Post on 29-Jul-2015
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G A B I N E T E D A M I N I S T R A
CONFERÊNCIA
O superior interesse da criança e o mito da “síndrome da alienação parental”
1. Sou portador de uma mensagem da Srª Ministra da Justiça que, não obstante a
sua impossibilidade de estar aqui presente, como queria, se pretende associar a
esta importante iniciativa do Instituto de Apoio à Criança.
A criança é um ser naturalmente desprotegido. Que consegue ser o centro de muita
afectividade, mas que, não poucas vezes, é vítima silenciosa e silenciada das
maiores injustiças, um alvo frágil, que exige de todos nós uma especial atenção e
cuidado.
Por esta razão, a Srª Ministra da Justiça gostaria de deixar expressa a sua
solidariedade a esta causa, e encarrega-me de transmitir a V. Exª, Srª Drª Manuela
Eanes, o seu empenhamento e apoio a todas e quaisquer iniciativas que visem a
protecção da criança e o aperfeiçoamento dos mecanismos legais no sentido de
potenciar o respeito pelos direitos das crianças no seio das famílias.
Senhora Presidente, Senhoras e Senhores Congressistas
2. Como é conhecido, o superior interesse da criança tem vindo a ser definido
como o critério decisório fundamental de todos os litígios e questões que envolvam
crianças.
As grandes convenções e textos do direito internacional têm vindo a criar um
amplo consenso em torno dos eixos prioritários de actuação do Estado e das suas
instituições: tribunais, repartições administrativas, instituições tutelares
educativas, entre muitas outras.
A criança torna-se assim sujeito pleno de direitos.
E o seu próprio interesse é elevado a critério de decisão por parte das instituições
estaduais.
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3. Quando recordamos que ainda há trinta anos se diferenciavam filhos legítimos
dos ilegítimos e o Código Civil estabelecia um estatuto diferenciado para os
cônjuges, damos conta da profunda transformação social que está a decorrer
perante nós.
A proibição dos castigos corporais e a preocupação contemporânea com a
violência em ambiente escolar são aspectos deste mesmo fenómeno de valorização
das crianças e da sua formação e desenvolvimento integral.
4. No contexto constitucional português, a autonomia da sociedade perante o
Estado e a centralidade da família ganham um conteúdo particular, quando nos
damos conta de um paradoxo contemporâneo: pais cada vez mais preparados para
a sua missão; mas um número maior de conflitos insolúveis e de pessoas que não
estão preparadas para o exercício das suas responsabilidades – em termos simples,
para o exercício do poder paternal.
E, também por esta razão, de um número não despiciendo de crianças que não tem
direito a gozar os seus direitos – porque aqueles que exercem funções paternais ou
tutelares não são eles próprios capazes de guiar de modo esclarecido as crianças
para a sua realização enquanto pessoas ou as utilizam para a sua própria
satisfação.
As transformações culturais entram assim em choque com estas situações, que
ainda persistem e são muitas vezes ainda mais patológicas e violentas do que
antes.
5. É a esta luz que deve ser entendida uma das prioridades do Programa de
Governo no plano da justiça da família e menores, a adopção de um Estatuto da
Criança que estabeleça a necessária sistematização e coerência entre as
disposições do Código Civil, da legislação de menores e da legislação penal e
contra-ordenacional. A Justiça dos menores – tal como a dos idosos – não supõe
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apenas instituições administrativas e serviços judiciais adequados; requer
igualmente a existência de legislação própria.
6. Não se trata, obviamente, de apenas ter melhores leis – matéria que seria já em
si suficientemente importante.
Também é conhecido que recentes alterações legislativas ao regime do divórcio e
do exercício do que agora se designam responsabilidades parentais deveriam ter
sido objecto de avaliação prévia.
Uma das prioridades da acção do governo consiste na criação de instituições que
em cada momento sejam capazes de corresponder às missões que a sociedade
exige. E, como esta Conferência o demonstra, a sociedade é cada vez mais exigente
consigo própria e com as instituições do Estado.
E ainda bem que assim é.
7. Neste sentido, sabemos dos problemas sociais que hoje cada vez mais irrompem
e, quando surgem, trazem rupturas ou anúncios de rupturas, frequentemente, e
mal, amplificados pela comunicação social. O interesse superior da criança deveria
exigir reserva e contenção por parte da comunicação social, de modo a proteger na
medida do possível as personalidades em formação – tantas vezes logo e
prematuramente submetidas a um escrutínio para o qual não estão nem nunca
estarão preparadas, o da comunicação social.
