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Notas sobre o neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls
Marcus de MartiniAluno do curso de Direito da UFSM
1. INTRODUÇÃO
A obra que norteará o presente artigo é Uma Teoria da Justiça, do filósofo norte-americano
John Rawls, originalmente publicada em 1971 e que recebeu uma série de reformulações e
complementos até bem recentemente. Esta obra é considerada por diversos autores como uma
das mais importantes realizações da filosofia política do século XX, já que trouxe contribuições
novas para o debate de um tema que – apesar de ser tão velho quanto a filosofia – nunca
conseguiu obter um conceito unânime: a Justiça. No entanto, é bom salientar que o presente
trabalho não versará sobre a teoria da justiça de Rawls como um todo, mas sim sobre a figura do
contrato em sua teoria.
Depois de Uma Teoria da Justiça, Rawls publicou uma série de obras que discutiam temas
contraditórios de seu livro inicial, bem como aumentavam o campo de ação de sua teoria. São
obras como Justiça e democracia, Justiça como eqüidade: uma reformulação, O direito
dos povos e O liberalismo político. Por razão de delimitação de espaço e foco do presente
trabalho, contudo, não é possível abrir o leque de análises da forma como gostaríamos de fazer e
este não poderá contemplar a magnitude de estudos que talvez fosse necessária para dar uma
visão mais completa do assim chamado “neocontratualismo” de John Rawls. Assim sendo,
centraremos nossas análises na primeira parte de Uma Teoria da Justiça, que é essencialmente
teórica e, mais ainda, no ensaio A estrutura básica como objeto[i], presente em Justiça e
democracia, que trata especificamente de aprofundar o uso da figura do contrato, o que não
havia sido feito em Uma Teoria da Justiça.
Como mencionado no início deste capítulo, a justiça sempre suscitou discussões filosóficas
conflitantes. Talvez a unanimidade seja de fato algo estranho à justiça, por mais paradoxal que
tal observação possa parecer. Se imaginarmos a figura da deusa Têmis – ou Minerva -, de olhos
vendados e uma balança na mão, medindo dois pesos contrapostos, podemos pensar que o
resultado disso trará sempre uma “derrota” ou “prejuízo” a uma das partes disputantes. Como o
“justo” pode trazer um prejuízo a alguém? E mais: pode a “justiça” causar mais mal do que a
“injustiça”? Questões como essas são as bases da filosofia política desde muito tempo. Como
afirma Júlio Esteves:
O problema principal da filosofia política é ao mesmo tempo o problema fundamental do mundo
político, a saber, como legitimar e justificar moralmente um ordenamento político-jurídico. Tal
problema decorre do fato de que os princípios fundamentais de um Estado constituem uma
restrição da liberdade dos indivíduos acompanhada de sanções coercitivas, para o caso de
desobediência ao que é prescrito por aqueles princípios. Desse modo, coloca-se a questão: como é
que a restrição coercitiva das liberdades individuais imposta pelo Estado pode ser moralmente
justificada? Sob quais condições um Estado constituído pode ser considerado justo? (ESTEVES,
Júlio. AS CRÍTICAS AO UTILITARISMO POR RAWLS in ethic@ Florianópolis v.1 n.1 p.81-96 Jun.
2002)
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Desde Platão, muitas foram as respostas sugeridas. Uma delas aponta para uma espécie de
contrato social, acordo – histórico ou hipotético - no qual as pessoas concordariam em abdicar de
seus direitos de “liberdade total”[ii], por assim dizer, em nome de uma instituição superior que
ficaria responsável por ordenar e julgar os atos de uma coexistência coletiva, uma vez que o ser
humano acabaria sendo levado a uma vida essencialmente gregária[iii].
O fato é que as sociedades foram evoluindo. As reuniões da Ágora – acessíveis aos cidadãos da
pólis grega – deram lugar a imensas instituições governamentais que se distanciaram cada vez
mais dos indivíduos que são a sua própria razão de ser – conforme a ligação imaginada pela
figura do contrato primitivo. Tendo em vista essa sociedade complexa e comumente
mal-organizada – além de pluralista em vários sentidos (econômico, moral, religioso, social,
etc...) – Rawls resolveu propor uma teoria que pudesse equacionar de alguma forma os anseios
por justiça de um agrupamento social composto por pessoas tão diferentes entre si. Como afirma
José Nedel:
O problema a resolver, nesta situação, é o de como pode existir, ao longo do tempo, uma
sociedade estável e justa, composta de cidadãos livres e iguais, mas profundamente divididos por
doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. (...)
Para a solução do problema, Rawls propõe uma concepção liberal de justiça política para um
regime constitucional democrático. (...) Não é uma concepção acerca do bem mais elevado ou
último das pessoas, mas de justiça política, que as doutrinas razoáveis plurais da moderna
sociedade possam subscrever, envolvendo-a com um consenso sobreposto... (NEDEL, 2000, pp.
50-1)
Assim, a proposta de Rawls começa com a suposição de um contrato social hipotético e
a-histórico, no qual as pessoas seriam reunidas numa situação inicial – por ele chamada de
“posição original” – a fim de deliberar uma série de princípios que seriam responsáveis por
embasar as regras do “justo” – os “princípios da justiça” - nas instituições, uma vez que seriam as
instituições as intermediadoras entre as pessoas no convívio social. Segundo Rawls:
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento. (RAWLS, 2002, p. 3)
Assim sendo, se uma instituição social não for ab ovo justa, os atos por ela perpetrados serão,
como em um efeito dominó, injustos, da mesma forma que um sistema de pensamento fundado
em falácias produzirá, ipso facto, enunciados falaciosos.
