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O CANTO DOS INOCENTES
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KATIA FERRAZ
CAPÍTULO I
Hagonah seguia os passos vacilantes dos outros prisioneiros à sua
frente. A corda grossa amarrada ao pescoço começava a machucá-lo,
arranhando-a pele. Estava exausto, mas não se dava o direito de reclamar. Os
outros, incluindo mulheres e crianças, também não o estavam?
As mulheres com seus bebês não recebiam nenhum privilégio e por
vezes, Hagonah tirava dos braços das mães exauridas os pequerruchos,
carregando-os ele mesmo em seus ombros fortes.
Já estavam às portas da grande cidade de Roma, sede do império que
escravizava seu povo.
Parando algumas vezes, eles vislumbravam, assustados uns e
apreensivos outros, os portais da cidade. O que seria deles quando entrassem
naquele antro de perdição?
Hagonah pertencia a um povo livre e que vivia nas florestas da
Bretanha. Como sobreviver à escravidão? Desde que os soldados romanos
invadiram suas terras e fizeram sua tribo prisioneira, sofria com a perda da
liberdade. Acostumado a dormir sob o manto estrelado nas noites cálidas ou a
tomar banho nas fontes de água fria das montanhas, jamais sonhara em perder
o que mais prezava no mundo.
Hagonah era filho do grão sacerdote e contava com as vantagens e
desvantagens da iniciação. Seu conhecimento das leis naturais ajudava-o a
tirar o melhor que a terra tinha para oferecer. Mas também sabia ler e escrever
a língua dos romanos. Seu pai se encarregara disso, apesar de desprezá-los. O
velho ancião previra o domínio daquele povo bélico que se espalhava pela
terra como verdadeira erva daninha e quisera prepará-lo para o pior.
Hagonah via agora a concretização de tudo quanto seu velho pai temia.
Nas mãos dos romanos, seu destino era incerto tanto quanto o de seu povo.
Sabia por seu pai que eles vendiam as crianças e as mulheres para as patrícias
e os homens tornavam-se trabalhadores braçais ou diversão para os soldados
nos jogos de morte. Onde se encaixaria ele?
Olhando em volta, viu que algumas mulheres choravam abraçadas às
crianças, outras tinham os olhares apreensivos, traumatizados.
Um grito de angustia calou-se em seu peito.
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Que poderia fazer para ajudá-los, se ele que era príncipe também estava
prisioneiro? A corda em seu pescoço bem lhe dava a dimensão de sua
situação.
Seu pai fora assassinado sem chance de defender-se e outros
sacerdotes da tribo fugiram e esconderam-se nas cavernas das montanhas,
onde costumavam orar e fazer rituais secretos em honra à deusa.
Homem acostumado às intempéries da vida quase nômade, Hagonar era
forte e gostava da caça, também afeito aos jogos e brincadeiras com seus
amigos, como era próprio de sua juventude. Porém, com exceção do arco,
jamais brandira uma arma, muito menos espadas romanas. Quando matava
algum animal com sua flecha certeira, orava à deusa e pedia perdão pela vida
que havia tirado a fim de preservar outras vidas.
O alimento era sagrado para sua tribo, que não tirava da natureza nada
além do que deveriam consumir. Por isso a terra era sempre farta e nunca se
negava a fornecer-lhes o sustento.
Era um jovem pacífico como aprendera a ser, mas agora lamentava que
não fosse um grande guerreiro acostumado a brandir as espadas e punhais
como Hagon, seu irmão. Contudo, Hagon também caíra sob a adaga romana.
E ele estava vivo. Mas a que preço? Não seria a escravidão uma coisa
pior do que a morte?
Estacando de repente, viu os portões da cidade impressionante, sede do
império romano. Parecia tão diferente de seu mundo! Os maus pressagios
invadiram seu coração e os olhos turvaram-se de lágrimas. Quando entrasse
ali, deveria dar adeus ao modo de vida de seu povo para sempre.
De repente, uma dor aguda nas costa arrancou-lhe um gemido rouco.
Hagonah olhou para trás sem saber o que o atingira. Um centurião romano
segurava um chicote e olhava-o de sobre o cavalo.
Reconheceu-o imediatamente. Aquele homem fora responsável pelas
mortes de velhos, mulheres e crianças inocentes! O seu povo!
O ódio fulminante escureceu-lhe os olhos. Quanto não daria para
colocar as mãos no pescoço daquele animal e apertá-lo até que arroxeasse,
sem ar!
Por que o homem não se enternecera com aqueles pobres infelizes que
lhe imploraram misericórdia? Por que permitira que seus soldados abusassem
das meninas e levassem jovens meninos, mal saídos da infância, para um
destino cruel, pior que a morte: o deleite de um imperador promíscuo e sua
corte abjeta?
Não, ele não era um animal! Os animais moviam-se pelo instinto, e
ele, o centurião, era um ser humano com o benefício da inteligência, o que o
tornava mil vezes pior.
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Outra chicotada lambeu-lhe as carnes. Apertando os dentes, Hagonah
esperou que o soldado descesse novamente o guante para segurar-lhe a ponta
e puxá-lo do cavalo.
Caído ao chão, o centurião ficou zonzo, mas logo percebeu o que
acontecera. O escravo atrevido lhe pagaria com a vida a afronta!
Levantando-se, puxou o punhal e avançou para Hagonah. Este
preparou-se para defender-se, pensando na tolice que havia feito. Confiava em
sua habilidade para segurar o homem, pois era forte e acostumado às lutas
corporais, mas fora idiotice sua colocar o seu povo em perigo.
Antes, porém, que o homem se lançasse sobre ele e o ferisse
mortalmente, um oficial e sua montaria interceptou-o.
_Plínio Lúcius, que pensas estar fazendo? _ Rugiu o general _Tua
estupidez já não nos custou tantos escravos? Embainha teu punhal e segue-
me! Temos que chegar à cidade antes do escurecer e não temos tempo para
tuas rusgas inconseqüentes!
O tal Plínio Lúcius fulminou Hagonah com olhar terrível e deixou a
certeza de que não perderia por esperar.
O comandante romano montou em seu cavalo e bateu logo em retirada.
Hagonah soltou o ar, finalmente. Não temia por si, mas pela sua gente.
Precisava pensar em alguma forma de libertá-los daquele cativeiro. Talvez não
conseguisse de imediato, mas tinha que tentar.
Uma criança chorou e a mãe tentou acalmá-la. Hagonah pegou o bebê
com seus braços.
_Dá-me cá, Isobel. Teu filho vai ser um grande homem, tem choro forte
_falou, tentando tranqüilizar as pessoas que ficaram apavoradas com a
possibilidade de sua morte no confronto com o soldado.
Voltando a caminhar, ele continuou a conversar com o pequenino,
distraindo-o.
Isobel, esposa de Hagon, olhou a cena com tristeza . Hagonah tinha um
grande coração e também um enorme peso sobre os ombros! Não tivera tempo
de prantear ao pai e ao irmão, de queimar seus corpos numa cerimônia
especial, encomendando suas almas como lhe fora ensinado.
Seu povo acreditava que se não houvesse a cremação e os atos fúnebres,
os espíritos dos homens ficariam vagando sem descanso até que fizessem o
que tinha de ser feito.
Ele era sensível e a perda do pai e do irmão seria para sempre uma
chaga incurável.
Observando-o carregar o seu bebê, apesar das costas laceradas pelas
diversas chicotadas, Isobel pensou no destino que os aguardava. A dor de
haver perdido o esposo, seu grande amor, estava guardada no coração e ela
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achava que também não passaria jamais. Hagon havia previsto que os romanos
os atacariam, ele o sabia e a havia preparado para o pior. Nada poderia fazer
agora a não ser deixar o destino decidir.
Estavam adentrando os portões de Roma, iniciariam uma nova vida e
somente a deusa, em quem acreditava e de quem fora sacerdotisa, poderia
saber o que lhes aconteceria dali por diante.
O chão estava lamacento pelas recentes chuvas, os homens, sujos e
famintos, as mulheres exaustas, e os bebês, esquálidos pela falta de alimento
adequado. Eles seguiam como rebanho maltratado, em fileira para a grande
prova que os aguardava. Um destino cruel, mas que deveria ser suportado para
o bem de todos.
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CAPÍTULO II
_Os soldados voltaram, senhora! _ começou a gritar a escrava núbia,
indo-se esbaforida pelos corredores do palácio.
Flávia levantou-se do triclínio e esperou que a negra chegasse.
_Por que gritas, Sura? Já não te pedi que não o fizesse? Deixas-me
louca com tua voz esganiçada! _admoestou assim que a núbia aproximou-se.
Mas a escrava parecia querer explodir de contentamento.
_Os soldados, senhora! Eles voltaram! E trouxeram mais escravos com
eles!
Flávia acompanhou a negra até à sacada mais alta da residência e
observou a leva de homens montados nos cavalos. Atrás deles vinha um bando
de bárbaros a arrastarem-se com suas roupas imundas.
A senhora procurou com os olhos o centurião Plínio. Localizando-o
apesar da distância, levou a mão ao peito a lamentar-se, uma garra apertando
seu coração.
Por que ele não perecia nas batalhas? Seu marido jamais fora ferido!
Tantos jaziam mortos, tantos amigos, esposos de suas conterrâneas! Mas seu
marido, não! Parecia imune às armas dos adversários. Os deuses o protegiam
sempre!
Ao mesmo tempo que pensava assim, Flávia exprobrava-se. Uma
esposa dedicada jamais deveria desejar a morte do marido!
_Sura, prepara os banhos do senhor! Já ele estará conosco e sabes o
quanto aprecia as águas mornas! Pena que não estamos em casa, assim poderia
banhar-se em nossas piscinas.
_Sim, minha senhora! Vou imediatamente! _ Mas ela parou de repente.
_ Senhora... será que o senhor vai trazer mais alguém para cá?
_Não sei, Sura. Como saber? _Ela respondeu com certa amargura.
Nunca sabia o que o marido faria. Jamais a consultava.
Flávia era para Plínio o seu brinquedo favorito, seu passatempo, e
considerava as mulheres meros objetos com inteligência inferior aos cavalos
de sua guarda.
_Perdoai-me, senhora. Não vos quis aborrecer _ desculpou-se a núbia,
observando o semblante entristecido de sua senhora.
A senhora Flávia era boa, não era como as outras patrícias que
maltratavam os escravos. Sorte o pai da senhora a ter comprado ainda menina
e tê-la entregue aos cuidados da jovem Flávia, refletia Sura.
_Vou preparar o banho do senhor.
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A núbia saiu quase a correr.
Flávia voltou ao pátio interno, onde havia jardins com estátuas e bustos
dos ancestrais de Plínio. Seu marido era de uma família importante e
conquistara seu lugar através da competência e ferocidade nos combates.
Apesar de não ser um homem muito culto, pois não era afeito aos livros e aos
cálculos, era excelente soldado. Depois, a herança deixada por seu pai e as
pilhagens de guerra, tornavam-no muito ilustre. Era recebido em todas as
casas importantes de Roma e seu humor agradava e distraía as senhoras
durante os jantares para os quais eram convidados.
Flávia não gostava desses jantares. Criada com os rigores de uma
família tradicional, não compactuava com a licenciosidade da sociedade
romana moderna. Sempre dava uma desculpa para não comparecer, contudo,
Plínio fazia questão de sua presença e vigiava-a com olhos de águia.
Todos sabiam do ciúme doentio que ele nutria pela esposa e ninguém
se aproximava o suficiente, temendo causar algum constrangimento.
Flávia sabia que o marido tinha amantes, mas não se importava. Vezes
sem conta tivera que voltar para casa sozinha - graças aos céus!- porque ele
ficava embriagado e cheio de volúpia por causa de alguma beldade, fosse
negra ou branca, escrava ou patrícia.
E quando ele partia em campanha, era um alívio! Livre da pressão
exercida por seu instável humor, podia passear pela cidade em companhia da
escrava Sura e vez por outra receber a visita de algumas amigas íntimas para
entretenimentos e jogos particulares.
A presença de homens nessas ocasiões era proibida, pois ela sabia que
Plínio tinha olhos por toda parte. Excetuando-se alguns senadores velhos
demais para representar perigo, outros comensais não eram permitidos. Flávia
era muito correta e honrada ao extremo, não achava certo receber homens
jovens em sua casa sem a presença do esposo.
Agora Plínio estava de volta. Seu estômago embrulhou. Imaginou as
mãos calejadas e grosseiras abraçando-a depois de tanto tempo e arrepiou-se
de terror. Com certeza, ele viria até ela como um lobo faminto!
Deixou-se cair numa cadeira perto da fonte e fechou os olhos,
angustiada.
Por que, em nome de Júpiter, seu pai a dera em casamento a Plínio? Ele
sabia que não gostava do centurião, que sua personalidade afável e delicada
não se afinava com a dele! Fora um casamento político, certamente, com
vantagens para todos os lados, menos o dela.
Há três anos eram casados e parecia uma eternidade!
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Flávia não soube quanto tempo permaneceu ali a lamentar-se. Só
percebeu que já estava tarde quando ouviu a voz de trovão imprecando contra
os deuses no hall de entrada.
_Onde está Flávia? – ouviu-o perguntar contrariado.
_Nos jardins, meu senhor! Ela vos aguarda nos jardins – respondeu a
núbia, trêmula de expectativa.
Sura, ao contrário de sua senhora, tinha verdadeira adoração por Plínio
e não raro, implorava-lhe alguma atenção.
_E por que não vem receber seu marido? Acaso não está feliz com a
minha volta? _Tornou ele irritado, andando em direção aos jardins.
Flávia levantou-se tentando conter o tremor das mãos. Era sempre assim
quando ele chegava das campanhas: irritadiço e faminto. Mas por nada no
mundo demonstraria que tinha medo de Lúcius.
Altiva, aguardou-o aproximar-se.
Plínio Lúcius era de compleição forte e atarracada. Seu uniforme o
tornava maior do que era realmente. A dureza da face , o maxilar quadrado e
proeminente contribuíam para a aparência assustadora. Seus olhos escuros
eram frios, exceto quando fitava a esposa. Só então se via um brilho diferente
neles, quase ternos.
Quase.
Os poucos cabelos e entradas profundas nas têmporas denunciavam-
lhe os quarenta e cinco anos que tentava esconder, contudo as noites de
boemia não o permitiam. Não era de todo desagradável sua figura, pelo
contrário, algumas mulheres o achavam mesmo atraente. Mas era porque não
viviam com ele, não o conheciam como ela o conhecia.
Aproximando-se vagarosamente, Plínio fitou a esposa tentando
esconder seu deslumbramento. Flávia era a luz de seus olhos, a razão de lutar
tanto para salvar-se nas batalhas! Um raio de sol, fresca como o orvalho da
manhã!
Como era bela! Havia-se esquecido, vendo tantas mulheres bárbaras e
fedorentas, da pele macia e do perfume da esposa romana!
Mas a frieza de sua face o fez estacar. Ela não tinha noção do poder que
exercia sobre ele! Plínio lhe daria o mundo se fosse o imperador! Depositaria
aos seus pés miúdos e delicados todas as riquezas que conhecia e elas se
apagariam diante de tanta formosura!
Por isso fingia uma indiferença que estava longe de sentir. Era um
soldado e não poderia vergar-se aos caprichos de uma mulher!
Falou secamente:
_Que tens, Flávia? Não estás contente em ver-me de volta? Acaso tens
algum motivo para te esconderes de mim?
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Flávia estremeceu de indignação e um brilho de revolta iluminou seus
olhos antes opacos.
_Acaso acreditas que escondo um amante sob o vosso teto, meu
marido? _ respondeu ela, indignada. _Tens espiões por toda casa, Plínio, e eles
te darão o relato de minha fidelidade.
Satisfeito com a resposta e encantado com o rubor das faces da esposa,
Plínio segurou-lhe os braços o mais terno possível e alisou-lhe a pele. Depois,
sem resistir, enterrou o rosto nos cabelos de Flávia e inebriou-se com o
perfume de flores silvestres. Respirou fundo e fechou os olhos para melhor
saborear o momento de fraqueza.
_Oh, minha querida e arrogante esposinha! Como senti falta de teu
perfume, de tua pele macia e sedosa! As mulheres que encontrei pelo caminho
eram horríveis e cheiravam a feno e cavalos! Em nenhuma parte encontrei
uma tão bela quanto tu, minha doce Flávia! Tens-me em tuas mãos, sou teu
escravo! A tua voz é música em meus ouvidos acostumados aos gritos de
guerra e ao entrechocar-se das espadas dos inimigos. És meu oásis, minha
fonte refrescante e límpida! Mata a minha sede de ti, minha jóia preciosa! _
Ele falava com voz rouca de paixão.
Palavras, belas palavras que enganariam qualquer uma, menos ela!
Flávia suportou o carinho tentando não estremecer de repulsa.
_Tu não tens modos, Plínio! Como ousas falar de outras mulheres para
tua esposa?
Ele levantou a cabeça e fitou-a nos olhos. Por um segundo, Flávia
engoliu em seco, acreditando que Plínio a agrediria pela falta de respeito. Mas
então soltou-a, assumindo um ar jocoso e indiferente.
Do homem romântico de há pouco nada restara.
_Meu banho está pronto, minha esposa ferina? Sei que só poderei
deitar-me ao teu lado se tomar um bom banho e retirar de minha pele o cheiro
das mulheres que abracei. Ao menos eram quentes e aqueciam-me as noites
frias. Tu, ao contrário, pareces as geleiras do norte!
Plínio sabia como aborrecê-la. Viu satisfeito o rubor intensificar-se nas
faces da esposa. Dando um risinho curto, ele gritou pela núbia.
Sura apareceu correndo.
_Meu banho está pronto, Sura?
_Sim, meu senhor.
Voltando-se para Flávia, disse-lhe malicioso.
_ Não queres ajudar-me a esfregar as costas, querida?
Flávia ficou rubra de indignação.
Rindo, Plínio voltou-se e seguiu a núbia.
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_Vamos, Sura. Talvez tu o possas fazer por tua senhora. Flávia parece-
me uma pouco...indisposta no momento.
Sura olhou para a sua senhora, assustada e constrangida. Flávia fez-lhe
um sinal para que fizesse o que ele mandava. Era melhor não contrariá-lo.
Irritado com a postura arrogante de Flávia, Plínio resolveu mesmo
abusar da solicitude da escrava.
Flávia, por sua vez, mandou que outro servo levasse à sala de banhos
uma jarra de vinho.
Estava aliviada. Sabia que Plínio não iria aos seus aposentos naquela
noite. Sura faria a sua parte. Era sempre assim.
Suspirando por haver conseguido driblar o marido, retirou-se para seus
aposentos e lá permaneceu até o dia seguinte.
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CAPÍTULO III
_Digo-te, meu caro Otávius, que estes cristãos estão por toda parte! Por
mais que façamos para acabar com eles, não parece surtir efeito _ retrucou
Plínio, andando pelas ruas apinhadas à caminho das feiras.
_Nosso imperador em vão tem promovido jogos onde esses fanáticos
são a atração principal, mas temo que logo serão tão numerosos que não
daremos cabo deles! _ respondeu Otávius.
Ambos eram soldados e amigos desde a infância. Mantinham uma
amizade fiel enquanto não ferissem os interesses um do outro. No mais,
divertiam-se nas campanhas. Otávius não participara da última empreitada
para trazer mais escravos. Ficara em Roma, na guarda pessoal de César.
_O pior de tudo é que encontramos vários dos patrícios aderindo à
doutrina fatal. É um absurdo o que podem esses cristãos fazer com as cabeças
das pessoas! Pessoas cultas não se deixam enganar dessa forma! _Continuou
Otávius, indignado. _Mas mudando de assunto para um mais agradável, como
foi a tua volta para casa? Flávia deu pulos de alegria, suponho.
_És malicioso, Otávius, e só te permito falares assim comigo porque és
meu amigo. Não, Flávia não deu pulos de alegria. Ao contrário! Não sei mais
o que fazer para conquistar o coração de minha gelada esposa...Não sou um
homem feio, não é? E depois, parece que tudo o que digo ou faço a desagrada!
Mulheres! Nunca se sabe o que querem! Os tempos mudam e elas nos
comandam cada vez mais! Dia chegará em que teremos uma rainha e não
César nos tronos de Roma!
Otávius riu com gosto da indignação do amigo.
_Seria muito interessante, deveras. Mas não corremos este risco. Apesar
das intrigas que são capazes de fazer, nunca serão inteligentes o bastante para
comandar os homens e os exércitos! Não está na armada o verdadeiro poder?
Pois então? Não te preocupes com isso Plínio, meu amigo! Agora, o que
pretendes fazer nas feiras? Vais adquirir mais escravos?
_Sim. Pretendo encontrar dois ou três homens fortes dentre as levas que
trouxe e talvez mais umas duas mulheres para ajudar na administração de
nossa casa. Iremos para o campo, agora que não haverá campanhas tão cedo.
Precisamos de gente para trabalhar na safra deste ano. Os que já tenho não
estão dando conta. Eu precisava mesmo era de um administrador competente!
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Alguém versado nos números, talvez. Sabes que não me dou bem com as
contas.
_Ora, então porque não contratas um profissional? Temos tantos por
aqui que adorariam o emprego.
_Contratar? Estás louco? Cobram uma fortuna e depois ainda nos
roubam! Quero alguém que não precise receber dinheiro algum. Casa, comida
e roupas são suficientes para um escravo.
_Mas tens uma fortuna e um pouco de caridade não seria tão mal
assim! Não achas? _Otávius sabia o quanto o amigo era avarento. Apesar de
possuir um patrimônio invejável , não tinha coragem de dar uma moeda
sequer a um mísero artista.
_Bobagens! Não darei um tostão para esses espertalhões! Vamos, que o
lote vai ser leiloado.
O leilão era feito em praça pública, nas feiras especiais.
Alguns escravos esquálidos foram apresentados em lotes de cinco por
um que não interessaram a ninguém. O destino desses pobres miseráveis não
seria dos mais agradáveis, uma vez que não serviriam para nada. Talvez
comidos pelos leões nos circos para entretenimento da turba entediada. Outro
lote de mulheres também foi apresentado e estas tiveram melhor sorte.
Ajudavam na limpeza e manutenção das propriedades extensas e dispendiosas.
As senhoras patrícias gostavam de procurá-las nas feiras.
Mas Plínio sabia que havia bons espécimes dentre aqueles prisioneiros
que ele mesmo trouxera. Homens fortes, trabalhadores braçais excelentes.
Primeiro o leiloeiro tentaria empurrar o pior e depois lançaria os outros a uma
pequena fortuna.
Naqueles tempos, quase não estava compensando terem muitos
escravos. O custo era elevado para mantê-los e somente quem possuía muito
dinheiro poderia se dar ao luxo de tê-los à vontade.
Impaciente, Plínio aguardava o próximo lote. Quando começou a ser
apresentado, alguns murmúrios interessados sugiram na platéia. Eram homens
fortes, robustos, como os que Plínio havia visto.
_ Interessante... _ Murmurou Otávius. _São dos que trouxestes,
finalmente?
_Sim, são estes. Mas têm outros muito bons. Vou esperar um pouco
mais.
Logo vendidos, os pobres homens que seriam considerados menos que
animais, foram entregues a um grupo de romanos que os arrebataram a preço
inferior ao que valeriam realmente.
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O próximo lote trouxe uma surpresa singular: uma bela mulher de
cabelos de fogo e olhos verdes de gata, com uma expressão feroz e indignada
que arrancou suspiros dos ricos e dos plebeus.
_Ora, ora, ora... _ murmurou Otávius, sorrindo. _Trouxestes esta
rapariga e a deixaste escapar, Plínio? Não acredito! Agora é minha vez,
amigo. Eu a quero para mim! Darei um lance.
Plínio olhou o amigo com um sorriso sarcástico.
_E Cornélia, tua esposa? O que achará disso, Otávius?
_Ora, direi que é um presente meu para aliviá-la de tantas... “tarefas”
exaustivas.
_Oh, sim! Talvez eu devesse fazer o mesmo para “aliviar” Flávia... se
eu quisesse mesmo aliviá-la! _ E como se fosse uma piada, riu com gosto.
_Vai, amigo! Arrebata a tua escrava. Só te digo uma coisa: toma cuidado ou a
gata vai arranhar-te muito! Esses bárbaros não são flor que se cheire,
principalmente as mulheres!
E Otávius deu o lance, o maior e mais valioso até aquele instante.
Mas outro também a queria e a briga foi desleal. Sentindo-se frustrado,
Otávius não pode cobrir o lance seguinte. Aflito, viu sua oportunidade
despencar quando a voz de Plínio se fez ouvir. E seu lance arrebatou a
beldade.
Otávius olhou-o surpreso e contrariado.
_Mas dissestes que não a queria para ti! _ falou, indignado.
_E não a quero. Darei a moça para ti. Mas só depois que Flávia der um
jeito naqueles cabelos terríveis que parecem soltar chamas! Não concordas?
Otávius não sabia se acreditava ou não em Plínio.
Conhecia a fama de conquistador do amigo e nenhuma mulher, a não
ser sua própria esposa, escapava de seus...encantos.
_Não seria leal de minha parte, Plínio. Tu a arrebatastes, então ela te
pertence. Guarda-a para ti. Não preciso mesmo dela. _ Otávius estava
ressentido.
_Ora, deixa de manhas, Otávius! O que vou fazer com uma criatura
dessas em minha casa? Ela tem tamanho ódio de mim que poderá até matar-
me enquanto durmo! Não, meu amigo. Ela é tua e faças bom proveito. O que
quero não veio ainda.
O lote seguinte trouxe um murmúrio perplexo. Um homem jovem de
compleição forte e sadia, vinha seguido de uma outra mulher de beleza etérea
e loura, cujos cabelos pareciam uma nuvem branca e descer-lhe pelas costas.
Os olhos azuis e muito claros traziam tanto sofrimento que a todos comoveu.
O porte digno da jovem demonstrava a sua linhagem e o homem que segurava
seu cotovelo protegendo-a, não era menos orgulhoso.
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_Vejam que beleza de lote! Um príncipe e uma princesa bárbara, meus
senhores! Quem não gostaria de ensinar-lhes seu lugar? Não são belos
espécimes estes? Parecem deuses gregos, tal a beleza desses jovens! A própria
Vênus teria inveja desta criatura! Talvez algum amante das artes os queira ter
como modelos vivos! Vamos, meus senhores e senhoras, não se façam de
rogados! _ ouviu-se a voz do leiloeiro.
Plínio tinha o sangue a ferver. Era ele, o estúpido prisioneiro que o
jogara no chão. Mas quem era a mulher?
_Eu os quero – disse, com os dentes apertados. _Eu quero os dois! Terei
prazer em ensinar-lhes boas maneiras!
Otávius jamais vira um ser tão belo. Os cabelos louros da mulher
pareciam feitos de neve e os olhos...Mas o tom de voz do amigo o alertou para
alguma coisa errada. Observando, pode ver-lhe a frieza determinada.
Olhando novamente para o casal, encantou-se com a moça. Era
magnífica, quase uma deusa! O coração entristeceu-se com o sofrimento de
sua face. Era a primeira vez que Otávius sentia piedade dos escravos!
_Vamos, senhores! É muito pouco o que oferecem ainda por estes belos
espécimes! Depois, tem mais: o homem é um sábio! Lê e escreve muito bem!
Se isso servir para alguma coisa...
_E a mulher? Por que não podemos ver mais da mulher? _ perguntou
Plínio, no desejo de espezinhar o escravo que protegia a mulher.
Hagonah, percebendo o que estava para acontecer, tentou esconder
Isobel atrás de si, protegendo-a. Ele reconhecera o centurião que o agredira.
_Plínio, por favor! Já não estão em condições tristes o suficiente? _
reclamou o amigo, apiedado, temendo o pior.
Puxando a moça com brutalidade, o leiloeiro arrastou-a para um canto
enquanto os soldados seguravam firmes a corrente que prendia o pescoço de
Hagonah.
Horrorizado, o rapaz viu quando o leiloeiro rasgou as vestes de Isobel,
expondo-lhe os seios fartos, ainda túrgidos de leite. Em vão, ela tentou cobrir-
se, mas seus pulsos foram seguros pelo homem impiedoso e desagradável.
_Ora, mas que beleza! _ falou um em tom jocoso.
Plínio também não ficara imune e sentiu frenesi ao contemplar a bela
mulher. Ou talvez fosse a fúria que via no outro escravo. Parecia um animal
enraivecido e os guardas tiveram dificuldades em segurá-lo.
Disposto a acabar logo com aquilo, ele tentou arrebatar o lote de uma
vez. Mas sua surpresa foi grande quando um homem que até então mantivera-
se quieto resolveu dar um lance generoso e irrecusável. Plínio teve que desistir
da rapariga, mas não desistiria do homem, de jeito nenhum!
Após intensa luta, conseguiu arrebatar Hagonah, finalmente.
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Otávius estava aliviado. A moça não seria levada por Plínio, portanto,
estaria em condições melhores. Conhecia o homem, era um velho senador e
ele tinha fama de ser piedoso. Em idade avançada o suficiente para não
molestar as mulheres, comprava-as no intuito de ajudá-las. Suas atividades
estavam começando a despertar suspeitas e não tardaria que o imperador lhe
pedisse explicações.
Otávius era soldado da guarda pessoal do imperador, mas era também
amigo do velho Severus. Satisfeito, sorria enquanto observava a moça sendo
entregue ao representante do senador. O homem cobriu-a com o manto que o
envolvia e levou-a, ainda profundamente chocada.
_Tu és meu, finalmente! _ ouviu Plínio rosnar. Ele tinha os olhos fixos
no escravo indignado. _ Vamos, Otávius. Tenho que pegar o que me pertence.
Otávius e Plínio aproximaram-se do rapaz. Este, quando viu o seu
comprador, ficou tenso, como se fosse atacar a qualquer momento.
Hagonah sabia que seu destino não seria dos melhores, mas cair nas
mãos daquele homem terrível era bem pior do que imaginava. Tinha certeza
de que o centurião lembrava-se dele, certeza que se confirmou ao ver-lhe o
sorriso maldoso e a expressão fria dos olhos.
_Muito conveniente, não é, escravo? Tu agora me pertences e não
haverá quem interceda por ti quando te quiser castigar _ ouviu-o falar.
Hagonah apertou o maxilar e não respondeu. Os guardas amarraram
suas mãos para trás a pedido do novo proprietário.
_A corrente deixa _ ordenou Plínio quando o guarda tentou tirar-lhe a
coleira do pescoço ferido.
_Achas que precisa, Plínio? _ tentou intervir Otávius.
_Não deves meter-te com meus escravos, Otávius! _ cortou o outro,
rude._ Como te chamas, homem?
Otávius afastou-se um pouco, e ficou observando o amigo alterado.
_Hagonah.
_Meu senhor. Quero que o digas.
_Hagonah...meu senhor. _ tornou o escravo, entredentes.
_Assim está melhor. E quem era aquela mulher a quem protegias?
_Minha irmã, esposa de meu irmão...meu senhor.
_Ah, sim. Pensei que fosse tua esposa. Melhor assim. Não terás que te
preocupar com ela. Vamos embora que já estou farto desse lugar! Guarda!
Um oficial apresentou-se rápido.
_Sim, comandante.
_Leva este homem e os outros escravos que comprei para minha casa.
Terás toda a responsabilidade sobre eles, entendestes? Principalmente sobre
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este aqui. Não quero que nada aconteça com esse homem. Ele me é muito
valioso.
_Sim, senhor.
_E tu, Otávius? Não vais buscar o teu presente?
_Não. Ela é tua. Não a quero, já disse. _Otávius ainda estava agastado
com os maus modos de Plínio. Depois, perdera o interesse ao ver a fascinante
mulher branca.
_Ora, mas então? Está bem, ficarei com a mulher. Mas se ela causar-me
problemas, mandarei que seja entregue aos circos.
_Faças o que quiseres, Plínio.
Despedindo-se com um gesto de cabeça, Otávius afastou-se, indo ter
uma conversa com o escravo recém-adquirido pelo amigo.
Encontrando Hagonah junto aos outros, aproximou-se.
_Hagonah! _ chamou.
_Sim? _ O jovem respondeu, a tensão visível em cada músculo do corpo
poderoso.
_Não tenhas receio por tua cunhada. E teu irmão? Onde está?
_ Está morto. _ Hagonah respondeu, desconfiado. O que quereria
aquele outro romano?
_Ah, sim? Eu sinto muito.
Hagonah sorriu, cético.
_E por quê? Somos somente escravos, espólios de guerra, não é?
Otávius pensou um pouco se deveria continuar a conversa. O homem
era muito rude e perigoso.
_É verdade. Como se chama tua cunhada?_ Decidiu continuar.
_Isobel. _ele respondeu, a contra gosto. Era melhor não reagir com
violência. Estava cercado por guardas armados, não teria a menor chance.
_Isobel. Que nome interessante! Quando puder vê-la, falarei sobre ti.
_ Conheceis o homem que a comprou, senhor? _Agora Hagonah
mostrava-se interessado.
_ Sim, eu o conheço. É um bom homem. Não maltrata seus escravos.
Hagonah fitou o soldado tentando captar-lhe as intenções.
_Por que quereis saber sobre Isobel? _ tornou ele, mostrando a
desconfiança. Sabia bem o que os romanos quereriam com uma escrava, ainda
mais uma como Isobel.
_Confesso que fiquei deslumbrado por sua beleza.
_Mas pertence a outro senhor...
_Ela não correrá perigo. O homem que a comprou é muito velho e com
muitos princípios, coisa não muito comum nos dias de hoje, confesso.
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Enquanto ela estiver em casa de Severus, nada lhe acontecerá de mal, fica
tranqüilo.
Hagonah ficou olhando para o soldado, avaliando-o. Quem seria aquele
homem que conversava com ele como se não fosse escravo?
_Vamos embora! Deixa de conversa! _ falou um guarda, de repente,
puxando a coleira de Hagonah, deixando-o sem ar por alguns segundos.
_Senhor! Se a encontrar...
_Eu falarei sobre ti, _ afirmou Otávius ainda uma vez, com meio
sorriso. A moça o impressionara, mas seus sentimentos não eram diferentes de
outros homens. Afinal, ela era uma escrava e quando pudesse, te-la-ia para si.
Otávius ficou olhando enquanto a guarda de Plínio arrastava o escravo
junto com os outros.
Hagonar ainda lhe lançou mais um olhar antes de desaparecer dentro da
carroça.
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CAPÍTULO IV
Flávia passeava pelos jardins a conversar com a senhora Cornélia
quando Plínio entrou no vestíbulo intempestivamente. Seu marido conseguia
causar grandes perturbações quando chegava e ela ficou um tanto agastada.
Parecia um furacão que quebrava a harmonia e sossego de qualquer lugar!
_Perdoa-me, Cornélia, mas tenho que ver o que acontece. Plínio, às
vezes, é um tanto impaciente _ falou ela, desculpando-se.
_Não há de ser nada, minha querida. Atende logo ao teu esposo ou a
casa desabará! _ respondeu a mulher com bom humor.
Flávia gostava muito de Cornélia. Esposa de Otávius, parecia ser um
pouco mais feliz com seu marido e era muito divertida.
Seguindo a balbúrdia, Flávia encontrou o marido e ficou surpresa com a
presença de dois soldados a segurarem uma mulher de aspecto selvagem que
bem poderia ser uma leoa.
_O que se passa, Plínio? Quem são esses homens e por que prendem
esta jovem com tanta brutalidade? _ perguntou, assombrada com as correias
de couro que apertavam os pulsos da moça.
Plínio deu uma risada curta e sonora.
_Não vês, minha querida esposa? Trouxe-te um presente! Com esta
poderás entreter-te um bom tempo ensinando-lhe boas maneiras!
_Plínio, o que dizes?
Achegando-se à prisioneira, Plínio pegou-a pelos cabelos da nuca e
levantou-lhe o rosto. Apesar da expressão de dor da mulher, Flávia pode ver o
brilho feroz daqueles olhos.
_Céus, ela está em péssimas condições! Como se chama? _perguntou,
impressionada com os arranhões nas faces da moça.
_Não sei, minha bela. Terás que arrancar-lhe, porque não conseguimos
fazê-la falar.
_É claro que não! Qual mulher apreciaria um tratamento tão desumano?
Manda teus homens soltarem a pobre e veremos o que conseguimos.
Plínio olhou um instante para Flávia altiva e confiante, e depois para a
gata selvagem, com ar de dúvida. Dando de ombros, mandou os soldados
soltarem-na. Desconfiados, eles desataram os nós das correias, mas
permaneceram alertas.
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Logo que se viu livre, a jovem bárbara intentou fugir, mas os soldados a
seguraram novamente. Então, Flávia chegou perto dela e lhe falou, com voz
calma e firme.