É a necessidade de ponderar estes problemas que determina a reflexão em torno
de um Estatuto da Criança.
8. O Código Civil, como o nome indica, é o Código dos cidadãos, o estatuto da nossa
cidadania. Mas a complexidade da vida contemporânea não pode ser paralisada
pelo preconceito de tudo incluir naquele diploma. Efectivamente, são muitos os
diplomas que consagram estatutos diferenciados, da legislação educativa à
legislação da saúde ou à legislação fiscal.
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9. O Governo não se move pela ideia de que os direitos da criança são ou podem
ser opostos aos direitos e responsabilidade dos pais. Pelo contrário, do que se trata
é de realizar o programa constitucional: a família, como elemento fundamental da
sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de
todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
De outro lado e no plano da protecção da infância, trata-se de efectivamente
assegurar que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com
vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de
abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da
autoridade na família e nas demais instituições e que as crianças órfãs,
abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal têm
direito a essa protecção do Estado.
Conjugar a subsidiariedade efectiva da acção do Estado, a autonomia das famílias e
a prioridade do interesse superior da criança, estes, sim, são os valores e princípios
que nos movem.
Senhora Presidente, Senhoras e Senhores Congressistas
10. O Ministério da Justiça, como é sabido, tem uma intervenção concreta nesta
área através Direcção Geral de Reinserção Social.
O primeiro nível de intervenção resulta do facto da Direcção Geral de Reinserção
Social, ser a Autoridade Central Portuguesa para a Cooperação Judiciária
Internacional em Matéria Tutelar Cível.
Esta intervenção reveste a forma de contribuição para a elaboração de
instrumentos de cooperação judiciária internacional e garante o cumprimento de
procedimentos resultantes de convenções para as quais é autoridade central.
11. A matéria da alienação parental constitui, no que à Autoridade Central
Portuguesa respeita, matéria de relevo e por vezes contraditória.
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Desde logo porque a Convenção da Haia de 1980, permite no seu artigo 5.º alínea
a) que o progenitor que exerce as responsabilidades parentais de uma criança
(direito de custódia) possa decidir sobre o lugar da sua residência.
Por seu turno, o Código Civil, no seu artigo 1906.º n.º 1 dispõe que “as
responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a
vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que
vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em
que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao
outro logo que possível.”
12. Há assim um poder-dever, atribuído ao progenitor com quem a criança reside
habitualmente e a quem foram atribuídos os actos da vida corrente do filho, de
comunicar ao outro progenitor todas as questões de particular importância
relativas à criança, onde se inclui a alteração da sua residência.
Contudo, numa grande parte das situações o exercício das responsabilidades
parentais não são exercidas em comum, porquanto o progenitor incumbido da
gestão dos actos da vida correntes da criança apenas, e tão só, decide
unilateralmente não proceder como estipulado no acordo sobre as
responsabilidades parentais.
13. São vários os factores que militam a favor daquele incumprimento, como a falta
de comunicação entre ambos os progenitores, quezílias antigas, raivas, ódios mal
resolvidos, que levam a que o progenitor que detém a gestão de actos da vida
corrente relativos à vida da criança não comunique ao outro progenitor, entre
outros, a situação escolar da criança, todos os factos da sua vida pessoal, atribule
de forma expressa o direito de vistas do outro progenitor, designadamente não
comunicando festas de amiguinhos no fim-de-semana em que este progenitor
exerceria o seu direito de visitas.
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14. No caso do rapto parental isto é mais evidente, porquanto o progenitor que
detém a gestão de actos correntes relativos à vida da criança decide
unilateralmente, sem comunicar, informar ou pedir autorização para a alteração da
residência da criança ao outro progenitor, deslocar a criança para outro Estado que
não o da sua residência habitual.
Os motivos invocados pelo progenitor-raptor para a deslocação ou retenção ilícita
são vários e podem ser de natureza económica-financeira, ou dizer respeito ao
facto de se encontrar num país distante do seu Estado natal e longe da sua família,
ou porque há uma zanga entre o casal de nacionalidades diferentes e o progenitor-
raptor volta ao seu país natal levando a(s) criança(s) como acto de retaliação,
passando por muitas outras situações.