Conforme a teoria de Rawls, a única forma de as pessoas em uma posição original escolherem
os princípios justos – aqueles princípios que, pressupõe Rawls, seriam apresentados pela “razão”
de cada um – seria imputar sobre esses “legisladores iniciais” um “véu de ignorância”, segundo o
qual cada pessoa ignoraria todas as suas circunstâncias pessoais anteriores a essa situação
hipotética. Portanto, essas pessoas desconheceriam suas condições financeiras como também seus
próprios dotes naturais. Assim, por exemplo, se um legislador fosse um grande proprietário de
terras e soubesse disso, seria difícil que ele concordasse que a distribuição equânime de terras
fosse algo justo. Por outro lado, segundo Rawls, se fosse impossível para esses “legisladores
iniciais” saberem se possuem terras ou não, seria mais fácil de ser concluído que a distribuição
eqüitativa de terras é algo justo, haja vista que os legisladores teriam receio de – após ser
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levantado o véu de ignorância – descobrirem que não possuíam quaisquer bens materiais. Desse
modo, o “egoísmo” é o ponto que motiva a necessidade do “véu de ignorância” para a obtenção
dos princípios da justiça.
Por conseguinte, a teoria de Rawls não procura um “bem” supostamente existente, mas sim
procura construir um conceito de justo a partir do uso da razão e da vontade das pessoas. Grosso
modo, essa é uma primeira aproximação da base da teoria da justiça de Rawls. Resta saber o que
motivou o seu surgimento e também a escolha da teoria do contrato como ponto de partida.
2. A CRÍTICA AO UTILITARISMO
O principal objetivo da teoria rawlsiana foi apresentar uma alternativa a uma situação peculiar
mais à filosofia anglo-norte-americana do que às demais filosofias: o utilitarismo. Nas palavras de
Rawls:
Meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento
utilitarista em geral e conseqüentemente a todas as suas diferentes versões. (TJ[iv], p. 24)
Para o utilitarismo, o que deve reger o funcionamento do Estado é o bem-estar da maioria dos
cidadãos, não importando o indivíduo, mas a coletividade. Ainda segundo Rawls:
A idéia principal [do utilitarismo] é a de que a sociedade está ordenada de forma correta e,
portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir
o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos
os seus membros. (Idem, p. 25)
Assim sendo, segundo Esteves, o princípio utilitarista reza que a limitação coercitiva das
liberdades individuais por parte do Estado pode ser considerada como justificada na medida em
que o Estado tende a promover o maior bem-estar ou felicidade da coletividade a ele submetida.
Ou seja, ainda que a restrição coercitiva das liberdades seja em si mesma um mal necessário, ela
estará justificada na medida em que for compensada por um máximo de bem-estar ou felicidade
proporcionado para a coletividade. Assim, para o utilitarista, a única razão plausível para justificar
a restrição das liberdades, cobrar obediência às leis e sancionar coerções diante de sua
desobediência está em mostrar que isso é mais vantajoso e útil, porque torna a coletividade mais
feliz (ESTEVES, Op. Cit., p. 82).
Segundo Rawls, o utilitarismo estaria exclusivamente voltado para a maximização da felicidade
coletiva, sem se preocupar com o modo como esta é distribuída, a saber, se de uma maneira justa
ou injusta, entre todos os membros da sociedade (ESTEVES, op.cit., p. 85). Em suma, como
afirma Esteves, o utilitarismo assimila os membros de uma sociedade aos interesses e desejos
particulares de cada indivíduo, ou seja, assimila pessoas, que têm direitos e são objetos de
respeito e consideração, a necessidades e interesses, que de certo modo acabam sendo tratadas
como coisas às quais se pode negar inescrupulosamente o direito à satisfação (Ibidem).
Entretanto, no momento em que nos encontramos, pelo menos em grande parte do mundo
ocidental, diante de regimes constitucionais que pregam em suas cartas magnas a igualdade de
todos perante a lei, numa verdadeira “sacralização” do indivíduo, torna-se difícil sustentar uma
visão como a utilitarista. Nas palavras de Rawls:
Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da
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sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de
alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios
impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por
muitos. Portanto, numa sociedade justa, as liberdades da cidadania igual são consideradas
invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao
cálculo de interesses sociais. (TJ, p. 4)
A teoria da justiça de Rawls, desse modo, apresenta-se como uma alternativa ao utilitarismo,
já que postula a inviolabilidade do indivíduo, bem como a importância de seu bem-estar para a
sociedade. Se o utilitarismo visa ao bem-estar (ou “felicidade”) da sociedade como um todo, em
detrimento do bem-estar geral de cada indivíduo, a teoria da justiça de Rawls deseja, de certa
forma, o contrário: o bem-estar do indivíduo, de acordo com as suas liberdades básicas, em
detrimento do maior proveito que a busca pelo bem-estar geral poderia angariar para a
sociedade. Para Rawls, não adianta viver em uma sociedade rica feita às custas da pobreza de
muitos que não podem compartilhar dessa riqueza. Isso não seria justiça, segundo a sua
concepção. Portanto, a teoria da justiça de Rawls procura – por meio da figura do contrato – criar
princípios que visem, além de garantir as liberdades básicas dos indivíduos, a minorar as
disparidades sociais como fim último da justiça. É o que Rawls chamou de “justiça como
eqüidade”.
3. A OPÇÃO PELA TEORIA DO CONTRATO SOCIAL.
Um dos principais objetivos das teorias contratualistas foi o de estabelecer a necessidade do
consenso como fator legitimador do Estado. O indivíduo no “estado de natureza” é considerado
sempre como “igual” ao seu semelhante, seja enquanto igualmente capaz de enfrentar outro
indivíduo – conforme Hobbes – ou ainda como igualmente dotado de direitos naturais carecedores
de um guardião imparcial – como em Locke. Em Rousseau, por exemplo, a questão fundamental
para a elaboração do contrato social é justamente a de não fazer com que o indivíduo
simplesmente abdique de sua liberdade do estado de natureza em virtude do corpo político
formado pelo pacto social, o que poderia significar a sua submissão. Como já se percebe, o
utilitarismo desfaz a ligação de igualdade entre os indivíduos, colocando-os, de certa forma, como
“subordinados” ao Estado[v]. Apesar de o utilitarismo ser caracterizado como uma “ideologia do
capitalismo”, inserido, portanto, na tradição do liberalismo anglo-saxão, o princípio da utilidade
contraria realmente os postulados liberais[vi], sobretudo, como concebidos em Kant; e é nessa
linha de pensamento que Rawls vai se inserir. Conforme explica Catherine Audard em sua
introdução para a obra Justiça e Democracia:
Reintroduzir os imperativos da justiça social não deve suprimir as liberdades e os direitos dos
indivíduos, mas neles fincar raízes. É somente daí que pode nascer um consenso. (...) Para tanto,
excluído qualquer apelo à autoridade tirânica do Estado, a comunidade política deve ter outras
fontes. De onde o recurso de Rawls à doutrina do contrato social, como ele explica longamente no
Capítulo I deste volume, “A estrutura básica como objeto”. (AUDARD, C. “John Rawls e o conceito
do político” in RAWLS, J. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XV, grifo
nosso).
