Post on 23-Nov-2015
1
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
Mixrdia no picadeiro
Circo, circo-teatro e circularidade cultural
na So Paulo das dcadas de 1930 a 1970
Walter de Sousa Junior
Tese apresentada ao Departamento de Comunicaes e Artes
da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So
Paulo para defesa de doutorado na rea de concentrao
Comunicao, linha de pesquisa Comunicao e Cultura, sob
orientao da Profa. Dra. Maria Cristina Costa.
So Paulo
2008
2
Banca examinadora:
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
3
Resumo
O circo-teatro, presente na paisagem urbana de So Paulo em todo o sculo
XX, constituiu-se em espetculo popular baseado na hibridizao cultural,
com elementos da cultura erudita e da cultura de massa. Por sua vez, essas
duas se apropriaram do discurso circense, num processo evidente de circu-
laridade cultural.
Abstract
The circus-theater, that could be seen at So Paulos urban landscape throughout twentieth century, constituted itself in a form of popular per-
formance based in the cultural hybridization, with elements from learned
culture and mass culture. In turn, both of these cultures assimilated the cir-
cus discourse, in an unequivocal process of cultural circularity.
Palavras-chave
Circo-teatro, So Paulo, cultura popular, cultura erudita, cultura de massa,
hibridizao, circularidade cultural.
Key words
Circus-theater, So Paulo, popular culture, learned culture, mass culture,
hybridization, cultural circularity.
4
Objetivos
Averiguar a dramaturgia circense, seu processo de construo hbrida, e sua
apropriao pelos discursos erudito e massivo, a partir de dois estudos de
caso.
Mtodos
Anlise dos processos de censura presentes no Arquivo Miroel Silveira da
Escola de Comunicaes e Artes/USP, contextualizao histrica e cultu-
ral, entrevistas com artistas remanescentes.
Resultados
Confirmao da hibridizao na formao das matrizes popu-
lar/erudita/massiva e da transferncia do discurso circense do picadeiro pa-
ra os crculos eruditos e para a televiso.
5
Agradecimentos
Profa. Dra. Maria Cristina Castilho Costa, minha orientadora, por acreditar
que a dramaturgia circense presente no Arquivo Miroel Silveira poderia emergir numa
pesquisa acadmica. banca de qualificao, que partilhou da mesma crena, da qual
participaram a Profa. Dra. Roseli Fgaro, da ECA/USP e o Prof. Dr. Mrio Bolognesi,
da UNESP.
Aos professores das disciplinas cursadas, que me ajudaram a desenhar o mapa
noturno da pesquisa: Prof. Dr. Clvis Garcia, Profa. Dra. Ecla Bosi, Profa. Dra. Maria
Inez Machado Pinto e Prof. Dr. Jess Martn-Barbero.
s pessoas envolvidas no Arquivo Miroel Silveira, em particular Jacqueline Pi-
than dos Santos, e Augusto Veloso-Pampolha, por me ajudar a desatar um n que me
ocupava h trs anos. Analucia Viviani Recine, da Biblioteca da Escola de Comuni-
caes e Artes, pelo seu apoio inicial, que possibilitou a construo do ponto de partida
da pesquisa.
Aos entrevistados, que me acolheram e abriram suas vidas para um curioso pes-
quisador: Roger Avanzi (Palhao Picolino II), Waldemar Seyssel Filho (primognito de
Arrelia), Franco Alves Monteiro (Palhao Xuxu), Iara Fortuna (filha de Jos Fortuna) e
Elclides Fortuna (o Pitangueira, irmo e parceiro de Jos Fortuna).
CNPq, por possibilitar o meu aperfeioamento profissional e o desenvolvi-
mento deste trabalho com seu imprescindvel apoio financeiro.
Daniele Pimenta, sempre muito atenciosa em esclarecer dvidas sobre o uni-
verso circense, sobrinha de Antenor Pimenta, autor de peas de circo-teatro. Ermnia
Silva, pela rpida e esclarecedora conversa que tivemos durante um evento circense.
Aos amigos que sempre acreditaram no trabalho: o fotgrafo Paulo Pepe, que
registrou em imagens as entrevistas realizadas; Cristiano Eloi, pelo incentivo bibliogr-
fico e Newton Eichenberg, que fez a cuidadosa reviso deste trabalho.
Enfim, minha famlia e minha filha, Beatriz Pithan dos Santos Sousa, a quem
a minha pesquisa foi muito vantajosa para sua infncia, pois pde freqentar espetcu-
los de circo e se divertir com esse gnero de entretenimento numa poca em que ele
experimenta uma nova tentativa de renascimento, ancorada no sucesso do circo interna-
cional.
6
Sumrio
Introduo
Circo-teatro: memria, censura e hibridismo 8
Captulo 1
Os mastros: cultura popular e cultura de massa 17
Captulo 2
O terreno: a metrpole sinfnica, cenrios e personagens 42
Captulo 3
A arquibancada: mestiagens culturais 64
Captulo 4
A lona: o circo-teatro e seu repertrio hbrido 97
Captulo 5
Piolin: entre o picadeiro e os intelectuais 144
Captulo 6
Arrelia: entre a comdia e a televiso 167
Concluso 193
Bibliografia 197
7
Anexos (CD)
Entrevistas (transcrio):
Waldemar Seyssel Filho
Franco Alves Monteiro (Palhao Xuxu)
Roger Avanzi (Palhao Picolino II)
Iara Fortuna
Elclides Fortuna (Pitangueira)
Lista de circos-teatros e pavilhes que atuaram em So Paulo entre
1928 e 1968 segundo os processos que passaram pelo Departamento de
Diverses Pblicas (DDP), que constam do Arquivo Miroel Silveira.
Lista das peas de circo-teatro por ano de pedido de vistas do Depar-
tamento de Diverses Pblicas (DDP) entre 1928 e 1967, presentes no
Arquivo Miroel Silveira.
8
Introduo
Circo-teatro: memria, censura e hibridismo
Quase apagado da memria cultural de So Paulo, seja como forma de entrete-
nimento ou como referncia para a construo do discurso dos meios de comunicao
de massa, o circo-teatro, expresso cnica popular, deixa um legado que atravessa o
sculo XX, num tempo em que o centro e a periferia da capital ainda estavam dispon-
veis para abrigar lonas e picadeiros e que atores e autores, em sua formao orgnica,
criavam sua arte a partir de outras referncias, manuseando-as com seus saberes circen-
ses.
Chega a ser um tanto paradoxal o fato de que o circo-teatro tenha boa parte de
sua obra dramatrgica preservada por um arquivo do rgo responsvel pela censura
dessas peas. Isso porque esse gnero de espetculo no foi ostensivamente perseguido,
pois o foco principal da tesoura estatal estava direcionado a outros gneros teatrais,
fossem eles mais elitizados, como o teatro poltico, ou mais populares, como o Teatro
de Revista. O que no quer dizer que as peas de circo-teatro encenadas entre 1930 e
1970 no tenham sofrido cortes e alguns poucos vetos. Essas peas se encontram entre
os processos de censura estadual do Departamento de Diverses Pblicas (DDP), hoje
reunidos no Arquivo Miroel Silveira, coordenado pela Profa. Dra. Maria Cristina Costa,
da Escola de Comunicaes e Artes.
Na primeira vez que tive contato com os processos do DDP, eles estavam enca-
dernados em grossos tomos com capas azuis, todos empilhados numa estante de ferro
numa pequena sala da biblioteca da Escola de Comunicaes e Artes. Logo que fui a-
presentado ao arquivo, contaram-me que aquele estava sendo seu melhor refgio desde
que o crtico, escritor, diretor de teatro e professor Miroel Silveira o salvou da fogueira,
em 1988, depois da promulgao da nova Constituio, quando a censura prvia foi
extinta. Miroel, que naquela altura era professor da Escola de Comunicaes e Artes da
USP, conhecia bem o arquivo, pois foi com base nos processos de censura que pde
estruturar sua tese de doutorado, A contribuio italiana ao teatro brasileiro 1895-
1964, depois transformada em livro. Alis, outro grande paradoxo. A fogueira, smbolo
da opresso inquisitorial e metfora muitas vezes usada para se referir aos meios autori-
trios extremos de coibir e vigiar a produo cultural do Pas em quase toda a extenso
9
da sua histria poucas vezes o Brasil conseguiu se livrar de processos censrios e,
mesmo agora, quando no existe mais a censura prvia, ela vive ameaando voltar ,
quase foi o destino dos mais de seis mil processos do DDP. Miroel os salvou porque
eram, alm de um retrato da produo teatral paulista dos quarenta anos que esse acervo
cobre, uma fonte imensa de informaes passveis de serem transformadas em conhe-
cimento. Assim, quando abri aleatoriamente o primeiro volume de processos, o acaso
me mostrou um nome que se entranhava em minha memria e me remetia a modorren-
tas tardes de domingo da minha infncia: Waldemar Seyssel. Eu sabia quem era aquele
ilustre cavaleiro: o palhao Arrelia. E o que parecia um mar de possibilidades minha
busca por um objeto de pesquisa, se resumiu ao tema que, dali para diante, me consu-
miu os anos seguintes.
Minha vida acadmica inclua duas pesquisas consecutivas sobre o universo da
cultura popular. A primeira, que envolveu no s o perodo de um ano e meio do curso
de Gesto de Processos Comunicacionais da ECA/USP, ento um curso de ps-
graduao lato sensu (hoje se chama Gesto de Comunicao e de especializao),
mais um total de sete anos, que envolveu um mergulho profundo no universo da msica
caipira. Ou melhor, envolveu uma investigao sobre como a msica caipira se formou
a partir da expresso folclrica paulista, sempre agregando influncias externas; como
ela se confirmou como uma expresso popular, que fazia sucesso em disco e no rdio;
e, na seqncia, como foi apropriada e transformada pela indstria cultural, agregando
mudanas rtmicas a partir de influncias estrangeiras (guarnia paraguaia, rancheira
mexicana, rock, country norte-americano), virando o que hoje conhecemos por msica
sertaneja. O resultado est no livro Moda Inviolada Uma histria da msica caipira,
editado em 20061.
Antes mesmo de a pesquisa ter adquirido o formato de livro, uma outra j havia
consumido, se menos tempo, mais profundidade terica, embora seu objeto aparentasse
menor complexidade e um recorte menos extenso. Minha dissertao de mestrado se
centrou na contaminao de gneros na grade televisiva, particularmente na grade da
Rede Globo. O Jornal Nacional, noticirio enxertado no final dos anos 1960 entre tele-
novelas que iam conquistando a audincia e consolidando a hegemonia da emissora,
nasceu com um tom oficial do Regime Militar e virou sinnimo de verdade se o
noticirio deu, ento foi verdade at que o modelo perdeu fora a partir da redemocra-
1 SOUSA, Walter de. Moda inviolada Uma histria da msica caipira. Editora Quiron, So Paulo,
2006.
