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A Coleção Comunicações pretende mostrat o amplo e sedutor leque de
horizontes e perpectivas críticas que se abre para uma jovem ciência quenão é apenas ciência social, mas que também se nutre e transita nas ciênciasda cultura bem como nas ciências da vida. Afinal, apenas sobrevivemos,
como indivíduo e como espécie, se compartilhamos tarefas, funções e
fruições, vale dizer, se desenvolvemos uma eficiente comunicação que nos
vincule a outras pessoas, a outros espaços, a outros tempos, e até a outrasdimensões de nossa subjetividade.
Conheça os títulos desta coleção no final do livro.
COLEÇÃO COMUNICAÇÕESDireção: Norval Baitello junior
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP
F668 Flusser, Vilém (1920 - 1991).
Natural: mente: vários acessosao significado de natureza.! Vilém Flusser.
São Paulo: Annablume, 2011. (Coleção Comunicaçóes).
164 p.: 14x21 cm.
ISBN 978-85-391-0260-0
Sumário
1. Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento. 3. Natureza. L Título. 11.Série.
lH. Vários acessos ao signíficado de natureza.
CDU 165
CD]) 121
Caralogação elaborada For Wanda Lucia Schmidr - CRB-8-1922
Natural:mente
Vários acessos ao significado de natureza
© Edirh Flusser
1"edição, julho de 2011
ANNABLUME edirora . comunicaçãoRua M.M.D.C., 217. Buranrã
05510-021 . São Paulo. SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754www.annablume.com.br
Conselho EditorialEduardo Penuda CafLizal
Norval BaiteIlo juniorMaria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Se_keíf(in memoriam)Pedro Roberro Jambi
Lucrécia D'Alessio Ferrara
Caminhos (uma espécie de Introdução) 07
Vales
19
Pássaros
29
Chuva
39
O cedro no parque
45
Vacas
53
Grama
59
Dedos
67
Alua
75
Montanhas
85
A falsa primavera
95
Prados
103
Ivan AntunesVínícius Viana
Juliana BiggiCarlos ClémenVinícius Viana
Coordenação de produção:Diagramação:
Revisão:
Capa:Finalização:
Ventos
Maravilhas
113
121
Caminhos(Uma espécie de Introdução)
Botões 129
Neblina 137
Natural: mente (uma espécie de conclusão) 147
Duas experiências estão confluindo para ignorar oredemoinho das reflexões a serem relatadas em seguida.A primeira é a última passagem do autor pelo Passo deFuorn que une o vale do Enghadin com a rede de valesalto-adigianos no encontro das fronteiras da Itália, Áustria e Suíça. A segunda é a visita recente que o autor fezaos menires de Carnac na Bretanha. Antes de permitir àsduas experiências confluírem, o autor deve descrevê-Ias.
O Passo de Fuorn é estrada asfaltada não muito lar
ga, por não ser muito frequentada, já que comunica regiões pouco habitadas. É, no entanto, mantido livre daneve durante o inverno todo, quando estradas mais importantes estão fechadas ao trânsito, porque não existeligação alternativa entre as regiões que une. Trata-se deestrada lateral da grande artéria que parte de Coira emdireção a Milão pelo passo de Maloia e que forma uma
8 Natura[;menre VIJ.,ÉM FLVSSER 9
das passagens norte-sul do centro europeu. Sai daquela artéria em Zernez, no vale do Enghadin (não muito longede São Moritz dos milionários americanos e dos xeiquespetrolíferos, e de Sils Maria do Nietzsche zaratustriano),sobe pelo Parque Nacional do Enghadin até a altura deuns 2.300 metros, desce pelo vale do Vanosta das aldeiasladinas e castelos gados e langobardos e pelo vale do AltoAdige, nos quais se confunde com a estrada que Drususconstruiu para vencer os réticos e alcança, em Bolzano(a clássica "Pons Drusi"), a auto-estrada Munique-Romaque é, por sua vez, a Via Flaminia pela qual Germânicopenetrou em nome de Roma nas florestas teu tônicas, epela qual, em sentido contrário, o Imperador Henriqueviajou, penitente, para submeter, em Canossa, a coroa doSanto Império germânico à autoridade do Papa romano.Ao ligar, assim, transversalmente, duas artérias importantes, a estrada do Passo de Fuorn (nome ladino que significa, obviamente, Passagem do Forno) parece ser obrarecente de engenharia, destinada a descarregar parte dotrânsito pesado de caminhões que rolam, em cadeia ininterrupta, entre o centroeuropeu e a península italiana.Obra de engenharia recente e ousada que exigiu a aplicação dos métodos mais avançados da tecnologia.
O autor viajou por ela repetidas vezes e sempre admirou não apenas as majestosas vistas de cumes e geleiras,mas também a beleza da suas curvas. Destarte, o espíritohumano, munido dos instrumentos da ciência, conseguiuliteralmente perfurar os segredos da natureza e abri-Iasà contemplação, e conseguiu fazê-Ia na forma de beleza.
Até que o autor leu, em um livro de paleoantropologia,que Passo de Fuorn foi, durante incontados milênios, ocaminho das manadas de cavalos selvagens,do gado "Ur"e das renas, perseguidas pelos caçadores paleolíticos, nossos antepassados. O traçado da estrada atual foi "construído" por tais manadas. O projeto da estrada é dos cavalos,dos touros, das renas. Apenas a sua execução atual é produto de trabalho humano, como devem ter sido incontá
veis execuções anteriores. Se projeto e ideia foram considerados conceitos parentes, quem teve a ideia de fazer aestrada foram os animais da tundra. Foram elesos que ousaram. E nós, que viajamos de automóvel de Bolzano paraZarnez, estamos apenas seguindo os seus passos, exatamente como o faziam os caçadores, nossos antepassados.
~em viaja para a Bretanha, como o fez o autorna semana passada, penetra região misteriosa por multiplicidade de razões: por causa de curiosas construções,chamadas "calvários", que a caracterizam; por causa doMont-Saint-Michel, esse monstro monástico, esse Mon
te Athos do Ocidente; por causa das lendas pseudocristãs dos bretões que para lá se mudaram, depois de teremsido expulsos da "grande" Bretanha pelos anglo-saxões,os quais continuam "bretonando" até hoje, quando sualíngua e cultura desapareceram na pátria inglesa há muito; por causa daquele curiosíssimo povo celta, chamado"o povo do mar = armoricano", que jamais foi realmentedomado nem pelos romanos, nem pelos gauleses,nempeIas bretões, nem pelos francos, nem, diga-se de passagem,pelos burgueses parisienses que estão construindo seus
10 Natural:mcnte VILf:M FLUSSER 11
edifícios de apartamentos nas praias "armoricanas". (Mastambém estão sendo domados, como o está sendo o resto
do Ocidente, pela cultura de massa, de modo que passam,
atualmente, de "armoricanos" para americanos.) No en~
tanto, a região é misteriosa principalmente por causa dos
povos que antecederam os armoricanos, e dos quais pou
co ou nada se sabe, a não ser que construíram (se é que"construir" é o termo certo), entre os anos 6000 e 4000
antes de Cristo, aqueles conjuntos incríveis de pedras em
Carnac e, do outro lado do Canal, em Stonehenge. ~e
gente era essa, que mais de 2000 anos antes da construção
da primeira pirâmide egípcia levantava absurdamente mi
lhares de pedras pontudas e irregulares, centenas das quais
pesam um múltiplo do peso do Obelisco na Place de La
Concorde, cuja ereção exigiu o esforço máximo da técnica iluminista, e todo o ardor romanticamente revolu
cionário da República Francesa? O autor não encontrou,
até agora, na literatura consultada, resposta satisfatória a
tal pergunta. Encol1trou apenas interpretações fantásti
cas do tipo "O despertar dos mágicos", ou interpretações
banais do tipo freudiano "phallus". Tais interpretações e
outras semelhantes não satisfazem. Porque diante de toda
obra humana surge a pergunta do motivo e da finalidade
da obra. Já que é isto que distingue cultura de natureza:
as obras da cultura têm significado, são decodificáveis. Os
menires de Carnac são absurdamente misteriosos, por
que perdemos a chave do código que lhes confere o seu
significado. Não sabemos mais por que e para que foram
elevados, e somos obrigados a "interpretá-Ios", em vez ded "1' 1 "po ermos e- os .
Os milhares de menires que cobrem a planície em
torno da aldeia de pescadores e cultivadores de ostras "be
lonnes", chamada Carnac (nome que sugere misteriosa
mente o Egito, e, por seu sufixo "-ac", passado que aponta
além da Idade do Bronze), parecem, à primeira vista, um
amontoado de ruínas espalhadas caoticamente, como se
um edifício de proporções transumanas tivesse ruído em
terremoto. Mas, pouco a pouco, o observador vai desco
brindo que o que parece ser acaso caótico é, na realidade,
ordem ultracomplexa. As pedras não parecem, sob obser
vação mais meticulosa, uma espécie de estátuas "objets
trouvés" ou "minimal art" de proporções gigantescas, mas
elementos de cercas invisíveis ou desaparecidas. E tais su
percercas, quando mentalmente reconstituídas, passam a
delimitar centenas de caminhos que se cruzam e recruzam
em desenho geométrico altamente sofisticado. A visão
mental faz surgir um conjunto de avenidas e alamedas co
lossais dentro do qual o menir individual passa a ser ape
nas elemento de traçado, apesar de suas proporções gigan
tescas. E se as próprias rochas se transformam em anões
em tal labirinto, que dizer de nós homens? Passamos a ser
formigas que correm, 'desorientadas, dentro de avenidas
e alamedas destinadas a seres de ordem de grandeza dife
rente, que procuram apalpar, com suas antenas mentais,
os menires individuais a fim de descobrirem quais os se
res que outrora caminhavam pelas avenidas. Sem dúvida:
os menires foram colocados nos seus devidos lugares por
gente como nós, embora com esforço e métodos dificil
mente imagináveis. Mas o projeto da construção não
pode muito bem se ter originado na mente dessa gente.
12 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 13
A construção não pode ter servido a nenhuma necessidade sua. Tal projeto deve ter tido origem diferente, tersido "inspirado" de alguma maneira na mente dos construtores. Ao construírem os "alinhamentos" de Carnac,
os povos ignorados, habitantes da Bretanha pré-egípcia,devem ter obedecido a projetos por eles próprios ignorados, a fim de abrirem caminhos com finalidade ignorada.
As duas experiências relatadas confluem num ponto: o do projeto de caminhos. E as reflexões se põem agirar em torno de tal ponto em círculos rapidamente centrífugos, já que os termos "projeto" e "caminho" são prenhes de significado. Tal fuga do centro pode, no entanto,ser disciplinada, se o pensamento se agarrar a um únicoaspecto, por assim dizer concreto, do problema que sepõequando as duas experiências confluem - o problema deos projetos dos caminhos humanos não serem necessariamente humanos. No caso do Passo de Fuorn, o projeto
parece ter sido pré-humano e, no caso do alinhamento doCarnac, parece ter sido extra-humano. Se o pensamento se agarrar a este aspecto, torna-se possível a distinçãoentre dois tipos de caminho: os projetados, traçados,imaginados, programados por deliberação clara, distintae consciente, e os outros. Exemplos do primeiro tipo seriam o Eixo Monumental de Brasília e a Transamazôni
ca, e exemplos do segundo, o Passo de Fuorn e Camac.Tal distinção pode contribuir para o aprofundamento dacompreensão da dialética entre natureza e cultura.
Somos tentados a afirmar que a diferença entre caminhos conscientemente deliberados e os outros se deve
à sua idade; os caminhos antigos, os pré-históricos, seriamaqueles cujos planos e projetos caíram rio esquecimentoe, por isso, parecem a nós, observadores tardios, não terem sido deliberados. Os fenômenos não confirmam, noentanto, tal afirmativa. Os caminhos do sal e do âmbar
que cruzam a Europa são antiquíssimos, e revelam, no entanto, projetos deliberados. E o Passo de Fuom é uma das
mais recentes passagens alpinas. ~erer, pois, afirmar quequanto mais antigo um caminho, tanto menos artificiale, portanto, tanto mais "natural" será, não se sustenta. Anaturalidade ou artificialidade de um caminho não é fun
ção da sua idade, não pode sê-Io, já que a história não ésimplesmente processo de artificialização crescente, masprocesso que retoma periodicamente às fontes naturaisdas quais brota. Outra tentativa de explicar a diferençadeve ser ensaiada.
Talvez esta: os quatro exemplos de caminhos, sugeridos neste ensaio, podem ser reagrupados, tendo por critério não seu projeto, mas a função à qual servem. O passo de Fuorn e a Transamazônica servem ao transporte demercadorias e de pessoas; Camac e o Eixo Monumental
servem como símbolos, transportam mensagens. É claro,o critério não é exclusivista. O Eixo Monumental é, tam
bém, canal pelo qual funcionários dos diversos Ministérios se dirigem ao local de trabalho, e as alamedas de Carnac devem ter também servido de estradas aos "druidas".E o Passo de Fuorn e a Transamazônica são também sím
bolos de algo (o primeiro, talvez, do Mercado Comum,a segunda, certamente, do Brasil Grande). No entanto, a
14 Natural.:mente VILÉM FLUSSER 15
função simbólica predomina num dos dois pares, e a função econômica no outro, pois, separtirmos do critério dafunção, a diferença entre caminhos deliberadamente projetados e os outros se torna mais clara.
O Passo de Fuom é estrada muito mais tecnicamen
te elaborada que a T ransamazônica, a qual não passa, emlargos trechos, de caminhos de terra. Neste sentido, oPasso de Fuom é mais "artificial", mais "cultura" e me
nos "natureza". No entanto, a Transamazônica se impõemuito mais à paisagem que atravessa, avança não apenasnela, mas contra ela. Devora a floresta, enquanto o Passode Fuom a salienta. Neste sentido, a Transamazônica é
muito mais artificial e cultural: representa muito mais avitória da deliberação humana sobre as condições naturais impostas ao homem. O código do qual o Eixo Monumental participa enquanto símbolo (avião que decolarumo a um futuro esplêndido, Alvorada, Brasil Grande,etc.) é muito mais denotativo, claro e distinto que o código do qual participa Camac, e não apenas porque deleperdemos a chave. O código de Camac deve ter sidosempre obscuro e altamente conotativo. A mensagemdo Eixo Monumental exige, pois, leitura diferente da deCarnac: mais intelectual que intuitiva. Neste sentido, oEixo Monumental é muito mais artificial e cultural queCarnac: representa muito mais a vontade humana de darsentido ao mundo, de maneira que a artificialidade de umcaminho parece não depender da sua elaboração, nem dasua função, mas do clima existencial que o cerca. Peloscaminhos "artificiais", "culturais", os homens caminham
altivos rumo a um destino que eles próprios projetaram.Pelos caminhos misteriosos, "naturais", os homens cami
nham seguindo os passos de seres ignorados ou vagamente intuídos, rumo a um destino ignorado ou vagamenteintuído. Ou, como em Camac, sem rumo aparente. E já
que há estes dois tipos de caminho, há também dois tiposde "homo viator".
No entanto, tal distinção entre caminhos "naturais"e "artificiais" sugere, à primeira vista, conceito inteiramente insatisfatório de "arte" e de "cultura". "Cultura"
seria, de acordo com tal critério, a imposição deliberadade um significado humano ao conjunto insignificante de"natureza", e "arte" seria o método pelo qual o espíritohumano se impõe sobre a natureza. Embora muitos possam efetivamente esposar tal conceito, é ele inteiramenteinsatisfatório, e a contemplação do Passo de Fuom e deCarnac o prova. Fosse satisfatório o conceito, a Transamazônica seriaprogresso cultural sobre o Passo de Fuorn,e o Eixo Monumental seria obra de arte mais significativaque Camac, porque na T ransamazônica e no Eixo Monumental o espíríto humano se impõe mais nitidamentesobre a natureza das Gerais e da Floresta. Na realidade, o
Passo de Fuom se apresenta como obra de arte ao proporcionar vivências fortes (ao revelar "visões da realidade"),
e Carnac se apresenta como testemunho de uma culturaperdida e esquecida, mas tão significante e "válida" quanto o é a nossa. Portanto, caminhos antinaturais não sãonecessaríamente frutos de uma arte mais "evoluída" e cultura não é necessariamente antinatureza.
16 Natural:mente VILÉM FLVSSER 17
Os dois tipos de caminho sugerem, pelo contrário,que há dois tipos de cultura, cada qual aplicando arte diferente. O primeiro tipo de cultura seria produto do esforço de elaborar e fazer resplandecer sempre mais a essênciada natureza, e sua arte seria o método pelo qual tal essência é revelada. O Passo de Fuorn e Carnac seriam obras
desse tipo de cultura. O segundo tipo de cultura seria,efetivamente, ptoduto do esforço deliberado de imporprojetos humanos sobre a natureza e de fazer resplandecer sempre mais a essência do espírito humano, e sua arteseria o método pelo qual tal essência é revelada. A Transamazônica e o Eixo Monumental seriam obras desse tipode cultura. No entanto, tal esquematização simplifica oproblema. Provavelmente, os dois tipos de cultura e artenão existem, nem jamais existiram, em estado puro. E quetoda cultura concreta e toda arte são mistura ou síntese
dos dois tipos propostos. O que torna extremamente problemático não apenas querer distinguir, ontologicamente, entre várias culturas, mas também querer estabelecerrigorosa dialética entre cultura e natureza.
Isto implica que o "homo viator" não é um ser quepode escolher entre caminhos deliberados e caminhosmisteriosos, e que pode fazê-Ia deliberada ou espontaneamente. Implica, ao contrário, que o "homo viator" é umser que caminha ora por caminhos deliberados, ora porcaminhos misteriosos, e o faz ora deliberadamente, ora
espontaneamente, e que, na maioria das vezes, caminha,em parte deliberadamente, em parte espontaneamente,por caminhos parcialmente deliberados e parcialmente
misteriosos. Porque o Passo de Fuorn e Carnac de umlado, e a Transamazônica e o Eixo Monumental do outro,
são casos de limite ("Grenzsituationen"). A maioria doscaminhos é como a autoestrada Del Sole e a via Dutra,ou como a rue de Seune ou a rua Direita, mais ou menos
mal traçadas, e que são traçados "mal" porque o espíritohumano não conseguiu se impor de todo. É por tais cami
nhos que caminhamos, via de regra.
Vales
Temos várias maneiras de relacionar-nos com a na
tureza, algumas das quais podem ser chamadas "sobrena
turais", "teóricas" ou "perspectivas" (segundo os nossos
vários gostos). Uma de tais maneiras é encarar a natureza
como se fosse um mapa. Invertemos, sob tal visão, a rela
ção epistemológica entre paisagem e mapa. O mapa não
mais representa a paisagem, mas agora é a paisagem que
representa o mapa. O mapa não mais serve de instrumen
to para nos orientar na paisagem, mas agora é a paisagem
que serve de instrumento para nos orientar no mapa. A
verdade deixa de ser função da adequação do mapa à pai
sagem, e passa a ser função da adequação da paisagem ao
mapa. Tal furioso idealismo, inculcado em nós nos giná
sios, se exprime na sentença "o mar é azul, e as possessões
inglesas são vermelhas". Sob tal visão, vales passam a ser os
caminhos pelos quais a água corre em direção ao oceano.Visão "científica", esta?
20 Naturalrmente VILÉM FLUSSER 21
Temos, no caso, determinado modelo. O da circu
lação da água. Não importa aqui a origem do modelo. O
modelo prevê (no sentido de "manda" e de "profetiza")
que uma das fases do ciclo da água seja a descida da água
das serras por vales. A observação da paisagem confirma
o modelo. Ou seja: a paisagem se adapta ao modelo (ao
"mapa"). Respondeu "sim". Os vales são respostas afirma
tivas à investigação "espiritual" (formal) do mapa. Loucu-
ra? Sim, no sentido do "espírito" ser loucura, do homem ser
animal louco. E não, no sentido do "espírito" ser negação,
do homem ser animal que pode mudar vales construindo
represas. Para quem é engenheiro, tal visão do vale é "ade
quada". Para quem mora no vale, essa visão é louca. Mas
será que engenheiros não podem morar nos vales? Não po
dem. Enquanto engenheiros, moram nos mapas.
Eu não sou engenheiro e moro num vale. Ou moro?
Embora não seja engenheiro, sou, eu também, homem.Animal louco. Também eu fui expulso do paraíso, e não
apenas os engenheiros. Não posso morar no vale, ou, pelomenos, não o posso integralmente. Também eu moro,
parcialmente, no reino dos engenhos, embora os meus
engenhos não sejam os do engenheiro. Não faço, como
faz o engenheiro, "ciência da natureza". Sou, ai de mim,humanista. Minha loucura é outra. Vales, para mim,
também são caminhos. Não, por certo, da água. Mas ca
minhos para homens. Eis porque não posso morar no vale
tão integralmente quanto nele moram, por exemplo, as
corças. Corças andam no vale, e eu ando por ele. Atraves
so o vale (seja de lágrimas, seja de sorrisos). Homo viator.
Cavaleiro errante, judeu errante. Estrangeiro. Mas não
integralmente. Se eu ando pelo vale da sombra da mor
te, Tu estás comigo. Como então é verde o meu vale! Noentanto, o vale é meu, e eu não sou dele. Não sou dele
porque eu também disponho de mapa, ao qual meu vale
deve responder "sim ou não", adequar-se. Meu mapa,
meu engenho, é este.
A humanidade é horda de invasores, de imigrantes.
Invade a paisagem há, provavelmente, uns 8 milhões de
anos. Em várias levas. Em busca de renas, mamutes, gra
míneos, gado, sal, carvão, eletricidade, em suma, em buscada felicidade. De onde vem a horda, não se sabe. Prova
velmente, é questão "falsa" esta; não há método para res
pondê-Ia. Embora não pareça ser "falsa", já que 8 milhões
de anos não são tanto tempo, afinal de contas. Mas para
onde vai a horda, isto se sabe. Sobe. Sobe ao longo dos rios
e dos riachos em sentido contrário ao da água. Sobe pelos
vales. Os vales são as artérias pelas quais sobe o sangue dorio da humanidade. E os estreitos vales montanhosos são
os capilares. Neles, a invasão estagna. São eles represas em
sentido contrário ao do engenheiro. No meu mapa, os
primeiros são os últimos: os bandeirantes mais corajosos
que formam a ponta da lança invasora e penetram os vales
mais estreitos são lá represados para formarem os últimos
vestígios da horda. Eu moro (no sentido problemático do
termo) em um vale estreito montanhoso. Agora respon
da "sim ou não", meu vale. Responda a minha pergunta
"perspectivista", "historicista", humanista.
Este vale aqui, no último tempo interglacial, era pro
vavelmente habitado por homens da espécie heidelberg,
22 Natural:menre VILÉM FL USSER 23
quando a planície lá embaixo já era habitada por homines
sapientes. ~ando a planície já era neolítica e plantavagrama, aqui ainda caçavam paleoliticamente cabras alpinas. ~ando a planície falava rético e usava bronze, aquiainda havia aldeias neolíticas sem divisão de trabalho.
Aqui ainda se falava rético, quando, na planície (e pelo
mundo afora), já se falava latim e grego. ~ando o médioalemão dominava o Santo Império, aqui se falava ladino.E hoje se fala alemão, quando a planície já fala italiano.Mas nos pequenos vales laterais ainda se fala ladino. E orético ainda não morreu nos pequenos aglomerados nosabismos acima de 3.000m. E existem casas camponesasconstruídas neoliticamente. E há, nos laguinhos isoladosao pé das geleiras,gente que pesca paleoliticamente. E nãohaverá, nos rostos dos montanheses, traços neanderthal eheidelberguianos? Meu vale respondeu: "sim, sou estruturado de acordo com o teu mapa". Moro em represa dahistória da humanidade, na qual o "anterior" passa a sero "mais vale acima", e o "posterior" o "mais vale abaixo".Estratihcação contrária à da geologia, esta. Não surpreendentemente: as "humanidades" têm mapas contráriosaos das" ciências da natureza". O tempo corre em direçãooposta nas duas disciplinas. Nas ciências da natureza corre rumo à entro pia; nas humanidades, rumo à informaçãocrescente. A água corre em direção oposta à do rio da humanidade. A estratificação histórica do meu vale se opõeà sua estratihcação geológica, como o "espírito" se opõeao mundo. Porque o mundo é passagem, e o "espírito" éaventura.
Meu vale não é interessante apenas pelo fato de eumorar nele. Pode ser generalizado. Não é assim que hmciona o "espírito": generalizando, classificando,projetando para "cima"? Isto é: esvaziando? Este meu valeconcreto aqui pode ser generalizado para a forma vazia: "classede vales".Por isso é interessante. Pode servir de exemploconcreto da classe abstrata "vales". Inversão epistemológica, portanto. Meu vale é interessante porque, feita a inversão, permite perguntas do tipo: tradição ou progresso?No meu mapa, vales são os lugares para onde o progressoavança e onde estagna. Mas onde estagna com determinada estrutura. Na estrutura da "memória" no sentido
platônico, biológico, psicológico, cibernético (e talvezoutro). Vales, no meu mapa, são armazéns da informação, conservas. Conservadores tradicionais, portanto. Nomeu mapa, o progresso corre morro acima para ser armazenado nos vales mais estreitos. No meu mapa, a meta doprogresso é ser conservado. É que meu mapa é mapa dehumanista, não de engenheiro. Por isso, o "nunc stans"do vale aparece nele como meta do "panta rhé", comoChangri Lá, em suma. Todo humanismo é utópico: visaà estreita plenitude do vale e vê na ampla vacuidade daplanície apenas estágio de percurso.
Primeira tentativa de resposta: vales são articulados. São estreitos e cercados de obstáculos que permitempoucas e difíceis passagens. Tal articulação os torna "orgânicos", isto é, dificilmente mecanizáveis. Não podemser facilmente enchidos de "massas" que se movem mecanicamente. Não se pode construir neles com facilida-
24 Natural:menre VILtM FLUSSER 25
de pirâmides faraônicas, circos máximos ou bancos de
cinquenta andares. Tais coisas não cabem bem em vales,
não por serem os vales "pequenos". As montanhas que os
cercam são muito mais altas que pirâmides, circos e ban
cos, e a vivência do vale é de grandiosidade. Não por se
rem "pequenos" os vales, mas por serem articulados, não
servem eles a culturas de "massa". Portanto, o progresso
massificador da planície se destina a ser articulado ("lm
manizado") nos vales.
Segunda tentativa de resposta: vales abrigam. Todo
vale forma um universo, com sua própria fauna e flora,
um pouco diferente da do próximo vale. Com sua própria
economia e estrutura social, sua própria arquitetura, mú
sica, suas próprias lendas. E os universos são os vales que
não se comunicam entre si, mas apenas com a planície que
é comum a todos. É neste sentido que vales abrigam: não
por isolarem do resto do mundo, mas por comunicarem
indiretamente e por grandes voltas. Isto talvez distinga
as culturas que brotam de uma rede de vales estreitos das
culturas das planícies: são "confederativas", e não "federais"
como estas. Por exemplo: as culturas grega, judia, tibetana,
tolteca e incaica, em comparação às culturas romana, meso
potâmica, hindu, maia e chipcha. Portanto, a "civilização"
da planície destina-se a ser aculturada nos vales.
Outras respostas do mesmo gênero são possíveis e
facilmente formuláveis. Todas dirão que a história é pro
cesso que tem vales por meta. Ou que acontecimento é
processo que tem memória por meta. Ou que progresso
é processo que tem tradição por meta. Em suma, todas
dirão que armazenar informação (negentropia) é a metada humanidade. E dirão ainda que vales (memórias, tra
dição, negentropia) não são lugares parados, nos quais
mais nada acontece. São, pelo contrário, lugares nos quaisa informação é constantemente reagrupada e reestrutu
rada. Falando comunicologicamente: vales são os lugares
nos quais os discursos das planícies são dialogados. Por
isso, vales são os lugares de pensadores e de poetas. DesdeHeráclito até Nietzsche. Desde Davi até Rilke. Mas não
para profetas. Profetas não habitam vales. Meu mapa nãocomporta profetas. Devo ampliá-Io.
