15 do mês que vem” (não se sabe se irá ganhar,
mas, se ganhar, a condição só vale para aquela corrida determinada).
Também é exemplo de condição certa a maioridade de um ser humano,
pois não se sabe se o menor estará vivo (incertus an) até o dia do seu
aniversário de dezoito anos (certus quando).
7.6.1.3. Classifi cação da condição quanto aos efeitos
a) Condição suspensiva: é a condição que suspende o exercício e a
aquisição do direito até o seu implemento. Portanto, a condição suspen-
siva impede que o negócio jurídico produza efeitos desde o momento
Direito Civil
143
de sua celebração. A venda a contento (aprovação ad gustum – Código
Civil, art. 125) é um bom exemplo de condição suspensiva.
A condição suspensiva gera expectativa de direito (spes debitum iri), mas este já é objeto de proteção, podendo o seu titular se valer de medidas conservatórias (p. ex.: inscrição do título no registro, interrup-ção da prescrição etc.). A menção que o art. 130 faz à condição resolutiva é uma impropriedade, já que ociosa. Se a pessoa já está no exercício de um direito, é óbvio que pode reclamar sua proteção (p. ex.: ação para garantir a existência jurídica da prestação, reclamação das perdas e da-nos etc.).
Embora sob condição suspensiva, o negócio está formado e a re-lação jurídica, criada, podendo, inclusive, ser transmitido inter vivos ou mortis causa (elemento ativo in fieri do patrimônio). Evidente que a transmissão do negócio mantém a condição prevista (nemo ad alium
plus iuris tranferre potest quam ipse habet).
A condição suspensiva tem, em regra, eficácia retroativa, mas, em
alguns negócios em que se exige tradição da coisa ou registro, não retro-
age. Se a coisa perecer ou se deteriorar de forma não culposa e pendente
condição suspensiva, o alienante sofre a perda (regra res perit domino).
b) Condição resolutiva: é aquela que, quando verificada, põe fim
aos efeitos do negócio. A aquisição do direito ocorre desde a formação
do negócio, que produz todos os efeitos enquanto a condição não se
verificar (art. 127). Verificada a condição resolutiva, extingue-se, para
todos os efeitos, o direito a que ela se opõe, mas, se aposta em negócio de
execução continuada ou diferida, não tem eficácia com relação aos atos
já praticados de boa-fé.
Questão interessante é a de determinar se a condição resolutiva
opera de pleno direito ou se depende de reconhecimento judicial. En-
tendemos que, em regra, a resolução é automática, mas em algumas hi-
póteses será necessária a decisão judicial. Isto ocorre, por exemplo, no
compromisso de compra e venda com cláusula resolutiva, que exige a
propositura de ação judicial para que seja decretada a resolução.
7.6.1.4. Classificação da condição quanto à licitude
a) Condição lícita: é a condição que está de acordo com o ordena-mento jurídico (lei, moral, ordem pública e bons costumes – Código
Civil, art. 122) e, consequentemente, é validada. Numa perspectiva ci-
vil-constitucional, a licitude da condição deve ser verificada também
de acordo com os valores do ordenamento, em especial à luz dos prin-
cípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, liberdade, igualda-
de etc.).
b) Condição ilícita: é aquela contrária ao ordenamento jurídico,
por ofender a lei, a moral, a ordem pública ou os bons costumes. Exem-
plo: prometer um prêmio a uma pessoa que atropelar outra. A condi-
ção ilícita gera a nulidade do negócio jurídico, não importando se ela
A perspectiva civil-consti-tucional pode ser descrita, em linhas muito gerais, como a eleva-ção ao plano constitucional dos princípios norteadores do Direito Civil. Assim, a interpretação dos institutos civis passa a ser feita a partir de parâmetros da Consti-tuição, tais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade substancial. Segundo os autores que abra-çam esta orientação, ela repre-senta uma mudança de modelo teórico ocorrida com o advento da Constituição Federal de 1988, que forçou o abandono do espí-rito individualista e patrimonialista do então vigente Código Civil de 1916 e passou a examiná-lo sob a ótica da promoção do bem co-mum e da supremacia do interes-se coletivo sobre o privado.
CUriosiDaDe
144
é suspensiva ou resolutiva. De acordo com o art. 122 do Código Civil, são ilícitas as seguintes condições: I) condições perplexas ou contra-ditórias: aquelas que privam de todo o efeito o negócio. Exemplo de Francisco Amaral: Instituo “A” meu herdeiro universal se “B” for meu herdeiro universal; e II) condições puramente potestativas: aquelas que sujeitam a efi cácia do negócio ao puro arbítrio de uma das partes.
7.6.1.5. Classifi cação da condição quanto à possibilidade
a) Condição possível: é a condição que pode ser cumprida tanto do ponto de vista físico como do jurídico. A possibilidade física é anali-sada a partir das leis da natureza. A possibilidade jurídica tem por base o ordenamento jurídico. As condições possíveis são válidas.
b) Condição impossível: a conditio impossibilis é aquela que não pode ser cumprida. Pode ser impossível fi sicamente (se nenhuma pes-soa puder cumprir a condição) ou juridicamente (se a conduta aten-tar contra o ordenamento jurídico). Diferentemente do que se costuma imaginar, nem sempre a condição impossível determinará a nulidade do negócio. Se a condição impossível for suspensiva, o negócio será consi-derado nulo. Entretanto, se for resolutiva, a condição será considerada inexistente, e o negócio, válido.
7.6.1.6. Classifi cação da condição quanto à natureza (ou fonte)
a) Condição casual: é a condição que fundamenta em um evento alheio à vontade das partes. Dependem do acaso e do fortuito sem pos-sibilidade de intervenção dos interessados. Por essa razão os eventos da natureza podem ser bons exemplos de condições casuais (p. ex.: prome-to doar um guarda-chuva a uma pessoa se chover amanhã em São Pau-lo). Também são condições casuais aquelas que subordinam a efi cácia do negócio ao comportamento de terceiros (p. ex.: prometo doar um carro a um amigo se Vitor Belfort vencer a próxima luta contra Ander-son Silva).
b) Condição potestativa: é aquela que depende da vontade de um dos contratantes, que pode provocar ou impedir o seu implemen-to. Pode ser classifi cada em simplesmente potestativa e puramente po-testativa:
Simplesmente ou meramente potestativa: é a condição cujo im-plemento depende da vontade intercalada de duas pessoas – uma das partes impõe a condição e a outra deve cumpri-la (p. ex.: será dado um carro a quem der uma volta correndo no quarteirão). As condições simplesmente ou meramente potestativas são lícitas. No Código Civil também podem ser encontrados exemplos de condições simplesmente potestativas: I) art. 420: trata do direito de arrependimento; II) art. 505: dispõe sobre a cláusula de retrovenda; III) art. 509: trata da venda a con-
tento; e IV) art. 513: dispõe sobre o direito de arrependimento.
Direito Civil
145
Puramente potestativa: é a condição que subordina a eficácia do negócio jurídico ao arbítrio de uma das partes. O implemento da con-dição depende da vontade da própria pessoa que a impôs. As condições puramente potestativas consagram a cláusula si voluero (se me aprouver – exemplo: doarei um relógio amanhã se eu quiser) e, por essa razão, são consideradas ilícitas, gerando a nulidade do negócio. No direito das obrigações, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a indeterminação potestativa da prestação (p. ex.: deixar de indicar a quantidade do obje-to a ser entregue) é uma espécie de condição potestativa pura. A potesta-tividade do negócio se desloca da sua realização para a estimativa do res debita. Pagar quanto quiser (quantum volam) é a mesma coisa que pagar se quiser (si volam).
c) Condição mista: é a condição que depende, ao mesmo tempo, da conduta (vontade) de uma das partes e de um ato que não depende da vontade das partes (depende do acaso ou da vontade de um terceiro). Exemplo: prometo doar uma televisão a um amigo se ele se casar com determinada pessoa – observe que a celebração do casamento depende não só da vontade de meu amigo, mas também da vontade da outra pes-soa. As condições mistas são válidas desde que resultem da combinação de uma condição casual com outra simplesmente potestativa (como no exemplo acima).
7.6.2. termoÉ a cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico a um even-
to futuro e certo. Ao contrário da condição, que somente pode ser criada
pela vontade das partes, o termo pode ser introduzido no negócio pelas
partes (termo convencional) ou pode ser estipulado pela lei (termo legal
ou termo de direito). O termo também não deve ser confundido com
prazo, que é o lapso temporal existente entre o termo inicial e o termo
final. O prazo pode ser contado em minutos, horas, dias, meses ou anos.
7.6.2.1. Classificação do termo quanto aos efeitos
a) Termo suspensivo: também conhecido como termo inicial ou
dies a quo, é aquele que, quando verificado, determina o início dos efeitos
negociais. Em outras palavras, o termo suspensivo suspende o exercício,
mas não a aquisição do direito, gerando direito adquirido. Não se con-
funde, portanto, com a condição suspensiva, que suspende o exercício e
a aquisição do direito, gerando simples expectativa de direito. Exemplo
de termo suspensivo: alugarei uma casa a partir do dia 1º de janeiro do próximo ano.
b) Termo resolutivo: também conhecido como termo final ou dies ad quem, é aquele que, quando verificado, põe fim aos efeitos do negócio jurídico. Exemplo de termo resolutivo: o contrato de locação vencerá no
dia 30 do próximo mês. Diante das semelhanças existentes entre o termo
e a condição, o art. 135 do Código Civil prescreve que “ao termo inicial
146
e fi nal aplicam-se, no que couber, as disposições relativas à condição
suspensiva e resolutiva”.
7.6.2.2. Classifi cação do termo quanto à certezaa) Termo certo (certus an certus quando): é o termo certo que
ocorrerá e se sabe quando ocorrerá. No termo certo o evento é uma
decorrência da lei da natureza. Assim, toda data futura é um exemplo
de termo certo (p. ex.: no dia 1º de janeiro do ano que vem lhe darei um
carro).
b) Termo incerto (certus an incertus quando): é o termo certo
que ocorrerá, mas não se sabe quando. O melhor exemplo de termo in-
certo é a morte de uma pessoa – sabemos que todos morreremos, mas
não sabemos quando.
7.6.2.3. Contagem do prazoPrazo é o lapso temporal existente entre um termo inicial e um ter-
mo fi nal. Também pode ser conceituado como o lapso de tempo entre
a declaração de vontade e a superveniência do termo (inicial ou fi nal).
Salvo disposição legal ou convencional em contrário, a contagem do
prazo deve ser feita com a exclusão do dia do começo, e com a inclusão
do dia do vencimento (Código Civil, art. 132, caput).
Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorro-
gado o prazo até o seguinte dia útil (Código Civil, art. 132, § 1º). Há
entendimento doutrinário no sentido de que a mesma regra deve ser
aplicada aos domingos, mas não aos sábados. Entretanto, para as obri-
gações bancárias, se o vencimento ocorrer no sábado ou no domingo, o
prazo será prorrogado até o dia útil seguinte.
Nos termos do art. 132, § 2º, do Código Civil, meado considera-se,
em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. Desta forma, não impor-
tando se o mês tem vinte e oito (fevereiro), vinte e nove (fevereiro em
ano bissexto), trinta ou trinta e um dias, o meado será sempre o décimo
quinto dia.
Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de
início, ou no imediato, se faltar exata correspondência (Código Civil,
art. 132, § 3º). Entendemos que a aplicação dessa regra ocorre de forma
autônoma ao caput do art. 132. Na jurisprudência do Superior Tribu-
nal de Justiça podem ser encontradas decisões nesse sentido e também
aplicando o § 3º simultaneamente com o caput do art. 132. Se os prazos
forem fi xados por hora, deverão ser contados de minuto a minuto.
Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos
contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do
instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefí-
cio do credor, ou de ambos os contratantes (art. 133 do CC).
Esse dispositivo estabelece uma presunção absoluta (jure et jure/
iuris et de iure) a favor dos herdeiros, permitindo que cumpram encar-
Direito Civil
147
gos antes do prazo estabelecido pelo testador. Também permite que o herdeiro antecipe o pagamento do legado. Quanto aos devedores, o dis-positivo estabelece presunção relativa (juris tantum), dispondo que são presumidos ao seu favor os prazos para cumprimento das obrigações, salvo se das disposições contratuais ou das circunstâncias do negócio re-sultar que o prazo foi estabelecido em benefício do credor ou de ambos.
Essa presunção permite, por exemplo, que o devedor pague uma dí-vida antes do seu vencimento. Em se tratando de relação de consumo, o consumidor devedor sempre tem o direito de liquidar antecipadamente seu débito, não importando se o prazo foi estabelecido a favor dele ou do fornecedor e credor (Código de Defesa do Consumidor, art. 52, § 2º).
Os negócios jurídicos sem prazo, celebrados entre pessoas vivas (p. ex.: contrato por prazo indeterminado), têm vencimento imediato, salvo se o negócio tiver de ser cumprido em lugar diverso do contratado ou exigir tempo para sua execução. Nessas hipóteses, o prazo para o cum-primento da obrigação deve ser interpretado de acordo com a natureza e as condições do negócio.
7.6.3. Modo ou encargoO modo ou encargo é a cláusula que impõe uma obrigação a quem
é beneficiado por uma liberalidade. Como elemento acidental do negó-cio jurídico, é normalmente identificado pelo uso das expressões “para que” ou “com o fim de” e normalmente tem por objetivo dar relevância aos interesses particulares do autor da liberalidade. Exemplos: uma doa-ção de terreno feita ao município de Avaré para que nele seja construída uma escola (doação modal – Código Civil, art. 540); a nomeação de uma pessoa como herdeira em um testamento com a obrigação de cuidar de um animal de estimação.
A obrigação imposta pelo encargo pode ser de qualquer espécie (dar, fazer ou não fazer) e o seu cumprimento pode ser exigido em juí-zo mediante a propositura de execução, quando houver título executivo extrajudicial (p. ex.: contrato assinado por duas testemunhas), ou me-diante ação de obrigação, quando não houver título executivo (p. ex.: contrato sem a presença de testemunhas).
Essa obrigatoriedade é reforçada pelo art. 553 do Código Civil, que dispõe que o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.
Além da possibilidade de exigir em juízo o cumprimento do en-cargo, também é possível requerer a revogação da liberalidade, exigin-do, por exemplo, a devolução do bem que foi doado. Consoante prevê o art. 562 do Código Civil, “a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação
assumida”.
148
Nos termos do art. 136 do Código Civil, “o encargo não suspende
nem a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente
imposto no negócio jurídico pelo disponente, como condição suspen-
siva”. Assim, ainda que a pessoa que praticou o ato venha a falecer ou
se tornar incapaz, a liberalidade não será atingida. Diversamente, se se
tratar de condição suspensiva, o negócio perderá sua efi cácia.
Se o encargo for ilícito ou impossível, será considerado não escrito,
salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que
se invalida o negócio jurídico. Normalmente o motivo é irrelevante para
o direito. Contudo, quando é aposto como razão determinante, passa a
integrar o conteúdo do próprio negócio, tornando ilícito o seu objeto.
Esta é a razão pela qual o negócio jurídico deverá, em tais casos, ser
considerado nulo.
Defeitos nos negócios jurídicos8
150
8.1 INTRODUçãO
Conforme estudado anteriormente, a vontade humana é requisito
essencial para a existência dos negócios jurídicos. E, para que o negócio
seja considerado válido, vimos que a vontade não pode estar viciada,
isto é, deve ser manifestada de forma livre e consciente. Contudo, como
veremos, nem sempre isso ocorre, havendo inúmeras situações em que a
vontade é formada ou declarada de maneira defeituosa.
Quando o problema é interno, isto é, na formação da vontade,
fala-se em vício da vontade, também denominado defeito do consen-timento, existindo cinco espécies no Código Civil de 2002: erro ou ig-
norância, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Quando o problema é
externo, isto é, na declaração da vontade, fala-se em vício social, sendo
exemplos deste a fraude contra credores e a simulação.
Outro fator de distinção entre os vícios é a pessoa prejudicada. Nos
vícios da vontade o prejudicado é sempre um dos contratantes. Quando
o vício é social, o prejudicado é um terceiro, isto é, uma pessoa que não
participou da relação contratual, mas foi atingida por ela.
8.2 ERRO OU IgNORÂNCIA (CÓDIgO CIVIl, ARTS. 138 A 145)
O erro é a falsa representação da realidade, isto é, a falsa percepção
sobre um elemento determinante na realização de um negócio jurídico.
Já a ignorância é o completo desconhecimento da realidade. Embora
exista diferença conceitual (a ignorância é um erro mais acentuado), o
regramento conferido aos institutos é o mesmo, devendo estes ser trata-
dos como sinônimos.
De acordo com o art. 138 do Código Civil, são anuláveis os negócios
jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial
que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das
circunstâncias do negócio.
8.2.1. Consequências do erroQuando presente o erro ou a ignorância, o negócio jurídico é con-
siderado anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo deca-
dencial de quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídi-
co (Código Civil, art. 178, II). A ação somente pode ser proposta pela
parte prejudicada pelo erro, não pela benefi ciada.
A transmissão errônea da vontade é anulável, seja quando ocorre
por meio direto (p. ex.: pessoalmente), como também por meios inter-postos, como, por exemplo, um meio de comunicação (internet, e-mail,
fax etc.), ou por um intermediário (Código Civil, art. 141).
VOCABUlÁRIO
diligência: cuidado, zelo, pres-teza.
COMENTÁRIO
Decisão do STJ estabelece que, no caso de bem imóvel, a ação anulatória tem como termo inicial a data de registro do ato ou contrato no cartório imobiliário (REsp 1.205.147 - AgRg).
Direito Civil
151
Conforme determina o art. 144 do Código Civil, o erro não preju-
dica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifes-
tação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade
da vontade real do manifestante. Tal dispositivo consagra o princípio da conservação do contrato, que decorre do princípio da função social do
contrato, ao preferir a revisão do contrato à anulação.
Para que o erro torne o negócio jurídico anulável, deverá ser subs-tancial e real (deve causar verdadeiro prejuízo para o interessado). Se
o erro for acidental, o negócio jurídico será válido, conforme veremos.
8.2.2. Classificaçãodoerroquantoàdeterminação
8.2.2.1. Erro substancial Erro substancial (error in substantia) ou erro essencial é aquele que
recai sobre aspecto determinante (relevante) do negócio, incidindo so-
bre o núcleo essencial da declaração. Se a pessoa tivesse conhecimento
da realidade, o negócio não teria sido celebrado. Quando o erro é subs-
tancial, o negócio jurídico é anulável.
O próprio Código Civil determina, em seu art. 139, que o erro é
substancial quando:
I – interessa à natureza do negócio (error in negotio – p. ex.: a pes-
soa aluga uma casa, mas achava que a estava emprestando), ao objeto
principal da declaração (error in corpore – p. ex.: a pessoa acredita que
está comprando um determinado carro e na verdade adquire outro),
ou a alguma das qualidades a ele essenciais (error in qualitate ou in
substantia – p. ex.: a pessoa compra um relógio de latão, achando que
é de ouro);
II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a
quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta
de modo relevante (error in persona – p. ex.: a pessoa acha que está con-
tratando uma banda famosa, mas acaba contratando uma homônima);
III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for
o motivo único ou principal do negócio jurídico (error iuris).
O erro de direito (error iuris) é aquele em que a pessoa desconhe-
ce o conteúdo ou a consequência de um dever jurídico imposto por lei
ou assumido mediante acordo de vontade. Podemos afirmar que há um
falso conhecimento ou uma falsa interpretação sobre o direito. Para que
o erro de direito possa conduzir à anulação do negócio, devem estar pre-
sentes dois requisitos:
a) Motivo determinante: a pessoa deve ter declarado a vontade
somente porque teve uma errônea compreensão da norma jurídica.
b) Não pode implicar recusa à aplicação da lei: quando se estu-
da o erro de direito, é muito comum a indagação se não haveria uma
antinomia (isto é, um conflito) entre o art. 139, III, do Código Civil de
COMENTÁRIO
Em decisão do TJSP (Ap. 0011043-31.2013.8.26.0566), verifi-camos caso emblemático de de-feito do negócio jurídico. O autor da ação recebeu uma carta do INSS informando-lhe a respeito de diferença derivada de revisão em seus benefícios previdenciários. Procurou auxílio do réu, que lhe ofereceu serviços para interme-diação junto ao órgão público, cobrando-lhe o equivalente a 30% do montante a ser levantado. Contudo, este deixou de informar que seus serviços não seriam ne-cessários, já que bastaria compa-recer diretamente para receber os valores.