10
tizao do Pas na dcada de 1980. A sada para reconquistar a audincia foi promover
uma contaminao controlada de gneros, de modo que a base estrutural das notcias
passou a ser aquela que dava a tnica da grade do horrio nobre da emissora: o melo-
drama. Portanto, tratou-se de uma pesquisa em que a cultura popular novamente se so-
bressaa.
O contato ocasional com o nome de Waldemar Seyssel e o material que despon-
tou minha frente sobre ele me arrastava mais uma vez ao universo do popular, embora
o circo seja um caso bem mais complexo, que envolve hibridismos culturais, circulari-
dades e cujo espetculo se desenvolve num desinibido espao de apropriaes simbli-
cas. como se o picadeiro fosse um verdadeiro campo de significados onde os arquti-
pos humanos danassem diante dos olhos da alma humana, como definiu o prprio Mi-
roel Silveira num artigo antolgico sobre o circo2.
O desafio, portanto, se mostrava maior. O processo cultural dentro dos limites
do picadeiro demonstra a existncia de uma dinmica no-linear de apropriao da cul-
tura popular e da cultura de massa, de modo que tal processo se revelar menos resis-
tente em face do que ocorre, por exemplo, em outras manifestaes populares. Ao
mesmo tempo, e a partir desse processo, o circo-teatro criado para um pblico emer-
gente diante de um mercado cultural tambm emergente. Mas a caracterstica mais sub-
versiva nisso tudo que ambos, circo-teatro e pblico popular perfazem o processo
conjuntamente, pois, ao contrrio do contrato entre espetculo e assistncia firmado no
teatro convencional, no circo-teatro vale a interferncia do espectador no espetculo, de
modo que o artista est preparado para incorporar prontamente na cena as interferncias
propostas. Ouvido para a pesquisa, o ator circense Pitangueira, tambm msico caipira,
que atuou em dupla com o irmo Jos Fortuna, faz uma comparao interessante: O
artista como o poltico: ele busca entender o povo para dar aquilo que ele quer. A di-
ferena que no mentimos para o povo.
Portanto, o processo cultural do circo-teatro ocorre a partir de um campo simb-
lico em que interagem cultura popular, cultura erudita e cultura de massa, num amplo
jogo de apropriaes e negociaes, tenses e distenses, confrontos e consensos.
Mesmo assim, permanece a idia de processo, pois o circo-teatro, a priori, no deixa de
2 SILVEIRA, Miroel. O circo Espao arquetipal convergente in O circo, catlogo da exposio reali-
zada no Pao das Artes em 1978, Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia do Estado de So Paulo,
So Paulo, 1978.
11
ser cultura popular que se referencia no teatro erudito e que apropriado pela cultura de
massas.
Depois de ter tomado a deciso de transformar o circo-teatro em objeto de estu-
do que fui perceber a dimenso do recorte que o gnero representa dentro do AMS.
Em primeiro lugar, se o arquivo permitia uma reconstituio histrica da cena paulista,
e se 1.088 processos levavam a rubrica do gnero circo-teatro, eu tinha a oportunidade
mpar de reconstituir a importncia dessa expresso cultural no perodo de sua maior
efervescncia entre as dcadas de 1930 e 1970 e identificar qual a sua contribuio
para a formalizao discursiva da televiso, que chegou ao Brasil em 1950. Ou seja,
conseguiria reconstituir o caminho percorrido pela serragem do picadeiro at alcanar o
estdio de televiso e, assim, as salas de estar dos brasileiros. Em segundo lugar, outra
possibilidade, menos evidente primeira vista, tambm se revelava: seria possvel es-
quadrinhar os pontos de interseo entre a cultura popular, a cultura erudita e a cultura
de massa no espao exguo e circular do picadeiro. Esse espao de mediao e de mi-
xrdia, como bem sabem aqueles que dele partilham era o laboratrio perfeito, mesmo
que inconsciente, para a construo de sentido e do discurso da indstria cultural.
Desde que o processo de estudo sistemtico do AMS teve incio, em 2002, com
um projeto de pesquisa que contou com o auxlio da Fundao de Amparo Pesquisa do
Estado de So Paulo (Fapesp), intitulado A censura em cena, muita coisa aconteceu at
que processos do DDP passassem a constituir uma base de dados sobre a histria do
teatro e da censura em So Paulo. Ele se converteu no Projeto Temtico A cena paulista
um estudo da produo cultural de So Paulo de 1930 a 1970 a partir do Arquivo
Miroel Silveira, que tambm conta com o apoio da Fapesp, e que comporta quatro eixos
de pesquisa:
A censura em cena Organizao e anlise dos processos de censura
teatral do Departamento de Diverses Pblicas do Estado de So Paulo
(DDP-SP).
O poder e a fala na cena paulista Voltado para o estudo das peas
que apresentam trechos, expresses ou palavras censuradas e em que
possvel apreender as formaes discursivas.
Na cena paulista, o amador Estudo do teatro amador em trs de suas
vertentes: os grupos filodramticos, ligados a sindicatos operrios, os
grupos formados por associaes de imigrantes (desenvolvidos princi-
12
palmente nos anos 1930 e 1940), e o teatro de aspirantes carreira pro-
fissional, organizado nos anos 1950 pelas universidades e escolas de ar-
tes dramticas;
Do palco para as telas Estudo dos documentos do Arquivo Miroel
Silveira e reconstituio do quadro poltico e social da poca, tanto em
So Paulo como no restante do Pas.
para esse ltimo eixo temtico que a presente pesquisa pretende contribuir. Ou
seja, ela pretende localizar o circo-teatro no contexto das tendncias culturais alinhadas
com a circularidade promovida pelo gnero dentro da cultura paulista, assim como ava-
liar a sua contribuio para o processo de elaborar o discurso massivo da televiso. Ca-
be ainda salientar a ruptura epistemolgica proposta por este estudo, uma vez que boa
parte das pesquisas efetivadas at o momento se exime de situar o circo e muito me-
nos o circo-teatro no processo cultural de formao da cultura de massa, restringindo-
se os enfoques s apropriaes promovidas em relao aos discursos radiofnicos, ci-
nematogrficos e teatrais (tanto do teatro profissional como do Teatro de Revista).
A base da pesquisa
Os anos de atividade do DDP no Estado de So Paulo, a princpio brao censor
do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), de Getlio Vargas, avanam alm
do perodo varguista (1930-1945), atuando ativamente durante o perodo democrtico
(1946-1963) que antecedeu o perodo militar (a partir de 1964), quando foi reoxigena-
do, sendo extinto com o AI-5 (1968), quando o controle cultural passou a ser uma atri-
buio federal. Entre 1928 e 1968, toda a produo teatral, nos mais diversos gneros,
inclusive o circense, obedeceu ao rito de censura estabelecido como pressuposto bsico
para a apresentao pblica de dramaturgia. Entretanto, a censura no se restringiu a
esse perodo histrico nacional. Ela aparece como elemento de formao histrica,
sempre amparada pela mo pesada do poder institudo, seja legtimo ou no, e sempre
aquiescido por instituies sociais frgeis.
A censura no Brasil no foi apenas uma prerrogativa do Estado. Foi um
amplo processo de aliana entre o governo, a Igreja Catlica, os setores
conservadores da sociedade e os da elite obscurantista para coibir o
pensamento crtico e a livre expresso artstica. Reside aqui a dificul-
dade em enfrentar o conflito e a diferena, uma convivncia que no
13
busque aplainar, escamotear, disfarar ou esconder as oposies e as
divergncias.3
Certamente, o circo-teatro no escapou desse processo. Embora de maneira me-
nos enftica que nos demais gneros teatrais entre eles o Teatro de Revista, que traz
em sua estrutura o humor poltico e o nu, e o teatro profissional, que, a partir do final da
dcada de 1940, com a criao do Teatro Brasileiro de Comdia (TBC), se torna mais
renovador em estrutura e espetculo , o circo-teatro obrigado a cumprir o rito bsico
da censura prvia, como todas as criaes cnicas do perodo de atuao do DDP, e que
tambm define o recorte desta pesquisa.
O rito de censura envolvia o envio do texto a ser encenado, pelo autor ou pelo
produtor do espetculo, para as vistas prvias dos censores. No DDP, esse texto era
distribudo pelo diretor a um censor designado, que o lia e deliberava sobre os cortes a
serem feitos. O texto era devolvido ao produtor ou autor e um ensaio era marcado, ao
qual comparecia o censor, que, mais uma vez, imbudo do poder de corte, designava as
mudanas a serem feitas no espetculo pronto. Cumprido o rito, a deciso poderia ser
uma das seguintes: liberada integralmente para qualquer idade; liberada para maiores de
18 anos, o que, no caso do circo, era praticamente um veto, pois no h limite de idade
para o espetculo circense completo; parcialmente liberada, com cortes e modificaes;
e vetada, quando sua encenao era proibida4. No caso do circo, de 1.088 processos,
constam no Arquivo Miroel Silveira somente dez peas vetadas5. Quanto aos cortes de
trechos e palavras, seguiam os seguintes motivos, apontados por Cristina Costa6: 1.
Censura moral (corte de palavres, cenas atentatrias ao pudor, adultrio feminino,
referncias a atos sexuais, etc.); 2. Censura poltica (insinuaes a respeito do Pas, da
ordem social e poltica, e referncias a pases considerados inimigos); 3. Censura reli-
giosa (referncias Igreja e aos santos); 4. Censura social (temas relacionados a ques-
tes sociais polmicas).
3 COSTA, Cristina.Censura em cena Teatro e censura no Brasil. Edusp, Fapesp e Imprensa Oficial do
Estado de So Paulo, So Paulo, 2006, p. 253. 4 Idem, op. cit., pp. 212 e 213.
5 So elas: Gaspar, o serralheiro, de Baptista Machado, Circo Alcebades, 1941; As duas Anglicas, de
Abelardo Pinto, Circo Irmos Queirolo, 1942; Ladra: alta comdia em 3 atos, de Silvino Lopes, Circo
Teatro Batuta, 1942; Defesa passiva, Agenor Gomes, Circo Teatro Piolin, 1943; E o cu uniu duas almas,
Helen Fantucci Neto, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1947 (por ser um plgio de E o cu uniu dois co-
raes, de Antenor Pimenta); Revelao fatal, de Agenor Gomes, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1947;
Nos degraus da perdio, Horcio Mello e Nancy Tognolli Mello, Circo Teatro Oito Irmos Mello, 1950;
Lampeo, o rei do cangao, de Paulo Bonetti, Circo Teatro Delback, 1951; Deixa correr o marfim, de
Armando Braga, Circo Teatro Piolin, 1953 (por ser plgio da pea portuguesa O tio padre); Joo, o corta-
mar, de Antnio Cndido de Oliveira, Circo Teatro Simes, 1955. 6 COSTA, Cristina. Op. cit., p. 232.