_Não tenhas medo, minha cara! Não te vou fazer mal. Mas tu terás que
colaborar para podermos conversar ou estes homens não terão nenhuma
piedade de ti.
Como um passe de mágica, a moça parou e fitou a romana com olhar
hostil, apesar da curiosidade. Admirou-lhe o vestido azul diáfano e as pedras
brilhantes que usava nos cabelos bem penteados. Os cachos negros de Flávia
refletiam a luz de tão bem tratados e a mulher percebeu a diferença que havia
entre ambas.
Flávia pediu novamente aos guardas que a soltassem e depois,
estendendo a mão para a moça, esperou que ela a aceitasse.
Relutante, a mulher de cabelos de fogo colocou sua mão na de Flávia e
surpreendeu-se com a maciez da pele. De repente, recolheu-a um tanto
envergonhada das calosidades que engrossavam-lhe a palma.
_Que queres que eu faça com essa pobre moça, Plínio? _ perguntou
Flávia, finalmente.
_O que quiseres, Flávia. É tua. Comprei-a para Otávius, que se
entusiasmou com seus encantos, mas depois ele a recusou, o safado. Só havia
duas opções: ou trazia para casa ou mandava-a para os circos.
_Que horror! _ ouviram Cornélia dizer, estupefata. _Meu Otávius
quedou-se por esta ...bárbara? E é só uma menina!
_Acalma-te Cornélia! _ interveio Plínio. _ Não sabia que estavas aqui.
Depois, Otávius não a quis. Por certo lembrou-se de ti e do quanto te amava e
arrependeu-se. O fato é que agora estou com um estorvo. Diz-me, Flávia:
queres o encargo ou mando-a para os leões? Eles certamente apreciarão a
carne fresca! _ Plínio riu da própria piada.
_É claro que não! Isso é um absurdo! Como podes pensar em tais
monstruosidades? Não tens mesmo coração, Plínio Lúcius! _Flávia respondeu,
indignada.
_Então, está resolvido. _ Plínio deu de ombros. Estava acostumado com
as palavras de Flávia. _ Ficas com ela. E mantenha-a longe de mim! Esta
criatura das florestas da Bretanha me odeia e não desperdiçará a chance de
dar-me com um punhal às costas!
E como se tivesse se livrado de um fardo pesado, Plínio despachou seus
homens e gritou por Sura. A núbia apareceu não se sabe de onde.
_Tu és muito rápida, Sura _ brincou ele. _ Até parece que ficas às
escondidas a ouvir nossas conversas. Cuida para que não te encontre assim, a
ouvir atrás das cortinas!
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_Não, senhor! Eu juro pelo meu deus, senhor!
_Teu deus de nada vale! Jura pelo deus dos romanos, Sura. Teu deus é
fraco e não protegeu teu povo de nossos exércitos _ tornou ele, sarcástico.
Sura enrubesceu e baixou os olhos. A arrogância de seu senhor só era
perdoada pelo amor que lhe devotava.
_Sim, meu senhor.
_Sura, acompanha tua senhora aos aposentos dos escravos. Quero que
dês a esta rapariga um lugar para comer e dormir _E voltando-se para a moça
bárbara, completou ríspido: _ E não penses que receberás tudo de graça!
Trabalharás como todos os outros nesta casa!
E com um gesto de enfado, saiu com seus homens a correrem em seu
encalço.
_Senhora, devo preparar o banho para o senhor?
_Não, Sura. Não acho que Plínio retorne tão cedo. Agora me mostra os
aposentos! Temos que dar um banho nesta infeliz o quanto antes!
E voltando-se para a moça, fez um gesto para que fosse na frente.
Cornélia as acompanhou, observando a beleza exótica que encantou, ainda que
por momentos, o seu Otávius e sentiu inveja por não ser moça e bonita como
aquela mulher. Era bem mais velha que seu esposo e sabia bem que ele havia-
se casado com ela por seu dote. Otávius não poderia fazer dinheiro, pois era
somente um soldado da guarda de César e seu soldo era pequeno, portanto só
lhe restava casar-se com uma mulher rica que o desejasse.
E Cornélia o desejou. Apaixonou-se por Otávius desde o primeiro
instante em que o viu. Daí para o casamento foi um pulo. Mas ele era um
homem bom e soubera respeitar a mulher. Até agora.
* * *
Hagonah seguia rumo às terras do centurião. Ele e os outros foram
direto para lá. Somente a feiticeira Nayara fora separada de todos os outros.
Hagonah sentia uma certa pena da senhora romana que a tivesse como
escrava. Ninguém podia dominar o gênio terrível da bruxa. Na tribo, ela
morava separada de todos por causa de seus estranhos dons proféticos. Os
cantos e danças que praticava eram assustadores. Envolvia-se com espíritos
malignos e não raro era tomada por eles. Quando isso acontecia, saía a brandir
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um punhal à cata de algum animal para que pudesse fazer seus sacrifícios e
beber o sangue quente.
Ao menos era o que o povo dizia. Nessas ocasiões, todas a mulheres
guardavam seus rebentos, com medo de que Nayara os roubassem e os
sacrificassem.
Pobre da romana que a tivesse por escrava! Pensou novamente.
O pesar pelo irmão morto e a separação da cunhada que não soube
proteger o abateram profundamente. Presos dentro de uma carroça como um
bando de pássaros engaiolados, ele e os outros escravos seguiam pelas
estradas lamacentas sabia-se lá para onde.
Havia poucos de seus homens e Hagonah percebeu que não conseguiria
reunir o seu clã ou o que restara dele para fugirem e voltarem às suas terras.
As florestas da Bretanha eram agora um sonho distante e impossível! A
paisagem perfumada e verde de sua terra natal fora trocada por aquela estrada
pedregosa. Seu povo estava disperso, as crianças desaparecidas e ele não era
mais ninguém a não ser um escravo, o que valia menos ainda!
“ Oh, meu pai! O que será de nossa gente? Desaparecerá na terra dos
romanos ? Morrerá nossa tradição, nossa crença sob o guante do deus dos
algozes do mundo?”
Hagonah temia que sim.
Uma nova vida começava para ele, uma vida sinistra e cheia de
amarguras! Não mais poderia correr e caçar pelas florestas ou mesmo meditar
sobre os montes mais altos! Não mais os tempos de jovem despreocupado e
feliz. Agora era um homem! Um homem marcado pelo sofrimento e pela
agonia de não ser livre! Um homem cuja fé estava abalada!
Sim, Hagonah perdia a fé! E um homem sem fé, era um homem de
espírito morto!
E o que era um homem sem seu Espírito?
* * *
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CAPÍTULO V
_Como te chamas ? – perguntou Flávia à moça rebelde.
A mulher bárbara se havia recusado a tomar banho e não permitira a
ninguém tocar em seus cabelos emaranhados. A romana já estava começando
a perder a paciência.
A moça não respondeu, encarando-a teimosa.
_Olha, se não me disseres o teu nome, dar-te-ei um, então. Pelos teus
cabelos, direi que poderias chamar-te Fúlvia. Que achas?
A moça ficou horrorizada. Que nome terrível aquele!
_Não quero outro nome! Tenho o meu e o carrego com muito orgulho!
_ respondeu, agressiva, num idioma truncado.
_Ah, então o gato não te comeu a língua! _ exclamou Flávia, contente
por ter dado certo a sua estratégia. _ Então, agora poderemos conversar
melhor. E como te chamas?
_Nayara _respondeu a mulher, erguendo o queixo.
_É um bonito nome! Nayara. Muito bom. Combina contigo. Agora,
Nayara, não queres que te ajeite os cabelos? São tão bonitos e de uma cor
impressionante! Um pouco de trato e ficarás muito bem.
_Por que a senhora se importaria com uma escrava bárbara? Sei que só
finges!_ Tornou a ruiva, em sua linguagem misturada.
_Não... Acaso não ouviste o que o senhor meu esposo disse? Que agora
tu és minha responsabilidade. Sei que sofres por tua situação, mas poderia ser
pior _ Flávia falou com muita delicadeza.
Sentada junto à tina de água perfumada e com uma escova nas mãos,
Flávia tentava fazer Nayara entender sua nova situação.
_Sim, Nayara! Poderia ser muito pior, eu o sei! _ retrucou Sura. _ A
senhora Flávia é a melhor senhora que já conheci e sou feliz aqui. Antes de
vir morar com a minha senhora, sofri muitas amarguras, podes acreditar!
_Obrigada, Sura _ Flávia agradeceu a intervenção da núbia. _ Olha, se
não queres te banhar antes de meu marido retornar, não será muito agradável a
tua experiência, posso garantir. Plínio é exigente, verás.
_ Não preciso de banhos! Estou muito bem assim!
A núbia perdeu a paciência. Sem esperar por consentimento algum,
empurrou a moça para dentro da tina e afundou-lhe a cabeça.
_Sura! O que fazes? _ repreendeu Flávia.
A moça debatia-se dentro da água, enfurecida.
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_Vês, senhora? Existem pessoas que têm ouvidos moucos, então temos
que lavá-los. Toma, Nayara! Pega a pedra e esfrega teus pés imundos! Ou
então o patrão manda um dos seus guardas banhar-te. É isso o que queres?
Nayara olhou para a núbia, enfurecida. Depois, pegou a pedra e pôs-se a
esfregar os pés. Na verdade, a temperatura da água estava muito agradável e
um banho com aqueles óleos perfumados era um luxo que jamais tivera.
_Sura, cuida dela. Depois eu vou dar um jeito nos cabelos de Nayara ,
por isso lava-os bem. Agora vou ver a senhora Cornélia, se é que ainda me
espera.
_ Sim, senhora. Eu ajudo ela a se comportar.
Flávia suspirou aliviada. Alguns cachos de seus cabelos caiam
desordenados pela testa e seu rosto estava afogueado. A nova escrava iria lhe
dar muito trabalho, isso sim! Mas contaria com a ajuda de Sura. Podia
entender a situação humilhante e o sentimento de rancor que tomara conta do
coração da jovem Nayara. Ela também não seria um osso fácil de roer caso a
situação fosse contrária. Por isso, procurava fazer o possível para que seus
escravos tivessem as melhores condições de humanidade.
Como era bonita aquela moça bárbara! Não fosse sua condição de
prisioneira, faria um grande sucesso nos festins de César.
“Por que mesmo dissera Plínio que a trouxera? Ah, sim! Por causa da
desistência de Otávius. Pobre Cornélia! Ou pobre de mim?”, raciocinava
enquanto ia providenciar a refeição da noite.
Não podia esquecer-se de que daquela vez seu marido não deixaria de
procurá-la. E um certo desânimo a constrangeu. Quisera que ele houvesse
trazido Nayara para si mesmo! Talvez assim pudesse esquecer-se dela um
pouquinho.
“Mas que egoísta eu sou!”, recriminou-se. Plínio era seu marido,
quisesse ou não.
Cornélia não estava mais lá. Fora para sua residência. Pretendia
encontrar-se com o esposo para uma conversa muito particular, fora o recado
que deixara com um dos criados.
Flávia não pode deixar de penalizar-se por Otávius. Quando Cornélia
queria, sabia ser insuportável.
Não havia mais nada a ser feito. Otávius não teria uma noite fácil e
nem ela, portanto, deveriam ambos preparem-se e suportarem seus
“encargos”.
Tomando as últimas providências para o jantar, Flávia resolveu que já
estava na hora de ver a moça rebelde. Pegando um pente grosso e alguns
prendedores , dirigiu-se aos aposentos dos escravos.
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Lá, não pode deixar de rir ao ver a núbia toda ensopada a lutar com a
outra para tirá-la da tina.
_Mas o que significa isso? – ralhou , escondendo o riso.
_Senhora, esta mulher é insuportável! Não vou mais tomar conta dela,
não! _ esganiçou Sura, revoltada. _Meu vestido está todo estragado por culpa
sua, sua...mulher odiosa!
_Sura! Tenha modos! _ repreendeu Flávia. Voltando-se para a moça,
fitou-a bem firme e ordenou que saísse da tina.
A jovem ainda pensou em resistir, mas vendo a determinação nos olhos
de Flávia, desistiu. Saindo vagarosamente do banho, mostrou toda sua beleza,
mas não foi a perfeição plástica que chamou a atenção das duas mulheres. Foi
uma estranha marca no alto das costas feita em ferro quente. Era uma
serpente.
_O que é isso? _ perguntou a núbia, impressionada.
_Nada! Não é nada! – respondeu mulher, tentando esconder-se atrás da
grande toalha.
_Deve ter doído muito!_ perguntou Flávia, compadecida, ajudando a
moça a enxugar os cabelos.
_Doeu só um pouco_ Ela respondeu, relutante, vencida pela doçura de
Flávia.
_E por que fizeram isso? Tem algum significado?
_Sim. Eu vejo coisas, ouço coisas. Por isso fui marcada. Sou diferente!
_Um oráculo? _ impressionou-se Flávia, parando de enxugar.
_O que é um oráculo? _ perguntou a núbia, interessada.
_Alguém por quem os deuses falam. É isso, Nayara? Os deuses falam
por tua boca?
_Os deuses? Não! Os espíritos! Os espíritos das florestas que me
mostram o tempo! O hoje, o ontem e o amanhã ... _ ela respondeu, com uma
expressão misteriosa.
_Que os deuses nos protejam, senhora! Ela é uma bruxa!
_É isso o que tu és? Uma bruxa? _ Flávia tinha bem noção do que
significava aquilo para algumas culturas. Queria dizer que era um ser perigoso
e que fazia pactos com os deuses das trevas. Estas...bruxas não raro eram
condenadas a morrerem em óleo fervente!
_Não! Eu não faço pactos com os demônios! Só me dizem algumas
coisas ...Como serão usadas as informações não é problemas meu!
_Escute, Nayara: para teu próprio bem, não menciones jamais tais
coisas para as pessoas daqui, ouviste? _ Alertou Flávia, segurando-lhe os
ombros. _Ouviste? Ou será o teu fim! Nós romanos não gostamos de
feiticeiras como tu! Temos medo daquilo que não compreendemos, portanto,
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não brinques com a tua segurança! Plínio tem verdadeiro horror dessas
mulheres que se dizem bruxas! Se souber que tu és uma delas, há de mandar
matar-te!
A moça ficou lívida. A senhora falava de um jeito eloqüente e podia
perceber que desejava mesmo resguardá-la. Um laivo de simpatia começou a
nascer pela jovem patrícia.
_Sim, senhora. Eu compreendo. Mas, eu não tenho culpa ! Nasci com
isso e não posso impedi-los de se comunicarem ou falarem comigo! Às vezes,
tampo os ouvidos para não escutá-los, mas não posso! Outras vezes, ferem-me
e atormentam-me porque não faço o que querem. Para mim, é um verdadeiro
tormento!
Flávia ouviu o desabafo da jovem mulher e acreditou nela.
_Sura, jamais digas qualquer coisa a este respeito, ouviste?
_Sim, senhora. Eu não sei de nada!
_Muito bem. Agora vamos acabar logo com isso que Plínio pode
retornar quando menos se esperar. Vem que vou ajeitar-te os cabelos, Nayara.
_Sim, senhora.
Daquele momento em diante, Nayara confiou na proteção de Flávia e
entregou-se ao seu comando. Sentia que a mulher romana era diferente e que
podia confiar nela. Ninguém jamais a tratara com tanto carinho, pelo
contrário, em sua tribo todos a enxotavam e temiam sua presença. A romana
não teve medo dela, mesmo sabendo de tudo. Era uma boa senhora, como
dissera a núbia.
* * *
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CAPÍTULO VI
Plínio sentara-se à mesa observando cada detalhe do rosto da esposa.
Achava-a cada dia mais bela. Seu talhe altivo e refinado, sua dignidade e seu
olhar aveludado aquecia-lhe o coração. Amava-a! Amava-a de paixão. Todas
as outras mulheres não significavam nada para ele! Mas ela...
Flávia era inatingível, distante e por vezes tinha vontade de sacudi-la
para quebrar aquela couraça intransponível. Não tinha paixão, não era capaz
de amar! Uma mulher de gelo!
Mas ele não podia viver sem ela! Sem sua presença, sua sensatez e seus
comentários corretos e inteligentes. A cultura de sua mulher o impressionava e
aturdia ao mesmo tempo. Mas não se sentia humilhado.
Não! Era um soldado do império romano e não tinha tempo para coisas
de mulher! E ler e gostar de poesias eram coisas de mulher! E ele era muito
homem! Seu forte eram as batalhas, as lutas e os jogos de guerra!
Formavam o casal perfeito, então! Cada um completando o outro na
parte que faltava.
Mas às vezes sentia falta do carinho de uma boa amante...uma mulher
como Sura. Ela tinha mãos delicadas e macias e sabiam caminhar pelo seu
corpo desfazendo os nós de tensão. Ela o ouvia, ouvia seus problemas e suas
aventuras. Não se enrubescia com as piadas e as coisas picantes que contava
sobre os saraus e reuniões que participava.
Mas era Flávia que ele amava! Flávia era sua obsessão e jamais a
deixaria! Sentiu um ciúme terrível ao vê-la distraída, pensativa. Ciúme de
seus pensamentos.
Soubera por seus espiões que ela se comportara com dignidade
enquanto estava em campanha, mas...tinha ciúmes da própria sombra de
Flávia! Era ridículo um homem como ele se deixar adoecer assim por uma
mulher!
_O que estás a pensar, minha querida esposa? _ perguntou, fingindo
naturalidade, mas uma veia pulsava em seu pescoço.
Levou o vinho à boca e reclinou-se nas almofadas.
_Nada, Plínio. Não penso em nada. Por que perguntas?
_Impossível! Uma mulher como tu não fica de cabeça vazia! Estás
muito distante esta noite. Não queres partilhar comigo os teus pensamentos?
Ela sorriu delicadamente. Não sabia ele o quanto seria perigoso contar-
lhe o que sentia. Será que a procuraria mais tarde em seus aposentos?
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_Não é nada importante. Somente penso naquela moça que trouxeste
hoje. Ela é muito bonita! Acaso não a comprastes para ti mesmo, Plínio?
_Ora, mas que agradável surpresa! Estás com ciúmes de teu marido? _
Plínio procurava não demonstrar a satisfação que o pensamento lhe causava.
_Não tenho ciúmes de ti, Plínio. Apenas estou a matutar. Estavas
mesmo dizendo a verdade quando falavas de Otávius?
Plínio decepcionou-se e aborrecido falou:
_E por que queres saber? Acaso é por causa de Otávius que estás assim,
estranha? _ O sangue começava a esquentar-lhe as veias, mas controlando-se,
sentou-se vagarosamente e fitou-a, desconfiado.
_É claro que não! Jamais pensaria uma coisa dessas! Nunca dei
motivos para agredir-me a honra, Plínio Lúcius! Cornélia é minha melhor
amiga e Otávius, um bom amigo também!
_Mas é homem e também te admira muito!
Plínio levantou-se e sentou-se atrás de Flávia, abraçando-a.
_Não posso imaginar sequer que penses em outro homem, Flávia! Fico
louco só de imaginar que tu...que teus pensamentos não sejam para mim!
Beijou o pescoço de Flávia com paixão.
Ela estremeceu de agonia e fechou os olhos, tentando controlar-se.
_Não sabes o quanto me atormento quando penso que outros homens a
olham e a desejam como eu! Tenho vontade de destruir o teu lindo rosto só
para que não te admirem mais!
_Plínio, por favor! _ ela gemeu, com voz trêmula de receio. Seu marido
por vezes a assustava muito. _ Não digas tolices! Eu não posso fazer nada
quanto a admiração que minha aparência desperta, mas garanto-te que meu
pensamento não é de ninguém!
_Então vem comigo, minha adorada, e prova-me a tua fidelidade! Não
vês que não posso mais esperar?
_Mas...mas e a escrava bárbara? Não queres ver o que fiz?
_Não! Não quero saber de ninguém, só de ti! Vem, Flávia!
Plínio estava impaciente e era melhor fazer o que pedia. Ele sabia que
ela não era dada a manifestações apaixonadas, por isso não dissimulava os
sentimentos, mas tinha que cumprir o seu dever, por mais desagradável que
pudesse lhe parecer. Com um suspiro, levantou-se e ajeitou o vestido.
_Como quiseres, Plínio _falou e seguiu em frente, altiva.
Plínio apertou os lábios numa linha fina, contrariado.
“Flávia, Flávia, tu ainda vais implorar para amar-te e então, estarei
curado da minha paixão”, pensou ele, um tanto frustrado.
Mas naquela hora, como um cachorrinho, seguiu a esposa que deixava
um rastro de flores no ar.
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Mais tarde, de madrugada, Flávia andou até a sacada de seu quarto. O
céu estava limpo e estrelado e a brisa suave batia nas flores da noite,
perfumando o ar. Ela aspirou o aroma doce e fechou os olhos.
Sem que pudesse evitar, algumas lágrimas desceram de seus olhos, um
sinal do sofrimento por que passara.
Plínio era um bruto! Hematomas certamente apareceriam na manhã
seguinte em sua pele clara e delicada. Parecia que o fato de não corresponder-
lhe à paixão o irritava e o fazia agredi-la física e moralmente.
Por que não conseguia amar seu marido? Seria tudo tão mais fácil!
E o pior era que tinha sede de amor! Sabia que podia amar, dar-se por
inteiro a alguém! Sua alma era romântica e sonhadora .
Naquele momento mesmo uma angústia, uma saudade estranha a
sufocava! Seu coração parecia chamar por alguém que não sabia quem era!
Talvez fosse brincadeira ou encantamento de algum deus do amor que
estivesse impedindo-a de entregar o coração ao seu marido, apenas para vê-la
sofrer!
Ainda ficou mais alguns minutos a usufruir da noite, procurando sanar
as feridas na alma. Era uma tola, chegara a conclusão. Uma sonhadora
incurável que vivia no mundo das fábulas.
Impaciente consigo mesma, deu a volta e entrou no quarto.
Flávia não via que alguém a observava e vaticinava seu futuro.
Nayara vira a senhora sair para os jardins de seu quarto e pressentira seu
sofrimento. Não pode evitar vislumbrar-lhe o destino. Imagens eram
mostradas em pedaços à feiticeira que, entristecida, preferiu esquecer o que
vira.
* * *
29
CAPÍTULO VII
_Vamos, Flávia! _ ordenava Plínio, impaciente. _ Os cavalos estão
agitados. O tempo não está muito bom e acho que uma tempestade se avizinha
de nós. É possível que não consigamos chegar à nossa casa a tempo de nos
protegermos!
Flávia pegou o véu azul e cobriu os cabelos.
_Vamos, Sura! Onde está Nayara? Precisamos nos apressar ou Plínio
ficará furioso! Sabes o quanto é imprudente fazê-lo esperar! _ ela falou,
andando na frente.
Sura pegou um pequeno saco de couro contendo alguns artigos de
primeira necessidade.
_Senhora, Nayara já está lá fora. O que aconteceu com o senhor para
querer voltar ao campo de uma hora para outra?
_E eu faço idéia? Plínio faz o que quer e quando quer. Vamos ! Eu
mesma estou feliz em voltar para casa. Já estava cansada dessa cidade
barulhenta.
Flávia e Sura encontraram-se com Plínio e subiram no carro. Os outros
iam de carroça e já haviam partido para pegarem uma dianteira.
Plínio tomou as rédeas e seguiram finalmente.
Flávia olhava a paisagem mudar conforme avançavam pela estradinha
de pedras. Logo estariam na propriedade rural. Então, poderia voltar a dar seus
passeios matinais nos jardins agradáveis, ouvir os pássaros e o barulho das
águas do córrego que abastecia a casa. Sem falar nas termas que seu marido
mandara construir para banharem-se ao ar livre.
Os romanos gostavam dos banhos e todos que tinham algum dinheiro
construíam piscinas para seus encontros sociais. Com extremo bom gosto e
requinte, por vezes tornavam-se verdadeiras obras da arte em engenharia.
E Flávia as adorava. Costumava banhar-se sozinha, num horário em que
ninguém a incomodaria. E nesses momentos solitários, aproveitava para ler
alguma obra especial. Era ocasião cheia de harmonia e inesquecíveis instantes
de lazer.
Viajavam já há algum tempo quando o primeiro trovão se fez ouvir.
_Eu lhes disse para que andassem rápido _ reclamou Plínio, aborrecido.
Chicoteando mais os cavalos para que corressem à toda, continuou
resmungando. _Mulheres! Se fossem soldados, perderíamos todas as batalhas!
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Flávia não pode deixar de sorrir. Plínio era um tanto cômico nestas
horas quando falava das “deficiências” do sexo feminino, contudo, gostava
que estivessem cheirosas e macias!
Sem dar muita atenção aos resmungos do marido, concentrou-se no céu
escurecido. Logo estariam em casa e não acreditava que fosse chover até
chegarem lá. Não era longe a propriedade e chegariam antes do anoitecer.
Como ela previra, não caiu uma gota sequer da chuva que se armara no
céu carregado. Mas assim que pisaram na calçada de pedras frente às escadas
da porta principal, uma torrente de água desabou.
As mulheres correram para dentro e Plínio foi guardar os cavalos. Seus
homens já haviam chegado e providenciado o recolhimento da bagagem.
Alguns escravos núbios postaram-se à porta do vestíbulo esperando pelas
ordens do amo.
Flávia entrou no salão e retirou o véu dos cabelos. Estava um tanto
despenteada e não era para menos. Cansadas da viagem, pediu que levassem a
refeição aos seus aposentos. Sura diria o que desejava e Nayara deveria ir
junto para aprender a servir sua senhora.
Seu quarto era amplo com saídas para o terraço perfumado. Um
triclínio estava junto à amurada e uma mesinha baixa servia para colocar
lanches e bebidas. Algumas cadeiras ficavam espalhadas, oferecendo conforto
aos convidados.
A vista maravilhosa dava para os montes verdes e Flávia mal podia
esperar o dia seguinte para andar por seus recantos preferidos.
Observando pela janela a chuva cair, molhando os vasos de plantas de
seu jardim particular, uma alegria íntima a tomou por estar novamente em
casa, no seu ambiente.
Pena que Cornélia não tivesse querido acompanhá-la ! Flávia sabia que
ela não desejava encontrar-se com Nayara, principalmente depois de haver
confirmado a estória de Plínio com seu marido. A moça estava mais bonita do
que quando chegara e não raro os amigos de Plínio a cobiçavam com os olhos
quando ela os servia.
Mas Flávia a protegia. Ela prometera guardar a moça dos avanços
desrespeitosos dos convivas de Roma. Somente quando Nayara quisesse ou se
interessasse por alguém, ela não oporia obstáculos, mas enquanto isso não
acontecia, mantinha-a sob sua tutela.
Depois que lhe arrumara os cabelos revoltos e lhe dera algumas roupas
mais confortáveis e bonitas, a moça tomou-se de adoração pela senhora.
Ajudando-a a afinar a pele áspera das mãos e dos pés e ensinando-lhe
boas maneiras, Flávia conquistara um amiga incondicional.
31
Depois de trocar-se e descansar um pouco, Flávia comeu algumas das
frutas que lhe trouxeram e uma porção de carne e ervilhas. Satisfeita, decidiu
conversar com o administrador da casa.
Suetônio era um homem velho, mas ainda dava conta da organização do
lugar. Precisava saber se tudo estava em ordem ou se acontecera algum
imprevisto desde que fora para a cidade de Roma.
Encontrou o velho administrador no refeitório, conversando com
algumas servas que trabalhavam uma massa de pão.
_Com estás, meu velho Suetônio? _ perguntou ela, sorrindo.
O pobre homem deu um pulo de susto.
_Senhora Flávia! Perdoai-me , senhora! Eu não esperava que viésseis
aqui e a estas horas! _ O velho estava envergonhado por ser pego em posição
desconfortável.
_Não te perturbes, Suetônio. Fica à vontade. Nádia, serve um copo de
água a Suetônio, ele está a ponto de desmaiar, pobrezinho!
A velha serva sorriu e serviu uma caneca de água para o homem. Este
pegou-o e sorveu-o rápido. Rápido demais. Para seu constrangimento,
engasgou-se e Flávia teve que bater-lhe às costas.
_Pelos deuses, homem! Parece que vistes fantasmas! Senta e acalma-te,
quero que me contes todas as novidades. Tenho bastante tempo ainda.
Sentando-se à mesa de mármore com familiaridade, Flávia pegou um
cacho de uvas e mordiscou-as. O administrador acalmou-se e fez um relato de
todas as atividades e fofocas, atualizando-a sobre tudo. Ela divertiu-se um
bocado com algumas das novas sobre bizarros vizinhos.
De repente, o velho ficou sério e pensativo.
_O que foi, Suetônio? Alguma coisa grave?
_Não, senhora Flávia. É que...bem, este escravo novo que o senhor
mandou há alguns dias. Ele não está sendo muito fácil de adaptar-se ao novo
ambiente ou ao serviço, senhora. Temo que tenhamos que lhe dar alguns
corretivos.
_Oh, céus! Não digas nada a meu marido, Suetônio. Eu mesma irei vê-
lo. Depois, sabes o quanto abomino que maltratem os escravos. Se Plínio
souber, ele mesmo aplicará o corretivo e não há de ser nada agradável ter que
curar um homem quase morto! Diga-me, meu amigo, Plínio trouxe muitos
escravos novos?
_Não , senhora. Somente uns três. Mas este é valioso. É um homem
muito forte e pode nos ajudar bastante na colheita. Se pudermos discipliná-lo
como queremos, será uma excelente aquisição.
_Deixa então que eu vou tentar resolver. Talvez uma boa conversa
ajude-nos afinal. Bem, eu já vou recolher-me. Até amanhã, Suetônio. E não te
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preocupes mais com este escravo. Nós vamos resolver o problema, de um jeito
ou de outro.
Flávia dirigiu-se ao seus aposentos. A chuva cessara e um aroma de
terra úmida pairava na noite. Abrindo as portas da sacada, saiu para respirar
um pouco.
Como na outra residência, seus aposentos eram separados dos de Plínio.
Fizera questão de manter esta privacidade e o marido não objetou, na época.
Afinal, ele também gostava de seu próprio espaço.
Flávia não se importava. Quando o marido desejava vê-la, entrava
discretamente e ali permanecia até a manhã seguinte. Era um arranjo
conveniente para ambos.
Estava a usufruir do ar noturno quando Plínio entrou e postou-se ao seu
lado. Ela observou suas mãos de dedos fortes e pulsos torneados por pulseiras
douradas. Aquelas mãos sabiam ser cruéis e ameaçadoras. O que Plínio não
conseguia pela ordem, conseguia pela força bruta. Quando brandia o chicote
nas costas de um escravo, pouco sobrava do pobre servo.
Por mais rebelde que fosse, nenhum ser merecia tal crueldade.
_Que fazes aqui fora nesta friagem, Flávia? Não estás cansada? _
perguntou ele, olhando para a escuridão das plantações ao longe.
_Gosto do ar noturno. Depois, estou feliz por voltarmos para casa,
finalmente. Não sentes o perfume das árvores e da terra?
Ele aspirou fundo. Sim, sentia. Mas não se comovia com esses detalhes
que enquadrava como características feminis. Admirava sim a extensão de
suas terras. A sua propriedade era muito bem localizada e sua terra, fértil. Se
não conseguissem dar conta da colheita daquele ano, perderia uma pequena
fortuna.
_És muito sensível, querida Flávia. Mas admito que estou feliz também
por estarmos de volta _ ele respirou fundo o ar e olhou para a esposa,
admirando-lhe o talhe fino e elegante. _ Estás cansada, posso ver em teus
olhos. Não vou incomodar-te esta noite. Tenho alguns assuntos a resolver com
Suetônio e amanhã desejo acordar muito cedo. Vou verificar as coisas, ver se
estão em ordem. Depois, pretendo saber como andam os novos escravos que
adquiri. Sabes que estes bárbaros não são muito fáceis de submeterem-se ao
guante romano. Seu orgulho muita vez tem que ser dominado a custa de
açoite.
Flávia estremeceu. Esperava que Suetônio tivesse acatado seu pedido e
não dissesse nada sobre o escravo problema, não antes de buscar uma solução
pacífica.
_Tens mesmo que ir? Gostaria que ficásseis comigo _ pediu ela, num
arroubo. Depois, ficou a analisar o que dera nela para propor tal coisa.
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Plínio fitou-a, surpreso. Flávia jamais lhe pedira para fazer-lhe
companhia.
_Ora, ora... Então estás saudosa de teu marido! _ ele exclamou sem
esconder a satisfação. Depois, pensou um pouco e decidiu-se por satisfazer-lhe
a vontade._ Está bem, minha flor de jasmim. Eu fico, se tu me pedes.
Logo em seguida, sem esperar mais, abraçou-a e levou-a para dentro.
Flávia tentava proteger o escravo. Por quê? Não sabia...
* * *
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CAPÍTULO VIII
_Vamos, homem! _ falou novamente o administrador, exortando o
jovem escravo a levantar a enorme pedra do moinho. _ Não tens força?
Pareces uma mulher!
Hagonah fez mais um esforço para remover a pedra pesada. O
equipamento de moagem do trigo seco estava velho e a engrenagem estragada.
Normalmente, utilizariam cavalos ou bois para isso, mas por que cargas
d’água Suetônio o fazia mover a pedra não entendia. Achava que o velho
estava querendo humilhá-lo para torná-lo dócil.
Mas Hagonah era forte e não se intimidava com facilidade. Apesar de
sua condição de escravo, não seria tratado como um animal.
Com o suor a descer-lhe pelas costas , Hagonah lutava para empurrar a
pedra. Num determinado momento, a madeira que segurava a roda quebrou-se
e ele foi ao chão.
_Veja o que fez, seu bárbaro desastrado! _ esganiçou o velho, possesso.
O chicote que usava lambeu-lhe as costas, mas Hagonah nem pôde senti-lo. O
homem mal tinha forças para ficar de pé, quem dirá para brandir o açoite!
Ele levantou-se lentamente e apertou os dentes.
_A madeira está podre, homem! Como posso empurrar a moenda sem
quebrá-la? _ respondeu, malcriado. Estava cansado das tolices do velho. Se ele
o deixasse em paz e o pusesse para trabalhar na lavoura dar-se-ia por feliz.
Mas parecia que o homem decidira divertir-se à sua custa!
_Meu senhor vai saber disso, escravo insolente!
Mais problemas, pensou Hagonah. Ele soubera que o centurião Plínio
Lúcius havia retornado para a casa e agora o tinha bem perto de si. Não queria
confrontá-lo, não nas condições em que estava. Sabia que o homem desejaria
vingar-se dele a qualquer custo e não poderia defender-se.
Não tinha medo de Plínio, mas preso por coleiras de ferro, como
poderia reagir? Depois, para cortarem-lhe a cabeça não haveria dificuldade
alguma. E Hagonah apreciava-a onde se encontrava: presa ao pescoço.
Mais uma vez ele lamentou-se e engoliu seu orgulho.
_Vou consertar a roda, Suetônio.
_Não adianta nada, seu incompetente. Gostaria muito de falar com o
patrão, mas a senhora Flávia pediu-me que esperasse um pouco. Ela é um anjo
de bondade e tu deves ouvi-la para teu bem, Hagonah. Caso contrário, não
haverá quem te salve da punição que mereces por seres tão preguiçoso!
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Ora, o que uma patrícia poderia fazer por ele? A única coisa boa era
dar-lhe a liberdade. Não a tendo, então não queria ver mulher nenhuma,
principalmente uma romana.
_Vou dar-te mais um encargo. As piscinas da senhora estão precisando
de limpeza. Verifica se não tem nenhum animal escondido naquelas moitas
que invadiram os jardins e ajeita tudo para não atrapalhar o descanso da
senhora. Provavelmente ela irá usá-las ainda hoje.
Essas mulheres romanas eram mesmo um estorvo! Mimadas ao
extremo! Onde já se viu piscinas feitas para o deleite de uma mulher? Que
desperdício!
Hagonah não tinha mesmo uma boa opinião das romanas e nem dos
romanos.
_Vai, homem! O que espera? Ô, mula ignorante! _ resmungou o velho
administrador diante de um Hagonah ainda vacilante.
Retirando-lhe a coleira do pescoço, o que se constituiu num grande
alívio, o velho empurrou-o para frente.
_Onde ficam as piscinas, Suetônio?
_Segue à direita e chegarás lá. Espero que faças o que mandei ou não
haverá mais piedade para ti!
Apesar da austeridade com que Suetônio o tratava, sentia que no fundo
o velho gostava dele.
Seguindo pela direita, Hagonah estava até feliz por livrar-se do velho
louco de voz esganiçada.
Atravessando alguns arbustos e pedras altas, deu com um recanto muito
bonito onde uma fonte jorrava água para a piscina que pareceria natural, não
fossem os desenhos em mosaicos no fundo.