152
2002 e o art. 3º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro, que proíbe a alegação de ignorância para descumprimento
da lei (ignorantia legis neminem excusat), conhecido como princípio da
obrigatoriedade. A resposta, a nosso ver, é negativa. O art. 3º da LINDB
proíbe a alegação do erro de direito para afastar a norma jurídica geral,
a lei. O art. 139, III, do Código Civil admite a alegação do erro de direito
para afastar a norma jurídica individual, o contrato. Como se vê, são
situações distintas.
8.2.2.2. Erro acidentalÉ aquele que recai sobre aspecto secundário, ou seja: a pessoa tem
uma falsa percepção sobre um elemento que não é determinante para
a concretização do negócio jurídico. Por essa razão, afi rma-se que o
negócio viciado por erro acidental não é anulável.
O art. 142 do Código Civil contempla o erro acidental ao dispor que
“o erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração
de vontade, não viciará o negócio, quando, por seu contexto e pelas cir-
cunstâncias, se puder identifi car a coisa ou pessoa cogitada”. Todavia,
se as qualidades secundárias da pessoa ou da coisa forem consideradas
como razões determinantes do negócio, se estará diante de hipótese de
erro substancial, permitindo a anulação.
O erro que incide sobre a qualidade acessória do objeto (error in
qualitate) ou sobre sua medida, peso ou quantidade (error in quantitate)
é considerado acidental desde que não importe efetivo prejuízo ao con-
tratante.
O erro sobre o motivo ou erro quanto ao fi m colimado, em regra,
não permite a anulação do negócio. Os motivos que levam uma pessoa
a agir de determinada forma normalmente não têm importância para
o direito. Todavia, quando o motivo passa a ser expresso como razão
determinante de um negócio jurídico, entende-se que ele passa a incor-
porar o próprio conteúdo do negócio, contaminando-o, quando falso.
O erro sobre o cálculo também pode ser apontado como exemplo
de erro acidental, pois não contamina o negócio jurídico e, portanto,
não permite a sua anulação. É uma espécie de erro material retifi cável,
daí por que o art. 143 do Código Civil apenas autoriza a retifi cação da
declaração de vontade, isto é, o recálculo, consagrando o princípio da
conservação do contrato.
8.2.2.3. Erro obstativoO erro obstativo, obstáculo ou impróprio é aquele de exagera-
da importância, constituindo uma profunda divergência entre as partes
contratantes de tal modo que não haveria vontade negocial. Por essa
razão, explica Carlos Roberto Gonçalves, as doutrinas alemã, francesa
e italiana defendem que essa espécie de erro conduz à inexistência do
negócio jurídico. Como exemplos de erros obstativos nesses países, po-
VOCABUlÁRIO
colimado: objetivado, desejado
A jurisprudência (TJSP, Ap. 0036433-36.2010.8.26.0007) forne-ce a resolução de um caso bem comum de ocorrer: o autor da ação alega divergência entre o veículo automotor efetivamente adquirido e o indicado no contra-to de fi nanciamento. O erro não foi apto a invalidar este negócio jurídico, descabendo a anulação e a devolução do bem fi nancia-do. O tribunal estabeleceu a ade-quação à real vontade das par-tes, tendo alterado as cláusulas contratuais relativas à descrição do bem e ao valor fi nanciado.
COMENTÁRIO
Exemplo extraído de de-cisão do TJSP (Ap. 0016749-47.2011.8.26.0248): duas pessoas fi zeram contrato de compra e venda de um imóvel. O valor ajustado de compra foi de R$ 19.000,00. Contudo, foi estipulado que o comprador deveria pagar 24 parcelas de R$ 200,00, o que se mostra equivocado, pois o cer-to seria R$ 791,66. Assim, houve mero erro de cálculo do valor da parcela mensal, o que autorizaria apenas a retifi cação do cálculo.
JURISPRUDÊNCIA
Direito Civil
153
dem ser apontados aqueles que incidem sobre a natureza do negócio ou
sobre o objeto principal da declaração.
Entretanto, no direito brasileiro o legislador não fez distinção entre
o erro obstativo e o erro substancial, acolhendo todas as hipóteses como
erro substancial e, portanto, anuláveis.
8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidadeNa vigência do Código Civil de 1916, a doutrina entendia que o
erro deveria ser escusável para que o negócio pudesse ser anulado. Erro
escusável é aquele perdoável, justificável, desculpável, isto é, aquele que
qualquer pessoa poderia incidir com o emprego da diligência comum.
Com a introdução do Código Civil de 2002, autores passaram a di-
vergir sobre o conteúdo do art. 138: “São anuláveis os negócios jurídicos,
quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das cir-
cunstâncias do negócio”.
Para a doutrina majoritária, o dispositivo não exige mais a escusa-
bilidade como um requisito para a anulação do negócio jurídico, mas,
sim, a recognoscibilidade ou cognoscibilidade. Enquanto a escusabilida-
de consiste na análise do comportamento da parte prejudicada, a recog-
noscibilidade consiste na verificação da conduta do outro contratante,
que, percebendo o erro da outra parte, quedou-se inerte.
Nesse sentido, aliás, o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal dispõe que, “na sistemática do art. 138,
é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o
princípio da confiança”.
8.3 DOlO
É o artifício (manobra, maquinação) utilizado com o propósito de
enganar uma pessoa para que ela celebre determinado negócio. Para que
o negócio seja anulável, não se exige a demonstração de efetivo prejuízo,
sendo suficiente a intenção de prejudicar. O dolo não deve ser confun-
dido com o erro. No erro há um equívoco espontâneo do celebrante e
no dolo a pessoa é induzida a errar pelo outro contratante ou por um
terceiro.
8.3.1. Consequências do doloAssim como o erro, o dolo também torna o negócio anulável. A
parte enganada poderá propor ação anulatória no prazo decadencial de
quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código
Civil, art. 178, II). Porém, deverá ser identificada a espécie de dolo de
que se está diante, pois algumas determinam a anulabilidade do negócio
e outras não, como veremos.
COMENTÁRIO
O STJ apresenta decisão (REsp 664.499) em que restou ca-racterizado o dolo, tornando o negócio anulável. O autor pediu rescisão do contrato por omissão dolosa do vendedor do imóvel, que escondeu a existência de ação demolitória em curso na época da transação.
154
8.3.2.Classificaçãododoloquantoàdeterminação
8.3.2.1. Dolo essencialO dolo essencial, também conhecido como dolo principal ou
dolus causam, é aquele que contamina o negócio jurídico, permitindo a sua anulação pelo fato de ter sido a sua causa, isto é, a pessoa somente realizou o negócio jurídico por ter sido enganada. Se o contratante tives-se conhecimento da realidade, o negócio não seria anulado. Conforme o art. 145 do Código Civil, “são os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”.
8.3.2.2. Dolo acidentalO dolo acidental (dolus incidens) não constitui vício de consen-
timento, por não infl uir diretamente na realização do ato, que se teria praticado independentemente do emprego de artifícios pelo outro con-tratante. Essa espécie de dolo não acarreta a anulação do ato, obrigando apenas à satisfação de perdas e danos ou a uma redução proporcional da prestação contratada.
De acordo com o art. 146 do Código Civil, “o dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu des-peito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.
8.3.3.Classificaçãododoloquantoàconduta
8.3.3.1. Dolo positivoDolo positivo ou comissivo é aquele consistente em uma ação vol-
tada a enganar uma das partes contratantes, permitindo, consequente-mente, a anulação do negócio jurídico. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afi rmando que é feito de ouro, quando na verdade é feito de latão.
8.3.3.2. Dolo negativo É aquele que consiste na omissão (silêncio) de um aspecto rele-
vante para realização do negócio, permitindo a sua anulação. Para que ocorra dolo negativo ou omissivo, a pessoa deve omitir informação de que tinha conhecimento. Se não tinha conhecimento, não haverá dolo. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afi rmando não saber qual o material com que ele é feito, mas tendo ciência de que se trata de latão.
De acordo com o art. 147 do Código Civil, nos negócios jurídi-cos bilaterais (aqueles que estabelecem obrigações para ambos os con-tratantes), o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado constitui omissão dolosa,
provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado.
COMENTÁRIO
Veja-se caso de dolo aciden-tal trazido pela jurisprudência (TJSP, Ap. 9208874-22.2009.8.26.0000): o autor da ação requereu a anu-lação da partilha homologada em ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, alegando omissão dolosa da in-formação de que um dos imóveis integrantes da partilha era objeto de disputa judicial possessória. O Tribunal considerou que o silêncio, ainda que intencional, do apela-do constitui dolo acidental, já que a partilha – negócio jurídico que se pretendia anular – teria sido re-alizada de qualquer maneira, ain-da que por outro modo.
Direito Civil
155
8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíprocoOcorre quando ambos os contratantes agem com dolo. Como nin-
guém pode se valer da própria malícia (nemo auditur propriam turpitu-dinem allegans), o dolo bilateral não permite a anulação do negócio nem pedido de reparação de danos, quando o prejuízo de uma das partes for maior que o da outra.
O dolo de uma parte sempre compensa o da outra parte, não im-portando o tipo de dolo. Desta forma, mesmo que uma das partes tenha agido com dolo essencial e a outra com dolo acidental, não será possível a anulação do negócio jurídico nem o pedido de reparação de danos proporcional.
8.3.4.Classificaçãododoloquantoaoconteúdo
8.3.4.1. Dolo mau O dolo mau (dolus malus) consiste no emprego de manobras as-
tuciosas destinadas a prejudicar alguém. Por ser utilizado para iludir e prejudicar a outra parte, acaba por viciar o negócio jurídico, tornando-o anulável, em regra.
8.3.4.2. Dolo bom A doutrina aponta dois sentidos para o dolo bom (dolus bonus).
Num primeiro é entendido como um comportamento lícito e tolerado no comércio, consistente em reticências, exageros nas boas qualidades ou dissimulações de defeitos (p. ex.: quando o vendedor fala que uma TV é a melhor do mundo). Observe-se que, se houver abuso ou prejuízo, o negócio poderá ser anulado. Nas relações de consumo, essa espécie de dolo não é tolerada, pois caracteriza propaganda enganosa e induz o consumidor a erro.
Num segundo sentido, fala-se em dolus bonus quando uma pessoa engana a outra com o objetivo de beneficiar a pessoa enganada (p. ex.: uma pessoa que compra um relógio de um amigo pagando um preço mais caro com o objetivo de ajudar). No caso, o artifício não tem a fina-lidade de prejudicar.
Independentemente do sentido adotado, o dolus bonus não gera a anulabilidade do negócio.
8.3.5. Dolo de terceiroNormalmente na caracterização do dolo temos uma das partes sen-
do levada a erro pela outra parte, mas também é possível que um ter-ceiro (pessoa estranha ao negócio jurídico) realize a indução. De acordo com o art. 148, “pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhe-cimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o ter-
ceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou”.
COMENTÁRIO
Exemplo de dolo bilateral pro-veniente da jurisprudência (TJSP, Ap. 0006138-85.2010.8.26.0081): o autor da ação aderiu a grupo de consórcio sob promessa de que seria contemplado de imediato, o que não ocorreu. Contudo, ele tinha conhecimento de como funciona o contrato de consórcio e que deveria esperar por um sor-teio eventual.
COMENTÁRIO
O TJRS julgou caso em que restou configurado o dolus bo-nus (Ap. 71.002.727.139): Não configura propaganda engano-sa a divulgação, por parte da financeira, de que opera com as melhores taxas do mercado. Tal mensagem publicitária, para qualquer cidadão com o mínimo de discernimento, apenas exerce a força atrativa a que se propõe toda propaganda, jamais tendo o condão de ludibriar o consu-midor ou gerar vício no consenti-mento. Outrossim, o dolus bonus, evidentemente presente na hipó-tese, não vicia o negócio, sendo aceito socialmente. Trata-se de mecanismo muito utilizado como técnica de publicidade, inexistin-do qualquer ilicitude no realce do produto, com finalidade de atrair os clientes. Improcedência do pe-dido mantida.
156
Assim, o dolo de terceiro pode ocorrer com a cumplicidade da parte a quem aproveita; com mero conhecimento da parte a quem aproveita; e, ainda, exclusivamente por conta do terceiro, sem que dele tenha co-nhecimento a parte favorecida. As duas primeiras hipóteses são passíveis de anulação. Na última hipótese, o negócio persiste, mas o autor do dolo (o terceiro) responde pelas perdas e danos em razão do ilícito praticado.
8.3.6. Dolo do representanteO dolo do representante legal obriga o representado a responder
civilmente até a importância do proveito que tirou. Entretanto, tratan-
do-se de representação convencional (aquela em que o representado es-
colhe e nomeia o seu representante, aceitando todos os riscos que assim
corre), o representado responderá solidariamente pelas perdas e danos
(Código Civil, art. 149). Se for chamado a reparar os danos, o represen-
tado terá direito à ação de regresso em face do representante.
A distinção promovida pelo art. 149 do Código Civil entre a re-presentação legal e convencional é coerente, pois na representação legal (pais, tutores e curadores) o representado não escolhe quem será o seu representante, devendo ser mais protegido. Na representação conven-cional, a escolha do representante decorre da vontade do representado. Se escolheu mal, deverá reparar o dano causado por seu representante.
Tanto na hipótese de dolo do representante legal como na de dolo do representante convencional, o negócio será anulável se o dolo for substancial e não será anulável se o dolo for acidental.
8.4 COAçãO
A coação é qualquer forma de ameaça injusta (física ou moral) com o objetivo de forçar uma pessoa a realizar determinado negócio jurídico. Quem exerce a coação é denominado coator, e quem sofre é denomi-nado coato, coagido ou paciente. Não necessariamente quem exerce a coação é quem dela se benefi cia, como veremos no estudo da coação por terceiro.
8.4.1.EspéciesdecoaçãoDesde o direito romano, a coação é dividida em duas espécies:
coação absoluta (vis absoluta) e coação relativa (vis compulsiva). Essa distinção não foi consagrada nem no Código Civil de 1916 nem no de 2002, mas a doutrina continua defendendo a sua importância diante dos efeitos que cada uma produz:
8.4.1.1. Coação absolutaA coação absoluta, também denominada física ou vis absoluta, é
o constrangimento corporal que retira toda a capacidade de manifes-
VOCABUlÁRIO
açãoderegresso: aquela pro-movida pela pessoa conde-nada ao pagamento de inde-nização por um ato ilícito que, agora na condição de autora, volta-se contra aquele que en-tende ser o verdadeiro respon-sável pelo dano.
constrangimento: imposição de força, violência.
Direito Civil
157
tação de vontade, implicando ausência total de consentimento. Exem-plos: forçar uma pessoa sob a mira de uma arma de fogo a assinar um contrato; pressionar a digital de um analfabeto em um contrato contra a vontade dele etc.
Essa espécie de coação não está prevista no Código Civil de 2002, mas, de acordo com a doutrina majoritária, tem como consequência a inexistência do negócio jurídico. Se necessário for, deverá ser proposta ação declaratória de inexistência. Com efeito, a coação absoluta não deixa opção ao coagido para que possa exercer um ato de escolha ma-nifestando a sua vontade. Há um ato mecânico, não uma manifestação de vontade viciada. Por essa razão, a coação absoluta não é considerada vício da vontade ou do consentimento.
8.4.1.2. Coação relativaTambém conhecida como coação moral, psicológica ou vis com-
pulsiva, é aquela que está presente no Código Civil de 2002, art. 151, e funda-se no temor (receio, medo) de dano iminente e considerável à pes-soa do negociante, aos seus bens ou à sua família. Ao contrário da coação absoluta, a coação relativa deixa opção ao coagido, que prefere celebrar o negócio a sofrer o dano. É espécie de vício do consentimento, pois con-tamina a formação da vontade e gera a anulabilidade do negócio, como veremos adiante. Aliás, como o Código Civil de 2002 previu apenas essa espécie de coação, iremos nos ater a ela nos próximos tópicos.
8.4.2.RequisitosdacoaçãoConforme prescreve o art. 151 do Código Civil, a coação, para viciar
a declaração da vontade, há de ser tal que desperte ao paciente temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens (caput). Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação (parágrafo único). Da norma podem ser extraídos os requisitos para caracterização da coação:
a) A ameaça deve ser grave: a ameaça somente caracterizará coação se for grave e causar fundado temor de dano iminente
ao coagido. A análise desse requisito não deve levar em con-
sideração o homem médio, mas, sim, a vítima em concreto da
coação. Por essa razão o art. 152 determina que, “no apreciar a
coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o
temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que
possam influir na gravidade dela”. A ameaça que pode ser grave
para uma idosa que mora sozinha pode não ser grave para um
homem adulto.
Em caso de simples temor reverencial, não haverá coação, já que não
há ameaça grave. Temor reverencial é o receio de desagradar uma pessoa
a quem devemos respeito e obediência. Exemplos: o respeito que os filhos
têm pelos pais; os empregados pelos empregadores; o soldado pelo ca-
Decisão que dispõe sobre os requisitos da coação (TJRS, Ap. 70.060.217.379): “CONTRATOS AGRÁ- RIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. NE-GÓCIO JURÍDICO. DISTRATO DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO. ALEGAÇÃO DE VÍCIO DO CON-SENTIMENTO. COAÇÃO. A decla-ração de vontade é viciada pela coação se esta for séria, grave, atual, injusta e motivadora do ato. CC, art. 151. A coação deve ser cabalmente comprovada nos autos”.
JURISPRUDÊNCIA
158
pitão etc. Assim, quando um pai fala para seu fi lho vender o automóvel,
em princípio não se poderá alegar coação. Escrevemos “em princípio”
porque se, em vez do respeito, existir verdadeira ameaça grave, a coação
estará confi gurada. Exemplo: um pai condenado por cinco homicídios é
solto e ameaça matar a fi lha se ela não lhe doar a casa em que mora.
b) A ameaça deve ser de dano iminente: deve ser um dano atual
que não pode ser evitado pelo coagido. Entretanto, dano imi-
nente não signifi ca dano imediato. O importante é que a amea-
ça cause prontamente fundado temor de dano ao coagido. Por
outro lado, se o dano puder ser evitado pelo agente, sozinho ou
com ajuda de terceiros, a ameaça não caracteriza a coação. Tam-
bém não existirá coação se o mal for impossível.
c) A ameaça deve ser injusta: somente haverá coação se a ameaça
consistir na prática de um ato contrário ao ordenamento jurí-
dico, um ato ilícito (p. ex.: uma pessoa ameaça agredir outra se
uma dívida não for paga). De acordo com o art. 153 do Códi-
go Civil, se a ameaça corresponder ao exercício regular de um
direito, não haverá coação (p. ex.: uma pessoa ameaça protes-
tar o cheque devolvido sem fundos no Cartório de Protesto de
Títulos). Se consistir em ameaça de abuso de direito, também
haverá coação porque é espécie de ato ilícito (p. ex.: uma pessoa
ameaça colocar um outdoor de cobrança na frente da casa do
devedor se a dívida não for paga).
d) A ameaça deve recair sobre a pessoa, seus familiares ou seus
bens: o art. 151 do Código Civil determina que a ameaça deve
ser dirigida ao próprio coagido, à sua família, ou aos seus bens
(p. ex.: ameaça incendiar o automóvel do coagido). Interessante
observar que o legislador utilizou o termo “família” em vez de
“parentes” com o propósito de ampliar as possibilidades (p. ex.:
o fi lho do cunhado não é parente, mas pode ser considerado
familiar). E, mesmo que a pessoa não pertença à família do pa-
ciente, o juiz, com base nas circunstâncias, poderá decidir se
houve coação, conforme dispõe o parágrafo único do art. 151
(p. ex.: noivos, namorados, amigos íntimos etc.). Questão in-
teressante é a hipótese em que o coator dirige a ameaça a si
próprio para coagir outra pessoa a realizar um negócio (p. ex.:
o fi lho ameaça se matar se o pai não lhe doar um automóvel).