Como Rawls explica nesse texto, uma das características essenciais da concepção
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contratualista de justiça é que a estrutura básica da sociedade é o objeto primeiro da justiça (Op.
Cit., p. 3). Seu propósito no ensaio inicia com a análise do que seja essa “estrutura básica” a que
se refere:
Entende-se como estrutura básica a maneira pela qual as principais instituições sociais se
arranjam em um sistema único, pelo qual consignam direitos e deveres fundamentais e
estruturam a distribuição de vantagens resultante da cooperação social. (Ibidem)
Rawls entende como instituições sociais “a constituição política e os principais acordos
econômicos e sociais” (TJ, p. 8). Nesse sentido, inserem-se entre as principais instituições sociais
a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a
propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica (Ibidem). É
compreensível, portanto, por que a estrutura básica é o objeto primeiro da justiça: os efeitos
oriundos da configuração da estrutura básica para determinado indivíduo é que vão direcionar a
sua vida de seu começo ao seu final. Para a idéia de “justiça como eqüidade”, criar princípios que
minimizem as desigualdades provenientes da estrutura básica é um primeiro objetivo. São esses
princípios, como afirma Rawls, que irão regular a escolha de uma constituição política e os
elementos principais do sistema econômico e social (Ibidem):
Na teoria da justiça como eqüidade, as instituições da estrutura básica são consideradas como
justas desde que satisfaçam aos princípios que pessoas morais, livres e iguais, e colocadas numa
situação eqüitativa, adotariam como o objetivo de reger essa estrutura. (TJ, p. 20)
Assim, o conceito de justiça para Rawls se define pela “atuação de seus princípios na atribuição
de direitos e deveres e na definição da divisão apropriada de vantagens sociais” (Idem, p. 11).
Desse modo, se a estrutura básica não for convenientemente regulada e ajustada, o processo
social deixará de ser justo, por mais justas e eqüitativas que possam parecer as transações
particulares consideradas separadamente (JD[vii], pp. 13-14).
Como já se percebe, a teoria de Rawls se vale da teoria do contrato social tradicional em um
sentido muito particular. A teoria rawlsiana não pretende acordar a criação de determinada forma
de Estado, mas sim promover um consenso inicial a respeito dos princípios da justiça para a
estrutura básica da sociedade, que, por sua vez, vão regular todos os acordos subseqüentes, a fim
de que sejam justos e eqüitativos (Idem, p. 12). Assim, um contrato social para Rawls é:
(1) um acordo hipotético entre todos os membros de uma sociedade e não somente entre
alguns deles, (2) enquanto membros da sociedade (enquanto cidadãos) e não enquanto indivíduos
que ocupam uma posição ou papel particular no seio da sociedade. Na versão kantiana dessa
doutrina, a que chamo teoria da justiça como eqüidade, (3) os parceiros são considerados e se
consideram eles próprios como pessoas morais livres e iguais; e (4) o conteúdo do acordo trata
dos princípios primeiros que vão governar a estrutura básica[viii]. (JD, pp. 4-5)
O primeiro ponto então a ser analisado é a questão do acordo hipotético propriamente dito,
que se inicia com o que Rawls chamou de “posição original”.
3.1. A posição original e o véu de ignorância.
Como explica Esteves, os contratualistas pensavam que embora ninguém tivesse tido a
possibilidade de escolher a sociedade em que iria nascer e viver, uma sociedade justa seria aquela
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em que cada qual, se tivesse tido essa possibilidade, teria escolhido para nascer e viver. Para que
uma sociedade fosse justa nesse sentido de poder obter a aceitação e reconhecimento de todos
igualmente, seria preciso que as leis dessa sociedade emanassem de seus membros como se cada
qual tivesse sido legislador, como se tais leis tivessem brotado autonomamente de cada vontade,
expressando a vontade geral. A teoria do contrato social seria então a simulação de uma situação
hipotética, na qual os indivíduos reunidos criariam uma legislação fundamental, constitucional e
justa de um Estado, na qual estaria manifesta a vontade geral. Essa idéia é retomada com
algumas modificações por Rawls com seu conceito de “posição original”[ix] (ESTEVES, Op. Cit., p.
94).
De fato, a posição original corresponde, na teoria contratualista de Rawls, ao estado de
natureza do contratualismo tradicional. Ou seja, a posição original é o estado em que os
indivíduos se encontram antes de formularem o contrato, ou melhor, quando estão prestes a
formulá-lo. Esse estado, entretanto, não é caracterizado nem como de guerra nem como de paz,
consoante acontece em algumas teorias do contratualismo tradicional. Para Rawls, a posição
original é a situação inicial em que se encontram os indivíduos antes de pactuarem, na qual eles
permanecem detrás de um “véu de ignorância” que não os permite ter consciência de suas
posições sócio-econômicas e, até mesmo, psicológicas. Rawls entende então a posição original
como o “status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos básicos nele estabelecidos
sejam eqüitativos”[x] (TJ, p. 19).
Assim sendo, essa posição original não é concebida como uma situação histórica real nem
como uma condição primitiva da cultura, como poderia ser entendido na teoria de Locke. A
posição original é entendida como uma condição hipotética caracterizada de modo a conduzir a
determinada concepção de justiça, que, para o autor americano, é a da justiça como eqüidade (TJ,
p. 13).