14
Quanto s palavras censuradas, no muito raramente, no se obedecia aos cortes
nas encenaes, boa parte delas no visitadas pelos censores aps a devoluo da pea
para a apresentao, como atesta o circense Eulo de Almeida, do Circo Franois, que
teve como principal espetculo a pea Ben-Hur, adaptao do livro homnimo feita por
Hilrio de Almeida. Os censores vetaram as palavras Roma e romanos, pois a pea
seria encenada em pleno perodo de confronto mundial e a Itlia se alinhava com as
foras do Eixo. Passava-se por cima, claro. Tinha que explicar ao pblico, ou no
? E no havia nada de mal.7
De fato, a perseguio poltica durante as ditaduras de Vargas e Militar no foi
to perceptvel queles que faziam o circo-teatro e aos que a ele assistiam. Se fala em
ditadura militar... Ns no vimos nada disso, pois estvamos no circo!, afirma o ator
Pitangueira. No entanto, ela perceptvel quando se avalia, de maneira mais precisa, os
processos do DDP.
No que se refere ao circo-teatro, o Arquivo Miroel Silveira (AMS) apresenta o
seguinte volume de circos e peas presentes nos processos de censura junto ao DDP
entre 1928 e 1967:
Ano Circos Peas Ano Circos Peas Ano Circos Peas Ano Circos Peas
1928 0 8 1938 3 5 1948 31 323 1958 1 18
1929 0 2 1939 4 7 1949 31 246 1959 5 55
1930 0 2 1940 0 3 1950 19 149 1960 2 18
1931 2 23 1941 8 19 1951 16 153 1961 1 49
1932 0 13 1942 15 131 1952 7 103 1962 1 33
1933 4 29 1943 29 227 1953 10 106 1963 0 9
1934 12 40 1944 33 284 1954 18 139 1964 1 9
1935 3 13 1945 30 220 1955 7 93 1965 0 4
1936 5 12 1946 23 218 1956 9 72 1966 0 2
1937 3 11 1947 37 335 1957 3 41 1967 0 1
Fonte: Base de dados do Arquivo Miroel Silveira.
A base das peas originais e o suporte terico bibliogrfico foram complemen-
tados com a pesquisa emprica realizada a partir de entrevistas livres com personalida-
des-chave do perodo analisado:
1. Roger Avanzi Palhao Picolino II, do Circo Nerino, 84 anos.
7 Entrevista de Eulo de Almeida in COSTA, Cristina. Comunicao e censura O circo-teatro na produ-
o cultural paulista de 1930 a 1970, Terceira Margem, So Paulo, 2006, p. 165.
15
2. Franco Alves Monteiro Palhao Xuxu, do Circo Aloma e do Cirquinho
Bombril (TV Tupi, 1950), ltimo parceiro de Piolin, 69 anos.
3. Waldemar Seyssel Filho Filho de Arrelia, do Circo Irmos Seyssel e do
Cirquinho do Arrelia (TV Record, 1953), 73 anos.
4. Elclides Fortuna Pitangueira, ator e intrprete de msica caipira, irmo de
Jos Fortuna, compositor e autor de peas de circo-teatro, integrante do gru-
po circense Os Maracans, 80 anos.
5. Iara Fortuna Filha de Jos Fortuna, produtora musical, 51 anos.
Mistura de gneros
A listagem das peas de circo-teatro que constam do AMS revela a mistura de
gneros e o espao cultural democrtico que eram os palcos e os picadeiros. Por eles
transitavam os movimentos teatrais dos sculos XIX e XX, como a influncia portugue-
sa e a gerao do Teatro Trianon (1916-1921), alm de textos de autores brasileiros do
sculo XIX, especialmente Martins Pena e Arthur de Azevedo. O grande e prolongado
sucesso do Teatro de Revista, com suas ondulaes peridicas, tambm esteve presente
nos circos, a ponto de a sua interao gerar um subgnero, a revista circense. Por conta
da tradio teatral e revisteira com temtica regional-caipira, surge ainda um espetculo
circense feito a partir da adaptao de sagas hericas cantadas em modas-de-viola para
os palcos e os picadeiros.
Ttulos cinematogrficos de sucesso foram transladados para o circo usando
uma terminologia do meio circense , da mesma maneira que foi criada uma profuso
de pardias de pelculas.
As peas de circo-teatro, assim como as entradas dos palhaos, tambm se inspi-
raram no humor radiofnico, com a vantagem de agregarem a ele a expresso cnica,
fsica, dos atores. Diversos tipos humorsticos do rdio ganharam corpo e alma sob a
lona, num jogo de referncias em que o espectador, capaz de identific-los com facili-
dade, se entretinha sem que a fonte original do humor fosse comprometida. Alm disso,
passou a ser comum artistas do rdio se apresentarem no picadeiro, prtica que se tor-
nou mais corriqueira a partir da dcada de 1960, quando a televiso passou a exigir dos
msicos tticas mais diretas de divulgao, como a apresentao prxima do pblico.
Tambm popularizado pelo rdio, o futebol virou tema das peas de circo-teatro,
assim como o noticirio da guerra, que refletiu o avano das tcnicas jornalsticas im-
16
pressas e de rdio. Por fim, ttulos da literatura europia e nacional aparecem entre os
nomes das peas encenadas no circo.
Essa rpida deteco de influncias aponta para o fato de que o circo-teatro sur-
ge na cena paulista como uma grande e prolfica fonte de entretenimento popular que se
destaca por conseguir atrair e adaptar os temas, enredos, estruturas e semnticas de di-
versos meios e eventos. Para isso, usa de deliberada liberdade ao empregar elementos
culturais diversos para formalizar a sua prpria linguagem. Nesse processo, no encon-
tra pudores nem mesmo para canibalizar a prpria linguagem circense, apropriando-se
no s dos artistas que fazem a primeira parte, mas mesclando as suas habilidades s
dos personagens que representam na segunda parte.
Nesse sentido, o circo uma expresso que sintetiza, na circunferncia do pica-
deiro, uma cidade que se moderniza e surge aqui mais um paradoxo, pois a mesma
metrpole emergente empurra as lonas circenses para a periferia medida que se ex-
pande: nele se produzem discursos que preparam um novo tipo de espectador, atento s
misturas, homogeneizaes, trocas, tenses e hibridizaes, que reconhece os elemen-
tos dessa mixrdia e, ao mesmo tempo, ri dela. Ao mesmo tempo em que abrevia o pro-
cesso de tenso que permeia a troca simblica, o circo-teatro avana num processo
tambm paradoxal: ele faz do hibridismo a sua matria-prima, mas por meio dele que
ir ver diludo o seu prprio discurso cultural, at ser apropriado pela televiso. Uma
matriz cultural que, num dado momento, por suas caractersticas intrnsecas, d subs-
dios s apropriaes da cultura de massa, e esvazia-se enquanto expresso cnica.
, enfim, esse espao de negociao simblica e esse jogo de mediaes que o
circo-teatro torna efetivo no seu perodo ureo que esta pesquisa se prope a analisar:
entre paradoxos e tenses culturais, ela pretende mostrar que o circo-teatro sempre ca-
minhou, como um funmbulo, sobre o arame esticado entre os mastros da cultura popu-
lar e da cultura urbano-massiva.
17
Captulo 1
Os mastros: cultura popular e cultura de massa
Uma pesquisa que tem por objeto o circo-teatro atuando em meio a uma socie-
dade vida por mestiar culturas e linguagens exige, de incio, que se delineiem os dois
mastros que amparam a lona do hibridismo, a qual, por sua vez, abriga o picadeiro, que
encerra o campo de mediaes simblicas. Para isso, preciso partir simultaneamente
de trs pontos, assinalados por Ermnia Silva como os elementos caractersticos do cir-
co: o nomadismo, que faz o trnsito urbano-rural e popular-massivo, tornando-o um
meio de leitura e expresso das novidades para os diversos pblicos; a estrutura famili-
ar, que possibilita a transmisso oral dos saberes e prticas circenses, e que uma prti-
ca de mediao, que agrega e integra discursos diferentes e utiliza o fazer artesanal para
transmitir a leitura hbrida em sua essncia; e a habilidade para deglutir as demais ma-
nifestaes (folclricas, populares, eruditas e massivas). Esses trs fios, esticados entre
os dois mastros, o da cultura popular e o da cultura massiva, perfazem a trama da rede
urdida pelo circo-teatro, e que ir amparar o circo enquanto espetculo para os diversos
pblicos.
O fato que essa prtica de hibridismo, seja ela ocasionada por presso de uma
mestiagem cultural inata sociedade paulista, seja por um rito de sobrevivncia do
espetculo, que precisa de pblico na arquibancada, tambm ocorre por uma condio
histrico-social em cujo mbito o circo-teatro se desenvolve. Usando uma reflexo de
Renato Ortiz, Canclini assinala que (...) no Brasil no se produz uma distino clara,
como nas sociedades europias, entre a cultura artstica e o mercado massivo, nem suas
contradies adotam uma forma to antagnica.8 onde comear a ser cavado o bu-
raco em que sero encaixados os mastros a serem erguidos para o iamento da lona.
Os primeiros indcios culturais percebidos na anlise do circo-teatro como mani-
festao artstico-cultural na metrpole paulistana levam a deduzir que se trata de uma
expresso da cultura popular. Afinal, ele se refere a um teatro feito por artistas no-
profissionais e semiprofissionais sem ser amadores, pois encenam para obter ganhos
8 ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira. Brasiliense, So Paulo, 1988, pp. 23-28, in CANCLI-
NI, Nestor Garcia. Op. cit., p. 68.
18
, novatos e com uma formao orgnica, aprendida de maneira pragmtica no seio da
famlia circense. Outras caractersticas ligadas cultura popular nos levam concluso
de que o circo-teatro uma manifestao dessa matriz cultural: o exerccio constante da
improvisao nos espetculos, o uso de diferentes linguagens, o desempenho artstico
em multifunes o artista que o palhao na primeira parte vira o gal na segunda ,
e a encenao sem um preparo sistematizado, sem a tcnica das escolas teatrais.