Profetas passam pelos vales e sobem até o cume da
montanha. Dão um passo além dos habitantes do vale.
E depois voltam. Na volta, nem sequer descansam no
vale que atravessam. Dirigem-se diretamente à planície
para contar sua "nova". Contam a vista que tiveram no
cume. Para eles, o vale é canal entre planície e cume, e entre cume e planície: canal bivalente. Na ida, é canal entreredundância e ruído. Na volta, canal entre ruído e infor
mação nova. Na ida, é canal entre alienação massificada e
solidão; na volta, entre solidão e engajamento. Eis o que évale em mapa projetado do cume da montanha. Não mais
represa, mas meio do caminho. Em tal mapa, quem está
no vale está no meio do caminho da sua vida. E a perguntaque se põe em tal mapa é esta: quem está no vale ainda es
tará subindo, ou já estará descendo? Ainda será pensador
(reformulador do discurso da planície, da "prosa"), ou jáserá poeta (preparador de um novo discurso)?
Pois em tal segundo mapa (que não é mais histori
cista, mas tão formal quanto o é o do engenheiro), a hu-
26 Naturahmente VII.ttvl FLUSSER 27
manidade não aparece mais na forma de um rio que sobe
pelos vales, mas na forma de uma circulação que fira em
sentido contrário ao da água. Sobe pelos capilares dos va
les estreitos, projeta gotas até os cumes, e tais gotas vol
tam, carregadas de "novas", para vivificarem as planícies.
Tal circulação da humanidade sobe em grandes rios (as
grandes "tendências"), ramifica-se em deltas na serra (as
várias "heresias"), alcança os cumes em gotas individuais
(os grandes "heresiarcas"), que se evaporam e reconden
sam em chuva vivificante (a "profecia"). Em consequên
cia, são os vales, em tal segundo mapa, caminhos diferen
tes dos que são no primeiro. Não são mais caminhos queconduzem à meta. São caminhos de iniciação para a volta.Caminhos" decisivos".
~em jamais subiu pelo vale, jamais viveu. Vegetano plano. A terceira dimensão, a do sublime, lhe falta.
Mas quem subiu pelo vale e lá ficou, tampouco viveu.Arrancou suas raízes, é verdade, desalienou-se. Mas ficou
no ar, na disponibilidade. Deve decidir-se. Subir mais
ainda, ilosar-se mais ainda naqueles cumes que Rilke cha
mou "os do coração", os quais nem sequer águias habi
tam. Arriscar-se à solidão da qual Unamuno diz que nela
"perdeu a sua verdade". E em tal decisão não pode esperar
por nenhum Virgílio, ou Godot, ou não importa que guia
alpinista. Ou então voltar à planície sem ter corrido o ris
co da subida, não, por certo, para reintegrar-se, mas para
engajar-se. Porque, para quem está no vale, a integração se
tornou impossível. Épara ele, doravante, sinônimo de pro
miscuidade. Por ter subido o vale, é apocalíptico, e jamais
poderá voltar a ser integrado. A "volta" jamais pode ser
cancelamento da "ida". ~em volta não é o mesmo, é alterado. Ficou informado, mesmo se não subiu até o cume. Eis
a decisão que deve tomar quem subiu pelo vale: solidão sem
garantia de volta, ou volta sem ter visto o cume.
Os que nasceram nos vales não veem os cumes.
Olham o solo que cultivam, e, raras vezes, a planície a seus
pés na qual trocam o produto do seu trabalho. Olham a
planície raras vezes, porque está, geralmente, coberta de
bruma. Por isso, os que nasceram nos vales creem que
nasceram acima das nuvens. Estão enganados. Nasceram
no meio do caminho. Como estão enganados os que l1as
ceram na planície e dela jamais saíram. Creem que nas
ceram debaixo do céu, quando, na realidade, nasceram
debaixo da bruma que não lhes permite ver os vales nem
os cumes. Mas quem nasceu na planície e subiu pelo vale
vê primeiro os cumes, íngremes e inacessíveis. E depois
vê o solo verdejante do vale. Mas, como é viajante, vê a
paisagem como se fosse confirmação de mapas que carre
ga no bolso. Dois mapas. O primeiro mostra o vale como
caminho que leva à meta. O segundo mostra o vale como
epiciclo que leva à volta. O primeiro mapa foi projetado
no clima pesado da planície e visa a libertar o viajante. O
segundo mapa foi projetado no próprio vale, e visa a mu
dar a planície e seu clima. Os dois mapas são igualmente
adequados. A paisagem, se consultada, responde "sim" a
ambos. A decisão: "qual dos dois mapas devo utilizar?"
não pode ser tomada à base dos próprios mapas. Ambos
são igualmente apropriados. Nem à base de uma compa-
28 Natural:mente
~ 'b d" " Praçao entre os mapas, a asee um meta-mapa. or ser
"meta", não será mais apropriado. A decisão a ser tomada
deverá ser "absurda" (sem base).
E isto representa o limite da loucura que é o espí
rito humano. É perfeitamente possível projetar mapas.
É perfeitamente possível inverter a relação entre mapa
e paisagem, e consultar, não o mapa para se orientar na
paisagem, mas a paisagem para orientar-se no mapa. Tais
loucuras são perfeitamente possíveis. Mas quando se trata
de tomar decisão, mapas não servem. Decisões autênticas
são absurdas. E o absurdo é o concreto (o não-classificá
vel), o não-generalizável, o não-formalizável. ~ando étomada a decisão, a .loucura desaparece. A decisão se dá
no concreto. Vales são os caminhos da decisão, lugares
concretos. Lugares, nos quais se torna necessário, em
dado momento, jogar fora todos os mapas, sob pena de se
pairar no "sobrenatural", no "teórico", na "perspectiva".
Justamente por serem os vales lugares quase sobrenatu
rais, quase teóricos, quase perspectivistas, são eles situa
ções de limite. A decisão neles é, de acordo com Jaspers,um decifrar, e não um resolver-se. Em suma, vales são lu
gares onde a disponibilidade pode, se assim for decidido,
passar a ser engajamento.
Pássaros
Não podemos mais vivenciar o seu voo como o vi
venciavam os nossos antepassados: como um desejo im
possível. Pássaros deixaram de ser aqueles entes que habi
tam o espaço entre nós e o céu, para se transformarem em
entes que ocupam o espaço entre os nossos automóveis e
nossos aviões de passeio. Do elo entre animal e anjo pas
saram a objetos de estudo do comportamento em grupos.
Se quisermos enquadrar a nossa vivência de pássaros na
dos nossos antepassados, deveremos dizer que para nós
todos os pássaros são o que para eles eram as galinhas: en
tes que voam, mas precariamente. Pois tal modificação da
nossa atitude com relação aos pássaros e ao voo (provo
cada pela aviação e astronáutica) tem efeito significativosobre a nossa visão do mundo. Perdemos uma das dimen
sões do tradicional ideal da "liberdade" e perdemos o as
pecto concreto da tradicional visão do "sublime".
30 Natural:mente VrLÉM fLUSSER 31
A tentativa de intuir a visão que os nossos antepassados tiveram do vo é dificultada por dois fatores: pelanossa própria visão do voa e pelo mito do voa. As duasdificuldades rompem a nossa ligaçãocom a nossa tradiçãode duas formas opostas: a primeira exclui-nos da tradição,a segunda nos faz participar dela de uma maneira inteiramente nova. Em outros termos: por termos visão diferente do voa dos pássaros, não podemos compreender bemcomo o viram os nossos maiores. E por participarmos domesmo mito do voa não podemos compreender como osnossos maiores adequavam a sua visão do voa ao mito.Procurarei ilustrar as duas dificuldades.
Observemos três tipos de voa de pássaro: o do falcão, o do beija-Ror e o da andorinha. Espontaneamente,se oferecem três modelos para captá-Ias: o falcão pairacomo um planador, o beija-flor como um helicópteroe a andorinha voa como um caça. Se formos refletir sobre os três modelos, constataremos que sua relação comos fenômenos que captam é complexa: os três aparelhosde voa modelares são parcialmente cópias dos própriospássaros, e parcialmente resultado de um desenvolvimento que se tornou viável depois do abandono do pássarocomo modelo de voa. De modo que tomar aparelhos voadores como modelos de pássaros não é a clássicainversão"modelado-modelo", que tanto caracteriza a nossa visãodas coisas. Compreendemos os braços como alavancas,porque braços eram os modelos de alavancas, e vemosespelhos como superfícies de lagos, porque superfícies delagos eram modelos para espelhos. Mas vemos os pássaros
como aparelhos voadores, embora tais aparelhos não tenham tido pássaros, mas equações da aerodinâmica pormodelos. Neste sentido, aviões são instrumentos menos
"naturais" que alavancas e espelhos: não têm por modelocoisas da natureza. E se captamos o voa de pássaros commodelos da aviação (e o fazemos espontaneamente) é queestamos desnaturalizando espontaneamente tal voa.
Os nossos antepassados devem ter tido outros modelos para captar os três tipos de voa. O falcão deve tervoado como a nuvem, o beija-flor como o beijo, a andorinha como a flecha. (E outros modelos são sugeridos pelaliteratura, fonte da nossa compreensão da visão dos nossos maiores.) Mas para nós tal visão tradicional do voaé necessariamente poetizante e kitschizada, isto é, senti
mentalmente falsa.~em diz atualmente que beija-floresbeijam flores (e não que se mantêm em voa vertical acimadas flores),está sendo insincero, porque o modelo do heli
cóptero se impõe espontaneamente. ~erer ver o voa dospássaros como o viram os nossos maiores é querer kitschizar tal voa, e isto é ilustração da primeiradificuldade.
O mito do voa, tal como se manifesta em inúmeras
mitologias e em inúmeros sonhos, e tal como inspirouinúmeros sonhadores desde o alfaiate de Ulm e Leonardo
até Jules Verne e a N.A.S.A., continua ativo em nós tan
to quanto agia em nossos maiores. Aliás, a tese de acordocom a qual mitos são "projetos" constantes, provocadores da história, mas não superáveis por esta, parece bemfundada tanto na psicologia, quanto na sociologia. Maso mesmo mito tem para os que têm experiência com voa
32 Natural:mcnte ViLÍ~M FLVSSER 33
impacto inteíramente diferente daquele que têm para os
nossos antepassados, para os quais voar era sonho impos
sível. Se voamos de jato de São Paulo para Paris somos
tomados de sensação ambivalente: de uma parte, sabemos
que voamos muito "melhor" que falcões (mais alto, mais
longe e mais rapidamente), e que, portanto, a nossa rea
lídade está superando o nosso míto. De outra parte, sen
timos que voar em jato não é o "recado" do mito, e que
não pode ter sido isto que inspirava Ícaro. e Leonardo. Ao
ter deixado de ser sonho impossível, o mito passou a ser
sonho insonhável, mas persiste. Se uma das teses básícas
do marxismo é que os sonhos são mortos ao realizarem
se, o lado dialétíco de tal tese é esquecido: sonhos mortos
persistem. Podemos, é claro, voar, e podemos fazê-Io "me
lhor" que sonhava Leonardo, mas simultaneamente preferimos o sonho de Leonardo à nossa realidade. E nada
adianta se chamarmos o Aeroporto de Fíumícino (essa
vulgaridade característica da nossa realidade de voas),
"Aeroporto Leonardo da Vincí".
Para os nossos antepassados, a observação do voo
do falcão, do beija-flor e da andorínha foi visão de sonho
impossível. "Se fosse passarínho e tivesse duas asas, voaria
até junto de tí", diz uma canção popular, canção que é
impossível cantar atualmente com honestidade. Os nos
sos antepassados projetavam o mito do voa nos pássaros,
e o fazíam espontaneamente, porque os pássaros estavam
na origem do mito. Mas nós não podemos mais fazê-Io,
porque a nossa realídade do voo ultrapassou o voa dos
pássaros sem ter ultrapassado o mito, e isto é ilustração da
segunda dificuldade.
Não podemos, pois, mais vivenciar o voo dos pás
saros como o vivenciavam os nossos antepassados. Mas
tal incapacidade nossa nos permite, paradoxalmente, ver
melhor que eles o que o voo dos pássaros significava paraI EI I d' " '" ,e es. 'es ta vez acre ltassem que voar como passaro e
ver o mundo de cima e transpor obstáculos invencÍveis.
Portanto, distância e líberdade. Mas tal tipo de "sublíma
ção" e liberdade não nos atrai: conhecemos a sua reali
dade. Há, no entanto, outra carga do sonho "voar como
pássaro" que os nossos antepassados sentíam sem tê-Ia
salientado claramente. A de ultrapassar a bidimensionali
dade. O fato de sermos prisioneiros da bidimensionalida
de não é comumente reconhecido. Temos a ilusão de queos nossos movimentos ocorrem nas três dimensões do es
paço. Na realidade, no entanto, a nossa condição terrena
nos condena ao plano (à superfície da Terra). Apenas as
nossas mãos nos oferecem abertura para a terceira dimen
são, para a "concepção", "apreensão" e "manipulação" de
corpos. Voar como pássaro é poder utilizar o corpo todo
como se fosse mão, poder movimentar-se inteiramente
dentro do espaço. Este é o aspecto do mito do voo que se
torna visível depois de realizados os seus aspectos "eleva
ção" e "superação de barreiras".
Se observarmos o voo dos pássaros, estamos na pre
sença de corpos que se movimentam livremente nas três
dimensões do espaço, e que assumem atitudes tridimen
sionais em todos os seus gestos. Não apenas "subir" e "des
cer" é equivalente ao "para trás", "para frente", "para a
direita" e "para a esquerda", mas "inclinar a asa" é equiva-
34 Naturalancnte VlLl~M .rI,USSER 35
lente a "virar a esquina". Estamos na presença de seres que
devem tomar, em toda situação dada, decisões entre um
número muito maior de alternativas que seres terrenos:
as diagonais que se oferecem como caminhos de fuga ou
de ataque a pássaros não formam círculos, mas esferas. O
pássaro em voo não é, como o é o animal terrestre, centrode estrutura vital de círculos interferentes, mas de esferas
interferentes. As formações de aves em migração obede
cem às regras da geometria tridimensional, e o "misterio
so" sentido de orientação das aves é misterioso para nós,
porque se orienta dentro das três dimensões do espaço.
"Voar como pássaro" seria poder movimentar-se, decidir
se, organizar-se e orientar-se na tridimensionalidade.
Os animais terrestres, e mais particularmente o ho
mem, não são inteiramente privados da abertura em dire
ção ao espaço aberto. Mas a "terceira" dimensão não passa
de uma série de epiciclos superpostos sobre o plano. Os
movimentos das pernas, dos pescoços e dos rabos são in
vestidas para dentro da terceira dimensão a partir do pla
no. E os sentidos, e mais especialmente a vista, são órgãos
que recolhem informações vindas das três dimensões so
bre um ponto no plano. Para os animais terrestres, inclu
sive o homem, o espaço é um oceano que banha a ilha pla
na que habitam. Daí a semelhança entre pássaro e peixe:
ambos são habitantes do oceano-espaço. Pássaros nadam
no ar, como peixes voam na água. A diferença é que o voo
do pássaro salienta a liberdade do movimento espacial, e
o nado do peixe salienta o seu condicionamento. O mito
do peixe tem clima diferente do clima do mito do voo.
O homem distingue-se dos demais animais terres
tres por sua posição ereta: por ser seu· corpo todo uma
investida rumo ao espaço aberto. Tal posição permite
ao homem "conquistar o espaço" a partir do plano. (O
pássaro não precisa conquistar o espaço, está nele.) Mas a
posição ereta humana não resulta na libertação do corpo
humano todo em direção ao espaço. Abriu apenas o parâ
rnetro dos movimentos tridimensionais para várias partes
do corpo, e possibilitou às mãos a manipulação tridimen
sional de corpos.
Mãos são órgãos especificamente humanos, torna
dos possíveis graças à postura ereta, que se movimentam
no espaço com aproximada liberdade. Mãos vivem em cli
ma estruturalmente semelhante ao clima no qual vivempássaros em voo. O pássaro em voo é mão voadora, mão
liberta de corpo, corpo virado mão inteiramente. O mo
vimento da mão é apreensão, compreensão, concepção
e modificação dos corpos "em profundidade", isto é, no
espaço. O mito do voo é isto: liberdade para apreender,
compreender, conceber e modificar em profundidade.
Para os nossos antepassados, o pássaro era elo entre
animal e anjo. Não é anjo ainda, porque é sujeito aindaà atração da Terra. Levanta da Terra, concentra seu in
teresse sobre aTerra, volta para aTerra e faz sobre ela
o seu ninho. É mão ligada ao corpo da Terra por braçoinvisível. Anjo é pássaro extraterreno. Concentra o seu
interesse sobre o espaço e mora no espaço. É mão liber
ta de corpo. O mito do espírito-pomba. Anjo é ente queapreende, compreende, concebe e modifica "livremente":
36 Natllral:mente VILÉ,M FLUSSER 37
o espírito puro. Mão liberta do corpo é espírito puro. O
voa do pássaro é seu modelo.
Os voas a jato de São Paulo para Paris superam osonho de Leonardo, mas não atingem a dimensão "libertadora" do mito do voa. São feitos da bidimensionalida
de: ligam duas cidades em mapa plano. Os voas a jato de
Tóquio para Paris ligam as duas cidades pela rota polar e
impõem nova projeção plana do Globo. São mais "espiri
tuais", porque demonstram o caráter projetivo do plano,mas continuam feitos do plano. Mas as experiências do
Sky-Lab apontam além do pássaro em direção do anjo. Os
astronautas que vivem em gravitação zero e passeiam peIo
espaço procuram transformar em mãos seus corpos. Uma
descrição fenomenológica das suas experiências faz faltae seria reveladora. Cassiano Ricardo tem, neste sentido,
poesia chamada "Gagarin". Mas persiste o dito marxista:os sonhos são mortos quando realizados. Virar pássaro,
virar mão, virar anjo é matar a passaridade, a manidade, a
angelicidade. Porque o sonho da liberdade e do sublime,
quando realizado, revela o condicionamento como con
tradição da liberdade, e o cotidiano como contradição dosublime. Isto se refere tanto a astronautas ("anjos tecno
lógicos"), quanto à sociedade comunista ("sociedade de
anjos"). Mitos são realizáveis e matáveis, mas persistirão
enquanto pesos mortos depois de realizados.
Não podemos mais vivenciar o voa dos pássaroscomo o vivenciavam os nossos antepassados: como desejo
impossível. Vivenciamos o seu voa como desejo realizável,
parcialmente já realizado, e parcialmente em vias de rea-
lização em dimensões apenas vagamente sonhadas pelos
nossos antepassados. Voa de pássaro enquanto distância,
superação de barreiras, e também enquanto espiritualiza
ção pela tridimensionalidade. Mas ao vivenciarmos o voo
como desejo realizável, estamos desmistificando o desejosem nos libertarmos do mito. Não podemos ter mais de
sejos impossíveis. O que nos resta é o desejo impossível
de termos desejos impossíveis. Será visão apocalíptica ou
visão integrada a nossa visão dos pássaros em voa?
Chuva
A observação da chuva pela janela é acompanhadade sensação de aconchego. Lá fora, os elementos da natureza estão em jogo e sua circularidade sem propósito
gira como sempre. ~em está preso em seu círculo ficaexposto a forças incontroladas. Parte impotente do seugirar violento. Cá dentro, estão em jogo processos dife
rentes. ~em está do lado de dentro dirige os eventos. Eisa razão da sensação do abrigo: é a sensação de quem estána história e cultura, e contempla a turbulência sem significado da natureza. As gotas que batem contra a vidraça,projetadas pela fúria do vento, mas incapazes de penetrara sala, representam a vitória da cultura contra a natureza.
~ando observo a chuva pela janela, não apenas me encontro fora dela, mas em situação oposta a ela. Tal situação caracteriza cultura: possibilidade de contemplaçãodistanciada da natureza.
40 Natural:mente VILÉM FLVSSER 41
No entanto (e infelizmente), não é isto que temos
em mente ao falarmos em conquistas da cultura: estarmos
sentados em lugar seco e quente, contemplando a chuvafria, fumando cachimbo e ouvindo Mozart. Infelizmente,temos em mente coisas como "controle de chuva". Pre
tendemos mudar a estrutura dos eventos da natureza.
Romper sua circularidade, fazê-Ios correr linearmente
em busca de um propósito por nós escolhido. Chuva não
mais como fase da circulação eterna da água, mas como
fase de uma deliberada irrigação do meu campo. Se a chu
va tivesse sido vencida, não mais cairia como cai agora
("chuva de setembro, de todo setembro desde sempre"),
mas cairia como "esta chuva programada para as quatro
horas da tarde de hoje". Seria chuva histórica, porque
sujeita a programas, portanto, parte da cultura, não da
natureza. Vista da janela, tal chuva não se distinguiria da
quela que está caindo agora, e, no entanto, estaria caindo
do lado de cá, não de lá, da janela da cultura.Isto dá calafrios. Parece ser a mesma chuva, e não o é
por ser "cultura"? Não o é, não por ser diferente, mas porter estrutura diferente? A linear da história, não a circular
da natureza? E não adiantará olhá-Ia para saber-se isto?
~e coisa terrível! Não posso distinguir entre cultura e
natureza olhando para as coisas, mas apenas aprendendo
a respeito delas. Se olho pela janela e vejo chuva, cadeiras
e árvores, não posso saber quais dessas coisas são cultura,
quais natureza. Dependo de outros para dizer-me.
Não posso aceitar isto. Se isto for verdade, não terei
mais critério próprio para não importa que engajamen-
to. A Revolução Francesa passará a ser fenômeno histó
rico de acordo com uma explicação, e fenômeno natural
(como o é a migração das aves), de acordo com outra. Os
que nela se engajaram e por ela morreram o fizeram por
ingenuidade: não recolheram todas as explicações disponíveis. Não posso aceitar isso.
Voltarei a olhar a chuva pela janela para ver se ela
me diz algo a respeito. Eis o que está dizendo: aqui fora
está chovendo, lá dentro estás abrigado. Isto é a distin
ção categórica entre natureza e cultura. Natureza é como
chuva: provoca a sensação de impotência; cultura é como
a sala: provoca sensação do abrigo. Conquistar a natureza
não é mudar sua estrutura, mas seu clima. Mas isto pro
blematiza todo o progresso humano. Teremos conquis
tado a natureza "essencialmente" no curso, por exemplo,dos últimos 200 anos? No sentido de termos aumentado
o terreno da sensação do "estarmos abrigados"? Estará o
homem do século 20 se sentindo mais abrigado que o doséculo 18? Será mais" culto" neste sentido? Sem dúvida, a
observação da chuva exige que redefinamos nosso engajamento em cultura.
Romper a circularidade dos eventos naturais, fazê
los correrem linearmente em busca de propósito, progra
má-Ios: este é o engajamento recomendado pelos tecnocratas e pelo estabelecimento. Chuva, não mais circular e
boa para nada, mas chuva linear e boa para irrigar campos.
Eis o que dizem os tecnocratas: cultura é transformar algo
que é bom para nada em algo que é bom para propósito
deliberado. Cultura é injeção de "valores" no conjunto
42 Natural~!nente VILÉM FLVSSER 43
isento de valor chamado "natureza". Coisas são naturais
(dizem os tecnocratas) quando não permitem que sejam.
julgadas "más" ou "boas". E coisas são culturais quandosão "boas". Por isso, as ciências da natureza são "isentas de
valores" (wertftei): tratam de coisas isentas de valores. E
os tecnocratas continuam: o verdadeiro engajamento em
cultura é engajamento em produção de "bens", isro é, de
coisas "boas". Os tecnocratas estão enganados e estão nos
enganando.
Na realidade, quem está "isento de valor" (wcrtjrei) é
a tecnologia. As coisas são produzidas pela técnica, estassim, não são nem más nem boas. As coisas da natureza, es
tas são todas más, porque me condicionam e me tornam
impotente. Se não fossem más as coisas da natureza, não se
explicaria o engajamento em cultura. É sempre engajamento contra a natureza. As coisas da técnica são eticamente
neutras, e passam a ser boas se me abrigam, e más, se mecondicionam. Produzi-las é necessário, mas não basta. É
necessário, porque resulta em coisas potencialmente boas.
Mas não basta, porque pode resultar em coisas más se per
dermos a consciência da cultura. Se "progresso" for, como
o afirmam os tecnocratas, um processo ao longo do qualeventos naturais são transformados em eventos lineares,
então "progresso" (e "ordem") não basta. O que urge, para
que "progresso" tenha sentido, é manter e rennar a capa
cidade crítica dos valores (a capacidade ética, política, em
suma: liberdade). T ecnocratas não bastam.
A chuva que observo pela janela é má (e não importa
que alguns românticos o contestem). É má, porque cai em
cima de mim sem me ter consultado. É esta a razão por
que me sinto bem ao observá-Ia: oponho-me a ela. Chu
va transformada em irrigação programada não é nem má
nem boa (e não importa que os tecnocratas o contestem).
Não é nem má nem boa, porque o seu valor dependerá
daquilo que irriga. E será boa apenas se aquilo que irriga
for coisa que me abriga. Mas se aquilo que a chuva irriga
for coisa que me condiciona, a programação da chuva terá
produzido um mal pior que os males da natureza. T ecno
eratas não apenas não bastam, mas podem vir a ser peri
gosos. O "progresso", se não for controlado por crítica de
valores, pode ser mais perigoso que o imobilismo.
A chuva que observo pela janela me dá sensação boa,
porque me sinto libertado dela. Estou sentado em sala
quente e seca, posso contemplar a chuva. Posso observá
Ia, não apenas para depois manipulá-Ia, mas também para
julgá-Ia. Estou em situação que permite juízos de valores.
Em situação de "disponibilidade" com relação à chuva.
Em situação de liberdade. Posso convidar outros para en
trarem em minha sala, a nm de discutirmos o problemada chuva. Lá fora está chovendo, e nós cá dentro, ao abri
go, discutindo como manipular a chuva para que seja boa.
Isto é que é cultura. Não chuva manipulada e programa
da, mas chuva sujeita à discussão livre. No fundo, o que
é bom é apenas a liberdade. As coisas são boas apenas na
medida em que contribuem para me libertar. E isto é exa
tamente também a medida da cultura. Tecnologia ainda
não é cultura. E tecnocracia (governo da tecnologia não
controlado) é anticultura. Em suma: cultura é tecnologiamais liberdade.
44 Natural~mente
A chuva que observo pela janela é que me ensinaisto. Ensina que sou eu e os próximos quem confere valor e dá significado. Cultura não é questão de chuva (sejacontrolada e programada ou não), mas é questão da sensação que provoca nos que a observam pela janela. Emoutros termos: se observo a chuva pela janela, vejo que aúnica justificativa de engajamento em cultura é aumentar o terreno da liberdade (aumentar a sala a partir daqual observo a chuva). A chuva ensina que a dignidadehumana não se resume na luta contra a natureza. Há,
entre natureza e cultura (entre chuva e sala), uma regiãoeticamente neutra, mas potencialmente perigosa, a regiãoda programação isenta de valores. A região do estabelecimento não-político (dos técnicos de irrigação de campos). A dignidade humana exige também que tal regiãoseja apropriada. Mas na situação atual é obviamente maisfácil lutar contra a natureza que apropriar o estabelecimento. Em consequência, há sempre menos chuva natural, sempre mais chuva programada, e sempre menos salasa partir das quais não importa que tipo de chuva possaser contemplado. Se isto continuar assim,o resultado seráeste: estaremos todos expostos sem interrupção a chuvastorrenciais programadas, mas proclamaremos aos quatroventos (que uivarão em torno de nós em coro programado) que estamos sendo irrigados.
o cedro no parque
Fato curioso: árvores são quase invisíveis.Toda tentativa de contemplá-Ias o prova, Há, entre contempladore árvore, névoa densa de múltiplas camadas. A luz do farolda intenção contempIativa é refletida por tal névoa, e a
contemplação se transforma em reflexão sorrateiramentee sem que o contemplador possa interferir nisto. Há algoem torno de árvores que, por ser nebuloso, é misterioso.Se olho peIa minha janela e procuro contemplar o cedro
que se ergue, majestoso, no centro do meu parque angevino, devo admitir este fato como ponto de partida que me
é imposto pela situação na qual me encontro.Por certo, árvores são parcialmente invisíveis por
razões por assim dizer físicas e biológicas, já que a suamaior parte está escondida no solo. Tal fato corriqueiroe aparentemente óbvio tende, no entanto, a ser esquecido por muitos daqueles pensadores que tomam árvorespor modelos de estruturas. (E árvores de fato são modelos
46 Natural:mente VILÉM FLUSSER 47
preferidos.) Darei um único exemplo. Toda uma cosmo
visão e filosofia do século 19 (a "biologizante") concebe
o mundo como processo que tende a se ramificar em
obediência a um "principio" que Schopenhauer chamoude "principium individuationis". O sistema darwiniano
ilustra bem tal estrutura dinâmica, para a qual a "árvore
genealógica" serviu de modelo. Tal cosmovisão e filosofia
é um historicismo que se oferece como alternativa à visão
dialética da história e surgiu, efetivamente, em oposição a
Hegel. Mas é claro e mais que óbvio que o modelo de tais
sistemas não é a árvore toda, mas apenas aquela parte da
árvore que é visível acima do solo. ~cm toma a árvoretoda por modelo de sistema, deve haver-se com estrutura
que se ramifica em duas direções opostas. De maneira quea árvore toda é modelo de sistema dialético no mais exa
to significado do termo. Os pensadores darwinianos do
século 19 se esqueceram da parte subterrânea da árvore(o que, obviamente, em nada afeta a "verdade" dos seus
enunciados).