As ervas daninhas haviam tomado as bordas e o mato crescia ao redor
do jardim. Era um lugar bonito, discreto e agradável e ele gostou de estar ali.
Poderia ficar sossegado um tempo, limpando o jardim.
Molhando o rosto na água fresca, resistiu à vontade de entrar e nadar
um pouco naquelas corredeiras suaves. Algumas estátuas estavam espalhadas
pelos cantos e grandes vasos de argila enfeitavam o lugar de um jeito muito
natural.
Hagonah decidiu por mãos à obra. Começaria a arrancar as ervas e
depois, tentaria dar um jeito nos jardins. Seria uma tarefa agradável,
principalmente porque estaria em paz.
Quando o sol estava a pino, Hagonah decidiu voltar ao alojamento dos
escravos para a refeição do dia. Não era nada agradável ao paladar a comida
que eles serviam , mas podia-se sobreviver. Se permitissem que caçasse, traria
carne fresca e boa. Sentia falta de manejar seu velho arco.
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Mais tarde, decidiu voltar às piscinas. Teria que terminar seu trabalho
antes que o velho Suetônio o incomodasse novamente. No caminho, ele
vislumbrou o administrador andando para as plantações com o centurião
Plínio Lúcius. Era melhor mesmo manter distância do homem se quisesse
sobreviver àquilo tudo.
Tinha no fundo a certeza de que sua deusa não o havia abandonado
completamente e que logo poderia sair dali e voltar ao seu povo e à sua terra
distante. Não seria fácil fugir, mas a esperança de que um dia retornaria à
Bretanha o ajudava a suportar àquela condição.
Estava perto das piscinas quando ouviu um canto suave. Parou e
escondeu-se atrás de um arbusto. Seu coração saltou dentro do peito ao ver a
figura esguia a flutuar sobre as águas.
Era uma mulher ou um ser sobrenatural cuja pele translúcida sobressaía
sob o leve tecido que a cobria?
Hagonah não pode deixar de admirar-lhe a beleza das formas. A mulher
nadava suavemente na piscina, seus cabelos negros ondulando sob a água,
cobrindo-lhe as costas até a cintura.
Assustado com a intensidade de seus sentimentos , Hagonah largou o
arbustos e afastou-se um pouco, tentando normalizar a respiração. Mas logo
voltou a observar a deusa das águas. Ela o hipnotizava como uma serpente,
dançando à sua frente.
A jovem mulher cantarolava despreocupadamente e não fazia a mínima
idéia de que a observavam. Isso trouxe um certo desconforto a Hagonah. Não
era hábito seu ficar espionando daquela maneira sorrateira, porém não
conseguia afastar os olhos da moça que ondulava sobre as águas aquecidas
pelo sol da tarde.
De repente, uma pedrinha rolou denunciando sua presença no arbusto.
A moça assustou-se. Afundou mais na água e olhou para todos os
lados.
_Quem está ai? _ perguntou ela, com um leve tremor na voz.
Flávia estranhou o barulho. Sabia que ninguém se atreveria a incomodá-
la em seu banho. Todos ali foram alertados que deveriam manter distância das
piscinas e principalmente nas horas em que costumava banhar-se. Portanto,
quem estaria ali? Poderia ser apenas um animal perdido.
Mas ela viu o arbusto estremecer e o receio de que fosse atacada por
algo ou alguém desconhecido tomou-a de assalto. Estava sozinha e ninguém
por perto poderia ouvi-la gritar.
_Quem está aí? Ordeno que apareça já! _ Ordenou, apesar do visível
temor a transparecer em seu tom autoritário.
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Ninguém se atreveria a encostar um dedo na esposa de Plínio Lúcius.
Todos conheciam a fúria de seu marido!
Hagonah não pode mais ficar escondido. O medo na voz da senhora o
comoveu. Era melhor apresentar-se de uma vez.
Vagarosamente, saiu de trás do arbusto e parou a alguma distância da
piscina. A moça continuava no meio das águas e o fitava surpresa.
Flávia observou surpresa a figura do homem que se aproximou e parou
a uma distancia segura.
Seu coração bateu forte e uma estranha sensação contraiu-lhe o
estômago. Com olhos curiosos, avaliou-o dos pés à cabeça.
Era alto, a pele que devia ser mais clara estava queimada pela constante
exposição ao sol e os olhos escuros. Os cabelos negros e anelados caíam no
pescoço. O corpo forte e ágil parecia pronto a pular sobre ela como um animal
predador. Seu rosto não era bonito, mas os traços combinavam numa
aparência enérgica e agradável, apesar da rigidez do maxilar.
Quem seria ele e o que fazia ali? Suas roupas quase não o cobriam e
estavam rasgadas e sujas! O saiote mal chegava aos joelhos, deixando ver os
músculos bem torneados . As sandálias velhas quase não lhe protegiam os
pés.
Flávia estava hipnotizada. Não conseguia desviar os olhos da figura
masculina impressionante.
Como que despertando, lembrou-se de sua posição vulnerável.
Levantou o queixo tentando esconder suas estranhas sensações e perguntou ao
estranho:
_Quem és e o que fazes aqui? _ perguntou, autoritária.
_Suetônio, o administrador, pediu-me que cuidasse dos jardins. Perdoai-
me, senhora. Não podia imaginar que houvesse alguém ... _ respondeu ele,
também tentando conter o tremor da voz.
Hagonah também estava perturbado. Ver a mulher de perto, estar tão
próximo a ela deixou-o trêmulo. A garganta se lhe apertou e a boca ficou seca
de repente.
_Pois então vai e não precisas voltar hoje! Deves ser o jardineiro e não
quero que me incomodes novamente!
Hagonah fitou-a ainda sem poder mexer-se do lugar.
“Era uma visão!”, pensou. “Uma feiticeira de olhos de mel! Cuidado,
Hagonah! Não sabes quem é esta romana!”
Romana!
Ela era romana e só agora se dera conta disso.
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Não odiava os romanos? Não o fizeram escravo? Não destruíram sua
tribo, mataram seu irmão e pai? Não queria nada com os romanos! E muito
menos com suas mulheres!
Hagonah endureceu a expressão e deu as costas à mulher. Sem dizer
mais nada, retirou-se e foi embora, pisando duro nas pedras.
Flávia pode enfim respirar um pouco melhor. A presença do homem
deixou-a tão tensa que prendera a respiração sem perceber. Sua cabeça rodava
e as pernas estavam moles quando saiu da água. Era melhor vestir-se e sair
dali antes que mais alguém aparecesse.
A água de repente ficara fria e desagradável. Ou fora a presença do
escravo que lhe aquecera o corpo?
Flávia não conseguia esquecer a figura do jardineiro.
Enquanto Sura lhe penteava os cabelos e Nayara lhe passava óleos nos
pés para deixá-los macios, ela tinha o olhar ausente, revendo a imagem do
homem na piscina.
_Sura... _ começou, vacilante. _ Já vistes o novo jardineiro?
Nayara parou de mexer-lhe nos pés por alguns segundos e fitou sua
senhora com malícia.
_Não, senhora _ respondeu Sura. _Não sabia que tínhamos um novo
jardineiro.
_E tu, Nayara? Por que me olha dessa maneira?
Nayara sorriu e voltou a massagear-lhe os pés .
_Por nada, senhora. Tenho observado que estais muito estranha. Acaso
aconteceu alguma coisa que vos preocupa? _ a moça perguntou com expressão
misteriosa.
_Nada que possa perturbar meus dias, Nayara. Ou será que vês alguma
coisa aí na tua cabeça?
_Não, senhora. Não vejo nada. Só que...quero vos alertar para que
tenhais muito zelo com vosso coração. Ele sofre e busca vossa alma gêmea...
_Ora, não digas tolices, menina! _ repreendeu Flávia, com mais rigor do
que pretendia. _Meu coração pertence ao meu marido e não está disponível.
_Perdoai-me, senhora. Não direi mais nada. _ Nayara baixou a cabeça,
continuando o seu serviço. Sabia que a senhora havia encontrado alguém,
_Vamos, meninas! Por favor, deixem-me. Quero descansar um pouco.
Logo Plínio mandará chamar-me e desejo estar bem disposta_ pediu com
delicadeza. _Obrigada, Nayara. Fizeste-me um grande bem ao untar-me os
pés, é muito bom!
_ Faço porque vos amo, senhora _ respondeu a moça com simplicidade.
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Flávia sorriu, grata. As moças retiraram-se e ela pode deitar-se um
pouco. Mas o sono não vinha, pois a imagem do homem nos banhos a
atormentava. Não conseguia esquecê-lo!
Mas deveria! Era um simples jardineiro, um escravo. Era uma mulher
casada, romana e digna. Não podia ficar com a imagem de um desconhecido
na cabeça.
A quem tentava enganar? Era um trabalhador braçal, mas um homem
impressionante !
Agastada com o rumo de seus pensamentos, escondeu o rosto nas
almofadas e tentou conciliar o sono.
Horrorizada, lembrou-se das mulheres patrícias que acolhiam escravos
em seus leitos. Não queria ser uma delas!
Mas aquele escravo ...era decididamente perigoso e deveria manter
distância dele. Jamais sentira aquelas coisas estranhas ao ver um homem!
Hagonah também estava distraído. Embora odiasse os romanos, não
podia expulsar a imagem da mulher nadando na piscina. Era uma deusa que o
fascinara e sua visão tomava conta de seus pensamentos.
Durante a noite, rolando de uma lado para outro, não pensava em outra
coisa que não fosse na mulher misteriosa, cujos cabelos cobriam-lhe o corpo.
Uma ninfa saída das lendas das floresta!
Na manhã seguinte, perguntou ao administrador se era para continuar o
trabalho nas piscinas. O homem respondeu que sim e logo saiu para encontrar-
se com o centurião.
Hagonah não podia enganar-se. Ficara feliz com a perspectiva de
reencontrar a mulher novamente e com certa ansiedade dirigiu-se aos jardins.
Mas ela não estava. Um tanto decepcionado, decidiu esquecer a mulher
romana e pôs-se a trabalhar.
Gostava de remexer a terra. Admirava a natureza e tudo o que vinha
dela. Ali havia algumas pedras altas que poderia escalar e ficar lá em cima,
como fazia na Bretanha. Então, poderia voltar a meditar. Gostaria de ir para lá
à noite para ver as estrelas e dormir sob o céu coruscante.
Não gostava do alojamento dos escravos. Era pequeno, abafado e
imundo! Preferia dormir sob o céu. Ali não havia uma fiscalização muito
rígida e Suetônio estava velho e displicente. Durante o dia, os guardas ficavam
de vigia , mas à noite, eles se entretinham com algumas mulheres e o vinho
rolava na mesa de jogos de azar. O senhor não sabia disso, pois ficara muito
tempo longe de casa.
Não seria difícil escapar para dormir nas termas.
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Já passava da uma hora e ele precisava alimentar-se, mas não queria
sair. Havia no fundo a esperança de que a dama voltasse para banhar-se
novamente no fim da tarde.
Comeria algumas frutas ali mesmo. Havia pereiras por toda parte, eram
o suficiente para forrar-lhe o estômago.
Alguns minutos depois, Suetônio apareceu com um soldado ao lado.
Fora lá para verificar se ele fazia o trabalho.
E Hagonah estava trabalhando duro para limpar todo o jardim.
_Preciso de um pouco mais de tempo, senhor administrador _
respondeu, suado. _Não podemos deixar estes arbustos entrarem nas águas da
senhora, não é verdade? Há perigo de cobras invadirem e refrescarem-se nas
piscinas.
_É verdade. Continue o trabalho, homem! Mas não pense que está livre
para perder tempo. Amanhã deves acabar a tarefa. Tenho outro trabalho para ti
_ resmungou o velho, fazendo-se autoritário.
Hagonah tentou não sorrir para não tirar a autoridade do homem.
_Entendo. Tentarei acabar tudo o mais rápido que puder.
O velho retirou-se e levou o guarda junto consigo.
Hagonah sorriu e arrancou mais uma erva daninha. Com sorte,
conseguiria levar a tarefa por mais alguns dias. Não era preguiçoso e nem se
negava ao trabalho, quando útil. Mas a exploração humana era contra suas
regras e sua moral. Os seres nasceram livres e deveriam morrer livres, era
assim que pensava.
_Esses romanos! Acreditam-se donos do mundo. A ganância será o teu
fim, Roma! _ murmurou, puxando com força uma erva daninha mais
resistente.
Estava trabalhando na terra, suando sob o sol quente quando ela
apareceu.
Ao vê-lo, Flávia hesitou ainda um instante , mas depois aproximou-se
e observou-o sem que percebesse sua chegada.
_Tu vais ainda demorar nestes jardins? _ perguntou ela, assustando-o.
Hagonah levantou-se com as mãos sujas de terra.
Estava sem camisa, o suor descia pelas costas.
Flávia não conseguiu evitar de observar o peito forte do escravo.
_Alguns dias, acredito. Precisamos limpar tudo para a senhora Flávia,
não é? Deve ser uma mulher muito mimada, a esposa do centurião, _comentou
mais para si. Depois, voltando o olhar para a jovem enrubescida, analisou-a
sem constrangimento. _Tu a conheces? Não temes usar as piscinas da senhora
sem que ela saiba?
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Flávia percebeu surpresa que ele não fazia a mínima idéia de quem era.
Seria muito interessante manter a brincadeira ainda por alguns minutos.
_Eu conheço a senhora e não acho que seja mimada, como dissestes.
Talvez um pouquinho. Mas não temo que me puna por usar sua piscina.
Afinal, a água está tão boa! E tu, estás aqui há muito tempo?
_Oh, não! Vim da Bretanha e sou espólio de guerra – respondeu,
amargurado.
_Oh, eu sinto muito... _ murmurou ela, sem saber o que dizer. _És
escravo, então?
_Sim. escravo. Mas não foi sempre assim. E tu, quem és? Deves ser ....
_Oh...eu...eu me chamo Sura e sou serva da senhora Flávia _ Por que
dissera aquilo tudo? Estava ficando louca?
_Sura. Um nome interessante. E muito bonito também – ele falou, numa
voz macia, admirando-lhe a beleza.
Flávia enrubesceu diante do olhar do homem. O que estava fazendo?
Por que mentia para um escravo?
Seu coração pulava no peito. Estava surpresa com sua atitude
impensada. Ele a deixava tonta!
Afastou-se um pouco e sentou-se num banquinho de pedra.
_Por favor, continue seu trabalho. Não desejo incomodar.
Hagonar abaixou-se e continuou a tirar os arbustos e pedras do jardim.
_Tens um nome pelo qual te chamam. Qual é? _ perguntou ela, sem
conseguir afastar os olhos dos braços fortes.
_Hagonah. Podes chamar-me Hagonah. Não vais usar as piscinas, Sura?
_ perguntou ele, com os olhos abaixados, fingindo naturalidade.
Removendo um pedrouço do caminho, levantou-o e jogou o objeto do
outro lado como se não tivesse peso algum.
Flávia enrubesceu novamente.
_Não, hoje não. _Respondeu, contrangida.
_ Logo sairei e então poderás banhar-te, se é isso o que te preocupa.
Onde ficas quando dormes ou fazes as refeições? Não te vi ainda uma vez
sequer com os outros escravos.
_Bem...eu faço minhas refeições com a senhora. E também durmo
próximo aos aposentos dela. Podem precisar de mim, durante a noite _ ela
gaguejou, recriminando-se mais uma vez.
_És privilegiada, Sura. Não tens que repartir o alojamento dos escravos.
_E é muito ruim? Quer dizer... não é tão mal assim, ou é?
Ele parou e fitou-a , depois voltou a trabalhar.
“Que mulher estranha”, pensou. Suas roupas eram finas e suas maneiras
também, entretanto era escrava como ele.
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_Não é bom, podes acreditar. Mas não importa. É bom que estejas
protegida por tua senhora. Os guardas não te deixariam em paz e eu teria
sérios problemas para defender-te.
_E tu me defenderias? Defenderias a minha honra? _ Ela estava
abismada com aquela conversa .
_Sim, eu o faria. Não se pode deixar animais como aqueles tocarem
uma jovem de pele aveludada como tu... _ ele falou sem conter-se, parando
para admirá-la.
Novamente Flávia ficou rubra. Os olhos escuros e enigmáticos a
prendiam em sua teia de sedução.
_És muito bonita, Sura. Teu senhor já não te disse?
Ela o fitou com os olhos muito abertos.
_Deves ter despertado a cobiça de teu senhor alguma vez. Plínio não
tem piedade de mulheres como tu _ Ele tornou, muito sério. Os olhos
perscrutadores a analisavam.
_Pareces conhecer bem o meu...o meu senhor.
_O suficiente para saber seu caráter – ele respondeu, agressivo. Ele
voltou a arrancar as ervas com força desnecessárias. Os lábios apertados
demonstravam sua frustração interior. _Fica longe dele, Sura. Se é que não o
queres para ti.
Flávia levantou-se indignada. Ela conhecia Plínio, sabia que ele não era
boa coisa, mas ouvir quilo era uma afronta, ainda mais vindo de um escravo.
Mas depois, controlou-se. Ele não sabia quem ela era e lhe dava um conselho
verdadeiro, não podia negar. Acaso seu marido não tomara Sura para si?
Sentando-se novamente, desanimou-se. Seu olhar encheu-se de tristeza
por seu destino infeliz. Aquele desconhecido a atingira no âmago da
sensibilidade, falando de verdades que ninguém teria coragem de mencionar.
Vendo a tristeza e o abatimento da jovem, Hagonah arrependeu-se.
Talvez ela quisesse o senhor ou mesmo o amasse...
Lavou as mãos numa bica de água corrente, enxugou-as nos seus trapos
e aproximou-se dela. Levantando-a pelos ombros, fitou seus olhos tristes.
_Perdoa-me, eu não tinha o direito. Mal nos conhecemos e já estou a
fazer-te infeliz! Esquece o que disse sobre o senhor e a senhora. Por certo o
amas e...
Flávia estava comovida. Ele era tão...tão carinhoso! E ela estava tão
carente, com tanta pena de si mesma! Seu olhos, para seu horror, encheram-se
de lágrimas.
_Oh, tu amas mesmo ao teu senhor! _ ele concluiu, desgostoso. _ E por
certo não és correspondida!
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_Não! _ ela exclamou, deixando algumas lágrimas descerem por seu
rosto. _Estás esganado! Não amo ao meu senhor, eu...
Quase lhe disse que era o contrário, mas calou-se. O que fazia nos
braços de um escravo? Ele a segurava nos ombros como se fosse natural!
Jamais deixara outro homem tocá-la com tanta intimidade a não ser seu
marido!
Hagonah estava muito perto. Ele sondava sua expressão tentando
compreender o que se passava consigo mesmo. A proximidade de Flávia
provocava-lhe uma forte reação que o deixava confuso.
E ela sentia-se envolvida por um forte magnetismo que a empurrava de
encontro a ele. Foi difícil, quase impossível, lembrar-se de quem era e o que
estava fazendo.
Com esforço, Hagonah a afastou de si.
_Temos alguma coisa em comum, Sura: não somos livres e dependemos
da vontade e capricho de outra pessoa. Nada poderias fazer se teu senhor a
desejasse _ concluiu ele, amargo. Depois, sorriu para ela. _Mas agora acredito
que meus dias serão um pouco melhores depois que te conheci. Nossa vida
não é fácil e ao menos poderemos contar com a amizade um do outro, não
achas?
Flávia ficou sem fala. O que responder? Sua mentira havia ido longe
demais!
Tomando o silêncio de Flávia como consentimento, ele dirigiu-se à
saída.
_Preciso ir ou Suetônio virá buscar-me _ falou, despedindo-se. _
Poderás banhar-te agora. Não ficarei por perto.
E desaparecendo nas moitas, Hagonah dirigiu-se ao alojamento.
Flávia respirou fundo algumas vezes tentando acalmar o seu coração.
Que estranho sortilégio era aquele que a empurrava para os braços
daquele homem ? Sua cabeça girava sem parar. Sentia-se queimar por dentro!
“Pelos deuses! Sinto-me confusa. Parece que estou sob algum
encantamento!”
Decidiu que tomaria um banho rápido e sairia logo dali. Não deveria
voltar mais a não ser quando o escravo tivesse acabado o serviço. Era muito
perigoso ficar sozinha com aquele homem. Fazia coisas que nunca fizera e até
seu nome trocara e assumira uma identidade que não possuía! “
“Vai ver que os bárbaros eram todos feiticeiros e jogavam sortilégios
sobre os romanos!”
À noite, Flávia ceava com Plínio e analisava seus sentimentos.
Comparava a figura de seu esposo com a do escravo e percebia o quanto eram
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diferentes. Não que Plínio não fosse forte, ao contrário, mas a semelhança
parava por aí.
Notava os cabelos quase raros de Plínio e a face com expressão cansada
de quem passava muitas noites nas saturnálias. Sabia que o marido logo se
entediaria da vida no campo. Ele não era homem de ficar longe do frenesi e da
guerra por muito tempo. Logo desapareceria por dias ou semanas a fio,
divertindo-se nos jogos ou acabando-se nas bacanais oferecidas por diversos
patrícios até que alguma nova batalha fosse planejada. Era um homem ativo e
não gostava de ficar parado. Não raro, ficava sabendo pelos comentários
maldosos sobre os escândalos que aconteciam nas festas de César e das
licenciosidades de seu marido.
Mas ela não se importava. Queria mesmo que Plínio partisse. Por mais
que se esforçasse, não conseguira fazê-lo mudar de procedimento. Sendo de
uma família tradicional, respeitadora da moral e dos bons costumes, não
compactuava com aqueles desmandos da sociedade romana. Seu marido,
infelizmente os adorava!
_Flávia, Flávia! Um tesouro por teus pensamentos – falou Plínio, de
repente. E sua voz a assustou tão distraída estava. _Não ouviste uma palavra
do que te disse!
_Oh, perdoa-me, Plínio!_ desculpou-se ela. _Eu estava pensando
...pensando em como é bom estarmos em casa.
Ele a fitou desconfiado.
_Já o disseste antes. Mas o que me dizes da minha proposta?
_Que proposta?
_Acho, querida esposa, que já está na hora de dar-me um filho.
Flávia arregalou os olhos e quase engasgou-se com a fruta que comia.
_Um filho? _ Sua voz não passava de um sussurro.
_Sim, um filho. Um menino. Quero a casa cheia de meninas e meninos
para alegrar meus dias.
Flávia não soube o que dizer. Ter filhos de Plínio? Não estava preparada
ainda para ser mãe. Muito menos dos filhos de seu marido. A idéia a
arrepiava!
_Não gostastes? _ Perguntou ele, vendo sua expressão horrorizada. _
Acaso não desejas ser mãe?
_Não! Quer dizer...sim! Mas...não ainda! Estou muito jovem, Plínio!
Tenho só dezenove anos! Não quero morrer cedo!
_E quem disse que vais morrer se te tornares mãe?
_As mulheres depois que se tornam mães morrem logo, é o que a
experiência nos conta. Minha mãe morreu aos trinta e dois anos!
_Uma anciã! E dizes que morreu cedo?
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_Plínio! Como podes dizer tais absurdos! As mulheres têm direito a
viver um pouco mais, tanto quanto os homens.
_Mas os homens são muito mais fortes e úteis! As mulheres não
precisam envelhecer. Veja por um ângulo, minha querida : se morreres cedo,
não terás o tormento da decrepitude!
Flávia estava boquiaberta! Seu marido a revoltava cada vez mais.
Levantando-se indignada, falou-lhe antes de retirar-se:
_Pois então vou ficar moça por mais tempo não sendo mãe de teus
filhos!
Pode ouvir a risada odienta de Plínio. Ele adorava atormentá-la.
Pisando duro, dirigiu-se para os seus aposentos.
“Os homens eram odiosos!”, pensava. Como podiam desejar a morte da
esposa somente por estar velha? Onde estava o amor? Será que só existiam
sentimentos de vaidade e luxúria? Se amasse alguém, não quereria que
morresse e não deixaria de amá-lo somente porque os sinais dos tempos
chegavam!
Entrando em seu quarto, sentou-se frente ao toucador e olhou-se num
espelho polido. Será que era assim? Depois que envelhecesse, o mundo se
acabaria?
Impaciente, levantou-se e pediu à Sura que lhe ajudasse a se despir.
Logo depois, já deitada em seu leito, a porta abriu-se abruptamente e
seu marido entrou, um tanto cambaleante.
_Que fazes, Plínio? Estou cansada e gostaria que me deixasses esta
noite, _ falou, um tanto agastada.
Plínio parou à sua frente e a fitou com olhos turvos.
A leve camisa de dormir que ela usava mais revelava que escondia suas
formas e os cabelos soltos e brilhantes tornavam-na mais desejável aos olhos
de Plínio.
Ensandecido pela paixão, não deu ouvidos ao que ela dizia. Pulou
sobre o leito e agarrou-a com brutalidade.
_Tu vais me dar um filho sim, Flávia! E vai ser esta noite! Não vou
deixar-te até que minha semente tenha sido plantada dentro de ti! _ ele falava,
apaixonado, o cheiro forte do vinho enjoando o estômago de Flávia.
Em vão, ela lutava tentando afastá-lo, mas logo se cansou. Plínio era
muito forte e ela não podia com ele. Então, para não sofrer mais, tornou-se
passiva em seus braços.
Era seu marido, que poderia fazer?
Mas na manhã seguinte, procurou Nayara e pediu-lhe alguma coisa para
tomar a fim de impedir uma gravidez. A serva conhecia muitos remédios e
poderia ajudá-la.
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Nayara deu-lhe uma beberagem e disse-lhe que toda vez que seu marido
a procurasse, deveria tomar depois o mesmo chá. Era assim que as mulheres
da sua tribo impediam os bebês indesejáveis de vir ao mundo.
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CAPÍTULO IX
Por mais que quisesse, Flávia não conseguia evitar de ir até os banhos.
O que era um hábito seu, tornou-se uma obsessão. Não escondia de si mesma
que desejava encontrar-se com o escravo Hagonah.
Hagonah, por sua vez, inventava mil formas de atrasar o serviço para
poder rever Flávia.
Os dois tornaram-se amigos e conversavam sem jamais chegarem tão
próximos um do outro. A proximidade física era um tormento para ele e não
poderia conter-se por muito tempo caso ficassem muito juntos.
Sentada no banquinho, Flávia observava o progresso que ele fazia em
seus jardins. As estátuas, antes sujas e amareladas, agora luziam sob o sol e as
ervas daninhas foram-se, deixando as pequenas flores silvestres respirarem.
Removendo algumas pedras grandes e amontoando-as num canto,
Hagonah improvisava outra fonte natural, deixando o lugar mais bonito e
agradável. Ela admirava-lhe a delicadeza com que tratava flores e plantas tão
frágeis, apesar das mãos calejadas e grandes.
_Gostas do que fazes, Hagonah? Vejo que tens jeito para tornar mais
bonitos os lugares _ comentou ela, admirada.
Ele sorriu, terminando de empurrar uma pedra.
_Convivo muito bem com a natureza, Sura. Meu povo vivia nas
florestas e sei lidar com as plantas. Agora vem que quero mostrar-te algo.
Ele estendeu-lhe a mão de pele áspera e envolveu a dela, delicada e fina.
_Vou ajudar-te a subir naquelas pedras.
_Naquelas ali, no alto? Não! Poderemos cair!
_Não vais cair. Vou segurar-te até que subas. Vai na frente e eu ficarei
atrás de ti para proteger-te.
Não fora uma boa idéia. A proximidade que tanto o atormentava o
deixou quase fora de si. Esforçando-se para manter-se respeitoso, mal a tocava
enquanto subiam.
Quando chegaram no alto, ela pode ver o que ele havia feito.
_Gostas? _ perguntou ele, respirando fundo para recuperar o ar.
Sobre as pedras, Hagonah havia estendido um tapete de palha trançada
como uma esteira e havia alguns objetos estranhos como uma ânfora pequena
e alguns copos de barro cozido. Mais adiante, um pequeno altar de pedra havia
sido erigido, mas não havia imagens, somente uma vela dentro de um pote de
barro.
_O que é isso? _ ela perguntou curiosa.
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_É um altar à deusa Mãe. É aqui que medito e ofereço minhas orações.
Quando cheguei, pensei ter perdido a fé, mas depois vi que a deusa está me
testando. Agora, eu te conheci, minha doce Sura, e tenho motivos para orar e
agradecer...
A expressão de Hagonar era grave e o brilho intenso dos olhos que a
admiravam diziam da necessidade que ele tinha dela.
Flávia compreendeu que era um momento especial e solene. Ele lhe
mostrava algo muito importante para ele.
Constrangida e emocionada ao mesmo tempo, apertou as mãos,
nervosa.
_O que foi? Não gostastes da minha surpresa? _ ele perguntou,
preocupado com sua expressão.
_Oh, não! Eu gostei muito de que me tenhas trazido e mostrado teu altar
_ela voltou-se para ele, tentando sorrir. _ Deve ser muito difícil para ti viver
limitado quando tinhas tanta liberdade em tua terra...
_Sim, é verdade. Mas agora sei por que vim para este lugar _tornou ele,
com a voz enrouquecida. Aproximando-se um pouco mais, tocou-lhe o rosto
com as pontas dos dedos e murmurou: _ Foi para conhecer-te! A deusa
trouxe-me para este lugar para que eu pudesse te encontrar. És minha alma
gêmea, àquela por quem sempre ansiei, tanto esperei! Agora que te encontrei,
não preciso mais angustiar-me por meu futuro incerto. És o meu destino, Sura!
Flávia o fitava com um nó na garganta. Ela também sabia disso! Era por
ele que suspirava nas noites estreladas! Era por Hagonah que ansiava todo o
tempo!
Almas gêmeas! Não fora isso que dissera Nayara?
Será que os deuses a perdoariam por amar um escravo ? Será que
ela se perdoaria por ceder aos sentimentos que lhe invadiam a alma ?
Sem poder conter-se mais, Hagonah a tomou nos braços e a beijou,
selando diante do altar o seu compromisso.
E Flávia não o impediu, não poderia.
Sentindo-se flutuar sob os lábios de Hagonah, também acreditou em
suas palavras, acreditou que a deusa dele o havia trazido para mostrar-lhe o
amor!
Flávia, a romana esposa do centurião Plínio Lúcius, estava amando o
escravo Hagonah, um bárbaro!
Sem opor resistência entregou-se àquela paixão sem reservas. Parecia
que sempre estivera ali, em seus braços. Não lhe era desconhecido os
sentimentos que a invadiam. Era como se nunca se houvessem separado!
Flávia não pensou nas conseqüências de sua entrega, ignorou a
advertência íntima que lhe dizia não se chamar Sura e que nem mesmo era a
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escrava que ele pensava ser. Seu relacionamento estava cheio de mentiras e
nada havia que pudesse fazer a não ser viver intensamente aquela paixão
avassaladora.
Era um reencontro de almas que não resistiam à afinidade que as unia.
* * *
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CAPÍTULO X
_Suetônio, quero que deixes o jardineiro em paz, _ ordenou Flávia. _Ele
está fazendo um ótimo trabalho nas piscinas. O homem é um artista e quero
que fique a vontade para deixar o lugar que mais gosto em ordem.
Compreendeste?
_Sim, minha senhora. Mas ...ele é um homem muito valioso para ficar
somente nos jardins, senhora! Vosso marido já me questionou sobre ele. O
senhor Plínio o quer nas lavouras para a colheita!
_Sim? E quando será isso?
_Depois de amanhã, senhora. Já fazem duas semanas que Hagonah está
preso à vossas piscinas e não poderei mais impedir vosso marido de procurá-lo
pessoalmente!
Flávia estremeceu.
Nunca! Não poderia deixar Plínio a sós com Hagonah!
_Façamos o seguinte, então: ele fica durante a tarde nos jardins e
durante a manhã, nas lavouras. Que achas?
_Assim está melhor, senhora. Ele não está atrapalhando os vossos
banhos?
_Não. Só vou aos banhos quando ele sai. Já está ajustado.
_Então está certo, senhora. Alguma coisa mais?
_Não, já basta. Muito obrigada, Suetônio. És muito generoso.
_Obrigado, senhora.
Retirando-se do gabinete , aposento destinado às reuniões de negócios,
Suetônio pensava em como estava velho e cansado. Arrastando os pés, sentia
que não demoraria muito o seu decesso. Precisava avisar ao senhor para
arrumar outro administrador, pois estava doente e não daria mais conta dos
afazeres.
Flávia ficou satisfeita com o arranjo. Contaria a Hagonah as
novidades...Não podia! Como poderia saber de tudo se fora Flávia quem
ordenara a mudança?
Céus, que loucura!, pensou, colocando as mãos no rosto quente.
Mas Flávia estava nas nuvens! Amava e era amada como jamais
imaginara que seria!
Questionara-se muitas vezes durante aquelas semanas sobre seus
procedimentos, seus dramas de consciência e sua reputação, mas nada
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sobrevivia ao amor que sentia por Hagonah! Nem mesmo seus princípios
morais, valorizados desde menina!
Hagonah era muito diferente de Plínio. Contara-lhe coisas de sua terra,
de seu pai sacerdote e de seu irmão. Falara-lhe sobre Isobel, a cunhada que
fora vendida para um membro do senado, com extremo pesar.
Queria ajudá-lo, fazê-lo feliz, mas não estava em condições de revelar-
lhe seu segredo. Não suportaria perdê-lo!
Cada vez ficava mais difícil conviver com seu esposo! Depois daquela
noite, ele ainda a procurou algumas vezes mais, mas logo se cansara dela indo
atrás de emoções mais fortes. Imaginara que estivesse se divertindo com Sura.
Agora compreendia os sentimentos de frustração de seu o marido.
Alma apaixonada e volúvel, Plínio não devia achar nada interessante em sua
pessoa, tão fria quanto uma estátua de mármore.
Conhecendo a paixão nos braços do escravo, sabia o quanto deveria ser
terrível para o marido a sua passividade. Mas não importava. Ela nunca
quisera mesmo casar-se com ele! Fora um arranjo de família, então não se
sentia culpada.
Depois, o sentimento que a ligava a Hagonah era algo de tão sublime,
tão belo que não acreditava que os deuses os puniriam por manifestá-lo!
A alma apaixonada sempre procura e encontra justificativas para
permanecer no erro sem abdicar do objeto de seus anseios.
Durante a tarde, em seus encontros clandestinos, Flávia soube por
Hagonah que a senhora o havia destinado às lavouras pela manhã e que ficasse
durante a tarde nas piscinas. Era muito conveniente o arranjo para eles e ele
perguntou se ela não tivera nada com isso.
Aproveitando a deixa, Flávia mentiu mais uma vez, dizendo que contara
à sua senhora que estava apaixonada pelo jardineiro e que gostaria que ela lhes
desse algum apoio, deixando-o livre alguns momentos.
_Ora, mas é muito bom para nós que tenhas tanta intimidade com tua
senhora. Já estou mesmo a admirá-la – falou Hagonar, aconchegando-a mais
ao peito. Ambos estavam no alto das pedras, diante do altar para a deusa Mãe.
Flávia sorriu, mordendo o lábio. O que Hagonah faria se lhe contasse a
verdade? Não, era melhor ficar como estava.
_Eu ainda não pude ver a senhora Flávia, mas quando a conhecer tenho
certeza de que gostarei dela. E será por tua causa, minha bela Sura.
_Estou a ficar com ciúmes, Hagonah! Não vamos mais falar da senhora.
Estou aqui e é em mim que deves pensar!
_Ora, és muito possessiva! Mas tens razão. Vamos aproveitar o pouco
tempo que temos.
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Mais tarde, Flávia voltava cantarolando pelos jardins quando viu Plínio
vindo em sua direção. Logo o sangue gelou-lhe nas veias. Olhando para trás,
não viu Hagonah e tratou de ir ao encontro do marido.
_Que fazes a esta hora nas termas, Flávia? Não temes adoecer?
_Não, estou bem. E tu, Plínio, que fazes aqui?
_Vim buscar-te. Parece que agora só vives nestes jardins _ ele
reclamou, aborrecido. Desconfiado, olhou para os arbustos como a esperar
alguma aparição.
Ela pegou-lhe o braço e o arrastou de volta à casa.
_Vamos que agora tenho frio. E estou faminta também!
_Vamos – respondeu ele, relutante. _Tenho notícias para ti. Cornélia e
Otávius virão passar alguns dias conosco. Estás feliz?
Flávia não poderia estar mais aborrecida. Cornélia lhe tomaria o tempo
e não poderia encontrar-se com Hagonah. O que faria para impedi-lo de vê-la
nas termas? Aquilo era um problema.
_E quando chegam? _ perguntou, apreensiva.
_Amanhã, pela manhã. Não estás contente?
_Oh, sim, claro!
Como poderia avisar Hagonah? E agora, o que faria?