Entendemos que se a ameaça for séria e real nada impede o
reconhecimento da coação pelo juiz, em que pese a omissão
legislativa.
e) A ameaça deve ser a causa da celebração do negócio: o negócio
jurídico só será anulado por coação se a ameaça foi o fator de-
terminante para sua celebração. Assim como na responsabili-
dade civil, deve estar presente um nexo de causalidade entre o
fato (a ameaça) e o dano (o negócio celebrado). Se o coagido
celebrasse o negócio mesmo sem a ameaça, não haveria coação.
Direito Civil
159
8.4.3.ConsequênciasdacoaçãoDe acordo com o Código Civil de 2002, a coação determina a anu-
labilidade do negócio jurídico. A ação cabível é a anulatória, devendo
ser ajuizada no prazo decadencial de quatro anos a contar do dia em que
cessar a coação. A legitimidade para a propositura da ação é da pessoa
coagida. Na parte especial (Direito de Família), o Código Civil estabelece
o prazo de quatro anos para anulação do casamento por coação, contado
o prazo da data da celebração (art. 1.560, IV).
Além da anulabilidade do negócio, a parte prejudicada pela coação
também poderá pleitear o ressarcimento pelas perdas e danos, cumu-
lando a ação anulatória com pedido de reparação de danos (materiais,
morais etc.).
8.4.4.CoaçãoporterceiroSe outra pessoa realizar a coação em vez do contratante, o negócio
será anulável desde que o contratante beneficiado tivesse ou devesse ter
conhecimento da coação realizada. Nessa hipótese, além da anulabili-
dade do negócio, o terceiro e o contratante que se aproveitou da coação
responderão solidariamente pelos danos causados ao coagido.
No entanto, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que
aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento, o negócio não será
anulável, mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos
que houver causado ao coato.
8.5 ESTADO DE PERIgO A COAçãO
O estado de perigo consiste na celebração de um negócio jurídico
com onerosidade excessiva porque o agente estava premido da necessi-
dade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido
pela outra parte. Esse vício do consentimento não estava previsto no
Código Civil de 1916 e foi incluído no Código Civil de 2002, no art. 156.
Como exemplos de estado de perigo, podemos citar: a) a pessoa que
dá um cheque caução de alto valor em um hospital para garantir a inter-
nação de um familiar doente; b) a pessoa que aceita pagar a um médico
o dobro do valor normalmente cobrado por uma cirurgia para salvar a
vida do filho atropelado; c) a pessoa que vende uma casa a um amigo por
um preço irrisório para pagar o resgate do sequestro de seu irmão etc.
O estado de perigo não se confunde com a coação, uma vez que
nesta o outro contratante compele o agente a contratar. No estado de
perigo, há uma situação que força o agente a celebrar o negócio. Além
disso, no estado de perigo deve estar presente a onerosidade excessiva
(requisito objetivo), enquanto na coação não importa se o coagido so-
freu prejuízo ou não.
160
8.5.1. Requisitos do estado de perigoPara confi guração do estado de perigo, devem estar presentes um
requisito objetivo (onerosidade excessiva) e dois requisitos subjetivos
(situação de perigo e dolo de aproveitamento):
a) Onerosidade excessiva: para que o negócio possa ser anulado por estado de perigo, será necessário que a obrigação assu-mida seja exorbitante, isto é, que gere onerosidade excessiva para o agente. O Código Civil não estabelece qualquer por-centagem para a caracterização da onerosidade, deixando o seu reconhecimento a cargo do juiz, que irá analisar as cir-cunstâncias do caso concreto e decidir com base na equidade.
Essa onerosidade deve ser avaliada no momento da celebração do negócio, não importando se o objeto do contrato sofreu redução ou ma-joração de valor no futuro. Assim, se uma pessoa vender uma casa por um preço justo para pagar o tratamento de saúde de um fi lho e dois anos após a venda a casa dobrar de valor, não será possível a anulação do negócio.
b) Situação de perigo: para caracterização do estado de perigo, o
agente deve ter assumido a obrigação excessivamente onero-
sa com o objetivo de livrar a si próprio, um familiar ou uma
pessoa próxima de uma situação iminente de perigo de vida
(morte) ou grave dano moral (integridade física, moral ou in-
telectual). A situação de perigo é a razão de a pessoa contratar
em condições desfavoráveis.
De acordo com o caput do art. 156, a situação de perigo pode aco-
meter o próprio agente que realizou o negócio jurídico ou alguém de sua
família: fi lhos, netos, bisnetos, pais, avós bisavós, irmãos, tios, sobrinhos,
primos, sobrinhos-netos etc. Como o dispositivo se referiu a familiares, e
não a parentes, podem ser contempladas outras pessoas que não são pa-
rentes, como os fi lhos dos cunhados ou os tios do cônjuge. Além disso,
devemos lembrar que cônjuge e companheiro não são parentes, embora
exista parentesco com os parentes destes (parentesco por afi nidade).
Não bastasse isso, o parágrafo único do art. 156 dispõe que “tratan-
do-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá
segundo as circunstâncias”. Admite-se, assim, que o estado de perigo seja
reconhecido quando o agente praticar o ato para salvar um grande ami-
go, a namorada, a noiva etc.
c) Dolo de aproveitamento: como último requisito para caracte-
rização do negócio jurídico, o art. 156 do Código Civil exige
que a situação de perigo que levou o agente a contratar seja
conhecida do agente que se benefi ciou. Exemplo: a pessoa que
comprou a casa por preço irrisório sabia que a outra estava ven-
dendo para salvar a vida do fi lho.
A expressão dolo de aproveitamento representa corretamente o seu conteúdo: intenção de se aproveitar. Em algumas situações, esse requisito pode ressaltar da própria circunstância que envolve o negócio jurídico
A onerosidade excessiva exi-gida no estado de perigo é con-comitante à celebração do ne-gócio e não deve ser confundida, portanto, com a teoria da impre-visão (cláusula rebus sic stantibus), que é baseada na onerosidade excessiva superveniente e funda-menta pretensão de revisão ou resolução contratual (arts. 317 e 478 a 480, CC).
ATENçãO
Direito Civil
161
(p. ex.: o hospital que exige o cheque caução para aceitar internar um
enfermo), mas em geral deverá ser objeto de prova específica no processo.
8.5.2. ConsequênciasConforme determinação do art. 178, II, do Código Civil, o estado
de perigo determina a anulabilidade do negócio, devendo ser proposta
ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos a contar da cele-
bração do negócio. A legitimidade para a propositura da ação é da parte
prejudicada pelo negócio com onerosidade excessiva.
Nos termos do Enunciado 148, da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por
analogia, o disposto no § 2º do art. 157”. E, de acordo com o art. 157, §
2º, do Código Civil, “não se decretará a anulação do negócio, se for ofe-
recido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a
redução do proveito”.
Tal dispositivo consagra o princípio da conservação dos contratos,
que encontra suas raízes no princípio da função social, para privilegiar
a subsistência do contrato com revisão do seu conteúdo, em vez da
anulação. A aplicação analógica dessa regra prevista para a lesão ao es-
tado de perigo é justificada pela semelhança entre os institutos, como
veremos adiante.
Embora o Código Civil preveja apenas a anulabilidade como conse-
quência do estado de perigo, há entendimento doutrinário no sentido de
que a parte prejudicada pode optar pela propositura de ação de revisão
contratual, com base nos mesmos princípios: conservação dos contratos
e função social. Concordamos com esse entendimento, até porque em
muitas situações não será possível às partes retornar ao status quo ante,
isto é, ao estado anterior à realização do negócio.
8.6 lESãO
É a celebração de um negócio jurídico com onerosidade excessiva
porque o agente se encontrava em uma situação de premente necessi-
dade ou de inexperiência. Nesse sentido, o art. 157, caput, do Código
Civil dispõe que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente ne-
cessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da prestação oposta”.
Esses dispositivos consagram a lesão subjetiva, porquanto exigem
para sua caracterização a análise dos motivos que levaram a pessoa a
contratar com onerosidade. Não se confundem, desta forma, com a lesão
objetiva, também conhecida como lesão enorme (laesio enormis). A le-
são objetiva se caracteriza, simplesmente, pelo grave desequilíbrio entre
as prestações assumidas pelas partes em um contrato, sem investigação
dos motivos que levaram as partes a contratar.
Assim como o estado de pe-rigo, a lesão também não estava prevista no Código Civil de 1916, mas a Lei da Economia Popular (Lei n. 1.521/51) já previa essa mo-dalidade de lesão subjetiva ao considerar crime de usura pecu-niária ou real “obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inex-periência ou leviandade de ou-tra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corren-te ou justo da prestação feita ou prometida”.
COMENTÁRIO
162
Não é demais lembrar que a lesão pode estar presente em qualquer contrato bilateral, também denominado sinalagmático (p. ex.: compra e venda, locação, prestação de serviço, empreitada, transporte etc.), com qualquer espécie de obrigação (dar, fazer ou não fazer).
8.6.1.RequisitosdalesãoO reconhecimento da lesão exige a presença de um requisito obje-
tivo (onerosidade excessiva) e outro subjetivo (premente necessidade ou inexperiência). Ao contrário do estado de perigo, na lesão não precisa ser provado o dolo de aproveitamento, isto é, que o outro contratante tinha conhecimento da situação de necessidade ou inexperiência em que se encontrava a parte prejudicada (nesse sentido, o Enunciado 150
da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal).
a) Onerosidade excessiva: o simples fato de contratar sob pre-
mente necessidade ou por inexperiência não permite a anula-
ção do negócio jurídico. Para que tal ocorra, é necessário que o
agente assuma obrigação com prestação manifestamente des-proporcional ao valor da prestação oposta (onerosidade exces-
siva). Como o Código Civil não estabelece uma porcentagem a
ser observada, cabe ao juiz analisar se a desproporção entre as
prestações é excessiva.
Assim como no estado de perigo, a onerosidade deve ser avaliada
no momento da celebração do negócio. Nesse sentido, o § 1º do art. 157
do Código Civil estabelece: “aprecia-se a desproporção das prestações
segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio
jurídico”. Sobre a questão o Enunciado 290 da IV Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a lesão acarretará a
anulação do negócio jurídico quando verifi cada, na formação deste, a
desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não
se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado”.
Se o desequilíbrio entre as prestações for provocado por fato futuro
(p. ex.: alta no preço dos imóveis, infl ação, alta do dólar etc.), não poderá
ser invocada a lesão para a anulação do negócio jurídico. Nesse caso, a
parte prejudicada poderá se valer da revisão contratual por onerosidade
excessiva superveniente, mas deverá comprovar que o fato que provocou
o desequilíbrio é extraordinário e imprevisível (Código Civil, arts. 317
e 478 a 480).
b) Premente necessidade ou inexperiência: o que distingue es-
sencialmente a lesão do estado de perigo é o motivo que levou
o agente a contratar (indaga-se o que levou alguém a contratar
em condições tão desfavoráveis). Nesse ponto, o requisito sub-
jetivo da lesão pode ser a situação de premente necessidade ou
de inexperiência (basta uma delas).
A premente necessidade a que se refere o art. 157 do Código Civil
não é necessariamente econômica, embora seja a mais comum. Segundo
Caio Mário da Silva Pereira, a premente necessidade é a contratual, isto
III Jornada de Direito CivilEnunciado 150 do CEJ: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aprovei-tamento”.
COMENTÁRIO
Direito Civil
163
é, a necessidade de contratar, que independe da condição financeira do
contratante. A necessidade de contratar é a situação que se revela quan-
do o agente está impossibilitado de evitar o contrato. Como exemplo,
podemos citar uma agência de turismo que venda passagens aéreas na-
cionais, que não terá como evitar os contratos impostos pelas poucas
companhias aéreas brasileiras.
A inexperiência exigida para o reconhecimento da lesão deve ser
verificada de acordo com o conteúdo do contrato celebrado, pois se re-
fere à falta de conhecimentos específicos quanto à natureza do negócio.
Essa inexperiência pode ser técnica, negocial, jurídica, financeira etc.
Como não se refere à falta de cultura, toda pessoa pode ser considerada
inexperiente (p. ex.: um juiz de direito pode ser considerado inexperien-
te em um contrato de compra e venda de safra futura).
Quanto à inexperiência, o Enunciado 410 da V Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal propõe que “a inexperiência a que
se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou
desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral,
podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contra-
tos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o ne-
gócio em causa”.
8.6.2.ConsequênciasdalesãoO art. 178, II, do Código Civil estabelece que o negócio jurídico
viciado pela lesão é anulável, devendo ser proposta ação anulatória no
prazo decadencial de quatro anos, a contar da celebração do negócio
jurídico. A legitimidade para propositura da ação é apenas da parte pre-
judicada.
A anulação do negócio jurídico poderá ser evitada se o réu da ação
anulatória (a parte favorecida) oferecer suplemento suficiente ou con-
cordar com a redução do proveito. Essa regra, prevista no art. 157, §
2º, do Código Civil, decorre do princípio da conservação contratual. Exemplo: se uma pessoa, por inexperiência, vender uma casa que valia um milhão de reais pela metade do preço e propuser ação anulatória, o comprador evitará a anulação se oferecer a outra metade do valor.
Sobre o tema, o Enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal prevê que “em atenção ao princípio da con-servação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002”.
Mais interessante, ainda, é o conteúdo do Enunciado 291 da IV Jor-nada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pre-
tensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do
proveito do lesionador ou do complemento do preço”.
164
É certo que o Código Civil de 2002 não previu essa solução, mas
entendemos que pode ser adotada com base nos princípios da função
social e da conservação dos contratos: a revisão mantém o contrato vivo.
Além disso, a anulação do negócio pode não ser uma solução possível
para a parte prejudicada pela lesão porque a sentença determinará às
partes o retorno ao status quo ante. Imaginemos, então, um contrato
de compra e venda com lesão: com a anulação o comprador benefi cia-
do deverá devolver o bem e o vendedor prejudicado deverá devolver a
quantia recebida. Se o vendedor tiver gastado o dinheiro, não terá como
pleitear a anulação, mas poderá requerer a revisão contratual para rece-
ber a diferença do preço.
8.7 FRAUDE CONTRA CREDORES
A fraude contra credores é o ato do devedor insolvente ou próxi-
mo da insolvência alienar (vender ou desfazer-se de algum outro modo)
de um bem com o objetivo de prejudicar o credor, em virtude da di-
minuição do seu patrimônio. Exemplo: uma pessoa está devendo cem
mil reais e, sem quitar a dívida, doa para um amigo o único bem que
poderia ser utilizado para pagá-la.
A fraude contra credores representa, portanto, uma violação ao
princípio da responsabilidade patrimonial, pelo qual o patrimônio
de uma pessoa responde por suas obrigações. O devedor se antecipa à
reação de seus credores, alienando ou onerando seus bens que poderiam
ser objeto de expropriação judicial.
A fraude contra credores integra, ao lado da simulação, o grupo
dos vícios sociais: atuam na manifestação da vontade e o prejudicado é
sempre uma pessoa que não participou do negócio jurídico (terceiro).
Os cinco vícios já estudados (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão)
são considerados vícios da vontade ou do consentimento, pois atuam
na formação da vontade e o prejudicado é sempre um dos contratantes.
8.7.1.Requisitosparacaracterizaçãodafraudecontra credores
O reconhecimento da fraude contra credores depende do reconhe-
cimento de três requisitos: evento danoso, anterioridade do crédito e
conluio fraudulento (ou ciência da fraude). Os dois primeiros requisitos
têm natureza objetiva e devem ser provados em todas as hipóteses de
fraude. O último requisito, de natureza subjetiva, deverá ser provado em
algumas situações e em outras será presumido.
a) Evento danoso (eventus damni): o credor deverá provar que
o ato de alienação tachado de fraudulento reduziu o devedor à
condição de insolvente. O requisito do evento danoso depende,
Direito Civil
165
portanto, da análise do patrimônio do devedor (créditos e débi-
tos) no momento em que aliena o bem.
É evidente que o instituto da fraude contra credores não impede
que a pessoa que tenha dívidas aliene os seus bens. Só haverá fraude
no ato de alienação ou oneração se for maliciosa e desfalcar o patrimô-
nio global do devedor a ponto de não conseguir responder pelas suas
obrigações.
b) Anterioridade do crédito: para caracterização da fraude con-
tra credores o autor da ação pauliana deverá provar que já era
credor do réu no momento em que ele alienou ou onerou os
bens. A anterioridade do crédito não leva em consideração o
momento do vencimento dele, mas, sim, da sua origem.
Nesse sentido, o Enunciado 292 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal propõe que “para os efeitos do art. 158, § 2º,
a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem,
independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial”.
Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o crédito
reputa-se constituído no momento da formação do contrato. Exemplo:
se uma pessoa recebeu dinheiro emprestado em 2013, alienou bens em
2014 e não pagou o empréstimo no momento do seu vencimento em
2015, terá agido em fraude, uma vez que já era devedora desde 2013.
Na hipótese de responsabilidade civil extracontratual ou aquili-ana, o crédito considerar-se-á constituído desde o momento em que foi
praticado o ato ilícito. Exemplo: se uma pessoa atropelou outra em 2012,
alienou bens em 2013, foi processada em 2014 e condenada em 2015 a
reparar os danos causados, terá agido em fraude porque já era devedora
desde 2012.
c) Conluio fraudulento (consilium fraudis) ou ciência da fraude (scientia fraudis): o credor deverá provar que o adquirente do
bem agiu em conluio com o devedor ou que tinha ciência da situ-
ação de insolvência do devedor. Em outras palavras, deverá ser
provada a má-fé do adquirente. A prova do conluio ou da ciência
da fraude pode ser feita por todos os meios admissíveis no pro-
cesso civil, inclusive indícios e presunções. Como exemplos de
forte indício de fraude, podemos apontar a aquisição de bens por
preço vil e a aquisição de bens por parentes próximos.
No entanto, ao contrário dos demais requisitos, esse último nem
sempre precisará ser provado. Se a alienação de bens pelo devedor for
gratuita (p. ex.: doação), a má-fé do adquirente será presumida (pre-
sunção absoluta). Se a alienação de bens for onerosa (p. ex.: compra e
venda), em regra será necessário provar a má-fé do adquirente (que agiu
em conluio ou que tinha ciência da fraude).
Por fim o art. 164 do Código Civil estabelece que “presumem-se,
porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à ma-
nutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à sub-
sistência do devedor e de sua família”. O objetivo da norma é, primeiro,
VOCABUlÁRIO
Ação pauliana: também de-nominada revocatória, é aque-la que visa desfazer a fraude contra credores, de modo que os bens alienados fraudulenta-mente pelo devedor retornem ao seu patrimônio por determi-nação judicial, a fim de que se-jam usados pelo credor para a satisfação da dívida.
166
evitar que a situação do devedor seja agravada com a paralisação da
sua atividade econômica. Assim, o comerciante que estiver insolvente
poderá continuar vendendo os produtos de sua loja (negócio ordinário),
mas incorrerá em fraude se alienar o próprio estabelecimento (negócio
extraordinário).
O segundo objetivo da norma é a garantia da subsistência do de-
vedor e de sua família, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Seria absurdo proteger o crédito de uma pessoa em detrimento
da sobrevivência de outra.
8.7.2. Hipóteses de fraude contra credoresO Código Civil apresenta expressamente quatro hipóteses em que
poderá ser reconhecida a fraude contra credores:
a) Atos de transmissão gratuita, remissão de dívidas ou renún-cia de direitos (Código Civil, art. 158): ocorre quando um de-
vedor insolvente cede parte de seu patrimônio reduzido, abrin-
do mão do que indiretamente pertence a seus credores. Nessas
hipóteses não importa a ciência da insolvência do doador pelo
donatário, pois o interesse do credor prevalece sobre o interesse
do donatário. É mais justo proteger o devedor para que não
fi que com prejuízo do que proteger o lucro do donatário. Essa é
a razão pela qual a prova do conluio fraudulento é dispensada.