Por outro lado, a encenao, por vezes, faz uso do palco italiano elemento ca-
racterstico de uma expresso teatral originada na cultura erudita europia e outras
vezes feita em pleno picadeiro, espao popular por excelncia, cuja estrutura incorpo-
ra elementos que vo desde as arenas gregas e romanas at a concepo do circo mam-
bembe, e, deste, ao circo moderno, criado em 1773 por Philip Astley. Essas duas matri-
zes europias palco e picadeiro chegam ao Pas um tanto dissociadas, mas aos pou-
cos se aproximam, num processo tangvel de hibridismo cultural, especialmente porque
ocorre numa circunstncia histrica em que um outro elemento se junta a esse fenme-
no: o advento da cultura de massa. Temos, assim, um espetculo mambembe de origem
popular e uma representao dramtica de origem erudita, os quais, associados, apre-
sentam um discurso simblico dirigido a um pblico urbano com referncias da cultura
massiva, composto por espectadores das classes mdias e populares.
Cultura popular
A discusso em torno de uma cultura popular remonta ao perodo pr-
romntico, como assinala Renato Ortiz, passando a ser estimulada pela cultura erudita a
partir da criao, em 1807, na Frana, da Academia cltica, que logo se transformaria
na Sociedade dos Antiqurios da Frana, seguindo o nome da pioneira Sociedade
dos Antiqurios, fundada na Inglaterra em 1718: A academia tinha como objetivo
principal o estudo da lngua e das antiguidades celtas, mas ela tambm ir se ocupar dos
costumes da vida popular, chegando inclusive a elaborar uma srie de questionrios que
envia aos diversos departamentos franceses.9 O reconhecimento, por parte dos intelec-
tuais europeus, de uma cultura praticada pelas classes populares desperta, a princpio,
uma certa prtica colecionista, o que, desde o princpio, expressa um sentido de segre-
gao.
9 ORTIZ, Renato. Romnticos e folcloristas, So Paulo, Olho Dgua, 1992, p. 12.
19
Em diversos pases da Europa, comea a surgir um novo tipo de intelectual, o
antiqurio, um colecionador e curioso incansvel, que no tem predileo alguma pelas
coisas do povo. Freqentemente ele justifica seu interesse colecionador pelo amor s
antiguidades, ou pelo gosto do bizarro.10 Ou seja, ele segue o esprito da poca. Mas
o advento do Romantismo mudaria profundamente essa postura. Para alguns intelectu-
ais, principalmente no final do sculo XVIII, o povo era interessante de uma certa for-
ma extica; no incio do sculo XIX, em contraposio, havia um culto ao povo, no
sentido de que os intelectuais se identificavam com ele e tentavam imit-lo.11
O Romantismo foi uma resposta que surgiu no mbito cultural das profundas
mudanas promovidas pelas revolues Francesa e Industrial na Europa do sculo XVI-
II. Martn-Barbero assinala que a descoberta do povo pelos romnticos ocorre por trs
vias: 1. Por uma exaltao revolucionria (a coletividade unida e o heri que se levanta
contra o mal); 2. Por um nacionalismo cuja matriz o povo; 3. Como forma de reao
Ilustrao. Com isso, o Romantismo constri um novo imaginrio no qual, pela pri-
meira vez, o que vem do povo adquire status de cultura12. Martn-Barbero considera
ainda que a idia de povo, para os romnticos, chega no por meio de um impulso in-
clusivo, mas por um mecanismo social que, quela altura, legitima a ascenso burguesa:
A invocao do povo legitima o poder da burguesia na medida exata
em que essa invocao articula sua excluso da cultura. E nesse mo-
vimento que se geram as categorias do culto e do popular. Isto , do popular com inculto, do popular designando, no momento de sua
constituio em conceito, um modo especfico de relao com a totali-
dade do social: a da negao, a de uma identidade reflexa, a daquele
que se constitui no pelo que , mas pelo que lhe falta.13
Por sua vez, Canclini percebe na idia de povo uma contradio congnita, que
ir perdurar em todas as abordagens construdas sobre a cultura popular:
O povo comea a existir como referente do debate moderno no fim do
sculo XVIII e incio do XIX, pela formao na Europa de Estados na-
cionais que trataram de abarcar todos os estratos da populao. Entre-
tanto, a ilustrao acredita que esse povo ao qual se deve recorrer para
legitimar um governo secular e democrtico tambm o portador da-
10
Idem, p. 14 e 15. 11
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna Europa, 1500-1800, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 37. 12
MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes Comunicao, cultura e hegemonia, Editora UFRJ, 2
a Edio, Rio de Janeiro, 2001, p. 39.
13 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit., p. 37.
20
quilo que a razo quer abolir: a superstio, a ignorncia e a turbuln-
cia. (...) O povo interessa como legitimador da hegemonia burguesa,
mas incomoda como lugar do inculto por tudo aquilo que lhe falta.14
O colecionismo acabara gerando um certo mtodo, especialmente a partir dos
romnticos alemes, o que, num breve futuro, levou alguns intelectuais a alimentarem a
ambio de elevar a prtica colecionista da cultura do povo (o folk) condio de rea
do conhecimento (folklore, termo ingls, ou volkskunde, em alemo). Foi na Alemanha
que os irmos Grimm, para reunir os contos populares publicados em duas coletneas
(em 1812 e 1814), tiveram o cuidado de recolher as histrias diretamente da boca do
povo, sem arranjo no texto final por parte dos autores, como at ento era comum se
fazer. Essa postura se diferenciava muito da dos antiqurios, pois atribua s fontes po-
pulares a fidedignidade dos contos coletados, e posteriormente publicados. Alm disso,
os Grimm tomaram o cuidado de anotar em cada conto os locais onde foram coletados.
Teorizando, Jakob Grimm, num ensaio sobre o ciclo do Anel dos Nibelungos, nota que
a autoria dos contos populares desconhecida e, portanto, coletiva, feita a partir de um
processo similar ao desenvolvimento de uma rvore que simplesmente cresce.15
Na
definio do prprio Grimm, a poesia do povo a poesia da natureza. Enfim, para
ele uma acepo romanticamente idealizada que, a princpio, altera a percepo do co-
lecionador, passando do gosto pelo bizarro do antiqurio para o romntico, que resgata
nostalgicamente os resqucios de um paraso perdido.
Toda essa leitura, entretanto, era feita pela cultura erudita, pelos intelectuais, e
no pelo povo, que, quando muito, como assinala Peter Burke, somente se surpreendia
ao ver pessoas curiosas invadindo suas casas procura dos cacos de um tempo esqueci-
do.
O ideal romntico permitiu, assim, que, na segunda metade do sculo XIX, os
estudiosos da cultura popular passassem a se denominar folcloristas, usando a termino-
logia criada em 1838 por William John Thoms (da Sociedade dos Antiqurios, da In-
glaterra). Era mais um passo na direo do propsito anunciado de tornar o folclore
uma cincia, esforo que encontraria, somente quarenta anos depois, a sua principal
sede intelectual, a Folklore Society, fundada na Inglaterra em 1878. O folclore, como
forma de conhecimento cientfico, uma das mais audaciosas aventuras do sculo
XIX. (...) Pois ele se prope um problema essencialmente prtico: determinar o conhe-
14
Idem, p. 208. 15
BURKE, Peter. Op. cit., p. 32.
21
cimento peculiar ao povo, obtido por meio dos elementos materiais e no materiais que
constituam a sua cultura. Ou seja, o folclore se propunha a estudar os modos de ser, de
pensar e de agir peculiares ao povo (...).16 Florestan Fernandes aponta, no entanto,
para o fato de que o progresso foi o primeiro entrave a essa ambio intelectual, pois
ele no se processa uniformemente na sociedade. Com isso, o folclore se transforma
em matria que trata do apego ao passado, ou seja, o estudo dos elementos culturais
praticamente ultrapassados: as sobrevivncias.17 A definio, no entanto, nada mais
que um juzo de valor, pois, examinado pelos olhos da cultura erudita, o objeto do fol-
clore era uma cultura superada, passada, suplantada por outra, civilizada e burguesa.
Obviamente, isso acirrou ainda mais a dicotomia entre o saber do povo e o de uma elite
aculturada, sem vis de intercmbio entre uma e outra. Alis, a possibilidade de inter-
cmbio entre ambas no chegou sequer a ser levada em considerao pelos intelectuais
romnticos ou folcloristas. Afinal, a intelectualidade via somente a justaposio entre o
passado e o futuro, o primitivo e o civilizado, o pitoresco e o elaborado. Alm disso, a
idia da ocorrncia de hibridismos surgida bem depois e somente compreendida a
partir dessa diviso entre o popular e o erudito , se fosse aventada naquele perodo
inicial, acabaria inviabilizando de vez a tentativa de tornar o folclore uma rea do co-
nhecimento cientfico.
Portanto, os desafios epistemolgicos j eram bastante grandes. A tarefa envol-
via o intrincado desafio de coadunar duas vertentes a priori inconciliveis: o ideal ro-
mntico, que gerou o estudo da cultura popular; e o esprito cientfico iluminista. O
embate se alastrou pelo sculo seguinte a ponto de o seu campo de trabalho ser invadi-
do pelas cincias sociais, e ser encarado como mtodo de pesquisa utilizado por histori-
adores, psicanalistas, socilogos e antroplogos.
Gramsci tenta resgatar a inteireza da cultura popular, atribuindo-lhe valor, mas
propondo uma anlise a partir da sua contraposio cultura erudita, sem considerar a
possibilidade de hibridismo entre ambas:
Pode-se dizer que, at hoje, o folclore foi preponderantemente estudado
como elemento pitoresco (na realidade, at hoje foi apenas coletado material para erudio, e a cincia do folclore consistiu preponderan-
temente nos estudos a respeito do mtodo de coleta, seleo e classifi-
cao desse material, isto , no estudo das cautelas prticas e dos prin-
cpios empricos necessrios para se desenvolver proficuamente um as-
16
FERNANDES, Florestan. O folclore em questo. Hucitec, So Paulo, 1989, p. 38. 17
Idem, p. 40.
22
pecto particular da erudio; com isso, decerto, no se desconhece a
importncia e a significao histrica de alguns estudiosos de folclore).