Para compreender inicialmente a teoria de Rawls é bom nos valermos de uma metáfora
sugerida pelo próprio autor e desenvolvida com mais pormenores por Esteves. Suponhamos que
numa festa de aniversário a mãe de Joãozinho o encarregue de partir e dividir o bolo. Sendo
naturalmente egoísta, o primeiro pensamento de Joãozinho é o de dividir o bolo em partes
maiores e menores, reservando as maiores para si e para os seus amiguinhos mais chegados.
Porém, antes que ele ponha em prática o seu objetivo, sua mãe o adverte de que as partes do
bolo por ele dividido serão sorteadas. Assim, Joãozinho se dá conta de que não pode saber
antecipadamente para quem vão as partes maiores. Ele então compreende que pode dar o azar de
ficar com as partes menores, assim como seus amiguinhos mais queridos. Ora, colocado nessa
situação de ignorância quanto à distribuição do bolo, Joãozinho, que é esperto o suficiente,
necessariamente concluirá que é melhor dividi-lo de uma maneira justa do que correr o risco de
sair no prejuízo. Em termos filosóficos, Rawls diz que a escolha dos princípios da justiça social, ou
seja, da justiça distributiva na partilha dos bens produzidos pelo trabalho social, é feita na posição
original sob o que ele chama de “véu da ignorância”, ilustrado na metáfora pela ignorância de
Joãozinho quanto ao destino das partes do bolo. O importante é observar que o que faz com que
Joãozinho finalmente divida o bolo de uma maneira justa não é uma espécie de conversão moral,
como se ele de súbito tivesse deixado de ser aquele menino egoísta que só pensa no seu
bem-estar e no dos seus amiguinhos mais chegados. Joãozinho não teve um súbito discernimento
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de princípios de justiça, que fizessem com que ele viesse a ter respeito e consideração por todos
igualmente. Pelo contrário, ele continua sendo aquele menino egoísta, mas esperto. Desse modo,
colocado nessa situação de ignorância quanto ao destino das partes do bolo, ele é forçado a ser
justo, porque compreende que está no seu interesse próprio e egoísta uma divisão justa do bolo.
Desse modo, a pretensão da teoria elaborada por Rawls é a de que princípios da justiça podem ser
derivados do interesse próprio racional dos indivíduos, desde que eles sejam colocados, na
“posição original”, em determinadas condições ideais - no caso, o “véu de ignorância”[xi] (cf.
ESTEVES, Op. Cit, p. 94).
Se os parceiros do acordo rawlsiano devem ser concebidos como pessoas morais, livres e
iguais, eles devem, portanto, saber pouca coisa sobre si próprios. Isso porque se soubessem de
suas reais condições sócio-econômicas, as partes já não seriam iguais, pois cada qual teria o seu
status quo específico, sendo que seu julgamento seria influenciado por essas contingências de
vida. Além disso, se não fossem livres, não teriam independência de escolha – autonomia – para
chegar a um acordo que, por ser um acordo, deve refletir um consenso. Por fim, se as pessoas
não fossem morais, não poderiam elas chegar a um consenso sobre princípios da justiça, uma vez
que estes devem ser descobertos pela razão (JD, p. 23).
Como se não bastasse, o véu de ignorância deve abarcar igualmente o desconhecimento
quanto às condições históricas da geração dos indivíduos contratantes, uma vez que estas
também poderiam influir na escolha dos princípios da justiça. Por exemplo, se se soubesse que o
estoque de água no mundo fosse apenas suficiente para mais 100 anos, a geração envolvida no
contrato poderia achar desnecessário economizar esse recurso, pois poderiam supor que –
estando eles todos mortos quando a água acabasse – pouca diferença faria economizá-la a partir
do acordo[xii]. É nesse sentido que o acordo rawlsiano é não-histórico, pois o fato de se levar em
consideração os fatores históricos poderia desviar os contratantes do que é justo, causando um
prejuízo fatal às gerações seguintes.
Percebe-se, a partir do que foi dito, que a posição original é uma situação puramente
hipotética (TJ, p. 130). Nas palavras de Rawls:
Não é preciso que nada semelhante ocorra concretamente, embora possamos simular as
reflexões das partes seguindo, de forma deliberada, as restrições que ela representa. Não se
pretende que a concepção da posição original explique a conduta humana, exceto na medida em
que ela tenta dar conta de nossos juízos morais e nos ajuda a explicar o fato de termos um senso
de justiça. (Ibidem)
E ainda:
Não existe na prática meio algum para conduzir esse processo de deliberação na realidade nem
para ter certeza de que ele responde às condições impostas. Por isso o resultado não pode ser
verificado pela justiça processual pura tal como ela resultaria de uma deliberação dos parceiros
numa situação real. O resultado deve ser determinado por um raciocínio analítico, isto é, a
posição original deve ser caracterizada com suficiente precisão para que seja possível estabelecer,
a partir da natureza dos parceiros da situação em que se encontram, a concepção da justiça que
será proferida durante a confrontação dos argumentos. O conteúdo da justiça deve ser descoberto
pela razão, ou seja, resolvendo-se o problema de concordância suscitado pela posição original (JD,
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p. 23).
Portanto, a teoria de Rawls não é aplicável no sentido concreto do termo. A teoria da justiça
como eqüidade não se presta a indicar uma elaboração prática de um contrato social rawlsiano.
Como já se viu, as teorias contratualistas em geral usaram a figura do contrato como uma
ferramenta de raciocínio. Com Rawls não é diferente. Seria impossível fazer um acordo
envolvendo todas as pessoas de uma sociedade de forma direta. Seria igualmente impossível
fazer com que essas pessoas se encontrassem detrás de um “véu de ignorância”, “esquecendo-se”
durante a elaboração do acordo de tudo o que faz parte contingente de seu próprio ser, com
exceção do que Rawls considera como a moralidade do senso de justiça. É possível compreender,
desse modo, por que o contrato rawlsiano é hipotético e não-histórico. A teoria de Rawls serve
como uma construção de raciocínio que procura demonstrar abstratamente que se fosse possível
realizarmos a posição original, com o véu de ignorância, o contrato advindo do debate das partes
quanto à construção de um conceito de justiça seria aquele composto pelos dois princípios da
justiça como eqüidade. Segundo o filósofo norte-americano:
...a posição original deve ser interpretada de modo que possamos, a qualquer tempo, adotar a
sua perspectiva. Deve ser indiferente a ocasião em que alguém adota esse ponto de vista, ou
quem o faz: as restrições devem ser tais que os mesmos princípios são sempre escolhidos. (TJ, p.