Aplica-se o mesmo raciocínio para a remissão (perdão) de dívi-
das ou remissão de direitos, já que, quando o devedor perdoa
alguma dívida ou renuncia a algum direito, estará reduzindo
o patrimônio ou direito que poderia ser executado pelos seus
credores.
b) Alienações onerosas quando a insolvência é notória ou de conhecimento do outro contraente (Código Civil, art. 159):
nessa hipótese existe um confl ito entre o credor do alienante
(devedor) e o adquirente de boa-fé. Se o adquirente não tem
ciência da insolvência do devedor, seu interesse é que vai pre-
valecer sobre o do credor. Porém, se o adquirente sabia da in-
solvência do devedor ou se a insolvência é notória (p. ex.: tem
títulos protestados) e agiu de má-fé, o negócio será anulável.
O art. 160 do Código Civil determina que, se o adquirente dos bens
do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproxi-
madamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com
a citação de todos os interessados. Porém, se for inferior, o adquirente,
para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda
ao valor real.
c) Pagamento antecipado de dívida a credor quirografário (Código Civil, art. 162): se o devedor paga dívidas vencidas, age
licitamente. Porém, se paga débitos que ainda não venceram,
age de maneira anormal, que já revela o propósito fraudulento.
Nessa hipótese, o art. 162 do Código Civil dispõe que o credor
VOCABUlÁRIO
credor quirografário: aquele que não possui uma garantia real como a hipoteca, o pe-nhor ou a anticrese.
Direito Civil
167
quirografário (aquele sem preferência no crédito), que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não venci-da, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores.
d) Outorga fraudulenta de garantias reais (Código Civil, art. 163): nos termos do art. 163, presumem-se fraudatórias dos di-reitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor. O devedor insolvente que presta qualquer forma de garantia real (hipoteca, penhor, anti-crese ou propriedade fiduciária – alienação fiduciária) a um de seus credores quirografários acaba prejudicando os demais em razão da preferência estabelecida. Se a garantia prestada for pes-soal/fidejussória (fiança ou aval), não haverá fraude, pois estas não geram preferência e por isso não prejudicam os demais cre-dores. O art. 163 estabelece uma presunção legal absoluta (juris et de jure) de fraude, acarretando a anulabilidade da garantia. Com a anulação da garantia (não do crédito) o credor retornará à condição de credor quirografário (sem preferência).
8.7.3. Consequências da fraude contra credoresIgnorando forte crítica doutrinária, o legislador manteve no Códi-
go Civil de 2002 a mesma consequência para a fraude contra credores que já estava prevista no diploma de 1916: a anulabilidade do negócio jurídico. Concordamos com os autores que se posicionam diversamente à solução adotada defendendo que a consequência adequada seria a ine-ficácia relativa do negócio: o ato fraudulento é ineficaz perante os cre-dores prejudicados, mas válido e eficaz entre as partes. Em questões de concursos públicos recomendamos que seja gabaritada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que tem optado pela anulabilidade em vez da ineficácia.
Para que o negócio jurídico seja anulado, o credor prejudicado deverá propor ação revocatória, também denominada ação pauliana (recebe esse nome porque foi inventada pelo pretor Paulo, no direito romano), no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração do negócio jurídico. De acordo com a jurisprudência, a fraude contra credores não pode ser reconhecida em sede de embargos de terceiro, de-vendo ser proposta a ação pauliana para tanto.
A legitimidade ativa (ou seja, para propor a ação) é das pessoas que já eram credoras no momento em que a fraude foi praticada. Quanto à legitimidade passiva (ou seja, para ser processado, figurando como réu) o art. 161 do Código Civil determina que, “nos casos dos arts. 158 e 159, a ação poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé”. O termo poderá foi utiliza-do de forma equivocada pelo legislador. Na verdade, a ação deverá ser proposta em face do devedor e do outro contratante que participou da
fraude. Nesse sentido, aliás, é a jurisprudência do STJ.
168
8.7.4. Fraude contra credores versusfraudeàexecução
É muito comum a confusão entre a fraude contra credores e a
fraude à execução. Na fraude à execução, instituto de direito processu-
al civil, o devedor já tem contra si processo judicial capaz de reduzi-lo
à insolvência e, ainda assim, atua ilicitamente, alienando ou onerando
seus bens em prejuízo não só dos seus credores, mas também do próprio
processo, caracterizando reprovável atitude de desrespeito à justiça.
Caracteriza-se principalmente como ato de rebeldia à autoridade
estatal exercida pelo juiz, pois alienar bens na pendência deste e redu-
zir-se à insolvência signifi caria tornar inútil o exercício da jurisdição e
impossível a imposição do poder sobre o patrimônio do devedor.
Por outro lado, na fraude contra credores, instituto de direito civil,
o devedor não se insurge contra o processo ou a autoridade judicial.
Procura apenas se desfazer do seu patrimônio executável para que não
responda pelas obrigações anteriormente assumidas em contrato ou im-
postas pela lei.
A fraude à execução conduz à inefi cácia do negócio jurídico e o seu
reconhecimento não depende de propositura de ação específi ca, poden-
do ser alegada incidentalmente mediante simples petição no processo,
resultando em decisão interlocutória. Diversamente, a fraude contra
credores determina a anulabilidade do negócio e exige a propositura
da ação pauliana para o seu reconhecimento. De acordo com a Súmu-
la 195 do STJ, “em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por
fraude contra credores”.
O grande problema é identifi car a partir de que momento a
alienação de bens pelo devedor deixa de ser fraude contra credores e
passa a ser fraude à execução. A doutrina majoritária defende que o mo-
mento que separa os institutos é o da propositura da ação (de conheci-
mento ou execução). Se o bem foi vendido antes, haverá fraude contra
credores e, se o bem foi vendido após, haverá fraude à execução.
Adiantamos que esta é a posição mais justa, pois, a partir da propo-
situra da ação, o nome do devedor passará a constar dos distribuidores
cíveis, dos quais qualquer pessoa tem acesso aos dados ao requerer cer-
tidão (a cobrança se torna pública, impedindo a alegação de desconhe-
cimento da dívida pelo adquirente do bem).
Entretanto, na jurisprudência dos tribunais tem prevalecido a tese
de que somente haverá fraude à execução a partir do momento em que
o devedor foi citado da ação. Essa posição permite favorecer o devedor
de má-fé que pretenda dilapidar seu patrimônio e prejudica o credor
que deverá propor outra ação para tentar recuperar seu crédito. É muito
mais difícil e custoso anular a venda por fraude contra credores do que
declará-la inefi caz em razão da fraude à execução.
Outro fator de distinção entre os institutos, apontado pela doutri-
na, é a necessidade de prova da má-fé do adquirente na fraude contra
Direito Civil
169
credores (salvo quando a alienação é gratuita), enquanto na fraude à
execução haveria uma presunção absoluta de má-fé por parte do ad-
quirente. Entretanto, no início de 2009, o Superior Tribunal de Justiça
editou a Súmula 375 dispondo que “o reconhecimento da fraude à
execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova
de má-fé do terceiro adquirente”.
Entendemos que esta súmula representa verdadeiro retrocesso por
confundir os requisitos da fraude contra credores com os da fraude à
execução e, principalmente, por estabelecer uma proteção exagerada do
devedor e do terceiro adquirente em detrimento do credor.
Quanto aos efeitos da decisão que reconhece os institutos, temos
que a fraude contra credores beneficia todos os credores, enquanto na
fraude à execução a decisão judicial beneficia apenas o credor do proces-
so em que foi praticado o ato fraudulento.
170
Invalidade dos Negócios Jurídicos 9
172
9.1 INValIdade
Após tratar dos vícios do negócio jurídico, o Código Civil de 2002
dispõe sobre a nulidade e anulabilidade no Capítulo V (“Da invalidade
do negócio jurídico”), em seus arts. 166 a 184. Invalidade, em sentido
amplo, é expressão utilizada para designar o negócio que não produz as
consequências desejadas pelas partes. É gênero do qual decorrem duas
espécies: a nulidade (negócio jurídico nulo); e a anulabilidade (negócio
jurídico anulável).
No Código Civil de 1916 o legislador utilizava a expressão nulidade absoluta para se referir ao negócio jurídico nulo e nulidade relativa
para se referir ao negócio jurídico anulável. No Código Civil de 2002
as expressões foram eliminadas, mas continuam sendo utilizadas pela
doutrina e jurisprudência.
A escolha do legislador por uma ou outra sanção (consequência a
ser aplicada) decorre da análise do interesse envolvido. Quando há ofen-
sa a princípios básicos do ordenamento jurídico e, consequentemente,
lesão a interesse da coletividade (hipóteses mais graves), o legislador impõe a nulidade. Quando o interesse é particular (hipóteses menos graves), a sanção escolhida é a anulabilidade.
Nos termos do art. 184 do Código Civil, “respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obriga-ção principal”.
A aplicabilidade dessa norma se dá tanto às hipóteses de nulidade como às de anulabilidade, preservando, se possível for, parte do negócio jurídico que não esteja contaminado pela invalidade. Trata-se de reco-nhecimento do princípio da conservação dos contratos.
9.1.1. Invalidade versus inexistênciaAo estudarmos os planos do negócio jurídico, vimos que a ausên-
cia dos elementos que compõem o plano de existência (partes, objeto, forma e vontade) determina sua inexistência. Já a invalidade decorre da não observância dos requisitos exigidos pelo plano de validade.
É certo que o Código Civil de 2002 não adotou a teoria dos atos existentes e inexistentes, concebida no século XIX, para impedir o ca-samento entre pessoas do mesmo sexo (entendia-se que a diferença de sexo seria um pressuposto tão elementar do casamento que, se não veri-fi cada, não existiria casamento). Entretanto, não são poucos os autores
que defendem a importância do plano de existência no estudo dos ne-
gócios jurídicos (Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Renan
Lotufo, Sílvio Venosa, Francisco Amaral etc.).
O ato inexistente é aquele que não preenche os elementos essen-
ciais à sua constituição. Ao contrário dos atos inválidos, o ato inexistente
(STJ, 3ª T., Resp 981.750, Min. Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJ 23.4.2010).
JuRIsPRudÊNCIa
Direito Civil
173
é considerado um simples fato que não tem força para produzir efeitos
jurídicos. Desta forma, em princípio, não é sequer necessária a proposi-
tura de ação judicial para reconhecer o ato como inexistente (o ato existe
no mundo dos fatos, mas não no do direito).
No entanto, a prática revela que muitas vezes será necessária a pro-
positura de ação declaratória de inexistência. Isso faz com que desapa-
reça o principal fator de distinção entre a inexistência e a nulidade: a
necessidade de declaração judicial.
9.2 NulIdade
Nulidade em sentido amplo é a sanção legal que determina a pri-
vação de efeitos jurídicos do negócio praticado em desacordo ao orde-
namento jurídico. Pode ser de dois tipos: a nulidade e a anulabilidade. A
nulidade em sentido estrito decorre da violação de preceitos de ordem
pública que consagram interesses sociais. A anulabilidade será estudada
mais à frente e decorre da violação de interesses privados.
A nulidade textual é aquela em que a própria norma jurídica dis-
põe expressamente que o ato será nulo (p. ex.: Código Civil, art. 166). A
nulidade virtual ou implícita é aquela deduzida de expressões utiliza-
das pelo legislador com o fim de proibir a prática de determinados atos
(p. ex.: “não pode”, “não se admite” etc.).
9.2.1 Hipóteses de nulidadeO art. 166 do Código Civil contém sete hipóteses em que o negócio
jurídico será considerado nulo. Será nulo o negócio quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz: quando a pessoa é
absolutamente incapaz sua vontade é desprezada pelo ordenamento
jurídico, devendo ser representada (a vontade é substituída) nos atos
da vida civil sob pena de nulidade do ato. O rol dos absolutamente
incapazes está previsto no art. 3º do Código Civil.
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto: o negócio
será nulo se o objeto for: a) ilícito: aquele que viola o ordenamento
jurídico (lei, moral, ordem pública ou bons costumes); b) impossí-
vel: aquele que não pode ser cumprido em razão dos limites físicos
dos seres humanos (impossibilidade física) ou dos limites jurídicos
(impossibilidade jurídica); c) indeterminável: aquele que não permi-
te individualização (p. ex.: falta do gênero ou da quantidade em uma
obrigação de dar).
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito: o
motivo que leva uma pessoa a realizar um negócio jurídico em regra
não tem relevância para análise da validade deste. Contudo, quando
o motivo for a razão determinante do negócio, há relevância jurídica
na sua análise, determinando a nulidade do ato.
174
IV – não revestir a forma prescrita em lei: em regra o direito civil
não exige formalidade para a validade dos negócios jurídicos (Códi-
go Civil, art. 107). Contudo, quando esta é exigida e não for cumpri-
da, o negócio será nulo.
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial
para a sua validade: embora alguns autores utilizem as expressões
“solenidade” e “formalidade” como sinônimas, entendemos que a
formalidade diz respeito à exigência de forma escrita, enquanto a so-
lenidade é a exigência de instrumento público (p. ex.: Código Civil,
art. 108). A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurí-
dico sempre que este puder provar-se por outro meio.
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa: deve ser considerado
nulo o negócio jurídico que tenha por objetivo violar norma jurídica
considerada de ordem pública (aquelas que não podem ser afastadas
pelo exercício da autonomia privada).
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática,
sem cominar sanção: o negócio jurídico será nulo se a lei assim o
determinar (nulidade textual ou expressa) ou se proibir a prática do
ato sem estabelecer sanção específi ca (nulidade virtual ou implícita).
Além das hipóteses do art. 166, o art. 167 do Código Civil dispõe
que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissi-
mulou, se válido for na substância e na forma”. O legislador do novel
diploma considerou a simulação como simples causa de nulidade diante
das inúmeras formas que ela pode revestir, mas a doutrina majoritária
continua considerando-a como vício social. Um vício social que deter-
mina a nulidade do negócio jurídico.
9.2.2. Regras da nulidadeQuando o negócio jurídico é considerado nulo, deve ser propos-
ta ação declaratória de nulidade. Qualquer interessado ou até mesmo
o Ministério Público têm legitimidade para requerer a declaração de
nulidade do negócio jurídico nas hipóteses previstas nos arts. 166 e 167
do Código Civil. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o legislador do
Código Civil de 2002 se afastou do antigo princípio francês do pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), abandonando o crité-
rio do prejuízo para a declaração de nulidade do negócio.
Por envolver interesse público, as nulidades devem ser pronuncia-
das pelo juiz (decretação de ofício), quando conhecer do negócio jurídi-
co ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido
supri-las, ainda que a requerimento das partes (Código Civil, art. 168,
parágrafo único).
Portanto, o negócio jurídico nulo não pode ser suprido, sanado
ou convalidado, mas pode ser objeto de conversão, nos termos do art.
170 do Código Civil: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os
requisitos de outro, subsistirá este quando o fi m a que visavam as partes
permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.
COmeNTÁRIO
I Jornada de direito Civilenunciado 13 do CeJ: “O aspec-to objetivo da convenção requer a existência do suporte fático no negócio a converter-se”. (sobre o art. 170 do CC)
Direito Civil
175
Como exemplo de conversão, podemos citar a celebração de um
contrato de compra e venda de um imóvel com valor superior a trinta
salários mínimos mediante instrumento particular. Por força do dispos-to nos arts. 108 e 166, V, do Código Civil, o negócio jurídico será nulo, mas qualquer uma das partes poderá requerer em juízo a conversão dele em um compromisso de compra e venda que, independentemente do valor, pode se valer do instrumento particular.
O art. 169 do Código Civil ainda determina que o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo. Não se tem dúvidas de que referido dispositivo consagrou a imprescritibilidade do negócio jurí-dico nulo, mas na doutrina podemos encontrar as seguintes correntes sobre o tema:
1ª Corrente: defende a imprescritibilidade da ação declaratória de nulidade, nos termos da redação do art. 169 (Silvio Rodrigues). Esta é a posição mais segura para quem for prestar concursos públicos.
2ª Corrente: defende a inexistência de direitos patrimoniais im-prescritíveis. Desta forma, a ação declaratória de nulidade deve respeitar o prazo geral de prescrição de dez anos, previsto no art. 205 do Código Civil (Caio Mário da Silva Pereira).
3ª Corrente: defende que a ação declaratória de nulidade é impres-critível, mas pondera que as consequências do ato só podem ser desfeitas dentro do prazo geral de prescrição de dez anos (Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho).
9.3 aNulabIlIdade
A anulabilidade é a sanção imposta pela lei quando presente viola-ção de interesses particulares. Ao contrário da nulidade, que apresenta um estado fixo (o negócio já nasce nulo), a anulabilidade revela um esta-do mutável (o negócio nasce com a possibilidade de ser anulado). É por essa razão que o negócio jurídico nulo não produz efeitos, e o negócio jurídico anulável produz efeitos até ser anulado.
9.3.1. Hipóteses de anulabilidadeO art. 171 do Código Civil prevê que, além dos casos expressamente
declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
I – por incapacidade relativa do agente: os relativamente incapazes
devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade
do negócio. De acordo com o art. 4º do Código Civil, são relativamen-te incapazes: a) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; b) os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos.
II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, le-são ou fraude contra credores: o legislador consagrou o princípio
VOCabulÁRIO
pródigo: pessoa portadora de distúrbio mental que a impede de controlar seus gastos e man-ter seu patrimônio, o que acar-reta incapacidade para deter-minados atos da vida civil.
Nulidade: é o negócio jurídi-co considerado nulo.
anulabilidade: é a sanção imposta ao negócio quando pre-sentes os vícios. Produz efeitos até ser anulado.
aTeNÇÃO
176
da operabilidade ao uniformizar o tratamento conferido aos vícios
do negócio jurídico no Código Civil de 2002: todos determinam a
anulabilidade do negócio e ação deve ser proposta no prazo decaden-
cial de quatro anos. A simulação não seguiu o mesmo padrão, pois o
legislador entendeu que ela não seria vício do negócio.
Além das hipóteses previstas no art. 171, o Código Civil apresenta
diversas outras hipóteses de anulabilidade: arts. 117, 119, 141, 496, 533,
II, 1.550, 1.558, 1.649 e 2.027.
9.3.2. Consequências da anulabilidadePara que o negócio seja anulado, a parte interessada deverá propor
ação anulatória. A legitimidade ativa é exclusiva da parte prejudicada
pelo ato e os seus efeitos só aproveitam aos que a alegarem, salvo o caso
de solidariedade ou indivisibilidade do objeto.
A anulabilidade não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz e
produz efeito antes de julgada por sentença. Essa sentença tem natu-
reza desconstitutiva e efi cácia ex nunc consoante doutrina majoritária. Entretanto, há quem entenda que a efi cácia seria ex tunc em razão do disposto no art. 182 do Código Civil: “anulado o negócio jurídico, resti-tuir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”.
O negócio jurídico anulável pode ser confi rmado pelas partes, re-troagindo à data em que foi celebrado o ato. Essa confi rmação do ato não será possível se prejudicar direito de terceiro de boa-fé. O ato de confi rmação pode ser expresso ou tácito. Se a confi rmação for expressa, deverá conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo. Também deverá ser observada a solenidade se esta for da substância do ato.
A confi rmação tácita pode ser verifi cada em duas hipóteses: a pri-meira decorre do fi m do prazo decadencial para a anulação do negócio; a segunda resulta do cumprimento parcial do negócio pelo devedor, quando ciente do vício que o inquinava (o art. 174 dispõe que é escusa-da – ou seja, dispensada – a confi rmação expressa nesta situação).
A confi rmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anu-lável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor (art. 175). Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de tercei-ro, será validado se este a der posteriormente (art. 176).
A ação anulatória deverá ser proposta no prazo decadencial de qua-tro anos, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no
de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia
em que se realizou o negócio jurídico; e III – no de atos de incapazes, do
dia em que cessar a incapacidade.