_Se estás com fome, avisarei para servir-nos mais cedo. O que tens,
Flávia? Estás tão...diferente!
_Eu, diferente? Em quê?
_Teus olhos... ele parou e fitou-lhe o rosto com cuidado. _Estás
mais...bonita. Sim, estás mais bonita porque estás feliz.
Flávia não pode deixar de sorrir. É o amor, quis gritar para o mundo.
Mas logo enrubesceu, constrangida sob o olhar de Plínio. Até que ponto
poderia manter a farsa e enganar aos dois homens que mereciam sua
consideração e respeito?
_Flávia, será que...Não me escondes nada?
_Eu? Claro que não! E deixa-me, Plínio. Estou bem e só estou com
fome. Vamos entrar _ ela assustou-se com a sensibilidade do marido.
Ela saiu na frente e Plínio ficou a observá-la, franzindo o cenho.
Precisava tomar cuidado, considerava ela. Não podia demonstrar tanta
felicidade ou seria o seu fim. E o de Hagonah.
Antes de sentar-se à mesa de refeições, Flávia pediu para subir aos
aposentos a fim de trocar-se. No quarto, jogou o lenço que segurava no chão e
chamou por Sura.
_Sura, tenho algo a pedir-te: ajuda-me a dar um recado a alguém. Mas é
muito, muito importante que não contes a ninguém ou será uma tragédia!
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_Oh, senhora! Podeis contar com minha discrição. Sabeis o quanto vos
quero bem!
_Eu sei que me és fiel, mas também sei que amas ao teu senhor. Agora
preciso saber a quem vais servir.
Sura corou violentamente. Não imaginava que sua senhora soubesse de
seus sentimentos ou envolvimento com o senhor Plínio.
Pegando suas mãos, Flávia olhou-a nos olhos e falou, grave:
_Quero que vás ao alojamento dos escravos e procures por Hagonah.
_Procurar quem?
_Um escravo chamado Hagonah. Digas a ele que tu...eu pedi que não vá
às termas até minha ordem.
_Dizer a Hagonah, o escravo, que a senhora Flávia pede...
_Não! Flávia não! Sura. Quero que digas o teu nome.
_Meu nome? Mas eu não compreendo, senhora!
Flávia ficou impaciente.
_Olha, conheci este homem nas termas enquanto arrumava os jardins.
_Oh, o jardineiro? _ Sura fez um ar de espanto, lembrando-se da
conversa que tiveram outro dia.
_Sim, o jardineiro. Mas não lhe disse o meu nome verdadeiro. Ele
acredita que sou uma escrava como tu e que me chamo Sura. Compreendes
agora?
_Oh, senhora! Por que fizestes tal coisa ? E o senhor Plínio... _ Sura
botou a mão na boca.
_Não importa, Sura. É um caso de vida ou morte! Quero que dês este
recado à Hagonah sem que ninguém te veja. Agora vai! É muito importante
para mim, Sura. Tu amas ao teu senhor, não amas?
_Senhora, por favor...
_Pois então compreendes o que sinto! Preciso que digas ao escravo que
não vá às termas. Diga-lhe que a senhora Flávia receberá visitas e não gostará
que ele fique por lá.
Sura fitou Flávia, finalmente compreendendo o que acontecia. Sua
senhora estava apaixonada por um escravo! Isso era impensável! Mas como
ela também amava ao senhor Plínio e Flávia o sabia...
_Não vos preocupeis, senhora. Eu irei agorinha mesmo! Não será difícil
entrar lá. Afinal, algumas vezes nós nos reunimos aos guardas para alguns
momentos de entretenimento e eles não estranharão a minha aparição.
_Obrigada, Sura! Não sabes o quanto te sou grata. Agora vai!
E Sura foi. Ao perguntar por Hagonah, um dos soldados indicou um
homem sentado com as costas na parede ao fundo do alojamento. Ele tinha
uma coleira de ferro no pescoço e parecia dormir.
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Sura penalizou-se. Os homens ali não tinham muito conforto e
dormiam no chão, sobre um pedaço de pano roto.
Indo até lá, tocou os ombros do homem suavemente. Era muito bonito o
escravo da senhora, pensou ela.
Hagonah sobressaltou-se e tentou levantar-se, mas Sura segurou-lhe os
ombros.
_Não precisa levantar-te. _Sussurrou. _ Vim a pedido da senh...de Sura,
a escrava da senhora Flávia.
_Aconteceu alguma coisa com ela? – preocupou-se ele.
_Não! Ela pede que não vás às termas enquanto não mandar, pois a
senhora Flávia irá receber visitas e não quer que a incomodem.
_Compreendo. E até quando devo esperar?
_Até última ordem. Agora já vou indo.
_Espera! Como te chamas?
_Não importa o meu nome. Tenho que ir.
Hagonah viu a núbia desaparecer na escuridão dos jardins.
Que estranho! Por que não viera ela mesma dar o recado?
Suspirou, contrariado. Não poderia ver Sura durante aquele interregno.
Estava cansado de esconder-se. Será que não permitiam casamentos entre os
escravos? Ao mesmo tempo, pensava em como poderia criar uma família em
tal condição.
Não queria que seus filhos nascessem na escravidão. Sabia que os
romanos não gostavam das crianças dos escravos, achava que desviavam a
atenção do trabalho e então as vendiam por bons preços. Depois, sendo bela
como era sua Sura, acreditava que ela não estaria a salvo sem a proteção da
senhora Flávia.
Aquilo o deixou angustiado. Não havia uma vida, não havia um futuro
para eles dois naquele lugar! Precisava fugir ou comprar a sua liberdade.
Soubera que manter escravos era tão dispendioso que alguns patrícios
estavam vendendo a liberdade de alguns que juntavam dinheiro.
Mas como ele poderia juntar dinheiro, se nem ganhava nada ? Era um
círculo vicioso e sem solução.
Desanimado, Hagonah encostou-se novamente na parede e fechou os
olhos.
Agora o pouco de compensação por sua vida difícil lhe fora tirado. Os
dias que ficaria sem ver Sura mais pareceriam anos! Será que suportaria a
saudade?
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CAPÍTULO XI
Cornélia chegara pela manhã. E para que ela não se sentisse ameaçada,
Flávia mandou Nayara para os alojamentos dos escravos. Enquanto a amiga
estivesse ali, ela não deveria aparecer.
Somente uma dúvida a preocupou: será que Hagonah encontraria sua
escrava? E se a visse, perguntaria alguma coisa ?
Mas essa preocupação teve que ser afastada, pois sua amiga merecia a
atenção da sua parte. Se Hagonah se encantasse com Nayara, era porque seu
amor não era digno dela. Nenhum homem poderia substituir Hagonah em seu
coração, então esperava que ninguém pudesse substitui-la no coração dele,
também.
Caminhou com a amiga pelos jardins e de tarde foram banhar-se nas
termas. Lá , Flávia lembrou-se dos momentos que vivera com Hagonah e
algumas vezes pegava-se distraída, sem ouvir os comentários da amiga. Não
raro, Cornélia teve que acordá-la de seus devaneios várias vezes.
Enquanto isso, Otávius entabulava conversação com Plínio.
_Nosso querido César pretende iniciar nova campanha militar, acredito
que seja para distrair-se um pouco. Dessa vez, pretende acompanhar seus
soldados e comandá-los ele mesmo _ dizia Otávius.
_E tu achas que conseguirá? Não vejo razão para novas campanhas.
Otávius deu de ombros.
_Que fazer para convencê-lo do contrário? Depois, talvez nem inicie
campanha alguma. São só especulações. E os novos escravos, estão sendo
vantajosos para ti?
_Ainda não me ocupei diretamente de um em particular. Parece que
anda um tanto atarefado. Como é um homem forte, não posso ainda fazer o
que desejo, pois preciso dele para o campo. A colheita começou, tu o sabes.
Mas depois ...
_Falas daquele bárbaro que tentou proteger aquela jovem de cabelos de
neve?
_Sim, este mesmo. Mas ele não perde por esperar. Terei tempo. E tu,
não queres mesmo ver os progressos que Flávia fez com a gata selvagem que
me fizeste comprar para ti?
Otávius remexeu-se na cadeira.
_Nem me fales! Cornélia não me deixa em paz desde o dia em que tu
mencionastes esta moça.
Plínio riu com gosto.
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_Pois se a visses agora, com certeza ela teria muito que se preocupar. A
mulher é muito bonita, realmente. Mas tem um olhar maligno, assustador.
Toda vez que me olha, parece ver o meu íntimo. É desagradável, deveras. Por
isso ainda não a tive. Não me agrada que mulheres sondem minha mente
enquanto dormem comigo!
Otávius riu.
_Deve ser tua imaginação, meu caro!
Estavam ainda a confabular quando as mulheres entraram.
_Ora, mas que coisa agradável de se ver! Dois homens a divertirem-se!
Com certeza falam de nós mulheres. Somente o nosso sexo frágil os faz rir
dessa maneira maliciosa! _ falou Cornélia, parando atrás de Otávius e
enlaçando-lhe o pescoço.
_E existe coisa melhor, minha cara? Não passam as mulheres toda a
vida a tentar nos conquistar? Então?
Flávia sorriu. Jamais ela brincara assim com Plínio. Nem mesmo
chegava perto dele em público.
_Eu e Cornélia estávamos nos banhos. A tarde está agradável e a água
deliciosa. Sentimos tua falta, Otávius...
Plínio fitou a esposa com uma lâmina nos olhos. Tarde demais ela
lembrou-se da desconfiança do marido em relação ao amigo.
_Outro dia. Não sou tão afeito aos banhos como Plínio. Não quer dizer
que seja mal cheiroso!
Flávia riu e seu riso feliz ecoou nos ouvidos de Plínio, que sentiu o
ciúme corroer-lhe as entranhas. Jamais ela ria assim para ele!
Levantando-se, ele aproximou-se dela e cingiu-lhe a cintura com o
braço forte. Sem que os outros percebessem, apertou-lhe as carnes,
machucando-a.
Flávia pode sentir-lhe a tensão. Não queria despertar a raiva de Plínio
sobre o amigo, ainda mais quando não havia nada entre eles. Afastando-se,
sentou-se numa cadeira e pegou uma fruta da cesta. Mordiscando-a, não pode
impedir o suco de descer-lhe pelos lábios e queixo. O gesto que fez para
limpar-se inconscientemente atraiu o olhar de Otávius e Plínio não se conteve.
_Flávia, pareces uma criança desastrada! Não sabes comer sem te
lambuzares! _ E pegando um pano de linho, passou-lhe grosseiramente sobre
o queixo. _ Não está na hora de as senhoras arrumarem-se para a ceia? Tenho
ainda alguns assuntos para tratar com Otávius. Por que não te retiras e
descansa um pouco?
Flávia levantou-se constrangida e Otávius reprovou o amigo com o
olhar. O que dera em Plínio? Tratar a esposa assim na frente dos convidados
57
era no mínimo humilhante. Mas uma olhada para Flávia o fez conter-se. Ela
pediu-lhe com os olhos que não se preocupasse.
Quando as mulheres saíram, Otávius perguntou ao amigo:
_Como pretendes conquistar o amor de tua mulher tratando-a dessa
maneira? Nenhuma esposa romana acataria tua grosseria, Plínio.
A voz de Otávius era calma e segura. Plínio olhou para ele e angustiado,
desabou sobre a cadeira, escondendo o rosto.
_Estou a enlouquecer! Vejo uma sombra a perseguir-me o tempo todo!
A sombra da traição, mas não consigo identificá-la! Flávia está diferente,
Otávius! Desde que chegou, está mais...alegre, feliz! E não sou eu a causa
dessa felicidade, tenho certeza! Toda a vez que me aproximo, ela se afasta ou
fica irritada, arredia, fria!
_Ora, parece-me que ela está contente por ter voltado para casa! Nada
mais natural, suponho.
_Não é isso. Sinto alguma coisa que não sei explicar. É como se uma
garra me apertasse o pescoço! Às vezes sinto um ódio tão grande que não
consigo conter-me! Comigo ela continua fria e impassível como sempre foi.
Não me deixa tocá-la, abraçá-la. Não quer ter um filho meu! Não sei mais o
que faço. Sura é uma boa mulher, mas não é Flávia! Eu a amo com loucura,
Otávius! É uma doença para mim!
_Calma, meu amigo. Sei bem o que dizes.
_Como sabes? Tua Cornélia te idolatra!
_Não é por Cornélia que bate o meu coração, Plínio.
_Não? Então estás apaixonado!
Otávius andou até um canto e encheu a taça de prata com vinho.
_Sim, estou apaixonado e não é por tua Flávia, garanto-te. Não que ela
não inspire qualquer homem com sua beleza. Mas a criatura que me aturde o
coração não me quer também. Que triste sina a nossa, meu amigo!
_E eu a conheço? _ Plínio estava abismado.
_Sim, tu a conhecestes. Lembras-te da mulher que teu escravo protegia?
A deusa dos cabelos de neve que mencionei?
_ Não acredito! Estás apaixonado por uma escrava bárbara! Otávius,
enlouquecestes?
_Sim, eu quase enlouqueci, mas de paixão! Em vão tentei conquistar-
lhe o coração, mas ela não cede aos meus avanços!
_Ora, mas uma escrava não deve dar permissão para ser cortejada.
Toma-a para ti e pronto!
Otávius riu, amargo. Olhou o fundo do cálice e tornou a enchê-lo.
_E tu , Plínio? É suficiente para ti possuir somente o corpo de tua
Flávia?
58
Plínio calou-se.
_Mas uma escrava, Otávius? Como podes amar a uma escrava? Não
significa nada!
Plínio arrepiou-se ante a idéia.
_E se fosse tua Flávia a escrava, meu amigo? O que farias?
_Impossível! Flávia jamais seria uma escrava!
_É teu preconceito, Plínio! Mas vamos deixar de lado essa conversa.
Isobel não me quer e eu tenho que me conformar. Flávia não o quer e tu tens
que te conformar!
_Nunca! Ela vai me amar, verás! Flávia ainda vai beijar-me os pés!
E saindo da sala, aborrecido com o amigo que julgava louco, foi para
seus aposentos.
Otávius riu amargurado e sorveu o resto do vinho. Que destino estranho
aquele! Daria tudo para não ser romano agora e poder estar ao lado de Isobel,
ainda que escravo.
Pousando o cálice na mesa, seguiu também rumo aos seus aposentos.
* * *
No aposento das mulheres, Cornélia consolava a amiga.
Sentada no leito, Flávia deixou algumas lágrimas de humilhação
caírem-lhe pela face.
_Oh, pobrezinha! Não fiques assim... Estás muito sensível, querida!
Cornélia dava-lhe palmadinhas nas costas.
_Não sei como posso suportar mais tempo os modos de Plínio,
Cornélia! Tu ao menos tens um marido que é um amor, mas eu...
Flávia estava mesmo sensível, mas era por causa de Hagonah. Ele lhe
ensinara o que era o amor, como deveria ser o relacionamento entre um
homem e uma mulher. Abominava a idéia de dar um filho a Plínio, mas não a
Hagonah. Desejaria perpetuar seu amor num filho, para completar sua
felicidade! Seria a materialização de seus sonhos românticos.
Mas não podia sequer sonhar com uma vida assim! Era patrícia romana,
rica e de uma família tradicional, e ele, apenas um servo!
A esse pensamento, desatou a chorar. Seu mundo parecia desabar! Onde
estaria ele agora? Sofrendo na colheita? Dormindo em condições abjetas?
Como estaria Hagonah?
59
Isso tudo a fizera infeliz. Precisava vê-lo! Tinha que vê-lo! Ele passara a
ser o seu ar e a sua felicidade! Ainda que por momentos roubados, valiam a
pena o sacrifício para tê-lo para si!
Mas Cornélia não entendia. Apenas consolava amiga.
Depois de acalmar-se, Flávia resolveu que estava na hora de
arrumarem-se para o jantar.
Otávius trouxera um jovem artista que tocaria a lira para eles àquela
noite e algumas dançarinas do oriente. Seria bom um pouco de diversão.
_Perdoa-me, Cornélia. Não sei por que estou assim. Sempre ouvi coisas
de Plínio, mas hoje encontrou-me desprevenida. Teu Otávius é um bom
marido e tu tens sorte.
Cornélia levantou-se com uma expressão dolorida. Depois, pegou a
escova sobre o aparador e ficou a manuseá-la.
_Tu não sabes de nada, Flávia. Não fazes idéia de minha vida com
Otávius.
_O que tens, Cornélia? _ perguntou Flávia, aproximando-se preocupada.
_Não é nada, deixa. São cismas tolas. Diga-me, apesar de tudo, Plínio é
um homem apaixonado , não é?
_Antes não o fosse!
_Pois sim. Meu Otávius não se lembra mais de mim. Achas que estou
velha, Flávia?
_É claro que não! Só tens trinta anos, como podes ser velha? _ Ela
lembrou-se indignada da conversa com Plínio outro dia.
_Será que perdi o encanto? Meu marido não se importa mais comigo.
Oh, ele é muito carinhoso, gentil e não me deixa faltar nada, mas não há
mais...paixão ou amor em nossas vidas. O que está acontecendo, Flávia?
Pensei que fosse por causa daquela moça, a escrava que Plínio comprou para
ele, mas não é.
Cornélia ficou um momento a pensar e logo depois sacudiu a cabeça.
_Ficarei feliz com o que tenho. Ao menos Otávius é uma excelente
companhia. Depois, sei que logo voltará para mim, como antes. Vamos nos
arrumar, Flávia. Não quero ficar a lamentar-me a noite inteira!
_Sim, minha amiga! Vamos nos arrumar e seremos as mais belas
mulheres de toda a Roma!
Flávia pensou que, se Otávius estava apaixonado como ela estava, pobre
de sua amiga Cornélia! Não sobraria muita coisa para ela. Todos tinham seus
problemas, constatou.
* * *
60
CAPÍTULO XII
Cornélia ficou ainda alguns dias. Embora Flávia gostasse da amiga, sua
presença já a estava angustiando.
Não via a hora de voltar a encontrar Hagonah.
Algumas vezes o observara de longe, dentro do carro levado por
escravos durante um passeio às plantações. Fizera questão de fechar as
cortinas para que ele não a visse. Mas só o fato de vislumbrá-lo a trabalhar na
colheita a deixara ansiosa.
Quando poderia encontrar-se com ele novamente?
Finalmente, Cornélia foi-se desejando-lhe felicidades. As noites foram
até divertidas com os diversos dançarinos e tocadores que eles trouxeram.
Mas assim que viu os carros partirem, Flávia pediu à Sura que avisasse
a Hagonah que queria vê-lo.
À tarde, lá estava ele nas termas e ela mal esperou para abraçá-lo.
Com lágrimas nos olhos de tanta saudade, Flávia o envolvia pela
cintura, tentando recuperar o tempo perdido.
_Hagonah, mal podia esperar! Estava pronta para encontrar-te de
qualquer forma se eles não fossem logo embora! Tenho tanta saudade de ti! _
ela falava.
E ele retribuía seus carinhos com paixão.
_Quase morri ao pensar que não te veria mais, que brincavas comigo
apenas! Não posso mais continuar assim, Sura! Quero casar-me contigo, quero
que sejas minha esposa!
Flávia sentia-se no céu. Ele queria casar-se com ela! Ser a esposa de
Hagonah!
Mas como? Não poderiam jamais se casar e ter filhos ou família! Ele
era um escravo e ela já era casada! Ela recusou-se a permitir que a tristeza
desfizesse a alegria daquele momento.
_Deixemos para outra hora, amor! Quero que me abraces e beijes para
compensar todo o tempo de nossa separação!
E ele a beijou. Hagonah sentia que não viveria mais um dia sem que
Sura viesse aos seus braços.
E a alegria voltou à face de Flávia.
E não passou despercebida a Plínio. Novamente ele via a esposa
cantarolando e indo para os banhos todas as tardes.
61
Um dia, Flávia perguntou a Nayara se havia visto Hagonah no
alojamento e ela respondeu que sim, mas não dera muita atenção a ele. Não
tinha muita simpatia por Hagonah. Era o filho do sumo sacerdote e eles não a
tratavam bem. Por isso, não fora até ele.
_Conheces Hagonah, senhora?
_Sim, já tive a oportunidade de vê-lo trabalhar nas termas. Mas pensei
que... sendo de tua tribo, desejarias falar com ele.
_Não, senhora. Não quero nada com ninguém de minha tribo. Minha
família agora está aqui e é a senhora e minha amiga Sura.
A resposta de Nayara a comoveu novamente. A moça realmente
tornara-se devotada e fiel.
Na verdade, a vida de Nayara na Bretanha não fora agradável. Não
comia muito bem porque não lhe davam o que comer e não sabia caçar, por
isso às vezes saía com a faca em punho para pegar algum animal pequeno que
pudesse cozinhar.
As pessoas a temiam e tripudiavam. Suja e sem conforto, passara muitas
friagens sem pele suficiente para cobrir-se. Ali tinha conforto, alimento, óleos
perfumados e uma boa cama para dormir. Os soldados não sabiam quem era e
por isso a cortejavam e ela se divertia.
A senhora Flávia ensinara-a a tratar os cabelos e a pele e sentia-se mais
bonita agora. Por que importar-se com o chefe de sua tribo, uma tribo que já
não existia?
Nayara voltou a pentear os cabelos de Flávia.
_Estais muito bonita, senhora Flávia. As cores lhe voltaram à face e vos
fazem muito bem. _ comentou ela, especulando. _Não teria nada a ver com
Hagonah, teria, senhora?
Flávia enrubesceu.
_Claro que não! Hagonah é um escravo, Nayara! Depois, sou casada,
lembras-te? _ ela respondeu, fingindo indignação.
_Hagonah era um príncipe, senhora. E antes de tudo, um belo homem!
Sabe ler e escrever e conhece muitas outras coisas. É um bom caçador
também. Ninguém manejava o arco melhor do que ele.
_Ora, pareces encantada com teu príncipe, Nayara! _ Flávia tentava
disfarçar o orgulho que sentia.
Nayara sorriu.
_E que mulher não ficaria, senhora? Em minha tribo, ele e o irmão
Hagon eram os mais cobiçados e as mães viviam a espera da escolha de
Hagonah. Mas não houve tempo. Na primavera aconteceraim os jogos e
Hagonah deveria escolher a esposa, mas fomos capturados pelos romanos .
62
Flávia, pela primeira, vez deu graças aos céus que Plínio tivesse trazido
Hagonah antes que ele se casasse. Depois percebeu o absurdo de seus
pensamentos egoístas e ficou envergonhada.
_E o irmão de Hagonah, onde está?
_Foi morto, senhora. Este era um grande guerreiro! Hagonah seria o
sacerdote, sucederia ao pai na hora certa. Mas Hagon, este sempre manuseou
as armas com destreza! Casou-se com Isobel, uma criatura saída das lendas
das florestas!
_Como assim?
_Era sacerdotisa, mas deixou o sacerdócio para casar-se com Hagon. O
amor deles era muito bonito, senhora! Mas eu via a tristeza em seu futuro.
Isobel não nasceu para ser feliz. Ao fazer sua escolha, escreveu seu destino
com sangue!
_E onde está agora? _ Flávia sabia que a moça fora comprada por um
senador, mas não podia dizer nada.
_Foi vendida, senhora. E provavelmente seu filho também.
_Ela teve filhos?
_Sim, um menino. E ele lhe foi tirado dos braços para ser vendido,
suponho. Não sei seu destino.
Deve ser horrível para uma mãe ter seu rebento arrancado de seus
braços... _ murmurou Flávia, pensando que se alguém lhe levasse o filho de
Hagonah ...
Mas o que estava pensando? Impaciente, levantou-se.
_Deixa, Nayara. Estou muito bem assim.
_Senhora...Sei que nada posso fazer para impedir o vosso destino,
mas...Podemos escolher entre fazer a coisa certa e a coisa errada. Cuidado,
senhora! O perigo paira sobre vossa cabeça. _ Nayara falava de um modo
esquisito, assustador. Parecia que nada lhe podia ser ocultado.
Flávia estremeceu.
_Não há o que temer, Nayara. Nada faço de errado e minhas escolhas
são só minhas.
_Sim, senhora. Posso retirar-me?
_Sim, podes.
Após a saída de Nayara, Flávia ficou a meditar na estranha conversa
com a escrava. Sabia que corria perigo e que fizera a escolha errada, mas...
Como saber? Não sentia que seu amor por Hagonah fosse errado! Muito
pelo contrário. Um sentimento daqueles que a aproximava dos deuses não
podia ser tão execrando! Mas a mentira...
Se Hagonah descobrisse que mentia para ele, o que aconteceria? Será
que o perderia? Não podia sequer pensar nessa possibilidade! Mas até quando
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carregaria esse fardo? Até que seu amor acabasse, como um capricho? Até
quando pretendia enganá-lo? Ele desejava casar-se com ela e como impedí-lo
ou dissuadi-lo do intento?
Haveria um momento em que ele teria que conhecer a senhora Flávia. E
o que faria?
Não, não queria pensar naquelas coisas que a angustiavam! Quando
acontecessem, veria o que fazer.
64
CAPÍTULO XIII
Flávia e Hagonah continuavam os encontros clandestinos. E cada vez a
paixão que os unia fortalecia-se mais.
Ela já não suportava a aproximação de Plínio e fingia-se doente para
que ele não fosse aos seus aposentos. Quem gostava era Sura que, sabedora do
amor de sua senhora pelo escravo, procurava entreter mais o seu amor,
desdobrando-se em carinhos e dedicação.
Mas Plínio não estava satisfeito com esse arranjo. Esperava que Flávia
lhe desse a notícia de sua gravidez a qualquer momento, contudo, ela não lhe
presenteava com a novidade. Será que não era homem o suficiente para
colocar sua semente no ventre de sua esposa?
Como um animal enjaulado, estava irritadiço e demonstrava isso
agredindo os escravos. Naquele dia em especial, resolveu que era hora de
procurar Hagonah, o escravo insolente.
A inatividade e a vida sedentária a qual não estava acostumado
bombardeava-o com energias de sobra, estagnadas pela falta de exercícios
físicos. Seria uma boa oportunidade de e exercitar...
Passeando pela lavoura, descobriu-o nas plantações a arar a terra. Ficou
a observar o homem forte e queimado pelo sol e sentiu despeito pela
juventude e pela plástica do bárbaro.
Chamando Suetônio, pediu que o trouxesse até ele. Especialmente
entediado, não pouparia o homem da desforra. Seria sua vingança e ao mesmo
tempo, sua diversão.
Hagonah fitou Suetônio com surpresa ao ver para onde o estava
levando. Apreensivo, observou o romano a esperá-lo com um pequeno chicote
nas mãos. O objeto , quando em poder de Suetônio não o preocupava, mas nas
mãos grandes de Plínio...
Parando à frente dele, Hagonah esperou com o maxilar apertado,
tentando não demonstrar sua tensão. O que quereria Plínio com ele?
_Ora, mas se não é o escravo insolente que come da minha comida e
dorme em meus alojamentos! _ começou Plínio, rodeando-o e avaliando-o .
Como se não soubesse! Não fora ele mesmo que o comprara? pensou
Hagonah.
A mordacidade de Plínio o preocupou ainda mais. Boa coisa não
resultaria daquele encontro.
_Como te chamas, escravo?
65
_Hagonah.
_Hagonah, meu senhor!
_Hagonah, meu senhor.
Hagonah continuava a olhar firmemente para frente, o maxilar travado.
Todo o corpo estava tenso como as cordas de uma harpa.
Plínio parou às suas costas.
_Sim, um bom escravo este. Forte, costas largas. ..Muito bom para o
trabalho. Ele está se saindo bem, Suetônio?
Suetônio estremeceu. Temia o tom do centurião, pois já o conhecia o
suficiente para saber as conseqüências daquela avaliação.
Depois da inicial rebeldia, Hagonah tornara-se um bom escravo.
Obediente e calmo, não tinha preguiça de trabalhar e colaborava com tudo.
Depois, descobrir que o bárbaro era versado em números fora uma surpresa
agradável e muito útil para Suetônio. Não raras foram as vezes em que o velho
administrador, por não enxergar direito durante à noite, pedira ajuda de
Hagonah em seus livros de contas. Depois, a senhora Flávia o tinha em alta
estima por seu trabalho nas “piscinas”.
“Não, não era mesmo bom presságio aquele encontro com o senhor!”,
lamentou o velho.
_Sim, senhor. Tem sido muito útil e bom trabalhador, senhor...
Plínio balançou a cabeça concordando, mas de repente, com uma fúria
incontrolável e imprevisível, empunhou o chicote e atingiu as costas de
Hagonah, fazendo-o inclinar-se para frente, mais surpreso que dolorido.
_Senhor! Por que o punes? _ perguntou Suetônio, com olhos
arregalados.
_Para que se lembre de quem é seu senhor! _ E tornou a cortar-lhe as
costas como chicote. _Quero que te lembres que jamais deve tocar num
romano, bárbaro! Quero que te lembres que jamais esqueci a afronta que me
fizeste! E quero que te lembres da minha comiseração e piedade ao recolher-te
em minhas terras e ao alimentar-te com minha comida! Agora, ajoelha e pede
perdão ao teu senhor!
Hagonah mordia o lábio inferior, tentando suportar a dor nas costas. Seu
orgulho ainda era muito forte e não havia sido abatido pelo chicote de Plínio.
Seus joelhos recusavam-se a dobrar-se.
Plínio, vendo que ele não obedecia, tornou a chicotear-lhe, gritando para
que dobrasse os joelhos. Incontrolável fúria o fazia torturar cada vez mais o
homem, atingindo-o vezes sem conta, perdendo a noção da realidade.
Mas Hagonah, já entontecido e soltando pequenos gemidos, ainda
mantinha-se de pé. Usando tudo o que aprendera com seu pai, procurava não
sentir o ardor terrível que o levava à loucura. Mas seus joelhos não se
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dobrariam para o romano. Ainda que morresse, não se ajoelharia diante de
Plínio Lúcius!
_Desgraçado, infame! Tu não vais ajoelhar-te e pedir-me perdão?
Então, toma! _ gritava Plínio.
Todos os outros escravos pararam de trabalhar e alguns ficaram
assustados com a fúria do patrão. Outros, também da tribo de Hagonah,
sentiam revolta pela crueldade do romano.
_Senhor, vais matar vosso escravo! Então não prestará mais para nada,
senhor ! _ Suetônio tentava conter a fúria enlouquecida de Plínio, sentindo que
perderia seu ajudante.
O centurião suava a bicas pelo esforço empregado. Açoitava o bárbaro
sem conscientemente saber que o punia por causa de sua traição. Era um
reencontro onde o perdão estava longe de ser concedido.
Tagar espancava Tanarim com a fúria acumulada de um passado
remoto, onde velhos ódios incendiavam-lhe a alma. O que escapava à
memória do corpo, não escapava à memória do Espírito.
Com o braço já cansado porém, viu Hagonah desequilibrar-se e cair,
apoiando-se num dos joelhos.
Aparentemente mais cansado do que satisfeito, deu um basta à punição.
Sua sede de vingança havia se esgotado, por hora.
_Cuida dele! Passa sal grosso nas feridas e quero que volte a trabalhar
amanhã mesmo! _ Falou Plínio, vendo que o homem apenas balouçava, sem
cair. Intimamente impressionado com a resistência do bárbaro, retirou-se
enrolando o chicote nas mãos doloridas.
Hagonah parecia ter esperado pela partida de Plínio para desabar ao
chão, inconsciente. Foi carregado até o alojamento por seus homens. Eles o
admiraram pela coragem e resistência. O filho do sumo sacerdote era digno de
sustentar seu título de líder. Não se humilhara e nem à sua tribo pedindo
clemência ao romano! Dali por diante, Hagonah seria respeitado por todos
eles. Não eram muitos, uns cinco talvez, mas homens fortes e bravos.
Naquela tarde, Hagonah não foi às piscinas e Flávia o esperou
inutilmente.
Ao voltar para casa, cogitava no que havia acontecido para impedir o
seu amor de comparecer ao encontro. Preocupada, pediu a Nayara que fosse
vê-lo.
A feiticeira foi e trouxe a terrível notícia de que Hagonah havia sido
torturado por seu esposo e estava muito mal.
Desesperada, Flávia quis ir até os alojamentos, mas Nayara e Sura a
impediram.
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Se o senhor soubesse, elas argumentavam, seria a morte de Hagonah! E
talvez a sua própria!
_Pelo amor que me tens, Nayara _ pedia ela, com o rosto banhado em
lágrimas. _ Vai e cuida dele! Sei que não gostas muito de Hagonah, mas por
mim... Cuida dele com teus remédios!
_Sim, eu irei, senhora! Não vos tortureis mais! Eu cuidarei de Hagonah
pelo amor que tenho a vós!
E Nayara foi. Com suas pastas de ervas, pensava as feridas de Hagonah.
Mas no alojamento, os outros homens de sua tribo afastaram-se dela. Haviam
reconhecido a feiticeira que tanto temiam.
Hagonah, nos raros momentos de lucidez, entrevia-lhe o rosto e
lembrava-se dela.
_Sois Nayara, a bruxa! Que fazes comigo? Queres meu espírito? _
perguntava, delirando.
_Não, Hagonah. Venho porque minha senhora mandou. Quer que fiques
curado, só isso. Não vim por ti, mas por ela.
E Hagonah tornava a cair na escuridão.
A febre começou a aquecer-lhe o corpo e Nayara lutou dois dias para
deter-lhe a infecção. Depois disso, todos no alojamento passaram admirar a
moça e sua tenacidade.
Daquele dia em diante, Nayara tornou-se a enfermeira devotada de
todos que sofriam no alojamento. Eles passaram a respeitá-la por sua
dedicação silenciosa e até Hagonah reconheceu o valor de seus
conhecimentos.
Flávia estava deprimida, sem notícias de seu amado. E Plínio estranhou
seu comportamento triste e arredio.
_O que tens, Flávia? _ perguntou ele uma noite durante a ceia. Vendo
que ela mal comia uma fruta e estava distraída, especulava sobre as causas de
seu mutismo.
_Não tenho fome, somente isso. Vais obrigar-me a comer também,
Plínio?
_Nunca te obriguei a comer. Acaso tua falta de apetite não tem uma
razão específica? Não te sentes indisposta de um jeito diferente?
_O que queres dizer com isso?
_Ora...tuas regras não vieram? _ perguntou de chofre o marido.
Flávia ficou rubra de vergonha. Levantando-se, fitou-o indignada.
_Não estou grávida de ti, se é isso que queres saber. Já disse, Plínio, que
não terei um filho teu! Agora vou retirar-me. Não me sinto disposta.
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Plínio ficou observando Flávia retirar-se até tornar-se uma mancha azul
no corredor. Mordendo uma ameixa suculenta, ele considerava o
comportamento da esposa.
_Sura! _ gritou.
Sura atendeu-o prontamente.
_Vem cá, minha bela núbia – falou ele, abrindo-lhe os braços. _Ao
menos tu me queres!
_Sim, meu senhor!
_Usa tuas mãos mágicas e desfaz os nós de meu pescoço, Sura.
Sura começou a massagear-lhe as costas.
_Ah, minha boa e fiel Sura... _ gemia Plínio sob os dedos da núbia.
_Quisera que Flávia fosse tão carinhosa quanto tu! Diz-me, conheces tua
senhora há muito tempo, não é?
_Sim, senhor. Desde pequena. O pai da senhora comprou-me quando
era menina e deu-me à senhora para servi-la.
_E de certo a estimas muito.
_Sim, meu senhor. _Onde quereria Plínio chegar com aquelas
perguntas?
_Então deves ouvir confidências de tua senhora.
Sura sobressaltou-se.
De repente, ele a pegou e a trouxe para o colo, segurando seu queixo.
_E tu deves fidelidade a quem, Sura? A mim, a quem amas ou à Flávia?
_Por que perguntas , senhor? _ Sura estava aflita. Jamais poderia trair a
senhora Flávia, jamais!
_Quero que me respondas, Sura: o teu amor por mim é verdadeiro?
_Sim, meu senhor!
_Então, queres ver-me feliz. Contarias para mim as confidências de tua
senhora?
_Senhor, por favor! Não posso quebrar o meu juramento de fidelidade à
senhora Flávia! Depois, ela não tem segredos, senhor!
Plínio aborreceu-se e empurrou a negra para o chão.
_Mulheres! _Resmungou, levantando-se. _ Sempre fiéis umas às outras!
Vai, Sura! Não te quero esta noite. Deixa-me que preciso pensar!
Sura levantou-se e ainda hesitou, mas a um grito impaciente de Plínio,
correu apavorada.
Flávia tinha segredos, podia sentir. E iria descobri-los.
Enchendo um cálice com vinho, engoliu-o de uma vez e rumou pelo
corredor.