149)
Dessa maneira, é apenas através do uso da figura do véu de ignorância que se pode chegar a
uma escolha unânime de uma concepção particular de justiça (TJ, p. 151), espelhada na escolha
dos princípios básicos das instituições.
Como afirma César Augusto Ramos, Ralws, em sua obra O Liberalismo político, relata que
muitas das críticas à sua Teoria da Justiça - a acusação de que ela se apóia sobre uma concepção
abstrata de pessoa e opera com uma idéia individualista, não social, da natureza humana -
decorrem do fato de não se ver “na idéia da posição original um método de representação”. As
partes devem ser consideradas como “representantes de cidadãos livres e iguais”. Elas são
“criaturas artificiais”. Não são pessoas reais de uma sociedade. As pessoas, na posição original,
são “meros personagens artificiais que habitam nosso mecanismo de representação”. O recurso da
representação significa descrever a posição original e a concepção de pessoa que ela manifesta
como o resultado de um artifício: é um ponto de vista que o homem adota para observar o seu
papel e a maneira que ele pode se representar numa possível posição original. As partes são
“agentes racionais da construção”, “pessoas artificiais que idealizamos para que habitem uma
posição original, como um recurso de representação”. A psicologia que se aplica à pessoa nessas
condições “não é uma psicologia que se origina da ciência da natureza humana, mas é um
esquema de conceitos e princípios para expressar certa concepção política da pessoa e um ideal de
cidadania” (RAMOS, pp.71-2).
Desse modo, vimos até aqui três das quatro principais características do contrato social como
entendido por Rawls (infra, p. 8). Ele é (1) um acordo hipotético entre todos os membros de uma
sociedade e não somente entre alguns deles: isso porque é somente por meio da ficção da posição
original, sob o véu de ignorância, que se obtém que o contrato seja unânime. Ainda, esse
contrato é celebrado pelas pessoas (2) enquanto membros da sociedade (enquanto cidadãos) e
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não enquanto indivíduos que ocupam uma posição ou papel particular no seio da sociedade:
portanto, é o véu de ignorância que possibilita que as pessoas sejam concebidas enquanto meros
cidadãos que, ignorantes de seus interesses reais, são capazes de chegar a um consenso a
respeito dos princípios da justiça. Assim, na versão kantiana dessa doutrina, a que Rawls chama
de teoria da justiça como eqüidade, (3) os parceiros são considerados e se consideram eles
próprios como pessoas morais livres e iguais: é isso que – em conjunto com (2) – vai garantir
que, sob o véu de ignorância, os indivíduos chegarão a um conceito de justiça consensual e
unânime e que, removido o véu, todos buscarão segui-lo em suas práticas sociais. Por fim,
resta-nos analisar o item (4) do contrato rawlsiano, ou seja, o conteúdo do acordo, que trata dos
princípios primeiros que vão governar a estrutura básica, como será visto a seguir.
3.2. A questão dos princípios das instituições
Vimos que os indivíduos na posição original estariam sob um véu de ignorância, o que
garantiria a isonomia de suas deliberações a respeito de uma particular concepção de justiça, uma
vez que, para o contratualismo rawlsiano, uma concepção de justiça para reger a estrutura básica
seria o único item a ser acordado nesse momento. No entanto, a fim de se chegar a esse
consenso, os indivíduos deveriam possuir um conhecimento a respeito das opções que teriam
como possíveis de serem escolhidas para configurar o justo. Se, hipoteticamente, fossem
fornecidas a esses indivíduos as mais diversas concepções de justiça, para que escolhessem entre
elas, Rawls tenta provar por sua teoria que a concepção escolhida seria a da justiça como
eqüidade.
Como constatamos pelo exemplo do bolo, o desconhecimento dos indivíduos quanto ao seu
estado real e o receio de serem prejudicados por uma concepção de justiça que não previsse a
possibilidade de favorecimento de seu bem-estar levariam todos a firmar o consenso quanto à
justiça como eqüidade. Um princípio como o utilitarista, por exemplo, ao qual Rawls se opõe, não
garantiria que o indivíduo que o aceitou, depois de erguido o véu de ignorância, não se
encontrasse em uma posição de desamparo econômico com escassas – ou, até mesmo, quaisquer
– possibilidades de sair dela. Rawls argumenta, portanto, que o princípio da utilidade seria
repudiado como uma possível concepção de justiça em detrimento da justiça como eqüidade.
Nesse sentido, percebemos que Rawls não postula que sua concepção apresente uma suposta
verdadeira idéia de justiça. Pelo contrário, o autor americano reconhece – como não poderia ser
diferente – a existência de diversas concepções de justiça, sendo que, através do contrato
hipotético por ele criado, argumenta que – naquelas condições ideais – a concepção escolhida
seria a da eqüidade, sustentando que esta se aproxima mais do que as outras teorias ao senso de
justiça que temos intuitivamente enquanto seres racionais e morais[xiii], mas que, ao mesmo
tempo, estão sempre mais preocupados com a promoção de seu próprio bem do que com a
promoção do bem dos demais.
No entanto, Rawls acredita que apesar de o homem não estar necessariamente preocupado
com o bem de seu semelhante, quando for possível fazê-lo sem acarretar-lhe qualquer ônus, não
deixará de fazê-lo. Esse raciocínio é fundamental para Rawls, pois ele acredita assim que a justiça
como eqüidade é uma teoria que prevê suas próprias bases de sustentabilidade.