Dever-se-ia estud-lo, pelo contrrio, como concepo do mundo e de vida, em grande medida implcita, de determinados estratos (determi-nados no tempo e no espao) da sociedade, em contraposio (tambm
no mais das vezes implcita, mecnica, objetiva) com as concepes do
mundo oficiais (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das so-ciedades historicamente determinadas), que se sucederam no desenvol-
vimento histrico.18
Desde que os intelectuais pr-romnticos comearam a palmilhar a cultura po-
pular, j no havia como construir teoricamente a idia de povo. A dificuldade em se
definir o povo sugere que a cultura popular no era monoltica nem homognea. De
fato, era extremamente variada.19 Em sua extensa e profunda pesquisa sobre a cultura
popular na Idade Moderna, Peter Burke assume a tarefa de delinear historicamente a
cultura popular, mas descobre camadas distintas dessa cultura no campo, nas cidades,
nos andarilhos, com variaes religiosas e regionais , o que torna a idia de povo bas-
tante difusa. Ou seja, dentro de seu prprio campo, a cultura popular no encontrava
uma estrutura matricial.
Os trs pontos essenciais apontados pelos romnticos (Herder e os irmos
Grimm) para definir a cultura popular so altamente questionveis. Seguidos pela con-
testao de Burke, so eles: 1. Essa cultura tem origem num perodo primitivo, e a-
travessa inclume os sculos, sem transformaes notveis (sabe-se hoje que entre
1500 e 1800 as tradies estiveram muito expostas a transformaes, inclusive com a
participao direta das elites culturais); 2. A cultura popular uma criao coletiva, a
tradio se sobrepe ao indivduo (mais uma vez, constata-se atualmente que a tradio
no inibe o desenvolvimento de um estilo individual); 3. O povo formado por pessoas
incultas, que vivem perto da natureza e, por isso, desenvolvem uma cultura particular,
prpria. Nesse ltimo ponto, surge a questo que mais diretamente estrangula a idia de
uma cultura popular: Teria realmente existido em algum momento histrico um pu-
rismo cultural? Em outras palavras, ser que em algum perodo houve uma cultura que
se manifestou sem interferncia da cultura erudita?
Ao iniciar seu estudo sobre a cultura popular na Idade Moderna, Burke aponta
para o fato de que a questo do popular reconhecidamente problemtica, dissipando
qualquer necessidade de contraposio entre ela e a cultura erudita. A fronteira entre as
18
GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978, p. 184. 19
BURKE, Peter. Op. cit., p. 49.
23
vrias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram to variadas quanto aque-
las) vaga e por isso a ateno dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na inte-
rao e no na diviso entre elas.20 Como exemplo, cita Mikhail Bakhtin: Sua defini-
o de Carnaval e carnavalesco pela oposio no s elites, mas cultura oficial, assina-
la uma mudana de nfase que chega quase a redefinir o popular como o rebelde que
existe em todos ns, e no a propriedade de algum grupo social.21
Thompson, por sua vez, acredita que, na falta de generalizaes para a cultura
popular, preciso pens-la a partir de contextos histricos, pois a cultura popular da
Europa de 1500, poca em que as elites participavam da cultura do povo, diferente da
praticada no sculo XVIII, quando a elite no mais dela participava. Com essa leitura,
Thompson se aproxima de Gramsci, do qual empresta a idia de hegemonia cultural,
questionada por Burke, que no cr que um conceito usado para analisar problemas par-
ticulares italianos, como a influncia da Igreja na Itlia meridional, possa tambm ser
usado como gabarito por socilogos e historiadores sociais, embutindo-se nele a prtica
da negociao.
A proposta da presente pesquisa compreender a cultura popular a partir do re-
corte das Cincias da Comunicao. Por isso, em Jess Martn-Barbero que desponta a
sntese do que os tericos e historiadores europeus j haviam descoberto: havia, de fato,
uma interao entre as tradies eruditas e populares, sem que fosse possvel precisar se
se tratava de um rebaixamento da cultura erudita, da criatividade das classes cultas, ou,
como defendiam os irmos Grimm, que o povo detinha a receita do fermento criativo,
apropriado pela erudio. Burke conclui que havia sim um trfego de mo dupla entre
elas 22. Corrobora Ginzburg:
s classes subalternas das sociedades pr-industriais atribuda ora
uma passiva adequao aos subprodutos culturais distribudos com ge-
nerosidade pelas classes dominantes (Mandrou), ora uma tcita propos-
ta de valores, ao menos em parte autnomos em relao cultura des-
sas classes (Bollme), ora um estranhamento absoluto que se coloca at
mesmo para alm, ou melhor, para aqum da cultura (Foucault). bem
mais frutfera a hiptese formulada por Bakhtin de uma influncia rec-
proca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante.23
20
Idem, p. 17. 21
Ibidem. 22
Ibidem, p. 85. 23
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio. Companhia das Letras, So Paulo, 1987, p. 24.
24
Essa via de mo dupla, no entanto, no tem um traado retilneo, mas tortuoso,
em que as mediaes entre uma cultura e outra se do a partir de trocas e negociaes,
operao que no prescinde do conflito. Enfim, como aponta Canclini:
O culto e o popular, o nacional e o estrangeiro apresentam-se ao final
desse percurso como construes culturais. No tm nenhuma consis-
tncia como estruturas naturais, inerentes vida coletiva. Sua veros-similhana foi alcanada historicamente mediante operaes de rituali-
zao de patrimnios essencializados. A dificuldade de definir o que
o culto e o que o popular deriva da contradio de que ambas as mo-
dalidades so organizaes do simblico geradas pela modernidade,
mas ao mesmo tempo a modernidade por seu relativismo e anti-substancialismo as desgasta o tempo todo.24
Cultura de massa
O advento da cultura de massa colocou mais uma vez em cheque os conceitos
de cultura erudita e cultura popular. Especialmente porque se tratava da produo cultu-
ral em escala industrial para um pblico massivo e sem face que requeria um universo
simblico de fcil identificao, inclusive com o contexto do nacional. Ao analisar o
surgimento da indstria cultural, Cristina Costa aponta:
A rigor, a indstria cultural tem incio com a inveno da prensa de Gu-
tenberg, que permitiu a reproduo tcnica dos textos literrios. Mas foi
apenas com a formao, nas cidades, desse pblico heterogneo e pro-
letrio identificado depois como massa que as bases de uma inds-tria cultural como a que se conhece hoje se desenvolveram. Portanto,
quando falo em indstria cultural, estou me referindo no apenas pro-
duo mecnica e ampliada de produtos culturais, mas a uma nova pro-
duo destinada a um amplo contingente de pessoas reunidas nos cen-
tros urbanos pela revoluo industrial. Esse processo tem caractersti-
cas prprias que o distinguem da produo cultural na qual se inserem
os contos de As mil e uma noites e outras manifestaes de cultura po-
pular e artesanal existentes at ento. Distingue-se tambm da cultura
erudita europia, embora essa tambm j estivesse submetida ao pro-
cesso capitalista de mercantilizao e reproduo mecnica.25
Muitos autores, em especial os da escola crtica de Frankfurt, incluindo Adorno
e Horkheimer, que cunharam a expresso indstria cultural, apontaram esse processo
como anteparo inibidor do desenvolvimento da conscincia das massas. Ou seja, a in-
dstria cultural impediria a formao de indivduos autnomos, independentes, capa-
24
CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., p. 362. 25
COSTA, Cristina. A milsima segunda noite Da narrativa mtica telenovela anlise esttica e sociolgica. AnnaBlume/Fapesp, So Paulo, 2000, pp. 107 e 108.
25
zes de julgar e de decidir conscientemente.26 Portanto, trata-se de uma cultura produ-
zida em escala unicamente para o consumo, carregada da ideologia dominante. Por isso,
usurpa a aura da obra de arte27, dessublimando-a, despojando-a para consumo rpido,
e ao mesmo tempo tambm se transforma em cultura nacional, roubando o papel antes
atribudo cultura popular. Como veremos, a cultura de massa uma cultura: ela
constitui um corpo de smbolos, mitos e imagens concernentes vida prtica e vida
imaginria, um sistema de projees e de identificaes especficas. Ela se acrescenta
cultura nacional, cultura humanista, cultura religiosa, e entra em concorrncia com
essas culturas.28 Edgar Morin contesta a perspectiva frankfurtiana ao questionar que
tudo parece opor a cultura dos cultos cultura de massa. Mas antes de perguntarmos
se a cultura de massa na realidade como a v o culto, preciso nos perguntarmos se
os valores da alta cultura no so dogmticos, formais, mitificados, se o culto da arte
no esconde muitas vezes um comrcio superficial com as obras.29 No entanto, a esco-
la frankfurtiana e mesmo a francesa, de Morin, no haviam refletido sobre as condies
em que a indstria cultural lidava com a cultura popular. Esse lapso, hoje gritante, pois
da cultura popular que a cultura de massa vai se apropriar de elementos que constitui-
ro seus discursos, foi percebido somente a partir de autores que se propuseram a olhar
no para o centro, mas para as periferias, onde a mistura ocorria em escala de evidncia
maior e com uma voracidade em que os limites entre ambas as culturas nem sempre
eram visveis. Jess Martn-Barbero um desses autores, que desvelam as pegadas de
um longo percurso, como adverte na introduo do seminal Dos meios s mediaes
comunicao, cultura e hegemonia, apontando como as culturas permearam a formao
do discurso massivo.
No podemos ento pensar hoje o popular atuante margem do proces-
so histrico de constituio do massivo: o acesso das massas sua visi-
bilidade e presena social, e da massificao em que historicamente es-
se processo se materializa. No podemos continuar construindo uma
crtica que separa a massificao da cultura do fato poltico que gera a
emergncia histrica das massas e do contraditrio movimento que ali
produz a no-exterioridade do massivo ao popular, seu constituir-se em
um de seus modos de existncia.30
26
ADORNO, Theodor W. Dialtica do Iluminismo. Coleo Os Pensadores, Nova Cultural, So Paulo,
1999, p. 8. 27
No sentido dado por Walter Benjamin. 28
MORIN, Edgar. Cultura de massas no sculo XX O esprito do tempo (Neurose). Forense Universit-ria. Rio de Janeiro, 1984, pp. 15 e 16. 29
Idem, p. 18. 30
MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit., p. 29.
26
Martn-Barbero faz uma busca terica pela histria da cultura para encontrar as
intersees entre o popular e o massivo desde a Ilustrao. Assinala que h um momen-
to na chamada cultura popular em que ocorre uma importante passagem, quando os
contos orais das populaes sofrem um trnsito para a linguagem escrita, o que, para
ele, a transformao do folclrico no popular. o advento da literatura de cordel na
Espanha de Lope de Vega (1562-1635). Para evidenciar a importncia desse momento,
Martn-Barbero recolhe um memorial escrito por Vega e endereado ao Rei de Espanha
em que ataca os apregoadores que recitam suas histrias pelas ruas de Madri e, assim,
ferem o seu direito de autor. No memorial, ele enumera os efeitos nocivos dessa prti-
ca: ...inquieta o vulgo, enfastia a nobreza, deslustra a polcia (que nesse tempo signifi-
cava a poltica e a ordem social).31 Nota-se, assim, que a percepo dessa nascente
literatura popular se aproxima de um mercado simblico do qual Vega participa e do
qual se v ameaado em seu monoplio artstico. Por isso, requer a ajuda do rei para
que se restabelea a ordem.