Se a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer
prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data
da conclusão do ato (Código Civil, art. 179). Esse prazo, por exemplo,
CuRIOsIdade
Defeitos dos negócios jurídicos:a) erro: “(...) quando a pessoa
manifesta sua vontade negocial em razão de determinada pessoa ou de determinada coisa, mas fazendo com outra pessoa ou coisa aparentes”.
b) dolo: “(...) a malícia ou o arti-fício inspirado na má-fé para induzir a outra parte a realizar o negócio jurídi-co, em seu prejuízo”.
c) coação: “(...) a ameaça à pessoa ou à família da outra parte ca-paz de incutir medo de dano pessoal ou material caso não realize o negó-cio jurídico pretendido pelo coator”.
d) lesão: “(...) o defeito do negó-cio jurídico caracterizado pela van-tagem desproporcional de uma das partes, que age de má-fé, aproveitan-do-se da situação de vulnerabilidade da outra”.
e) estado de perigo: “(...) espécie do gênero lesão, caracterizado pelo fato de que a pessoa prejudicada tem consciência da desvantagem ou iniquidade provocadas pelo negócio jurídico, mas o realiza ante a situação peculiar da necessidade de salvar-se ou de salvar alguém de sua família”.
f) fraude contra credores: “Cre-dor e devedor, agindo de má-fé, utili-zam-se da aparência de determinado negócio jurídico, que esconde a real intenção, ou seja, de impedir que o terceiro, credor de um deles, possa ter satisfeito ou garantido, patrimonial-mente, o seu crédito”.
FONTE: LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 259-278.
VOCabulÁRIO
Efeito ex tunc: é aquele que retro-age à época em que se formou a relação jurídica.Efeito ex nunc: começa a atuar a partir da prolação da sentença, preservando os efeitos negociais já produzidos.
Direito Civil
177
deve ser observado na ação anulatória de venda de ascendente a descen-
dente, sem autorização dos demais descendentes (art. 496).
O art. 180 do Código Civil consagra a regra pela qual a malícia supre a incapacidade, ao dispor que “o menor, entre dezesseis e dezoito
anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se
dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato
de obrigar-se, declarou-se maior”.
Por fim, o art. 181 do Código Civil dispõe que “ninguém pode re-
clamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não
provar que reverteu em proveito dele a importância paga”.
9.4 sImulaÇÃO
A simulação é uma declaração enganosa da vontade com o objetivo
de provocar uma ilusão no público, seja por não existir negócio de fato,
seja por existir um negócio diferente daquele que se aparenta. Há, por-
tanto, um desacordo intencional entre a vontade interna (intenção) e a
vontade externa (manifestação), com o objetivo de iludir terceiro.
Como requisito da simulação figura, assim, um acordo (simulató-
rio) entre as partes com objetivo de declarar perante terceiros um ne-
gócio jurídico aparente (negócio simulado), podendo, igualmente, haver
um negócio verdadeiro entre as partes contratantes (negócio dissimula-
do). Percebe-se, dessa forma, que o propósito do negócio aparente é o de
enganar a coletividade, e não o outro contraente.
Consoante prescreve o art. 167, § 1º, do Código Civil, haverá si-
mulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou
transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se con-
ferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição
ou cláusula não verdadeira; ou III – os instrumentos particulares forem
antedatados, ou pós-datados.
A simulação é quase sempre verificada em negócios jurídicos bila-
terais (normalmente contratos), mas também pode estar presente em
negócios jurídicos unilaterais, se houver ajuste simulatório entre a pes-
soa que pratica o ato simulado e a outra que suportará as consequências
do ato.
9.4.1. Natureza jurídicaNo Código Civil de 1916 a simulação era tratada juntamente com
os demais vícios do negócio jurídico, mas no Código Civil de 2002 foi
deslocada para o capítulo que trata da invalidade do negócio jurídico,
deixando dúvida se continua a ser espécie de vício ou se passou a simples
hipótese de nulidade absoluta.
Entendemos que o deslocamento da matéria não alterou a nature-
za do instituto, devendo ser tratada como espécie de vício social, pois,
a Proposta (The Proposal, 2009).Neste filme, Margaret, uma imigrante ca-nadense, des-cobre que po-derá enfrentar
acusações por deportação em função de seu visto estar expiran-do. Disposta a manter sua função como chefe-executiva em uma Editora, Margaret convence seu assistente a atuar como seu ma-rido até que ela resolva seus pro-blemas de visto, no entanto, com o passar do tempo, a relação dos dois vai se intensificando. Enten-de-se que a relação dos dois foi um negócio simulado, pela rela-ção afetiva não existir de fato.
CINemaTeCa
178
assim como a fraude contra credores, a simulação apresenta defeito na
manifestação da vontade e tem por objetivo prejudicar terceiros que
não participaram do negócio.
9.4.2. Requisitos da simulaçãoa) Conluio das partes envolvidas: na simulação os contratantes
agem de forma conjunta e combinada. Nesse aspecto, a simu-
lação não deve ser confundida com a reserva mental, embora
nas duas fi guras o sujeito declare conscientemente algo diverso
do que na verdade pretende, com o fi m de enganar alguém. Na
reserva mental a pessoa envolvida no negócio não tem conheci-mento do fato e das intenções da outra parte, sendo vítima das pretensões do sujeito; na simulação a vítima é um terceiro que não participa do ato simulado. Além disso, ao estudarmos os requisitos de validade do negócio jurídico no capítulo anterior, vimos que a reserva mental, em regra, não gera a invalidade do negócio (Código Civil, art. 110).
b) Propósito de iludir e enganar: a simulação é realizada com o objetivo de produzir um efeito diverso do ostensivamente indi-cado, que vicia o ato desde o seu nascimento. Sobre a aparência de um ato lícito pretende-se prejudicar terceiros ou violar a lei. Essa é a razão pela qual a simulação não deve ser confundida com o dolo: na simulação as partes desejam prejudicar tercei-ros, no dolo uma parte quer prejudicar outra.
c) Divergência consciente entre a vontade declarada e a vontade real: as partes não se enganam de forma involuntária na simu-lação. A diferença entre a vontade interna (intenção) e a vonta-
de externa (manifestação) é sempre consciente e desejada.
9.4.3. Consequências da simulaçãoDiversamente dos demais vícios do negócio jurídico que determi-
nam a anulabilidade (o negócio jurídico é anulável), a simulação gera a
nulidade (o negócio jurídico é nulo). Nesse sentido, o art. 167, caput, do
Código Civil determina que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Ao dispor que subsistirá o que se dissimulou, o dispositivo permite que a pena de nulidade seja aplicada de forma distinta a depender do tipo de simulação. Conforme veremos no próximo tópico, na simulação abso-luta a nulidade atinge todo o negócio, enquanto na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte viciada do negócio.
Para que seja reconhecida a simulação, deverá ser proposta a ação
declaratória de nulidade a qualquer tempo, pois, de acordo com o art.
169 do Código Civil, o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decur-
so do tempo (é imprescritível).
Por ser causa de nulidade, a ação pode ser proposta por qualquer
interessado, inclusive pelo Ministério Público, quando lhe couber in-
VOCabulÁRIO
conluio: ação combinada en-tre duas ou mais pessoas com o objetivo de lesar um terceiro, obter vantagem ilícita ou fur-tar-se ao cumprimento de uma obrigação imposta por Lei.
III Jornada de direito Civilenunciado 152 do CeJ: “Toda si-mulação, inclusive a inocente, é invalidante”.
COmeNTÁRIO
Direito Civil
179
tervir (interesses de menores ou de incapazes, ou quando entender ne-
cessária a intervenção para proteção de interesses metaindividuais ou
individuais relativos à dignidade da pessoa humana).
Em que pese a declaração de nulidade absoluta, são preservados os
efeitos gerados pelo negócio aparente em relação a terceiros de boa-fé
(aqueles que desconheciam a divergência entre a vontade real e a decla-
ração dos contratantes). Com a intenção de proteger a confiança impres-
cindível entre os agentes, a ordem jurídica ressalva os direitos de tercei-
ros de boa-fé que acreditaram e fundamentaram suas ações na aparência
do negócio jurídico a eles apresentado (Código Civil, art. 167, § 2º).
9.4.4.Classificaçãodasimulaçãoquantoaoseuconteúdo
9.4.4.1. Simulação absolutaÉ aquela em que a declaração de vontade viciada não visa a produ-
ção de qualquer efeito jurídico. As partes procuram transmitir a tercei-
ros uma impressão enganosa de que teriam convencionado determina-
do negócio jurídico (aparente), mas na realidade não desejam realizar
qualquer negócio. Quando a simulação é absoluta, o negócio jurídico é
completamente nulo por não existir nada de verdadeiro na manifestação
de vontade.
Abaixo transcrevemos interessantes exemplos de simulação absolu-
ta apresentados pela professora Maria Helena Diniz:
a) o proprietário de uma casa alugada que, com a intenção de faci-
litar a ação de despejo contra seu inquilino, finge vendê-la a ter-
ceiro que, residindo em imóvel alheio, terá maior possibilidade
de vencer a referida demanda (RT, 177:250, 439:92);
b) a emissão de títulos de crédito, que não representam qualquer
negócio, feita pelo marido, em favor de amigo, antes da separa-
ção judicial, para prejudicar a mulher na partilha de bens (RT,
255:451, 307:376, 441:276, 317:155 e 179:844);
c) a alegação de uma situação patrimonial inexistente, quando, p.
ex., o proprietário de uma pedreira que explodiu, causando gra-
ves prejuízos a terceiros, declara que é devedor de enormes quan-
tias a um amigo seu, a quem dá garantia real, com a finalidade de,
mediante a preferência concedida, ilidir a execução que lhe seria
movida pelas vítimas do referido acidente (RF, 40:546);
d) o devedor que finge vender seus bens para evitar a penhora;
e) a pessoa que, ante o incessante pedido de parentes para que ve-
nha a prestar fiança ou aval, transfere, para pôr fim àquele “assé-
dio”, seus bens para um amigo, fazendo com que não haja em seu
nome lastro patrimonial, tornando-lhe impossível a prestação de
qualquer garantia real ou fidejussória.
IV Jornada de direito Civilenunciado 294 do CeJ: “Sendo a simulação uma causa de nulida-de do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes con-tra a outra”.
COmeNTÁRIO
180
9.4.4.2. Simulação relativaA simulação relativa, também conhecida como dissimulação, é
aquela em que há um negócio jurídico falso (negócio simulado) enco-
brindo outro verdadeiro (negócio dissimulado). Visa-se com o negócio
simulado produzir efeitos diferentes daqueles que seriam naturais ao
negócio. O negócio aparente, na simulação relativa, é um meio de reali-
zação do ato dissimulado, desejado. Ao contrário da simulação absoluta,
na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte falsa do negócio,
desde que a restante preencha os demais requisitos de validade (conteú-
do e forma) do negócio jurídico.
A simulação relativa pode ser classifi cada como subjetiva ou ob-
jetiva. Simulação relativa subjetiva é aquela em que o elemento falso
do negócio é o sujeito, isto é, a pessoa com quem se pretende contratar.
Por não poder contratar diretamente com determinada pessoa, o agente
celebra o negócio jurídico com outra (interposta pessoa). Exemplo: a
pessoa que doa um imóvel à mãe de sua amante com o objetivo de burlar
a proibição legal de benefi ciar diretamente sua amante (Código Civil,
art. 550).
Simulação relativa objetiva é aquela em que o elemento falso do
contrato diz respeito a algum elemento objetivo. Pode ser quanto ao ob-
jeto (p. ex.: afi rma que está vendendo um bem e na verdade é outro), à
natureza jurídica (p. ex.: o contrato é de compra e venda, mas pretende
a doação do bem), à data (p. ex.: o contrato é assinado hoje com data
futura ou pretérita), ao preço (p. ex.: a escritura pública de compra e
venda apresenta um valor abaixo do verdadeiro para que as partes pa-
guem menos impostos) etc.
III Jornada de direito Civilenunciado 153 do CeJ: “Na simu-lação relativa, o negócio simula-do (aparente) é nulo, mas o dis-simulado será válido se não ofen-der a lei nem causar prejuízos a terceiros”.IV Jornada de direito Civilenunciado 293 do CeJ: “Na simu-lação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimula-do não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário pre-enchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele”.
COmeNTÁRIO
Prescrição e decadência10
182
10.1 INTRODUÇÃO
Com o objetivo de garantir a estabilidade social e a segurança das relações jurídicas, o legislador estabelece prazos para que as pessoas
possam buscar seus direitos em juízo, afi nal, dormientibus non sucur-
rit jus (o direito não socorre quem dorme). Esses prazos, denominados
prescrição e decadência, permitem a consolidação das situações jurídi-
cas, impedindo que o exercício de um direito fi que pendente de forma indefi nida no tempo. No Código Civil de 2002, observa-se a preocupa-ção do legislador em distinguir as hipóteses e os prazos de prescrição e decadência, facilitando o trabalho do profi ssional do direito em consa-gração ao princípio da operabilidade.
Na vigência do Código Civil de 1916 era muito comum a confusão entre os institutos: em parte devido ao tratamento legislativo da matéria e, em parte, devido à falta de consenso doutrinário sobre a defi nição dos institutos. Nesse sentido era comum a lição de que “a prescrição põe fi m a ação e a decadência ao direito”. Atualmente, compreende-se como absolutamente equivocada a afi rmação de que a prescrição põe fi m à ação, pois o direito de ação é o direito público, abstrato e indisponível que toda pessoa tem de ter acesso ao Poder Judiciário.
Esse direito de peticionar é garantido pelo princípio constitucional da inafastabilidade do provimento jurisdicional (Constituição Federal, art. 5º) e não está sujeito a qualquer prazo. Não deve ser confundido, evidentemente, com o conteúdo da ação, isto é, com o direito pleiteado em juízo que pode estar sujeito a um prazo de prescrição ou de decadên-cia, conforme veremos.
10.2 PRESCRIÇÃO
10.2.1. Conceito de prescriçãoNa atualidade a prescrição pode ser defi nida como a perda da pre-
tensão de reparação do direito violado em virtude da inércia de seu titu-
lar, no prazo previsto em lei. Nesse sentido, o art. 189 do Código Civil de
2002 determina que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a
qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e
206. E o que vem a ser a pretensão?
Pretensão é o poder de exigir de outrem, coercitivamente, o cum-
primento de um dever jurídico previsto em lei ou em contrato. A pre-
tensão é, portanto, o poder de exigir o cumprimento de um direito
subjetivo patrimonial em juízo. Como exemplo de pretensão, podemos
citar: o direito de cobrar uma dívida vencida e não paga; o direito de
cobrar indenização em virtude de danos causados; o direito de cobrar
aluguéis atrasados etc.
Direito Civil
183
De outra forma, podemos afirmar que o conceito de prescrição está diretamente relacionado à estrutura da obrigação civil, composta por débito e responsabilidade civil. O débito é o dever jurídico de cumprir espontaneamente uma prestação de dar, fazer ou não fazer. A respon-sabilidade civil é a consequência patrimonial do descumprimento do débito – permitindo que o credor ingresse em juízo pleiteando o cum-primento forçado da prestação ou a reparação pelo dano causado. As-sim, a prescrição fulmina a responsabilidade civil, nunca o débito. É por essa razão que o pagamento de uma dívida prescrita não autoriza pedido de repetição do indébito (o débito existia, apenas não podia ser exigido em juízo).
10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição aquisitiva
Na doutrina é comum a referência a dois tipos de prescrição: a ex-tintiva e a aquisitiva. A prescrição extintiva é tratada na Parte Geral do Código Civil de 2002 e se refere à perda de um direito. Por outro lado, a prescrição aquisitiva, também denominada usucapião, se refere à aqui-sição de um direito e vem regulada na Parte Especial do Código.
Para alguns autores, a expressão prescrição aquisitiva é inapropria-da para se referir à usucapião. Contudo, a proximidade entre os institu-tos é tamanha que o próprio legislador estabeleceu que na usucapião se estende ao possuidor o disposto quanto ao devedor, acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição (art. 1.244). Neste capítulo trataremos apenas da prescrição extintiva, deixando o estudo da aquisitiva para o capítulo que trata do direito das coisas.
10.2.3. Prescrição da exceçãoA palavra exceção possui diversos significados, mas, em geral, re-
presenta uma forma de defesa apresentada pelo réu em contraposição ao direito do autor. Essa defesa não pode ser apresentada a qualquer momento, pois, de acordo com o art. 190 do Código Civil, a exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão. Em que pese a omissão do legislador, a correta interpretação do dispositivo exige a distinção en-tre duas modalidades de exceção: as dependentes e as independentes.
As exceções dependentes, também denominadas não autônomas, são aquelas diretamente relacionadas a uma pretensão, isto é, um direito que o réu poderia cobrar do autor mediante uma ação própria (além de servirem como meio de defesa, constituem um meio de ataque). Como exemplo, podemos citar a exceção de compensação em que o réu alega ser credor do devedor. Se esse crédito já estava prescrito e não poderia ser cobrado judicialmente por meio de uma pretensão, também não pode ser alegado como exceção. Portanto, o art. 190 do Código Civil tem apli-cabilidade quanto às exceções dependentes.
As exceções independentes, também denominadas autônomas,
são aquelas que não estão relacionadas a uma pretensão que o réu tem
contra o autor (não servem como meio de ataque, mas apenas de defe-
Não confundir prescrição com:Preclusão: é a perda da fa-
culdade ou direito processual em virtude da inércia do interessado (p. ex.: a perda do prazo para re-correr de uma decisão judicial).
Perempção: é a perda do direito ativo de processar uma pessoa, em razão da extinção do processo por três vezes sem julgamento do mérito (art. 267 do CPC), pelo abandono imputável à parte que deveria promover-lhe a tramitação.
ATENÇÃO
184
sa). Desta forma, as exceções independentes representam fatos que ape-
nas têm o poder de impedir o sucesso da pretensão do autor e podem ser alegadas em qualquer momento (não prescrevem). Como exemplo de exceções independentes, podemos citar a alegação pelo réu de que a dívida já foi paga (exceção de pagamento); de que há coisa julgada; de que a pretensão do autor está prescrita etc.
10.2.4. Alegação da prescriçãoO art. 193 do Código Civil dispõe que a prescrição pode ser alegada
em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Admite-se, portanto, a alegação da prescrição em qualquer fase do processo durante a instância ordinária (primeira ou na segunda instância): na contesta-ção, em embargos, apelação etc. Contudo, se não foi alegada na instância ordinária, não pode ser alegada em instância extraordinária (Recurso Especial ao STJ ou Recurso Extraordinário ao STF), em razão do requi-sito do prequestionamento (Súmulas 282 e 356/STF e 211/STJ). Também não pode ser alegada: a) na fase de liquidação de sentença (durante a execução só é admitida a alegação de prescrição intercorrente); b) em ação rescisória, se não foi arguida na ação que se pretende rescindir a sentença.
Ainda que seja comum a alegação da prescrição na contestação sob a forma de preliminar, a sentença judicial que reconhece a prescrição provoca a extinção do processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art. 487, I). Isto ocorre, pois a prescrição é uma prelimi-nar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos controversos quanto ao mérito.
10.2.5. Renúncia da prescriçãoA renúncia é o ato unilateral pelo qual o devedor de uma obrigação
abre mão do direito de alegar a prescrição da pretensão. É unilateral, pois a validade e a efi cácia do ato não estão sujeitas à anuência do credor. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita. A renúncia tácita é aquela que se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição (p. ex.: pagamento voluntário da dívida prescrita). Para que a renúncia seja válida, deve preencher dois requisitos: 1º) o prazo já deve estar consumado (isto é, não é admitida renúncia prévia da prescrição); e 2º) não pode prejudicar terceiros. É por essa razão que não é admitida a renúncia da prescrição por parte do devedor insolvente, impedindo assim o prejuízo de outros credores.
10.2.6. Declaração de ofício da prescriçãoEm sua redação original, o art. 194 do Código Civil de 2002 não
admitia a declaração de ofício da prescrição, salvo se favorecesse pessoa
absolutamente incapaz. Contudo, com o advento da Lei n. 11.280/2006,
a regra presente no art. 194 do Código Civil foi revogada e a prescrição
Direito Civil
185
passou a ser decretável de ofício pelo juiz (Código de Processo Civil de
1973, art. 219, § 5º, sem correspondente no diploma de 2015). A mu-
dança legislativa criou um conflito interno na estrutura da prescrição,
chegando alguns autores a questionar se ainda seria possível a renúncia
da prescrição. Com o tempo, a doutrina se pacificou no sentido de que
o direito de renúncia prevalece sobre a possibilidade de declaração de ofício (Enunciado 295/CJF: “A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado”), devendo o juiz promover a intimação prévia das partes para se manifestarem: o réu, para que possa, eventualmente, renunciar à prescrição; o autor, para que possa alegar e demonstrar alguma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição. Quanto à exigência da intimação das partes, podemos identificar as se-guintes correntes doutrinárias:
1ª Corrente: defende que ambas as partes devem ser intimadas: o réu, para, se desejar, exercer o direito de renúncia da prescrição; o autor, para apresentar algum fato que afaste o reconhecimento da prescrição (p. ex.: equívoco no cômputo do prazo, causa suspensiva, causa inter-ruptiva etc.). Entendemos que essa é a melhor posição a ser adotada pe-los juízes.