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Assim sendo, os princípios da justiça são:
...aqueles que pessoas racionais preocupadas em promover seus interesses consensualmente
aceitariam em condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de ser favorecido ou
desfavorecido por contingências sociais e naturais. (TJ, p. 21)
Além disso, Rawls afirma que a justiça como eqüidade – através das circunstâncias da posição
original que redundariam nos princípios da justiça – garantiria o encontro entre o “egoísmo”
individual e as ponderações que cada pessoa tem sobre justiça. É o que Rawls chama de equilíbrio
ponderado[xiv]:
Por meio desses avanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias em que
se deve obter o acordo original, outras vezes modificando nossos juízos e conformando-o com os
novos princípios, suponho que acabaremos encontrando a configuração da situação inicial que ao
mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas
convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas eu me refiro como
equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos princípios e opiniões
coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios nossos julgamentos se conformam
e conhecemos as premissas das quais derivam (TJ, p. 23).
Na situação de equilíbrio ponderado, os indivíduos saberiam o que seria justo, considerando-o
não apenas como resultado de um ordenamento jurídico, por exemplo, mas sim como coincidência
entre os princípios eleitos no acordo inicial e suas próprias convicções de justiça. Nesse aspecto, a
concepção de justiça não se torna algo instável ou relativista, como o justo hobbesiano, que
deriva a justiça da vontade do soberano e de seu poder de império. Tampouco a concepção de
justiça se lastreia no bem da sociedade em geral, seja lá o que isso possa ser numa análise,
portanto, casuística e generalizante, como quer o utilitarismo. Na concepção rawlsiana, já se sabe
de antemão qual é o conceito de justiça e como se deve orientar a conduta para que se alcance o
justo, pois o justo não é algo imposto, arbitrário, mas, outrossim, a concepção de justo foi
construída pelos próprios indivíduos que devem segui-la, enquanto seres humanos racionais e
morais.
Resta-nos agora saber quais são os princípios da justiça. Segundo Rawls, os dois princípios
mais importantes que seriam escolhidos para reger a estrutura básica da sociedade e que
serviriam como fonte dos demais seriam:
(1) Cada pessoa tem um direito igual ao sistema mais extenso de liberdades básicas iguais para
todos que seja compatível com um mesmo sistema de liberdades para todos.
(2) As desigualdades sociais e econômicas são autorizadas, com a condição (a) de que estejam
dando a maior vantagem ao mais desfavorecido e (b) de que estejam ligadas a posições e funções
abertas para todos, nas condições de justa igualdade de oportunidades. (JD, p. 20)
Por esses princípios vê-se que Rawls considera a estrutura social – para os fins de uma teoria
da justiça - como subdividida em duas partes, sendo que a cada uma delas de aplica um dos
princípios. A primeira diz respeito às liberdades básicas iguais dos indivíduos e a segunda às
desigualdades econômicas e sociais (TJ, pp. 64-5).
O primeiro princípio se refere à ampla gama de liberdades básicas de um indivíduo, entendido
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como um cidadão participante de um estado de direito. São, portanto, a liberdade política – de
votar e ser votado -, de expressão, de reunião, de propriedade privada, etc. De acordo com o
primeiro princípio, essas liberdades devem ser iguais a todos (Ibidem)[xv].
Como explica Freeman, Rawls considera essas liberdades básicas porquanto moralmente mais
significantes e imprescindíveis para os indivíduos. Em primeiro lugar, elas são necessárias para a
consideração e escolha de seus vários interesses. Em segundo lugar, são também necessárias
para que os indivíduos possam ter um senso de justiça, uma vez que este se manifesta quando da
busca ativa de seu próprio bem em relação à sociedade (FREEMAN, 2002, pp. 4-5).
Já o segundo princípio rawlsiano se aplica à distribuição de renda e riqueza e ao escopo das
organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de responsabilidade. Quanto ao
primeiro item – a distribuição de renda e riqueza – é preciso salientar que esta não precisa ser
igual, mas deve ser vantajosa para todos. Quanto ao segundo item, basta dizer que ao mesmo
tempo que a distribuição de renda deve se dar de tal modo que beneficie a todos, as posições de
autoridade e responsabilidade devem também ser acessíveis a todos (TJ, p. 65).
Na primeira parte do segundo princípio, Rawls se encontra margeando dois pontos
fundamentais da questão sobre a igualdade econômica: de um lado há a perspectiva liberal
tradicional, capitalista, que permite a desigualdade generalizada de riqueza, uma vez que essa é
decorrente da capacidade de cada um e/ou das contingências de seu nascimento; de outro lado, a
perspectiva “comunista”, que postula a divisão igualitária dos bens.
O filósofo americano reconhece que a divisão igualitária dos bens primários e da autoridade
traz problemas às eficácias econômicas e organizacionais, bem como o liberalismo do laissez-faire
traz conseqüências sociais graves. Entre os dois extremos, Rawls acredita encontrar um
meio-termo no qual as desigualdades sócio-econômicas são permitidas desde que haja um
compromisso dos mais favorecidos em relação aos menos favorecidos, ou seja, que o progresso
dos primeiros se reflita na melhoria também da situação dos segundos, ao contrário do que
ordinariamente acontecia (e ainda acontece) na lógica do capitalismo. Isso é o que Rawls chama
de princípio da diferença. Segundo ele:
...os princípios da justiça, em particular o princípio de diferença, aplicam-se aos princípios e
aos programas políticos públicos que regem as desigualdades econômicas e sociais. Eles servem
para ajustar o sistema dos títulos (no sentido jurídico) e dos ganhos e para equilibrar as normas e
preceitos familiares que esse sistema utiliza na vida cotidiana. O princípio de diferença vale, por
exemplo, para a taxação da propriedade e da renda, para a política econômica e fiscal. (JD, p. 34)
Assim, com os dois princípios da justiça de sua teoria, Rawls procura resguardar o valor do
indivíduo, seja protegendo as suas liberdades básicas fundamentais, seja propiciando melhorias
sociais em sua vida. Para tanto, os princípios devem obedecer a uma ordenação serial, sendo que
o primeiro antecede o segundo. Essa ordenação significa que as violações das liberdades iguais
protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por maiores
vantagens sociais (TJ, p. 65). Logo se vê que essa é uma garantia que o utilitarismo não poderia
dar.