Mas no s meio: a literatura de cordel mediao. Por sua lingua-
gem, que no alta nem baixa, mas a mistura das duas. Mistura de lin-
guagens e religiosidades. (...) Estamos diante de outra literatura que se
move entre a vulgarizao do que vem de cima e sua funo de vlvula
de escape de uma represso que explode em sensacionalismo e escr-
nio. Que em lugar de inovar, estereotipa, mas na qual essa mesma este-
reotipia da linguagem ou dos argumentos no vem s das imposies
carreadas pela comercializao do dispositivo da repetio e dos modos
do narrar popular.32
Martn-Barbero afirma ainda que o outro lado da indstria de narrativas o que
nos d acesso ao processo de circulao cultural materializado na literatura que estamos
estudando: um novo modo de existncia cultural do popular.33
O melodrama francs, concebido e executado em sua plenitude no Boulevard du
Temple, na Paris do sculo XIX, estilizado em 1800 por Gilbert de Pixercourt com a
pea Celina ou a Filha do Mistrio, um outro marco de transio do folclrico para o
popular, embora num nvel simblico mais complexo do que havia ocorrido com a lite-
ratura de cordel.
31
Idem, p. 157. 32
Ibidem, p. 158. 33
Ibidem, p. 160.
27
Fora dos grandes teatros da Comdie Franaise, o povo parisiense tinha ao seu
alcance, num primeiro momento, somente as representaes de rua, sem dilogos, e, em
seguida, os melodramas encenados nos teatros do Boulevard, regio parisiense de tradi-
cional concentrao de artistas populares e circenses, e desde o tempo em que a muralha
da cidadela ainda estava de p. Com isso, o povo subiu ao palco. Pixercourt afirmava
que o melodrama era um espetculo dirigido queles que no sabiam ler. Talvez porque,
ao contrrio do teatro culto, repleto de sentimentos contidos, nesses espetculos popula-
res era justamente o sentimento que dava o tom. Com isso, j se encaminha um novo
marco de transio, a busca por uma linguagem massiva. Ou seja, o popular passa a
adquirir um contexto simblico que avana transpondo as fronteiras sociais. (...) lugar
de chegada de uma memria narrativa e gestual e lugar de emergncia de uma cena de
massa, isto , onde o popular comea a ser objeto de uma operao, de um apagamento
das fronteiras deslanchado com a constituio de um discurso homogneo e uma ima-
gem unificada do popular, primeira figura de massa.34
Essa nova ruptura, que envolve expanso discursiva, ainda, segundo Martn-
Barbero, um outro modo de existncia do popular. Ou seja, a cultura de massa que, em
vez de ser o lugar onde as diferenas sociais so definidas, passa a ser o lugar onde tais
diferenas so encobertas e negadas. E isso no ocorre por um estratagema dos domina-
dores, e sim como elemento constitutivo do novo modo de funcionamento da hegemo-
nia burguesa, como parte integrante da ideologia dominante e da conscincia popu-
lar.35
Conceito central em Martn-Barbero, que vai busc-lo em Gramsci, a hegemonia
consegue alinhar no s o aspecto de transformao social em que a idia de imposi-
o exterior abandonada pela de adeso a partir de interesses internos mas tambm o
de que a cultura um campo estratgico de articulao dos conflitos, onde ocorrem as
negociaes por meio de apropriaes, seduo e cumplicidade. ...ao se transformarem
as massas em classe, a cultura mudou de profisso e se converteu em espao estratgico
de hegemonia, passando a mediar, isto , encobrir as diferenas e reconciliar os gos-
tos.36
Processo semelhante aconteceu no sculo XIX, na mesma Frana, quando o me-
lodrama transferiu-se para as pginas dos jornais na forma do folhetim.
34
Ibidem, p. 171. 35
Ibidem, p. 180. 36
Ibidem, p. 181.
28
Sua forma, essencialmente ficcional e seriada, dedica-se principalmente
a histrias de grande ao ou melodramticas, capazes de atrair e pren-
der a ateno de inmeros leitores. Dirigido a um pblico amplo e indi-
ferenciado, composto de pessoas heterogneas quanto ao sexo, idade,
classe social ou poder aquisitivo, o folhetim encontrou nas formas de
narrativas populares, coletivas e de fcil assimilao o modelo ideal.37
Assim, o folhetim, uma manifestao literria originada no alvorecer da inds-
tria cultural, manteve em seu discurso simblico caractersticas da oralidade das narrati-
vas populares, usando-as para cumprir o seu objetivo de atrair o pblico e criar o hbi-
to da leitura e, conseqentemente, o consumo dirio de jornal38.
Ou seja, o massivo foi sendo gerado na medida em que se apropriava da cultura
popular, a deformava e a tornava mais homognea, at mold-la de modo a integr-la
numa nova ordem cultural, da qual tambm participa a alta cultura. essa, enfim, a di-
nmica do processo cultural dentro da sociedade de massa, e que vai se intensificar e se
tornar mais complexa a partir do advento da televiso.
O contexto da Amrica Latina
Se no possvel analisar a cultura de massa dissociada da cultura popular em
campos em que ambas se apresentam em pleno confronto, esse processo se mostra ain-
da mais intrincado na realidade da Amrica Latina, na qual os conceitos de erudito e
popular j emergem embebidos de mestiagem. Alis, segundo Canclini, a cultura po-
pular aparece em trs momentos distintos, mas sempre construdos politicamente: o
folclore, as indstrias culturais e o populismo poltico39
.
A rigor, o processo de homogeneizao das culturas autctones da A-
mrica comeou muito antes do rdio e da televiso: nas operaes et-
nocidas da conquista e da colonizao, na cristianizao violenta de
grupos com religies diversas durante a formao dos Estados nacio-nais , na escolarizao monolnge e na organizao colonial ou mo-derna do espao urbano.
40
Nesse panorama, o circo-teatro, diante do vis das matrizes histricas (folclri-
co/popular/massivo), revela-se fruto de um complexo processo de hibridizao. Ele no
37
COSTA, Cristina. Op. cit. p. 89. 38
Idem. 39
CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., pp. 206-207. 40
Idem, p. 255.
29
tem a referncia rural, nem transfere ao urbano qualquer outra referncia. Em sua gne-
se, como se ver adiante, o circo-teatro de fruto da negociao simblica entre a cul-
tura popular e a cultura de massa. E mais, por estar no campo das referncias populares,
premido pela ascenso dos meios de comunicao de massa, acaba se tornando espao
de mediao, num acelerado processo de negociao, tenso e assimilao.
A averiguao desse fenmeno envolve a pesquisa terica da origem do circo-
teatro. Vrios estudiosos indicam que ele o gnero originrio de uma experincia ex-
clusivamente brasileira. No entanto, a idia de agregar dramatizaes ao espetculo
tradicional circense no uma combinao to original a ponto de ser percebida apenas
pelos circenses brasileiros. Mesmo a concepo do circo moderno, atribuda ao oficial
de cavalaria Philip Astley e seu Astleys Amphitheatre, inaugurado em 1773 em Lon-
dres, trazia entre os nmeros de acrobacia eqestre algumas encenaes de pantomi-
mas. Astley chegou a se apresentar em Paris, onde conheceu o empresrio Antonio
Franconi, que passou a dirigir o Anfiteatro quando o militar teve de retornar a Londres
em 1793, durante o conflito entre a Frana e a Inglaterra.
Astley retornou em 1802, aps a assinatura do tratado de paz entre os
dois pases, e retomou sua casa de espetculos. Franconi, ento, ainda
em Paris, instalou-se em um terreno dos Capuchinos, local em que se
praticava uma gama extensa de formas de espetculos populares. Ali,
na Casa dos Capuchinos, alm do picadeiro, Franconi acrescentou um
palco para a representao de pantomimas.41
A introduo do circo-teatro no Brasil atribuda ao Circo Spinelli42
, especial-
mente ao inventivo palhao Benjamim de Oliveira que, com o apoio do dono do circo,
Alfonso Spinelli, foi o principal agente, durante a virada do sculo XX e sua primeira
dcada, de uma transformao do espetculo circense, que passou a incorporar a drama-
tizao em nada menos que metade do tempo das atraes oferecidas ao pblico. As-
sim, num processo que inclui a mistura de pantomimas e msica popular similar ao
que ocorreu na Frana do sculo XVIII, na elaborao do melodrama , e a incorpora-
o paulatina de elementos do teatro musicado, em especial da opereta, at a aquisio
do dilogo, a famosa segunda parte do espetculo se torna um vetor de peas que antes
s eram encenadas para a elite endinheirada em teatros luxuosos, passando a ser ofere-
41
BOLOGNESI, Mrio Fernando. Palhaos. Editora Unesp, So Paulo, 2003, p. 32. 42
O principal autor a defender essa tese Roberto Ruiz. Mas quem mais a corrobora o prprio Benja-
mim de Oliveira, em seu depoimento a Brcio de Abreu, citado por Ruiz.
30
cidas s massas urbanas. Ou seja, o circo-teatro surgiu no Brasil como uma maneira de
oferecer s classes populares um repertrio elaborado, e no folclrico no sentido de-
senvolvido por Rossini Tavares de Lima43
(que incluiria manifestaes como o teatro
de bonecos, os dramas da Paixo de Cristo, os dramas e as comdias domsticas, os
artistas ambulantes e os folguedos populares).
Ele nasce, enfim, da busca por um espetculo do agrado popular num ambiente
urbano. No perodo em que concebido pelo Circo Spinelli, sua referncia o teatro
musicado europeu, que, naquela altura, estava sendo elaborado a partir de uma srie de
modernizaes promovidas pelo teatro romntico. Este, por sua vez, prope inovaes
a partir de temas e elementos cnicos originrios do melodrama popular. Enfim, esse
continuum de influncias mediadas evoca um processo de circularidade cultural, em
que os discursos populares servem alta cultura e, na seqncia, referenciam novamen-
te o espetculo popular.44
Enfim, esse hibridismo se torna a base morfognica da cultura latino-americana.