2ª Corrente: defende que só o autor deve ser intimado. A intimação do réu não seria necessária, pois a renúncia da prescrição poderia ser manifestada posteriormente mediante ação declaratória ou incidental-mente em outro processo.
3ª Corrente: defende que o juiz deve declarar de ofício a prescrição tão logo a verifique no processo (p. ex.: ao despachar a inicial), indepen-dentemente da intimação das partes.
10.2.7. Previsão legal da prescriçãoOs prazos de prescrição estão expressos no Código Civil de 2002
e não podem ser criados nem alterados pela vontade das partes. Des-
se modo, ao contrário da decadência, que pode ser legal ou contratual,
a prescrição só pode ter origem legal. O art. 206 do Código Civil traz
expressos os prazos especiais de prescrição, isto é, os prazos específicos
para determinadas situações concretas (prazos de 1, 2, 3, 4 e 5 anos). E
o art. 205 do Código Civil traz expresso o prazo geral de prescrição de
10 anos (também conhecido como prazo ordinário ou comum), deven-
do ser aplicado subsidiariamente quando a situação sub judice não se
encaixar nos prazos especiais do art. 206. O Código atual eliminou a du-
alidade de prazos gerais existente no Código Civil de 1916 (um para as
ações pessoais/obrigacionais e outro para as ações reais), estabelecendo
um prazo geral único.
10.2.7.1. Prazos especiaisO art. 206 do Código Civil contém cinco parágrafos, contemplando
COMENTÁRIO
São imprescritíveis as ações que versem sobre:l direitos da personalidade: vida,
integridade, honra, nome, ima-gem, intimidade;
l o estado da pessoa: como filia-ção (p. ex.: investigação de pa-ternidade), condição conjugal, cidadania;
l ações declaratórias de nulidade absoluta (por envolverem ques-tões de ordem pública);
l direito de família, no que con-cerne a regime de bens, alimen-tos, vida conjugal, nulidades, separação, divórcio, e reconhe-cimento e dissolução de união estável;
l bens públicos de qualquer natu-reza.
186
prazos especiais de prescrição que variam de um a cinco anos. Esse rol
é meramente exemplifi cativo, pois no ordenamento jurídico são encon-
trados diversos outros prazos especiais, como, por exemplo: Constitui-
ção Federal, art. 7º, XXIX; art. 27 da Lei n. 8.078/90; Código Tributário
Nacional, art. 168; art. 21 da Lei n. 4.717/65 (ação popular – 5 anos) etc. Contudo, iremos nos ater apenas à análise dos prazos previstos no art. 206 do Código Civil:
a) Prescreve em um ano:
I – a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres desti-nados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos: o Código Civil de 2002 eliminou a dis-tinção existente no Código Civil de 1916 entre as modalidades de hospe-dagem, estabelecendo um prazo único de um ano. Contudo foi omisso quanto ao termo inicial do prazo, apontando a doutrina a necessidade de aplicação das regras previstas para a mora (Código Civil, art. 397) e para o penhor legal (arts. 1.467, I, e 1.470).
II – a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste con-tra aquele, contado o prazo: a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador; b) quanto aos demais se-guros, da ciência do fato gerador da pretensão: o Código Civil de 2002 unifi cou o prazo para exercício da pretensão do segurado contra o segu-rador, eliminando a distinção existente no Código Civil de 1916 quanto ao local do fato que deu origem à indenização (se em nosso país ou no exterior). A única distinção existente é quanto ao termo inicial do prazo: no seguro de responsabilidade civil o prazo deve ser contado a partir da citação se o segurado foi demandado por terceiro prejudicado ou da data em que segurado paga o terceiro prejudicado com a anuência do segurador; nos demais seguros o prazo de um ano deve ser contado da ciência do fato gerador da pretensão. Se o titular da pretensão não for o segurado, mas, sim, o benefi ciário, o prazo de um ano não será aplicável. No caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, o benefi ciário tem prazo de três anos para exercer sua pretensão contra o segurador (art. 206, § 3º, IX).
III – a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e honorários: compreende-se que este dispositivo deve ser aplicado tam-bém para a pretensão dos delegatários do foro extrajudicial (Constitui-ção Federal, art. 236). Como o legislador não especifi cou o termo inicial, compreendemos que deve ser considerado o momento da conclusão dos serviços, em analogia ao art. 206, § 5º, II, do Código Civil.
IV – a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que en-traram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da publicação da ata da assembleia que aprovar o laudo: este inciso traz
regra restritiva que só deve ser aplicada para regular a pretensão inde-
nizatória dos prejudicados em face do perito responsável pela avaliação
Direito Civil
187
dos bens na formação do capital da sociedade anônima.
V – a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acio-nistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de en-cerramento da liquidação da sociedade: os credores (sócios ou não) da
sociedade dissolvida poderão cobrar os valores devidos no prazo de um
ano da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade.
b) Prescreve em dois anos:
I – a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem: o direito a alimentos é imprescritível, podendo ser
exercido em qualquer momento que o ser humano passe por necessi-
dade. Esse direito de pedir alimentos (ação de alimentos) não deve ser
confundido com o direito de cobrar alimentos vencidos e não pagos
(execução de alimentos), cuja pretensão prescreve no prazo de 2 anos,
contados retroativamente a partir da propositura da ação (prescrição parcelar).
c) Prescreve em três anos:
I – a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos:
o Código Civil de 2002 reduziu o prazo de cinco para três anos para que
o locador cobre o locatário do pagamento do aluguel. Consoante enten-
dimento doutrinário, esse prazo não se aplica à cobrança dos encargos
da locação nem à cobrança dos débitos condominiais.
II – a pretensão para receber prestações vencidas de rendas tem-porárias ou vitalícias: o dispositivo estabelece prazo de três anos para
cobrança das prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias
(previstas nos arts. 803 a 813).
III – a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer pres-tações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela: o prazo de três anos para cobrança de juros,
dividendos ou quaisquer prestações acessórias referidas nesse inciso
deve ser contado a partir do respectivo vencimento.
IV – a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa:
de acordo com entendimento doutrinário, o prazo de três anos para o
ressarcimento de enriquecimento sem causa deve ser contado a partir
da verificação do locupletamento. Como os prazos específicos devem
ser interpretados restritivamente, o inciso não deve ser utilizado para a
pretensão relativa a pagamento indevido (Código Civil, arts. 876 a 883).
V – a pretensão de reparação civil: a pretensão de reparação de da-
nos que, durante a vigência do Código Civil de 1916, se submetia a prazo
geral, passou a ser hipótese de prazo especial no Código Civil de 2002.
Esse prazo, de três anos, é aplicável a toda e qualquer forma de dano
(material, moral ou estético), mas deve ser destacado que em algumas
situações excepcionais os tribunais têm reconhecido a imprescritibili-
dade da pretensão (p. ex.: indenização por danos morais em razão de
tortura). Se o dano for causado em virtude de prestação de serviços ou
fornecimento de produtos em relação de consumo, deverá ser observa-
do o prazo de cinco anos previsto no Código de Defesa do Consumidor
188
(art. 27). Se o dano for decorrente de acidente de trabalho ou doen-
ça profi ssional, o entendimento do TST é no sentido de que deve ser
aplicada a prescrição trabalhista, com prazo de dois anos (RR 237200-
96.2006.5.02.0315 – julgado em 2010).
VI – a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebi-dos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distri-buição: o pagamento de lucros e dividendos nas sociedades por ações é
regulamentado pela Lei n. 6.404/76, que atribui responsabilidade soli-
dária dos administradores e fi scais em caso de pagamento com inobser-
vância do disposto no art. 201 da citada lei.
VII – a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por vio-
lação da lei ou do estatuto, contado o prazo: a) para os fundadores,
da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima; b) para
os administradores, ou fi scais, da apresentação, aos sócios, do balan-
ço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou
da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento;
c) para os liquidantes, da primeira assembleia semestral posterior à
violação: o dispositivo estabelece o prazo de três anos para as pretensões
exercidas em face dos fundadores, administradores, fi scais e liquidantes
fundamentadas na violação da lei ou do estatuto (desvio de valores, des-
mandos, excesso de mandato etc.). A matéria também é regulamentada
pela Lei n. 6.404/76.
VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito,
a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial: o
prazo de três anos previsto no dispositivo é para a pretensão de execu-
ção do título de crédito. Caso esgotado o prazo, ainda resta ao credor
cobrar a dívida por meio da ação monitória (Código de Processo Civil,
art. 700), no prazo de cinco anos, consoante entendimento jurispru-
dencial do STJ fundado no art. 206, § 5º, I, do Código Civil. Por fi m,
deve ser destacado que o prazo de 3 anos previsto nesse inc. VIII, do §
3º, tem aplicação subsidiária: só deve ser invocado se inexistente prazo
específi co em lei extravagante. Não se aplica, por exemplo, à execução de
cheque, que tem prazo de seis meses contados da expiração do prazo de
apresentação (art. 59 da Lei n. 7.357/85 – Lei do Cheque).
IX – a pretensão do benefi ciário contra o segurador, e a do ter-
ceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obri-
gatório: como exemplo de seguro de responsabilidade civil obrigatório
podemos citar o DPVAT, que já foi objeto de controvérsia no Superior
Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade do prazo de três anos (prazo
especial), previsto nesse inciso, ou de dez anos (prazo geral), previsto
no art. 205 do Código Civil. Atualmente a jurisprudência daquela Corte
está pacifi cada em três anos. O seguro DPVAT é regulamentado pelas
Leis n. 6.194/74 e 8.441/92, prevendo cobertura para eventos como lesão
corporal ou óbito em acidentes de trânsito.
d) Prescreve em quatro anos:
I – a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação
Direito Civil
189
das contas: o Código Civil impõe aos tutores o dever de apresentar um
balanço anual de sua gestão e o dever de prestar contas a cada dois anos e
ao fim da tutela (arts. 1.755 e 1.762), sendo estes submetidos à aprovação
judicial. A partir desta começa a correr o prazo de 4 anos para exercício
de pretensão relativa à tutela.
e) Prescreve em cinco anos:
I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de ins-trumento público ou particular: a regra prevista neste dispositivo tem
caráter subsidiário e só deve ser aplicada se não existir outra específica
nos incisos anteriores ou em leis extravagantes. Além disso, o inciso em
comento exige que a dívida a ser cobrada seja líquida, isto é, certa quanto
à sua existência e determinada quanto ao seu objeto/valor.
II – a pretensão dos profissionais liberais em geral, procurado-res judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos con-tratos ou mandato: o prazo de cinco anos previsto no inciso também
tem aplicabilidade quanto às sociedades de profissionais liberais no
exercício da respectiva atividade (p. ex.: sociedade de médicos em um
consultório médico). Quanto aos advogados, o Estatuto da Advocacia
(Lei n. 8.906/94) já previa o mesmo prazo de cinco anos para cobrança
dos honorários.
III – a pretensão do vencedor para haver do vencido o que des-pendeu em juízo: este último inciso trata da cobrança dos ônus sucum-
benciais, previstos no art. 20 do Código de Processo Civil. O prazo de
cinco anos deve ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença
e deve ser observado tanto pelo vencedor como pelo advogado, que tem
direito autônomo de cobrar os honorários sucumbenciais (art. 23, Lei
n. 8.906/94).
10.2.8. Contagem do prazo de prescriçãoDeterminar a forma como deve ser contado o prazo de prescrição
não é tarefa fácil, a começar pela definição do seu termo inicial. De acor-
do com a concepção objetiva, o prazo de prescrição deve ser contado a
partir do momento em que foi violado o direito, surgindo para o titular
a pretensão (nesse sentido, é regra prevista no art. 189 do Código Civil).
Para a concepção subjetiva (teoria da actio nata), o prazo só deve ser
contado a partir do momento em que a pessoa tem ciência da violação
do direito ou das consequências. Essa posição foi adotada pelo Código
Civil no art. 206, § 1º, II, a e b.
Podemos afirmar, então, que como regra o Código Civil de 2002
adota a concepção objetiva e, em caráter excepcional, a concepção sub-
jetiva. Contudo, na doutrina e na jurisprudência o tema é controverso,
havendo muitos julgados favoráveis à aplicabilidade da teoria da actio
nata em hipóteses não consagradas expressamente no Código Civil.
Definido o termo inicial, resta saber como deve ser contado o pra-
zo de prescrição. Com esse propósito o art. 132, caput, do Código Civil
190
determina que, salvo disposição legal ou convencional em contrário,
computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do ven-
cimento.
Como os prazos de prescrição são contados em anos (1, 2, 3, 4, 5 e
10 anos), deve ser aplicada a regra presente no § 3º: “os prazos de meses
e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato,
se faltar exata correspondência”. Entendemos que esse dispositivo deve
ser aplicado sem o caput do art. 132. Assim, se um acidente de trânsito
ocorreu no dia 31 de dezembro de 2013, o último dia para ser proposta
a ação será o dia 31 de dezembro de 2016.
Se não existir o dia correspondente no ano seguinte, deverá ser con-siderado o dia imediato (isso ocorre em caso de ano bissexto). Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o dia útil seguinte (Código Civil, art. 132, § 1º). Entendemos que essa regra também vale para sábados e domingos, em razão de os fóruns esta-rem fechados. Vale dizer que esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelarPrescrição nuclear ou de fundo de direito é aquela que atinge a
exigibilidade do direito como um todo. Exemplifi cando: quando uma pessoa agride outra, causando diversos danos, o direito de exigir a re-paração de todos os danos prescreve no mesmo momento – três anos após a agressão. Por sua vez, prescrição parcelar é aquela que não atinge o direito como um todo, mas somente as suas parcelas. Exemplifi can-do: a pretensão de cobrar prestações alimentícias vencidas e não pagas prescreve em dois anos. Assim, ainda que exista débito superior a dois anos, quando da propositura da demanda, o prazo de dois anos deve ser contado regressivamente.
10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros
Conforme determina o art. 196 do Código Civil, a prescrição inicia-da contra uma pessoa continua a correr contra os seus sucessores: sejam eles sucessores universais (herdeiros) ou sucessores singulares (legatá-rios). A regra se justifi ca pelo fato de que a sucessão opera a transmissão
de todos os direitos patrimoniais do falecido, incluindo as pretensões
que o falecido tinha em face de terceiros. Exemplifi cando: se João, credor
de uma obrigação líquida prevista em instrumento público, vier a falecer
um ano após o vencimento da dívida, seus herdeiros ainda terão quatro
anos para cobrá-la (prazo total: 5 anos – Código Civil, art. 206, § 5º).
Conquanto a Parte Geral do Código Civil não diferencie a contagem
do prazo de prescrição (extintiva) entre sucessores universais e singula-
res, a Parte Especial conferiu tratamento distinto ao regular a prescrição
aquisitiva (usucapião), dispondo que o sucessor universal (herdeiro)
continua de direito a posse do seu antecessor (sucessio possessionis) e
CURIOSIDADE
A título de exemplo, em ação indenizatória por erro médico o STJ já decidiu que o termo a quo do prazo prescricional deve ser o dia em que a vítima tomou co-nhecimento de que instrumentos cirúrgicos foram deixados dentro do seu corpo (REsp 1.020.801/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 26-4-2011).
Direito Civil
191
que ao sucessor singular (legatário) é facultado unir sua posse à do an-
tecessor (acessio possessionis), para os efeitos legais. Isso significa que,
quanto aos herdeiros, a posse do antecessor deve obrigatoriamente ser
computada junto à sua; e que, quanto aos legatários, estes podem esco-
lher se desejam computar a posse do antecessor. A doutrina não é pací-
fica sobre o tema.
10.2.9. Prescrição intercorrenteDenomina-se prescrição intercorrente aquela computada duran-
te o curso da ação, diante da inércia do autor em promover o andamen-
to do processo. Ao propor uma ação, o autor tem o dever de realizar
os atos necessários ao seu curso para que esta não se arraste de forma
indefinida no tempo. Deve, portanto, peticionar, produzir provas, re-
querer diligências, expedição de ofícios etc. Se desta forma não procede,
a sua inércia não deve ser acobertada pelo ordenamento jurídico (dor-
mientibus non sucurrit ius – o direito não socorre quem dorme), não
se podendo permitir que o processo fique abandonado por um prazo
superior àquele exigido para a propositura da ação (leia-se: para o exer-
cício da pretensão em juízo). Embora o tema ainda desperte muitas
dúvidas na doutrina, o próprio legislador se preocupou em regulamen-
tar a prescrição intercorrente no art. 202, parágrafo único, do Código
Civil ao dispor que “a prescrição interrompida recomeça a correr da
data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a
interromper”.
10.2.10. Impedimento e suspensão da prescriçãoEm algumas situações específicas o ordenamento jurídico determi-
na que o prazo de prescrição não corre em razão da situação ou condi-
ção em que se encontra o titular do direito violado (situação pessoal,
profissional, familiar etc.). Os arts. 197, 198 e 199 do Código Civil de
2002 retratam causas que podem ser tanto de impedimento como de
suspensão. Se a causa já existia quando do surgimento da pretensão, a hi-
pótese é de IMPEDIMENTO e o prazo de prescrição começará a correr
quando esta desaparecer. Se a causa só veio a existir depois do surgimen-
to da pretensão, a hipótese é de SUSPENSÃO e o prazo voltará a correr
quando esta desaparecer.
Exemplificando: o art. 197, I, do Código Civil, determina que a
prescrição não corre entre os cônjuges na constância da sociedade con-
jugal. Assim, se um cônjuge causar dano ao outro durante o casamento,
o prazo de prescrição ficará impedido de correr; dissolvida a sociedade
conjugal, o prazo começará a correr do zero. Por outro lado, se o dano foi
causado antes do casamento, celebrado este, o prazo será imediatamente
suspenso; dissolvida a sociedade conjugal, o prazo voltará a correr pelo
período restante.
192
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão
O Código Civil de 2002 agrupou as hipóteses de impedimento e suspensão em três artigos, cada qual com três incisos. Por representarem exceções à contagem do prazo de prescrição, devem ser interpretadas restritivamente, compreendendo a doutrina majoritária que o rol dos arts. 197, 198 e 199 do Código Civil é taxativo (recomendamos que essa posição seja gabaritada em fase objetiva). Contudo, concordamos com forte corrente doutrinária que sustenta que o rol pode ser ampliado pela regra contra non valentem agere non currit praescriptios: a prescrição não corre contra quem estiver impossibilitado de agir. A taxatividade do rol impede a analogia, não a interpretação extensiva. Como exemplo dessas situações, podemos citar: a paralisação da justiça por caso fortuito ou força maior, a ocultação dolosa do débito pelo devedor, pedido de paga-mento de indenização à seguradora (Súmula 229/STJ) etc.
Vejamos, agora, quais são as hipóteses de impedimento e suspensão da prescrição que estão previstas no Código Civil de 2002:
a) Entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal (art. 197, I – impedimento e suspensão): a hipótese se justifi ca pela necessidade de se proteger a convivência harmônica entre os cônjuges durante o casamento, evitando que sejam propostas ações entre eles. Deve ser destacado que o Código Civil de 2002 substitui a expressão matrimônio, presente no Código Civil de 1916, por sociedade conjugal, uma vez que somente durante a existência desta é que persiste a comunhão plena de vida (afe-to e patrimônio). Dissolvida a sociedade conjugal pela separa-ção, divórcio, viuvez etc., o prazo começará ou voltará a correr. Quanto à separação de fato, entendemos que esta deve ser equi-parada à separação judicial em seus efeitos, permitindo que a prescrição corra. Em caso de anulação ou decretação de nuli-dade do casamento, o cônjuge de boa-fé deve ser considerado protegido até o fi m da sociedade conjugal; quanto ao de má--fé, não haverá suspensão nem interrupção do prazo. A questão mais polêmica diz respeito à aplicação analógica do dispositivo à união estável:
1ª Corrente: defende que o dispositivo deve ser aplicado por analogia. Compreendemos que essa é a posição mais coeren-te em razão da obrigação constitucional que o Estado tem de proteger a família, formada seja pelo casamento, seja pela união estável (Constituição Federal, art. 226). Esse também é o posicionamento do Conselho da Justiça Federal, nos termos do Enunciado 296: “Não corre a prescrição entre os companheiros, na constância da união estável”.