São esses, portanto, os princípios que configuram a idéia da justiça como eqüidade. Essa
concepção de justiça não pretende a divisão igualitária e totalizadora dos bens primários ou da
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autoridade, uma vez que esse tipo de desigualdade é, por um lado, necessária (como no caso da
motivação profissional e da livre iniciativa) e também é, por outro lado, inevitável, haja vista a
dinamicidade da sociedade e as características de cada pessoa, fatores que a ingerência estatal
não consegue jamais controlar.
Nesse sentido, a eqüidade (fairness, no original) deve ser entendida como a tentativa de
equalizar os interesses discrepantes inevitavelmente presentes em qualquer sociedade de forma
equânime (fair), ou seja, de uma forma que possa ser vantajosa para todos, segundo os dois
princípios básicos escolhidos em uma situação de acordo inicial eqüitativa. Como esses princípios
são escolhidos para reger a estrutura básica da sociedade, formando um conceito de justiça
procedimental pura[xvi] e equânime, a injustiça, nesse caso, como afirma Rawls, constitui-se
simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos (TJ, p. 66).
4. Justiça como Eqüidade: uma doutrina contratualista
Pudemos constatar que a concepção de justiça como eqüidade – forma pela qual Rawls designa
sua teoria – foi concebida por seu autor como uma doutrina contratualista, baseada nos moldes
do contratualismo tradicional, ainda que pese em contrário a isso uma série de diferenças e
adaptações trazidas pelo autor americano às suas idéias. Pela teoria rawlsiana, o acordo inicial
tem como objetivo a criação de princípios básicos que configurarão o conceito de justiça, a fim de
reger a estrutura básica da sociedade. Assim, consoante outras doutrinas contratualistas, a justiça
como eqüidade consiste, desde o início, em duas partes[xvii]:
(1) uma interpretação de uma situação inicial e do problema da escolha colocada naquele
momento;
(2) um conjunto de princípios que, segundo Rawls procura demonstrar, seriam aceitos
consensualmente. (TJ, p. 17)
A primeira parte comportaria então a posição original e a segunda, os princípios escolhidos
consensualmente pelos indivíduos sob o véu de ignorância. Freeman afirma que, na verdade, o
que ocorre são dois contratos sociais: o primeiro seria, de fato, o da posição original, com a
conseqüente escolha dos princípios; o segundo, por sua vez, comportaria o compromisso dos
indivíduos que os escolheram em efetivamente cumpri-los, fim para o qual seria necessário o seu
senso de justiça, a vontade de agir para a consecução de uma sociedade justa e também a
possibilidade de que os contratantes pudessem realmente agir conforme os princípios que
elegeram. Seria desse segundo contrato que dependeria toda a estabilidade do sistema
(FREEMAN, 2002, p. 21).
Destarte, como já se mencionou, o contratualismo rawlsiano – ou o “neocontratualismo” de
John Rawls - não é uma doutrina contratualista completa, uma vez que o que está em acordo são
os princípios da justiça e não a formação de um governo. Entretanto, a idéia do contrato é ainda a
origem dos princípios que tiram do consenso da posição original um valor que liga todos os
indivíduos da sociedade na cooperação por um conceito de justiça público, ou seja, conhecido por
todos. Como afirma Rawls:
O mérito da terminologia do contrato é que ela transmite a idéia de que princípios da justiça
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podem ser concebidos como princípios que seriam escolhidos por pessoas racionais e que assim as
concepções de justiça podem ser explicadas e justificadas. (...) Mais ainda, os princípios da justiça
tratam de reivindicações conflitantes sobre os benefícios conquistados através da colaboração
social; aplicam-se às relações entre várias pessoas ou grupos. A palavra “contrato” sugere essa
pluralidade, bem como a condição de que a divisão apropriada de benefícios aconteça de acordo
com princípios aceitáveis por todas as partes (TJ, p. 18).
Nessa esteira, outro mérito das teorias contratualistas seria a publicidade dos seus princípios, o
que, na teoria da justiça como eqüidade, fica muito claro. Segundo Rawls:
A condição de publicidade dos princípios da justiça é também sugerida pela fraseologia
contratualista. Assim, se esses princípios são o resultado de um consenso, os cidadãos têm
conhecimento dos princípios que os outros seguem. É típico das teorias contratualistas ressaltar a
publicidade dos princípios políticos. (Ibidem)
E é a figura do contrato social que garante essa publicidade. A justiça como eqüidade se
escora assim em uma concepção contratual que procura esclarecer a concepção de justiça como
algo decorrente de um processo eqüitativo, visando à eqüidade das relações sociais. Conforme
Oliveira, num primeiro sentido, eqüidade significa, para Rawls, a igualdade desinteressada e
hipotética da posição original, a qual permite um consenso entre as pessoas sem barganhas e
conchavos. E num segundo sentido, eqüidade significa a igualdade de oportunidades entre as
pessoas iguais, com respeito ao princípio da diferença. Por conseguinte, segundo Oliveira, a teoria
da justiça como eqüidade não procura criar uma sociedade eqüitativa[xviii]. O que interessa para
a teoria da justiça como eqüidade não é propriamente a igualdade, mas a desigualdade justificada
e aceita (OLIVEIRA, 2000, pp. 142-3). Portanto, para a teoria rawlsiana, de acordo com o seu
segundo princípio, a desigualdade de renda, por exemplo, não é injusta desde que ela sirva
também para melhorar a posição dos menos favorecidos. Assim sendo, o fato de Joãozinho querer
comer mais bolo não pode implicar que seus amiguinhos comam menos, mas o contrário.
Joãozinho, contudo, deve saber disso e concordar com essa situação...
5. BIBLIOGRAFIA.
ESTEVES, Julio. AS CRÍTICAS AO UTILITARISMO POR RAWLS. ethic@. Florianópolis: v.1 n.1,p.81-96, Jun. 2002. Disponível em: <www.cfh.ufsc.br/ethic@/ETHIC1~6.PRN.pdfv>. Acesso em15. ab. 2004.
FREEMAN, Samuel (ed.). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge university Press, 2002.
NEDEL, José. John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre:Edipucrs, 2000.