Mas não é tal "invisibilidade parcial" que se interpõe
entre a árvore e o seu contemplador da maneira nebulosa
mencionada. São fantasmas, ectoplasmas, espectros e cor
pos etéreos que pairam em torno de árvores e as tornaminacessíveis. Tais divindades arbóreas habitam todas as
mitologias, inclusive a judaica e a grega, fontes inescapá
veis da nossa visão do mundo. Mencionarei alguns desses
fantasmas. O mais próximo do contemplador e, portan
to, o mais fácil a ser removido é o espectro do "pulmão"
que encobre a árvore enquanto fenômeno concreto. Não
vejo árvore, vejo pulmão verde, e vejo tal pulmão tanto
morfológica quanto funcionalmente. Um pouco mais
próximo da mesma árvore, mas ainda facilmente remo
vível, está o fantasma do "abrigo". Não vejo árvore, vejo
guarda-chuva, tanto em sentido físico quanto metafórico
do termo. Outros espectros se agarram à árvore bem mais
firmemente. Por exemplo, os espectros da "fertilidade", o
d ., h 11 " d'" d"d "(111' d .o paus , o a arvore a VI a . ~an o taIS espectros
são penosamente removidos, e a essência da mesma árvo
re parece querer revelar-se, verifica-se que ainda não é a
arvoridade que se mostra, mas alguns preconceitos ainda
mais profundos, e que talvez nem sequer tenham nome.Of' 1-"1 ,,,, ·ddato e que a re açao )omem -- arvore e carrega a e
tanta carga imemorial (e talvez consequência da "origem"
arbícola humana), que a tentativa de captar a essência da
árvore geralmente fracassa. Os preconceitos são tantos
que se recusam a ser postos entre parênteses e eliminados
provisoriamente.
Não procurarei, portanto, captar a essência do cedro
no meu parque, mas apenas um único aspecto seu. Este: o
clima estranho e estrangeiro que irradia. Já que não capta
rei a cedridade do cedro, talvez captarei algo da estranheza
e estrangeiridade? Afinal, sou tão estranho e estrangeiro
no meu parque angevino quanto o é o cedro. Não poderátal comunhão do "estar-no-mundo" meu e do cedro for
mar base para uma visão intuitiva? Ou estarei, desde já,
antropomorfizando o cedro? Estarei, desde já, caindo na
armadilha de um dos espectros, o "antropomórfico", que
encobrem o cedro? Na armadilha na qual caiu, e na qual
48 Natl1ra1:mente VILÉM FLUSSER 49
morreu, o menino do "Erlenkoenig" de Goethe? Parece
ser mais prudente procurar captar a estrangeiridade do
cedro em forma de perguntas, não de afirmativas. ~emsabe, certas respostas poderão ser provocadas no próprio
cedro? Perguntas provocantes que fazem falar o cedro.
Primeira pergunta: Como sei que o cedro é estran
geiro? Resposta: sei que aquela árvore lá é cedro, e que
cedros são plantas nativas do Líbano, não da França. Tal
resposta não serve. Não foi dada pelo cedro, mas por meus
livros escolares. Atenção, no entanto. A resposta não é in
teiramente impertinente. "Cedros do Líbano": não signi
fica isto o Rei Salomão e a construção do Templo? E não
há algo de tal significado em torno do cedro no parque?
Ou não passará isto de um de tais espectros?
Reformularei a primeira pergunta: Como o cedro
me diz ser ele estrangeiro? De várias maneiras. O ser ver
de é diferente do verde em torno. A sua "Gestalt" pira
midal e hierarquicamente escalada destoa das "Gestalten"cônicas das árvores em torno. A forma torturada dos seus
ramos, o elemento caótico nele que não obstante é inse
rido em totalidade harmônica, os distingue radicalmente
das copas suaves em torno. Os seus pinhões monumen
tais não têm paralelo nos frutos do parque. O seu tronco
elefantino soa como trombeta em orquestra de cordas.
Mas, principalmente, a sua presença domina o parque,
não apenas pela sua grandeza, mas também por algo que
deve ser chamado "majestade". Estas são respostas dadas
pelo próprio cedro e devem ser aceitas.
Segunda pergunta: Aceitando embora tais respostas,
como sei que significam a "estrangeiridade" do cedro?
Não significarão, pelo contrário, um aspecto da sua "ce
dridade"? Em outros termos, não terá a presença do cedro
no seu Líbano nativo o mesmo clima que tem no parqueangevino? Se formulo a pergunta assim, o cedro se cala.
Necessariamente, porque o cedro está aqui e não no Líbano, e não pode falar em nome de "outro cedro". Formula
da assim, a pergunta é tipicamente insignificativa. Pequei,
ao ter formulado a pergunta assim, contra o primeiromandamento da honestidade: "Não tirarás fenômenos
do seu contexto!" A pergunta deve ser reformulada, paraser significativa.
Reformularei a segunda pergunta: As respostas queo cedro deu à primeira pergunta significam que ele se dis
tingue do seu contexto por ser cedro ou por ser estran
geiro? A resposta que o cedro dá a tal pergunta pode serresumida assim: Sou estrangeiro por ser cedro. Sou fiel amim mesmo, na minha cor, na minha "Gestalt", nos meus
pinhões, não me assimilo ao parque. Pois exatamente poristo mesmo domino o parque. Centralizo o parque, dou
lhe forma e sentido. O parque é o parque que é graças a
mim: parque em torno de cedro. Não fosse eu cedro, portanto, estrangeiro no parque, o parque não teria sentido.Eu sou o ruído do parque que transforma a sua redundân
cia em informação significativa. Destoo, e tal dissonância
é o núcleo da música do parque. É isto o significado das
minhas respostas: Sou estrangeiro por ser cedro, e é apenas com relação à minha estrangeiridade que o resto do
parque se torna nativo. "Ser estrangeiro" é, pois, no hllldo, isto: revelar ao contexto que ele próprio não é estran
geiro. Sou estrangeiro não em mim, mas para o parque.
50 Natural:mente VU ..ÉM FLUSSER 51
Respostas muito problemáticas estas. Vêm formuladas em discursos dos quais conheço bem a origem. Sãoos discursos da filosofia existencial, da teoria da informa
ção, da musicologia. Pode o cedro recorrer a tais tipos dediscurso? Perfeitamente. Com efeito, não pode, a não serrecorrer a tais tipos de discurso. Porque o cedro se dápara mim, e se lhe permito falar, é para que fale dentrodos meus discursos. Com efeito, as respostas à minha primeira pergunta também foram articuladas por discursomeu, embora tenham sido aparentemente mais concretas. Apenas o discurso de tais respostas foi o da linguagemcorriqueira. De modo que sou obrigado a aceitar tambémas respostas à minha segunda pergunta.
Provocam terceira pergunta: Se o cedro é presença estranha e estrangeira no parque, porque dele destoapor sua fidelidade à cedridade, como sei que é o cedroque é estrangeiro, e não o parque? Em outros termos: seser estrangeiro é um ser relativo a outro ser, não haveráreversibilidade? O cedro é estrangeiro para o parque e oparque estrangeiro para o cedro? Uma resposta se impõeimediata e espontaneamente: sei que o cedro é estrangeiro e o parque não é, porque o cedro é uma única árvore, eo parque são muitas. Tal resposta quantificante deve serrecusada, embora, como o são todas asquantificações, sejarazoável. Deve ser recusada, porque não fere a essência da
estrangeiridade. Foi dada, com efeito, não pelo cedro, maspelo meu raciocínio indutivo e enumerativo. Devo reformular minha pergunta, e dirigi-Ia, não ao cedro, mas aoparque. Por exemplo, à nogueira vizinha do cedro.
Reformularei a terceira pergunta: Como sei que anogueira (e, como ela, o parque todo), é nativa do Anju,e desta forma torna dialeticamente o cedro estrangeiro?Uma torrente de respostas jorra da nogueira. O seu verdede verão com leve suspeita de ferrugem outonal articulaa primeira metade de setembro, "na qual estamos". A suacopa cônica é elemento, mas também resumo, da "Gestalt" da paisagem toda. A riqueza das nozes que carregaé testemunho da fertilidade onipresente do Anju e daFrança. O clima pacífico, a um tempo temperado e ricode seivavital que irradia, é o clima do ambiente todo, talcomo penetra os poros, os pulmões, as sensações, e atéos pensamentos de todos aqui presentes. O Anju todo,a França toda estão na aura da nogueira, e basta contemplar a nogueira com suficiente paciência para descobrir aessência da França. As respostas múltiplas que a nogueiraestá dando à minha pergunta podem ser assim resumidas:Sou nativa por ser nogueira, e sou nogueira por ser nativa, e não há nisto nenhum problema. Não preciso afirmarminha nogueiridade, nem ser fiel a ela. Isto tudo está sedando por mim, em torno de mim, e por causa de mim,com toda espontaneidade e naturalidade. E isto é, possivelmente, um aspecto da "natureza": ser assim, espontaneamente e sem problema. A nogueira (e o parque todo)é natureza angevina. E, em contraste com isto, o cedronão é natureza, mas cultura angevina É cultura, porque seafirma, é fiela sipróprio, e dá sentido ao parque todo. Emsuma, é estranho e estrangeiro.
Pois isto é resposta surpreendente. (Devo confessarque me surpreendeu ao ter se formulado no curso des-
52 NaruraI:mcnte
te ensaio. Não esperava por ela.) A resposta da nogueiraprovoca redefinição dos conceitos "natureza" e "cultura"em termos diferentes dos costumeiros: Natureza como
minha circunstância espontânea e isenta de problemas, écultura como presença estranha e estrangeira na minhacircunstância, que se auto afirma e, portanto, dá sentidoà natureza. Isto precisa ser ruminado em outra oportunidade. O que importa, no presente contexto, é isto: Meu
conhecimento prévio (botânico ou outro) a respeito decedro e nogueira não toca o problema da estrangeiridade.Por exemplo: a nogueira pode perfeitamente ser originária de florestas distantes e ter sido importada para cá,por exemplo, pelos celtas. Não obstante, é essencialmen
te nativa. O cedro pode ter-se perfeitamente adaptado à
circunstância angevina, e pode, inclusive, vingar melhoraqui que no Líbano nativo, e vingar melhor que a próprianogueira. Não obstante, é essencialmente estrangeiro.Preconceitos não ferem essências,as quais se revelam apenas em contemplações como é esta do meu parque. Acabade se revelar um aspecto da essência da estrangeiridade.
Da seguinte forma: Estrangeiro (e estranho) é quemafirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dásentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o
domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. Ohomem é estrangeiro no mundo.
Vacas
São máquinas eficientes para a transformação deerva em leite. E têm, se comparadas com outros tiposde máquina, vantagens indiscutíveis. Por exemplo: sãoautorreprodutivas, e quando se tornam obsoletas, a sua"hardware" pode ser utilizada na forma de carne, couroe outros produtos consumíveis. Não poluem o ambiente,e até seus refugos podem ser utilizados economicamentecomo adubo, como material de construção e como com
bustível. O seu manejo não é custoso e não requer mãode obra altamente especializada. São sistemas estruturalmente muito complexos, mas, funcionalmente, extremamente simples. Já que se autorreproduzem, e já que,portanto, a sua construção se dá automaticamente semnecessidade de intervenção de engenheiros e desenhistas,esta complexidade estrutural é vantagem. São versáteis,já que podem ser utilizadas também como geradores deenergia e como motores para veículos lentos. Embora te-
54 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 55
nham certas desvantagens funcionais (por exemplo: suareprodução exige máquinas em si antieconômicas, "touros", e certos distúrbios funcionais exigem intervenção deespecialistasuniversitários, de veterinários, caros), podemser consideradas protótipos de máquinas do futuro, queserão projetadas por uma tecnologia avançada e informadas pela ecologia. Com efeito, podemos afirmar desde jáque vacas são o triunfo de uma tecnologia que aponta ofuturo.
Se considerarmos o seu "design", a nossa admiraçãopelo inventor da vaca ainda aumenta. Embora se trate
de máquina altamente automatizada e controlada porcomputador instalado dentro da própria máquina (cérebro), e embora o seu funcionamento esteja garantidopor sistema cibernético de equilíbrios elétricos e químicos altamente refinados, a forma externa da máquina é desimplicidade e economia de elementos surpreendente ealtamente satisfatória esteticamente. A impressão que avaca deixa é a de uma obra bem integrada em si e dentrodo seu ambiente. O seu "designer" não se deixou influenciar por tais ou quais tendências estéticas da atualidade(embora possamos descobrir no desenho da vaca certoselementos barrocos indisfarçáveis, e embora seu desenhis
ta traia a influência de certas tendências biologizantes doséculo passado), mas o "designer" seguiu intuição estética caracteristicamente sua. Por exemplo: a mobilidadeelegante do rabo contrasta com a maciça imobilidade doresto da obra e cria tensão apenas sugerida por Calder eseus seguidores. Mas o que impressiona mais no "design"
da vaca é isto: a surpreendente gama de variações que oseu protótipo permite. O protótipo é fundamentalmente simples (tem sido elaborado, por exemplo, por Picassonas Tauromaquias), mas tal simplicidade mesma permiteum número grande de estereótipos diferenciados. Tratase, no protótipo da vaca, de autêntica obra aberta. Há,entre os estereótipos, os que se adaptam a mentalidadesnacionais e até regionais (vaca suíça, holandesa, inglesa),os que se adaptam paisagisticamente (vacasdos Alpes, dosprados, das estepes), e até estereótipos baratos destinadosaos povos subdesenvolvidos (zebu, vaca centro-africana).
Isto, no entanto, não esgota a "mensagem estética"da vaca. Os estereótipos são fornecidos ao consumidoracompanhados de um "modo de usar" que equivale a umconvite de participação em jogo. O comprador de vacaspode, se assim desejar, projetar seu próprio modelo, "cruzando raças". De maneira que a compra de vaca não condena o comprador a um consumo passivo, mas abre espaço a uma participação ativa no "jogo das vacas".De modoque finalmente a teoria dos jogos ficou absorvida significativamente pela tecnologia. Podemos vislumbrar um estágio futuro, no qual o progresso tecnológico não seráprivilégio de alguns especialistas apropriados pelo aparelhoadministrativo, mas jogo do qual as "massas"participarãoativamente, variando protótipos livremente. O inventorda vaca provocou autêntica revolução tecnológica, tantoem sentido funcional quanto estético, que abre horizontes para um novo "estar-no-mundo" do homem do futuro. Conseguiu isto ao ter sintetizado os conhecimentos
56 Natural:mcnte VIL.ÉM FLUSSER 57
mais avançados da ciência e os métodos mais refinados da
tecnologia com sensibilidade estética aguda e com visãoclara estrutural, cibernética e informada pela teoria dosjogos. Não resta dúvida: a vaca representa fundamental"decolagem".
Mas não deixa de representar também perigo e ameaça. Na medida em que vacas se tornarem sempre maisnumerosas e baratas (processo inevitável dado o ímpetodo progresso) e outras máquinas de tipo semelhante surgirem, ocorrerá transformação sutil, mas profunda, noambiente humano. As máquinas atuais, às quais a humanidade vem se adaptando em processo penoso desde a Revolução Industrial, serão paulatinamente substituídas pormáquinas tipo "vaca".Já que tais máquinas impõem umritmo vital diferente e toda uma práxis diferente, surgiráa necessidade de readaptação que terá, necessariamente,por consequência, nova alienação individual e coletiva. A
fantasia pode prever não apenas dissolução das grandescidades e formação de pequenos aglomerados em tornode vacas (a serem chamadas, por exemplo, "aldeias"), masem consequência disto, também, a dissolução da estrutura básica da sociedade e sua substituição por outra apenasimaginável. No entanto, o pior não será isto.
É conhecida a tendência humana para "espelhar-se"nos seus produtos. O processo é aproximadamente este: ohomem projeta modelos para modificar a realidade. Tais
modelos são tomados do corpo humano. Por exemplo: otear tem por modelo o dedo humano, e telégrafo o nervohumano. O modelo é realizado na forma de um produto.
Em seguida, o modelo humano por trás do produto é esquecido, e o produto se estabelece,por sua vez, em modelo para o conhecimento e comportamento humano. Porexemplo: as máquinas a vapor são tomadas por modelosdo homem no século 18, asfábricas químicas no século 19e os aparelhos cibernéticos atualmente. Tal retroalimen
tação nefasta entre o homem e seus produtos é aspectoimportante da alienação e autoalienação humana.
Pois a paulatina substituição das máquinas atuaispor máquinas tipo "vaca"poderá resultar em tal identificação "homem = vaca". O homem pode não reconhecerna vaca o seu próprio projeto, pode esquecer que a vacaé resultado de sua própria manipulação da realidade em
obediência a um modelo seu, e aceitar a vaca como algode alguma forma "dado" (por exemplo: pode aceitar avaca como uma espécie de "animal", portanto, parte da"natureza"). Em tal caso, a vaca assumirá autonomia on
tológica e epistemológica, e virará, por assim dizer portrás das costas do homem, modelo do próprio homem.Justamente por tratar-se de máquina altamente sofisticada e antropomorfa (todas as máquinas são, aliás, antropomorfas, pela razão indicada), a essência "máquina" davaca pode vir a ser encoberta. Em nada adiantarão, em
tal caso, "explicações genéticas" da vaca, explicações queprovarão ser a vaca resultado de manipulação humana. Oimpacto da vaca se dará em nível existencial, no contato
diário com ela. Em tal nível, todas as "explicações"se tornam irrelevantes (como são irrelevantes tais "explicações"atualmente para os que têm contato diário com compu-
58 Natural:mente
tadores). A mera presença cotidiana da vaca exercerá sua
influência "vaquificante". A fantasia se recusa a imaginar
a consequência disto.
No entanto, é preciso enfrentar o perigo. A fanta
sia deve ser forçada. Revela a visão de uma humanidadetransformada em rebanho de vacas. Uma humanidade
que pastará e ruminará satisfeita e inconsciente, consu
mindo erva, na qual uma elite invisível de "pastores" tem
interesse investido, e produzindo o leite para tal elite. Tal
humanidade será manipulada pela elite de maneira tão
sutil e perfeita que se tomará por livre. Isto será possível
graças à automaticidade do funcionamento da vaca. A liberdade ilusória encobrirá a manipulação "pastoril" per
feitamente. A vida se resumirá às funções típicas da vaca:
nascimento, consumo, ruminação, produção, lazer, re
produção e morte. Visão paradisíaca e terrificante. ~em
sabe, ao contemplarmos a vaca, estamos contemplando ohomem do futuro?
O futuro é, no entanto, apenas virtualidade. Ainda é
tempo de agirmos. O progresso não é automático,mas resultante de vontades e liberdade humanas. O
progresso rumo à vaca pode ser ainda sustado. Não, porcerto, "reacionariamente". Não pela tentativa de negar as
vantagens óbvias da vaca e a força da imaginação criativa
que nela se manifesta. Mas pela tentativa de apropriar avaca às verdadeiras necessidades e aos verdadeiros ideais
humanos. A vaca é, sem dúvida, ameaça. Mas também desafio. Deve ser enfrentada.
Grama
Na frente da minha casa cresce grama. Não é curioso
isto? ~ero dizer: não é curioso o verbo ao qual recorri
para dizer que há grama na frente da minha casa? Por que
não digo que na frente da minha casa crescem, também,
formigas e um gato? E por que não há verbo que descreva
a ocorrência específica de grama na frente da minha casa?
Por que não posso dizer "grameia", como digo "chove"
ou "neva"? E se digo que há gramado na frente da minha
casa, estarei afirmando algo estruturalmente idêntico às
afirmativas de que há, também, formigueiro e chuva na
frente da minha casa? Obviamente, a língua portuguesa
tem um jeito de impor sobre o meu pensamento determi
nadas formas que me fazem captar os fenômenos do mun
do sob aspectos determinados por tais formas. Capto a
grama como algo que cresce, e isto é o essencial da grama.
No caso das formigas e gatos, o seu crescer é captado por
Narurabnenrc VILÉM FLUSSER 61
mim como acidente. E capto a grama como elemento deum coletivo (O gramado), que é essencialmente diferente
de coletivos tanto do tipo "formigueiro" quanto do tipo"chuva". Deposito confiança na "sabedoria" escondida na
língua: creio que a língua "sabe" por que impõe tais formas sobre o meu pensamento. Creio que a "essência" dagrama é reveladapara mim, enquanto "crescer" e enquanto elemento de determinado tipo de coletivo, através dasformas da língua portuguesa. Sou obrigado a crer nisto.Do contrário, cairia em mutismo ou em excentricidades
linguísticas do tipo: "na frente da minha casa está paradoum exército de gramas". Mas, ao dizer isto, tropeço nocaminho do meu discurso. ~e excentricidade linguística foi esta? O exército parado de gramas não captará,ele também, um aspecto da "essência" do meu gramado,aspecto este escondido pela língua corriqueira? E nãoterá isto a ver com o famoso "poder revelador da poesia"?Não acabo, por acaso, de dar palavra à grama, num sentido husserliano, a saber: dar "nova" palavra à grama? Nãoacabo de ter permitido à grama articular-se, para mim, deuma maneira portuguesa relativamente nova? Não darei,a tal pergunta, nem resposta afirmativa nem negativa a estas alturas. Registrarei a pergunta.
N a frente da minha casa crescegrama. Como cresce,um pouco mais adiante, trigo. E como cresce, no centroda cena vista da minha janela, um cedro frondoso. "Crescer" será pois a forma na qual a língua capta a essênciada planta? Erro. A grama na frente da minha casa crescemuito mais como crescem os cabelos na minha cabeça, e
muito menos como cresce o cedro. A essência da grama,
revelada pela língua, não é a sua "plantidade", mas o fatode que a grama pode ser deixada crescer ou pode ser cortada. A essência da grama é sua cortabilidade. É espéciedo mesmo gênero ao qual pertencem também cabelose unhas. Gênero este essencialmente manipulável por
manicure. A técnica adequada à manipulação da gramaé ensinada nos salões de beleza. O crescer da grama é essencialmente diferente do crescer do cedro (e também do
trigo). O critério de tal diferença essencial está na práxis.O barbeiro é quase competente para a grama, não para ocedro. Mas tal diferença essencial é escondida pelo verbo
"crescer" da língua portuguesa. ~em também isto sejaregistrado.
A cortabilidade da grama (que lhe é essencial) estáligada, aparentemente, ao caráter do coletivo do qual éelemento. Coletivos do tipo gramado, cabeleira e barbasão cortáveis, coletivos do tipo trigal são colheitáveis, ecoletivos do tipo pinheiral são manipuláveis de outra maneira. (Para não falar em coletivos do tipo formigueiro e
família de gatos.) Mas acaso unhas não serão igualmentecortáveis, e não será isto o "essencial" das unhas? ~al éo seu coletivo, "unhal", "unhado" ou "unheiro"? Atentativa de correr ao socorro da "sabedoria" escondida
na língua portuguesa falha: a essência da grama é escondida pelo verbo "crescer", até se forçarmos ligação entretal verbo e o substantivo "gramado". Devemos constatarum tanto extralinguisticamente que a grama pertence,essencialmente, à classe dos fenômenos cortáveis, à qual
62 Natural:mente VILÉM F.LUSSER 63
pertencem também o cabelo e a unha, mas não o trigo, a
formiga e o gato. (Embora tal classificação se torne possí
vel apenas graças à língua e por intermédio da língua.) Oque surpreende é o fato de que tal classificação não coin
cide de maneira alguma com as classificações científicasditas "objetivas".
Tais classificações objetivas (como aliás todo o discurso científico) tendem a encobrir a essência dos fenô
menos que explicam. Dizem, por exemplo, que grama
e trigo são parentes próximos e parentes longínquos do
cedro, mas que seu parentesco com formigas é muitoremoto, e que sua relação com cabelos e unhas é hierar
quicamente confusa. É que a objetividade científica é, na
realidade, resultado de determinado ponto de vista sobreo mundo, ponto de vista este tomado inconscientemen
te por preferencial sem justificação explícita, e assumido
inconscientemente. Por certo, o ponto de vista científico
não pode ser o assumido por Deus "sub specie aeterni".Porque sob tal ponto de vista a cortabilidade se revela es
sência de numerosos outros coletivos: dos pinheirais, dos
formigueiros e da humanidade. Somos, de tal ponto de
vista, essencialmente tão cortáveis quanto o é a grama. Se
assumirmos ponto de vista tão distanciado, não apenas
a humanidade se revelará espécie de gramado, mas toda a
biosfera espécie de musgo cortável a cobrir a superfície doplaneta T erra. Tal ponto de vista distante, no entanto, não
é nem científico nem existencialmente relevante. Apenas
distâncias mensuráveis em unidades temporais e espaciais
compatíveis com as dimensões humanas são significativas.
Pontos de vista sob os quais a diferença entre gramado e
humanidade se dilui são desumanos, portanto, pecamino
sos. Argumento apreciável contra certas religiosidades.Grama é essencialmente cabelo da Terra, e cabelo es
sencialmente grama do corpo. De que ponto de vista? Do
ponto de vista do barbeiro e jardineiro. Tais pontos de
vista não foram assumidos aleatoriamente, foram impos
tos pelo fenômeno mesmo. Não podemos assumir não
importa que ponto de vista perante a grama. Não, por
exemplo, o ponto de vista do geólogo ou do banqueiro.
Embora estes pontos de vista também abranjam grama e
cabelo, não captarão o que é essencial em ambos. Para ge
ólogos e banqueiros grama e cabelo não ocupam o centro
do interesse; para barbeiros e jardineiros ocupam. A es
sência se revela apenas quando o fenômeno contemplado
ocupa o centro do interesse.
Grama é essencialmente cabelo da Terra. É proble
ma, como o é não importa que fenômeno nos cerca. O
problema da grama é este: deixar crescê-Ia ou cortá-Ia. Éproblema prático, prova que grama é fenômeno concre
to. Não se trata de explicá-Ia, trata-se de modificá-Ia. Não
é problema do tipo: "qual a distribuição dos números
primos na série natural de números?", porque provoca
práxis. Não, obviamente, de um ponto de vista objetivo,
mas do ponto de vista do jardineiro. Objetivamente, o
problema da cortabilidade da grama surgirá muito tarde
no discurso que explica a grama. Primeiro, surgirão pro
blemas relativos a,morfologia, metabolismo, genética etc.
da grama. Prova que o ponto de vista objetivo (científi-
64 Natural:mcnre VILÉM FLL'SSER 65
co) abstrai e desconcretiza a grama. O ponto de vista dojardineiro capta a essência da grama concreta. Mas é fatoque o jardineiro pode cortar a grama cientificamente. Aciência é uma volta longa que passa pelos labirintos daabstração para reencontrar o fenômeno concreto do qualpartiu. Tal volta enriquece a práxis (e avisão) concreta dojardineiro. Mas quando se trata de descobrir a essênciadagrama (sua cortabilidade), melhor é pôr entre parêntesestal volta.