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CAPÍTULO XIV
A cidade de Roma estava agitada pelos festejos da semana. Haveria um
programa especial de jogos e pães seriam distribuídos como dantes, nos velhos
espetáculos do Coliseu.
Nos dias que se seguiam, as perseguições aos cristãos ainda eram a
atração principal dos jogos. Logo o cristianismo tomaria conta de Roma e o
novo imperador , quando subisse ao poder, reconheceria esse fato, mas ao
tempo de nossa história, os massacres nos circos ainda eram entretenimento
para os romanos.
Naquele dia, uma leva de famigerados da nova doutrina seria sacrificada
aos leões no Coliseu.
Em casa do senador romano Severus Crassus, homem correto e seguidor
dos bons costumes, lamentava-se o ocorrido.
O velho Severus tornara-se cristão sem que seus amigos o soubessem.
Durante a noite, seguia disfarçado para ouvir as preleções dos enviados de
Deus e suas filhas o seguiam, especialmente a jovem adotada por ele.
Era Isobel, que o seguia na condição de filha do coração. A cunhada de
Hagonah tornara-se também cristã e fora a única maneira de superar os
sofrimentos que a oprimiam.
Ao ser comprada por Severus, este logo a libertou como era seu
costume. Sem ter para onde ir, Isobel decidiu trabalhar pela comida e um lugar
para dormir enquanto procuraria por seu filho.
Severus, reconhecendo o caráter plácido e meigo da moça, logo deixou-
se cativar por seus cuidados e introduziu-a no cristianismo. Para sua
segurança, ninguém deveria saber de seus feitos e Isobel o respeitou.
Junto com as filhas do senador, perambulavam pelas ruas e tentavam
assistir aos cristãos desvalidos que havia em Roma.
Iluminada pela nova doutrina, a moça sentia o espírito leve e a paz
refletia-se em seu semblante. Ao ouvir os cânticos e as preleções dos cristãos,
identificou-se com os postulados de Jesus como se já os conhecessem de há
muito.
O senhor Otávius, da guarda pessoal de César, tomado de amores por
ela, tentava a todo custo conquistá-la. Mas Isobel era firme em seus propósitos
e amava a memória do marido morto. Não tinha ódio no coração, mas a
saudade permanecia em seu peito.
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Incapaz de conquistar-lhe o amor, Otávius ficava cada vez mais
frustrado e não perdia a oportunidade em abordá-la nas ruas.
Nesse dia em especial, sabedor de sua doutrina proibida, ele a seguiu
novamente e acompanhou-a pelas ruas apinhadas.
_Isobel, sei que és livre e desimpedida. Por que não me amas?
_Já vos falei, senhor Otávius. Meu coração não mais me pertence. Em
minha vida só há um objetivo, servir ao meu Senhor e encontrar meu filho
perdido.
_Mas já te disse que tenho procurado teu filho e não o tenho
encontrado! Sabes que teria satisfação em devolver-te a criança se pudesse.
Amas-me ao menos um pouquinho? Estou a mendigar teus sentimentos,
Isobel! Eu, um romano!
Ela parou e fitou-o com os olhos azuis mais límpidos que já vira.
_Somos todos iguais perante o Senhor, senhor Otávius. Não há romanos
ou bárbaros, somente espíritos criados por Deus.
Voltando a andar, ele tornou a segui-la.
_Sabes que não posso aceitar tua doutrina e depois ela é nefanda, renega
aos deuses!
_Só há um Deus todo poderoso e Criador de todas as coisas! Não farás
imagens e não terás outros deuses diante de mim, é o que diz a Lei.
_Vês? Nega os deuses por um só! Não deixa que outros romanos te
ouçam, Isobel! Temo por ti! Sabes que uma leva de cristãos será sacrificada
nos jogos desta tarde e não quero ver-te entre eles!
_Tenho muita dor em meu coração pelos irmãos que darão seu
testemunho pelo Senhor de uma forma tão triste e desumanna. Mas lamento
mais por aqueles que serão responsáveis por tal infortúnio. Não precisava ser
assim! O Senhor quer que o amor e a paz esteja entre os homens, não a morte
e a iniquidade. Mas se um dia eu tiver que dar meu testemunho de fé, eu o
farei com alegria no coração, pois Ele terá me escolhido para servi-lo.
_É isso o que não aceito na tua doutrina famigerada! Os cristãos
entregam-se à morte cantando de um jeito mórbido e sem lutar pela vida,
como se os deuses não tivessem nos dado um bem tão precioso! Teu Deus é
sedento de sangue, Isobel! Os deuses romanos celebram a vida!
Ela sorriu, compreendendo a limitação do entendimento romano.
_Não, Otávius. É sedento de amor. Mas os homens precisam de
testemunhos para que a Verdade se estabeleça entre eles. Nenhuma idéia no
campo do espírito se instala entre os homens sem provocar distúrbios ou
mortes. Depois, não há morte, mas Vida. Uma vida eterna e verdadeira!
Cansado daquelas considerações filosóficas, Otávius resolveu mudar de
assunto.
71
_Isobel, tenho algo a dizer-te: gostarias de reencontrar teu cunhado,
Hagonah?
Isobel parou, emocionando-se.
_Hagonah? Sabeis onde ele está?
_Sim, eu o sei. E poderia levar-te até ele, se o quiseres. Mas terás que
vir sozinha comigo. Não me temes?
_Não, não vos temo, senhor Otávius. Não me desejarias fazer mal, se
me amais como dizeis.
Otávius fitou-lhe o semblante confiante. Será que ela não se dava conta
do perigo de sua beleza? Não sabia que um homem como ele talvez não
resistisse aos seus encantos?
_Concordarias em vir comigo, então?
_Eu teria que pedir a permissão ao senhor Severus, primeiro. E a
senhora Cornélia, vossa esposa? Não iria também?
Otávius constrangeu-se e virou o rosto.
_Cornélia, infelizmente não se sente disposta e não iria conosco. Como
te disse, terias que confiar em mim.
Isobel o observou alguns segundos e depois concordou.
_Sim, eu gostaria de ir convosco, senhor Otávius.
_Então poderíamos partir amanhã, se o quiseres.
_Sim, eu gostaria. Tenho muita saudade de Hagonah.
_Ele te é caro ao coração? _ uma pontinha de ciúme atingiu-lhe o peito.
_Sim, muito caro! É meu irmão e eu o amo também.
_Um irmão?
_Sim. Não temais, senhor Otávius. Meu coração pertence ao meu
marido e a mais ninguém.
_Não sei o que é pior: se um “irmão” vivo ou um marido morto.
Ela sorriu-lhe e seu semblante iluminou-se. Isobel era como o fogo, cuja
claridade e calor atraíam as mariposas para a morte, pensou ele, admirado.
_Agora, deixai-me ir. Tenho muito que fazer, senhor. Esta cesta está a
pesar-me e tenho que distribuir estes alimentos antes da refeição. As crianças
devem estar famintas!
Deixando-a ir, Otávius anteviu os gozos da viagem que fariam sozinhos.
Teria coragem de macular o amor que sentia por Isobel?
Era um homem, um romano apaixonado! Os deuses talvez o punissem
por não usufruir do amor.
72
CAPITULO XV
Flávia aguardava ansiosa o restabelecimento de Hagonah e quando o
encontrou à beira das piscinas, seu coração quase parou. Os olhos encheram-
se de lágrimas. Ele estava muito pálido e mais magro.
Hagonah levantou-se esperou que ela se aproximasse, mas não a
abraçou. Ficou olhando para ela, magoado.
Flávia intentou tocar-lhe o rosto, mas ele a impediu, segurando-lhe os
pulsos.
_O que foi? O que aconteceu, Hagonah? O que tens?_ ela perguntou,
angustiada.
_ Soubestes o que me aconteceu, não soubestes?
_Sim, eu o soube. Eu sinto tanto por ti, meu amor! Queria tanto estar ao
teu lado e pensar tuas feridas! _ ela falou, ansiosa.
Hagonah fitou-lhe os olhos marejados avaliando a veracidade de suas
palavras.
_E por que não o fizestes? O alojamento não é para ti, suponho – ele
retrucou, mordaz.
Então era isso! Hagonah estava magoado por ela não ter ido vê-lo! Se
ele soubesse!
Ela o abraçou forte e encostou o rosto em seu peito.
_Tu não podes adivinhar meu tormento por não ir ver-te, Hagonah!
Mandei...pedi à Nayara que fosse cuidar de ti porque sabia que ela poderia
curar-te! Não pude ir, meu amor! Não porque não o quisesse, mas porque não
posso ir aos alojamentos! Minha senhora não permite!
Flávia foi obrigada a mentir novamente. Até quando teria que fingir ser
outra pessoa?
Ele relutou, mas depois abraçou-a com força. Beijou-lhe os cabelos e
depois os olhos.
_Angustiei-me porque pensei que não me amavas como te amo, Sura!
Tenho sempre o receio de que vais me abandonar, que teus sentimentos não
passam de capricho! E quando desapareces, atormento-me pensando se vais
voltar aos meus braços novamente! _ Ele murmurava de encontra à sua fronte.
_Oh, não temas o impossível, Hagonah! Amo-te mais que minha vida,
não o podes imaginar!
Ele lhe pegou o rosto e depois de sondar-lhe a expressão, beijou-lhe os
lábios, suavemente.
Depois, subindo as pedras, esconderam-se em seu lugar preferido. Ali
estariam seguros caso alguém aparecesse de repente.
73
Ao tirar-lhe a túnica ela pode ver a extensão do estrago que o chicote
de Plínio fizera-lhe nas costas. As feridas não cicatrizadas ainda deviam doer
um bocado quando ele flexionava os músculos.
Sem poder evitar as lágrimas, Flávia passava os dedos delicadamente
em volta das feridas, como se assim pudesse curá-las.
_Por quê? _ perguntou num fio de voz. _ Por que Plínio fez isso?
_Ele estava louco de ódio, Sura. Uma vez, quando fui capturado, o
centurião açoitou-me com seu chicote maldito e eu o agarrei e o tirei do
cavalo, jogando-o ao chão. Por isso comprou-me, para poder vingar-se de
mim.
Flávia levou a mão à boca. Parecia que o destino conspirava contra eles,
de um jeito estranho. Então desde o início Plínio já não gostava de Hagonah.
Imaginava o que ele faria se descobrisse sua traição!
Hagonah pegou-lhe as mãos frias e trêmulas.
_Não te atormentes mais com isso, Sura! Já não dói mais e vou procurar
ficar longe do senhor de agora em diante.
Flávia quase riu pela ironia. Hagonah não sabia o quanto estava perto de
Plínio! E por sua causa!
Ela passou-lhe a mão no rosto áspero, arranhando os dedos com a barba
crescida.
_Talvez fosse melhor afastar-me de ti, meu querido. Para o teu bem. Se
Plí...se o senhor descobrir que estamos juntos...
_Não! Por que teria ele que incomodar-se? Tu és escrava como eu!
_Mas ele não deseja ver-te feliz, Hagonah ! E jamais permitiria que
ficássemos juntos.
_Não, Sura! Não me abandones! Prefiro suportar os chicotes do
centurião a perder-te!
_Mas é o que terás se ele descobrir tudo!
_Mas não quero, não posso abdicar de ti ! Vamos fugir, Sura! Tenho
homens que nos ajudarão e poderemos voltar para a Bretanha! Começaremos
uma vida nova!
Flávia o olhava, estarrecida. Se eles fugissem não iriam muito longe.
Plínio a perseguiria até os confins da terra! Ela o abraçou, aflita.
_Vamos ficar juntos até o dia que tudo se acabar, Hagonah! Não exijas
de mim aquilo que não te posso oferecer!
Ele a abraçou também, um tanto insatisfeito. Mas a convenceria noutra
hora quando tivesse um plano de fuga.
Naquele momento, só desejava matar a imensa saudade que sentia.
Flávia revolvia a gaveta procurando o remédio que Nayara lhe dera. Ao
encontrá-lo, percebeu que acabara.
74
Que fazer agora? Precisava do remédio ou correria o risco de
engravidar. Plínio não a procurara mais, contudo mantinha os encontros
amorosos com Hagonah. Um filho dele não lhe era desagradável, mas sua
situação não permitia tais acidentes.
Procurando por Nayara, pediu-lhe que lhe desse outra porção, mas a
moça lhe dissera que teriam que procurar as raízes, pois não tinham mais delas
nos jardins.
Um tanto aflita, Flávia decidiu que procurariam fora. Sabia de um
herbanário na cidade e Nayara deveria ir até lá com outro escravo e um guarda
para comprar as ervas.
Quando Nayara saiu, Plínio perguntou-lhe para onde ia a escrava.
_Ela vai comprar alguns apetrechos para mim. Acabaram-se os óleos e
sais para meus banhos.
_Por que não me dissestes? Também vou para a cidade . Comemorações
especiais acontecerão durante toda a semana e pretendo ficar lá alguns dias.
Queres ir também? Sei que não gostas das festas em Roma, por isso não
mencionei antes.
_Não, fizeste bem. Não desejo ir a festas. Quero ficar aqui no campo,
onde é mais tranqüilo.
_Ah, sim? Voltarei logo, não sintas saudades de mim.
_Não sentirei, Plínio. Estou acostumada às tuas andanças.
Plínio fitou-a contrariado. Não esperava outra coisa de Flávia. Não era
dada a demonstrações de afeto a sua gélida esposa.
_Queres que te traga alguma coisa?
_Não, Nayara já as foi comprar, obrigada. Quando vais partir?
_Daqui há uma hora.
_Espero que te divirtas, Plínio.
_Eu vou me divertir, o que não faço nesta casa sorumbática! Estou
cansado destas plantações e deste isolamento! Meus braços precisam de ação e
estou ficando impaciente!
_Vá às lutas. Assim poderás descarregar teus instintos bélicos.
_Sim, é o que farei. Haverá uma corrida de bigas e pretendo participar.
Não te preocupes, pois não vou partir o pescoço, se não é o que queres! _
completou, mordaz.
Flávia não respondeu e Plínio saiu pisando forte.
Logo depois, viu o carro dourado partir em disparada. Àquela
velocidade, era impressionante que ele não quebrasse mesmo o pescoço.
75
CAPÍTULO XVI
Plínio fora-se e ela estava sozinha! O pensamento provocou-lhe um
calafrio de expectativa. Poderia ficar com Hagonah sem temer o marido.
Ou não? Esquecera-se de que Plínio sempre deixava espiões por toda
parte! Talvez agora mesmo é que tivesse que ter cuidado.
Mas era um alívio ficar livre de Plínio por alguns dias. Assim Hagonah
estaria a salvo. Pensou seriamente na necessidade dele em fugir.
Talvez fosse o melhor, uma vez que Plínio poderia sempre castigá-lo
até provocar uma tragédia. Mas como viver sem ele? Não lhe importava que
fosse escravo ou plebeu, só lhe importava o seu amor. Até algum tempo atrás,
se alguém lhe dissesse que se apaixonaria perdidamente e que não respeitaria
mais suas tradições e seus costumes moralistas, agindo como uma mulher sem
escrúpulos, ela não teria acreditado. Mas agora, não só não respeitava o laço
matrimonial quanto até mentia!
A verdade era que diante do amor que sentia por Hagonah, não havia
barreiras que a impedisse de ficarem juntos. E ela fazia sua própria moral.
Plínio não vivia contando suas aventuras por todo lado? Ele não
respeitava o matrimônio, porque ela o faria? Afinal, seu casamento fora
arranjado por seu pai e seu marido, sem seu consentimento ou participação.
Esta justificativa não era suficiente para aplacar seus remorsos, mas não
tinha forças para negar-se ao prazer da companhia de Hagonah!
Não queria perturbar-se com isso, agora! Somente desejava viver aquele
amor sem fronteiras e sem preconceitos!
Durante o jantar, pediu à Sura que lhe fizesse companhia e cantasse
alguma coisa de sua terra distante. Depois, vendo a noite tão bela, pediu-lhe
outro favor: que avisasse a Hagonah que ela o esperava nas termas quando a
lua estivesse alta no céu.
_Mas...senhora Flávia! Não seria perigoso demais? E se o senhor deixou
alguém a espionar-vos? O que poderá acontecer?
_Ninguém saberá, Sura. Depois, já estará tão tarde que eles pensarão
que fui dormir. Vou vestir-me como tu e ninguém poderá reconhecer-me.
_E se Hagonah não puder vir?
_Tu deves entreter os soldados com tuas histórias. Antes era Nayara que
o fazia, agora serás tu, pois ela foi até a cidade, como mandei.
_Está bem, senhora. Sabeis que não me agrada muito, pois temo por
vossa segurança. Mas farei o que me pedis. Depois, até que gosto de ficar no
alojamento. Os soldados são bem divertidos!
76
Sura riu e retirou-se para cumprir o que prometera.
Flávia vestiu uma roupa colorida e amarrou-a no corpo como a núbia.
Prendeu os cabelos e cobriu-os com um lenço, como um turbante. Ninguém
poderia reconhecê-la no escuro.
Correndo para as termas utilizando-se somente da luz do luar, ela
atravessou os jardins e esperou sentando-se numa pedra.
Logo os arbustos mexeram-se e Hagonah apareceu, trazendo um manto
de lã para cobri-la.
_Mas o que fazes aqui, Sura? Tua senhora não notou tua ausência?
_Não! Hoje ela está feliz. O senhor foi para Roma, assistir aos festejos
do aniversário de César.
_ Ficou feliz porque o marido partiu? Posso entender. Plínio Lúcius não
deve ser uma companhia das mais agradáveis.
_Não estás feliz por ter-me aqui ao teu lado ? Poderei ficar a noite toda
contigo!
_Estou feliz, sim! Mas também cansado de termos que nos esconder
sempre!
Ele a ajudou a subir as rochas e depois cobriu-a com o manto.
_Está um pouco frio e deves proteger-te. Agora veja uma coisa. _ Ele
pegou seus ombros virou-a. _ Não é bonito?
Flávia soltou uma exclamação de surpresa. O céu coalhado de estrelas
parecia um manto aveludado e o caminho de leite podia ser observado em
todo o seu esplendor.
_Oh, mas é tão lindo! _ exclamou, feliz por estar ali nos braços de
Hagonah.
_Na minha terra, à época dos festejos da colheita, todos dançavam sob o
céu estrelado e cantavam ao redor das fogueiras. Os cordeiros assavam na
brasa e vinho de arroz era servido em cerimônia especial. Os sacerdotes
reuniam-se depois de oferecerem seus sacrifícios à deusa Mãe e apresentavam
o noivo e a noiva daquela estação! _ O tom de Hagonah era saudoso.
_Tu ias escolher tua noiva, Hagonah! Nayara disse-me que serias o
próximo homem a se casar nos festejos da colheita!
Hagonah beijou seus cabelos e a abraçou mais forte.
_Não havia ninguém para mim, minha Sura! Eu não tinha nenhum
interesse nas mulheres de minha tribo. Hoje sei porquê. E se eu não tivesse
sido preso, jamais teria conhecido a felicidade de ter-te em meus braços. Por
isso, quero que sejas minha esposa. Vou casar-me contigo aqui, diante do altar
da deusa Mãe e tomarei os meus ancestrais por testemunha de nossa união!
Flávia assustou-se e não pode falar. Um nó formara-se em sua garganta.
Poderia aceitar tal coisa? Para ela, não teria significado algum aquela
77
cerimônia, mesmo porque seus deuses eram outros. Estaria incorrendo em
mais um delito grave, dos tantos que já cometera? Mas como negar-lhe o
prazer de tal cerimônia?
Olhando para ele, não pode dizer-lhe não. E tocando-lhe o rosto, sorriu
com ternura.
Hagonah estava emocionado e ela não fazia idéia da seriedade daquele
momento. Para ele, casar-se diante da deusa Mãe era um compromisso por
toda vida! E como um dia quase fora sacerdote, sabia o que fazer. Antes seu
pai realizava as cerimônias de casamento, agora ele mesmo advogaria em
causa própria, mas pediria ao espírito do pai que abençoasse sua união.
Tirando um anel que usava no dedo mindinho, com um emblema
estranho que o identificava como sacerdote, o anel de seu pai, abençoou-o
com um pouco de água e algumas palavras que ela não compreendeu e depois
ofereceu-o a ela.
Solene, Hagonah recitou algumas palavras em sua língua melódica,
fitando-a com um brilho emocionado no olhar.
Sentindo-se envolvida por intensa magia, Flávia o observava quase
hipnotizada.
_Com este anel, torno definitiva nossa união, Sura. Quando colocá-lo
em teu dedo, serás minha para sempre, por toda eternidade! Aceitas ser minha
esposa, unida a mim por toda a tua vida?
Flávia ainda vacilou um momento, mas não vendo porque negar o amor
que os unia, respondeu:
_Sim, Hagonah, eu aceito!
Hagonah sorriu feliz e depois colocou-lhe o anel no dedo. Flávia fitou o
emblema do dragão forjado na prata. Pronto, estava feito!
Observou-o pegar algumas folhas secas e jogar no pequeno fogo que
iluminava o altar, soltando uma fumaça densa e perfumada.
_Agora, nenhum ser humano na terra ou no mundo dos espíritos poderá
nos separar, Sura. És minha esposa aconteça o que acontecer, por toda vida!
Flávia ficou assustada. Hagonah parecia levar aquela cerimônia muito a
sério! Contudo, tentou ignorar a gravidade do momento.
Era apenas uma aliança, uma promessa de amor eternizada por um
simples anel de prata. Ela o guardaria para sempre como lembrança desse
instante em que ficara feliz com a ilusão de que finalmente pertencia à
Hagonah de corpo e alma!
Naquela noite, ele plantou a semente no ventre de Flávia, a semente que
Plínio tanto desejara cultivar e não conseguira!
78
Deitados um ao lado do outro, a lua já ia alta quando Hagonah observou
que o fogo que acendera para a deusa apagara-se de repente como se tivesse
sido soprado.
Franzindo a testa, preocupou-se. Aquilo não deveria acontecer, o fogo
não deveria extinguir-se! Colocara óleo suficiente para queimar até o
amanhecer e não havia vento algum!
Olhando preocupado para uma Flávia adormecida placidamente em seu
braço, pensou no que havia ocorrido. O fogo da deusa , quando se apagava,
era um mal presságio. Será que fizera bem em casar-se com Sura sem que
ninguém mais soubesse?
Com cuidado, afastou-a de si e levantou-se, aproximando-se do altar.
Depois, ajoelhou-se e orou para a deusa com fervor, pedindo perdão se a havia
desgostado.
Estava assim concentrado, quando uma brisa suave soprou-lhe os
cabelos. Um perfume conhecido, um aroma de ervas especiais impregnou o ar.
Era o odor de seu pai! Ele o conhecia bem.
Fechando os olhos, esperou ouvir alguma coisa mais, mas não escutou
nada. Ainda aguardou um pouco e depois, levantou-se novamente sentindo um
peso no coração. Aproximando-se de Flávia, acordou-a com suavidade.
_Sura... _ murmurou, beijando-lhe a fronte.
Ela abriu os olhos e ficou feliz em vê-lo.
Por alguns segundos acreditara estar sonhando , mas Hagonah estava
ali, bem perto dela.
__Tens que partir, Sura _ falou ele, suavemente. _ Ou notarão a tua
ausência. Não quero que sofras nada por minha causa!
Ela sentou-se e tentou ajeitar os cabelos soltos e embaraçados. Ele a
ajudou a tirar as folhinhas que se prenderam na massa negra e brilhante.
_Sim, preciso ir... mas gostaria de ficar aqui contigo e em teus braços,
Hagonah!
Ele sorriu-lhe, mas no fundo um vinco de preocupação aparecia em sua
testa. Hagonah estava diferente, um pouco distante talvez. Ele ajudou-a a
levantar-se e a envolveu no manto.
_Vou ajudar-te a descer, Sura. Depois, vai correndo para casa! Tenho
um estranho pressentimento...
_Tolice, meu amor! Não há nada para te preocupares. Já disse que
Plínio não está!
_Talvez não seja Plínio o perigo, minha bela. Depois, à tarde, procurarei
por ti aqui mesmo. Agora vai! Também eu preciso voltar ao alojamento.
Flávia finalmente aquiesceu. Reconhecia que estava sendo egoísta não
pensando nas conseqüências para ele se fosse pego fora dos alojamentos.
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Despedindo com um beijo rápido, ela correu pelos jardins.
Hagonah ficou observando-a e depois voltou para o altar. Sozinho, pode
meditar melhor. Uma estranha angústia apertava-lhe o peito, mas não sabia o
que poderia ser. Orando mais uma vez, despediu-se com um ritual sagrado e
desceu, voltando ao alojamento.
Ao chegar em casa, Flávia olhou para os lados e encontrou Sura
dormindo no pátio à sua espera. Ela aproximou-se e tocou a núbia suavemente
nos ombros. Sura assustou-se e levantou-se.
_Oh, senhora! Isso são horas? Estava a atormentar-me por vossa
segurança!
_Não precisavas, Sura. Estou tão feliz, não podes ver? _ Flávia sorria
sem conter sua alegria.
_Sim, senhora. Parece que vistes o céu!
Flávia sorriu enlevada, lembrando-se do anel e da estranha cerimônia
com Hagonah.
_Vai, Sura. Não precisas acompanhar-me. Vou deitar-me
imediatamente e dormir a manhã toda!
Sura retirou-se e Flávia encaminhou-se para seu aposento. Entrando no
quarto, começara a retirar as presilhas que lhe prendiam os cabelos e
encaminhava-se para o lavabo quando uma voz a fez parar.
_Ora, mas quem volta para o leito? E deve ter-se divertido muito, a
julgar pelas horas!
Flávia sentiu que desfaleceria. O sangue fugiu-lhe das faces e seus
membros gelaram. Voltando-se assustada, não conseguiu ver a figura na
escuridão.
Plínio levantou-se do leito onde aguardava a esposa e aproximou-se
dela. Flávia estava petrificada.
Ele parou muito perto e depois pegou-lhe o queixo, apertando-o . Ela
podia sentir-lhe a tensão e também o cheiro do vinho.
_Onde estavas, querida esposa? Estavas a deitar-te com algum amante
desconhecido enquanto eu me ausentava? Não respondes? Será porque não
podes negar?
_Estás bêbado, Plínio! _ ela acusou com voz trêmula. Foi a única coisa
que lhe veio a cabeça.
_Sim, estou bêbado, mas não louco! Onde estavas, Flávia? Diz-me ou
eu sou capaz de matar-te e a teu amante!
Plínio mal podia conter sua fúria. Apertando mais o rosto de Flávia,
podia sentir-lhe os ossos quase a estalarem.
_Plínio, por favor! Estás a machucar-me! Solte-me!
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_A machucar-te? Não sabes o que posso fazer contigo, mulher infiel!
_Dizendo isso, ele a empurrou e ela caiu no chão. Logo em seguida, pegou o
chicote do cinto e brandiu-o ao seu lado.
Flávia soltou um pequeno grito e rastejou até o canto da parede,
tentando fugir do acoite.
_Plínio, estás louco! Vais mutilar-me!
_Sim? E não devia? Assim nenhum homem olharia mais para ti,
traidora!
_Eu imploro! Estás bêbado, não sabes o que fazes! Deixa-me!
Plínio ficou rubro de cólera. Sem pensar, brandiu o chicote nos ombros
de Flávia. Ela soltou outro grito, sentindo a dor lancinante .
_Não vais me responder? Com quem estavas, mulher?
_Não estava com ninguém, deixa-me! _ ainda que sofresse, jamais diria
o nome de Hagonah. Preferia a morte a delatá-lo.
Novamente ele a atingiu no outro braço.
_Diz-me, Flávia! Com quem estavas?
Ela não respondeu e ele perdeu a calma.
_Traidora! Eu vou matar-te! _ E tornou a chicotea-la. Atingindo o rosto
de Flávia, arrancou-lhe um pedaço da orelha e um rasgo enorme marcou-lhe a
face até a boca. Ela gritou e retorceu-se.
Nesse momento, Sura e Suetônio apareceram com lamparinas nas mãos
para socorrer a senhora. O velho achava que a senhora estava sendo atacada
por algum mal feitor e por isso levou um escravo forte para ajudá-lo, mas ao
ver quem era, assustou-se.
_Senhor! Sois vós! _ exclamou Sura. Vendo a senhora no chão,
compreendeu o que ocorrera e atirou-se ao seu encontro, protegendo-a com
seu corpo magro.
_Sai daí, sura! Ou vou ter que bater em ti também _ gritou Plínio, ainda
enraivecido.
_Não, meu senhor! Podeis fazer de mim o que quiseres, mas poupa a
senhora!
_Não vou poupar a maldita traidora! Manchou o meu nome, merece a
morte!
_Não, senhor! A senhora Flávia nada fez! Estava comigo, em meu
quarto, senhor!
_O que dizes?
_Sim! Estávamos com medo de ficarmos sozinhas e então ficamos
juntas até agora! Acreditai, senhor! A senhora Flávia nada fez para
envergonhar-vos!
81
Flávia sentia o rosto arder de uma maneira insuportável. Quase não
podia manter-se lúcida para ouvir o que Sura dizia. Só podia compreender que
a escrava a protegia com o corpo.
_Oh, senhor! Tende clemência! Nós somos apenas mulheres indefesas e
não podemos com homens fortes e malfeitores! Estávamos com receio e em
nossa fraqueza, unimos nossos medos, senhor! _ continuou Sura, vertendo
lágrimas para convencê-lo. _ Perdoai-me, senhor! Perdoai-me por ter
provocado tal engano!
Plínio vacilou nas pernas. O raciocínio nublado pelo álcool tornava tudo
verossímil. Será que a núbia dizia a verdade? Estaria mesmo Flávia com ela
em seus alojamentos?
_Suetônio, achas que ela diz a verdade?
O Velho apenas balançou a cabeça, concordando. Há muito que
desconfiava das saídas da senhora Flávia e seu escravo Hagonah, mas nada
pudera provar. Depois, não era mesmo da sua conta! Muitas patrícias usavam
os serviços de belos escravos, não era novidade em Roma.
Contudo, jamais falaria de suas suspeitas ao patrão. Gostava da
senhora, não desejaria a ela destino pior que a morte!
_Sim, meu senhor. Acredito em Sura. Agora deixa-nos cuidar da
senhora, por piedade... Ela está sofrendo muito, a pobrezinha!
Plínio sentiu o remorso a corroer-lhe as entranhas. Sem nada poder
fazer para remediar a situação, concordou com um gesto de cabeça e depois
saiu do quarto.
No salão de jantar, pegou outra jarra de vinho e bebeu-o diretamente.
Estava ficando louco? Aquele fantasma da traição o perseguia!
Havia retornado porque sua biga quebrara uma roda e não pudera
chegar a Roma. Pegando um dos cavalos, decidiu voltar para casa e retornar
na manhã seguinte para consertar seu carro. Chegara tarde e ao procurar
Flávia, não a encontrara e nem a Sura. Cheio de frustração e desconfiança, foi
para o quarto da esposa com uma jarra de vinho. Como não comera nada
durante o dia inteiro, o álcool subira-lhe à cabeça e pensamentos terríveis
começaram a tomar forma. O ódio e a certeza de que Flávia o enganava e que
estava nos braços do amante o enlouqueceram. Mas agora já não sabia o que
pensar!
Sentando-se numa cadeira, mergulhou a cabeça nas mãos. Não
aguentava mais aquela terrível agonia do ciúme! Ela não lhe dava um filho,
não queria amá-lo! Ia matá-la, não fosse a interferência de Sura!
E agora? Marcara-lhe o belo rosto para sempre! Todas as vezes que
olhasse aquela ferida iria se lembrar do que fizera! O belo rosto de sua esposa
estava destruído por sua causa!
82
Tornando a engolir o vinho, procurava na bebedeira o esquecimento do
que fizera.
* * *
Hagonah não conseguia dormir. Uma dor aguda, dor quase física, não o
deixava relaxar. Tinha vontade de correr até Sura e descobrir se estava bem.
Alguma coisa lhe dizia que não, que algo muito ruim lhe acontecera. Mas
como saber?
Sua agonia perdurou até o sol raiar e todos levantarem-se para o
trabalho.
No campo, abatido pela péssima noite e uma estranha depressão, ouviu
os comentários de alguns escravos sobre os acontecimento da noite. Soubera
que o senhor voltara de surpresa e furioso de ciúmes da senhora, lhe arrancara
a orelha e deformara-lhe o rosto.
Pobre senhora Flávia, pensou ele, condoído pelo destino da senhora que
amparava sua esposa. Ainda não a conhecia, mas já tomara-se de simpatia por
ela. Viver com o centurião era terrível! E que maneira covarde de afrontar a
mulher indefesa! Marcar-lhe o rosto com chicote!
Sura devia estar com a senhora. Seria impossível vê-la naquela tarde.
Mas iria às piscinas ainda assim.
Mas Flávia não apareceu. Recolhera-se à sua intimidade para esconder a
ferida no rosto. Desolada , achava que Hagonah não a amaria mais, pois estava
feia com aquela marca! Fora o castigo pela infidelidade e a mentira! Enganava
sem o querer a dois homens! Os deuses resolveram castigá-la por seu
casamento bárbaro!
Como poderia vê-lo novamente com o rosto deformado?
Queria morrer! Antes Plínio a tivesse matado! Viver sem Hagonah era a
morte!
Com o passar dos dias, ela se tornava mais introspectiva e infeliz. Quase
não saía de seus aposentos e Hagonah enlouquecia de ansiedade, sem saber
daquela que acreditava chamar-se Sura, sua esposa.
Nayara cuidava da ferida de sua senhora e das marcas nos braços e
ombro. Ficariam feias as cicatrizes, não haveria como negar. E também não
havia nada que pudesse fazer para atenuá-las!
Plínio tentou vê-la algumas vezes, mas ela recusava-se a recebê-lo.
Irritado com aquele comportamento da esposa, decidiu finalmente partir para
83
Roma, como planejara. Talvez quando voltasse ela já tivesse esquecido de
tudo!
Sabendo que ele havia saído, Flávia voltou a andar pela casa, mas
quando aparecia alguém que não fosse Sura ou Nayara, cobria o rosto um véu
azulado e diáfano, mas que escondia a feia cicatriz ainda vermelha e inchada.
Nayara resolveu que deveria falar a Hagonah, pois ele a procurava com
insistência para saber de Sura. A senhora pedira-lhe que não lhe contasse
nada, somente que tivera que partir às pressas com o senhor para Roma.
Depois daria alguma mensagem.
Sabê-lo tão perto e tão angustiado quanto ela pela separação inesperada,
a atormentava. Algumas vezes pegava um dos carros de Plínio e ia até a
lavoura, onde podia vê-lo sem ser vista. Então, a saudade a consumia e
chorava lágrimas doloridas!
Será que era assim que os deuses pretendiam puni-la, afastando-o de si
para sempre?
Hagonah por sua vez não agüentava a dor da separação. Para ele , Sura
fora embora inexplicavelmente e não sabia se voltaria! Planejava todos os dias
a sua fuga com os seus homens aproveitando a segurança relaxada para ir ao
seu encontro, mas tudo deveria ser feito com muito cuidado. Soubera que os
bárbaros germânicos constantemente invadiam as propriedades mais afastadas,
facilitando as coisas. Talvez pudesse unir-se a algum grupo desses e ir para
Roma, buscar sua esposa!
Às vezes via o carro da senhora e pensava em ir até lá, pois sabia que
ela estava a observá-lo dentro do cortinado. Mas os negros que seguravam a
liteira não permitiriam a sua aproximação. Então via-a partir sentindo-se
impotente.
* * *
84
CAPÍTULO XVII
Isobel não conseguira a permissão de Severus para partir. Ele
assegurava-lhe que o momento era muito perigoso, pois César havia iniciado
mais uma perseguição aos cristãos, fechando-lhe os lugares de culto secreto e
prendendo quantos encontravam pelo caminho. Até mesmo os que não eram
cristãos estavam sendo envolvidos em calúnias por vinganças pessoais. Além
de tudo, soubera que muitos bárbaros estavam pelas estradas a saquear e matar
romanos. Não, não era o momento para ela viajar. Quem sabe no mês
seguinte?
Otávius também vira-se impossibilitado de encetar viajem. Fora
requisitado para proteger as fronteiras e logo Plínio também o seria.
Precisavam impedir mais uma invasão das terras romanas. Os aliados bárbaros
não davam conta e precisavam de mais um contingente para defender suas
terras.
O Imperador já havia deslocado a capital do império para Milão a fim
de protegê-la melhor, mas as odes bárbaras estavam cada vez mais próximas.
Diocleciano fora para Nicomédia e deixara Milão para Maximiano.
Agora, enfrentavam uma situação econômica não muito estável. Os latifúndios
como os de Plínio logo seriam desmembrados. O amigo resistia o quanto
podia , mas não poderia arcar com as despesas de terras e escravos por muito
tempo. Da última vez que estivera em casa de Plínio, conversaram sobre isso e
ele resolvera que teria que arrendar uma parte de suas terras aos colonos.