2ª Corrente: defende que não há impedimento ou suspensão
do prazo de prescrição na constância da união estável em
razão da omissão legislativa. Em fase objetiva de concursos
públicos que sigam a literalidade da lei, recomendamos que
Súmula 229- STJ:“O pedido do pagamento
de indenização à seguradora sus-pende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”.
JURISPRUDÊNCIA
Direito Civil
193
essa posição seja gabaritada. Já em fase subjetiva deve ser ga-
baritada a primeira corrente.
b) Entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar (art. 197, II – impedimento e suspensão): assim como o dis-
positivo anterior, o objetivo da norma é a proteção da unida-de familiar formada pelos pais e filhos, evitando o litígio entre eles durante o exercício do poder familiar (antigo pátrio po-der). Cessado o poder familiar, por meio da maioridade ou da emancipação, o prazo voltará ou começará a correr. Há quem entenda que o dispositivo retrata unicamente causa de impe-dimento, mas compreendemos que também pode servir como causa de suspensão, por exemplo, se o poder familiar foi estabe-lecido posteriormente à violação do direito, mediante adoção. Cessado o poder familiar (por meio da maioridade, morte ou destituição), o prazo de prescrição começará ou voltará a cor-rer. Se em vez da destituição (que é definitiva) ocorrer simples suspensão do poder familiar (que é temporária), o prazo de prescrição não correrá.
c) Entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores durante a tutela ou curatela (art. 197, III – impedimento/sus-pensão): também sob o fundamento de preservação da convi-vência harmônica entre determinadas pessoas, o ordenamento jurídico impede o transcurso da prescrição entre tutores e tute-lados e entre curadores e curatelados. Se houver a remoção do tutor ou curador, mas permanecer a tutela ou curatela, o prazo de prescrição poderá correr entre o incapaz e o tutor/curador removido. No entanto, em se tratando de absolutamente inca-paz, deve ser observada a regra do art. 198, I do Código Civil.
d) Contra os incapazes de que trata o art. 3º (art. 198, I – impedi-mento/suspensão): de acordo com o dispositivo, não corre pra-zo de prescrição contra os absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de 16 anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem
o necessário discernimento para a prática desses atos; e III – os
que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua
vontade. O prazo só não corre contra o absolutamente incapaz,
isto é, quando este é o titular do direito violado (o incapaz é o autor da ação). Se, por outro lado, o absolutamente incapaz for o violador do direito de outrem, o prazo de prescrição fluirá normalmente a favor dele, que será beneficiado pela inércia do titular do direito (o incapaz é o réu da ação). Devemos destacar que a hipótese do art. 198, I, do Código Civil, refere-se apenas aos absolutamente incapazes. Em se tratando de incapacidade relativa (art. 4º), o prazo flui normalmente consoante determi-
nação do art. 195.
e) Contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios (art. 198, II – impedimento/sus-
194
pensão): como a norma não especifi ca o tipo de serviço públi-
co, a doutrina tem admitido sua aplicabilidade para proteger
toda pessoa que preste, fora do País, serviços de utilidade para
a União, Estados ou Municípios: agentes diplomáticos; agentes
consulares; adidos militares; delegados em missões ofi ciais; co-
missionados para estudos ou pesquisas no exterior etc. Não se
exige que sejam servidores públicos em sentido estrito, basta
que exerçam atividade assim qualifi cada, a favor da administra-
ção direta ou indireta.
Outros ausentes: embora não exista dispositivo legal regulan-
do o impedimento e a suspensão da prescrição em favor dos
ausentes (pessoas que desaparecem de seu domicílio sem deixar
notícias – Código Civil, arts. 22 a 39), há enunciado do Conse-
lho da Justiça Federal no sentido de que “desde o termo inicial
do desaparecimento, declarado em sentença, não corre a pres-
crição contra o ausente” (Enunciado 156/CJF).
f) Contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra (art. 198, III – impedimento/suspensão): a
norma deve ser interpretada de forma a proteger as pessoas que
compõem as Forças Armadas durante períodos de guerra, es-
tejam cumprindo função dentro ou fora do País. Protege, tam-
bém, os membros das Forças Armadas que integram as forças
de paz da ONU.
Observação: todos os incisos dos arts. 197 e 198 do Código Civil
(acima analisados) retratam hipóteses subjetivas de suspensão
E impedimento da prescrição. Diversamente, todos os incisos
do art. 199 do Código Civil (abaixo analisados) representam
hipóteses objetivas de suspensão OU impedimento da prescri-
ção.
g) Pendendo condição suspensiva (art. 199, I – causa impediti-
va): a regra é explicada pela natureza da condição suspensiva:
suspende o exercício e a aquisição do direito, gerando mera ex-
pectativa de direito. Como o direito condicional não é exerci-
tável, não há falar em prazo de prescrição para o exercício do
direito em juízo.
Súmula 229 do STJ: “pedido de pagamento de indenização à
seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado
tenha ciência da decisão”.
h) Não estando vencido o prazo (art. 199, II – causa impeditiva): as mesmas razões invocadas para justifi car o dispositivo ante-
rior se aplicam a essa hipótese, pois o direito submetido a um
prazo, embora integre o patrimônio do seu titular (direito ad-
quirido), não é exercitável antes do implemento do termo certo
(evento futuro e certo).
i) Pendendo ação de evicção (art. 199, III – causa impeditiva): denomina-se ação de evicção aquela que pode resultar na con-
Direito Civil
195
denação de uma pessoa à perda de um bem com base em mo-
tivo jurídico anterior à sua aquisição (p. ex.: a ação pauliana).
Procedente a ação, o evictor toma o bem do evicto, restando a
este ingressar com ação de regresso contra o alienante. O pra-
zo para ser proposta essa ação só começa a correr a partir do
trânsito em julgado da ação de evicção, pois é a partir desse
momento que surge a pretensão ressarcitória do evicto em face
do alienante.
j) Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no
juízo criminal, antes da respectiva sentença definitiva (art.
200 – causa suspensiva): embora a responsabilidade civil tenha
certa independência da responsabilidade criminal (vide art. 935
do Código Civil), o legislador determinou que a prescrição para
ser exercida pretensão civil não deve correr enquanto não exis-
tir sentença penal com trânsito em julgado. Entendemos que
a hipótese não é de impedimento, mas, sim, de suspensão da
prescrição a partir do início da ação penal (recebimento da de-
núncia ou da queixa) até o advento da sentença definitiva, seja
condenatória ou absolutória.
10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obrigações solidárias
De acordo com o art. 201 do Código Civil, suspensa a prescrição a
favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obri-
gação for indivisível. Isto ocorre, pois a suspensão e o impedimento es-
tão fundamentados em uma situação pessoal (p. ex.: o absolutamente
incapaz, o casado, o tutelado etc.), não havendo motivo para se estender
a exceção aos outros credores. A única exceção é a hipótese em que a
obrigação solidária tem por conteúdo uma prestação indivisível: é im-
possível separar a parte não prescrita da prescrita.
10.2.11. Interrupção da prescriçãoDiversamente da suspensão da prescrição, em que o prazo volta
a ser contado de onde parou, na interrupção o prazo recomeça a ser
contado por inteiro, independentemente do tempo já transcorrido. A
prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a inter-
rompeu, ou do último ato do processo para a interromper. Na vigência
do Código Civil de 1916, não havia limite para o número de interrup-
ções. Atualmente, com a introdução do Código Civil de 2002, a inter-
rupção da prescrição somente poderá ocorrer uma vez (Código Civil,
art. 202, caput). De acordo com a doutrina, a única exceção a essa regra
diz respeito à hipótese em que a prescrição é interrompida por uma
das causas previstas nos incisos II a VI do art. 202, e posteriormente é
proposta a ação e ordenada a citação (inciso I), devendo ser admitida
essa segunda interrupção.
196
10.2.11.1. Hipóteses de interrupção da prescriçãoO Código Civil de 2002 prevê no art. 2002 seis hipóteses em que a
prescrição é interrompida. Além dessas, podem ser encontradas diver-
sas outras na legislação extravagante: art. 66, V, da Lei n. 6.435/77; art.
174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional; art. 17, parágrafo
único, do Decreto-lei n. 204/67 etc. Procurando nos ater aos objetivos
desta obra, analisaremos detidamente apenas as hipóteses previstas no
Código Civil:
a) Por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual (art. 202, I): essa é a hipótese mais polêmica de interrupção da prescrição diante do confl ito existente entre o dispositivo e o art. 219 do Código de Processo Civil, que de-termina que a interrupção da prescrição ocorre com a citação válida, retroagindo à data da propositura da ação. Para tanto, a citação deve ser promovida no prazo de 10 dias subsequentes ao despacho que a ordenar, prorrogáveis até o máximo de 90 dias. Como o autor não é prejudicado pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário, se a citação não for efe-tuada nos prazos mencionados, haver-se-á por interrompida a prescrição (Código de Processo Civil, art. 240 e Súmula 106/STJ). Deve ser destacado que, ainda que a norma processual (Código de Processo Civil) estabeleça a interrupção com a cita-ção válida e a norma material (Código Civil) com o despacho do juiz que ordenar a citação, não há um confl ito relevante entre as normas pelo fato de que a efi cácia da segunda hipótese foi condicionada pelo legislador civilista à realização da citação válida (“...se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual”), sempre retroagindo à data da propositura da ação. Por fi m, devemos destacar que a interrupção da prescri-ção ocorrerá ainda que o juiz seja absoluta ou relativamente incompetente.
b) Por protesto, nas condições do inciso antecedente (art. 202, II): o protesto a que se refere esse dispositivo é o protesto ju-dicial, regulado no Código de Processo Civil no art. 719 e se-guintes, utilizado, em regra, para garantir a conservação de um direito. Na ação de protesto, o despacho do juiz, mesmo incom-petente, que ordenar a citação irá interromper a prescrição, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual.
c) Por protesto cambial (art. 202, III): o protesto cambiário ou extrajudicial é aquele realizado no Cartório de Protesto de Tí-tulos e Documentos. Desde o advento da Lei n. 9.492/97, que regulamentou o protesto cambiário, deve ser considerada su-perada a Súmula 153 do Supremo Tribunal Federal, pela qual o “simples protesto cambiário não interrompe a prescrição”.
d) Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores (art. 202, IV): o credor de uma
Direito Civil
197
pessoa que faleceu deve peticionar no juízo do inventário re-
querendo o reconhecimento do seu título de crédito. Da mesma
forma, em caso de falência ou de insolvência civil o credor deve
peticionar requerendo o reconhecimento do seu direito junto ao
concurso de credores. Em todas essas situações, a apresentação
do título de crédito configura o exercício da pretensão (compor-
tamento ativo), justificando a interrupção da prescrição.
e) Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor (art. 202, V): com redação genérica, o dispositivo abrange
todo comportamento judicial ativo por parte do credor que
constitua o devedor em mora (em atraso) no cumprimento da
obrigação. Como exemplos desses comportamentos, podemos
citar as notificações e interpelações judiciais. A propositura de
ação pauliana também já foi considerada ato suficiente para
interrupção da prescrição. Também com base na redação do
inciso, temos que o legislador não quis conferir o mesmo efei-
to interruptivo a atos extrajudiciais praticados pelo credor
como cartas de cobrança enviadas pelo correio ou notificações
extrajudiciais.
f) Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que im-porte reconhecimento do direito pelo devedor (art. 202, VI): enquanto os incisos anteriores interrompem a prescrição a par-
tir do comportamento ativo do credor, o último inciso do art.
202 do Código Civil exige o comportamento ativo por parte do
devedor. Qualquer ato realizado por este, judicial ou extraju-
dicial, verbal ou por escrito, que importe em reconhecimento
do direito (da dívida) será hábil para interromper a prescrição.
Exemplos: requerimento de parcelamento da dívida, requeri-
mento de moratória (prorrogação do prazo para pagar), reco-
nhecimento da dívida, pagamento parcial ou total da dívida ou
da cláusula penal etc.
Quem pode interromper? O art. 203 do Código Civil de 2002
determina que a prescrição pode ser interrompida por qual-
quer interessado. Assim, além do próprio titular do direito,
devem ser considerados interessados: os assistentes dos relati-
vamente incapazes, os representantes das pessoas jurídicas, os
representantes convencionais (mandatários), os herdeiros do
credor, os credores do credor, fiadores, avalistas etc.
10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupçãoOs efeitos da interrupção da prescrição são, em regra, pessoais
(personalíssimos), logo, a interrupção por um credor não aproveita
aos outros cocredores, assim como a operada contra o devedor, ou seu
herdeiro, não prejudica os demais codevedores (regra latina: persona ad
personam non fit interruptio). Excepcionalmente, o art. 204 do Código
Civil apresenta 3 exceções em seus parágrafos:
198
Credores ou devedores solidários (art. 204, § 1º): a interrupção da
prescrição por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim
como a interrupção efetuada contra o devedor solidário prejudica
os demais e seus herdeiros. Para aplicação da regra, não importa se
a obrigação é divisível ou não. Deve ser lembrado também que a so-
lidariedade é uma situação excepcional e nunca deve ser presumida
(resulta da lei ou da vontade das partes – Código Civil, art. 265).
Herdeiros do devedor solidário (art. 204, § 2º): a interrupção operada contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros herdeiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos indisponíveis. O legislador nada dispôs quanto à interrupção da pres-crição promovida por um dos herdeiros do credor solidário, devendo ser compreendido que esta não aproveita aos demais credores.
Fiador (art. 204, § 3º): em decorrência do princípio da gravitação jurídica, também conhecido como princípio da acessoriedade, a in-terrupção produzida contra o principal devedor (o afi ançado) pre-judica o fi ador (o acessório segue a sorte do principal). O contrário não ocorre: se a interrupção for realizada contra o fi ador, o devedor não será prejudicado. Embora inexista previsão expressa quanto ao contrato de aval, deverá ser aplicada a regra prevista no § 1º do art. 204, diante da solidariedade obrigacional estabelecida por este (art. 43, Decreto n. 2.044/1908).
10.3 DECADÊNCIA
Vimos que a distinção entre prescrição e decadência pela afi rma-ção de que a primeira põe fi m à ação e a segunda ao direito deve ser tida por superada na atua lidade, diante dos equívocos já apresentados. O elemento que diferencia os institutos é na verdade a natureza do di-reito a que estão vinculados: a prescrição está relacionada aos direitos subjetivos patrimoniais, enquanto a decadência está atrelada a direitos potestativos. Vejamos:
10.3.1. Conceito de decadênciaDecadência é a perda efetiva de um direito potestativo, pela falta
de seu exercício, no período previsto na lei (decadência legal), ou pela
vontade das partes (decadência convencional). Portanto, a compreensão
do sentido de decadência exige do estudioso do direito o conhecimento
da estrutura dos direitos potestativos, que podem ser defi nidos como aqueles que conferem ao seu titular o poder de provocar mudanças na esfera jurídica de outrem de forma unilateral, sem que exista um dever jurídico correspondente, mas tão somente um estado de sujeição.
Diferem essencialmente dos direitos subjetivos, pois, nestes, a exis-tência do direito para uma pessoa gera para outra um dever jurídico,
enquanto os direitos potestativos não geram deveres jurídicos para a
outra parte. São considerados direitos sem pretensão, logo, não podem
Direito Civil
199
ser inadimplidos nem executados. O sujeito passivo do direito potestati-
vo se encontra apenas em uma situação de sujeição à vontade (poder) do
sujeito ativo, o titular do direito. Para facilitar a compreensão do tema,
podemos citar como exemplo de direito potestativo o direito de anular
um contrato por vício da vontade: a parte que foi prejudicada tem o
poder de exigir em juízo a anulação do negócio jurídico.
Os direitos potestativos podem ser constitutivos (p. ex.: o direi-
to do dono de prédio encravado exigir que o dono do prédio vizinho
lhe conceda passagem) ou desconstitutivos (p. ex.: o direito de desfazer
a compra de um automóvel em razão de vício redibitório). Contudo,
nem todos os direitos potestativos estão sujeitos a um prazo de deca-
dência para serem exercidos (p. ex.: o direito de pedir divórcio, direito
de requerer a desconsideração da personalidade jurídica), prevalecendo
o princípio da inesgotabilidade ou da perpetuidade se o legislador não
fixar um prazo determinado. Como exceção a essa regra, o art. 179 do
Código Civil prevê prazo geral de 2 anos para as ações anulatórias quan-
do omissa a lei.
10.3.2. Alegação da decadênciaAssim como a prescrição, a decadência pode ser alegada em qual-
quer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Claro que essa ale-
gação deve ser feita durante a instância ordinária (primeira ou segunda
instância). Se a decadência não foi alegada na instância ordinária, não
poderá ser alegada nas instâncias extraordinárias (STJ ou STF), em ra-
zão do requisito do prequestionamento.
Embora seja comum a alegação da decadência sob a forma de preli-
minar em uma contestação, a sentença judicial que a reconhece põe fim
ao processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art.
487, I). Isto ocorre, pois, assim como a prescrição, a decadência é uma
preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas
que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pon-
tos controversos quanto ao mérito.
10.3.3. Espécies de decadênciaDiferentemente da prescrição, que só pode ter origem legal, a deca-
dência pode ser prevista tanto pela lei (decadência legal) como em con-
trato (decadência convencional). A distinção entre as modalidades de
decadência tem especial importância na determinação das regras quanto
a possibilidade de renúncia e declaração de ofício.
10.3.3.1. Decadência legalDecadência legal (ex vi legis) é aquela prevista em lei, havendo en-
tendimento do STJ no sentido de que a decadência não pode ser criada
por decreto, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, insculpido
no art. 5º, II, da CF/88 (REsp 526.015). Quando o juiz está diante de
200
decadência legal, deve declará-la de ofício, consoante determina o art. 210 do Código Civil. De forma coerente, o legislador também dispôs que a decadência legal não pode ser renunciada (nem antes nem de-pois de consumada). A explicação para tanto é simples: a decadência legal envolve questões consideradas de ordem pública (interesse geral da coletividade), daí não se admitir que, diante de um interesse público, a parte possa abrir mão do prazo imposto pelo legislador. Pela mesma razão não se admite que os prazos de decadência legal sejam alterados (aumentados ou diminuídos) pelas partes.
10.3.3.2. Decadência convencionalA decadência é considerada convencional (ex vi voluntatis) quan-
do resulta da manifestação de vontade das partes em uma determinada relação jurídica. Pode ser estabelecida de forma unilateral ou bilateral. Ao contrário do que ocorre com a decadência legal, a convencional diz respeito a matéria de ordem privada (direitos disponíveis). Essa é a ra-zão pela qual a decadência pode ser renunciada pelas partes e não pode ser declarada de ofício pelo juiz (Código Civil, art. 210) nem provocada pelo Ministério Público. Como o Código Civil não estabeleceu as regras para a renúncia da decadência convencional, a doutrina aponta como solução a analogia aos requisitos para renúncia da prescrição (art. 191): o prazo deve estar consumado e não deve haver prejuízo de terceiro. O exemplo mais comum de decadência convencional é o prazo de garantia estabelecido entre as partes em um contrato de compra e venda. Toda garantia contratual é um prazo de decadência convencional.
10.3.4. Contagem do prazo de decadênciaEntendemos que a contagem do prazo de decadência deve ser feita
da mesma forma que a contagem do prazo de prescrição: excluindo-se o dia do começo e incluindo o do vencimento (Código Civil, art. 132). Contudo devemos ressaltar que antigamente era comum a distinção quanto ao termo fi nal da prescrição e da decadência, no sentido de que, quanto à primeira, se o prazo caísse em dia que não fosse útil, a prática do ato seria possível no dia útil subsequente e que, quanto à decadência, o prazo não poderia ser prorrogado, devendo o ato ser praticado anteci-padamente. Essa distinção tinha por base a analogia às regras do direito penal quanto à prescrição e à decadência. Com a evolução do estudo da matéria no direito civil, a distinção foi superada. Assim, à semelhança do que ocorre com a prescrição, se o prazo decadencial para o exercício do direito se esgotar em dia que não seja útil, o ato poderá ser praticado até o dia útil subsequente.