Grama é essencialmente cabelo da Terra. A decisão
de deixá-Ia crescer ou cortá-Ia depende, em parte, da situação cultural na qual nos encontramos. É, em parte,questão de moda. "Beautify America, have a hair cut"(embeleze a América, corte os cabelos), implica também: ("corte ou não teu gramado"). "The Greening ofAmerica" (O tornar verde a América) é visão da Améri
ca do ponto de vista do jardineiro e barbeiro. Tal pontode vista pode ser descoberto, aliás, em muita especulaçãoda Nova Esquerda (Marcuse), e de uma "filosofia" inspirada pela ecologia. Há esteticismo implícito em muitasdessas tendências novas, porque tais tendências nascemem salões de beleza. Para a Nova Esquerda, o proletárioportador do futuro não é, aparentemente, o metalúrgico,mas o barbeiro. Será efetivamente novo tal esteticismo?
Ou não será romântico, com barbas (e gramados) longas? Crítica impertinente. Tudo o que é novo tem, emcerto sentido, barba longa. "Nil novi sub sole." Mas nãoesqueçamos que a essência da barba é sua cortabilidade.Não cortar a grama, deixar crescê-Ia,está atualmente na
moda. Dizem que disto depende a própria sobrevivênciada humanidade. Abaixo o aparelho cortador de grama,porque abaixo todo aparelho! O ponto de vista do barbeiro (ou do antibarbeiro, que é a mesma coisa) contestao ponto de vista do aparelho (o do operário e dono defábrica de automóveis e cortadores de grama). As barbaslongas de ambos os pontos de vista são, no entanto, cortáveis. Corno é cortável a barba longa da contradição entreo ponto de vista ético da fábrica de cortadores e o ponto
de vista estético do jardineiro. ~em corta barbas assimtranscende modas (é transmoderno). Estruturalista? Sim,
mas estruturalista-barbeiro que precisa cortar sua própriabarba. Cortar a própria barba: práxis reflexiva?
Grama é essencialmente cabelo da Terra. Deixar
crescê-Ia é permitir à Terra que seja. Atitude chthonica,telúrica etc., portanto. Atitude contrária à repressão urânica (espiritual) da Terra exercidapelo aparelho (de cortargrama). Cabelo é essencialmente grama do corpo. Deixarcrescê-Io é permitir ao corpo que seja. Atitude contráriaà repressão do corpo pelo aparelho. O corpo-Terra, conjunto não-histórico em revolução contra a história promovida pelo espírito-aparelho. Rousseau-Marx-Marcuse? Não, fundamentalmente. Fundamentalmente: salãode beleza. Esteticismo nietzschiano em rebelião contra o
"niilismo" do judeu-cristianismo. Urge definir melhor arelação entre grama e Terra, e entre cabelo e corpo, paradescobrir fenomenologicamente a Terra por trás da grama e o corpo por trás do cabelo. Grama e cabelo "cobrem"
Terra e corpo. É por culpa da grama e do cabelo que não
66 Narural:menre
os vemos. Será grama ainda Terra (Magna Mater, úteroetc.) e será cabelo ainda corpo (conjunto de experiênciasconcretas e de gestos)? Não, porque grama e cabelo sãoessencialmente cortáveis, e Terra e corpo essencialmente incortáveis. Terra não é cortável, porque fundamenta.Corpo não é cortável, porque está sempre presente comigo. Terra e corpo são incortáveis, porque não estão notempo. Daí a sua não-historicidade. Deixar crescer gramae cabelo é ainda decisão histórica (espiritual, enquadrada no aparelho): é deixar encoberta a não-historicidadeda Terra e do corpo. Possivelmente, o método oposto émais indicado? Cortar grama e cabelo tão radicalmenteque apareça a Terra e o corpo? Fazer funcionar o aparelhoaté que ele próprio se leve ao absurdo? O barbeiro comoproletário portador do futuro, no sentido de "revelador"da concreticidade não-histórica da Terra e do corpo? Ouserá isto colaborar com o aparelho e serpor ele absorvido?
Não: é apropriar o salão de beleza.As falhas da "sabedoria da língua" com relação à gra
ma foram devidamente registradas. É que a língua fazparte do aparelho cortador de grama. É possível transcendera língua e o aparelho. A visão fenomenológica o permite.Mas depois é necessário recorrer novamente à língua e aoaparelho. A visão fenomenológica o permite. Mas depoisé necessário recorrer novamente à língua e ao aparelho,para forçá-Ios a funcionarem contra si próprios e em favor da essência da grama. Programa razoáveL
Dedos
Procuro observá-Ios enquanto batem as teclas damáquina de escrever para produzirem o presente texto.Tarefa dura, porque situação complexa. Devo observaros dedos enquanto escrevem texto que tem a observaçãode dedos por assunto. Mas tarefa apaixonante. Porque acomplexidade da situação se deve ao constante espelharse da observação no observado. Trata-se, portanto, dacomplexidade das situações reflexivas. Ao observar osdedos, reflito-me neles, e os dedos se refletem em mim,
ao serem observados. ~ando concentro meu interessesobre os dedos, encontro a mim próprio em tal centro. Eusou meus dedos e os meus dedos são eu. Eu sou deles tan
to quanto eles são meus. Possivelmente, a co-implicaçãoentre eu e dedos sejaa essência dos dedos?
Para contornar a complexidade da situação, procurarei descrevê-Iaem termos simples. Estou sentado numa
68 Natural:menteVILÉM FLUSSER 69
cadeira. A cadeira é produto da civilização ocidental, e,se for analisada, revelará a história do Ocidente. Encaro
uma escrivaninha. A escrivaninha pertence ao mesmoconjunto do qual a cadeira é parte. A contraposição "ca··deira -- escrivaninha" é estrutura característica de deter
minadas situações da minha cultura. Sobre a escrivaninha
está colocada uma máquina de escrever "Olivetti". Tra
ta-se de um instrumento para escrever levemente pa1<~otecnológico (produto da técnica do início do século 20).A máquina tem teclas marcadas com letras do alfabetolatino. Tais letras são modificações históricas de símbolos
que se originaram no Oriente Próximo há aproximadamente 3.000 anos. Meus dedos batem nas tecIasem deter
minada ordem. A ordem visaproduzir sobre uma folha
de papel inserida na máquina sentenças da língua portuguesa. É, pois, determinada pela ordem de tal língua. OPortuguês é modificação histórica de uma hipotética falaindo-europeia. As sentenças portuguesas visadas pelosmeus dedos são articulações dos meus pensamentos. Taispensamentos foram programados pelas condições econômicas, sociais, culturais, em suma, históricas, que medeterminam. Viso destacar o papel da máquina quandopronto, para que seja lido por outrem. Tal outro poderádecifrar a mensagem no papel por participar da mesmacultura da qual eu participo. De maneira que a situaçãotoda, em seus elementos e sua estrutura, é característicade determinada cultura. Meus dedos estão inseridos nela.
Mas será que isto me autoriza a considerar meus dedos como se fossem parte integrante de tal cultura? Não
posso fazê-Io. A análise dos meus dedos não revelará ahistória do Ocidente, como o fará a análise da cadeira, da
máquina, do alfabeto, da língua portuguesa. Por certo:o gesto dos meus dedos sobre as teclas poderá, se analisado, revelar-se gesto historicamente determinado. Masos próprios dedos não: não são produtos da história dacultura. Tenho a forte tentação de dizer que são produtosda história da natureza. Tenho modelos muito poderosos
(por exemplo, o darwiniano), que me levam a dizer isto.E a dizer, portanto, que os meus dedos são fenômenosnaturais que foram inseridos em situação cultural, a qualdoravante transforma, informa, em suma, condiciona os
seus gestos. Cultura como violentação da natureza.Tal descrição da situação seria, no entanto, inteira
mente desapropriada. Não captaria o seu clima. Tal climanão é o da violentação dos meus dedos por um estabelecimento cultural composto de aparelhos sincronizados(embora várias tendências atuais, inclusive a Nova Es
querda, acreditassem que o seja). Não se trata, na situação, de uma "desnaturação" ou "aculturação" dos meusdedos. Não se trata disto, e a observação do gesto dos de
dos o prova. Não se movimentam maquinalmente, embora se movimentem dentro e sobre várias "máquinas" (a
de escrever, o alfabeto, a língua portuguesa). O seu movimento é deliberado, isto é, articula minha liberdade. Osdedos escolhem determinadas teclas e recusam outras, e
escolhem tais teclas criteriosamente. Éverdade que os cri
térios são impostos sobre os dedos (pela organização doteclado, pelas regras da língua e pela estrutura dos meus
70 Natural:mente VILÉM FLUSSER 71
pensamentos). Mas tais critérios tornam possíveis e dãosentido aos movimentos dos dedos, isto é, abrem um
campo de escolha. Os meus dedos são livres na situaçãodescrita. Com toda a dialética da liberdade que a análiseda situação revela. Em outros termos: a situação é cultural, e por isto mesmo um campo de liberdade para osmeus dedos. Para formulá-Io paradoxalmente: a cultura énatural para os dedos, e fora dela os dedos não são como"devem ser": livres.
Como são os dedos fora da cultura? Portanto, não
violentados, não apropriados pelos aparelhos estabelecidos? ~al o movimento natural dos dedos? O seu re
pertório é reduzido. Coçam, arranham, talvez apontem efurem. E agarram-se a objetos felpudos. Tais movimentos
são observáveis em recém-nascidos, e, por projeção, nosprimatas. São, estes sim, movimentos condicionados.
São, em tese, perfeitamente explicáveis peIas ciências danatureza. Refletem condições internas do corpo (tensõestermodinâmicas e químicas, informação genética etc.) econdições do ambiente. Em situações naturais os dedossão inteiramente determinados. A "revolução" tardiamente romântica que visa libertar os dedos da violentaçãopelo aparelho (por exemplo pelo "princípio do prazer")visa, na realidade, a reduzi-Ios a movimentos coçadores.A verdadeira revolução não seria a retirada dos dedos do
aparelho, mas a apropriação dos aparelhos pelos dedos. Asituação descrita, na qual escrevo o presente texto, podeservirde modelo para todas as situaçõesculturais depois detal revolução apropriadora. Por issodeveser reconsiderada.
A máquina de escrever foi feita para servir de instrumento a meus dedos. É um prolongamento dos meusdedos. Mas é daro que a relação "máquina - dedos" nãoé simples, mas dialétíca, e por isso mesmo facilmente reversível. Para que os dedos possam servir-se da máquina,devo aprender o manejo. Devo conhecê-Ia. Macacos podem bater à máquina sem conhecê-Ia, e se um milhão demacacos baterem a um milhão de máquinas durante ummilhão de anos produzirão necessariamente o presentetexto. Necessariamente, mas não deliberadamente. O co
nhecimento da máquina é o pressuposto da liberdade. Aliberdade não é um campo intermediário entre o acasoestatístico e a necessidade. Tal campo não existe, já queo acaso estatístico se confunde com a necessidade, e o
milhão de macacos o prova. A liberdade surge por saltodialético acima do acaso e da necessidade, salto este possibilitado pelo conhecimento. Sem o conhecimento, amáquina de escrever não é coisa da cultura, mas condiçãonatural, como o é para macacos. Existem muitas situações, aparentemente culturais, nas quais manejamos aparelhos como se fôssemos macacos. Porque os ignoramosparcial ou inteiramente. Em tais situações os aparelhosfuncionam, e os nossos dedos funcionam. E é contra tais
situações funcionais que as revoluções se insurgem. Paralibertar os dedos.
Para podermos conhecer a máquina de escrever, osnossos dedos devem aprender, empiricamente ou portécnicas "ad hoc" elaboradas, a manejá-Ia. Isto é, devemaprender a fazer movimentos apropriados à máquina e,
72 Natura1:mente VIJ,ÉM FLVSSER 73
neste sentido, serem apropriados por ela. Mas não se tratade apropríação alienante. Trata-se de processo dialético,no qual a máquina é apropriada pelos dedos ao serem osdedos apropriados por ela. Durante tal processo vão serevelando determinadas virtualidades tanto da máquinaquanto dos dedos. Aprender é isto: verificar o que podeser feito com a máquina e com os dedos. Ou melhor, o
que os dedos podem fazer com a máquina, e o que a máquina pode provocar que os dedos façam. De maneira quemáquina e dedos passam a formar os dois horízontes de
uma relação dialética (a do escrever), na qual um horizonte é para o outro. A máquina é para os dedos (feita paraeles), e os dedos são para a máquina (movimentam-se de
forma apropríada a ela). Mas a relação entre máquina ededos não é simétrica (sob pena da situação do escreverse tornar efetivamente alienante, como é o caso de datiló
grafas em repartições e bancos). A relação não é simétri
ca, porque o movimento da máquina é determinado pelomovimento dos dedos que articulam liberdade.
Tal falta de simetria não é observávelobjetivamente.Um marciano observando o processo de escrever que envolve macacos, datilógrafas e a mim, não notará diferença.Por mais cuidadosamente que observar as três situações,constatará apenas a dialética entre acaso e necessidade,
jamais a liberdade. Esta é constatável apenas por mim,que escrevo e simultaneamente transcendo a situaçãona qual escrevo. Não a transcendo como a transcende o
marciano: distanciado. T ranscendo-a participando. Não"metafisicamente", mas engajadamente. Engajo-me na si-
tuação por meus dedos, e transcendo-a observando dedosque são meus. Sei, graças a tal transcendência, que estouescrevendo o que quero, e não, como os macacos, o queder o acaso, nem, como a datilógrafa, o que foi encomendado a ela. Tal saber da minha livre vontade é insofismá
vel, embora saiba também da total determinação do meuato de escrever, e da minha decisão de fazê-Io. Trata-se
de dialética da minha consciência, e o marciano jamaispoderá constatá-Ia. Por isso, a liberdade não é explicável,e quando explicada, deixa de sê-Io. E, no entanto, o fatode eu estar escrevendo livremente épor mim constatávelconcretamente. É o fato visado por toda revolução verdadeira.
Os meus dedos são insofismavelmente livres na si
tuação descrita, embora tal fato não possa ser explicado.Pelo contrário, toda explicação da situação encobrirá ofato da liberdade, ao apontar as forças que determinamo movimento dos meus dedos. Toda explicação revelaráque a situação cultural e natural na qual me encontro pormediação dos meus dedos me determina totalmente, ao
determinar o movimento dos dedos. Toda explicação é,portanto, desculpa para os defensores das situações alienantes. Mas, curiosamente, também para os seus contestadores. Os defensores dirão que a liberdade não existe,que é preconceito, e justificarão assim o poder alienantee determinado r do aparelho (seja ele tecnocrático, político ou tradicionalmente consagrado). Os contestadoresrecomendarão, é verdade, a abolição dos aparelhos determinadores, mas por métodos que evocam os dedos dos
74 Natural:mente
macacos que batem, furiosamente, as teclas de máquinas
de escrever até destruí-Ias. ~erem libertar as datilógratàs
ao transformá-ias em macacos. Embora, pois, aparente
mente haja contradição entre defensores e contestadores,
há, na realidade efetiva, colaboração entre ambos. Chim
panzés colaboram com gorilas porque ambos concordam
que existe contradição entre o condicionamento cultural
e o natural do homem. Apenas os defensores das situa
ções alienantes optam pelo condicionamento da cultura,
e os contestadores pelo condicionamento da natureza.
Mas tal contradição entre cultura e natureza não existe
necessariamente. A cultura pode vir a ser a natureza do
homem. Já o é, com efeito, em determinadas situações,
como a descrita. E a cultura, enquanto natureza do ho
mem, é o campo da liberdade. Nela, os dedos podem rea
lizar suas virtualidades. Eis o que revela a observação dos
meus dedos enquanto batem o presente texto.
A lua
Pertencia, até recentemente, à classe das coisas vi
síveis, mas inacessíveis ao ouvido, cheito, tato ou gosto.Agora, alguns homem tocaram nela. Isto terá tornado a
Lua menos duvidosa? Descartes afirma que devemos du
vidar dos nossos sentidos porque, entre outras razões, eles
se contradizem mutuamente. Até agora, a Lua era percebi
da por um único sentido. Não houve contradição de sen
tidos, portanto. Agora, tal contradição se tornou possível.Podemos, doravante, duvidar da Lua, mas de maneira di
ferente. Por exemplo: como sabemos que alguns tocaram
nela? Por termos visto o evento na TV e por termos lido
nos jornais a respeito. Imagens na TV são duvidosas, po
dem ser truques. Se vêm acompanhadas da inscrição "live
ftom the Moon", passam a ser, não apenas duvidosas, mas
suspeitas. ~em diz "está chovendo, e isto é a verdade",
diz menos que aquele que diz apenas "está chovendo". E
quanto aos jornais, a sua credibilidade não é absoluta. De
76 Natural:menteVILÉM FLUSSER 77
maneira que podemos duvidar que a Lua foi tocada. Mas
tal dúvida será ainda menos razoável que a outra: a Lua
será ficção ou realidade? Menos razoável, porque é menos
razoável duvidar da cultura que da natureza. Duvidar da
natureza é razoável, se for feito metodicamente, porqueresulta nas ciências da natureza. Mas duvidar da cultura
(da TV e dos jornais) aparentemente em nada resulta.
Já que a Lua passou (conforme TV e jornais) do campo
da natureza para o da cultura, melhor é não mais duvi
dar dela. Passou da competência dos astrônomos, poetas
e mágicos para a dos políticos, advogados e tecnocratas. E
quem pode duvidar destes? A Lua é doravante propriedade imobiliária (embora móvel) da NASA Pode haver
maior prova de realidade? A Lua é "real state" = estado
real, e todas as dúvidas a seu respeito cessaram. Mas, ainda
assim, há certos problemas. Relativos, não tanto à própriaLua, mas ao nosso estar-no-mundo. Problemas confusos.
Falarei em alguns dentre eles.
~ndo olho a Lua em noites claras, não vejo umsatélite da NASA. Vejo um C, ou um D ou um círculo
luminoso. Vejo "fases da Lua". A Lua muda de forma.
Aprendi que tal mudança é aparente, que a Lua mesmanão muda de forma. Por que "aparente"? A sombra da
Terra não será tão real quanto o é a Lua? O senso comum
manda que eu veja mudanças não da "Lua em si", mas da
"minha percepção da Lua". Tal senso comum não se es
tende a povos primitivos. Tais povos veem a Lua nascen
do, morrendo e renascendo. Vejo a lua, não apenas comos olhos, mas também com o senso comum à minha cul-
tura. Tal senso comum me manda ver "fases da Lua", mas
não (ainda), "propriedade daNASA".
Será a visão o sentido mais comum que o senso co
mum, isto é, comum a todos os que têm olhos? Todos os
que têm olhos podem ver a Lua? Máquinas fotográficas e
formigas? Não será antropomorfismo dizer que a Lua é
vista por formigas? Se eu construir uma lente estrutural
mente idêntica ao olho da formiga, verei a Lua? Ou have
rá senso comum apenas aos olhos humanos, o qual manda
aos homens verem a Lua? Haverá doença de vista ociden
tal que me manda ver "fases da Lua", e outra doença mais
geralmente humana que manda ver a Lua?
~l11do olho a Lua em noites claras não vejo satélite da NASA, embora saiba que o que vejo é satélite daNASA. Continuo vendo satélite natural da Terra, a mi
nha visão não integra o meu conhecimento. Tal falta de
integração do conhecimento pela visão caracteriza deter
minadas situações, as chamadas "crises". É ptovável que
os gregos do helenismo sabiam que a Lua é bola, mas con
tinuavam a ver uma deusa nela. É provável que os melanésios saibam ser a Lua satélite da N ASA, mas continuam
vendo símbolo de fertilidade nela. Em situação de crise a
cosmovisão não consegue integrar o conhecimento.
Para ver a Lua, preciso olhá-Ia. Não preciso escutar o
vento para ouvi-lo. Posso, mas não preciso. Para ver, preci
so gesticular com os olhos e com a cabeça. "Levar os olhos
para o céu." Preciso fazer o que cachorros fazem para ou
vir ou cheirar: gesticulam com o nariz e os ouvidos. Seumundo deve ser diferente do nosso. Para nós, sons e chei-
78 Natura1:mcntc VILÉM FLUSSER 79
ros são dados, mas luzes são provocadas pela atenção (gesticulação) que lhes damos. Para cachorros, sons e cheiros
são igualmente provocados. Vivemos em dois mundos:
um dado e outro provocado pela atenção que lhe damos.
Nisto a vista se parece com o tato: dirige-se para o fenô
meno a ser provocado. A explicação "objetiva" que a vista
é recepção de emissões de ondas eletromagnéticas (como
o ouvido é recepção de ondas sonoras) encobre o fato que
olhos são mais parecidos com braços que com ouvidos.
Buscam, não ficam parados. Isto é importante em casoscomo o é a Lua, a qual é visível, mas não audível. Foi bus
cada, não foi negativamente percebida.
Culturas que não levantam o seu olhar para o céu,mas concentram sua atenção no solo (as chamadas "telú
ricas") não buscam, não "produzem" a Lua. Culturas que
passam o tempo olhando o céu (as chamadas "urânicas"),
"pró-duzem" a Lua que passa a ocupar papel importante
em tais culturas. A Lua é, neste sentido, "produto" de
determinadas culturas. Como então posso afirmar que aNASA transformou a Lua de fenômeno natural em fenô
meno cultural (em instrumento da astronáutica) ao tê
Ia tocado? Se a Lua sempre tem sido produto da cultura
"urânica" que é a nossa? Para responder a tal pergunta,devo olhar a Lua mais de perto.
~e significa "olhar de perto"? Pode significar
aproximar-se da Lua subindo montanha ou em foguete.
Pode significar aproximá-Ia com telescópio e truques se
melhantes. Mas não preciso significar isto. Como a Lua
não é um dado, mas um buscado pela atenção dada a ela
"olhá-Ia de perto" pode significar olhá-Ia com maior aten
ção para vê-Ia mais claramente. Pois se, em noites claras,
eu for olhá-Ia com tal maior atenção, verei porque a vejo
enquanto fenômeno da natureza. Não posso vê-Ia quan
do e onde quero. Embora deva querer vê-Ia para vê-Ia,
tal querer meu é condicionado pela própria Lua. A Lua
é provocada pelo meu querer vê-Ia, mas tal querer se dá
dentro das regras de jogo da própria Lua. A Lua impõe
sobre mim suas próprias regras de jogo. Por isso, é difícil
duvidar dela e manipulá-Ia. A Lua não é minha imagina
ção, é uma coisa da natureza.
Meu olhar provou que a Lua não é imaginação mi
nha, mas por enquanto nada provou quanto ao seu ser
natureza ou cultura. Sim, provou-o. A lua é cabeçuda.
Impõe suas regras de jogo. Só vejo onde ela está por uma
necessidade dela própria, necessidade esta chamada "leisda natureza". As coisas da cultura não são assim cabeçu
das. Estão onde devem estar para servir-me. Se quero ver
meus sapatos, olho na direção em que devem estar, vejo
os e utilizo-me deles. Isto é a essência da cultura. Se quero
ver a Lua, sou obrigado a olhar na direção em que ela está
por necessidade. Isto é a essência da natureza. Por isso,
vejo a Lua enquanto fenômeno da natureza, embora saiba
que atualmente a Lua não mais está onde está por neces
sidade, mas agora está onde deve estar para servir de pIa
taforma para viagens rumo a Vênus. Ainda não sou capaz
de ver a utilidade da Lua. Vejo-a cabeçudamente inútil.
Vejo-a como se fosse ainda satélite natural da Terra.Mas meu olhar não deu resposta satisfatória à mi
nha pergunta. Não perguntei porque vejo a Lua como
80 Naturabnente VlI,f:M fiL U S S ER 81
coisa natural a despeito da NASA, mas porque a vejo as
sim a despeito do fato de ser ela, desde sempre, produto
do aspecto "urâníco" da minha cultura. Não perguntei,
portanto, pela minha incapacidade de integrar conhecimento novo, mas pela minha incapacidade de rememorar
origens. Devo ajudar meu olhar para provocá-Io a dar res
posta a uma pergunta assim difícil. Por que não vejo que aLua foi originalmente provocada por minha cultura, mas
a vejo como se fosse dada? A resposta começa a articular
se. Porque sou ambivalente quanto à minha cultura. De
um lado, admito que minha cultura é composta de coi
sas que esperam, fielmente, serem por mim utilizadas. De
outro lado, devo admitir que não posso passar sem tais
coisas. Por isso, a Lua é o exato contrário dos meus sapa
tos. A Lua é necessária, mas dispensável. Os sapatos são
deliberados (desnecessários), mas indispensáveis. A Lua
impõe suas regras sobre mim por sua cabeçuda necessida
de. Os sapatos me oprimem por sua desnecessária indis
pensabilidade. Por isso, não posso ver que a Lua foi, ori
ginalmente, provocada por minha cultura. Por que teria
minha cultura provocado algo necessário e dispensável?
É que minha visão é deformada por um preconceito
que faz parte do senso comum da minha cultura: tudo que
é necessário e dispensável chamo "natureza", tudo que é
desnecessário e indispensável chamo "cultura". Progressoé transformar coisas necessárias e dispensáveis em desnecessárias e indispensáveis. Natureza é anterior à cultura,
e progresso é transformar natureza em cultura. ~andoa NASA tocou a Lua e a transformou em plataforma, foi
dado mais um passo em direção ao progresso.
T aI preconceito do senso comum é logicamente
contraditório, ontologicamente falso, existencialmente
insustentável, e deve ser abandonado. E, se conseguir afas
tá-Io, verei a Lua mais claramente. Vejo agora, surpreso,
que a Lua, longe de ser fenômeno da natureza em vias detransformar-se em cultura, é, e sem foi fenômeno da cul
tura que está começando a transformar-se em natureza.
Eis o que é, na realidade, cultura: conjunto de coisas ne
cessárias que se tornam progressivamente mais indispen
sáveis. E eis o que é, na realidade, natureza: conjunto de
coisas desnecessárias e dispensáveis. Natureza é produto
tardio e luxo da cultura. O meu olhar para a Lua o prova,
da seguinte maneira:
Imaginemos por um instante que a NASA tivesserealmente transformado a Lua de natureza em cultura.
Então seria um caso excepcionalmente feliz para um "retorno à natureza". Bastaria cortar as verbas da NASA e a
Lua voltaria a ser assunto para poetas, e escaparia à com
petência dos tecnocratas. Porque o romantismo (a partir
de Rousseau até inclusive os hippies) é isto: cortar as verbas da NASA. Mas terá sido isso um "retorno"? Não, terá
sido um avanço. Antes da NASA, a Lua era produto da
cultura "urânica" ocidental que tinha por meta projetada
a sua derradeira manipulação pela NASA. Os nossos an
tepassados neolíticos olharam para a Lua (e assim a "próduziram") a fim de transformá-Ia, em última instância,
em plataforma para Vênus. E é isto que estamos vendo
quando para ela olhamos, nós, os seus descendentes: símbolo de fertilidade, deusa, satélite natural, são várias fa-
82 Natural:rnente VILÉM FLUSSER 83
ses do caminho rumo à plataforma. Vemos a Lua semprecomo potencial plataforma, embora não o saibamos cons
cientemente. A NASA está em germe dentro do primeiro
olhar dirigido rumo à Lua.
Pois cortar as verbas da NASA seria um passo além
da própria NASA. Transformaria a Lua em objeto de
''1'art pour l' art", desnecessário, dispensável, e cantável
por poetas. E a um tal objeto podemos chamar "objeto denatureza" em sentido existencialmente sustentável. Tal
transformação de cultura em natureza está se dando por
todos os cantos. Nos Alpes, nas praias, nos subúrbios das
grandes cidades. Os românticos do século 18 "descobri
ram" a natureza (isto é, a inventaram), e os românticos donosso" fin de sciec1e" a estão realizando. Um dos métodos
de tal transformação se chama "ecologia aplicada". Se tal
método for aplicado à Lua, ela virará natureza. De manei
ra que quando formos olhar, em noites claras, a Lua, e a
virmos enquanto fenômeno da natureza, estaremos ven
do não o passado pré-NASA. da Lua, mas o seu estado
pós-NASA. A nossa visão será profética, isto é, inspirada
pelo romantismo. E, com efeito, é isto que sempre fazemos: olhamos a Lua romanticamente. Por isso a vemos
como se já fosse objeto da natureza, e não como sabemos
que ela é: objeto de uma cultura que visa transformá-Ia
em plataforma.