Ao ser apropriado pela indstria cultural, acaba se desdobrando em efeitos similares de
circularidade cultural, referenciando e sendo referenciado. Um processo semelhante a
um fractal em que, na complexidade dos seus desdobramentos formais, padres podem
ser identificados. No caso do circo-teatro, esses padres so os conceitos difusos de
cultura popular e de cultura de massa, os dois mastros em que se apia a lona hbrida da
presente pesquisa.
A Belle poque e o Circo Spinelli
A partir das apresentaes de pantomimas no espao do picadeiro do Circo Spi-
nelli, na ltima dcada do sculo XIX e na primeira do sculo XX, tem incio uma lenta
migrao cnica, da mmica para o teatro em si, cujo parmetro hegemnico na poca,
na capital federal, o Rio de Janeiro, o espetculo do teatro musicado. No entanto, a
referncia se d num momento em que a intelectualidade carioca reage contra o teatro
musicado, representado pelos gneros opereta, revista e mgica, e levanta a bandeira da
necessidade de se criar um teatro genuinamente nacional. Com isso, o repertrio adota-
43
LIMA, Rossini Tavares de, Folguedos populares do Brasil, So Paulo, Ricordi, 1962. 44
Especialmente o conceito compreendido a partir de M. Bakhtin ao analisar as relaes entre a cultura
popular na Idade Mdia francesa e a literatura de Rabelais, especialmente os livros Gargntua e Panta-
gruel. Essa relao de circularidade ser tambm vasculhada por Carlo Ginzburg ao analisar o processo
de Inquisio a que foi submetido um moleiro friulano, Menocchio, condenado por seus discursos que
misturam elementos cotidianos da vida popular ao radicalismo religioso. Ver GINZBURG, Carlo. Op.
cit..
31
do pelo circo tenta reproduzir aquele apresentado pelas companhias europias de teatro,
adaptando-o ao palco e orquestra circenses. De maneira inesperada, agrega duas irre-
conciliveis vertentes, o repertrio erudito e o teatro musicado.
Esse ajuste ocorre num cenrio urbano em que o pblico composto pela massa
de trabalhadores de uma cidade que vive a efervescncia cultural e econmica da Belle
poque, o esprito do arrivismo desencadeado pelo Encilhamento, e sob um surto de
febre do ideal republicano que tinha por objetivo transferir para os trpicos o estilo de
vida europeu, em particular o francs.
A reforma da capital federal promovida pelo prefeito Pereira Passos, em 1903,
ficou logo conhecida como bota-abaixo! por promover a derrubada em escala dos
pardieiros, cortios e sobrados do centro da cidade, num processo que transformou esse
ncleo urbano numa representao da Paris do Baro Haussmann45
. No mesmo ano,
outro fato deixou a populao carioca ainda mais aturdida: a vacinao contra a febre
amarela, ordenada pelo presidente Rodrigues Alves e comandada pelo ento desconhe-
cido mdico Oswaldo Cruz, que fizera carreira como sanitarista no Instituto Pasteur, em
Paris. Em 1904, a vacinao da populao da capital republicana se tornou obrigatria
por lei federal, o que acabou gerando um levante popular em resposta medida.
Enfim, em 1906, Oswaldo Cruz triunfa e cumpre a promessa de erradicar os ma-
les tropicais, ao passo que uma nova cidade emerge dos escombros da antiga. A Aveni-
da Central, com seus quase dois quilmetros de extenso, com paisagismo moda dos
bulevares franceses, fez o que a Corte no havia conseguido: trouxe um pedao da Eu-
ropa para os trpicos. Lojas de produtos importados foram instaladas na avenida, assim
como as sedes de grandes empresas. Por l passavam algumas poucas mquinas infer-
nais de quatro rodas: os automveis, luxo de poucos, conduzidos por seus chauffeurs.
Nicolau Sevcenko v nessa nova cidade a representao de uma capital do arrivismo:
Assistia-se transformao do espao pblico, do modo de vida e da
mentalidade carioca, segundo padres totalmente originais; e no havia
quem pudesse se opor a ela. Quatro princpios fundamentais regeram o
transcurso dessa metamorfose (...): a condenao dos hbitos e costu-
mes ligados pela memria sociedade tradicional; a negao de todo e
qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem
civilizada da sociedade dominante; uma poltica rigorosa de expulso
dos grupos populares da rea central da cidade, que ser praticamente
isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cos-
45
A reforma da cidade promovida por Haussmann a partir de 1851, sob Napoleo III, se tornou referncia
de plano urbanstico e arquitetnico para os principais centros urbanos da poca.
32
mopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisi-
ense.46
esse o elemento externo que interfere na concepo de um espetculo dramti-
co capaz de agradar ao pblico popular, que empurrado para as periferias nesse pro-
cesso de afrancesamento da urbe, mas que tem os trilhos das ferrovias como seu ponto
de conexo com o novo centro elitista: o Circo Spinelli esteve montado no boulevard de
So Cristvo nos anos de ascenso dos seus espetculos dramticos e, na dcada se-
guinte, ergueu-se ao lado da estao da Central do Brasil. Ao mesmo tempo, trata-se de
um pblico assediado pelo arrivismo, pelos modos smart, do dndi que atravessa a A-
venida Central vestindo os cortes parisienses, e que quer se integrar a esse modo de vida
que vai se tornando hegemnico. Por isso, ele busca um espetculo mais integrado, ou
seja, que represente o universo cultural do novo limiar social.
FOTO 1 Foto lembrana de Benjamim de Oliveira,
ator e palhao do Circo Spinelli (1909), reproduzido do
livro de Ermnia Silva Circo-teatro: Benjamim de
Oliveira e a teatralidade circense no Brasil.
46
SEVCENKO, Nicolau. A literatura como misso Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. Companhia das Letras, 2
a Edio, So Paulo, 2003, p. 42.
33
Benjamim de Oliveira e Afonso Spinelli haviam se conhecido entre 1895 e
1896, e passaram anos construindo a fama do Circo Spinelli. Palhao desde 1889,
quando, atuando como ginasta no circo de Albano Pereira, foi convocado para substitu-
ir Freitinhas (Antonio de Freitas), Benjamim passou quase dois anos sendo vaiado at
ser reconhecido por sua graa. Quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1892, no circo do
lendrio Comendador Caamba, ao se apresentar em Cascadura, recebeu uma gorda
gorjeta de um misterioso admirador: o Marechal Floriano Peixoto. Por conta desse epi-
sdio, Benjamim visitou o ento presidente da Repblica a mando do Comendador e
conseguiu transferir o circo para a Praa da Repblica, onde cumpriu uma longa tempo-
rada de sucesso.
De volta a So Paulo, Benjamim conheceu Alfonso Spinelli no Circo Franois,
que tambm atuava como palhao e que havia fugido da famlia quando criana num
circo que passara pela sua cidade em Minas Gerais. Quis a sorte que Spinelli reencon-
trasse a famlia em So Paulo, e a descobrisse abastada. Nela buscou financiamento
para montar seu prprio circo, que teria Benjamim como principal atrao47
.
Na virada do sculo XX, os palhaos eram as principais atraes dos circos,
sempre se apresentando com o violo, no centro do picadeiro, cantando modinhas e
contando piadas. O tipo do palhao-cantor sempre esteve presente, especialmente nas
feiras populares, mas era tido como menor, at que o palhao Polydoro (Jos Manoel
Ferreira da Silva) o tornou o paradigma do clown brasileiro em 1873, no Circo Elias de
Castro. Os circos de grande porte eram em sua imensa maioria estrangeiros e tinham
como modelo de palhao os artistas ingleses, considerados mestres da mmica e das
acrobacias com cavalos. Polydoro era parlapato; chegou com seu violo, suas cano-
netas de duplo sentido, seus requebros e seu tanguinhos e foi adorado pelas platias
mais exigentes.48
Os palhaos-cantores foram os principais divulgadores das msicas e enredos
musicais apresentados pelas revistas cariocas, de modo a populariz-los no s nos es-
petculos urbanos, mas tambm naqueles apresentados em povoados mais distantes da
capital. Na mesma poca, somente dois outros divulgadores rivalizavam com os palha-
os nessa tarefa: os vendedores de folhetos com letras de modinhas e de lundus49
; e a
indstria fonogrfica, que, a partir de 1902, trocou os cilindros de cera pelos discos.
47
CASTRO, Alice Viveiros de. Op. cit., pp.170-176. Benjamim tambm contou sua histria a ABREU,
Brcio de, Esses populares to desconhecidos. Editora Raposo Carneiro, Rio de Janeiro, 1963. 48
Idem, p. 166. 49
TINHORO, Jos Ramos. Os sons que vm da rua. Editora 34, 2a Edio, So Paulo, 2005.
34
Tinhoro lembra que os primeiros cantores gravados em disco foram os tambm palha-
os Eduardo das Neves (1871-1919), o famoso Dudu das Neves, e Mrio Pinheiro
(1880?-1923), alm de um certo Campos, que, no selo do disco, trazia sob o seu nome:
antigo palhao de circo. Baiano (Manoel Pedro dos Santos), que deu voz s primeiras
73 gravaes da Casa Edison, de Fred Figner, em 1902, tambm havia cantado como
palhao no Spinelli, ao lado de Benjamim de Oliveira.
A popularidade desses palhaos-cantores era tamanha que os circos promoviam
acirrados embates no picadeiro, com os artistas sendo defendidos por seus partidos,
semelhana do que ocorria nos recitais do teatro lrico, ou seja, faces que defendiam
determinados cantores de predileo em detrimento dos rivais50
. A nascente indstria
musical, da qual faziam parte todos esses atores palhaos, vendedores de folhetos,
disco, Teatro de Revista atuava de forma a integr-los na divulgao de canonetas,
modinhas e lundus para um vido e emergente pblico consumidor.
Tambm era comum o fato de os palhaos-cantores se apresentarem nas casas
noturnas cariocas, em especial nas da rede comandada por Paschoal Segreto: A maio-
ria dos cafs-concerto e music halls, no Rio de Janeiro, tinha como proposta de trabalho
oferecer um conjunto variado de espetculos, que misturavam representaes teatrais,
cenas cmicas, apresentaes musicais nacionais, muitos artistas estrangeiros execu-
tando acrobacias, ginsticas e clowns excntricos.51
Desse modo, eles se incluam num ainda incipiente, mas j eficiente sistema de
divulgao musical, especialmente por suas habilidades com o instrumento o violo
, que j fazia parte do espetculo dramtico nos anos finais do sculo XIX. As panto-
mimas, que chegaram ao Pas junto com o espetculo circense, comearam a passar,
com a proximidade dos meios mais elaborados de encenao do teatro musicado, por
uma transformao ainda lenta, mas que levaria criao efetiva do circo-teatro dentro
do mesmo Circo Spinelli.