10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadência
Diferentemente do que ocorre com a prescrição, a decadência nor-
malmente corre para todos e contra todos. Enquanto a prescrição está
Direito Civil
201
relacionada à violação de um direito, a decadência está associada ao
exercício de um direito que depende exclusivamente da iniciativa do in-
teressado. Essa é a razão pela qual, em regra, não se aplicam à decadên-cia as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição. Essa regra é excepcionada em algumas situações pela norma jurídica. Como exemplo de exceção, podemos citar: a) art. 208 do Código Civil, que dispõe que não corre prazo de decadência contra o absolutamente incapaz (hipótese de impedimento e suspensão); b) o art. 501, parágra-fo único, do Código Civil (hipótese de impedimento); c) art. 26, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços obsta a decadência até a resposta negativa corres-pondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (hipótese de impedimento e suspensão).
10.3.6. Prazos de decadênciaProcurando facilitar a compreensão e a distinção dos institutos da
prescrição e da decadência, o legislador adotou uma solução geográfica dispondo sobre os prazos de prescrição apenas nos arts. 205 e 206 do Código Civil. Todos os demais prazos encontrados em outros artigos do Código Civil foram considerados pelo legislador como prazos decaden-ciais. Os prazos de decadência são especiais, com exceção do art. 179, que traz um prazo geral de 4 anos, a contar da data da conclusão do ato, para as hipóteses em que o legislador determinar a anulabilidade de um ato sem estabelecer prazo específico.
10.3.6.1. Principais prazos de decadência 3 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir a coisa móvel, a contar da data da notificação promovida pelo com-prador (Código Civil, art. 516).
10 dias: para a minoria vencida impugnar a alteração do estatuto da fundação, a contar da ciência promovida pelo Ministério Público (Código Civil, art. 68).
30 dias: para que o adquirente de bem móvel reclame de vício redi-bitório de fácil constatação, a contar da tradição da coisa (Código Civil, art. 445); para o consumidor reclamar do produto/serviço não durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do co-nhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26).
60 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readqui-rir a coisa imóvel, a contar da data da notificação promovida pelo comprador (Código Civil, art. 516).
90 dias: para o credor prejudicado requerer a anulação de atos re-lacionados à incorporação, fusão ou cisão de uma pessoa jurídica, a contar da data da publicação do ato (Código Civil, art. 1.122); para o consumidor reclamar do produto/serviço durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Códi-
go de Defesa do Consumidor, art. 26).
202
120 dias: para o interessado impetrar mandado de segurança (art.
18 da Lei n. 1.533/51 e Súmula 632 do STF); para o transportador
reclamar indenização pelo prejuízo que sofrer em caso de infor-
mação inexata ou falsa descrição, a contar do ato (Código Civil,
art. 745).
180 dias: para anular negócio concluído pelo representante em
confl ito de interesses com o representado, a contar da conclusão
do negócio ou da cessação da incapacidade (Código Civil, art. 119);
para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de
difícil constatação (art. 445); para o condômino preterido em seu
direito de preferência haver para si a parte vendida por outro con-
dômino a estranho (art. 504); para o vendedor exercer o direito de
preferência contratual na alienação de coisa móvel (art. 513); para o
prejudicado reclamar da solidez e segurança da obra na empreitada
de edifícios ou outras construções consideráveis, a contar do apa-
recimento do defeito (art. 618); para anulação do casamento por
diversas razões (arts. 1.555 e 1.560).
1 ano: para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitó-
rio de fácil ou difícil constatação, a contar da tradição ou da consta-
tação (Código Civil, art. 445); para o adquirente reclamar comple-
mento da área ou para o alienante reclamar devolução, na compra
e venda ad mensuram, a contar da transcrição do título (art. 501);
para o doador pleitear a revogação da doação, a contar do conheci-
mento do fato que autoriza a revogação (art. 559).
1 ano e 1 dia: para o proprietário exigir que se desfaça janela, saca-
da, terraço ou goteira sobre o seu prédio (art. 1.302); para o possui-
dor pleitear liminar em ação possessória.
2 anos: para anular negócio jurídico, não havendo prazo específi co,
a contar da celebração (Código Civil, art. 179); para o vendedor
exercer o direito de preferência contratual na alienação de coisa
imóvel (art. 513); para anular aprovação do balanço (art. 1.078, §
4º); para anulação do casamento celebrado por autoridade incom-
petente (art. 1.560); para anulação de negócio realizado por cônju-
ge sem a devida vênia (autorização) conjugal, a contar da extinção
da sociedade conjugal (art. 1.649); para o interessado requerer a
rescisão de julgado (Código de Processo Civil, art. 975).
3 anos: para anular a constituição de pessoa jurídica de direito pri-
vado por desrespeito aos requisitos legais (Código Civil, art. 45, pa-
rágrafo único); para anulação de decisões tomadas por maioria de
votos com violação de lei ou estatuto ou se viciadas por erro, dolo,
simulação ou fraude (art. 48, parágrafo único); para o vendedor de
coisa imóvel recobrá-la na compra e venda celebrada com cláusula
de reversão (art. 505); para anulação do casamento em razão de
erro essencial quanto à pessoa do cônjuge (art. 1.560, III).
4 anos: para anular negócio jurídico viciado por erro, dolo, estado
de perigo, lesão ou fraude contra credores, a contar da celebração
Direito Civil
203
do negócio (Código Civil, art. 178); para anular negócio jurídico
viciado por coação, a contar do dia em que cessar a coação (art.
178); para anular casamento viciado por coação (art. 1.560, IV);
para requerer exclusão do herdeiro ou legatário, a contar da abertu-
ra da sucessão (art. 1.815, parágrafo único); para anular disposição
testamentária viciada por erro, dolo ou coação, contado da ciência
do vício (art. 1.909, parágrafo único).
5 anos: prazo para impugnar o testamento, a contar da data do re-
gistro (art. 1.859).
Em duas situações, entendemos que o legislador se equivocou ao tratar como prazos de decadên-cia hipóteses que revelam preten-sões de direitos patrimoniais:Art. 618 do Código Civil: “Nos con-tratos de empreitada de edifícios ou outras construções considerá-veis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do tra-balho, assim em razão dos ma-teriais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegu-rado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”. Entendemos que esse prazo de cinco anos é de prescrição, pois está relacio-nado à pretensão de reparação de danos (exercício de direito subjetivo patrimonial).Art. 745 do Código Civil: “Em caso de informação inexata ou falsa descrição no documento a que se refere o artigo antecedente, será o transportador indenizado pelo prejuízo que sofrer, devendo a ação respectiva ser ajuizada no prazo de cento e vinte dias, a contar daquele ato, sob pena de decadência”. Esse prazo é de prescrição, e não de decadência, pois o dispositivo também se refe-re a uma pretensão indenizatória (direito subjetivo patrimonial).
ATENÇÃO
Atos Ilícitos e Responsabilidade Civil11
206
11.1 CONCEITO, ESPÉCIES E DISTINÇÕES NECESSÁRIAS, GENERALIDADE CIVIL
O Estado Democrático de Direito garante a todos os cidadãos a or-
dem e a paz estabelecendo entre as garantias fundamentais da Consti-
tuição Federal de 1988 a apreciação pelo Poder Judiciário sempre que
houver lesão ou ameaça a direito.1
Quando o legislador constituinte se refere à proteção sempre que
houver lesão ou ameaça a direito, subentende o dever legal de não causar
dano a outrem.
11.1.1. ATOS ILÍCITOSO ato ilícito é a conduta, a ação ou a omissão do agente que ge-
rou o dano, o prejuízo a outrem. Recebe o nome de ilícito porquê
interrompe, ofende, invade a direito alheio, provocando resultado in-
desejado, sem consentimento prévio ou autorização legal. A vítima
simplesmente é constrangida aos efeitos danosos causados pelo ato
ilícito do agente.
O ato ilícito civil é um fato jurídico relevante para o direito civil,
pois acontece por ação ou omissão do agente, resultando em dano pa-
trimonial (material) ou extrapatrimonial (moral) sobre o direito de ou-
trem, que injustamente o suporta, assistindo-lhe por esta razão, o direito
à reparação. A vítima de danos cíveis busca que o Poder Judiciário con-
dene o autor do fato à reparação do seu estado anterior ao dano (status
quo ante).
Onde estiver o ato ilícito aí estará a infração ao dever legal de não
lesar a outrem.
11.1.2. RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Por outro lado, o ato ilícito penal consiste em ação ou omissão do
agente, cujo fato é previamente tipifi cado por norma penal de direito
público. O interesse lesado é da sociedade e a sua forma de reparação se
dá através de punição, que pode ser desde uma pena pecuniária (multa
ou fi ança) até restrição total da liberdade da pessoa (reclusão ou deten-
ção – conforme a gravidade do tipo penal). O agente responderá por
1. CF, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabili-dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Os artigos abaixo, todos do Código Civil, são fundamentais para o entendimento da matéria:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, ne-gligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 393. O devedor não res-ponde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato necessá-rio, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (Arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo.
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou so-bre quem seja o seu autor, quan-do estas questões se acharem de-cididas no juízo criminal.
Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar cul-pa da vítima ou força maior.
Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ru-ína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.
Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lança-das em lugar indevido.
Art. 944. A indenização me-de-se pela extensão do dano.
ATENÇÃO
Direito Civil
207
dolo ou culpa pela responsabilidade penal do ato ilícito criminal a que
der causa, desde que maior e garantido o seu direito à ampla defesa e
contraditório (CF, art. 5º: (...) LV – aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contradi-
tório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.). Portanto,
a responsabilidade criminal, visa punir aqueles que ofenderem à socie-
dade por descumprimento à norma penal pública. Embora as respon-
sabilidades civil e criminal tenham instrução em foros diversos, quando
houver sentença penal irrecorrível, os fatos ali narrados, bem como a
autoria deles, se tornam inquestionáveis no cível.
Na responsabilidade civil o legislador civil impõe àquele que causar
dano (ainda que moral), o dever de indenizar a vítima. Então, pode-se
dizer que o ato ilícito civil é também fonte de obrigação.
A ação ou omissão que provoca a lesão ao direito induz à respon-
sabilidade civil que, por sua vez, é uma reação provocada pela infração
a um direito preexistente. Entretanto, não haverá direito à indenização
quando ocorrer violação a direito e ao mesmo tempo não ocorrer um
dano ou efetivo prejuízo (ainda que tenha havido culpa ou dolo do agen-
te), pois para que haja direito à reparação ou indenização devem ocorrer
simultaneamente a violação ao direito e o dano (material ou moral).
Violação
• Dever legal
• Não lesar a outrem
Ação / Omissão
• Dolo
• Culpa
Dano / Prejuízo
• Material
• Moral
nexo causal
= RESPONSABILIDADE CIVIL
11.1.3. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVILAssim, podemos concluir que a responsabilidade civil se compõe
dos seguintes elementos: a) ação ou omissão do agente; b) dolo ou culpa do agente; c) nexo causal e d) dano (material ou moral)
a) ação ou omissão do agente – o agente poderá responder quando for autor direto do fato, ou por este derivar de ato próprio; ou de ato de terceiro que esteja sob sua guarda; ou de animais e coisas de sua proprie-dade ou posse.
b) dolo ou culpa do agente – o dolo demonstra a intenção do agente em causar o dano, uma violação deliberada do dever de não lesar a outrem. Enquanto a culpa opera com a conduta não diligen-te, pouco cuidadosa, que por sua imprudência, negligência ou impe-rícia culmina no dano a outrem. A culpa pode ser classificada em: a) contratual; b) extracontratual; c) in cometendo (aquela que resulta de uma ação. Exemplo: motorista avança o sinal vermelho); d) in omitin-do (aquela que resulta da negligência ou omissão. Exemplo: motorista deveria ter trocado as pastilhas de freio do automóvel); e) in vigilando
(aquela que decorre do dever de vigilância. Exemplo: patrão quanto
aos empregados, pais em relação aos filhos); f) in elegendo (aquela que
VOCABULÁRIO
Dolo: quando o agente tinha a intenção de causar o dano.
Culpa: quando o agente não tinha a intenção de causar o dano, mas age com imprudên-cia, negligência ou imperícia.
De acordo com o art. 942 do Código Civil, a responsabilidade por ato praticado por terceiro é de responsabilidade solidá-ria. Equivale dizer que todas as pessoas que estejam envolvidas com a causa do evento danoso responderão solidariamente pe-los prejuízos sofridos, podendo a vítima os eleger a teor do que dis-põe ainda o art. 932 do mesmo diploma legal.
ATENÇÃO
208
resulta da escolha inadequada. Exemplo: empresa contrata motoris-
ta sem carteira de habilitação para o caminhão); e e) in custodiando (aquela que decorre da guarda e conservação de coisas ou bens. Exem-plo: depositário, locatário etc.).
c) nexo causal – trata-se da relação existente entre a causa (conduta do agente) e o efeito (dano a ser reparado). O nexo de causalidade de-monstra quem deu causa ao dano, ao prejuízo sofrido injustamente, o qual deverá indenizar a vítima.
No entanto, caso esteja presente uma das hipóteses abaixo, estará excluída a ilicitude do ato, por romperem o nexo de causalidade: I) culpa exclusiva da vítima; II) caso fortuito; e III) força maior.
d) dano (material ou moral) – deverá haver prova de dano efeti-
vo, seja patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral). Os danos
materiais e morais possuem meios técnicos para sua quantifi cação (CC,
arts. 944 a 954). A pretensão de reparação não subsistirá se não houver
demonstração do prejuízo. Em regra, deverá a vítima provar a existên-
cia do dano e quantifi cá-lo para obter a reparação. Isto porque o pedido
deve permitir a ampla defesa e o contraditório. Contudo, existem muitas
hipóteses aceitas na jurisprudência em que se permite a aplicação da pre-
sunção de existência de dano moral (dano in re ipsa), como por exemplo
decidiu o Superior Tribunal de Justiça nos casos de: a) inscrição indevida
do nome no cadastro de inadimplentes; b) talões de cheques extraviados
do Banco e utilizados por terceiros; c) atrasos de voo; d) impedimento
do exercício da profi ssão por diploma sem reconhecimento no MEC; e)
multas de trânsito lavradas por erro administrativo; e f) publicação do
nome de médico que não pertence a convênio.
11.1.4. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Com fundamento na teoria clássica, a responsabilidade subjetiva é aquela que busca a prova da culpa do agente a fi m de com ela lhe impu-tar o dever de indenizar a vítima. Na responsabilidade subjetiva, se não
encontrada a culpa, em sentido amplo (dolo ou culpa) não responderá
por perdas e danos causados o agente.
São excludentes de responsabilidade civil subjetiva: I) legítima
defesa; II) estado de necessidade; III) o exercício regular de um direi-
to; IV) o estrito cumprimento do dever legal; V) o caso fortuito; e VI)
a força maior.
A responsabilidade objetiva não exige que se prove a culpa do agen-
te; basta provar a existência do dano e do nexo causal. A admissibilidade da responsabilidade sem culpa se justifi ca em razão de estar prevista na
lei (ex.: é responsabilidade objetiva dos pais (CC, art. 932, I) os atos pra-
ticados por seus fi lhos incapazes (CC, art. 933), ou por força do risco
inerente à atividade do autor e a natureza do risco.
A teoria subjetiva foi adotada como regra geral para imputação da
responsabilidade em nosso Código Civil.
A culpa aquiliana ou strictu sensu é a culpa extracontratual do agente; é aquela que se pauta em sua imprudência, negligência ou imperícia. A culpa contratual viola um dever jurídico prescrito no acordo entre as partes.
O dano moral pode ser, ain-da, direto, como se dá pela inscri-ção indevida do nome no cadas-tro de inadimplentes, uma ofensa aos direitos da personalidade. E o dano moral indireto ou ricochete, no qual se dá um desfalque pa-trimonial e por refl exo, atinge um valor da personalidade. Exemplo: o violino que pertencia ao seu bi-savô e estava em sua companhia há mais de 30 anos foi roubado. O violino tem um valor material (pa-trimônio) e um valor inestimável (extrapatrimonial).
O risco apresenta diver-sas modalidades: risco proveito, quando quem colhe os bônus suporta os ônus; risco profi ssional, que se relaciona ao trabalho; ris-co excepcional, atividades que envolvem grau elevado de pe-rigo, e risco integral, quando o grau de perigo é tão alto que não admite exclusão da responsabili-dade.
ATENÇÃO
Direito Civil
209
Para que seja possível imputar o dano ao agente, deverá ele pos-
suir capacidade de discernimento. Então como fica a responsabilidade daqueles que não possuem condições mínimas para exercerem o discer-nimento?
O responsável será aquele que os representar (pai, tutor, curador etc.); nestes casos, a responsabilidade objetiva decorre da previsão legal. E se o representado possuir patrimônio, este responderá, desde que se faça por equidade (não permitindo que prive o incapaz e as pessoas que dele dependerem para seu sustento).
11.1.5. ABUSO DE DIREITOO abuso de direito é um ato ilícito que se configura quando o titu-
lar do direito, ao exercê-lo, excede os limites impostos pelo ordenamen-to jurídico (ignorando a finalidade social do seu direito subjetivo). O agente se desvia dos fins sociais estabelecidos para harmonizarem-se ao ordenamento jurídico como um todo.
Entre os casos mais típicos de abuso de direito, estão as questões envolvendo o direito de vizinhança, como, por exemplo, o uso indevido do direito de propriedade, que terminam por afetar a saúde, o sossego e a segurança alheios. E, ainda, demandar por dívida antes de vencida ou por dívida já paga.
Na aplicação da lei, como já estudamos, o juiz deverá levar em conta os fins sociais e as exigências do bem comum aos quais ela se dirige.
Considerando que um contrato de financiamento de veículo com 36 (trinta e seis) parcelas seja executado por inadimplemento, quando restavam apenas três, não parece que a ação judicial atenda à boa-fé e aos fins sociais. Neste caso, poderá o magistrado, com força no art. 5º da
LINDB, aplicar a teoria do adimplemento substancial (Enunciado 361
da IV Jornada de Direito Civil ).
Ao lado da teoria do abuso de direito, existem alguns desdobramen-
tos: a) venire contra factum proprium; b)supressio, surrectio e tu quoque.
a)Venire contra factum proprium – Fundamentando-se no prin-
cípio da solidariedade, esta teoria compreende que as partes durante a
relação contratual admitem um comportamento que permite certa pre-
visibilidade ou coerência habitual, provocando uma expectativa que não deve ser contrariada repentinamente, em razão da boa-fé e da necessá-ria conduta leal e ética entre as partes. Para que se configure a conduta contraditória, a parte deverá desde o início da relação manter sempre determinada conduta (factum proprium). Por exemplo, um locador cujo locatário sempre atrasa o pagamento do aluguel, nunca cobrou multa, até que, quando faltavam dois meses para o término do contrato, passou a cobrá-las todas de uma vez. Aqui houve quebra do factum proprium identificado na conduta inicial de não ter cobrado as multas.
b) Supressio, surrectio e tu quoque – A supressio é a supressão, a perda de determinada faculdade jurídica no decurso do tempo. Esta teoria compreende ser inadmissível o exercício de um direito por seu
Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil: “361 – Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento subs-tancial decorre dos princípios ge-rais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.
ATENÇÃO
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retardamento desleal. A omissão gera na outra parte uma expectativa le-
gítima, fazendo nascer para ela um novo direito subjetivo. Na surrectio é
o contrário, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em
razão do não exercício por outrem de um determinado direito; admite a
aquisição de um direito subjetivo.
Desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, ligado à regra de
proibir um comportamento contraditório (venire contra factum pro-
prium ), o tu quoque, será invocado para afastar o comportamento abu-
sivo de uma das partes que buscaria surpreender a outra em situação de
desvantagem (Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil).
Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil. Art. 187: As diver-sas hipóteses de exercício inad-missível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva.
ATENÇÃO