Resposta perturbadora esta. A Lua é vista como ob
jeto de natureza, isto é, como derradeiro produto da nos
sa cultura. Como, em tal situação, engajar-me em cultura,
se ela tende a transformar-se em sua própria traição, em
romântica natureza? Tal pergunta, no entanto, não toca a
Lua. Ela continua imperturbável em seu caminho neces
sário e por enquanto dispensável. Perguntar assim nada
adianta. Nada adianta levar até ela os olhos. "Lifi:no your
eyes to it, for it moves impotentIy Just as you and L"
Montanhas
~em se aproxima de uma serra a partir de uma planície, quem repentinamente suspeita que aquelas formas
nebulosamente azuis que apareceram no horizonte pode
riam ser montanhas, pode nutrir os seguintes pensamen
tos: suspeito que tais formas no horizonte são montanhas,
e não nuvens, embora pareçam ser nuvens, porque sei que
montanhas, vistas de longe, se parecem com nuvens. Se
não o soubesse, a suspeita de montanhas não me teria
ocorrido. Dentro de alguns minutos confirmarei ou não
a suspeita: verei se tais formas são montanhas ou nuvens.
Mas suponhamos que nunca tivesse visto montanhasnem tivesse ouvido falar nela: obviamente não teria dúvi
da que tais formas no horizonte são nuvens. E, dentro de
alguns minutos, quando tais formas se tivessem revelado
não-nuvens, que veria? Não teria eu experiência tão extra
ordinária e violenta que sofreria choque? Choque capaz
86 Natural:mente VILÉM FLUSSER 87
de matar-me? ~em conhece apenas planícies, para quea paisagem é sempre plana, dificilmente sobreviverá aoconfronto com algo tão intensamente extraordinário,tão gigantescamente absurdo como o são as montanhas.
A emoção que sentimos ao aproximarmo-nos de umaserra é sombra pálida e tardia do sacro terror que devem ter vivenciado os nossos antepassados siberianosao terem vislumbrado, pela primeira vez, a cordilheirado planalto pamiriano. (Isto é, se for correta a hipótesede nossa ascendência dos povos da estepe.) Tal terrorprimordial deve estar soterrado no fundo do nosso inconsciente coletivo.
Olhar montanhas com olhos emprestados aos nômades da estepe não é, no entanto, a única maneira deolhá-Ias "sem preconceito". Outra é olhá-Ias com olhosde montanhês que nunca deixou sua terra. Como vê a
montanha quem conhece todas as trilhas que sobem seuflanco, toda a sua fauna e flora? Vê ele a montanha com
as trilhas, os animais e as plantas como nós a vemos? Ouvê ele trilhas, animais e plantas inseridos em estrututageral chamada "montanha"? De modo que nós vemosmontanha coberta de determinados acidentes, e ele vêdeterminadas coisas relacionadas entre si em forma de
montanha? Pergunta irrespondível, porque não podemosemprestar os olhos nem do montanhês, nem do nômade
da estepe. Estamos condenados a olhar montanhas pelaslentes dos preconceitos da nossa cultura. Vivemos, em
consequência disso, em um mundo no qual montanhas,vistas de longe, parecem nuvens.
Admitindo que nós vemos montanhas mediantepreconceitos culturais (ocidentalmente, século vintemente, burguesamente etc.), será que o montanhês e onômade as veem sem preconceito (ingenuamente)? Não,por certo. O montanhês as vê (se é que as vê em sentidorigoroso) condicionado por sua cultura. E o nômade foicondicionado por sua cultura para não esperar por elas, edaí seu choque. A "visão ingênua sem preconceitos" não évisão primitiva, original, ou anterior a toda cultura. É visão almejada por uma elite da cultura ocidental, produtotardio de todo um milenar desenvolvimento. A ingenuidade é um ideal de uma cultura desenganada, ideal estealcançável por métodos deliberados. Ingenuidade nãodeliberada é inimaginável e não existe (nem em crianças).
Mas continua sendo fato: quem quiser ver montanhas como são, e não como determinados preconceitos
nos fazemcrer que são,deveprocurar vê-Iasingenuamente.E deve procurar fazê-Io deliberadamente, isto é, olhá-Ias,não pelos olhos de supostos "primitivos", mas por olhosconstruídos especialmente para visões ingênuas nos laboratórios dos especialistas em fenomenologia. Em outrostermos, seprocuro "conceder a palavra às montanhas paraque me revelem o que são", estou assumindo atitude condicionada por um determinado estágio, altamente sofisticado, de minha cultura. Tal aparente contradição pareceser inevitável,e não invalida necessariamente os resultados
porventura alcançadospela visão ingênua deliberada.Suponhamos, pois, que sou um burguês do século 20
que se aproxima do Jura pela estrada de Bourg-en-Bresse,
para vê-lo como é, e não para vê-lo como o veem os turistas. (Turistas sendo burgueses do século 20 que se aproximam do Jura pela estrada de Bourg-en-Bresse para vê-locomo deve ser conforme determinados modelos.) Minha
tarefa será a de conseguir visão deliberadamente ingênuado Jura, e isto implica a suspensão dos preconceitos quenutro a respeito dele. Mas aí posso verificar que tais preconceitos não são necessariamente empecilhos para ver aessência da montanha. Podem, pelo contrário, ser mediações poderosas para a minha visão da "montanhidade".Até quando se trata de preconceitos superficiais que parecem não tocar o fenômeno da montanha mesma. Com
efeito, estou verificando exatamente isto ao me aproximardo Jura pela estrada. Nutro vários preconceitos a respeitodo Jura, e alguns de tais preconceitos se referem ao nome(ao mero nome) da serra. Ao tentar pôr entre parêntesesum de tais preconceitos (tarefa modesta e aparentementefacílima), acontece o seguinte:
Lembro-me do ginásio que existe um período nahistória da Terra que se chama "jurássico" e que ocupa aépoca central da Idade Média da Terra. Suponho que talnome se deve ao fato de terem servido as rocas do Jura às
primeiras pesquisas de tal período (o qual, se não estouenganado, está ligado aos gigantescos répteis). Pois issosignifica que esta serra que estou começando a subir seformou durante tal período, e que as rochas esbranquiçadas que começam a luzir por entre as árvores das florestas multicolores serviam outrora a brontossauros botar
seus ovos, e a pterodáctilos a levantar voo como fazem
atualmente os jatos em busca do aeroporto de Genebra.(Apenas, suponho, não havia época, nem o lado Leman
para ser sobrevoado, nem os Alpes, nem a Europa.) Istonão é conhecimento, é salada mal digerida de informaçãoescolar assimilada superficialmente. É preconceito. E, noentanto, como que por encanto, o preconceito saiu doslivros para penetrar o mundo concreto. Não posso fazerde conta, sem mais nem menos, que o preconceito é descontável quando olho estas montanhas. Já que me lembrei dele, o pterodáctilo está tão presente nelas quanto osão as folhas de outono (embora ocupe ordem de realida
de diferente). Posso fazer duas coisas:controlar meu preconceito a respeito do jurássico na próxima livraria em St.Claude, e depois olhar as montanhas com conhecimento
mais correto (embora necessariamente superficial e cientificamente sem interesse). Não alcançarei, destarte, visãoingênua das montanhas. Ou posso tentar reduzir o meu
preconceito, não totalmente, mas para chegar até a suaessência, a qual é esta: montanhas são coisas que têm his
tória, ou, mais exatamente, biografia. ~e acontecerá seeu for olhar estas montanhas por um preconceito assimreduzido? Isto:
~ando digo que estas montanhas aqui têm umabiografia, quero dizer que são processos que se iniciampor sua formação ("nascimento"), acabam por seu nivelamento ("morte") e passam por estágios nos quais aciden
tes podem modifícá-Ios. Aparecem enquanto algo novo(como gatinhos recém-nascidos e automóveis zero quilômetro) envelhecem, são usados e abusados (como gato
88 Narural:mcntc VILÉM FLUSS.ER 89
90 Natu1"a1:mentc VILÉM FLUSSER 91
que perdeu um olho ou carro de segunda mã.oque passoupor acidente de trânsito), e desaparecem da superfície(como gato morto e automóvel refundido). ~ando olhoestas montanhas agora, estou vendo apenas um momentoda sua biografia. E agora, que assumo tal preconceito a seurespeito, vejo-o claramente. Os montes do Jura estã.onaflor da idade, o Massif Central pelo qual passei ontem é
anciã.odecrépito, e os Alpes do outro lado do lago (dos
quais vejo os contornos violentos) estã.oem plena puberdade. Não se trata mais de preconceito: vejo-o nitidamente no fenômeno mesmo. Mas isso é importante: não o teria visto, se não tivessenutrido o preconceito.
Vejo também que embora a montanha sejaprocessode estrutura diacrônica semelhante à do meu carro e da
minha mão, há esta diferença: minha própria biografia
engloba a do meu carro, e é englobada pela da montanha. Meu carro é acidente na minha vida, e minha vidaé acidente na história da montanha. Isto doravante não é
preconceito: posso vê-Io se olhar meu carro, minha mãoe esta montanha. Vejo concretamente que o carro é maisefêmero que a mão, e a mão mais que a montanha, e vejoque tal fato nada tem a ver com o tamanho e o material dacoisa. O carro é maior que meu corpo, mas vejo que possosobrevivê-lo.O carro é feito de aço que é mais durável queo material da montanha (para nã.o falar do material do
meu corpo), masvejo que a montanha sobreviverá ao carro. A diferença está no ritmo das três coisas (carro, mão,montanha), e eu vejo, por mais incrível que isto seja, taldiferença. Aquilo que chamamos "vida" é processo com
ritmo específico, e é por isto que vejo que a montanhanão é coisa viva: não por não ser feita com aminoácidosou por ser grande, mas por obedecer a ritmo diferente. Sepudesse penetrar tal ritmo, teria aberto acesso à essênciada montanha. Mas não consigo fazê-Io.
Penetrar um ritmo é co-vibrar, estar em "simpatia".Tal simpatia é considerada "conhecimento" pelo pitagóricos. Concebiam eles o mundo como contexto de coisas
,; que vibram em vários ritmos, e conhecimento como simpatia com todos os ritmos. Tal conhecimento era possívelgraças à matemática e à música, porque estas são as estruturas de todos os ritmos possíveis. Se olhar a montanhacomo a olho agora, estou vendo-a pitagoricamente: estoutentando descobrir a sua essência, isto é, seu ritmo. Mas
com esta diferença: não creio mais que posso chegar atélá matematicamente. Sei que a matematização da montanha terá por consequência várias ciências da natureza, enão a descoberta da essência da montanha. Porque a matemática nã.o é a estrutura de todos os ritmos possíveis,
mas apenas a do intelecto humano. ~anto à música,nada sei a respeito da sua eficiência como método paradescobrir essências de montanhas. Pouco tem sido ela
utilizada com este propósito no curso da minha cultura.Mas suspeito que ela tem ritmo humano tanto quando amatemática, já que é parente próximo desta. Olho a montanha mais ou menos como o fez Pitágoras, sinto, comoele, o ritmo da montanha. Mas perdi a convicçã.ode quetal ritmo é articulável matematicamente, e que númerossão a essência da montanha. Se perder convicções é ser
92 Naturabmentc VILÉM :FLUSSER 93
mais ingênuo, sou mais ingênuo que ele. Estamos, ele e eu,
nos dois extremos opostos do processo chamado "história
da ciência da natureza". Ele ignorava tudo a respeito de pte
rodáctilos, e eu ignoro tudo a respeito da essência da mon
tanha. A história da ciência é um processo ao longo do qual
diminui o saber "essencial" e aumenta a "ingenuidade".
Não posso entrar em simpatia com a montanha. Pois
tal incapacidade minha é uma maneira pela qual a monta
nha se revela. Revela-se coisa cujo ritmo pode ser sentido,
medido, até manipulado, mas não absorvido existencial
mente. Isto é um aspecto da essência da montanha: ser
coisa que obedece a ritmo existencialmente incaptável.
A fé pode remover montanhas, e buldôzer pode fazer o
mesmo. Mas nada pode fazer com que capte o seu ritmo.
Está lá, parada e muda, passiva em sua beleza majestosa,
e agora que subi nela vejo que suas rochas sincronizam a
sua diacronicidade em camadas paralelas, fazendo do "an
terior" o "mais baixo". Vejo como se desfralda sob o sol deoutubro, com chamas das cores da sua floresta. Sei e sinto
a pulsação da qual é possuída, mas não posso pulsar comela. É demasiadamente diferente do meu ritmo. É isto
que tenho em mente quando digo "montanha": ritmo in
captável a despeito de todo conhecimento. No entanto,se não existisse o conhecimento, tal essência não se teria
revelado. Tivesse eu suspendido o conhecimento, a mon
tanha se teria calado a respeito do seu ritmo incaptável.
Não consegui suspender meu preconceito com res
peito a uma determinada conotação de nome "Jura". T al
vez não quis suspendê-lo? Tive eu razão por não querer
fazê-lo? ~e responda a tal pergunta quem conseguirpenetrar mais profundamente a essência da montanha.
Tarefa perfeitamente viável por múltiplos métodos dife
rentes do meu (todos eles deliberados). ~anto a mim,
procurarei passar algum tempo no seio da montanha.
Não enquanto nômade, nem montanhês, nem criança,
nem turista, mas enquanto quem não consegue e nem
quer suspender determinados preconceitos a respeiro do
': Jura. Enquanro quem está condenado a viver com tais
preconceiros e, às vezes, está até gostando disso. Outro
tipo de ingenuidade?
A falsa primavera
A paisagem que vejo quando olho pela janela nãoé como deve ser, e as coisas lá fora não sabem como se
comportar. É meados de fevereiro e a paisagem deveriaestar coberta pelo manto do inverno. Os prados deveriamdormir, protegidos pela neve. Os riachos e as cachoeirasdeveriam estar aguardando, parados e congelados, a força libertadora do sol de março. Os pinheiros deveriamestar carregando, altivos, a sua ornamentação de cristaisbrilhantes. As macieiras deveriam parecer mortas, comseus ramos contorcidos, nus, clamando pela ressurreiçãoem forma de flor e folha. As corças e os veados deveriamter deixado seus rastros sobre a neve, já que deveriam terdescido até o vale em busca de alimento. As únicas coisas
móveis na paisagem vistas pela minha janela deveriam seruns corvos no centro do gramado coberto de neve, unspardais no terraço buscando migalhas e o cachorro felpu-
do do vizinho afundando desajeitadamente as patas naneve. O azul do céu matinal deveria estar contrastando
com a brancura brilhante da paisagem na transparência
de um ar a dez graus abaixo de zero. Assim deveria ser a
cena. Mas a que vejo é diferente.
O prado na frente da minha casa é de uma cor cin
zenta de palha, mas deixa entrever em determinados lu
gares um leve tom verde, como se estivesse acordando de
um sonho perturbado. No flanco das montanhas as ca
choeiras descem por rochas nuas que a neve descobriu ao
ter-se retirado para alturas acima de 1.200 m. Os pinhei
ros são verdes como o são em julho. As macieiras, quan
do olhadas de perto, parecem cobertas de leves suspeitas
de botões e brotos. E o terraço está cheio de pássaros de
canto, de peito azul, ou vermelho, ou amarelo, ou de bico
preto e amarelo. Não conheço as espécies, mas sei que de
veriam estar na África, e não nos Alpes. Em suma, a pai
sagem é como deveria ser em fins de março. Não, retifico.
Se estivéssemos realmente em fins de março, o prado es
taria todo levemente verde, e as primeiras flores estariam
brotando nele. Os insetos estariam sobrevoando o prado,
de modo que os pássaros não estariam no meu terraço,
mas caçando os insetos. E os pinheiros não seriam verdes
como em julho, mas daquele verde-claro típico da prima
vera. O que vejo pela janela não é primavera.
Não resta dúvida, a descrição da vista da minha janela é aristotélica, mas não o é intencionalmente. Minha
paisagem impõe sobre a descrição as categorias aristotéli
cas, aparentemente superadas há tantos séculos pelo pen-
samento do Ocidente. Se digo que a paisagem não é como
deve ser, estou falando em justiça ("diké"). Se digo que as
coisas não sabem o que fazer (o prado, as cachoeiras, os
pinheiros, os pássaros, as corças), não estou antropomor
fizando as coisas. Estou vendo-as como se fossem órgãos
de um superorganismo vivo e, neste momento, doente
("cosmos"). ~ando estou descrevendo a desordem lá
fora, estou falando em ritmo ("pathos"). Em suma, o que
estou vendo pela minha janela é "natureza" no sentido
de "physis". O que vejo é que as coisas naturais têm difi
culdade de encontrar o seu lugar justo na natureza, que,
portanto, a situação que vejo não é natural, e, por isso, é
falsa. A situação natural, agora em meados de fevereiro, é
a situação de inverno. O que vejo é falsa primavera.
Repito: não escolhi as categorias aristotélicas inten
cionalmente. Como poderia ter feito isto ? Tais categorias
não são as minhas. Jamais diria intencionalmente que a
paisagem não é como deveria ser em fevereiro. Nas minhas
categorias, o "dever ser" se refere à cultura, e a natureza é
isenta de valores. De modo que, para mim, a paisagem não
é como deve ser, se houve erro na plantação das macieiras.
Jamais diria eu intencionalmente que as coisas não sabem
como se comportar. Nas minhas categorias, as coisas não
"sabem". Obedecem as regras de um jogo ("leis da natu
reza") que as determinam. Jamais diria intencionalmente
que a primavera que vejo é "falsa". Nas minhas categorias,
a falsidade é propriedade de sentenças, ou, em sentido di
ferente, é aspecto estético de obras humanas. E, intencio
nalmente, jamais afirmaria que a paisagem ao meu redor
98 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 99
sofre de alguma injustiça por ter sido perturbada a sua or
dem. Diria que há, no caso, várias "ordens" superpostas e
interferentes. Uma de tais ordens é a da rotação da Terra
em torno do seu eixo ("inverno - primavera"). Outra é a
dos ventos, determinada, entre outros fatores, por ptoces
sos solares. "Explicaria", intencionalmente, a situação em
meu redor por irrupção de ventos oceânicos quentes nos
vales alpinos, irrupção pouco provável, mas perfeitamen
te possível e, em tese, previsível. Não há, pois, nas minhas
categorias de captação da situação, lugar para conceitos
"morais" como é o da justiça.
Digo mais: creio saber como surgiram as categorias
aristotélicas, porque vingaram durante a Idade Média, e
porque e como foram superadas no Renascimento. Creio
que tais categorias são resultado de determinada práxis e
determinada ideologia característica da Antiguidade tar
dia. A saber: da práxis artesanal e da ideologia latifundiá
ria e mercantil ateniense. Creio que tais categorias conti
nuaram em vigor durante a Idade Média, por terem sido
adaptadas à ideologia feudal (eclesiástica), para constitu
írem apologia da estrutura social então vigente. E creio
que tais categorias foram substituídas por outras por uma
burguesia revolucionária com práxis e ideologia diferen
tes. De modo que creio saber que as categorias aristotélicas reRetem um "estar-no-mundo" humano histori
camente determinado e há muito superado, e não uma
suposta "estrutura objetiva" da realidade. E, no entanto,
recorri a elas espontaneamente ao descrever a paisagem
que me cerca.
Não posso negar que as categorias foram impostassobre mim de alguma maneira pelas coisas mesmas. Os
pássaros no meu terraço, que lutam pelas migalhas queminha mulher lá colocou, sofrem "realmente" a falta de
insetos. "Realmente" não é "natural" que as macieiras se
abram agora, já que os botões vão morrer com o próximo frio que fatalmente vQltará a cobri-Ias de neve. "Real
mente" não é "justo" que a neve se tenha retirado para tão
alto, porque com a próxima nevada se formarão lençóis
sem substrato e, portanto, avalanches. De forma que "realmente" pássaros, macieiras e neve estão desorientados.
Estão sendo "realmente" enganados e não "deveriam fa
zer" o que estão fazendo. Não parece ser Aristóteles quemdiz isto, mas as coisas mesmas.
É clato que posso me safar do problema epistemológico que está surgindo e atravessando meu caminho e
minha garganta, de pelo menos duas maneiras. Posso di
zer que é Aristóteles, afinal de contas, quem está falando,
e não as coisas mesmas. Porque Aristóteles mora em mim,
bem perto da superfície da minha consciência, lá dorme
sono leve, e foi despertado pelos acontecimentos lá fora.
Os ventos oceânicos que invadiram meu vale provoca
ram em mim recaída epistemológica de mais de dois mil
anos. E posso também dizer que os pássaros, as macieiras
e a neve de fato falam nas categorias aristotélicas, porque
Aristóteles formulou tais categorias em observações su
perficiais como a minha. Mas que pássaros, macieiras e
neve passam a falar em categorias mais" avançadas", quando observados mais cuidadosamente e com métodos mais
100 Natural:mente VILÉM FLUSSER 101
refinados. De modo que as categorias nas quais falam as
coisas dependem da atenção que lhes presto. E que lhes
estou prestando, ao descrever a paisagem, atenção "superficial" (aristotelizante). Ambas as maneiras de me safar do
problema são igualmente "boas", e, se analisadas, talvez
sejam redutíveis uma sobre a outra. Mas não me satisfa
zem, e o problema persiste.
Não me satisfazem porque não posso crer que a
primavera que vejo é "falsa" apenas se eu a olhar superfi
cialmente, e passa a ser fenômeno meteorológico perfeitamente "normal" se eu a olhar mais atentamente. Creio
que a situação em meu redor é ambas as coisas: fenômeno
meteorológico normal e falsa primavera. E que isto não
depende da atenção que lhe presto. Apenas acontece
que vejo o fenômeno meteorológico se olhar a situação
de uma das duas maneiras, e falsa primavera se a olhar da
outra. Admito que tenho várias maneiras de olhar a coi
sa, e que meu olhar provoca diferentes aspectos na coisa.
Mas não posso admitir que tais aspectos foram postos lá
por meus olhares. Os pássaros falam linguagem expressiva
demais, e imperativa demais para eu poder admitir isto.
No presente caso são os pássaros mesmos que exigem ser
olhados aristotelicamente. Se eu me transportar mental
mente para o Brasil, o problema se tornará possivelmentemais claro.
No Brasil, o ritmo das estações não é perfeitamente
articulado. Não há, como aqui, diferença essencial entre
meados de fevereiro e fins de março. De maneira que a
"physis" é menos dramática (a Páscoa é menos patética),
e Aristóteles é menos plausível. Mas há, no Brasil, ao con
trário daqui, divisão dramática entre dia e noite, por não
flutuar tanto, como aqui, a duração do dia ao longo do
ano. Pois imaginemos que, em São Paulo, em determina
da noite, o sol nasça às três horas da manhã, mas de forma
que se possa ver que se porá de novo dentro de meia hora.
Não seria acontecimento impossível no sentido rigoroso
do termo. Apenas acontecimento infinitamente menos
provável que a irrupção do vento oceânico nos vales al
pinos. Se trataria de falsa manhã, muito mais falsa que a
falsa primavera aqui descrita, por muito menos provável,
mas de acontecimento do mesmo tipo. ~e aconteceria? Ficaríamos todos loucos, os homens e as coisas. Em
nada adiantaria dizer que a loucura não é razoável, que
é primitiva, e que o fenômeno é perfeitamente explicá
vel quando observado mais atentamente. ~e houve, porexemplo, interferência da estrela "Proxima Centauri" no
nosso sistema solar, muito rara, mas em tese perfeitamen
te previsível. ~e se trata, pois, de fenômeno normal, que
confirma, e não invalida, as categorias da astronomia. Um
argumento assim não adiantaria. Ficaríamos loucos todos
a despeito dele. Porque embora o argumento seja "verdadeiro", a manhã continua sendo falsa.
No caso hipotético da falsa manhã paulista, a lingua
gem do Sol não imporia sobre nós categorias aristotélicas
(como faz a falsa primavera), senão categorias muito mais
antigas. Categorias primordiais do tipo "Rá", e "Aton", e
"Marduk" e "Chemech". Mitos solares. Por ter rompido
o Sol na falsa manhã paulista, tais categorias mÍticas pri-
102 Natllrahmente
mordiais, ficaríamos loucos. E por ter rompido o vento
aqui apenas categorias aristotélicas, não ficamos loucos,
apenas desnorteados. Pois todas as categorias (as míticas,as aristotélicas, as da ciência moderna, e outras) são for
mas nossas de ver as coisas. Historicamente explicáveis
como produtos da dialética entre práxis e ideologia. Mas
nem por isto aleatoriamente impostas sobre as coisas. Pelocontrário, reveladoras de determinadas camadas nas coi
sas. No entanto, curiosamente reveladoras. As categorias
espelham "algo" das coisas, mas o fazem, todas, de forma
aproximada. As coisas podem romper as categorias: todas.
Pode haver falsa manhã e falsa primavera, e pedras podem
cair com aceleração não geométrica, em suma: todas as
categorias podem ser "falsificadas" pelas coisas. ~andoisto se dá, ficamos desnorteados, ou enlouquecemos, ou
simplesmente elaboramos novas categorias. Igualmente
"falsificáveis". E a nossa reação às falsificações dependerá
da profundidade das camadas na nossa consciência (e nas
coisas), nas quais as categorias estão localizadas.
Não vivemos, pois, em uma, mas em muitas natu
rezas. Na natureza captável pelas categorias da nossa ci
ência da natureza. Na "physis" aristotélica, na natureza
cheia de deuses, na natureza criada por Deus. Todas essas
naturezas estão lá, fora da janela, mas também cá dentro.
Interferem, "realmente", uma na outra. E, por vezes, uma
delas predomina. Como, neste momento, está predomi
nado a "physis" aristotélica por ter sido rompida na forma
da falsa primavera. Irrompeu, por ter sido rompida. E isto
não é mais uma "explicação", mas depoimento de vivência concreta.
Prados
~ando os observo, recortados na massa compacta da floresta, formando clareiras de suave luz na som
bra misteriosa que os cerca, não é tanto em Heidegger, o
glorificador dos prados, que penso. (Embora não tenhaa certeza se o leitor brasileiro se dá conta que "Heideg
ger" significa" cultivador das clareiras na floresta".) Penso
mais no seb'lwdo verso das Metamorfoses, onde é descrita
a situação na Idade de Ouro: "Sponte sua sine lege fidem
rectumque colebant", isto é, "espontaneamente, sem lei,
cultivavam a fé e aquilo que é certo". Lido no seu contex
to, e lido no ginásio, o verso impressiona pela beleza da
sua música, pela elegância das suas palavras, e pela gran
diosidade do seu ritmo. E quanto ao seu significado se
mântico, este parece estar ligado às últimas palavras do
verso precedente: "quae vindice nuHo" (na ausência de
juízes). Mas relembrado o verso durante a observação de
104 Naturabnente VILJ~M FLVSSER 105
prados, a sua carga semântíca adquire dimensões novas.E é pratícamente inevitável relembrá-lo para quem tem"cultura clássica",já que se trata de verso que se gravouprofundamente na sua mente.
Relembrando o verso assim, toda palavra vai adquirindo uma aura de significados que penetra a visão doprado. Merece ser analisada. Mas a palavra decisiva é a última: "colebant". Duvido que sejapossível, na atualidade,traduzi-Ia adequadamente. Perdemos a vivência do verbo"colere", embora possamos ainda vivenciar dois dos seus
substantivos derivados: "cultus e "cultura". Dizer que"colere" significa "colher", ou "cultivar", ou "cultuar", ou"esperar por", é não ter compreendido o seu clima. Porcerto; o clima é de agrícultura, é estético e religioso, e ésubmisso, mas há, em tal clima, algo mais que nos escapa.Se o verso afirma que os nossos mÍtícos maiores "colhiama fé e o certo", é principalmente a esse algo que está aludindo. Mas o prado pode ajudar-nos a captar tal algo.