O teatro musicado nos palcos/picadeiros, nos seus mais variados gne-
ros, que j compunha parte das representaes circenses atravs das
pantomimas e cenas cmicas, com aquele dilogo, passou por diferen-
tes fases da produo das suas montagens; mas isso no implicou ex-
cluso ou diminuio do conjunto de pantomimas e composies musi-
cais anteriormente encenadas. Apesar de aquela parte do espetculo a-
50
Para os partidos de cantores lricos ver GIRON, Lus Antonio. Minoridade crtica A pera e o teatro nos folhetins da Corte (1826-1861). Ediouro/Edusp, So Paulo, 2004. 51
SILVA, Ermnia. As mltiplas linguagens na teatralidade circense. Op. cit., p. 196.
35
inda ser denominada pantomima, as representaes faladas e cantadas
em portugus foram adquirindo cada vez mais espao.52
Numa entrevista concedida revista Dom Casmurro, e registrada pelo reprter
Brcio de Abreu, Benjamim de Oliveira conta sobre a criao do gnero, atribuindo a si
mesmo a autoria do feito53
:
No Spinelli que eu lancei essa forma de teatro combinado com circo,
que mais tarde tomaria o nome de Pavilho. Spinelli era contra. Tanto
que nos primeiros espetculos tomamos roupas de aluguel, porque ele
se negava a comprar guarda-roupa. Foi ali no Boliche da Praa 11. E a
primeira pea intitulava-se O Diabo e o Chico. Pouco a pouco fomos
saindo para o teatro mais forte, de melhor qualidade. E terminamos por
fazer Otelo.54
Em 23 de fevereiro de 1907, Arthur Azevedo dedicou-lhe uma crnica na sua
coluna publicada no jornal O Paiz. O crtico assistira verso do romance O guarani,
de Jos de Alencar, pantomima para circo, batizada D. Antnio e os guaranis, tambm
baseada no libreto de Antnio Scalvini e Carlo dOrmeville para a pera de Carlos
Gomes. A pantomima estreou em So Paulo, em 1902, e contava com 22 quadros e 22
nmeros de msica, com Benjamim de Oliveira interpretando Peri. um negro, mas
um negro apolneo, plstico; um negro que, metido nas suas bombachas de clown, me
pareceu Otelo, que saltasse das pginas de Shakespeare para o circo, na Cidade Nova,
escreveu55
. Ermnia Silva aponta que essa pantomima se tornou constante no repertrio
do Circo Spinelli at 1910.
Mas a pea que Benjamim aponta como sendo a primeira ocorrncia do circo-
teatro uma mise-en-scne escrita na seqncia de D. Antnio e os guaranis, que tam-
bm esteve presente no repertrio do Spinelli durante vrios anos. Alm dessa mgica
farsesca, como era anunciada nos folhetos e cartazes da poca, Benjamim escreveu
outras mise-en-scne, entre elas: O negro do frade, farsa fantstica em que interpreta o
negro pobre que se apaixona pela moa branca rica; A filha do campo, farsa fantstico-
dramtica; e O colar perdido. Essas farsas eram chamadas s vezes de farsas fantsti-
cas, e outras vezes de burletas, ou ainda, mgicas. Todas essas pantomimas tinham uma
estrutura cnica e musical muito parecida com a das peas do repertrio dos gneros
52
Idem, p. 203. 53
Vrios trechos foram mencionados por RUIZ, Roberto. Op. cit., p. 29 a 41. 54
Idem, p. 39. 55
In SILVA, Ermnia. Op. cit.,, pp. 228 e 229.
36
ligeiros e musicados apresentados nos teatros da poca. Cada um desses espetculos
contava com cerca de 25 nmeros musicais.
Por isso, Benjamim fez fama no s no palco como tambm no disco, registran-
do seis gravaes de 1907 a 1912, alm de transpor vrias de suas pantomimas para o
cinema, incluindo a de Os guaranis.
Com o aumento significativo da produo e montagem das peas dialo-
gadas e cantadas, com uma maior rotatividade do repertrio de repre-
sentaes, e destas em variedade de gneros, os circenses exploravam
ainda mais uma estrutura que j estava presente nas encenaes das
pantomimas, marcada pelos papis fixos ou personagens-tipos, seme-
lhana do que tambm acontecia nos teatros. A tipificao dos papis
das pantomimas iria permanecer, mas com algumas diferenas, aumen-
tando o nmero de gneros e temas que os circenses, em particular nas
produes de Benjamim, encenavam. Alguns artistas eram destinados a
serem gals, vilos, cmicos (que normalmente eram os palhaos das
companhias); entre as mulheres, havia a mocinha ou ingnua, a cnica e
a caricata, mas tambm a representao de diversos outros papis
quando o encenado era uma revista.56
No entanto, essas ainda no eram peas de circo-teatro, embora nesse limiar no
seja possvel saber se havia de fato ou no dilogos encenados em meio s pantomimas
e nmeros musicais. Mas at mesmo a denominao circo-teatro j era utilizada, embo-
ra no tivesse sido empregada originalmente pelo Spinelli. Conta Ermnia Silva que,
desde a dcada de 1870, o circense Albano Pereira assim denominava seu circo. Em
1899, se anunciava no Largo da Concrdia, no Brs, em So Paulo, como Teatro Circo
Universal.
Mas a grande mudana aconteceria em 1910, quando Benjamim adaptou a ope-
reta Viva alegre, de Franz Lehr, para o picadeiro. A pea estreou em 18 de maro no
Circo Spinelli, montado no boulevard de So Cristvo, com adaptao musical para
banda feita por Paulino Sacramento, maestro de orquestra de teatros de revista. Por ou-
tro lado, Eduardo das Neves j havia composto uma pardia da opereta, A sentena da
viva alegre, que estreou em 18 de janeiro do mesmo ano.
Graas a essas duas apresentaes, o Brasil ficou sendo, ento, o nico
pas do mundo em que a famosa opereta destinada ao consumo da fan-
tasia das altas camadas da classe mdia urbana pde descer ao alcance
do povo, com o prncipe Danilo interpretado por trs palhaos de circo:
56
SILVA, Ermnia. Op. cit., p. 238.
37
Mrio Pinheiro (que depois cederia lugar a Benjamim, inicialmente fa-
zendo Negus), Benjamim de Oliveira e Eduardo das Neves.57
O pblico endinheirado carioca j conhecia a opereta, que vinha sendo apresen-
tada na capital federal desde 1908. No entanto, a primeira apresentao foi em alemo.
No ano seguinte, foram encenadas verses dela em italiano, espanhol e ingls, sempre
por companhias europias. O xito de pblico dessas verses despertou a ateno da
imprensa, que passou, ento, a elogi-la. O gnero opereta nasceu com o Orphe aux
enfers (1858), de Offenbach, em Paris. Anos depois, o formato musical foi suplantado
na ustria, em 1871, pelo de J. Strauss. Enfim, o hngaro Franz Lehr inovou ao sinte-
tizar num mesmo espetculo o cancan de Offenbach e a valsa de Strauss. Com isso,
concebeu um dos mais populares espetculos musicais europeus, A viva alegre.
A verso em portugus surgiu tambm em 1909, encenada por uma companhia
portuguesa, que utilizou a verso feita um ano antes por Artur Azevedo, o qual no vi-
veria o bastante para v-la no palco. O cinema tambm apresentou inmeras verses da
opereta. Em 1910, surgiu a verso em disco, gravada em espanhol, e em 18 de janeiro
estria uma verso pardica assinada pelo palhao Dudu das Neves. A montagem do
Spinelli foi a primeira a ser encenada com elenco brasileiro. As enchentes, como se
dizia na poca, que invadiam as arquibancadas do Spinelli para ver o espetculo nos
quatro meses seguintes estria foram realizadas 203 apresentaes , incluam no s
populares, mas tambm representantes do mundo smart, como atestam os cronistas
da poca. Enfim, a dupla Spinelli-Benjamim havia conseguido atrair para o seu ambien-
te os legtimos tipos da capital do arrivismo.
A produo de A viva alegre no Spinelli trazia uma relao clara entre
continuidade e transformao. Quando um texto era incorporado ao
campo da teatralidade circense, enriquecia-se com as mltiplas lingua-
gens que a compunham, dentro dos pressupostos do modo de organiza-
o do trabalho circense. Nessa perspectiva, conformar um espetculo
era um jeito de constituir o conjunto de expresses daquela teatralida-
de, definindo o circo como um espao polissmico e polifnico. (...) va-
le ressaltar que o reconhecimento pela apresentao da opereta, em
1910, foi em torno de uma apresentao que mantinha uma organizao
do trabalho, um modo de produo do espetculo e um processo de
formao/socializao/aprendizagem articulados s caractersticas defi-
nidoras e distintivas do grupo circense, que pressupunha, entre outros,
contemporaneidade do espetculo, nomadismo, tradio oral, familiar e
coletiva.58
57
TINHORO, Jos Ramos. Op. cit., p. 188. 58
SILVA, Ermnia. Op. cit., p. 265.
38
Esse marco inicial do circo-teatro brasileiro evidencia um trao comum com as
investigaes da matriz cultural da msica caipira, que encontrou campo para se multi-
facetar a partir de hibridismos culturais. Tambm a cena teatral em que o circo-teatro
surgiu buscou na integrao de linguagens e culturas a sua matria-prima de elabora-
o. Portanto, no h como compreender a matriz cultural do circo-teatro usando a ex-
cluso como base emprica do objeto proposto nesta pesquisa. No h como compreen-
d-lo sem um dos dois mastros que sustentam a lona circense: a cultura popular ou a
cultura de massa. Se na msica caipira a interao entre o folclrico, o popular e o mas-
sivo ocorre no mbito de um processo de mediaes que acompanha o fluxo populacio-
nal rural/urbano, no caso do circo-teatro essas mediaes atuam a partir de um processo
sistmico, urbano. Assim, o espao do picadeiro, a princpio, e a instalao do palco
italiano, no perodo subseqente, desenham os contornos de um campo de intensa ne-
gociao simblica. Dele participam artistas, autores, palhaos e um pblico originrio
da periferia urbana, integrado s transformaes sociais da urbe.
O circo-teatro parece-se com um circo comum, apresentando atrs do
picadeiro, do lado oposto entrada, o palco. Cadeiras, da chamada pla-
tia nobre, podero ocupar o picadeiro na apresentao das peas. O
uso do espao interno do circo, assim dividido, poderia fazer supor,
primeira vista, uma rgida diviso entre palco e platia, o que de fato
no acontece. Os atores podero romper essa diviso a qualquer mo-
mento, durante o espetc