OLIVEIRA, Neiva Afonso. Rousseau e Rawls: contrato em duas vias. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
RAMOS, César Augusto. A concepção política de pessoa no liberalismo de J. Rawls. Disponível em:http://www.filosofia.ufpr.br/pet/cadernos/numero4/cesar.pdf>. Acesso em 15.ab.2004.
RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
___. O direito dos povos, seguido de "A idéia de razão pública revista". São Paulo: Martins Fontes,2001.
___. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
___. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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[i] O mesmo ensaio está presente, com pequenas variações de estilo, em O liberalismo político (Ática, 2000, pp. 309-42).
[ii] Ou ainda, liberdade como “não-impedimento”, como se vê, principalmente, na teoria de Kant. Essa liberdade, sobretudo nos demaiscontratualistas, seria a característica principal do “estado de natureza”. Daí a necessidade da transição para o “estado civil”, com aconseqüente organização de uma ordem jurídica imparcial, a fim de dirimir os prováveis conflitos de interesses, a partir de um novoconceito de liberdade, que em Kant é chamado de “liberdade civil”.
[iii] Este é o ponto fulcral de muitos contratualistas, em especial Hobbes. Aristóteles dissera que o “homem é um animal político”, ao queo filósofo de Leviatã se opusera, já que – para ele – o estado de natureza seria marcado pela guerra de todos contra todos. Portanto,para Hobbes, o homem político seria um “homem artificial”, somente criado a partir do surgimento do Estado. O homem, por suanatureza, seria egoísta.
[iv] De agora em diante as citações da obra Uma Teoria da Justiça aparecerão sob a abreviatura “TJ”.
[v] Essa “subordinação” se encontra também em Hobbes, mas aí é uma subordinação ao soberano por si só, como personificação daforça absoluta do Estado, e não em função do “bem-estar” da sociedade como um todo.
[vi] Para o utilitarismo, a escravidão, por exemplo, poderia ser algo justificável na medida em que poderia oferecer maiores ganhosfinanceiros ao Estado e à média geral da população (NEDEL, 2000, p. 25).
[vii] De agora em diante as citações referentes à obra Justiça e Democracia aparecerão sob a abreviatura de “JD”.
[viii] Sobre a versão kantiana da doutrina de Rawls: “Os princípios da justiça são também imperativos categóricos, no sentido de Kant,pois Kant entende, por imperativo categórico, um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude da sua natureza como umente racional, livre, igual...Agir a partir dos princípios de justiça significa agir a partir de imperativos categóricos no sentido de que seaplicam a nós, quaisquer que sejam nossas metas em especial (NEDEL, 2000, p. 83).
[ix] A leitura da teoria do contrato por Esteves é – como se vê - basicamente centrada no contratualismo como entendido porRousseau.
[x] Como será visto mais adiante, a situação inicial configuraria a primeira parte do contrato ou ainda, para alguns críticos, seria umprimeiro acordo, à semelhança do “pacto de associação” do contratualismo clássico.
[xi] A metáfora desenvolvida por Esteves é muito explicativa; no entanto, pensamos que não se pode esquecer que o indivíduo daposição original, para Rawls, é um indivíduo moral. Rawls acredita que o ser humano na posição original vai, através do uso da razão,induzida pelas circunstâncias da situação inicial, chegar a um senso de justiça, o que é um julgamento moral, não expressado nametáfora. Joãozinho deve entender que o que ele está fazendo é justo e que, sendo assim, sempre que for dividir seu bolo daí em diantedeverá cortá-lo em partes iguais, goste disso ou não. Rawls acredita que é o senso de justiça que vai fazer com que os princípiosescolhidos na posição original sejam seguidos depois de removido o véu de ignorância.
[xii] A relação entre as gerações seria definido no acordo quanto ao justo princípio da poupança, como se depreende pelo exemplo daescassez de recursos naturais. Segundo Rawls: “Em vez de imaginar um acordo direto (hipotético e não histórico) entre todas asgerações, pode-se pedir aos parceiros que entrem em acordo sobre o justo princípio da poupança, submetido à condição de que elesdeveriam querer que todas as gerações precedentes o tivessem seguido” (JD, p. 24, grifo cf. original). Como se vê, o justo princípio dapoupança segue também um raciocínio análogo ao do imperativo categórico kantiano.
[xiii] Como afirma Rawls: “...a finalidade dessas condições [da posição original] é representar a igualdade entre os seres humanos comopessoas éticas, como criaturas que têm uma concepção de seu próprio bem e que são capazes de ter um senso de justiça” (TJ, p. 21)
[xiv] Conceito também conhecido como “equilíbrio reflexivo” (no original: “reflective equilibrium”).
[xv] O primeiro princípio trata das liberdades básicas em geral, de que serviriam como exemplo aquelas elencadas no Art. 5o. da CF/88.
[xvi] “...a justiça procedimental pura se verifica quando não há critério independente para o resultado correto: em vez disso, existe umprocedimento correto ou justo de modo que o resultado será também correto ou justo, qualquer que seja ele, contanto que oprocedimento tenha sido corretamente aplicado” (TJ, p. 92).
[xvii] Lembremos que em algumas doutrinas contratualistas – como Locke – há um “pacto de associação” e um “pacto de submissão”.É certamente a esse aspecto que se refere Rawls nesse excerto, como também Freeman, em seu comentário seguinte sobre a“duplicidade” do contrato social rawlsiano.
[xviii] Oliveira aparentemente entende “eqüitativo” apenas como “igualitário”. Essa sinonímia não é absoluta. De fato, Rawls nãopretende que sua teoria seja igualitária. Mas pretende que seja eqüitativa no sentido de – arremedando o principio da igualdade – tratar“os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades”. Em sentido geral, essa é a eqüidade.Contrariando Oliveira: se a teoria da justiça de Rawls é denominada “justiça como eqüidade”, como pode a sociedade ser justa sem sereqüitativa?
Informações BibliográficasConforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônicodeve ser citado da seguinte forma:
MARTINI, Marcus de. Notas sobre o neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls. Site doCurso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>.Acesso em: 5.ABR.111
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