O prado ou o campo, em latim, é chamado "ager".Mas já que "ager" e "actio" são os substantivos do verbo"agere", talvez seria melhor dizer que, para os romanos,prado e campo eram "campos de ação", isto é, campos debatalha. Batalha contra que inimigo? Contra o própriocampo. A meta era dominar o campo. "Dominar", isto é,
submeter à casa ("domus"). ~em lutava no campo contra o campo era "dominus" (senhor da casa). Era "macho"("vir") e lutava com "machismo" ("virtus"). Em "virtude"
("virtus") de tal machismo o campo se submetia ao domínio ("imperium") da casa ("domus"). Tratava-se de ato·
sexual ("actio") pelo qual o campo ("ager") se tornava colhível (agricultura). Mas não imediatamente. Era precisoesperar para poder colher ("colere") aquilo que nasceráno campo ("natura"). Tal esperar e a esperança do senhorem sua virtude imperial e imperiosa eram "cultus". Emsuma, "colere" é a vitória, pacientemente esperada, da virtude dominadora e imperiosa sobre a natureza, e resultaem cultura.
O prado pacífico que observo, cercado do mistério
da floresta, vibra com o clima de tal significado do verbo"colere". É pacífico, por ser campo de batalha vitoriosa."Pax romana" é sinônimo de "Imperium romanum", embora tenhamos esquecido que pacifismo e imperialismose confundiam originalmente. O prado é pacífico, porquetem sido dominado pela virtude paciente há muito tem
po. É difícil para nós captarmos, intelectualmente, queação e paixão, atividade e passividade, são os dois lados damesma atitude: da atitude que transforma natureza emcultura. Intelectualmente é difícil, mas é fácil vivencial-
.mente na contemplação do prado. O prado irradia a síntese pacífica de uma atividade e passividade milenar, istoé, irradia natureza domada.
As encostas da montanha, que agora carregam osprados cercados de florestas, outrora devem ter sido co
bertas de floresta densa. Outrora, mas não sempre. Naúltima época glacial devem ter sido cobertas parcialmente de geleiras, e parcialmente de tundra. Nessa tundra,os nossos antepassados devem ter caçado renas e cavalos.Depois, a floresta avançava impiedosamente com o recuo
106 Natural;mente VILÉM FLVSS.ER 107
do gelo, mas os nossos antepassados não recuaram, embo
ra ameaçados de fome pelo desaparecimento dos animais
da tundra. Não eram animais, os nossos antepassados,
eram "domini", tinham virtude, agiam e tinha paciência,eram cultos. Não recuaram como recuaram os animais da
tundra, nem se adaptaram à floresta que avançava como
se adaptaram as espécies que agora habitam. Enfrentarama floresta, altivos e retos: "fidem rectumque colebant". E
a enfrentaram, não por terem sido obrigados a fazê-Io:
"sine lege". Enfrentaram-na por terem sido gente: "spon
te sua". Espontaneamente, isto é, segundo a sua natureza
de homens. É, portanto, natural que tenham aberto cla
reiras na floresta para dominá-Ia. Em virtude de terem
sido homens, é natural que nossos antepassados "esco
lheram" = "excolebant" determinados lugares na floresta
para transformá-Ios em cultura, em prados.
Sabemos aproximadamente como agiam. Avan
çavam contra a floresta com pedra e fogo. Mais difícil é
intuir como escolhiam. Para poder escolher determina
do lugar em contexto dado, e para poder recusar todos os
demais lugares, é preciso estar além do contexto, vê-Io de
fora. A dificuldade que temos é a de intuir tal transcen
dência em gente tão "primitiva" como presumimos terem
sido os nossos antepassados. É que tendemos a compará
los com os indígenas atuais, e nem sequer avaliam,os bem
como os indígenas atuais estão no mundo. Esses indíge
nas que vivem em nível paleolítico, como os nossos an
tepassados dominadores da floresta, seguramente enfren
tam a natureza pela mesma transcendência pela qual nós
a enfrentamos. Mas, assim mesmo, não exemplificam o
estar-no-mundo dos nossos maiores. Representam, pro
vavelmente, um modo de vida regressivo, e certamente
um modo de vida ultrapassado pela maioria da huma
nidade. Os nossos antepassados, pelo contrário, eram
vanguarda do exército do espíriro humano que avançava
contra a natureza. A pedra e o fogo eram armas por elesinventadas e elaboradas revolucionariamente, e a ideia
do prado a ser escolhido e cultivado era fruto de fantasia
revolucionária, utópica e previamente jamais imaginada.Não eram primitivos, no sentido de terem sido menos so
fisticados na sua reflexão ou na sua práxis que as geraçõespresentes. Pelo contrário, se procurarmos intuir sua ima
ginação, sua disciplina e seu rigor de pensamento e ação(por exemplo, se procurarmos intuir a mente do inventor
do arco), devemos concluir que suas capacidades mentaisnada deviam às da nossa mais refinada elite.
Temos provas dos Edisons entre as supostas "hor
das" desbravadoras de prados (cerâmica, limas de pedra,
agulhas de osso). Somos obrigados a admitir os Einsteins
entre eles (os que calculavam o trajeto da flecha e o princí
pio da cunha). Temos provas dos seus Picassos (a elegân
cia dos ornamentos). Somos obrigados a admitir os seus
Kants (os que criticavam o princípio da cunha e a elegân
cia dos ornamentos), e os seus Kafkas (os que procuravam
um sentido por trás de tal ação e paixão). Devemos, pois,
imaginar os diálogos em rorno das fogueiras nos prados
recém-cultivados mais como reuniões de pesquisa e re
flexão avançadas, e menos como os "potlachs" atuais dos
108 Natural:menteVILÉM FLUSSER 109
Índios nas Aleutas. Do contrário, não compreenderemos
a elegância, a perfeição funcional e a suavidade arrojada
dos prados nas encostas da montanha. Aquilo que OvÍdio chama de "fidem et rectum". E a observação do prado
permitirá também penetrar um pouco no clima religiosodos nossos antepassados. A saber: o que OvÍdio tinha em
mente ao dizer que os nossos antepassados da Idade deOuro "fidem colebant" (cultuavam a fe).
O termo "rectum" ovidiano não nos causa demasia
da dificuldade, porque o prado prova estar no lugar certo,
correto, adequado. O critério da "retidão", que, de acordocom OvÍdio, os nossos antepassados aplicavam esponta
neamente, é critério econômico, técnico, pragmático,
metódico, pelo qual os nossos antepassados superavam a
caça e se iniciavam na agricultura. É o critério tecnocrá
tico que marca a passagem do paleolítico para o neolítico(da Idade de Ouro para a Idade de Prata). (Embora OvÍdio talvez não tenha exatamente isto em mente. Porque
"rectum", para os romanos, faz parte do trinômio "pulchre, bene, recte" (belo, bom, correto), portanto, implica
a noção da verdade). Mas, seja como for, podemos con
cordar com OvÍdio que o prado observado confirma queum dos critérios da escolha na transformação da natureza
em cultura foi o da adequação às metas econômicas visa
das. A prova disso é que os prados continuam funcionando economicamente até os nossos dias, e que o agricultor
montanhês que os habita vive deles, e muito bem, comodeles viviam os nossos antepassados. O problema é, repi
to, o de saber o significado do segundo critério, chamado
por OvÍdio de "fides".
Mas o prado, se consultado, dá a resposta. Embora
saibamos ser ele produto da cultura, e embora possamosdescobrir na sua "Gestalt" e nos seus mínimos detalhes a
mão e o espírito humanos, não podemos negar ser ele par
te integrada da natureza. Digo mais: a vivência do prado,da sua erva, das suas flores, dos seus insetos e até das vacas
que nele pastam é uma das mais intensas vivências de na
tureza que podemos ter, e deitar num prado ensolaradoé entrar em comunhão com a natureza. Tal vivência não
é facilmente explicável. Não, por exemplo, dizendo que
° prado emana o clima de natureza intensificada por ter
sido conquistado há tantos milhares de anos, e que um
bairro industrial emana o clima de antinatureza, por ser
conquista recente. Isto não explica a vivência, porque a
horta que cerca a casa camponesa no prado é igualmente
antiga, mas não nos impressiona sendo natureza. Não é a
sua idade, nem a sua localização, nem a sua flora a fauna,
nem aspectos da mesma ordem que tàzem com que o prado, por ser cultura, é natureza intensificada. É, o critério
de acordo com o qual foi escolhido para deixar de ser flo
resta e passar a ser prado. A saber: ".fides".
Em virtude de serem homens, os nossos antepassa
dos tinham ".fides", isto é, eram .fiéis a si próprios, à sua
própria natureza, e à natureza que os cercava. Eram-no es
pontaneamente, sem dogma nem ideologia ("sine lege").
Viviam de acordo e em acordo consigo e com o mundo no
qual estavam (Idade de Ouro). Esta era a sua religiosidade
("fides''): ser fiel ao que sou e ao que me cerca. Mas tal
fidelidade não é, como tendemos a pensar, "adoração pri-
110 Naturahmente VILÉM FLUSSER 111
mitiva da natureza". Não é um render-se ("super-stitio" àsforças da natureza. Porque tal rendição não é natural aohomem e, portanto, não é fidelidade à natureza humana.Ser fiel a sipróprio, para o homem, é ir contra a natureza,utilizar o critério do "rectum". A natureza não é como
deve ser, e deve ser retificada, e isto é atitude de fidelidade
à natureza humana. Portanto, "fidem rectumque" não écontradição, mas complemento. "Pides" é o aspecto passional, paciente e passivo, "rectum" o aspecto dramático,ativista e ativo da virtude humana, pela qual a naturezaé transformada em cultura. O prado é como é (a saber:natureza intensificada) por ser articulação da fidelidade ànatureza. Ao terem transformado os nossos antepassadosa floresta em prado, provocaram nela a essência natural ea salientaram. Continuavam fiéis a ela. O prado, por sercultura (e não a despeito de ser cultura), é essencialmentenatureza. Porque foi produzido sob o critério de "fides".Sob o critério de uma religiosidade integrada.
Os nossos antepassados não eram paisagistas. Nãovisavam integrar a cultura na natureza. Não sentiam contradição entre cultura e natureza. Não "fidem rectumquecolebant", isto é, sintetizavam fé com tecnologia, e, aoproduzirem cultura, revelavam a essência da natureza.Não eram, como os paisagistas, alienados da natureza emprocura da superação da alienação por ação deliberada.Para eles, cultura era o que é natural ao homem e,portanto, apropriado à natureza toda. E podemos nós, seus descendentes alienados, sorver ainda um pouco a sua inte
gração característica da Idade de Ouro, ao deitarmos em
prado por elescriado há tantos milhares de anos. O pradonos permite (como permitiu a Ovídio) captar também osignificado do primeiro verso do epos: "Áurea prima satãest aetas quae vindice nullo". (No início foi semeada aIdade de Ouro, e não havia juízes.)
Ventos
Em certas noites, o vento cerca minha casa com fú
ria desesperada, por não poder derrubá-Ia, ou pelo menos
entrar nela por alguma janela ou porta entreaberta. Em
tais noites, minha casa se transforma naquele castelo for
tificado que resiste aos elementos do qual trata tanta li
teratura passada. Efetivamente, sinto-me abrigado e em
paz comigo mesmo e com o mundo, enquanto o vento
procura sacudir os alicerces da casa. Sei que o vento não
conseguirá entrar, e que nisto se distingue de ladrões e da
polícia secreta. Tenho confiança na solidez da construção
da casa (cultura), com relação à força enorme, mas cega,
dos elementos da natureza. Mas não confio na construção
quando se trata de resistir a forças menores, mas dirigidas,como o são as da cultura. Minha casa não resistirá nem à
polícia, nem a ladrões, nem muito menos a bombas. Nem
sequer a uma ordem da Prefeitura para derrubá-Ia. Mas a
114 Natural:mentc VILÉM FLUSSER 115
diferença entre vento e polícia não pode ser a diferençaentre cegueira e ação planejada. Para mim, o vento, embora cego, é previsível por boletim meteorológico, mas apolícia ataca de surpresa. É que o vento obedece a umaordem cega, mas publicamente conhecida e, portanto,manejável. A polícia, os ladrões e as bombas obedecema ordem parcialmente secretas, parcialmente muito malconhecidas, e parcialmente contraditórias e, portanto,não manejáveis. A Prefeitura, que obedece a ordens aparentemente emanadas do público, aparentemente emiteordens públicas, e me permite aparentemente adaptar-meàs suas ordens e influir nelas, é na realidade força contraa qual toda proteção é ineficiente. É que a força do vento é quantificável, mas ainda não é possível dizer-se que apolícia ataca em tal lugar e momento com força oito. Asciências da cultura ainda não alcançaram e talvez jamaisalcançarão a exatidão das ciências da natureza. O terroroutrora provocado pelo furacão o é agora pela bomba.Mas o terror da bomba é profano. O sacro terror foi superado pela solidez da construção da casa.
No entanto, não sepode negar que algo da sacralida
de perdida ainda cerca o vento. ~ando uiva em torno daminha casa posso ainda vivenciar, embora palidamente(porque protegido pela casa), a tremenda mensagem queo seu uivar outrora transmitia. Nas palavras de VrchIicky:"Jeho písen stáIá, veliky jest Alá" (seu canto constante,Alá é grande). Tal mensagem se deve, quiçá, ao fato de ovento ser coisa invisível.É coisa e sei disto perfeitamente.Pode ser medido, pesado e localizado no espaço. Mas é
invisível, e isto confunde o nosso conceito de "realida
de" que é conceito visual, não auditivo. Confunde, porexemplo, a hierarquia imposta sobre a nossa mente pelasintaxe das nossas línguas. Tal hierarquia é nítida quandose trata de coisas visíveis.Na sentença "o sol brilha", nãohá dúvida de que "sol" é o sujeito e "brilha" o predicado.Mas a sentença "o vento uiva" é reversível. "Uivo" podeser o sujeito e "venta" o predicado. O vento é essencialmente fenômeno acústico (onda sonora). O sol, no entanto, emite ondas, é o substantivo das ondas. O vento é
o próprio verbo, embora substantivado. A rigor, o ventoé impredicável. Dizer que o vento uiva é dizer tautologia.
Há coisas na natureza que são visíveis, mas inaudíveis. O sol, a lua, as estrelas, em suma, as coisas celestes.Coisas "substantivas". Por serem inaudíveis, são distan
tes e não podemos aproximar-nos delas. Porque a vistaé sentido que nos separa das coisas, e o ouvido sentidoque nos mergulha nelas. O mundo visto é circunstância,o mundo ouvido é mundo participado. As coisas da natureza que são audíveis, mas invisíveis, como o furacão ea brisa, penetram por nossas narinas, bocas e poros. Sãocoisas "verbais", não "substantivas". São vozes que noschamam. Correm em sentido contrário ao das nossas
próprias vozes e podem ser incomparavelmente mais poderosas (como vento que uiva em torno da minha casa).No entanto, são essencialmente coisas do mesmo tipo dasnossas próprias vozes. Já que tais coisas nos penetram, ejá que são essencialmente como nós, são excessivamentepróximas para serem "contempladas". Portanto, não são
116 Natural:mente VILÉM FLUSSER 117
apenas invisíveis, são inimagináveis. A nossa relação comtais coisas é dialógica, não imaginativa. Dois limites danatureza, duas "sacralidades": o limite das coisas visíveis,mas inaudÍveis, e o das coisas audíveis, mas invisíveis. O
primeiro é "substancial", e é sacro por ser inaproximável.O segundo é "verbal", e é sacro por ser inimaginável. Oprimeiro pode ser chamado "espectral", se por "espectro"entendermos aparição silenciosa. O segundo pode serchamado "espiritual", se por "espírito" entendermos sopro inimaginável.
Ambas as "sacralidades" estão superadas tecnicamente, e neste sentido a humanidade ultrapassou os limites da natureza. A Lua, uma das coisasvisíveis,mas inau
dÍveis, foi, como se diz, "conquistada". De deusa passou aplataforma. E os ventos, há muito, prope1em moinhos evelas. De espíritos que sopram como querem, passaram aforças que sopram como nós queremos. E ambas as "sacralidades" estão superadas teoricamente por síntese profanizadora. O "vento" passa a ser "energia", o "sol" passaa ser "matéria", e um passa a ser aspecto teoricamentereversível do outro. Formalmente falando, inventamos a
linguagem da matemática, na qual não há mais substantivos nem verbos, mas apenas funções relacionais. E taisfunções funcionam. Na forma, por exemplo, da Bomba.Por síntese teórica que funciona na práxis profanamosambas as "sacralidades", os "espectros" viraram "espíritos", os "espíritos" viraram "espectros", e o nosso terroré doravante profano. É o terror das equações, e é sob o"equilíbrio do terror" que vivemos doravante.
Ambas as "sacralidades" estão superadas tecnicamente e teoricamente. Mas não existencialmente. Em
certas noites, quando vento cerca minha casa com fúriadesesperada, posso ainda ouvir a voz da "sacralidade". Adespeito da solidez da construção da casa, e a despeitodas informações teóricas das quais disponho. Por certo,a solidez e a informação disponível interferem na mensagem do vento. Mas não podem destruí-Ia. Interferemda seguinte maneira: minha mente é produto de duastradições contraditórias e jamais satisfatoriamente sintetizadas. Da tradição da voz e da tradição da imagem. Domandamento, e da ideia. Do verbo, e do substantivo. Da
decisão existencial, e da metafísica especulativa. Não posso simplificar o dilema ao dizer que a tradição do invisívelé a judia, e a do inaudÍvel é a grega. É dilema anterior àsduas culturas fundantes da minha mente. Já na cultura
judia há elementos imaginativos, embora os profetas setenham esforçado por expurgá-Ios. E já na cultura gregahá elementos dialógicos, embora o "logos" tenda semprea idealizar-se.O dilema entre "vento" e "coisaceleste" não
é o entre "olam habá" e "topos uranikós" (o mundo quevem e o lugar celeste), mas é o dilema muito anterior entre o estar-no-mundo de quem ouve, e o de quem vê, dequem é chamado e se decide, e de quem tira o véu e contempla. Tal dilema é insuperável, porque assumir umadas alternativas é amputar metade da própria mente. Eisto interfere na recepção da mensagem do vento que uivaem torno da minha causa.
Mas não pode destruí-Ia. Porque o vento uiva, istoé, fala. Portanto, não é coisa. Coisas não falam. O vento
118 Natural:mente VILÉM l~LUSSER 119
não é um algo; é um alguém a quem devo responder, é umTu que me chama para eu ser Eu. Por ser um Tu, o ventonão pode ser imaginado, concebido, conhecido e mani
pulado. Deve ser ouvido, recebido, reconhecido e seguido. ~ando o vento é imaginado, concebido, conhecidoe manipulado, como é na técnica e teoria, deixa de ser
vento, e passa a ser movimento de ar, é "objetivado". E ovento não é objeto: é meu outro. Não é; existe. Por isso,
diz Buber: "Deus não é: creio n'Ele". E Angelus Silesius:"Ich Weiss, dass ohne mich Gott nicht ein Nu kann le
ben" = sei que sem mim Deus não pode viver sequer uminstante. O vento é vento para mim, se eu lhe permitirser vento. E se não lhe permitir, será movimento de ar,
e não vento. Se não lhe permitir ser vento, será problema da aerodinâmica, parcialmente já resolvido. Mas selhe permitir ser vento, será enigma. Se não lhe permitirser vento, perderá a voz, e passará a ser vibração em decibéis manipuláveis. Será mudo. Mas agora, nesta noiteem que cerca minha casa com fúria desesperada, o vento
fala. Porque estou disposto a ouvi-lo. Por isso, aprece quediz "Chemá Israel,JHYH elohenu JHYH ekhád" (ouça,lutador por Deus, JHYH é nosso Deus, JI-IYH é um), éprece e não afirmação indicativa. Diz: "ouça!" O ventoque cerca minha casa com fúria desesperada nada indica;
impera. Se eu lhe permitir isto. Essa é a sua mensagem.A despeito de todas as interferências ainda a recebo emnoites como esta.
Por certo, as interferências fazem com que não receba mais a mensagem em forma "ortodoxa". Nem judeus,
nem cristãos, nem muçulmanos (os que afirmam que estão recebendo a mensagem "ortodoxalmente") poderãoadmitir ser a mensagem que eu recebo a "verdadeira".Afirmarão que a voz do vento que cerca minha casa nãoé a verdadeira voz, e que eu estou sendo supersticioso aopermitir ao vento que fale. Mas o diálogo com tais ortodoxos é, para mim, difícil. Sou incapaz de ouvir as vozesque eles afirmam que ouvem (as "verdadeiras"), e devo
admitir que desconfio, não tanto do fato de que as ouvem, quanto da veracidade de tais vozes. Porque duvidoque sepossa eliminar as interferências teóricas e técnicas a
ponto de permitir a tais vozes que falem. Suspeito que osortodoxos fazem violência contra as interferências parapoderem ouvir, e que, em consequência, o que ouvem éfalso. Mas não insisto muito em tal desconfiança, dúvidae suspeita minha. Estou disposto, com leve inveja, a admitir hipoteticamente que elesouvem o que eu não ouço.~anto a mim, devo contentar-me com o enigma que
ouço no vento que uiva em torno de minha casa. ~emsabe, trata-se, para eles e para mim, do mesmo enigma?~e deve, mas não pode, ser decifrado?
O vento uiva, nesta noite, em torno da minha casa.
Sinto-me abrigado, porque sei que, ao contrário das forças nefastas da cultura, ele não pode entrar casa adentro.E simultaneamente procuro permitir, a despeito disso,
que o vento me fale. ~e me penetre sem penetrar-me.É a dialética entre o conhecimento que se fecha ao objetivar, e o reconhecimento que se abre ao permitir ao outroque seja. Situação insustentável, porque minadora tanto
120 Natura1:menre
do conhecimento quanto do reconhecimento. Situação
característica do fim de um jogo, ou do início de um jogonovo. Perda do conhecimento da fé, e da fé no conheci
mento. Situação na qual o visível se torna invisível, e o
audível inaudível. Situação nossa, a despeito de tanta con
versa relativa à "audiovisualidade". É preciso que o vento
uive furiosamente, para eu ainda poder ouvi-Io um pou
co e palidamente. Mas sei que o vento que cerca minha
casa é, objetivamente falando, movimento de um gás, e sei
que, objetivamente falando, a palavra "gás" tem a mesma
raiz etimológica que a palavra "chaos". De maneira que
sei que o que cerca minha casa não tem fundamento, em
bora seja meteotologicamente previsível e embora obede
ça a regras cegas. Tal saber meu da falta de fundamento
por baixo das regras que ordenam a natureza é um saber
que já é quase um reconhecimento. É uma maneira de se
perder a fé no conhecimento pelo próprio conhecimento.
Não é, por certo, uma conquista da "fé", no significado
que os ortodoxos dão ao termo. Mas não deixa de ser uma
abertura. Porque o "caos" do qual o vento me fala não é o
acaso de um movimento browniano no gás em torno da
minha casa. É o "caos" uivante. E esta é a interpretação
que dou à mensagem do uivo: "and this is alI the wisdom
Ican reap: Icame like water, and like wind Igo".
Maravilhas
Sei que uma das "provas" tradicionais da existência
de Deus é que a natureza revela determinado propósito,
isto é, deliberação criadora. Não me lembro da primeira
vez em que fui exposto a tal argumento. Mas não duvido
que isto deve ter ocorrido durante um passeio, e que deveter sido minha ama que, ao apontar uma flor maravilhosa
ou a maravilhosa cor de um pássaro, iniciou minha ten
ra mente à metafísica e à teologia. Deve ter sido minha
ama e não minha mãe, porque amas, mais que mães, ten
dem para o romantismo. Nem me lembro quantas vezes
e sob que formas variadas o mesmo argumento em prol
de um Deus criador do mundo me foi repetido. Deve ter
sido muitas vezes e sob formas sempre mais complexas.
Mas lembro-me, isso sim, e nitidamente, da primeira vez
quando vivenciei a falsidade de tal "prova". Devia ter
uns oito anos e meu tio me levou à pesca. Mostrou-me
122 Natural:mcnte VILÉM FLUSSER 123
como enfiar minhocas em anzóis e a práxis da minhocana minha mão fez com que a ideologia do Deus criadordo mundo maravilhoso se tenha evaporado para mimdefinitivamente. Deve ter sido uma vivência forte, mis
tura de nojo, dó e sentimento de culpa, mas o que deveter prevalecido foi a descoberta da estupidez brutal deum suposto criador de minhocas, peixes e pescadores. Édifícil analisar, em retrospectiva, o que se passou entãona minha mente infantil, mas lembro-me perfeitamente
que deixei de crer em Deus-criador por piedade de Deus.Como se tivesse compreendido intuitivamente que a hipótese de um Deus-criador do mundo é contrária a todafé em um Deus do amor e da esperança. Intuitivamentedevo ter compreendido que o Deus responsável pela morte da minhoca exclui o Deus ao qual recomendava todanoite "todos os adultos e todas as crianças". É daro queestou falsificando a vivência infantil ao dizer que "opteicontra o Deus dos filósofos para poder conservar o Deusexistencial", mas são estas as palavras que me ocorrem natentativa de explicar o então vivenciado.
Não sei até que ponto a experiência relatada é típica,mas deve ser muito típica, já que aos oito anos não podehaver muita originalidade. Pois se é típico para a idade deoito anos recusar a "prova" da existência de Deus pela observação da natureza, várias perguntas surgem. Tais per
guntas podem ser ordenadas em três grupos: a) perguntassociológicas, b) teológicas e c) epistemológicas. As sociológicas perguntarão como, por que e quando a hipótesedo Deus-criador surgiu, de que forma conseguiu resistir
às críticas dos maiores de oito anos, e como tais críticas
podem ser formuladas a despeito da pressão formidávelexercida pela ideologia sobre crianças de oito anos. As
perguntas teológicas perguntarão como a fé consegueresistir ao peso morto do dogma de um Deus-criador,
como tal dogma pode ser absorvido por uma religiosidade "dialógica", e porque deve ser mantido a despeito dasdificuldades morais, científicas e filosóficas insuperáveis.Mas são asperguntas epistemológicas que interessam neste momento em que estou sentado no meu terraço ensolarado, contemplando as maravilhas da natureza. Porquefoi a contemplação de tais maravilhas que motivou a lembrança da "prova" de Deus enquanto criador da natureza.
A cena que estou contemplando (paisagemhibernaldespertando, hesitante, sob os raios provocadores de umsol de quase primavera) está encoberta por várias camadas "explicativas" e "interpretativas" da minha cultura:por meus preconceitos. Contemplá-Ia significa exatamente procurar retirar, ou furar, ou tornar transparentestais camadas encobridoras, a fim de vê-Ia imediatamente.
Tarefa desesperada, porque as mediações culturais que seinterpõem entre mim e a cena são a minha maneira deestar na cena. A comunicação imediata, a "unio místi
ca", visada pela contemplação, é meta desesperada, porser, ela própria, preconceito imposto por minha cultura.Existem métodos, técnicas, exercícios, iogas, "reduçõesfenomenológicas" etc., que afirmam poder provocar talcomunicação imediata, e tal tecnicidade, por si só, já autoriza desconfiarmos dela. Porque parece ser contradi-
124 Narural:mente VILÉM :FLUSSER 125
tório querer alcançar o contato imediato mediante algo.~erer deliberar a espontaneidade. Há um sabor empírico e pragmático em todo misticismo que o torna amargo.No entanto, contemplar no sentido de procurar deixarde explicar e interpretar não é empresa necessariamentefrustrada; embora não conduza à comunicação imediatacom o contemplado, pode remover preconceitos. Contemplação pode ser crítica não discursiva dos discursosexplicativos e interpretativos.
As camadas que encobrem a cena por mim contemplada são projeções da minha mente, a qual, por sua vez, é
sistema programado pela história da minha cultura. Comefeito, um método eficiente para eu me tornar conscienteda minha programação é a crítica das camadas encobridoras da cena. Reconheço-me nas camadas encobridoras, edigo mais: sou tais camadas, sou esta específica coberturada cena. Ao procurar removê-Ia estou, com efeito, procurando retirar-me a mim próprio dela,para permitir à cenaque seja ela mesma. E ao procurar retirar-me, verifico oque sou: sistema historicamente programado para captara cena. Este é o primeiro passo da contemplação: verificarque a observação da natureza é uma crítica da história dacultura.