15. A verdade é que esta é uma realidade em crescendo que cada vez mais afecta
progenitores e crianças, constituindo um problema que se apresenta sem uma
solução célere de forma a permitir a uns e a outros chegar a consenso tendo em
vista a prossecução do superior interesse da criança.
Concluindo, podemos afirmar que a síndrome da alienação parental não é um
“mito”. É uma realidade cada vez mais presente no tipo de sociedade actual, que as
soluções legais nem sempre conseguem ultrapassar, porque resulta
fundamentalmente, caso a caso, da natureza das relações humanas em presença.
16. Um segundo nível de intervenção da Direcção Geral de Reinserção Social é o da
assessoria técnica aos Tribunais, no âmbito da Lei Tutelar Educativa, quer na fase
pré-sentencial, quer no acompanhamento das medidas aplicadas aos jovens que
entre os 12 e os 16 anos cometeram factos qualificados pela Lei como crime.
17. O “superior interesse do menor” surge como princípio fundamental da
intervenção de justiça no respeito pelos direitos da criança e jovem, considerados
fundamentais ao seu desenvolvimento. Por isso, a Lei Tutelar Educativa, visa
responsabilizar os jovens pelos actos cometidos, numa perspectiva de educação
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para o direito e de inserção digna na comunidade. A necessidade de intervenção
não se limita à prática dos factos, mas à necessidade de o Estado intervir para
corrigir o comportamento das crianças e jovens, conforme ao dever ser jurídico e
por isso, mais ajustado socialmente.
18. A intervenção dos serviços de reinserção social dá particular importância à
família dos jovens a quem é aplicada uma medida tutelar educativa. Considerando
que a grande maioria dos jovens é oriunda de famílias disfuncionais, muitas delas
monoparentais, com dificuldades em funcionarem como referência educativa e
modelo de comportamento prósocial, o estudo sobre o chamado “síndrome da
alienação parental”, assim designado pelo psiquiatra americano Richard Gardner1,
remete-nos para os problemas de relacionamento entre progenitores com impacto
inevitável na vida destes jovens. Muitas vezes utilizados como “arma” de
arremesso entre os progenitores, implica por parte dos serviços de reinserção uma
avaliação sobre as dinâmicas familiares e a implicação no processo de educação e
reinserção social dos jovens.
19. Só que estes são os casos, que eu diria limite, mas infelizmente significativos, e
que fazem parte das estatísticas da reinserção social.
Fora delas, e antes delas, temos um mundo de outros dramas que caem no
anonimato dos processos judiciais e se perdem nas memórias das salas de
julgamento.
Os tribunais estão repletos de guerras inúteis entre casais desavindos que não
conseguem perceber, nem distinguir, que tudo que os separa, por muito relevante
que seja, não pode envolver os filhos que trouxeram a este mundo. Há um défice
terrível nessas guerras injustas onde normalmente perdem todos. E quem mais
perde são as crianças.
1 Gardner, R. A. (1985a); Recent trends in divorce and custody litigation; The Academy Forum; 29 (2); 3
– 7.
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Testemunhei na minha vida profissional de advogado, que fui até desempenhar as
minhas actuais funções, momentos dantescos de desconsideração da
personalidade da criança, envolvida como moeda de troca no “deve e haver” de
partilhas ou na irracionalidade de ódios acumulados.
Muitas vezes reflecti sobre o papel a desempenhar pelo Advogado nestas disputas,
na primeira linha do patrocínio de uma causa em tribunal. E muitas vezes dei
comigo a pensar na necessidade – que eu diria ser quase de interesse público – de
o advogado ter o dever de se assumir, em todas as circunstâncias em que o
interesse da criança seja beliscado, como seu defensor, e de o proteger contra as
investidas de qualquer um dos progenitores. Porque nesta matéria, não há pais
maus contra mães boas, nem mães boas contra pais maus. Há de tudo, para todos
os gostos. É caso para dizer que a igualdade de género é absoluta.
Senhora Presidente, Senhoras e Senhores Congressistas
20. A terminar, gostaria de afirmar a minha convicção de que não há limites para o
trabalho a desenvolver em prol da criança, no sentido de promover o seu bem
estar, de criar meios dignos para o seu crescimento, de prevenir a desconsideração
a que muitas vezes está sujeita a sua personalidade e o seu crescimento.
Todos seremos poucos para que esta causa e estes princípios tenha
sustentabilidade e sejam viáveis.
Muito obrigado
2 de Novembro de 2011