Contudo, recusava-se a perder os escravos.
O senador Severus fizera bem em desfazer-se de suas terras. Agora era
um dos poucos que ainda tinham algum dinheiro vivo nas mãos. Descobrira
que o trabalho assalariado dos plebeus era muito mais compensador para ele
do que sustentar uma leva de escravos que não produziam.
Otávius temia pela economia e segurança do império. Se continuasse a
caminhar daquele jeito, logo estariam todos na miséria!
Despedindo-se de Cornélia e depois de Isobel, partiu para mais uma
campanha, dessa vez não para expandir os domínios romanos, mas para
defender o que já possuíam.
85
A fatalidade pareceu descer sobre a casa de Flávia. Poucos dias depois
da partida de Plínio, Suetônio morreu.
O velho homem já não estava a sentir-se bem e reclamava
constantemente do peso dos trabalhos. O senhor não era muito zeloso das
contas e a ele cabia resolver todos os problemas.
Numa noite de especial preocupação, seu coração não suportou o
cansaço e parou enquanto dormia.
Flávia pranteou o velho servo sinceramente. Enquanto recomendava-lhe
o corpo aos deuses de sua fé, sentia que o elo que a ligava a Hagonah estava se
partindo, pois o velho ajudava-a a manter-se informada sobre o escravo.
Plínio, ao saber do ocorrido, voltou para casa e encontrou Flávia nos
jardins internos com a cabeça coberta pelo véu inseparável.
Ao vê-la vestida daquela maneira, apertou os lábios numa linha fina e
arrancou-lhe o objeto da cabeça, expondo sua deformidade.
Flávia logo recuperou-se do choque e fitou-o, altiva. Queria que ele
visse o que havia feito com seu rosto. Talvez assim ele tivesse um pouco de
remorso.
Mas Plínio, passado o susto pelo aspecto desagradável da ferida que
cortara uma parte do lóbulo da orelha de sua esposa, pegou seu queixo e
virou-lhe o rosto de um lado para outro.
_Não está tão mal assim para esconder-te como uma leprosa. Depois, és
bela de qualquer maneira. Talvez eu não tenha feito um bom trabalho em
deformar-te a face para que nenhum homem a fitasse novamente _ falou ele,
insensível.
Flávia abriu os olhos sentindo-se ultrajada. Como podia existir um
homem tão insensível? E ele dizia amá-la!
Afastando o rosto de seus dedos, deu-lhe as costas com lágrimas nos
olhos.
_Não importa o que tu digas, Plínio. Não mudará o que fizeste comigo.
Soubestes de Suetônio?
_Sim, é por isso que estou aqui. Como poderei resolver esse assunto
agora? Não entendo nada de administrar uma propriedade rural!
Plínio estava aborrecido. Nem mesmo pensou no pobre velho com
alguma gratidão. Só pensava em si mesmo o tempo todo!
Flávia o observou, como se só agora pudesse compreender toda a
extensão da insensibilidade de seu esposo.
_Contrata um administrador, Plínio. Não é assim que fazem todos? _ ela
respondeu, mordaz.
_Pensas que nadamos em dinheiro para desperdiçar com um imbecil
qualquer? Não sabes a quantas anda nossas finanças, cara esposa!
86
_Certamente não é por minha culpa que teu dinheiro desaparece. Talvez
teus amigos de Roma possam responder-te...ou as mulheres!
_Não abuses, Flávia! _ ele ameaçou, crispando as mãos.
O que fizera à esposa já o atormentava o suficiente e pensar que partiria
novamente em campanha também o deixava de mal humor. Pegando vinho,
derramou no cálice de prata e sorveu-o de um gole.
_Sabes que vou partir?
_Partir? Para onde?
_Otávius já está na fronteira com a Bretanha e eu devo ir encontrá-lo
daqui a dois dias. Sentes por mim, minha esposa ingrata?
Flávia tinha o coração aos saltos. Plínio ia lutar novamente e...talvez
dessa vez não voltasse. Logo recriminou-se pelo terrível pensamento. Onde
estava a meiguice e a compaixão que havia antes em seu coração? Será que a
convivência com Plínio a tornara mesmo desprezível?
_Espero que cumpras teus deveres para com César, nada mais _
respondeu voltando-lhe as costas.
_Ah, sim! Meus deveres. És muito rígida com os deveres alheios, não é
mesmo? E os teus para com teu marido? A esposa deve amar e obedecer ao
esposo e dar-lhe filhos para perpetuar sua linhagem. O que fazes, minha bela,
para cumprir tuas obrigações?
Flávia ficou rubra.
_Um esposo que ama e deseja ser amado não mutila a mulher!
Plínio largou o cálice sobre a mesa com força. Depois, aproximou-se
dela e pegou-a pelos ombros.
_O que querias que eu fizesse? Tu não me respondias às perguntas e
fostes também culpada do que aconteceu! Onde já se viu dormir nos
alojamentos dos escravos! Esperava encontrar-te em teu leito e onde estavas?
O que querias que eu pensasse de ti?
Flávia ficou calada e afastou os olhos. Na verdade, não podia encará-lo,
pois realmente fora-lhe infiel. Estava a aquecer-se nos braços de outro homem
enquanto o marido a esperava em seu quarto!
Plínio a soltou bruscamente e retirou-se dos jardins.
_Vou procurar um administrador para ti, Flávia! Logo vou partir e
ficarás sozinha a tomar conta desta fazenda trabalhosa! _ ouviu-o gritar, as
sandálias de metal fazendo barulho no mármore do chão.
Flávia sentou-se, trêmula. Mal podia esperar para vê-lo partir! Cada vez
que Plínio aparecia, esgotava-lhe as energias! Talvez assim tivesse um pouco
de paz.
87
Nos alojamentos, Plínio conversava com alguns soldados que tomavam
conta dos escravos. Como Suetônio havia morrido, todos esperavam as novas
ordens do senhor sobre o que deveriam fazer primeiro.
_Não faço a mínima idéia do que fazer agora _ reclamava Plínio,
olhando para os homens apinhados no alojamento. _Não conheces, Marius,
ninguém que possa assumir o cargo de meu antigo administrador e que me
seja tão barato quanto ele? Sei que conheces muita gente e tuas relações são
boas...
_Na verdade, senhor, não me lembro de ninguém em particular. Mas o
que precisa fazer um administrador? Talvez possa pesquisar um pouco para
ajudar-vos.
_Deve conhecer números e saber ler e escrever. Preciso de gente que
conheça a terra e que possa examinar minhas contas. Não sou paciente com
números e depois, vou partir logo para nova campanha. Não tenho tempo de
dedicar-me a nada dessas baboseiras!
_Ora, mas então por que não chamais vosso escarvo para exercer a
função? Não teríeis que pagá-lo e ele trabalharia em condições melhores!
_Mas que escravo, homem? São todos bárbaros e ignorantes! Depois,
como confiar num escravo?
_Mas não confiáveis em Suetônio? Então? O que tem este homem a
perder? Muito pelo contrário, só terá a ganhar!
_Mas de quem falas, pelos deuses?
_Vou mostrar-vos, senhor. Depois, decidirás.
O soldado foi até o fundo do alojamento e logo voltou com Hagonah.
Este parou e esperou cheio de tensão. O que quereria Plínio novamente? Será
que pretendia castigá-lo mais uma vez?
Plínio, por sua vez, olhava com surpresa e desagrado o bárbaro, ainda
sem entender onde o companheiro queria chegar.
_Então, senhor? Hagonah sabe ler e escrever e também é versado em
números. Ajudava Suetônio com os livros de vez em quando.
Plínio olhou surpreso para Hagonah. Mordendo o lábio, indeciso,
perguntou-lhe:
_É verdade, escravo? Sabes fazer contas?
_Sim, eu o sei.
_E ajudavas mesmo Suetônio?
_Algumas vezes...senhor. _Hagonah não estava satisfeito com aquela
conversa.
Plínio pensou e repensou. Ele seria uma boa aquisição. Lembrava-se
que o leiloeiro havia dito ser Hagonah um sábio. Não precisaria contratar
88
ninguém e o homem trabalharia por comida e um lugar para dormir. Talvez
fosse mesmo uma boa coisa aquela.
_Tenho para ti novas tarefas, escravo! Quero que me mostres o quanto
sabes de administrar esta propriedade. E farei um acordo contigo. Se tu fizeres
minhas contas e puderes firmar meus contratos com meus compradores, então
dar-te-ei um pedaço de terra para que possas cultivar tua própria plantação em
troca de teus serviços de administrador. Agora, senão o fizeres direito, nada
poderá impedir-me de matar-te.
Hagonah observou-o em silêncio.
Os dois fitaram-se por alguns segundos ainda. Havia algumas coisas a
considerar, como por exemplo, onde passaria a residir? Que proposta estranha
e perigosa! Plínio não lhe deixava muita alternativa.
_Ficarás na casa principal, nos alojamentos especiais e poderás vestir
outras roupas também. _ Plínio acrescentou, como a ouvir-lhe o pensamento.
_Tenho uma condição, senhor.
_Condição? Não estás em posição de impor condições.
_Então ficarei aqui, como é meu dever, senhor. Morrer lá ou aqui tanto
faz para mim _ respondeu Hagonah, resoluto.
Plínio pensou na arrogância do homem. Será que sabia mesmo ler ou
era só pilhéria?
_E o que queres?
_Quero casar-me com uma de vossas escravas.
_Ora, mas vejam só! Já estás enamorado, bárbaro? Não sei como
arrumas tempo para isso! Mas vá lá, não há nada que não possa ser arranjado.
E quem é a escarva?
_A escrava da senhora Flávia. Ela chama-se Sura, senhor.
Plínio arqueou as costas. Sura? Como Hagonah conhecera Sura? Sua
querida Sura? Desde quando a negra deixara de amá-lo para envolver-se com
o bárbaro? Mesmo se sentindo despeitado, não podia negar ao homem o
pedido, apesar de não gostar nem um pouco do arranjo. Considerando bem,
talvez fosse até conveniente para ele, pois era dono de ambos e poderia
continuar a requisitar os favores da núbia de qualquer maneira.
_Feito. Então prova-me que sabes o que diz e eu te darei Sura por
esposa.
Hagonah mal podia acreditar! Seu coração quase parou de tanta
emoção. Era mesmo verdade que teria Sura para si e um pedaço de terra para
cultivar? Certo que aquelas terras não eram a sua Bretanha , mas era tudo o
que desejava no momento.
_Eu o farei, senhor.
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Seguindo o centurião, Hagonah foi ter nos escritórios de Suetônio, onde
pegou com a permissão do centurião algumas anotações . Leu-as em voz alta e
enumerou as falhas dos acordos existentes. Depois, fez algumas contas e
percebeu que o velho já não raciocinava direito. Plínio tinha bem menos do
que supunha e se não cuidasse da próxima colheita, teria que arrumar
empréstimos para cobrir os impostos.
Hagonah tudo lhe falou e Plínio teve a certeza da veracidade de suas
palavras. Ele sabia o que acontecia. Entendia que suas despesas com escravos
e manutenção estavam maiores do que a sua receita.
_Correto, bárbaro. Onde aprendeste a ler e escrever a língua romana?
_Meu pai, senhor. Acreditava ele que os romanos dominariam o mundo.
E não estava tão enganado, suponho.
Plínio deu um sorriso orgulhoso. O velho pai de Hagonah era um
homem inteligente e enxergava longe, pensou.
_Bem, então acreditas que poderás tomar conta das minhas finanças e
da administração de nossa propriedade, Hagonah?
_Sim, senhor.
_Não me roubarás o pouco que ainda tenho?
_Não, senhor. Nunca roubei nada de ninguém. _Ele respondeu
ofendido. “Muito embora merecesse que te tirasse tudo”, acrescentou no
íntimo. Mas Hagonah não queria nada de Plínio, somente Sura. E sua
liberdade. _Cumprirei meu dever, senhor, se cumprirdes vossa promessa.
_Promessa? Ah, sim! A escrava. Também tenho palavra, escravo. E a
minha é mais valiosa que a tua._ Plínio fitou Hagonah atentamente a estudar-
lhe a fisionomia. Ele parecia honesto. Deveria confiar nele? Não seria
perigoso colocar nas mãos de um bárbaro que o odiava a sua fortuna? Mas que
fazer? Não havia tempo nem dinheiro para contratar um profissional e depois,
o que ele poderia lhe fazer que Suetônio não tivesse feito? Caso Hagonah o
traísse, vingar-se-ia ferozmente. E ele o sabia. _Se fores competente e
honesto, homem, dar-te-ei o bem mais precioso que podes almejar.
Hagonah não fez qualquer movimento.
_A tua liberdade, bárbaro. Devolverei a tua liberdade. O que achas?
Somente um brilho furtivo nos olhos indicava que ele havia
compreendido e que gostara do que ouvira.
_Depois, somente posso permitir-te desposar minha serva mediante a
garantia de tua fidelidade. Não poderei inclusive conceder a liberdade a Sura
se não houver um compromisso formal de tua parte.
Hagonah sentiu uma veia pulsar-lhe no pescoço. Sua tensão era tanta
que até doía-lhe a nuca. Plínio o ameaçava por trás das amabilidades. Ele o
prendia numa teia cada vez mais apertada.
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_E que tipo de compromisso formal posso vos dar, senhor?
_Um trato. Desejo que me dês um documento onde conste o teu
compromisso e minha promessa de liberdade. Tudo muito justo. E também
que conste a minha condição para a libertação de tua esposa, ou seja, a tua
fidelidade irrestrita a mim.
_Fidelidade a vós? Como posso garantir-vos minha fidelidade irrestrita?
Hagonah estava cada vez mais preocupado.
_Não sabes que um escravo nada tem de direitos e que posso fazer de ti
o que desejar? _ perguntou Plínio. _Mas como preciso de teus serviços e
dependo de tua fidelidade, desejo que escrevas a tua promessa de que jamais
me usurparás o que possuo.
_E de que adiantará este compromisso se não tenho valor algum como
cidadão , senhor?
_Quando fores livre e provavelmente te tornares um cidadão romano,
como vem acontecendo com muitos ultimamente para a desgraça do império,
quero a garantia de que o que possuis de bens materiais não tenha sido
usurpado de mim. Compreendes?
Hagonah esticou as costas, ofendido.
_Não roubarei nada de vós, senhor. Esta é minha palavra. E quanto a
Sura...Sabeis que ela é parte principal em nosso acordo. Posso servir-vos,
senhor, mas quero minha esposa. No mais, nada importa. Podeis ficar
tranqüilo, que não quebrarei minha promessa. Com relação à carta que exigis,
eu a farei e podereis constatar a veracidade do que afirmo.
Plínio ficou satisfeito. Adoraria arrancar mais alguns gemidos de dor
daquele escravo insolente, mas ele lhe era útil no momento. Contudo, chegaria
a hora em que não mais precisaria dele. Depois, não estava disposto mesmo a
dar-lhe a liberdade. Onde se viu um espólio de guerra valioso como aquele ser
dispensado sem mais nem menos?
_Então estamos de acordo. Apresenta-te logo mais. Mandarei roupas
mais adequadas à tua nova função. Não podeis ser apresentado à senhora
Flávia, que ficará encarregada de tudo enquanto saio em campanha, com estes
trajes sumários.
Hagonah inclinou-se , aceitando o acordo. Quando ele se retirou, Plínio
ainda tinha dúvidas em relação ao seu empreendimento. Será que fizera a
coisa certa? E Flávia, o que acharia disso tudo? O que acharia de seu novo
administrador? Não seria temerário deixá-la em contato permanente com
aquele homem? Reconhecia que era um espécime atraente...mas bárbaro!
Jamais sua esposa se interessaria por semelhante criatura! Imagine trocá-lo a
ele, Plínio Lúcius, um romano de estirpe por um reles escravo!
91
Balançando a cabeça por pensar em tal tolice, Plínio dirigiu-se aos seus
aposentos finalmente. Precisava trocar-se, pois estava ainda empoeirado da
viajem.
Vestiria sua túnica mais confortável e descansaria nos jardins enquanto
conversava com sua esposa. Iria também ver Sura. A núbia era muito esperta.
Enfeitiçara seu futuro administrador bem debaixo de seu nariz!
_Mulheres! Não se pode mesmo confiar nelas! _ resmungou, incrédulo.
92
CAPÍTULO XVIII
Sura e Flávia encontravam-se no aposento destinado aos negócios de
Plínio, aguardando-o .
Para Flávia era muito estranho estar ali àquela hora da tarde. O que será
que Plínio queria lhe comunicar? Mandara um servo chamá-la, a ela e a Sura
para encontrá-lo ali, pois tinha assuntos importantes a tratar com ambas.
Quando Plínio entrou, Sura afastou-se para o canto, escondendo-se atrás
de uma coluna. O senhor trazia um pergaminho enrolado e preso por um anel
dourado. Logo atrás vinha outro homem vestido com uma túnica branca
simples , mas de muito boa qualidade.
Flávia empalideceu ao reconhecer Hagonah. O que será que ele fazia
ali?
Sem entender , ela olhava de um para outro, apreensiva, apertando o
lenço sobre o rosto para que ele não a reconhecesse.
Sura aproximou-se dela e cochichou.
_Senhora, é ele! O que pretende o senhor? E se descobrir tudo ,
senhora?
Sura tremia e escondia as mãos.
_Quieta, Sura! Não podemos nos denunciar! E depois, como poderia
Plínio descobrir alguma coisa? Se não me delatares, Hagonah não saberá
quem sou. Ele não conhece Flávia e tu não podes dizer teu nome! Agora
afasta-te daqui e vai para o canto, anda!
Sura afastou-se o máximo que pode.
Hagonah olhava aquela mulher de lenço a esconder a face. Finalmente
iria ter com a senhora Flávia. Quando fosse possível, agradeceria a ela por
tudo o que fizera por eles. Mas olhando em volta, não encontrou quem
procurava e uma certa apreensão fê-lo apertar os dentes. Onde estava Sura?
Aproximando-se da senhora, ambos os homens pararam à sua frente.
Flávia não pode deixar de admirar o porte de Hagonah naquelas roupas
romanas. A saudade que sentira dele e todo o seu sofrimento umedeceu-lhe os
olhos . Era imprescindível que Hagonah não a reconhecesse, por isso
precisava manter a calma a todo custo.
_Flávia, minha querida, vim apresentar-te nosso novo administrador _
Disse-lhe Plínio. Hagonah deu um passo à frente e inclinou a cabeça,
respeitosamente. Evitava olhar diretamente para a senhora a fim de não
constrangê-la mais.
93
_Senhora Flávia. Fico feliz em conhecer nossa bem feitora. Espero
servir-vos devotadamente, senhora.
Flávia não respondeu, não podia. Sua voz estava presa à garganta. O
temor de se trair sufocava-a .
_Não dizes nada, Flávia? O gato comeu tua língua, suponho _ replicou
Plínio, desrespeitoso.
Ela voltou-se para ele ainda em choque.
Tentando disfarçar a voz falando baixo, questionou-o:
_Administrador? Mas...por que um escravo?
_Porque este escravo sabe fazer o serviço! E depois, já disse que nossas
finanças não nos permitem gastar com coisas inúteis! Soube que Hagonah
ajudava Suetônio com as contas e já está familiarizado com o trabalho. Nosso
acordo é muito bom e acredito que não nos arrependeremos.
Flávia olhou novamente para Hagonah e baixou os olhos. O que poderia
fazer? O destino novamente lhe pregava peças!
_Sinto muito se vos desgostei, senhora. Mas farei o possível para ser-
vos útil e não vos incomodar com o meu trabalho. _Hagonah sentiu
necessidade de dizer-lhe, pois Flávia pareceu não gostar muito da decisão do
marido. Talvez fosse mais uma romana orgulhosa e não a pessoa caridosa que
se acostumara a pensar que fosse.
_Não te preocupes com a senhora, Hagonah. Concentra-te em teus
afazeres e estarás bem. _ interveio Plínio. _Agora, quero que me digas onde
está Sura. Não a mandei chamar?
_E por que a queres? Não é um assunto particular? _ perguntou ela,
apreensiva. Sura deslocara-se cautelosamente para um canto da sala, às costas
de Plínio.
_Flávia, até quando me insultarás não fazendo o que ordeno? Quero que
Sura venha até aqui. Ela é parte do nosso acordo.
_Como parte de um acordo? _Flávia mal continha o tremor. Olhou
assustada para Sura, junto à porta de saída apenas a espera de um sinal seu
para fugir.
_Hagonah a deseja por esposa. É nosso acordo. Ele trabalha como
administrador e em troca dou-lhe Sura para que se case com ela. É tudo muito
simples. Mas onde está essa escrava mal criada?
Sura arregalou os olhos e antes que Plínio pudesse fazer qualquer coisa,
bateu em retirada sem esperar pela ordem de Flávia.
Flávia, por sua vez, quase desmaiou. Pálida sob o véu, olhava para
Hagonah com os olhos desmesuradamente abertos.
_Deseja...deseja Sura para...para esposa? _Gaguejou, num sussurro
apreensivo. E agora, o que faria? _Mas...mas não pode!
94
Suas mãos estavam frias e ela as apertava num movimento nervoso.
Virando-se de costas para os dois homens, andou devagar até uma cadeira e
sentou-se.
_Mas o que tens, mulher? Estás estranha! _ Pegou-lhes as mãos e
sentiu-as frias e molhadas. _ Tuas mãos estão enregelada! Não queres um
pouco de vinho? Vou buscar-te um cálice. Não comes direito e agora estás a
passar mal! Vou dar-te vinho para aquecer teu sangue! _ Andando até a
mesinha, pegou um cálice e encheu-o e depois, deu-o para que ela bebesse.
Flávia agradeceu e bebeu um gole do vinho quente.
_ Então? Onde está Sura?
_Sura...Sura não pode ficar. Pedi que fizesse algumas... algumas coisas
para mim. Por favor, Plínio! Não quero que ela se case, não ainda!
Hagonah estava acabrunhado. Esperava que a senhora Flávia não se
opusesse ao seu casamento com Sura, afinal não era ela que ajudava a ambos
em seus encontros amorosos? A senhora falava tão baixo com o marido, que
mal podia ouvi-la!
_E por que não? Já está na hora de Sura encontrar um marido! Ou vais
ficar prendendo-a até a velhice? Ora, vamos, Flávia! Não acredito que gostes
tanto de Sura a ponto de sacrificá-la! E depois, ela não vai abandonar-te. Não
precisará deixar a nossa casa. _E voltando-se para Hagonah que esperava
apreensivo e desconfiado, disse-lhe: _ Minha esposa é muito ligada à tua
pretendente, administrador. Talvez tenha que convencê-la a ceder a escrava
devotada.
_Senhora, não vou tomar-vos Sura, somente casar-me com ela. Depois,
ela tem grande estima por vós e continuará a servir-vos, certamente. Não
quereis a felicidade de vossa protegida?
Flávia fechou os olhos, angustiada. “Protegida?”, pensou com ironia.
Mal continha as lágrimas pela brincadeira que o destino lhe pregava.
Ele pedia-lhe para dar-lhe a felicidade! E ela não tinha direito a mesma
coisa! Como desfazer aquele engano? Hagonah pensava que Sura fosse ela e
quando visse a verdadeira Sura, o que fariam?
_Preciso...preciso pensar... _ disse-lhe, levantando-se.
_Não tens que pensar, Flávia! _Falou Plínio, irritado com a insistência
da mulher. _ Eu já concordei e este é nosso trato. Não faltarei com minha
palavra, ainda que para um escravo! Sura vai casar-se com o administrador e
pronto!
_Tu não podes decidir! Ela é minha escrava, não tua! _Flávia gritou
descontrolada.
E Hagonah sentiu um arrepio na espinha. Aquela voz...aquela voz era
igual a de Sura! Estava já a confundir-se com aquela discussão.
95
Plínio aproximou-se perigosamente de Flávia.
_Tu vais dar Sura em casamento sim! Eu decido, eu mando! E agora tira
este véu ridículo que me impede de ver-te os olhos! Não gosto que me
escondas o rosto ! _ E antes que ela pudesse impedi-lo, Plínio tornou a puxar-
lhe o véu, descobrindo-lhe a face.
Flávia deu um grito e escondeu-se, virando-se para o outro lado.
Hagonah pensou em intervir, mas não seria conveniente para ele. Agora
que conquistara a possibilidade de casar-se com Sura, não podia por tudo a
perder. Contudo, o sofrimento da senhora o comoveu. Ela tinha vergonha da
cicatriz que lhe marcava o rosto. Cicatriz feita pelo próprio marido. Não
entendia como um homem apaixonado como diziam ser Plínio podia mutilar a
esposa daquele jeito. Se o centurião usasse de força para subjugar a vontade de
Flávia, então ver-se-ia obrigado a defendê-la, mesmo que lhe custasse a
liberdade.
Flávia escondera-se para que Hagonah não a reconhecesse, mas Plínio
segurou-lhe os ombros e voltou-a para si. Depois, tirou as mãos que lhe
cobriam o rosto.
_Olha para mim, Flávia! Ou queres que te mutiles a outra face? Assim
estarias justificada por esconder-te atrás de um lenço!
Flávia sentiu-se desfalecer. Desesperada, com lágrimas a cair-lhe pelo
rosto, mostrava a face mutilada a Hagonah.
_Vês, Hagonah? Não há nada para esconder no rosto de minha esposa!
Ainda não é bela como uma deusa? _Plínio, cruel, voltou-a para o escravo
que, atônito, retrocedeu um passo. A finalidade de Plínio além de humilhá-la,
era fazer o escravo desistir de qualquer futura investida para com Flávia.
Pálido e sem poder reagir, Hagonah somente a fitava boquiaberto.
Era Sura! Ou Flávia? Quem era aquela mulher nos braços de Plínio?
Tomando o gesto de Hagonah como sinal de repulsa, Plínio soltou
Flávia, que caiu ao chão, chorando de vergonha e desespero.
Hagonah apenas observava estático aquela mulher de cabelos negros e
pele translúcida. Os ombros dela, delicados e também marcados, tremiam com
os soluços. Ele estava atordoado. O que pensar agora? Quem era Sura, afinal?
Nisso, como se o pensamento tivesse se materializado, a núbia entrou
no aposento e correu para a sua senhora, amparando-a .
Flávia abraçou-a e escondeu o rosto.
_Vem, senhora. Vou ajudar-vos a levantar _ dizia Sura, solícita. Depois,
olhou para Hagonah, implorando-lhe que compreendesse.
_Ah, então estás aí! Onde foi que tu andaste, Sura? _ Disse Plínio,
impaciente. Aquela cena o estava deixando entediado. _Vês, Hagonah? A tua
noiva devota mais amor à senhora que a ti!
96
Hagonah fitou Sura entendendo finalmente. A revelação atingiu-o
como um raio. Flávia havia feito passar-se por Sura o tempo todo!
“Por quê?”, perguntava-se. Por que o enganara, o iludira? Ele a amava!
E agora, o que seria de seus sonhos, suas esperanças? Flávia era casada e com
seu algoz!
E casara-se com ele também! Ou achava que a cerimônia de casamento
diante da deusa fora uma brincadeira? Ela era sua esposa! Diante da sua fé,
era sua esposa também!
Atordoado, com o horror estampado na expressão, deu mais um passo
para trás. A extensão do sacrilégio que cometera ao casar-se com uma romana
infiel, inimiga de sua raça e de sua fé, mostrou-se em toda sua hediondez.
Ela não levara a sério seu casamento, nem seu amor! Brincara com seus
sentimentos somente! Como uma romana deveria fazer. O que esperar de
mulheres como ela?
Sabia , seu coração lhe dizia que não deveria confiar e nem envolver-
se com nenhuma mulher daquela raça. Ela o usara como passatempo,
provavelmente entediada com o esposo, e decidira arrumar um amante, como
era costume romano. Era devassa e sem moral!
Hagonah tinha tanta amargura no coração que não esperou mais nada.
Dando as costas à cena, retirou-se com passos duros. Seu coração estava
despedaçado e sua vontade era de rugir como um leão ferido!
Enquanto isso, Flávia ficara no chão, a chorar suas dores. Ao ver a
expressão nos olhos de Hagonah, a certeza de que ele a odiava fê-la sofrer
ainda mais. E seu peito doía como se uma flecha o tivesse atravessado.
Sura ajudou-a a levantar-se e olhando para o senhor que não
compreendia a razão do tormento da esposa, dirigiu-se com ela para a porta.
_Sura, não viste teu noivo? Ele quer casar-se contigo! _ Falou ainda
Plínio, mordaz. _Será que o amas, Sura? Não tens outro amor?
Sura olhou para Plínio com tristeza. Agora entendia o sofrimento da
senhora Flávia. Que confusão! Como consertar as coisas?
_Deixai-me levar a senhora para seus aposentos, senhor. Depois
conversaremos sobre muitas coisas.
_Vai e leva tua senhora. Ela parece doente da cabeça, minha pobre
Flávia! Ou será dos nervos? _ replicou ele , irônico.
O amor de Plínio era estranho e soturno. Parecia pular de um pólo a
outro em um segundo. Tão instável quanto ele próprio, era capaz de odiar a
esposa que o rechaçava e ao mesmo tempo desejá-la com a mesma paixão!
Sura não lhe deu ouvidos. O que queria Plínio? Depois de tudo o que
fizera com a senhora, desejava que ela ficasse equilibrada?
Levando-a para o quarto, deitou-a sobre o leito.
97
_Sura, sinto que vou morrer! _ gemeu ela. _Não posso mais viver
assim! O destino me pune implacavelmente! Por quê? Por que os deuses me
maltratam? Somente porque quis ser feliz?
_Não, senhora. A senhora não vai morrer. Depois, vereis como tudo há
de se acertar. Eu falarei com Hagonah sobre vós. E tudo ficará como antes.
Sura passava-lhe a mão carinhosamente sobre a face.
_Oh, Sura! Não vistes a dor nos olhos de Hagonah! Ele jamais me
perdoará! Queria que os deuses me levassem logo! Não quero viver nessa terra
de amarguras e sofrimentos!
_Senhora, descansa um pouco! Logo poderás pensar melhor em tudo.
Vendo que Flávia não a ouvia, Sura foi procurar Nayara para que lhe
desse alguma coisa para dormir. E Nayara levou até ela um chá. Logo que
Flávia o tomou, acalmou-se e adormeceu.
Nayara fitava a senhora e penalizava-se.
O que previra acontecera. A romana agora sofreria as conseqüências de
sua paixão. E não começara ainda a sua agonia. Quando descobrisse que
estava grávida de um filho de Hagonah, então...
Sim, Nayara sabia. Ela sabia tudo! O destino se lhe descortinava a
frente como um sonho! Mas os sonhos não se realizavam, as predições sim!
_Pobre senhora Flávia! – lamentou em voz alta. Que a deusa tivesse
dela piedade!
* * *
98
CAPÍTULO XIX
Hagonah voltara à lavoura. Seu coração estava endurecido como as
pedras que tinha que tirar do caminho enquanto arava a terra.
Enquanto trabalhava, esquecia-se de Sura...não, de Flávia. Evitava
pensar no que ela lhe fizera, na brincadeira cruel com seus sentimentos! Será
que a deusa consideraria seu casamento desfeito? Afinal, ela já era casada com
o romano.
Marretando uma pedra grande, ele descarregou sua frustração e
amargura.
Como se deixara enganar daquela forma? Por que não percebera que ela
não poderia ser uma simples escrava? Sua pele sedosa, seus cabelos sempre
perfumados e seus trajes finos poderiam tê-la denunciado! Como não
percebera? Estava tão enfeitiçado que não pudera ver o que parecia óbvio!
Parando um pouco para limpar o suor que corria por sua testa, resolveu
beber um pouco da água do poço. Não era muito agradável seu sabor, mas
matava a sede infernal. O calor daquela terra o desanimava.
Voltara a pensar nos bárbaros que Plínio enfrentaria nas fronteiras.
Quisera poder juntar-se a eles! Agora só almejava a fuga para terras distantes,
longe daquele lugar, longe da romana que não podia perdoar.
Voltando a quebrar a pedra, tentou esquecer a angústia. Apesar de toda
a raiva que sentia por ter sido enganado, não conseguia esquecer-se dos
momentos que passaram juntos, dos beijos e carícias de Flávia.
Era sua maldição não poder apagar da mente todos os instantes de amor
que usufruíram? Será que o ressentimento seria maior que o amor pela
romana? Será que o fato de descobrir o que ela lhe fizera seria suficiente para
arrancar de seu coração aquele sentimento que ainda o torturava?
E seu rosto? Seu belo rosto? O que provocara tal fúria em Plínio para
marcar a face de Flávia? Pensando em como ela devia ter sofrido sob o chicote
do centurião o fez estremecer. Ele mesmo tivera a oportunidade de sentir o
guante do homem!
Sacudiu a cabeça. Flávia não merecia sua consideração, muito menos
sua piedade. Ela o maltratara, o vilipendiara e quase o destruíra! Por isso devia
esquecê-la para sempre. Na primeira oportunidade, fugiria e iria para bem
longe dali!
Voltou a trabalhar a terra. Tinha que manter-se ocupado, tinha que
trabalhar até a exaustão ou não saberia o que fazer..
99
Às vezes, sentia vontade de correr até ela e exigir-lhe uma explicação,
talvez na esperança de ouvir de sua boca que ela ainda o amava, que não fora
somente uma distração!
Mas o que pensava? Uma romana jamais amaria um escravo, ainda mais
um bárbaro!
Mas a gana de apertá-la não passava! Tinha vontade de arrancar-lhe
uma confissão ou então matá-la pressionando-lhe o lindo pescoço até que todo
o ar desaparecesse de seus pulmões!
Hagonah trabalhava tenazmente tentando abafar os pensamentos
absurdos quando Plínio o interrompeu na manhã seguinte.
_Bárbaro! _chamou-o.
Hagonah parou o serviço e seguiu-o contrariado até uma tenda onde
havia sombra e água abundante.
_Toma e bebe! _ mandou o centurião, oferecendo-lhe uma concha de
água.
Hagonah bebeu de uma vez sem tirar-lhe os olhos de cima.
Observando o torso nu do escravo, Plínio jogou-lhe uma túnica para
que se cobrisse. Certamente a visão da plástica do escravo o incomodava. Para
ele a beleza de Hagonah era uma afronta, uma brincadeira dos deuses para
chatear os romanos.
Hagonah pegou a túnica e jogou-a sobre os ombros. Estava suado e
sujo, não vestiria um traje limpo sobre a poeira grudada em sua pele.
_Por que não fostes fazer o teu trabalho hoje? _ perguntou Plínio.
_Não pensei que ainda desejasses que o fizesse...senhor _ respondeu
ele, lacônico.
_E por que não? Acaso disse algo diferente? Ou será que não queres
mais tua escrava?
Hagonah apertou os dentes e olhou para o outro lado.
_Escuta, Sura é uma boa mulher, fizeste boa escolha. Flávia a cederá
logo, não te aborreças com os caprichos de minha esposa. Agora, espero que
cumpras nosso acordo. Depois, estou de partida. Vou para Roma juntar-me ao
regimento que parte amanhã. Não posso deixar minha propriedade sem
alguém que se responsabilize por ela.
Hagonah fitou-o com um brilho estranho nos olhos.
_Não penses que poderás fazer alguma coisa contra mim, escravo. Meus
guardas, homens de confiança, ficarão aqui e de olho em ti. Agora podes
escolher: ou ficas numa situação confortável, ou voltas a trabalhar nas
lavouras sob as ordens de um dos meus homens. O que preferires.
Hagonah pensou um pouco e resolveu aceitar. Não valia a pena ficar
naquele lugar horrível quando poderia usufruir de conforto e melhores
100
condições. A oportunidade de também ajudar os seus se lhe apresentava e
poderia conquistar a confiança de Plínio enquanto planejava uma fuga sem
levantar suspeitas.
_Eu irei, senhor. Farei o trabalho e não deveis vos preocupar. Quando
retornareis?
_Não sei_ respondeu o outro, lacônico. _ Nunca se sabe o que poderá
acontecer, não é, bárbaro? Nunca se sabe se algum dos de tua raça conseguirá
separar minha cabeça de meu pescoço! Mas pretendo voltar vivo e logo!
Minha Flávia não consegue ficar longe de mim por muito tempo.
Hagonah desviou novamente o olhar para que Plínio não visse o quanto
o comentário o desagradava.
Estranha relação aquela! Eram inimigos e jamais se tornariam outra
coisa, entretanto, um parecia respeitar a força do outro.
Plínio balançou a cabeça depois de analisar seu novo administrador pela
centésima vez. Engraçado como tinha a sensação de já o conhecer de longas
datas! Mas percebendo a impossibilidade desse acontecimento, fez um gesto
de impaciência com as mãos.