Posso distinguir, muito nitidamente nas camadasencobridoras, os famosos três tipos: as estéticas, as éticas eas explicativas. Graças ao primeiro tipo, estou vivenciando a cena contemplada hiper-realisticamente, expressionÍstica e impressionisticamente, naturalística e romanticamente, e assim por diante. A minha vivência concreta
da cena contemplada "repete a filogênese da arte". Não,por certo, "corretamente". Cometo anacronismos. E nãoestou à altura do meu tempo. No momento, por exem
plo, estou vivenciando a cena "classicamente", e este é oprimeiro motivo de eu maravilhar-me: por que será quea cena contemplada "separece" com cenas setecentistas?
Graças às camadas éticas, estou sendo provocadopela cena a engajar-me nela ou contra ela. Não é tão fácildescobrir a estratificação de tais camadas, como no casodas estéticas, talvez por ser a história da "razão prática"contraditória e cheia de recaídas. Mas posso, isto sim,
distinguir três formas básicas, três "modelos de comportamento". A cena contemplada não é como deve ser, eeu devo mudá-Ia. Ou a cena contemplada me convida a
entregar-me a ela, ou a cena contemplada não passa debastidores do palco no qual ajo. Sem dúvida, o fato deeu ter me lembrado da minhoca faz com que eu esteja,no momento, assumindo o primeiro modelo de comportamento. Acho cruel e revoltante a cena que vejo, vibro
com justa ira, e gostaria "remould it nearer to the heart'sdesire". Mas sei, simultaneamente, que tal atitude revolucionária faz parte do meu programa. E isto é o segundomotivo de eu maravilhar-me: por que será que hoje a cename chama ao combate, e ontem a mesma cena me cha
mou à paz do gozo passivo?A lembrança das minhas minhocas provoca, na con
templação da cena, principalmente a crítica das camadasexplicativas. O fato é que, embora tais camadas pareçamse superar mutuamente, não se cancelam. E isto é o ter-
126 Naturahmente VILÉM FLUSSER 127
ceiro e maior dos motivos de eu maravilhar-me. Sem dú
vida, as camadas explicativas são "progressivas", e a mais
recente explica "melhor" que as mais antigas. "Melhor",
por sintetizar dialeticamente as mais antigas. Nisto as
camadas explicativas se distinguem estruturalmente dos
dois demais tipos. Não tem sentido dizer que a camada
hiper-realista permite vivenciar "melhor" a cena que a ca
mada classicista, nem que o modelo de comportamento
revolucionário permite agir "melhor" sobre a cena que o
modelo neutralizante. Mas tem sentido dizer que a expli
cação da origem da vida que contemplo na cena, e que é
oferecida por Jacques Monod, é "melhor" que a explica
ção oferecida por Darwin, e muito "melhor" que a ofere-·
cida pela tese de que "Deus é o criador da vida". Pois por
que, se assim é, tais camadas superadas não desaparecem?Por que continuam a encobrir a cena? Esta é, com efeito,
a pergunta que foi provocada pela lembrança da minhoca: por que, já sei explicar a vida em torno de mim muito
melhor, por que a explicação "Deus" continua a atrapalhar minha visão da cena?
Creio que tenho a resposta a tal pergunta, mas não
estou gostando dela. A explicação da origem da vida dada
por Jacques Monod é obviamente "formal": um jogo. Ele
próprio fala em "jogo da evolução do RNA" e aponta as
suas três regras: a stérica, a da complementariedade, e a do
cooperativismo. Dadas tais regras, a vida passa a ser explicável enquanto processo "necessário", no sentido curioso
de ser necessário o acaso. E não apenas passa a ser explicá
vel, como, em tese, reconstruÍvel. ~em conhece o jogo,
pode criar vida e fazer com que evolua. Em tese. Pois é
isto que caracteriza o progresso das camadas explicativas.
As mais recentes são mais formais, mais do tipo "jogo",
que as anteriores, e por isto "melhores". As anteriores são
"piores", porque dizer que Deus criou a vida nada explica,
não aponta as regras do jogo. E é por isto que as cama
das anteriores não podem ser retiradas. Por não aponta
rem regras, encobrem melhor a cena. Por não explicarem
"bem", funcionam melhor enquanto camadas encobrido
raso E por encobrirem melhor, tornam a cena visível. Na
explicação do tipo Monod, a cena se torna quase invisível:
não vejo mais a vida, vejo o jogo vazio. Para ver, preciso
de mediação grossa, por exemplo, Deus. Se "refino" Deus,
não vejo maisa cena.
Não estou gostando disso nem um pouco. Então
preciso de Deus enquanto criador do mundo para poder
vê-lo, embora saiba que Deus é uma péssima explicação
do mundo? Embora saiba que se assumo o Deus-criador
não posso amá-Ia? Preciso de Deus para que o mundo não
se evapore em formas vazias e transparentes, embora saiba
que o mundo "não evaporado" é um contexto aparente
que consiste em minhocas espetadas? E mais: não apenas
preciso e exijo tal Deus, como não posso me livrar dele?
Não estou gostando disso, e este meu não-gostar é a maravilha de todas as maravilhas. O mundo é maravilhoso,
porque se o "descubro" desaparece, e se deixo encoberto
passa a ser horrível. E, finalmente, porque as duas alterna
tivas não são opções verdadeiras: sou obrigado a ambas.
Tanto ao "formalismo" quanro ao "wormlike feeling".
128 Natural:mente
Sou obrigado tanto a "refinar Deus", quanto a crer noCriador a despeito de todas as explicações progressivasdas quais disponho.
Sei perfeitamente que a natureza, se analisada, nãorevelará um propósito Divino, mas um jogo cego entreacaso e necessidade. E sinto que, se me decidir a ver propósito na natureza, este será diabólico, não Divino. E simultaneamente sei que se me livrar do Demiurgo (coisaque não posso), a natureza desaparecerá diante dos meusolhos. Essa total confusão epistemológica, ética e estéticaé minha maneira de encarar a natureza e minha maneira
de procurar superar o abismo que me separa dela. Não éisso maravilhoso? Sim, a natureza é maravilhosa: consiste
em minhocas espetadas nas quais admiro um Criador oqual sei que não passa de projeção de uma dialética cretina entre acaso e necessidade.
Botões
Os ramos das macieiras debaixo do meu terraçomudaram desde ontem. ~ando os vi pela última vez pareciam elementos de uma estrutura vazia e eram, comoconvém a elementos de estrutura, cinzentos, nus e cla
ros. Com efeito, a horta que cerca minha casa ofereciaontem visão "estrutural" e "formal" em sentido radical
de tais termos. Era contexto composto de estruturas dotipo "árvore", isto é, de formas ramificadas. Por certo, es
sas "árvores" eram estruturas complexas. Os ramos nãoapenas partiam do tronco em lugares geometricamentedetermináveis, para depois se bifurcarem diversas vezes e
hierarquicamente. Havia também um elemento perturbador da ordem. Os ramos se contorciam, pareciam recruzar-se em vários lugares, e alguns dos ramos eram maisfortes que outros. Mas isto não os impedia de serviremde modelos de estrutura. Pelo contrário, por terem sido
130 Naturabnente
v,Ü. 'cem, m II
estruturas complexas, serviam melhor para serem preen
chidas de conteúdo. Minha visão das macieiras projetava
nelas vários conteúdos. Por exemplo: esta macieira aqui
"ilustrava" a estrutura da evolução da vida, esta outra a es
trutura da genealogia das línguas flexionais, e esta terceira
a estrutura das ciências da natureza. Este ramo aqui "re
presentava" o ramo dos vertebrados, e este outro o ramo
das línguas latinas, e este terceiro o ramo da química inor
gânica. E a visão da minha horta permitia, ontem, jogo
divertidíssimo da fantasia. Esta macieira aqui não servia
para Darwin, porque seus ramos tendiam a formar copa
horizontal, mas servia muito bem à genealogia da casa
dos Habsburgos. E esta outra macieira era indicada para
a genealogia linguística, porque vários ramos se entrecru
zavam para depois se separarem, e porque o tronco era
. composto de vários sub-troncos.
Tal jogo da fantasia não é mais possíveL A razão é
que choveu durante a noite, e hoje, quando abri a janela,
vi que os ramos das macieiras mudaram. Estão cobertos de
botões que sei (embora não os veja) que serão flores bran
cas e rosadas. Por enquanto, são botões modestos, pertur
bações leves e apenas visíveis da superfície lisa dos ramos.
Uma espécie de doença da pele das macieiras. Mas sei que
tal doença é sintoma de saúde. As macieiras despertaram
durante a noite para o seu destino. O "virtual" neles (a
flor) irrompeu, chegou à tona. Ao "virtual" se acrescen
tou, durante a noite, o "necessário", e passou, esta manhã,
a ser "realidade". O milagre da transfiguração operou-se
nas macieiras durante a noite. O salto ontológico do me-
ramente possível para o efetivamente real foi dado. O fu
turo se transformou em presente. Ontem, a flor estava no
futuro das macieiras, hoje está presente.Para as macieirassoou como trombeta durante a noite: estão todas muda
das. Tal revolução ontológica não me permite mais vê
Ias como se fossem estruturas. Sou obrigado, doravante,a vê-Ias como se fossem tendências rumo a um destino.
Tendências rumo à flor e ao fruto. Não que seu aspecto
estrutural tenha sido eliminado. Mas está "aufgehoben".
As estruturas agora sustentam um processo. Processo quevisa à meta determinada. Maçãs, e não a casa dos Habs
burgos ou a genealogia das línguas são doravante o "con
teúdo" da forma das macieiras. Tal milagre (porque todo
salto ontológico, toda revolução é milagre) se chama "pri
mavera". E não importa que se repita todos os anos. Não
importa, no "kykIos tés genéseos", que se trata de cicio. O
que importa é que se trata de geração, do surgir de algonovo. A forma da geração, do processo revolucionário,
se superpõe sobre a forma do cicio, da repetição, e este é
o milagre. O eterno retorno como vontade do poder, o
botão de todo março como revolução, Nietzsche e Marx
como irmãos gêmeos, eis como sou obrigado a "ler" as minhas macieiras.
O que vejo, pois, ao olhar minha horta, não é mais
visão estrutural, mas trágica: vejo o destino. Por isso disse
que sou obrigado a "ler" as macieiras. Está escrito nelas
("maqtub") que darão flor e fruto. Assim deverão ser, não
poderão fugir de si mesmas. "So musst du sein, dir kannst
du nicht entfliehen"). ("Worte, orphisch." Goethe.)
132 Natural~mente VILÉM FLUSSER 133
Não vejo mais estruturas, vejo Édipo na minha horta.Compreendo, ao olhar os botões, porque Édipo, ao terprocurado tragicamente fugir do seu destino, na realidade o cumpria. Matar o pai, dormir com a mãe, e arrancaros olhos da cara é tão fatal para Édipo, como é para asmacieiras irromper em botões, dar fIor e fruto, perder as
folhas e cristalizar-se em estrutura. ~erer evitar matar opai para Édipo é como querer evitar dar fIor para as macieiras. Se não tivesse matado o pai, não teria sido Édipo,e se não tivessem irrompido botões, não seriam macieiras.Mas há esta diferença entre Édipo e minhas macieiras. Ahybris, o heroÍsmo condenável e condenado, é impossívelpara as macieiras. São trágicas sem sabê-lo. São Édipos inconscientes. A sua tragédia o é para mim, não para elas.Mas quem sabe Schopenhauer tenha razão, e a tragédiaseja o oceano comum do qual macieiras e eu brotamos, avontade trágica que é representada pelas macieiras de umlado, e por mim de outro, nesta primavera?
Mas como tudo isso é possível?Como podem os bo
tões impor sobre mim visão trágica do mundo? O própriotermo "destino" soa estranhamente aos meus ouvidos.
Não se adapta, de forma nenhuma, à minha vivência dotempo. Não penso "finalísticamente", mas "causalmente"ou "estruturalmente". O mundo não é, para mim, tragédia, mas teatro do absurdo. O futuro, para mim, não é
meta fatalmente "predeterminada", ma~horizonte abertode virtualidades realizáveis.Para mim, o caminho não é a
viagem em busca da destinação ("destino"), mas viagemaventurosa sem meta ("sentido"). "Futuração", para mim,
não é a descoberta do fim (da "finalidade"), mas a pros
pecção do possível (da "liberdade"). Viver, para mim, nãoé encontrar meu sentido, mas dar sentido. O sentimento
trágico da vida e do mundo (o fatalismo) não me é estranho, mas é sentimento submerso. O que domina em mimé a vivência do absurdo. Para mim, "necessidade" não é
o fim, mas a causa. Para mim a natureza não é livro es
crito que devo ler para poder viver "corretamente". Nãosou nem órfico nem maometano. Para mim, a natureza é
conjunto sem significado, que adquire significado apenasquando eu e os meus semelhantes o transformam em cultura. Para mim, é isto que distingue natureza da cultura:cultura é texto legível (mundo codificado) escrito sobre ofundo natural sem significado ("wertfrei = isento de valores"). Como podem os botões revolver, assim, as categorias impostas sobre mim por minha cultura antitrágica eantifatalista?
A questão pode ser facilmente driblada, se eu recorrer à lógica formal, mas nem por isso será resolvida.Posso dizer que, formalmente, existem três grupos de"explicações": (a) as finalísticas que dizem "para", (b)as causais que dizem "por causa" e (c) as estruturais quedizem "desta forma". Por exemplo: (a) pássaros fazem
ninhos para neles guardarem ovos, (b) pássaros fazemninhos por causa dos seus instintos e (c) pássaros fazemninhos em jorma de cones. O tipo (a) de explicação é omais satisfatório, porque torna o explicado algo que temsentido. O tipo (c) é o menos satisfatório, porque explica
apenas formalmente. A história do pensamento começa
134 NaturaI:mente Vn.ÉM FtUSSER 135
por explicações do tipo (a), vê-se obrigada a abandoná-Ias
em favor de explicações do tipo (b), e atual e penosamen
te está abandonando também a causalidade em prol do
formalismo. A história do pensamento é, pois, a históriade explicações que se tornam menos satisfatórias com o
correr do tempo. Mas tal erosão da satisfação (e do significado) não acontece em todos os campos com o mesmo
ritmo. Dizer que "chove para molhar a terra" é explicação
atualmente inaceitável. Mas dizer que "animais têm olhos
para ver" ofende menos. Com efeito, a biologia é menosformal que física, porque expHcações finalistas são menos
ofensivas nos fenômenos dos quais trata. Os botões im
põem sobre mim o sentimento trágico do mundo por se
rem fenômenos biológicos, os quais explicações finalistasnão ofendem tanto. Mas posso me livrar facilmente de tal
sentimento trágico se me lembrar que atualmente já exis
tem explicações causais e formais para botões que tornam
o sentimento trágico sentimento anacrônico, primitivo e" d "supera o .
A questão foi, destarte, driblada, mas de nenhuma
forma resolvida. Porque a resposta introduziu o conceito
da "satisfação" sem tê-Io elaborado. Éjustamente de satis
fação que se trata. ~ando olho os botões que irromperam nas minhas macieiras, explicações causais e formais
não me satisfazem. E a satisfação é o único critério existen
cial da verdade. É o que Heidegger chama "das stimmt" =assim está de acordo. A "Stimmung" = o clima dos botões
e da primavera é o sentimento trágico do mundo. De ma
neira que as "explicações" finalistas e o futuro enquanto
destino são "verdadeiros" no caso. Explicar os botões e a
primavera de forma causal ou estrutural é "explain them
away", desexplicá-los. E a questão é exatamente esta: por
que os botões e a primavera impõem sobre mim o sen
timento trágico e evocam o futuro enquanto destino, a
despeito de todas as demais explicações que passam a ser
insatisfatórias e, portanto, nada explicam?Não sou nem órfico nem maometano, e a natureza
não é para miin nem conjunto de símbolos nem livro es
crito por Alá. Não creio que é possível "decifrar" a natu
reza e, assim, descobrir-lhe o seu "profundo significado",
nem creio que Alá, em seu amor pela humanidade, ditou
ao seu profeta um segundo livro, o Alcorão, que permite
a leitura do primeiro livro, o da natureza. Estou conven
cido de que a natureza é conjunto sem significado e pro
pósito e que a dignidade humana é dar um significado hu
mano à natureza e impor-lhe propósitos humanos. Estou,
com efeito, convencido de que humanizar a natureza é
realizá-Ia, e que, sem ser humanizada, a natureza não pas
sa de mera virtualidade humana. Por exemplo: estou con
vencido de que os botões que estou contemplando nada
têm de trágico, mas visam a maçãs a serem transformadas
em suco pelo qual Merano é famosa. ~e as macieiras estão lá porque foram plantadas por horticultores. Fazem
parte, não da natureza, mas da cultura. Têm propósito e
sentido: o propósito e o sentido que lhes foram impostos
pelos horticultores, e, no entanto, os botões lá na minha
horta falam a sua própria linguagem, insofismável. Falam
em transfiguração, propósito trans-humano e trágico, e
136 Natural:mcnte
falam em destino. E o que dizem é verdade. Embora se
jam cultura, continuam sendo natureza neste significado
milagroso e misterioso do termo.
De maneira que não sei dar resposta à pergunta. Souvítima de duas honestidades ou desonestidades. É deso
nesto negar que minha horta obedece a propósitos huma
nos, que é uma realização da bela vontade humana que
se impõe sobre a mera virtualidade natural e, assim, lhe
confere valor e significado. E é desonesto negar que mi
nha horta dá um significado à vida dos horticultores, um
significado que estes próprios "escolheram" (embora pro
blematicamente). Mas é igualmente desonesto negar que
os botões que irromperam durante a noite passada articu
lam forças fundamentais, e que os sucos que pulsam nos
ramos das macieiras pulsam também, tragicamente, nas
minhas veias, e nos propelem, as macieiras e a mim, rumo
a um destino inescapável. Não sei dar resposta à pergunta,
a não ser, talvez, esta: A "hybris edipiana", o heroÍsmo trá
gico que é a dignidade humana, é fazer hortas e sucos de
maçã, em desafio desesperado ao suco trágico e misterioso
que ilTompe em certos momentos catastróficos como o é
o dos botões na primavera.
Neblina
o boletim meteorológico, irradiado às dez horas
da noite, há vários dias começa com a mesma sentença:
"depois da dissolução de neblinas matinais persistentes ..."E, efetivamente, toda manhã, ultimamente, acordo com
aquela luz leitosa de um sol que não consegue romper os
véus que o encobrem. Infelizmente, trata-se de situação
tão carregada de literatura e de chavões que tenho grande dificuldade em vivenciá-Ia concretamente. A neblina
matinal está "encoberta de densa neblina ideológica" que
precisa ser removida para eu poder ver a neblina não me
tafórica lá fora. Esse esforço de remoção mostrará que é
possível dividir a humanidade em dois tipos: os que gos
tam, e os que não gostam da luz difusa. Os "fãs" de histó
rias misteriosas, e os que resolvem palavras cruzadas. Os
profundos e os iluministas. Os inspirados e os desconfia
dos. Os que estão interessados no fundo geral e universal
138 Natural:mente VILÉM Fl,USSER 139
do qual as coisas se destacam vagamente e os que estão
interessados nas diferenças pelas quais as coisas se distin
guem. Em suma, os metafísicos e os fenomenologistas. O
primeiro tipo procura penetrar pela neblina, o segundo
procura removê-Ia. Por que o primeiro a afirma e o segun
do a nega. São, creio, duas atitudes fundamentalmente
opostas, e entre elas se ergue o grande diviso r de águas quedivide a humanidade. Mas se trata de atitudes, não de si
tuações diferentes. Todos os homens, por serem homens,
estão na neblina, queiram ou não queiram.
Pois eu não quero estar nela. Embora deva confessar
que não me é estranha a atitude dos "fãs" da neblina e que
sou repetidas vezes vítima da sedução exercida pelo "mis
tério", optei pela atitude desconfiada. Remover neblinas,
e tentar mostrar que são neblinas e não algo, me parece
ser a única atitude digna. Optei contra a profundidade e
a favor da superficialidade. Porque creio que por trás da
neblina não se esconde algo profundo, mas que a neblina
é uma ilusão que encobre superfície concreta por trás da
qual nada se esconde. Isto não é, como parece, jogo de pa
lavras. Ao contrário dos pensadores profundos, não creio
que a meta última seja chegar até o fundo da neblina, mas
que, depois de rasgada a neblina, começa a verdadeira ta
refa: a de tentar apreender e compreender a superfície ex
posta. O pensamento profundo me parece ser mais super
ficial que o pensamento que procura captar a superfície
das coisas. Creio que a profundidade germânica da pri
meira metade do século, por exemplo, é mais superficial
que a superficialidade anglo-saxônica do mesmo tempo.
Estou com Goethe quando diz: "Man suche nichts hin
ter den Phaenomenen. Sie selbst sind die Lehre". (Nada
procuremos por trás dos fenômenos. Eles próprios são o
ensinamento.) Por isso, procurarei remover a neblina me
tafórica que encobre a neblina matinal, para tentar vê-Iame sua concreticidade.
Moro em uma casa de cujo terraço se desfralda pa
norama vasto. Vale amplo cercado de várias fileiras de
picos cobertos de geleiras. A vista avança das montanhas
mais próximas para os cumes majestosos no horizonte
em torno. Mas não hoje. Hoje, vejo apenas a horta que
cerca minha casa, e adivinho, vagamente, os contornos
dos pinheiros que cercam a horta. Meu horizonte é, hoje,estreito. Mas, ao dizer isto, duas dúvidas me assaltam. A
primeira diz que, não tivesse eu visto o panorama ontem,
não saberia hoje que meu horizonte é estreito. A segun
da dúvida diz que todos os horizontes são igualmente
amplos por serem horizontes, isto é, limites do finito em
direção ao infinito. A primeira dúvida implica que a ne
blina é limitação apenas para quem sabe ser ela neblina. A
segunda implica que querer ampliar horizontes removendo neblinas é tarefa absurda. Ambas as dúvidas devem ser
consideradas sob o prisma da neblina concreta que cerca
minha casa, e a segunda antes da primeira.
Há anedota que conta da conquista de Siracusa pe
los romanos. Um centurião penetrou a casa de Arquime
des para convidá-Ia a ser engenheiro das legiões romanas.
Arquimedes recusou afirmando que não dispunha de
tempo para isso. Os problemas do círculo o absorviam.
140 Narurabnente VILÉM FLUSSER 141
o centurião se admirou diante de tanta alienação: comopreocupar-se com círculos, quando o Império estava conquistando o Orbis terrarum? "Justamente", respondiaArquimedes. "Pretendo mostrar que não adianta aumentar a circunferência de círculos porque a relação entrecircunferência e raio é constante." Em face de alienaçãotão subversiva, o centurião não podia deixar de matarArquimedes. A anedota não pode ser arquivada comoparábola do conflito entre engajamento em história eengajamento em formas. Porque o verdadeiro problema,colocado pela anedota, é este: se o progresso, visto formalmente, não tem sentido, se ampliar horizontes é permanecer parado na mesma forma, que sentido tem estudarformas? Em outros termos, se os círculos de Arquimedestornavam absurdas as máquinas bélicas romanas (emboratais máquinas se baseassem neles), o que estava fazendoArquimedes? Teoria pura? Superação da política pelacontemplação das formas? Sim, mas ao contemplar asformas, acaso Arquimedes não estava, ele também, ampliando horizontes? Isto é, continuava parado na mesmaforma?O problema da anedota é este: o argumento arquimédico contra o centurião pode ser virado contra o próprio Arquimedes. Não assim: o centurião é progressista eArquimedes reacionário alienado. Isto seria o argumentodo centurião romano. Mas assim: Arquimedes é tão progressista,portanto absurdo, quanto o é o centurião romano. Ambos avançam dissipando neblinas. Apenas neblinas diferentes. Se o argumento arquimédico for correto,teoria é tão absurda quanto práxis, e resta, em Siracusa ehoje, apenas cinismo ou estoicismo.
A posição cínica perante a neblina que cerca minhacasa é esta: o horizonte que vejo hoje é tão bom quanto o que vi ontem. O horizonte do caboclo nordestinoé tão bom quando o de um estudante em Harvard. E aposição estoica perante a neblina em torno de minha casa
é esta: se aceitar o horizonte de hoje como aceitei o deontem, estarei contente com ambos. O caboclo será fe
liz, não se procurar ampliar seu horizonte, mas se procurar contentar-se. As posições cínica e estoica são lógica eexistencialmente inderrubáveis hoje como em Siracusa e,neste sentido, o argumento arquimédico contra o cenrurião e contra o próprio Arquimedes continua perfeito. Asduas posições são a verdadeira superação da política, nãopela teoria, mas pela negação de valores. Mas são posiçõesinsustentáveis eticamente hoje tanto quanto em Siracusa,e a neblina em torno da minha casa dá a prova disto. Basta eu sair do terraço e caminhar rumo aos pinheiros quediviso no horizonte. O horizonte cederá aos meus passos.Ontem, quando não havia neblina, o horizonte não teriacedido. O horizonte nebuloso é eticamente (praticamente) removível porque cede. O horizonte de visão daranão cede. São dois horizontes diferentes. O primeiro écondição indigna, pois me limita porque o permito. . Osegundo é condição digna, porque não posso ultrapassáIa. Por isso, devo me engajar em horizontes claros e contra nebulosos. Porque apenas depois de ter removido oshorizontes nebulosos verei os verdadeiros limites que mesão impostos. ~erer remover neblinas não é, pois, eticamente, tarefa absurda. Porque não visa à "ampliação de
142 Natural:mente VILÉM FLUSSER 143
horizontes" (isto, sim, seria absurdo), mas ao encontro
dos verdadeiros horizontes não amplificáveis. "Deside
ologizar" não é libertar (isto, sim, seria absurdo), mas é
permitir às verdadeiras condições que apareçam.
A outra dúvida provocada pela minha neblina, a que
diz que neblina o é apenas para quem já sabe tratar-se de
neblina, não pode ser desprovada pragmaticamente como
a considerada. Porque a dúvida afirma que quem não é
morador da minha casa e, portanto, sabe do panorama de
ontem, não tem motivo para caminhar rumo aos pinhei
ros. É, por assim dizer, cínico e estoico espontâneo, e não
deliberado. Aceita a limitação da neblina, e contenta-se e
adapta-se, porque a toma por verdadeira. A dúvida afir
ma, com efeito, que quem é vítima de ideologia não pode
saber disto, já que toma sua ideologia por conhecimentoobjetivo. Isto é conhecida tese marxista. Por isso deve, de
acordo com o marxismo, toda desideologização partir da
classe opressora (a única que sabe se tratar de ideologia).
"A burguesia é a consciência do proletariado." E, por isso,
os oprimidos resistem aos esforços de desideologização:
são cínicos e estoicos esponteneamente. Exemplo: Che
Guevara e os camponeses bolivianos. Não existisse, pois,
contradição dentro da própria classe opressora (consci
ência dialética da ideologia), não haveria jamais motivo
para remover ideologias. Todos os "ópios" funcionariam
eternamente, porque perfeitamente.Mas a neblina concreta em torno da minha casa
permite dissipar a dúvida da seguinte maneira: embora a
neblina concreta e a metafórica sejam fenômenos seme-
lhantes (ambas encobrem a realidade), a neblina concretaé fenômeno natural, e a metafórica fenômeno da cultura.