_Amanhã já estarei a caminho da fronteira. Mas por estranho que
pareça, confio em ti, Hagonah. Não nos veremos tão cedo e quando eu voltar,
dar-te-ei a liberdade, se achar que fizeste por merecer.
Hagonah também acenou com a cabeça. Não precisava dizer mais nada.
O que devia ser dito, já o fora antes.
Plínio retirou-se e Hagonah o observou afastar-se vestido com a couraça
romana. Era um homem temerário, o centurião. Parecia não ter receio de nada
e sentia até prazer no combate. Na verdade, achava que ele estava muito feliz
com a possibilidade de lutar novamente. Não esquecera a sua fúria contra seu
povo e as atrocidades que cometera .
Contudo, a guerra fazia os homens tornarem-se bestas-feras. Seu
próprio irmão não degolara alguns soldados durante a luta? Quem estaria com
a razão para julgar e condenar um soldado? Talvez a crueldade em que se
compraziam fosse o sinal de que o homem deixara de ser homem e tornara-se
menos que um animal.
Hagonah, apesar desse sentimento dúbio, não tinha dúvidas quanto ao
comportamento de um homem de bem, ainda que numa guerra. Jamais seria
capaz de cometer assassínios de mulheres e crianças indefesas ou mesmo
estupros e torpezas como aconteceu contra sua tribo. Violências
desnecessárias sobre um povo subjugado.
Não, isso não! Havia limites para a insanidade e aquele era um deles!
Deixando ao encargo dos deuses o julgamento do romano, decidiu
tomar um banho nas águas tépidas das piscinas de Flávia. Jamais entrara nelas,
101
pois não lhe era permitido, mas agora que não havia ninguém lá, talvez
pudesse usufruir dos banhos, uma regalia dos romanos.
Levando a túnica nos ombros, andou até as termas e parou na borda da
pequena fonte. Não pode deixar de pensar em Flávia e nos momentos que
viveram ali, naquelas águas.
Tirando as sandálias de couro, entrou sem despir-se do saiote que vestia.
Mergulhando para lavar os cabelos, nadou até a parte mais funda e pode
observar os mosaicos que decoravam o chão.
Era bonito! Os romanos tinham algumas coisas boas, devia admitir.
Após nadar e sentir-se limpo, Hagonah saiu e sentou-se para enxugar o
corpo sob o sol.
Ficou a pensar que agora estaria mais próximo de Flávia e que seu
marido não estaria lá para impedi-lo de conquistar-lhe a esposa...se ele ainda a
quisesse. Mas não queria. Pelo contrário, esperava não vê-la tantas vezes e
faria o possível para que isso não acontecesse. Talvez devesse arrumar uma
esposa, assim não cairia em tentação.
Mas ele era casado! Ele se casara com Flávia! Não Flávia, mas Sura!
Casara-se com alguém que não existia, então...
Nesse momento, uma sombra no chão denunciou a presença de alguém
às suas costas.
Depressa, Hagonah levantou-se e virou-se já com uma desculpa nos
lábios, pois usara as piscinas sem permissão. Mas sua voz calou-se na
garganta ao reconhecer o objeto de seus pensamentos.
Flávia, por sua vez, estava também sem voz. Não esperava encontrar
Hagonah em seu recanto preferido, não agora. Mas ele estava ali, como se
lembrava! E o seu sofrimento foi imenso! Os olhos nublaram-se.
Ficara olhando enquanto ele se banhava, como fizera com ela no
primeiro dia.
Para Hagonah, ela era uma visão. O vestido diáfano, de um azul muito
suave, flutuava ao seu redor com a brisa da tarde e o lenço quase transparente
não conseguia ocultar-lhe a face.
_Hagonah... _ouviu-a murmurar, súplice. _Perdoa-me! Perdoa-me por
mentir-te, por fazer-te sofrer, mas...
Ele fez-lhe um sinal com a mão, pedindo que parasse.
_Não há o que perdoar, senhora Flávia. Nada aconteceu, foi somente
um ...sonho talvez. Mas já o esqueci. E peço que esqueçais também. Afinal, a
mulher que conheci e com quem me casei, não existe, não é?
Flávia sentiu como se um punhal lhe cravasse no peito. Ele estava
tão...tão amargo! Tão distante! Será que a amara um dia ou fora uma ilusão?
102
Dando um passo para trás, sentiu a garganta arder com o esforço para
conter-se.
_Não, Hagonah. Não foi um sonho! Foi real! E eu existo, sim!
_A mulher que conheci chamava-se Sura, ou não?
Ela calou-se um segundo, avaliando-o.
_Nunca vais me perdoar por haver-te enganado, não é? _ falou, num
sussurro.
Hagonah afastou os olhos da visão. A dor em seu coração era tanta que
precisava esconder seus olhos para que ela não visse seu sofrimento.
_Não, Flávia. Não vou esquecer. _ Depois, voltando-se para ela
novamente, perguntou: _ Por quê? Por que tudo aquilo? Desejavas apenas
divertimento? Estavas cansada de teu marido, foi assim? Não acreditastes na
sinceridade de meu amor?
_Não! Não foi assim! Eu...
Ela deu um passo a frente e tentou tocá-lo. Hagonah afastou-se como se
picado por uma serpente.
_Mas o que esperar de uma romana? Não sabem amar, as promíscuas
mulheres do Império! Se eu soubesse que não eras escrava, que eras quem és,
jamais teria me envolvido em tuas tramas, Flávia!
_E ainda me perguntas por que não te disse a verdade? _ ela perguntou,
amarga. _ Tu o dissestes, Hagonah. Jamais teria me amado, se soubesses que
eu era tua senhora, esposa de Plínio!
_E isso importava para ti? Que eu não pudesse amar-te?
_Sim! Amo-te com toda minha alma, Hagonah! Nunca deixei de te
amar! Por favor, acredites!
_Mentira! Não acreditaste em nosso casamento! O que achas que senti
ao saber que minha esposa já era casada com outro homem? Que fui iludido
ao ponto de casar-me contigo diante da deusa de minha fé! E tu achavas que
era uma brincadeira! Caçoavas de mim!
_Não! Não digas isso, Hagonah! Eu...eu não pude contar-te a verdade!
Se soubesses, não terias ficado comigo e me amado tanto!
_Não, Flávia! Eu jamais teria me casado contigo nessas circunstâncias!
Não compreendes? Cometi um sacrilégio contra a minha fé! Devias ter-me
impedido! _ ele estava horrorizado consigo mesmo. A extensão do que fizera,
a blasfêmia que cometera contra a sua religião o atormentava mais do que
supunha! _ Consorciei-me com uma mulher já casada com outro homem! Eu
ofendi a minha deusa, não percebes?
_Por isso a chama apagou-se! _Só então ele compreendeu. Pedira a
bênção do espírito de seu pai e este apagara a chama do altar! Como não
103
entendera antes? Estava tão cego de amor que não ouvira a mensagem do pai
alertando-o para o ato tresloucado!
_Não fostes tu o culpado, Hagonah! Não sabias de nada!
_Mas eu não podia ter feito o que fiz! Não era sacerdote ainda e
pratiquei um ritual sagrado! Por isso sofro, Flávia! E a deusa não deixará que
eu saia ileso do crime que cometi! _ Hagonah estava transtornado. Agora que
entendia a importância do que fizera, sentia o peso de seu erro nos ombros.
_Jamais poderei casar-me novamente. Estou condenado à solidão, a
entregar-me à deusa Mãe como seu servidor, somente! Finalmente ela
conseguiu o que sempre almejou!
_Não! Não digas tolices, Hagonah! Tua deusa não pode ser tão cruel! _
Flávia desesperava-se por sentir que perdia Hagonah. A sua fé o consumia e o
condenava! Como impedi-lo de acreditar em coisa tão absurda? Ele falava da
deusa como se fosse uma pessoa, uma mulher de quem fugira a vida toda e
que agora o enredara em suas armadilhas.
Hagonah fitou-a mais uma vez e de repente, sua expressão acalmou-se,
parecendo resignar-se com o sua própria condenação. Pegando a túnica
branca, vestiu-a sobre o corpo seco e amarrou os cordões da sandália com
muita calma, uma calma assustadora. Quando levantou-se, uma expressão
estranha, um brilho diferente, pairava sem eus olhos.
_Agora sei o que a deusa quer de mim, senhora Flávia. Sempre foi
assim, eu que não queria aceitar o meu destino. Nasci para servir à minha fé,
é assim que deve ser. Meu pai dizia-me isso todo o tempo, mas eu nunca
aceitei suas limitações. E para isso, ela me submeteu às privações e às paixões
humanas! Agora serei o seu servo, como desejava meu pai.
_Hagonah! O que vais fazer? _ Flávia estava assustada.
_ Vou trabalhar com humildade, como teu marido deseja. Não mais
lutarei para libertar-me. Se a deusa permitiu que eu fosse escravo, então serei
escravo. Assim poderei continuar a nossa crença entre os homens de minha
tribo para que não morra nossa tradição. É esta a minha missão, Flávia.
_Por favor...não fales assim! Estás a assustar-me! _ Flávia chorava
silenciosamente. _Não podes negar tudo o que houve conosco, o nosso amor...
Aproximando-se, Hagonah pegou-lhe as mãos frias e trêmulas.
_Não compreendes, Flávia? Tu me ajudastes a encontrar meu destino!
Agora posso segui-lo sem temor! E acho que posso até agradecer-te por isso!
Flávia não conhecia aquele homem. Ele parecia ser outra pessoa! Seus
olhos tinham um brilho diferente! Aquele não era Hagonah!
_Hagonah, oferece um sacrifício à tua deusa! Pede que ela tire de ti este
peso das costas e vem para mim, que te amo! Fugiremos e viveremos juntos
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em outro lugar, na tua terra, como disseste uma vez! Por favor, não esqueças
de mim! Amas-me ainda, eu sei! _Ela implorou num último arroubo.
Hagonah largou-lhe as mãos bruscamente. Fechou o semblante, apesar
do apelo que ela lhe fizera ter balançado sua vontade. Respirou fundo, para
conseguir acalmar-se, pois seu coração batera loucamente. Flávia era uma
prova difícil demais para suportar! Não podia negar os sentimentos que ainda
estavam em seu peito!
_Não interfiras em meu destino, Flávia. Já não fizeste o bastante? A
deusa mostrou-me o caminho e eu o seguirei. Agora, preciso ir. Tenho uma
tarefa a começar _respondeu, determinado.
Virando-se, foi embora rapidamente para afastar-se da tentação. Não
podia retroceder. O que fizera fora grave e agora tinha que pagar seus
pecados. Um sacerdote jamais se entregava às paixões como ele o fizera. E a
deusa Mãe mostrara-lhe seu poder.
Flávia viu Hagonah desaparecer nos arbustos sentindo o coração em
prantos. Não sabia o que era pior: se a fúria ou aquela passividade mórbida,
aquela aceitação fanática!
Falaria com Nayara. Ela a ajudaria a esclarecer-se, a compreender por
que Hagonah sentia-se tão culpado.
* * *
_Pois digo-te, Nayara! Hagonah está estranho! Diz que a deusa o
chama e que deve seguir os passos do pai! Ele me assusta, não sei o que dizer!
_ Flávia conversava com a escrava. _ Todas as vezes que tentei aproximar-me,
repeliu-me com atitudes bruscas e fanáticas! Fala da sua missão o tempo todo
e nada mais parece importar-lhe!
_Isso é muito estranho mesmo. Hagonah nunca quis ser um sacerdote.
Seu pai insistia e o prometera ainda criança à deusa. Mas o menino sempre
fora avesso aos sacrifícios que lhe impunham, principalmente quando
matavam algum animal.
_Matavam animais? _ Flávia estremeceu.
_Sim, senhora. E tiravam-lhe o sangue para que o dissolvessem em
vinho e depois o bebessem. Quando davam a Hagonah, ele jogava a taça fora
escondido. Eu também tinha que beber, pois desde cedo tinha visões e
tentaram fazer-me sacerdotisa, mas não conseguiram. Eu era muito rebelde _
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ela sorriu, travessa. _ Por isso criou-se em minha tribo um medo por mim. O
pai de Hagonah espalhou que eu era bruxa e que bebia sangue de crianças.
_Que horror! E agora, o que achas que acontece com Hagonah? Achas
que enlouqueceu?
_Não, senhora. Mas vou falar-lhe. Talvez possa entender-me um
pouquinho.
_O que quer dizer com tornar-se servo da deusa?
_Quer dizer castidade e vida voltada aos princípios da deusa Mãe.
_E esses...esses princípios são...são ruins?
_Não, quando se acostuma com eles. Hagonah é um homem culto e já
aprendeu muita coisa. Talvez ele esteja certo, senhora. Talvez ele encontre na
fé um ponto de resistência contra o amor que sente por vós. Não há esperanças
para o relacionamento entre um escravo e uma patrícia romana, ou há? Ainda
mais quando esta romana é casada!
Flávia desanimou. Não queria que Hagonah ficasse daquele jeito
mórbido, como um louco fanático como já vira em seus próprios templos.
_Vai, Nayara. Fala com ele e descobre mais para mim!
_Sim, senhora. Eu irei, não vos atormenteis. Ele estará bem.
Nayara foi ter com Hagonah e ao vê-lo, percebeu a sombra escura que o
seguia, ligada a ele como pelo que parecia ser um fio na cabeça. O homem
trabalhava inclinado sobre os documentos de Plínio, a fazer e refazer contas e
mais contas.
Hagonah quase não comia, não tocara na refeição que lhe fora servida
ali mesmo.
_Senhor...Posso aproximar-me?
Hagonah levantou a cabeça e fitou-a com desagrado.
_Ah, és tu... O que queres, Nayara?
_Somente saber como estás, senhor. Não comestes nada e trabalhais o
tempo todo!
_Oh, esqueci-me. Mas logo vou comer. Tenho muito trabalho a fazer
aqui.
_Sim, senhor. A senhora Flávia preocupa-se com vosso bem-estar. E
convida-vos para cear com ela no salão. Deseja saber a quantas andam as
finanças do senhor Plínio.
Um brilho de interesse apareceu nos olhos negros de Hagonah, mas
logo desapareceu dando lugar a uma expressão carrancuda. Nayara tinha
certeza de que ele gostaria de rever a senhora, mas aquela sombra odiosa
apagara a chama de vida em seu semblante..
_Diga à senhora que ainda não acabei o trabalho e que depois, quando
tudo estiver pronto, mostrarei a ela.
106
_Mas, senhor...não vais cear com ela?
_Não, Nayara. Não tenho tempo para amenidades. Agora, por favor,
retira-te que estás a perturbar-me o raciocínio.
Quando Nayara retirou-se Hagonah parou o que fazia e levou as mãos
às têmporas.
Estava sendo mais difícil do que pensava resistir à força que o arrastava
à Flávia. Podia vê-la do terraço, enquanto debruçava-se sobre a amurada
durante as noites de lua. Ficava a observá-la de um canto dos jardins, sem ser
visto. Como resistir à tentação de ir até ela e afagar-lhe o rosto marcado
quando percebia-lhe a imensa tristeza?
Não tinha vocação para o sacerdócio! O sentimento de culpa que o
atormentava dissolvia-se vagarosamente diante da paixão que ainda ardia em
seu peito. Mas quando pensava em ir ter com ela, alguma coisa o impedia,
dizendo-lhe para não fazê-lo, pois tinha um compromisso de fé e seu papel era
muito importante. Depois, ao examinar as contas de Plínio, percebia que
poderia se quisesse usurpar uma grande fortuna do romano, como vingança.
Afinal, lhe tirara tudo, até mesmo a liberdade!
Mas sua consciência o impedira de executar tais planos ignominiosos.
Por mais que o homem tenha feito para prejudicá-lo, não podia ser como ele.
Quem fora mesmo que dissera para perdoar setenta vezes sete a quem o
prejudicasse? E quem mesmo dissera olho por olho, dente por dente? Agora
estava muito confuso! Não se lembrava qual o profeta que falara tais coisas.
Ou será que eram dois?
Decidiu voltar ao trabalho. Flávia não podia tê-lo perturbado mais com
aquele convite para cear com ela!
“Não deveria esquecer-se do que ela fizera, enganando-o e casando-se
com ele , tornando-o impuro perante a deusa Mãe!”, ouvia a voz em sua
cabeça a instigá-lo. “Ela não podia achar que tudo estava bem e que o que
fizera fora esquecido! Levara-o a cometer um crime perante sua fé, não
poderia perdoá-la!”
Sim, não poderia perdoá-la pelo que o fizera sofrer!
Voltando a atenção ao trabalho, pensou se não seria certo dar algumas
moedas daquelas para os escravos comprarem sua liberdade. Afinal, estaria
devolvendo o que Plínio lhes tirara.
Não, não estava devolvendo o que lhes tirara! Ele lhes tirara a família,
matara suas mulheres e crianças! Lembrava-se de Isobel, quando lhe
arrancaram o filho dos braços. Pobre Isobel! Onde estaria agora o seu rebento?
Sim, talvez devesse mesmo tirar um pouco daquele dinheiro para
contribuir no plano de fuga dos escravos de sua tribo.
107
Voltando às contas, começou a distribuir e a desviar o dinheiro de
Plínio.
* * *
Nayara voltou para os aposentos da senhora. Ao ver Flávia, falou-lhe de
suas impressões.
_Ele está enfeitiçado, senhora.
_Enfeitiçado? Mas quem lhe jogou feitiço?
_Não esse feitiço. É seu velho pai. Está a influenciá-lo e ele não oferece
resistência porque se julga culpado. Finalmente faz o que o pai sempre quis
que fizesse.
_Mas...o pai de Hagonah não está morto?
Nayara sorriu-lhe divertida.
_E a morte existe, senhora? O Espírito do pai de Hagonah o atormenta.
_E...e como podemos ajudá-lo?
_Não podemos, senhora. Eu não sei o que fazer. Depois, o pai de
Hagonah era o sumo sacerdote. Não posso nada contra ele.
_Então, ele ficará assim para sempre? _ Flávia apertava a mão sobre o
peito, aflita.
_Não sei senhora. Talvez vossos deuses o possam curar. Agora, preciso
falar-vos uma coisa muito importante.
_Diga.
_Não observastes que vossas regras não vieram, senhora Flávia?
Flávia empalideceu. Realmente, não vieram! Dois meses haviam-se
passado e elas não vieram! Estava tão absorta com tudo que se esquecera
disso!
_Sim, senhora – Nayara maneou a cabeça como se pudesse ler-lhe os
pensamentos. _A senhora está grávida.
_Mas...mas como? Não pode ser! _Flávia apavorou-se.
_Sim, pode ser. A senhora não tomou o remédio porque não tinha e eu
fui comprar as ervas. Agora, estais grávida. E não é de vosso esposo, senhora
Flávia.
108
Flávia sentiu uma ânsia a subir e descer-lhe pela garganta e o estômago
a contrair-se.
_Como podes saber?
_Eu sempre sei, senhora. _ Ela respondeu, sorrindo orgulhosa.
Flávia levantou-se do triclínio e andou de um lado para outro.
_E agora, o que vou fazer?
_Tereis o filho de Hagonah. Não era o que queríeis?
_Sim, mas... e Plínio? Ele vai matar-me!
_Ele não saberá. Pensará que é seu filho. Afinal, o senhor desejava
muito um rebento, não ?
Flávia fitou Nayara, impressionada com a argúcia da jovem.
_Sim, ele o queria. Mas e Hagonah? O filho lhe pertence e ficaria feliz
ao saber dele!
_Não, senhora. Isso só lhe aumentaria o tormento e a loucura! O que
um escravo na condição de Hagonah poderia fazer por seu filho? E com uma
romana que ele odeia?
Flávia levou a mão à boca.
Sim, ela tinha razão. Como se sentiria Hagonah se soubesse que ela,
Flávia, esperava um filho dele? Sentir-se-ia mais culpado ainda! Que fazer?
Mentir novamente? Dar à Plínio o filho de Hagonah? Parecia tão...horrível!
_Senhora, quando o senhor chegar, não poderás negar vosso estado. Ele
o verá e deduzirá que o filho é dele. Ou desejais fazer outra coisa?
_Que coisa, Nayara?
_Conheço remédios que tirarão o vosso peso, senhora. Somente um chá
e estarás livre de vosso fardo.
Ao compreender o que Nayara queria dizer, o sangue fugiu-lhe da face.
_Matar o filho de Hagonah? Não ! Jamais faria tal coisa! Quero este
filho, quero-o como jamais quis outra coisa! Ele é meu, é uma parte de meu
amor e eu o desejo!
_Então?
_Deixa, Nayara. Saberei o que fazer na hora certa.
Nayara retirou-se, silenciosa.
A núbia observava a cena, contrita. Ao ver Flávia abalada, ajudou-a
sentar-se novamente.
_Senhora, fizeste bem. Não é bom matar crianças, ainda mais quando
nem nasceram. Depois, o senhor Plínio quer tanto um filho que adotará o de
Hagonah sem o saber.
Flávia sentia muito, sentia profundamente não poder partilhar com
Hagonah de sua alegria! O amor dos dois fora concretizado naquela criança
109
que se formava em seu ventre. Mas ela o amaria muito! Amaria pelos dois,
pois Hagonah não poderia saber de nada, jamais.
* * *
110
CAPÍTULO XX
Um carro puxado por uma parelha magnífica parara em frente à sua
casa. Flávia observava do alto das escadas a estranhar o acontecimento.
Mas quem seria?, perguntava-se.
Descendo alguns degraus da escadaria, parou e esperou que o homem
descesse do carro. Era um ancião e viera acompanhado de uma jovem com a
cabeça coberta por um leve véu a esconder-lhe os cabelos.
Flávia lembrou-se que estava sem o lenço no rosto. Acostumara-se a
não usá-lo mais, pois não recebiam visitas. Agora, arrependia-se, mas era
tarde para evitar o constrangimento.
Subindo os degraus e indo ao seu encontro, o velho senador Severus
parou diante dela e sorriu-lhe, benévolo.
_Minha cara Flávia! Como estás bonita! Parece que o tempo amadurece
sua beleza deixando-a doce como um fruto saboroso!
Flávia sorriu grata à delicadeza do senador em não mencionar-lhe a
cicatriz. Dando as mãos ao velho, agradeceu-lhe.
_Muito gentil e sempre galante! Como estou feliz com a vossa visita,
senador Severus!
_E eu em rever-te, minha filha!
_O que vos traz à minha humilde casa, senhor senador? Não foram
saudades minhas, suponho.
_Sim e não, minha cara. Agora deixemos as formalidades de lado! Não
vais servir um copo de água ao teu velho amigo? Estou sedento depois de tão
longa viagem!
_Oh, perdoa-me, Severus! Que falta de cortesia a minha! _ penitenciou-
se ela, constrangida. _ Fiquei tão surpresa com tua visita que esqueci-me de
minhas obrigações. Mas entremos, então!
Com a mão no braço do velho senador, Flávia entrou tentando não
incomodar-se com sua aparência. Severus era amigo de sua família e ela o
tinha em alta estima.
Atrás de ambos, vinha Isobel, muito discreta a observar o
relacionamento afável dos dois.
_Sura ! _ Pediu Flávia. _Traz frutas e vinho!
_Sim, senhora.
Levando Severus para os jardins do pátio cercado por colunas,
sentaram-se nos triclínios para descansarem.
111
Somente então Flávia prestou atenção em Isobel e impressionou-se com
a beleza diáfana da mulher. Seus cabelos louros quase brancos e sua tez macia
e translúcida emolduravam os olhos mais claros que ela já vira. A moça parou
discretamente ao lado de Severus e fitou-a com serenidade.
_Quem é esta moça, Severus? Não é uma de tuas filhas, pois as conheço
bem! _ perguntou, curiosa.
Severus sorriu-lhe e pegou a mão pequena de Isobel.
_Esta é Isobel. É uma filha do coração, a quem quero muito bem e que
cuida de mim com desvelo e carinho! Faz-se-me preciosa companhia em
minha solidão!
Flávia enrubesceu. Seria possível que...
_Não, minha amiga! Não é o que pensas _ riu o velho. _Vejo em teus
olhos a desaprovação. Isobel não é minha esposa, se é o que queres dizer. Não.
É uma filha de minha alma que me foi concedida pela graça divina para tomar
conta de minha desventurada pessoa! Eu a comprei num leilão de escravos em
Roma, mas já a libertei e ela agora serve-me por caridade .
_Não digais tais coisas, senhor! _ protestou Isobel. _ Estou feliz e grata
por vossa ajuda e vos sirvo porque vos amo. És o pai que me falta, se me
permitis a comparação. Não acrediteis, senhora Flávia! O senhor senador é
uma pessoa muito modesta e boa.
Flávia desviou os olhos de Isobel para Severus, ainda mais curiosa.
_Tu a comprastes? És uma jovem muito bonita! De onde vens, Isobel? _
Flávia tinha a impressão de ter ouvido aquele nome antes.
_Da Bretanha, senhora _ respondeu ela com suavidade e o timbre de sua
voz a encantou. Isobel parecia mesmo um ser alado, de outro mundo!
_Da Bretanha? Então... _ ela lembrou-se.
Hagonah! Isobel era cunhada de Hagonah! Levantando-se um pouco,
especulou-lhe a fisionomia com mais cuidado. Ela era mesmo linda! E uma
pontinha de ciúme toldou-lhe a expressão.
Hagonah adorava a cunhada! Será que não a amava tanto quanto o
irmão ?
_Isobel pediu-me que viéssemos à tua casa, Flávia, com um propósito.
Por isso disse a ti que duas razões moviam-me a visitar-te.
Como Flávia apenas franzisse o cenho, continuou.
_Isobel era escrava capturada por teu marido quando na última
campanha. Junto com ela vieram mais alguns homens e mulheres e algumas
crianças que também foram vendidas. Bem, ela teve seu pequeno filho
arrancado de seus braços e até hoje o procura sem esperanças de reencontrá-
lo. Separada da família, Isobel soube por teu amigo Otávius que o cunhado
dela havia sido comprado por Plínio. Por isso, quando foi possível, pediu-me
112
ajuda para reencontrar o irmão do marido morto, pois lhe tem grande apresso.
Então, viemos para ver o teu escravo, Flávia, e aproveitei também para rever-
te.
Flávia estava incomodada. O que será que Hagonah iria sentir quando
visse a cunhada novamente?
_Não sei se poderei ser útil, Severus. Meu marido não está, como bem o
sabes e ele é responsável pelos escravos _ pegou-se a dizer.
_Seu nome é Hagonah, senhora _ interferiu a moça. _Talvez já o tenha
visto em vossa propriedade...
_Hagonah...Sim, talvez. É possível que sim. Não tenho muito contato
com os escravos.
_Senhora, Hagonah não é vosso administrador? _ falou Sura que entrara
silenciosa e colocava os cálices sobre a mesa.
Flávia lançou-lhe um olhar de advertência e a moça encolheu-se.
_Por favor, senhora...Não vos quero incomodar com meus pedidos, mas
é muito importante que eu veja meu irmão – implorou Isobel.
Diante do brilho persuasivo daqueles olhos, Flávia não soube como
negar.
_Talvez seja a mesma pessoa, não posso saber.
_E certamente permitirás que Isobel tenha alguns momentos com seu
cunhado. Não sabes o que é perder uma família, minha querida _ falou
Severus, delicado.
Flávia não via saída. Não podia recusar nada a Severus sem que
deixasse transparecer a sua indisposição para ajudar. Depois, quem
compreenderia sua relutância?
_Sim, claro. Desejas vê-lo agora?
_Somente quando a senhora o desejar. Não quero aborrecer-vos com
meus anseios, senhora Flávia. _ respondeu Isobel. Afastando-se um pouco,
ofereceu uma fruta ao velho senador e uma taça de vinho para matar-lhe a
sede.
Como Hagonah poderia não amar sua cunhada? Quem não amaria tal
criatura? Esses pensamentos a deprimiram mais. Ao virar o rosto para que não
vissem sua expressão de tristeza, mostrou a parte da face marcada pelo
chicote.
O senador sentiu o coração confranger-se por seu sofrimento. Tinha
certeza de que fora Plínio o causador de tal crime. O homem era violento e
sabia dos ciúmes que sentia de Flávia. Mas tal brutalidade contra uma criatura
indefesa, principalmente sua esposa, deveria receber uma punição. Logo que
pensou nisso, Severus recriminou-se. Não seria ele a julgar e condenar
113
alguém, somente a Deus cabia tal julgamento. Era o homem velho a ressurgir
que o fazia pensar assim, com revolta no coração.
Isobel também a fitou com piedade. Flávia, havia percebido, tinha um
grande sofrimento na alma.
_Senhora, eu poderia pedir à vossa serva que me levasse aos aposentos
dos escravos para descansar um pouco? A viagem foi longa e gostaria de
poder trocar-me para apresentar-me melhor diante de vossa pessoa _ Isobel
pediu humildemente, a fim de distraí-la.
Flávia sobressaltou-se.
_Oh, sim, claro! Sura, leva Isobel aos teus aposentos. Depois veremos
outros melhores para acolhê-la. O senador Severus também deve querer
descansar um pouco. Vou levar-te aos aposentos de hóspedes, Severus.
Depois poderemos conversar um pouco mais.
Dizendo isso, ela levantou-se e esperou que Severus a seguisse.
Para ele, Isobel, na qualidade de filha, não iria aos aposentos dos
escravos, mas como ela mesma pedira, nada pudera fazer.
Seguindo Flávia, o ancião conversava amenidades para distraí-la.
Também ele percebera que alguma coisa não ia bem. Sua jovem amiga estava
diferente, mais triste e circunspecta.
Isobel, enquanto seguia Sura pelos corredores, procurava saber alguma
coisa de Hagonah.
_Tu, Sura, conheces Hagonah?
_Sim, senhora. O senhor Hagonah é o administrador. É muito bom para
cuidar das coisas.
_E ...
_Mas ele anda um pouco...estranho! tenho um pouco de medo dele!
_Medo de Hagonah? Não receies! É um bom homem e tem um grande
coração!
_A senhora o diz, eu acredito. Sois alguma coisa dele?
Sura estava especulando e Isobel sorriu.
_Sim. É meu irmão. Não de sangue, mas casei-me com seu irmão
Hagon. Infelizmente, ele morreu enquanto nos defendia do cerco romano.
A tristeza na voz de Isobel comoveu Sura. Ela parou e fitou a jovem.
_E a senhora o amava muito, não é?
_Sim, eu o amava. Ainda amo. Um amor como o nosso não se acaba
com a morte. Mas deixemos as tristezas, pois estão no passado. Deus é
misericórdia e bondade, há de permitir que reencontre meu Hagon um dia!
Sura fitou-a, surpresa com aquelas palavras. De que deus ela falava?
_Sim, é assim que deve ser. As almas afins se encontram no reino dos
céus. Jesus o disse.
114
Quem era aquele Jesus? Perguntava-se Sura, aparvalhada. Certamente
mais um dos muitos deuses romanos ou bárbaros. Cada um com sua crença,
pensava ela, respeitosa. Sorrindo para Isobel, mostrou-lhe o compartimento
em que vivia.
_Onde posso encontrar Hagonah, Sura?
_ No gabinete particular do senhor Plínio, senhora. Mas deveis avisar
antes, ele não gosta de visitas.
_Sim, eu o farei.
_Podeis descansar agora, senhora.
_Por favor, não me chames de senhora. Sou como tu, uma pessoa
comum. Somos irmãos em Deus e não devemos nos tratar senão como iguais.
Também eu fui escrava, não sabes? _ Isobel pegou-lhe as mãos e sorriu.
_Deus permitiu-me encontrar um homem bom que me libertou o corpo, mas
somente Ele liberta nossa alma, Sura. Ainda que presos por aguilhões de ferro,
podemos ser livres em Jesus!
Sura estava abismada. Não sabia o que dizer, nunca ouvira tais coisas
antes!
_Senhora, o que dizeis? Não compreendo!
_Compreenderás quando contar-te sobre o Messias! Mas agora, preciso
mesmo descansar um pouco. Logo irei ter com Hagonah e preciso estar bem.
Sura olhou para a moça que mais parecia uma deusa descida do céu e
pensou que poderia estar louca, a pobrezinha! Falava de coisas
incompreensíveis!
Iguais? Jamais poderia ser igual a um liberto. Era escrava, nada mais
que isso! Nem alma tinham, diziam os romanos!
Balançando a cabeça, Sura voltou para o salão.
_Que gente estranha! _ murmurou para si mesma.
* * *
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CAPÍTULO XXI
Hagonah estava inclinado sobre os livros de Plínio quando ouviu passos
suaves atravessando o pátio interno. Levantando-se, foi ver se era Flávia,
permanecendo atrás da porta, meio escondido.
Era assim que a via passear . Sentia-se irresistivelmente atraído para ela
toda vez que lhe ouvia os passos nas pedras. Ficava ali, olhando-a meditar,
tocar as flores e a desenhar alguma coisa num pedaço de pergaminho.
Mas agora, vendo-a inclinada sobre o batente da fonte, percebia-lhe a
expressão de profundo sofrimento. Seria por saudades do esposo ausente?
Depois daquele convite para cear com ela e o qual recusara, duas
semanas haviam-se passado e Flávia nunca mais o procurou. Então, ele
somente a via assim, escondido.
Não importava o ressentimento ou qualquer outra força que os separava,
a intensidade de seus sentimentos para com ela não o deixavam em paz,
atormentando-o com lembranças fugidias dos momentos em que foram
felizes.
Mas naquele dia, havia algo mais. Flávia chorava silenciosamente e seu
coração confrangia-se ao vê-la tão...frágil.
Sem resistir por mais tempo, atravessou a porta e aproximou-se
vagarosamente, parando logo às suas costas.
Flávia pressentiu sua presença, pois voltou-se assustada. Logo limpou
os rosto com as mãos e levantou-se, esticando as costas.
_O que desejas, Hagonah? Alguma coisa que precisas saber? _
perguntou, tentando ignorar as batidas loucas de seu coração.
Ele a fitou em silencio por alguns segundos e depois afastou-se um
pouco.
_Não preciso de nada...senhora Flávia. Eu vos vi no pátio e pensei
em...conversarmos um pouco. Talvez sobre as providências que tenho que
tomar em relação à propriedade... _ era uma desculpa fraca, mas a única que
lhe veio à mente.
_Eles estão prontos, os livros que me pedistes, senhora. _Ele tornou,
apertando o maxilar.
Flávia sorriu e escondeu a felicidade sob uma aparência casual. Ele
ainda se importava com ela ou não teria ido até lá e mentido daquela maneira.
_Ah, sim? Poderíamos vê-los depois. Agora preciso falar-te algo.
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“Queria tanto poder contar-te, Hagonah! “, pensou ela. “Queria poder
falar-te sobre nosso filho”...
_ Então?
_Lembras-te de que me contaste uma vez sobre teu irmão e tua
cunhada...
“Como não lembrar?”, pensou ele, evocando as imagens daquele dia.
Eles haviam ficado juntos numa tarde quente e confidenciou-lhe toda sua vida.
Hagonah sacudiu a cabeça para afastar as lembranças que lhe
acordavam as paixões.
_Sim, eu me lembro. Mas o que tem ...
_Deixa-me terminar, por favor _ ela pediu-lhe, levantando a mão
pequena. _ Falaste-me de Isobel e do filhinho dela e do quanto gostaria de
saber onde estavam. Pois então ficarás feliz, suponho. Tua cunhada está aqui,
em nossa casa.
Hagonah parecia não acreditar.
_Como?
_Sim, Isobel está aqui em nossa casa. Ela chegou esta manhã com meu
amigo, o senador Severus.
O rosto de Hagonah iluminou-se e depois de tantos dias, finalmente viu-
lhe a alegria nos olhos. A ansiedade em sua expressão era visível, apesar de
tentar contê-la.
_E onde está? Como chegou aqui? Eu preciso vê-la!
_Sim, tu a verás esta noite. Por isso, não poderás recusar o meu convite
para cear, desta vez.
Hagonah enrubesceu, mas logo recuperou-se. Assumindo um ar
comedido, baixou a cabeça concordando.
_Eu estarei lá, senhora Flávia. E estou muito feliz que me tenhais
trazido notícias tão boas.
_Eu suponho que sim, Hagonah. Agora vou retirar-me. Quero estar
descansada para a noite. Com licença. _Flávia não olhou para trás, mas o
gosto amargo do ciúme provocou-lhe um travo na boca.
Hagonah parecia mesmo gostar muito de sua cunhada.
_Pelos deuses! Estou a enlouquecer! O ciúme é sentimento destrutivo! _
murmurou, impaciente consigo mesma. Não queria mais perturbar-se, não
queria mais sofrer ,mas como evitar?