A concreta é dada, a metafórica feita. A concreta é um en
cobrir-se da realidade pela própria realidade, a metafórica
é deliberada cobertura da realidade por fazedores de véus
("Schleiermacher"). De modo que devemos distinguir
entre dois tipos de "mistérios": a obscuridade da realidade
mesma, e a obscuridade feita por obscurantistas. Em ou
tros termos, mesmo se conseguíssemos remover todas as
neblinas ideológicas, ainda não encontraríamos a super
fície resplandecente da realidade, mas neblinas concretas
como a em torno da minha casa. A indignidade dos ideó
Iogas não é, pois, a de obscurecerem a clareza da realida
de, mas o mistério da realidade. Os marxistas primitivos
e ingênuos (não os autênticos e sofisticados) cometem o
erro de crer que desideologizar significa já desalienar da
realidade. Tal crença é, ela própria, ideologia. Desideolo
gizar é, pelo contrário, abrir-se para neblinas concretas. É
neste sentido que Bloch pode dizer que a verdadeira re
ligiosidade será possível apenas depois da dissipação das
religiões estabelecidas. É, no fundo, este o seu "princípio
esperança" .A neblina concreta em torno da minha casa não é
apenas para quem viu o panorama de ontem. Emana cli
ma diferente. O clima de ontem foi o da clareza, na qual
apareciam as diferenças. O de hoje é o da luz difusa, na
qual as diferenças são borradas. Ontem foi "natural"
distinguir e hoje é "natural" mergulhar no indistinto.
Ontem foi a razão e hoje é a intuição que é "adequada"
144 Natural:mente YILÉM FLUSSER 145
à cena. Embora eu não queira estar na neblina, embora
prefira o panorama de ontem, não posso esquivar-me doclima de hoje. Embora queira pertencer aos desconfiados,
não posso deixar de inspirar a nebulosidade concreta queme cerca. Justamente por ter tentado remover a neblina
metafórica, sou obrigado a permitir que a neblina concre
ta me banhe e penetre por meus poros. E este é o "ensi
namento do fenômeno" (para falar com Goethe): o sen
timento religioso se impõe concretamente apenas depois
da tentativa de negar e remover os véus ideológicos dasreligiões estabelecidas.
Não sei se tem sentido falar-se em "religiosidade natural" provocada por climas como o é o da neblina em tor
no da minha casa. Melhor talvez seria falar "religiosidade
transcultural", religiosidade depois da decepção com asreligiões feitas. A neblina em torno da minha casa não é,
autobiograficamente falando, anterior às neblinas ideoló
gicas que obscurecem minha visão das coisas. É posterior
a elas, e visível depois de deliberado esforço para removê
Ias. O autêntico "homo religiosus" não é "primitivo". O
"primitivo" (se é que existe) é vítima das ideologias maisgrotescas. O autêntico "homo religiosus" é um desconfia
do (e um decepcionado). É o que descobriu que a remo
ção das neblinas metafóricas resulta no mergulho em ne
blinas concretas. ~em sabe é isto a dignidade: remover
neblinas metafóricas para mergulhar em concretas? Ser
antiobscurantista para poder mergulhar no verdadeiroescuro? Mas aí deve ser confessada a terrível dificuldade
de distinguir entre a obscuridade feita e a dada. Mas deve-
mos distinguir entre elas. Apenas graças à distinção (ra
zão), podemos mergulhar na verdadeira neblina.
Natura!: mente(uma espécie de conclusão)
Os ensaios contidos no presente livro não exigem,se tomados cada um por si, que o leitor seja a eles introduzido. Devem poder sustentar-se, cada um por si, peloseu próprio peso. E na medida em que não se sustentam,falham enquanto ensaios. Considerados cada um por si,os ensaios não formam uma totalidade. Em tal nível de
leitura podem ser lidos não importa em que sequência:são tão díspares quanto o são seus temas. Sob este prisma,o presente volume é coleção de ensaios, no sentido de colheita sem critério de escolha. A saber: coleção ocasional,fruto do acaso. Os assuntos dos quais os ensaios tratamocorreram ao autor no curso da sua vida, e foram porele assumidos na medida em que ocorreram: casualmente. ~em adquiriu o hábito de permitir a todo assuntoocasional ocupar o centro do interesse, e quem o tomapor pretexto para largar um fluxo de reflexões, conhece
148 Natural:mcntcVILÉM FLUSSER 149
o fascínio exercido não importa por que encontro com
não importa que experiência (a qual passa a ser aventura).
Conhece, pois, o motivo do presente livro. Isto explica
também organicamente a desigualdade estilística dos en
saios presentes. Cada ensaio tem o estilo imposto sobre
ele pelo seu assunto. Mas a dialética "assunto/estilo", ou
"conteúdo/forma", ptoblematiza tal afirmativa. É certo,
o assunto se impõe sobre o estilo. Igualmente certo é que
todo assunto é assunto apenas depois de ter sido assumi
do de uma forma ou outra. A desigualdade estilística dos
presentes ensaios é, pois, consequência do jogo dialético
pelo qual várias experiências ocasionais se impuseram so
bre o autor e por ele foram assumidas para serem assuntos
de ensaios. De maneira que nem os assuntos nem o estilo
dos presentes ensaios exigem explicação introdutiva. São
ocasionais, frutos do acaso do viver, e o acaso não pode
nem precisa ser explicado. Ocorre "naturalmente".
Mas o presente volume permite também leitura em
nível diferente. Já que esse nível, embora implícito nos
ensaios, não é explicitado neles, o autor se vê obrigado
a fazer esta conclusão explicativa. Ei-la. Fascinado pela
riqueza inesgotável de uma experiência concreta, e pelo
poder catalisador que toda experiência tem sobre o pensamento, o autor escreveu, no curso dos últimos anos, toda
uma série de ensaios do tipo contido no presente volume.
Tais ensaios foram, em grande parte, publicados em várias revistas brasileiras, americanas, alemãs e francesas, e
especialmente no "Suplemento Literário" d'O Estado de
S. Paulo. O que impressionou o autor, em retrospectiva,
foi o fato de que os assuntos da totalidade dos ensaios são
experiências com coisas da cultura. É como se as experiên
cias pelas quais o autor passou ao longo desses anos todostivessem sido exclusivamente encontros com a cultura
que nos cerca. Como se a natureza não tivesse existido
para ele, ou como se tivesse sido empurrada para o hori
zonte da sua experiência cotidiana. Duas interpretações
desse fato se ofereciam: (a) o autor é "intelectual" e per
deu o contatb com a natureza, e (b) a sociedade tecnológi
ca e administradora, da qual o autor participa, perdeu tal
contato. Ambas as interpretações são provavelmente corretas, mas não satisfazem. Deve haver razão mais radical
e menos óbvia que faz com que o autor e a sociedade não
mais vivenciem a natureza, ou o façam excepcionalmente.
E tal razão deve estar ligada a uma mutação do conceito,
da vivência e do valor designados por "natureza", mutação em curso atualmente.
Para descobrir tal razão, ou pelo menos se aproximar dela, o autor fez duas coisas: a) reuniu dez dos en
saios já feitos em coleção publicada em Paris e chamada
"A força do cotidiano". Os ensaios escolhidos tratam de
experiências com coisas indubitavelmente culturais, com
instrumentos, tais como: bengalas, garrafas, canetas, ócu
los, tapetes, muros, espelhos, livros, camas e automóveis.
O propósito da escolha foi o de ilustrar o poder exercido
pelos instrumentos (pela cultura) sobre a vida cotidiana.
Ilustrar como a cultura, longe de libertar o homem da de
terminação pelas forças da natureza, se constitui em con
dição determinadora. Portanto, em "segunda natureza".
150 Natural:mcnte VILÉM FLUSSER 151
Destarte, procurou o autor ilustrar como o homem da
atualidade vivencia a cultura: não como algo feito, mascomo algo dado, portanto, como natureza. O homem
atual perdeu o contato com a natureza no significado tradicional do termo (ou está perdendo) porque a culturaestá assumindo existencialmente o impacto da naturezano significado tradicional do termo; b) não satisfeito com
tal "prova negativa", o autor procurou abrir-se, de iníciodeliberadamente, depois sempre mais espontaneamente,a experiências tidas por naturais no significado tradicional do termo. O resultado são os presentes ensaios. Opropósito inicial era a suspeita de que tais experiênciasnaturais não se distinguem em seu impacto existencialdas culturais, e que, portanto, a distinção ontológica entre natureza e cultura não se sustenta existencialmente
no presente contexto. De acordo com tal suspeita, a distinção ontológica a ser feita atualmente seria entre experiências determinantes e experiências libertadoras, duascategorias ontológicas que desprezam as tradicionais de
"natureza/cultura", ou "dado/feito". Agora, ao reconsiderar os ensaios aqui apresentados, o autor é incapaz dedizer se essa suspeita inicial foi confirmada ou refutadapela sua pesquisa.
Isto não é, na opinião do autor, necessariamente
defeito. "Ensaio" é isto: tentativa de ver em que dá umahipótese de trabalho. E o interessante do ensaio não éo resultado, a hipótese confirmada ou refutada. O inte
ressante é o que se mostra ao longo da experiência empreendida. A suspeita inicial pode ter sido confirmada,
refutada ou deixada aberta. O que o autor espera é que
muito aspecto por ele não suspeitado surgiu ao longo dosensaios. Porque a suspeita que era a hipótese inicial nãoera o único, nem o mais importante motivo para os presentes ensaios. O fundamental motivo era, como sempre,
o fascínio exercido pelas experiências relatadas.No entanto, a suspeita inicial confere aos ensaios
certa unidade. Não apenas no sentido de tratarem de coisas tidas por' naturais pelo senso comum e pela tradição,mas também no sentido de eles formarem uma sequência
discursiva pela seguinte razão: no esforço de confirmarou refutar sua suspeita, o autor submetia as suas experiências com coisas naturais a testes sucessivos.Estabelecia,
nesses testes, várias e sucessivasnegações da posição "natureza". Assim, em "Chuva", procurou negar a naturezapela "cultura", no significado de "manipulação planeja-d "E "C d " , I I" h "a. .mero , procurou nega- a pe o estran o , no
significado da natureza ser "natural", e do seu oposto ser"introduzido de fora". Em "Vacas",procurou negá-Iapelo
"artificial", no significado de natureza ser espontânea, eo seu oposto ser deliberado (técnica, arte). Em "Grama",procurou negá-Ia pelo sujeito, no significado de ser a natureza "objeto" de um sujeito a ela oposto. Em "Dedos",procurou assumir a natureza como a "sanidade" e seuoposto como "opressão", "manipulação" ou "aparelho".Em "Lua", procurou mostrar a natureza como resultadotardio e romântico da cultura. Em "Montanhas", procurou elaborar os significados opostos do conceito "história" para a natureza e para a sociedade. Em "Pássaros", fez
152 Narural:mentc VlLF:M lhJL'ssER 153
o esforço de ver a natureza como conjunto significativo, e
a opôs a um código que permite a leitura de tal significa
do. Nos "Vales", procurou ver a natureza como palco do
drama da humanidade. Em "Prados", procurou mostrar a
natureza como testemunho dos feitos humanos, portanto, como contexto de dados que se dão em níveis suces
sivos. Em "Falsa Primavera", procurou opor o conceitogrego da natureza ("physis") ao conceito da ciência da na
tureza. Em "Maravílhas", procurou fazer o mesmo com o
conceito judeu-cristão (criação), em oposição ao conceitoda ciência da natureza. Em "Ventos", tentou elaborar a
oposição entre a natureza como "hierophania", e a natureza como "mandalnento transcendente". Em "Botões",
procurou opor os dois climas que emanam da natureza: o
do sentimento trágico e o do absurdo. E, em "Neblina",
procurou opor a mistificação da natureza pelo espírito
ideológico ao autêntico mistério de uma realidade que seesconde ao revelar-se.
O autor se dá conta perfeitamente que não esgotou
as variantes possíveis de um jogo dialético que tem a na
tureza por tese. Com efeito, veio a acreditar que esse jogo
é praticamente ilimitado. ~em assume a natureza comotese pode assumir praticamente tudo como antítese da
natureza. Na opinião do autor, isto problematiza a via
bilidade do termo "Natureza". Termos tão amplos amea
çam se tornarem vazios e isentos de significado. Está possivelmente na hora de abandonarmos o termo "natureza"
em favor dos termos mais modestos e mais significativos.
Tal proposta é obviamente utópica porque o termo "na-
tureza" está tão fundamentalmente enraizado nas nossas
línguas e no nosso pensamento que continuará a atrapalhar nossa vivência e os nossos atos.
Mas, mais importante que a descoberta da vacuida
de do termo "natureza" ao longo dos ensaios foi outra. Àmedida que o autor foi aplicando os seus pares dialéticos
aos fenômenos contemplados, estes se esquivavam a res
postas. Não permitiam serem forçados a responder "sim"
ou "não" às duas alternativas propostas. A "Chuva" não
respondeu com "sim" ou "não" à pergunta: "chuva de se
tembro é o contrário de irrigação de campo?" A "Neblina
não respondeu com"sim" ou "não" à pergunta: "neblina
matinal é o contrário de neblina ideológica deliberada?"
Os fenômenos davam respostas inesperadas ao autor,
confundiam as suas perguntas e rompiam os seus preconceitos. A série de ensaios precedentes obedece a testes
mais ou menos disciplinados, e é, neste sentido, sequência
discursiva. Mas quanto às conclusões oferecidas pelos ensaios, estas não formam sequências discursivas. É como se
os inícios dos ensaios tivessem sido pendurados disciplinadamente sobre varal linear e discursivo, e como se os fi
nais dos ensaios tivessem balançando desordenadamente
no vento que sopra das próprias experiências, cabeçudas
e indomáveis. De modo que em tal nível de leitura o pre
sente volume se apresenta linearmente discursivo quanto
à sua intenção, e caoticamente inconclusivo quanto aos
seus resultados. ~em lê os ensaios na ordem pretendida
pelo autor verificará como tal pretensão foi desprezadapelas experiências concretas relatadas. O deliberadamen-
154 Natural:mente VILl~M F'LUSSER 155
te planejado fracassou diante da concreticidade das coisas. "Naturalmente".
Com tal confissão, esta explicação poderia dar-se por
satisfeita. Mas o autor crê que deve acrescentar mais dois
apartes. O primeiro, de ordem mais ou menos teórica, é
que facilite a inserção do presente volume no contexto
das livrarias e bibliotecas, e que facilite, pois, a rotulação
do presente volume e sua colocação em estante apropria
da. O segundo aparte, de ordem mais subjetiva, é que jus
tifique a publicação do presente volume no contexto daliteratura brasileira da atualidade.
a) É lugar-comum dizer que ocorreu, durante a Idade Média tardia, uma reviravolta ou revolução no pen
samento, na sensibilidade e na valoração do Ocidente, e,
consequentemente, uma reviravolta ou revolução na ação
e paixão, no "estar-no-mundo", dos que participam de tal
cultura. Um aspecto importante de tal reviravolta ou re
volução é a chamada "descoberta" (ou "redescoberta") da
natureza. Uma das consequências dessa "descoberta" é o
fato curiosÍssimo de que o conhecimento científico ini
ciou um avanço progressivo a partir do horizonte rumo
ao centro. Iniciou pela pesquisa de coisas extremamente"desinteressantes" e existencialmente distantes (astrono
mia, mecânica), e avançou lentamente em direção a coisas
mais "humanamente significativas" (biologia, psicologia,
sociologia). A história da ciência moderna está marcada
por tal curiosíssima inversão de interesse. É como se o
conhecimento científico tivesse inicialmente suspendido
deliberadamente todos os assuntos que interessam, na es-
perança de poder pesquisá-los mais tarde, depois de ter
resolvido os problemas menos interessantes.
Não importa, no presente contexto, explicar esse
fenômeno curioso. Explicações são fáceis, desde a formal
(astronomia e mecânica são disciplinas matemátizaveis)
até a historicista (a práxis da burguesia revolucionária
revela mecanismos, e sua ideologia encobre o nível social
da realidade). O que importa é a constatação do fato de
que a física (disciplina que estuda o movimento de corpos
inanimados) se estabeleceu, absurdamente, como primei
ro conjunto sistematizado do conhecimento moderno, e,
em consequência, como modelo de todos os conjuntos
seguintes. Pois a física se toma por "ciência da natureza",
não exatamente no significado de "physis" (embora o ter
mo Física pareça sugeri-lo), mas porque "physis", para os
gregos, era conjunto animado de coisas animadas e inani
madas, e "natureza", para a física, é conjunto inanimadode coisas animadas e inanimadas. Mas, em todo caso, o
progresso da ciência moderna era avanço a partir da natureza rumo ao homem e à sociedade.
Tal progresso está atualmente por encerrar-se. Não
apenas no sentido de ter a ciência atualmente estendido a
sua competência para abranger também o homem e a so
ciedade e, portanto, não pode mais avançar, apenas podertornar-se mais minuciosa, mas no sentido mais radical de
ter a ciência atualmente esbarrado contra uma fronteira
insuperável. Enquanto o saber científico perambulava
por regiões extra-humanas, nas quais o homem não está
existencialmente interessado, era possível manter a ficção
156 Nattlral:mente VILÉM FLUSSER 157
do conhecimento objetivo. Mas agora, quando o sabercientífico está penetrando regiõesnas quais o homem está.implicado (interessado), tal distinção fictícia entre o objeto conhecÍvel e sujeito conhecedor se torna insustentável.Em tais regiões, o homem é simultaneamente objeto e sujeito do conhecimento. Tal barreira oposta ao progressodo conhecimento científico é aspecto importante daquiloque Husserl chamou de a crise da ciência do Ocidente.Em termos que interessam no presente contexto, aquelacuriosíssima natureza da qual o progresso científico partiu para investir contra o homem e a sociedade, está. serevelando agora horizonte ficticiamente objetivo, e nãofundamento sólido, daquela realidade concreta na qualestamos implicados.
Tal crise da ciência (a qual pode, por sua vez, ser explicada como uma das razões de uma crise geral, ou comomanifestação de revolução mais profunda, pouco importa) exigeuma reformulação radical tanto dos métodos daciência quanto do interesse da ciência pelas coisas.Tal re
formulação está ocorrendo ao nosso redor. ~anto ao interesse pelas coisas, este se dirige atualmente para as maispróximas e nas quais estamos mais implicados. A direção
do avanço do conhecimento está se invertendo. ~aJ1toaos métodos, estes se fundamentam sobre a inter-relaçãoentre conhecedor e conhecido, e sobre os efeitos que opróprio conhecimento tem sobre o conhecedor e o conhecido. Em outros termos, a ciência está se tornando
autoconsciente enquanto atividade de um homem inserido na realidade e interessado em modificá-Ia, e não mais
nutre a ilusão de ser disciplina pura de um homem quetranscende a realidade.
Isto significa,entre outras coisas,que a físicaestá deixando de ser modelo de todas as ciências, e as que tratamde fenômenos mais concretos (como a teoria da comu
nicação) estão tendendo a se estabelecerem em modelos.Portanto, de certa maneira está recomeçando, "ab ovo", o
esforço todo de conhecer cientificamente o mundo quenos cerca. De certa maneira, somos atualmente tão igno
rantes e ingênuos quanto o foram os pioneiros da ciência moderna. E como eles estavam obrigados a carregar
nas costas o peso do aristotelismo, nós somos obrigados acarregar o fardo muito mais pesado dos" conhecimentosobjetivos" acumulados por eles.Não se trata, por certo, depeso morto. Mas de peso que deve ser "posto entre aspaspara uso futuro" (para falarmos novamente com Husserl), sob pena de continuarmos esbarrando, futilmente,contra a barreira da objetividade.
Essa nova ignorância e ingenuidade, às quais estamos condenados pela nossa crise, tem sua vantagem. Podemos olhar o mundo que nos cerca como se ninguém
jamais o tivesse olhado. Somos todos pioneiros. E, comotais, podemos ousar tudo. Por exemplo, podemos ousarempreender catálogos das coisas que nos cercam. Já quesomos os primeiros a penetrar no campo, o critério da es
colha para a catalogação é nosso. ~e outros venham depois criticar-nos; serão bem-vindos. Mas, no momento,não importa que um inventário é melhor que nenhum,desde que obedeça duas regras mencionadas: a) primeiro,
158 Naturahmentc VILÉM FLUSSER 159
devem ser inventariadas as coisas que nos interessam, e b)
devemos admitir que o nosso interesse pelas coisas, embo
ra imposto sobre nós por elas, as torna coisas.
O presente volume, como aquele editado em Paris,
que o procede, é tentativa de inventário no significadomencionado, uma das numerosas tentativas atualmente
em curso. Pode ser rotulado como "científico", mas não
no significado tradicional do termo. Faz parte daquele
contexto de pesquisas ("fenomenológicas", "comunico
lógicas", pouco importa como chamá-Ias) que podem resultar em uma ciência do futuro. Por isso, os resultados
apresentados pelos presentes ensaios não interessam mui
to. O que interessa é a atitude perante o mundo que neles
se manifesta. (Se é que tal atitude se manifesta neles efeti
vamente.) O autor crê que, com todas as suas falhas, erros
e omissões, o presente livro faz parte de uma literatura
embriônica que será considerada "científica" no futuro, e
da qual autores como Husserl, Ortega, Bachelard etc. sãoos iniciadores.
O presente volume foi escrito na Europa. Mais exa
tamente, à beira do Loire, num vale alpino, e em viagens
pela Europa. Inescapavelmente, tal fato se reRete nos en
saios. A experiência com a "natureza", que lhes é assunto,
é experiência com natureza europeia. O autor duvida que
podia ter escrito ensaios do mesmo tipo em circunstân
cia brasileira. Não por ser a natureza brasileira diferente
da europeia, mas por razão mais profunda. Na Europa,
a natureza é acessível, no Brasil é inimiga. Se o autor tivesse escrito os ensaios noBrasil, teria escrito não sobre,
mas contra a natureza. Teria sido livro diferente. Não
apenas aspectos diferentes da natureza teriam surgido à
tona, mas o próprio tema teria sido diferente. Porque o
termo "natureza" significa no Brasil experiência, valor e
conceito diferentes dos significados na Europa. Tal dife
rença e "overlap" dos significados não é explicável apenas
por diferenças na geografia a história dos dois "mundos".
Não se trata apenas do fato de ser o clima brasileiro "mais
quente", ou 'a sociedade brasileira "mais nova". A raiz da
diferença é mais profunda, e tem a ver com os dois climas
existenciais diferentes. O europeu tende a refugiar-se na
natureza para escapar às ameaças da cultura, e tal tendên
cia não é recente (por exemplo, devida ao romantismo e
semelhantes ideologias escapistas). Já os gregos e os roma
nos tinham o seu bucolismo. No Brasil, que sofre cons
tante influência europeia, tal tendência para "um retornoà natureza" não é desconhecida, mas é, como tanta outra
influência importada, pouco mais que gesto vazio. O bra
sileiro, ao contrário do europeu, tende a aglomerar-se em
centros densamente povoados para escapar às ameaças da
natureza. Isto se manifesta de muitas formas: pela "má
distribuição" da população brasileira no território dispo
nível, pela tendência de construir edifícios altos em cida
des pequenas com excesso de terrenos baldios, pelas aglo
merações em poucas praias das muitas disponíveis, pelos
clubes de campo superlotados. Tais tendências opostas
correspondem a climas existenciais diferentes. O europeu
se sente fundamentalmente ameaçado pelo seu próximo:
é o clima do "homo homini lupus". O brasileiro se sente
160 Natural:mentc VILfM FLVSSER 161
fundamentalmente ameaçado por forças extra-humanas.Por isso, o europeu está fundamentalmente engajado namodificação da sociedade, e o brasileiro na da natureza.E por isso existe solidariedade fundamental embora nemsempre palpável na sociedade brasileira, que lhe confereaquele característico sabor de humanismo e simpatia cujafalta é tão sentida na Europa.
Pois tal diferença, que não é de antagonismo, masde "overlap" (já que também existem no Brasil tendênciaspara a identificação com a natureza, exemplificadas emGuimarães Rosa e, na Europa, tendências muito fortespara a fuga da natureza, exemplificadas nas "banlieues"parisienses) é fonte de um dos muitos mal-entendidosentre os dois mundos. O europeu não consegue captar oprofundo engajamento do brasileiro contra a sua natureza, e toma tal engajamento por alienação, já que para eleengajamento significa sempre luta em prol de uma sociedade mais humana. E o brasileiro não consegue captar asituação europeia, que lhe parece já inteiramente "aculturada", sem nada mais a fazer, já que, para ele, "fazer" édomar a natureza. Tal mal-entendido é trágico, porque osdois mundos estão condenados a viver juntos e,portanto,obrigados a se comunicar significativamente.
Considerando este fato, surge a pergunta de comojustificar a publicação de um volume que trata da natureza europeia no contexto da literatura atual brasileira.A resposta a tal pergunta seria simples se o presente volume tivesse sido escrito por um europeu. Em tal caso, ajustificativa seria a contribuição que tal volume poderia
dar à superação de mal--entendidos. Mas essenão é o caso
do presente volume. Foi escrito por quem viveu a maiorparte de sua vida no Brasil e voltou para a Europa natalcom mente e sensibilidade fortemente abrasileiradas. Por
quem, em outros termos, está engajado nas coisasbrasilei
ras, embora tenha, por sua biografia e situação geográficaatual, certa empatia com a natureza europeia. Como sejustifica, em tal caso, a publicação do presente volume?
A resposta se liga, curiosamente, ao argumento precedente que tinha a presente crise epistemológica porassunto. Um dos pontos salientados em tal parágrafo foio da necessidade de admitir o fato do conhecedor estar
implicado no conhecido. Portanto, da necessidade de admitir que a "objetividade" no sentido de conhecimentode um sujeito que paira por cima do conhecido é ideal
impossível e quiçá indesejável. Tal admissão não implica nem a impossibilidade nem a indesejabilidade de umdistanciamento do conhecedor com respeito ao a ser conhecido. Pelo contrário, admitida a "objetividade" comoideal impossível, o distanciamento passa a ser desejável,porque não pode mais ser confundido com transcendên
cia irresponsável. Um distanciamento assim, que admiteo seu profundo empenho no conhecível, mas procura umponto de vista amplo e despreconcebido, passa a ser a verdadeira atitude científica pós-objetiva.
Um leitor atento dos presentes ensaios verificará oengajamento do autor nas coisasbrasileiras entre as linhas
que descrevem as experiências com a natureza europeia.O autor descreveu sobre a natureza europeia para o leitor
162 Natural:mente
brasileiro não apenas para informá-Io, mas para dialogarcom ele, porque o autor está inteiramente desinteressado
em uma possível modificação da realidade europeia. Nãoestá inserido nela, é estranho e estrangeiro na Europa. Taldesinteresse lhe confere distância das experiências quedescreveu, mas está profundamente interessado em uma
possível modificação da realidade brasileira em diálogocom outros. Tal interesse evita que seu distanciamentose torne transcendência irresponsável. Por sua situaçãobiográfica e geográfica,portanto, o autor pode servir detestemunha brasileira dos aspectos da realidade europeiaque relatou nos presentes ensaios.E esta é a justificativa doautor de querer publicar o presente volume no Brasilagora.
A paciência do leitor à presente explicação deve estar esgotada a estas alturas. Há muitas outras coisas queo autor teria gostado de acrescentar, mas deve refrear suatendência de pegar o leitor pelo braço para seduzi-Io acaminhar com ele pelos campos, prados, bosques e montanhas incrivelmente belos e perigosamente convidativosda Europa. Abandona, pois, tal tentativa, e entrega, semmais, o presente guia turístico nas mãos do leitor brasileiro. "Guia turístico", desde que por "turismo" seja entendido o sinônimo atualizado do termo "teoria". Turismo
ou teoria é visão interessada, mas despreconcebida daquele ente provisório e estrangeiro no mundo chamado"homo viator".
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COLEÇAo COMUNICAÇÕESDireção: Norval Baitello junior
Títulos publicados:
Língua e realidade, de Vilérn FIusserA ficção cética, de Gustavo BernardoMimese na cultura, de Günter Gebauer e Christoph WülfA história do diabo, de Vilém FIusser
Arqueologia da mídia, de Siegfried ZielinskiBodenlos, de Vilérn Flusser
O universo da~ imagens técnicas, de Vilém FlusserA escrita, de Vilém FIusser
A época brasileira de Vilém Flusser, de Eva BatlickovaPensar entre línguas, de Rainer GuldinHomem & Mulher, uma comunicação impossível?, de Ciro Marcondes Filho
Medio~fera, de Malena Segura ContreraA dúvida, de Vilém Flusser
Filosofia da caixa preta, de Vilérn FIusserNatural:mente, de Vilém Flusser
Afilosofia da ficção de Vilém Flusser, de Gustavo Bernardo (org.)
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