Hagonah, por sua vez, pensava na cunhada e no irmão de quem tanto
sentia falta.
Voltando para os papéis, organizou-os e guardou-os rápido. Estava
ansioso para rever Isobel. Ela a amava como amava ao irmão e o fato de não
poder protegê-la na falta deste ainda o constrangia. Mas agora ela estava ali,
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então poderia lhe falar dos planos de fuga e do dinheiro que guardava para
ajudá-los na empreitada. Assim, também poderiam procurar seu sobrinho!
Estava tão nervoso! Havia muito que fazer e precisava trocar-se para a
ceia.
* * *
Isobel estava mais bonita do que quando a vira na manhã daquele dia,
notou Flávia.
Como competir com tal criatura? O desânimo a fez morder uma ameixa
sem cuidados, fazendo o suco escorrer-lhe pelo queixo novamente. Quase
pode ouvir Plínio a dizer-lhe o quanto era desastrada.
Estavam todos no salão, exceto Hagonah que ainda não havia chegado,
mas logo ele aparecia, vestido numa túnica branca e longa com frisos
dourados nas pontas.
As roupas de Hagonah haviam sido dadas por Plínio, que o queria mais
vestido, não porque se importasse com ele, mas para não vê-lo com as túnicas
curtas, como era costume entre os escravos da colheita.
Quando Isobel virou-se para ele, sorriu-lhe feliz e foi ao seu encontro.
Sem constrangimento, ele a estreitou nos braços fortes e escondeu o rosto em
seus cabelos claros. Ficaram assim alguns minutos intermináveis!
Isobel passava-lhe a mão nos cabelos negros a afagá-lo carinhosamente
até que ele afastou-a um pouco e fitou-a longamente.
As manifestações de carinho desagradaram Flávia. Perguntava-se se os
dois não percebiam que estavam constrangendo as outras pessoas, mas depois
recriminou-se. O que sentia era despeito, pois desejava estar no lugar de
Isobel, isso sim.
_Minha querida Isobel! _ ele murmurou, sorrindo. _Como estás bela,
minha irmã! Cuidaram bem de ti, não foi?
_Sim, Hagonah! Deus foi bom comigo! Deu-me um pai e não um
senhor para ajudar-me a superar minha dor de perder-te também! _Isobel tinha
lágrimas nos olhos, e Flávia percebeu que Hagonah tinha os olhos marejados.
_Que bom, minha querida! E agora, como me encontrastes? O que fazes
aqui?
_Espera! Uma pergunta de cada vez! Vem, Hagonah. Quero que
conheças meu benfeitor! _ Pegando-o pela mão, levou-o até eles. _Este é o
senhor Severus, o homem que Deus destinou para cuidar de mim!
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Hagonah estranhava a maneira de falar de Isobel. Muito sério, inclinou-
se para o ancião, respeitoso.
_Senhor Severus, perdoai a impetuosidade de minha irmã, senhor. Mas
ela é jovem e aprenderá depressa as regras da boa conduta.
O velho senador riu e estendeu a mão a Hagonah.
_Não te preocupes, rapaz! Isobel me é muito especial, uma menina
meiga e encantadora. Ao contrário do que diz, ela é quem cuida de mim!
_Isobel não é mais escrava, Hagonah – esclareceu Flávia diante do
constrangimento do homem.
Surpreso, Hagonah olhou para Isobel sem entender.
_Sim, meu irmão! O senhor Severus libertou-me. É um homem justo e
caridoso e não gosta de escravos. Costuma dar a liberdade a todos os que
compra.
_É verdade, Severus? _ surpreendeu-se Flávia.
_Quisera poder comprar muitos escravos, querida. Mas não posso.
_E os que tem em sua casa?
_São todos libertos, Flávia. Eu dou-lhes abrigo e comida, e eles
oferecem-me seus préstimos. Os que desejam ficar comigo, assim me pagam.
Os que não desejam, partem em busca de novas oportunidades. O que não é
fácil, bem o sei. Muitos retornam, pois preferem viver com conforto em troca
de trabalho.
_Mas...assim ficarás pobre!
_Não, minha filha! Sou um homem rico!
Somente Isobel compreendeu o que dizia o velho senador. Com uma
piscadela cúmplice para ela, Severus dirigiu-se à mesa baixa cercada por
grandes almofadas coloridas.
_Por que não deixamos de falar de mim e vamos comer alguma coisa?
Assim nos divertiremos um pouco mais _falou, jovial.
Flávia corou e o seguiu. Hagonah veio logo depois e Isobel sentou-se
perto dele, sem perder a oportunidade de segurar sua mão delicadamente.
Flávia ficou a observar durante todo o jantar aquele idílio que
classificou de amoroso. Quase não comeu e seu estômago dava voltas,
deixando-a pálida. Era a gravidez que a atormentava com enjôos normais ao
seu estado.
Em determinado momento enquanto conversava com Severus sobre
seus amigos de Roma, ouviu-os falar em uma língua estranha que reconheceu
das ocasiões em que Hagonah orava para sua deusa.
Retirando-se para os jardins onde a noite estava agradável, eles
passearam em volta das fontes, entretidos um com o outro. E Flávia não perdia
a oportunidade de observá-los. Viu quando Hagonah pegou Isobel nos ombros
119
e voltou-a para ele, falando alguma coisa muito séria. A moça balançou a
cabeça, negando o que ele dizia e depois afastou-se, triste. Novamente ele a
seguiu e tornou a pegá-la pelos ombros. Mas o que Hagonah disse pareceu não
agradar à jovem, deixando-a um tanto aflita. Ela lhe pediu algo com expressão
suplicante. Tocou-o no rosto delicadamente e ele calou-se um momento.
Parecendo refletir no que ela dissera, capitulou e beijou-lhe a palma da
mão. Logo depois, ela sorriu-lhe e beijou-o na face, deixando-o e
aproximando-se deles.
_Meu senhor, posso retirar-me agora? – perguntou a Severus. _ Não
desejais ainda que vos faça alguma coisa?
_Não minha querida – respondeu Severus, que não perdera um
movimento sequer de sua afilhada com o administrador. Percebera que ela
ficara abalada com alguma coisa mas logo saberia do que se tratava. Isobel
não tinha segredos para com ele. _Podes ir descansar. Ficaremos somente
mais um dia em casa de Flávia, e logo iniciaremos nossa viagem de volta.
_Oh, não ! Não vá tão cedo, Severus! Estou só e gosto muito de tua
companhia! _Exclamou Flávia, mas logo arrependeu-se pois isso implicaria na
estada também de Isobel.
_Não poderei ficar mais tempo contigo, minha amiga, mas posso pedir a
Cornélia que venha te visitar. Ela gostará muito, uma vez que também está só.
Otávius também partiu, lembras-te?
Como se esquecera de Cornélia? A pobre amiga também precisava de
alguém para aplacar-lhe a solidão.
_Sim, Severus. Tens razão!
_Agora vai, Isobel, minha filha. Amanhã poderás conversar um pouco
mais com teu irmão.
Isobel inclinou-se para Flávia, agradecendo por tudo e retirou-se. Mas
Hagonah pareceu não gostar da partida da cunhada. Pensativo, ficara a
observá-la do outro lado da fonte.
Logo o velho Severus também pediu para retirar-se, deixando-os
sozinhos no pátio. Hagonah ficou a observá-la enquanto ela andava de um
lado a outro, mexendo numa flor aqui e acolá.
_O que tens, Flávia? _ perguntou ele de repente.
_Como? _ ela sobressaltou-se ao ouvi-lo tão perto. Não havia percebido
que ele andara até ela.
_O que tens? Não te sentes bem? Vi que não comias nada e que parecias
indisposta. Estás doente? _Hagonah estava realmente preocupado.
Então ele havia percebido! Apesar da atenção voltada para a cunhada,
não perdera um detalhe sequer de sua pessoa!
_E isso importa para ti?
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Ele arqueou as costas e apertou os lábios.
_Queres que diga que me importo com tua saúde? Pois sim, importo-
me. Afinal, tenho que cuidar de tudo para quando teu esposo retornar. Tudo
deve estar em ordem.
_Mas não sou um objeto de meu marido e muito menos tua obrigação,
administrador! _ Flávia indignou-se.
_Não foi isso o que quis dizer. Mas deixa estar. Estais bem, senão não
terias sido tão malcriada!
_ E tu não precisarias mentir para mim!
_Mentir? Em que menti?
_Sobre Isobel! Tu a amas, eu vi!
Hagonah a fitou tentando ler-lhe os pensamentos.
_Estás com ciúmes de Isobel?
_Que tolice! Eu, uma romana com ciúmes de uma escrava ?
Hagonah empalideceu e apertou os lábios novamente.
Flávia percebeu tarde demais o que havia dito.
_Não era o que...Hagonah, sinto muito! Não quis dizer isso!
Ela tentou amenizar o que dissera, mas via que só piorava as coisas.
_Eu havia me esquecido, senhora , que os romanos só precisam de nós
para instrumentos de seu prazer! Como poderias ter ciúmes de um escravo,
não é mesmo? _ ele retorquiu, mordaz.
_Não! Por favor, não foi isso o que quis dizer!
Ela o tocou novamente no braço, mas ele afastou-se de novo, como da
outra vez.
_Necessitais ainda de meus serviços, senhora ? Se não, vou recolher-
me. Tenho trabalho duro logo pela manhã. É assim que os romanos mantém
suas riquezas: com o nosso sacrifício.
_Não, Hagonah. Não vou mais precisar de ti. Podes ir. _ ela respondeu,
vendo que nada do que dissesse mudaria a opinião que ele tinha a seu respeito.
Hagonah ainda a fitou um segundo e depois virou-se e foi embora.
Flávia não via solução para seus desencontros. Era uma mulher casada
que teria o filho de outro homem.
Estava mesmo condenada pelos deuses !
Cansada, ela também retirou-se para seus aposentos.
Somente Sura a tudo observava, sentindo pena do sofrimento da
senhora.
Indo atrás de Hagonah, interceptou-o no caminho. Ele não pretendia
dormir ainda.
_Senhor! _ Chamou-o .
Hagonah esperou que ela chegasse até ele.
121
_O que foi, Sura?
_ Quero vos pedir que não façais minha senhora sofrer mais!
_ Eu não devo fazer tua senhora sofrer? Tu mais do que ninguém o
sabes! Não desejo fazê-la sofrer, mas não posso continuar a ser o que fui,
Sura!
_Perdoai, senhor! Tende piedade de minha senhora! Ela sofre porque
vos ama!
Hagonah sentiu o coração saltar no peito.
_E como sabes? Por que devo acreditar em ti?
_Por que conheço a senhora Flávia e ouço-lhe as confidências! Uma
vez, meu senhor a quem amo de coração, pediu que eu traísse minha senhora
contando-lhe as suas confidências. Mas eu não pude fazê-lo! Por isso sei o que
se passa em seu coração! Ela vos ama, senhor! Mentiu por que não vos queria
perder! Minha senhora jamais foi feliz com o senhor Plínio!
_ E o que queres que eu faça, Sura? Esforço-me para manter-me longe
de tua senhora, o que queres mais? _ Hagonah estava amargo. Tudo o que ela
lhe dissera não parecia verdade. Não conseguia acreditar. Depois, como
pensar em Flávia quando tinha tanta coisa a resolver?
_Ide , senhor! Se não amais a minha senhora e não lhe podeis dar um
futuro, ide para bem longe! Poderias aproveitar a oportunidade, pois o meu
senhor não chegará ainda tão cedo... _ dando-lhe as costas, Sura fugiu depois
de falar o que lhe ia na alma.
Hagonah ficou a observar a figura da negra desaparecer na escuridão.
Será que ela dizia a verdade? Será que Flávia fizera aquilo tudo porque
o amava ?
Não achava possível. Ela mesma o dissera: uma romana não amava ou
sentia ciúmes de um escravo. Não foram bem essas palavras, mas era mesma
coisa.
Hagonah impacientou-se, pois sua noite fora frustrante, apesar do
encontro com Isobel. Contara para a cunhada seus planos e ela o demovera de
pegar o dinheiro de Plínio. Como devolver tudo agora? Já fizera as contas nos
livros! Onde estava com a cabeça para fazer o que fez?
Teria que equilibrar-se! Precisava pensar em sua missão e em como
executá-la. Mas a imagem de Flávia o perturbava! Sentia que ia enlouquecer
com as pressões que se impusera. A lembrança de sua fisionomia abatida não
lhe saía da mente!
Resolveu que iria dormir no alto das pedras, no altar. Estava quente e lá
teria um pouco de paz.
122
* * *
Flávia caminhava nos jardins das termas. Estava muito enjoada naquela
manhã! Quando iria acabar aquele suplício?
Surpreendeu-se com Hagonah descendo das pedras. Quando ele a viu,
também sobressaltou-se.
Passando a mão pelos cabelos para penteá-los, ele aproximou-se com a
túnica a cobrir-lhe os ombros. Vestia o saiote e as sandálias de couro.
Flávia ficou com as faces rubras.
_Que fazes aqui tão cedo, Flávia? _ perguntou ele, após vestir a mesma
túnica da noite.
_Ora, e tu, o que fazes aqui? Não devias estar trabalhando?
_Sim, é o que vou fazer. Não consegui dormir durante a noite e perdi a
noção do tempo.
_E eu estou a caminhar um pouco para tomar ar.
Ele a observou e estranhou-lhe a palidez. Naquele exato momento,
como para mostrar-lhe a sua fragilidade, ela teve um espasmo e correu para
um canto.
Hagonah a amparou enquanto os espasmos iam e vinham. Depois,
tirando a túnica e molhando-a na água da fonte, passou-lhe pela testa,
esperando que melhorasse.
Flávia respirava fundo tentando acalmar-se.
_O que tens, Flávia? Não vais dizer-me? Estás doente!
_Não é nada! Estou apenas indisposta. Talvez alguma coisa que tenha
comido...
Flávia levantou-se da pedra em que estava apoiada e foi até a água.
Lavando o rosto e a boca, decidiu comer alguma fruta para tirar o gosto
estranho que ficara em seu paladar.
_Vou voltar para casa – falou, caminhando rápido. Hagonah vinha logo
atrás.
Severus estava no pátio e esperava-a para o desjejum. Ao ver o jovem
escravo sem a túnica, franziu o cenho e olhou para Flávia, desconfiado e
divertido.
Hagonah retirou-se com um aceno respeitoso e foi vestir-se.
Flávia sentou-se com as faces em fogo. O que Severus iria pensar
agora?
123
_Encontrei Hagonah por acaso nas termas _ começou, pegando uma
fruta. _ Ele costumava mexer nos jardins. Fez um trabalho muito bom.
Severus sorriu-lhe compreensivo. Pegando um copo de prata, encheu-o
com leite e mel.
_E Isobel, onde está?
_Ainda não acordou, suponho. Nós somos madrugadores, minha cara!
De repente, Isobel apareceu como se tivesse se materializado.
Com uma aparência fresca e sorriso delicado, pediu licença e sentou-se
próxima a eles. Depois, pegou uma fatia pequenina de pão e entreteve-se em
mastigá-la.
_Como passaste a noite, Isobel? _ perguntou Flávia com uma estranha
desconfiança.
Será que ela estivera com Hagonah? Estava ficando louca! Como
poderia pensar em tal coisa?
_Oh, muito bem, obrigada, senhora Flávia! Dormi como um bebê! Sura
é excelente companheira _ respondeu ela com suavidade.
_Sim, é muito boa moça. O que vais fazer hoje? Podes usar os banhos,
se o quiseres. _ ela sugeriu, aliviada.
_Oh, não senhora! Eu não sei nadar. Hagon tentou ensinar-me algumas
vezes, mas...sou desajeitada e não consegui aprender!
_Hagon? Oh, teu esposo!
_Sim, meu falecido marido. Era um homem muito bom e muito forte
também!
_E tu o amavas?
Isobel sorriu, pensando em quantos haviam lhe feito esta pergunta.
Afinal, como casar-se sem amar o marido?
_Sim, senhora. Eu o amava. Eu o amo.
_Mas está morto! Como podes amá-lo ainda?
_O amor não morre com o ente querido, senhora!
_Mas... não o esquecestes? Não sentes vontade de te casares
novamente?
_Não , senhora. Somente um homem conquistou-me o espírito, e este
está nos céus. Nenhum outro poderá suprir a falta de meu Hagon em meu
coração!
_Nem o irmão, Hagonah? _ Depois que fez a pergunta, ela penitenciou-
se, cobrindo a boca.
Isobel sorriu-lhe novamente, compreendendo a reserva que a romana
tinha sobre ela, finalmente.
124
_Não, senhora. Nem Hagonah! Depois, meu irmão tem outro amor, não
há lugar para mais ninguém! _ ela respondeu, misteriosa. _ A não ser Deus,
ninguém mais lhe preencheria o coração, senhora Flávia.
_Tu queres dizer a deusa Mãe...
_Não. Quero dizer Deus. Somente Ele pode entrar no coração de
Hagonah e compartilhar o amor que ele já sente por outra pessoa.
_Eu não conheço esse Deus. Hagonah nunca me falou de um Deus e
sim de uma deusa.
_Hagonah vos falou sobre a deusa Mãe? Ele vos contou que era
sacerdote?_ _Isobel surpreendeu-se.
_Sim. Disse-me que ainda não era realmente um sacerdote de sua
religião. Falou-me também sobre seu pai e sua tribo. Porquê? Não deveria?
Ela sorriu-lhe, feliz. Parecia saber de algo que ela não sabia.
_Sim, deveria. Meu irmão seria sacerdote, não fosse seu temperamento
rebelde. Hagonah não falou sobre Deus, porque não O conhece ainda. Mas eu
vou mostrar-lhe. Vim para isso, senhora.
Flávia deu de ombros. Mais um deus, o que importava? Eram todos
frívolos e cheios de paixões humanas!
De repente, mais um espasmo. A fruta ameaçava voltar de seu
estômago. Flávia levantou-se e correu porta afora.
Isobel foi ajudá-la. Depois, levou-a para o leito e deitou-a .
_Pronto, senhora. _ falou, alisando-lhe a fronte. _ Dorme um pouco
mais e logo estarás bem. E vosso bebê também.
Flávia fitou-a assustada. Como ela sabia? Fora Sura quem lhe contara!
_Não tenhais receio. Não contarei nada a ninguém. Descansai um
pouco, senhora...
Flávia, sentindo estranha sonolência, fechou os olhos e logo adormeceu.
Isobel sorriu e ainda ficou um pouco a alisar-lhe aos cabelos. Depois, muito
séria, foi procurar Hagonah.
O administrador estava novamente inclinado sobre os livros com as
mãos nas têmporas a olhar sem ver os números.
Isobel aproximou-se leve como uma pluma e parou à sua frente.
_O que te atormenta, meu cunhado? Ainda não consertaste teus erros?
Hagonah levantou a cabeça, surpreso. Sorriu com tristeza e levantou-se,
pegando-lhe a mão.
_Minha querida irmã, eu estou mesmo muito confuso! Tenho que ajudar
meu povo, mas não posso roubar dinheiro do centurião, senão igualar-me-ei a
ele! Entretanto, como fazer para ajustar as contas novamente? Terei que
refazer todos os livros!
125
_Então refaça, meu irmão! Não tente consertar um erro cometendo
outros! Depois, não há como ajudar nosso povo, porque não existe nosso
povo! Somos todos um só povo, somos todos irmãos em Deus, Hagonah!
_Estais a dizer coisas estranhas, Isobel! Negas nossa raça!
_Não são estranhas para ti! Já as conheceis, lembras-te? Teu pai brigava
contigo porque lias os pergaminhos dos cristãos!
_ É verdade! O profeta dos judeus! Mas...como sabes dos cristãos?
_Porque sou um deles, Hagonah. Sou cristã.
Hagonah abriu os olhos, assustado. Depois, soltou-a e afastou-se,
olhando-a como se visse um espectro.
_Tu deixastes a deusa por um carpinteiro que morreu na cruz? Eu não
posso acreditar, Isobel! Logo tu, que amavas a deusa Mãe tanto quanto eu!
_Agora amo a Jesus, meu irmão! As consolações que nossa deusa não
me pode dar, Jesus a deu! Hoje sou feliz porque Ele trouxe-me a compreensão
e o perdão, Hagonah!
_Não posso acreditar no que dizes! E o que fizeram contigo para que
acreditasses em seus encantos e persuasões?
_Nada, meu irmão _ela sorriu-lhe, cândida. _ O exemplo é o melhor
conselho. O senhor Severus levou-me a um encontro onde ouvi preleções que
me alimentaram o espírito como jamais aconteceu!
_O senhor Severus? Mas...como?
_O senador Severus também é cristão, Hagonah! Por isso libertou-me
porque Jesus diz que nenhum homem deve ser escravo do outro, pois somos
todos filho do mesmo Pai que está nos céus!
_Como posso aceitar a tua renúncia, quando o que mais precisava agora
era fortalecer minha fé em nossa crença, para cumprir minha missão? _
Hagonah sentia-se perdido. _Não pode ser verdade que esta doutrina dos
cristãos está tomando todo o mundo! E nossa querida Mãe?
_Jesus é filho do altíssimo como todos nós e prega o amor ao próximo,
o perdão das ofensas e o nascer de novo para nos redimir-mos de nossos erros
do passado. Nossa deusa é caprichosa e egoísta! Jesus é humilde e pacífico,
prega a paz entre todos os homens e pede que nos amemos uns aos outros
como irmãos. Não compreendes, Hagonah? Para Jesus, não há escravos ou
senhores, somente servidores de Deus, todos!
Hagonah a olhava, ainda confuso.
_Tu enlouquecestes, Isobel? _Ele não queria aceitar a conversão da
cunhada, ainda que os preceitos que abraçara fossem bons.
Isobel sorriu, compreensiva.
_Vais entender, meu irmão. Quando conheceres melhor a doutrina
cristã, vais compreender tudo, enfim! E descobrirás que tua missão é levar o
126
que resta de nossa tribo ao amor de Deus! A Lei diz que não devemos adorar
imagens do que está nos céus ou na terra e sim o Criador de todas as coisas!
Teu pai já o dizia, Hagonah! Ele falava de um Deus único, sem que os outros
o soubessem!
_O que dizes? Eu nunca o ouvi falar tais coisas!
_Sim, ele o dizia! Nós também conversávamos, eu, ele e teu irmão.
Hagon podia ser um guerreiro, mas também era um homem sábio! Lutava com
as espadas porque não havia outro meio de defender nossa gente, mas matar
para ele era um suplício!
_Eu não sabia disso! Sempre pensei que Hagon gostasse das armas e da
guerra!
_Não, meu amigo! Ele desejava ser sacerdote em teu lugar! Mas não
fora escolhido nessa vida! Tu tinhas a missão, não ele!
_Isso é uma ironia! Eu jamais desejei ser sacerdote...
_Sim, eu o sei. E Hagon também o sabia. Mas entendíamos que a deusa
o havia escolhido, portanto, assim deveria ser. Hoje sei o que estava destinado
a ti, Hagonah! E Deus nos trouxe para cá a fim de compreender isso!
_Não! _ ele não se conformava. Amargurado com tantos sofrimentos,
não podia aceitar que tantos infortúnios e mortes fossem por sua causa! _ este
Deus não é misericordioso! Por que tantos deveriam sofrer e morrer para que
eu aprendesse?
_És pretensioso, meu irmão! Não foi por tua causa que sofremos e
morremos tantos! Deves considerar o porquê de haver sido poupada a tua
vida, Hagonah! E a minha! Fui comprada por um homem generoso que me
ensinou o caminho da verdadeira vida! E tu agora podes também conhecer
esse caminho! Eu vou ensinar-te, Hagonah!
Hagonah olhou para Isobel que parecia tão bela com aquele brilho nos
olhos claros. Em dúvida quanto a verdade do que ela dizia, preferiu guardar
para si os seus pensamentos. Ele estava confuso!
_E teu filho, Isobel? Tu também te esquecestes dele? _ perguntou
ressentido.
O brilho de felicidade dos olhos da cunhada desapareceu por um
momento, sendo substituído por imensa tristeza e Hagonah até mesmo se
arrependeu de havê-la magoado.
_Não, uma mãe jamais esquece seu rebento, meu irmão! Mas eu
entreguei à Deus o destino de meu pequeno. Peço a Jesus todos os dias que se
eu merecer, um dia o encontre e o possa abraçar! Mas desejo acima de tudo
que sua alma esteja em paz, bafejada pela doutrina que me alenta o espírito!
Sei que mais dia menos dia nos encontraremos e se ele me foi arrebatado, era
porque havia uma razão para isso!
127
Hagonah a fitava, admirado de sua serenidade. Invejava a paz da
cunhada, paz que seu Espírito não conhecia. Ele suspirou, enfim.
Isobel pegou-lhe as mãos, carinhosamente.
_Quando puderes, vem à minha casa, Hagonah e eu te mostrarei Aquele
que me deu a serenidade. Tira esse ressentimento do teu coração! Não é certo
o que fizeste, não é certo amares e almejares alguém que não é para ti ainda!
Deixa Flávia com seu destino e segue o teu! Deus haverá de libertar-te para O
conheceres e então, quando tudo estiver em seu lugar, tu a terás, enfim! Mas
não agora, não ainda! Ela tem um compromisso que não deve ser ignorado! Já
fizeste o suficiente, meu irmão!
Hagonah assustou-se e afastou-se, enrubescido.
_Como sabes sobre mim e Flávia?
_Deus me mostra coisas que não podes compreender! Sei da dor em teu
coração e tenho olhos que vêem , que sabem reconhecer um homem e uma
mulher apaixonados! Nada que outros não possam ver também. E este é o
perigo que ambos estão correndo! Pedirei a Deus que te liberte dos aguilhões
que te prendem à escravidão, meu irmão, e então poderás partir e ir ao meu
encontro. E Ele haverá de conceder-te esta graça, tenho certeza!
_Partir? _ Ele murmurou. Caminhando até a pequena fonte que jorrava
água, pousou as mãos na amurada e ficou olhando as pulseiras de couro que
lhe prendiam os pulsos, uma marca de sua escravidão. Não as podia tirar, pois
diziam a quem pertencia por direito. Aquelas pulseiras sempre o lembravam
que apesar da posição que ocupava, não era mais que um escravo!
Partir! Ser livre novamente! Mas como abandonar Flávia? Apesar de
tudo, ele a amava! Como deixá-la a mercê de Plínio? Fugir estava em seus
planos, mas agora que se apresentava a urgência de partir e deixar a mulher
que amava para trás, ele relutava.
_Sabes que a marca no rosto de Flávia foi feita pelo chicote do
centurião, não sabes? _ comentou Hagonah.
_Sim, eu sei.
_Então, como me pedes que a deixe?
_E o que poderás fazer contra o teu senhor?
_Não sei. Mas não permitirei que a maltrate novamente!
Isobel o observou um momento. Depois, sorriu-lhe e completou:
_Sabes que se ficares poderás significar algo muito pior para quem
amas?
_Não!
_Sim, Hagonah! Flávia espera um filho. Um filho teu.
Hagonah empalideceu. Chegando até Isobel, pegou-a pelos ombros,
aflito.
128
_O que dizes? Como sabes?
_ Conversei com Nayara e ela confirmou-me. Flávia espera um filho
teu. O que vais fazer, meu irmão? Não o podes criar, não podes dar a ele um
futuro e, ao contrário, se o centurião sequer desconfiar de teu amor por Flávia,
poderá condenar a ambos à morte!
Hagonah tinha as mãos trêmulas. Soltou-lhe os ombros, depois correu
os dedos pelos cabelos num gesto desesperado. Seus olhos voltaram-se para
Isobel, perdidos.
_Que posso fazer? Ajuda-me, Isobel! Minha insensatez nos levou a isto!
Que vai ser de Flávia e de meu filho?
A impotência o atormentava. Era só um escravo e ela uma romana!
Sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos , mas ainda não as deixou cair.
_Sou o culpado de tudo! Minha paixão envolveu-a nisso e agora não sei
o que fazer! Não posso deixar meu filho e minha esposa nas mãos daquele
homem cruel! Ele quase a matou!
_Sim, e por tua causa. Plínio voltou naquela noite em que ambos
estavam se casaram e quando ela retornou, ele a agrediu por ciúmes. Nayara
contou-me. Hagonah. Se ficares poderás ser a causa da morte de quem tanto
queres bem. É isso o que desejas? Não a poderás defender, és somente uma
propriedade, um objeto de uso e desuso para os romanos! Compreendes?
_Mas...e meu filho? O que será de meu filho?
_Ele ficará bem. Plínio o criará como se dele fosse e o amará muito,
verás!
Hagonah não conseguia medir a extensão de seu sofrimento.
_Por que, em nome de teu Deus, tudo me foi tirado? Por que, com tantas
mulheres, fui amar uma que não me pertenceria? E meu filho? Terei que abrir
mão de meu filho também em favor de alguém que me fez tanto mal! Tudo me
parece injusto, Isobel! Por que a deusa Mãe me pune? Será que foi porque eu
nunca quis ser sacerdote?
_Não, Hagonah! A deusa não nos pune! Foram tuas ações que te
colocaram onde te encontras agora! Deus ensinou-me que devemos responder
por nossos atos, sejam os de ontem ou os de hoje! Tudo tem uma razão, meu
irmão! Se Ele nos ama, o sofrimento tem uma causa. Um pai não impõe ao
filho a dor se não houver uma razão justa!
_Mas eu não vejo a razão de minha desventura!
_Mas verás! Logo a compreenderás. Importa agora é que renuncies ao
teu amor para que possas enfim cumprires o teu destino. Cometeste um erro,
não sozinho é certo, mas podes, senão repará-lo, não agravá-lo. Deixa Flávia
com seu destino e segue o teu, Hagonah!
129
_Mas...se ela não é meu destino, por que a conheci? Por que me
trouxeram para cá, justamente para a casa de Flávia?
_Por que era tua prova e não a pudeste superar! Teu momento com
Flávia chegará, mas não agora! Não ainda! E quanto mais cedo compreenderes
isso, melhor será para ti e para ela.
Hagonah alisou novamente os cabelos. Não sabia o que pensar ou o que
fazer. Não tinha forças para renunciar a Flávia e agora que sabia de seu filho...
_Ouve, Hagonah! Digo-te que deves renunciar. Mas somente tu poderás
decidir o teu caminho. A decisão pertence a ti e terás que arcar com as
conseqüências dela também. Deus não te obriga a aceitar os desígnios que
foram escolhidos muitas vezes por ti mesmo. Mas indica sempre o melhor
caminho, embora não nos pareça o mais fácil.
Aproximando-se dele, segurou-lhe novamente as mãos.
_Deus te libertará, se o quiseres. Mas é preciso que o desejes realmente.
Eu vou partir logo, não poderei ficar mais tempo, pois o senhor Severus deseja
voltar para casa ainda hoje. E talvez não te possa ver novamente , meu irmão!
Mas espero que Jesus ainda nos reuna mais uma vez nessa vida! Ora, meu
querido e confia em Deus! Ele sempre faz o melhor para nós. Agora tenho que
ver como anda nossa Flávia. Até breve, meu irmão. _ E depositando-lhe um
beijo suave na face, seguiu pelo corredor, desaparecendo numa das portas.
Hagonah ficou a pensar em tudo quanto Isobel lhe dissera. Quanto mais
se esforçava para compreender , mais lutava contra a renúncia.
Um filho! Flávia carregava no ventre um filho seu! Se fosse outra a
circunstância, daria pulos de alegria! Que homem não ficaria feliz com um
filho? Ele não era diferente. Ainda mais com a mulher que amava!
“Pelo Deus de Isobel!”, pensou agoniado. Não tinha forças para deixar a
casa de Plínio! Mas sabia que teria que fazê-lo cedo ou tarde. Não havia nada
que pudesse oferecer à Flávia nem ao seu filho! Ela era romana e se fugissem,
Plínio, que era comandante de César, os caçaria e os mataria a sangue frio!
Conhecia a capacidade de odiar do romano! Fora testemunha de sua
hediondez na aldeia. Não teria piedade de nenhum deles!
Mas dá-lo à Plínio? Dar o seu filho para o centurião? Poderia ceder a
criança ao homem que matou seu pai e os seus? Poderia deixar que ele criasse
seu filho odiando os bárbaros?
Seria a vida do filho ou a sua morte. O que poderia ser mais importante?
Teria que tomar uma decisão. E deveria ser rápida. De qualquer forma,
só poderia partir quando o centurião retornasse. Isso depois que ele lhe desse a
liberdade, claro. Ou então teria que fugir.
130
Andando pelo pátio, retirou-se para os aposentos onde trabalhava. Tinha
que consertar os livros. Não deveria tirar nenhuma moeda de Plínio, ou sua
situação ficaria ainda pior.
Em vão, a sombra de seu pai lhe pedisse que não o fizesse, que tudo o
que Plínio tinha lhe pertencia e aos seus. Ele não o ouvia mais. Faria o que era
certo, finalmente. A influência de Isobel fora fundamental para que
recuperasse o equilíbrio e a sensatez, ao menos nesse particular.
Talvez fosse mesmo bom retomar os planos de fuga. Poderia pô-los em
prática um pouco antes da chegada do romano. Sim, era a coisa certa a fazer.
* * *
Isobel estava ao lado da cabeceira de Flávia.
Ela acariciava os cabelos com extremado zelo.
Aquela jovem romana lhe era cara ao coração, intuía no imo de seu ser.
Um carinho imenso a ligava à desventurada Flávia. Talvez seus passos tenham
se cruzado no passado distante, não podia afirmar, mas seus sentimentos
maternais a consideravam como uma filha de sua alma.
Sentia muito por Flávia e por seu destino tão conturbado. Ela teria que
ter muita abnegação e paciência para permitir que Plínio, seu marido, pudesse
partilhar a sua felicidade com o rebento que carregava no ventre. Seria um
alento para seus dias de solidão e uma alegria para o homem de coração
endurecido que elegera como companheiro.
Ainda que tivesse sido obrigada a casar-se pelo pai, Plínio fazia parte
de seu passado e com certeza iria fazer também de seu futuro.
Restava a Flávia não permitir que fosse como um inimigo.
Jesus aconselhara que nos reconciliássemos com nossos inimigos
enquanto a caminho com eles, para evitar males maiores.
Flávia e Plínio faziam parte de uma dessas reconciliações tão difíceis. E
Hagonah sempre fora o pivô da discórdia entre ambos.
O quanto pudesse, Isobel iria influenciar Hagonah para que não
interferisse no relacionamento de Flávia com o marido. Muitos dissabores
poderiam ser evitados, caso seu irmão do coração aceitasse seus conselhos.
Mas a alma é livre para escolher e por isso nem sempre ouve a voz da
razão.
131
Extremamente sensível, Isobel era muito acessível às intuições do mais
alto, o que a auxiliava muito nas horas mais sofridas de sua saudade. Apesar
de tudo, não esquecia o filho querido e o carinho que sentia pelo bebê ainda no
ventre de Flávia tentava suprir a falta que o menino lhe fazia.
Nesse momento, Flávia abriu os olhos e fitou-a com estranheza. Depois,
reconhecendo a cunhada de Hagonah, sentou-se encabulada.
_Perdoa-me, eu acabei adormecendo! _ falou, desculpando-se.
Isobel recolheu as mãos ao colo e sorriu, compreensiva.
_Não há nada para perdoar, senhora Flávia. E agora? Senti-vos melhor?
_Sim, parece que sim – respondeu ela, colocando os pés pequenos no
chão. _E Severus? Onde está? Eu o deixei de repente e agora...Que falta a
minha!
_Não vos atormenteis, senhora. O senhor Severus está nos jardins. Não
dormistes muito, afinal. Senhora, não vos retireis ainda! Necessito falar-vos, é
muito importante!
Flávia, cuja a intenção era mesmo retirar-se pois não se sentia à vontade
na presença da moça, não chegou a levantar-se.
_Sim?
_Senhora...o que vos tenho a dizer talvez não vos seja de todo
agradável, mas...Creio que seja o melhor, no momento.
_Então?
_Senhora Flávia, sabemos que esperais um filho, mas não de vosso
esposo...
_Onde tiraste tal disparate? _ Flávia sentiu-se ofendida e envergonhada
ao mesmo tempo. Como ela soubera ou por quem?
Isobel sorriu-lhe tentando desculpar-se pelo sofrimento que causava.
_Eu o sei, senhora. É de Hagonah o rebento que aguardas com
ansiedade. Não há porque negardes, já o dissemos.
_E quem te falou sobre tais mentiras?
_Não importa, senhora Flávia. Somente o que tenho a dizer-vos é
importante. Ajudai Hagonah a conseguir a liberdade, sei que desejais a
mesma coisa ! Permiti que ele seja livre novamente e possa partir conosco!
Vosso filho precisa que Hagonah vá embora o mais rápido possível, pois
vosso esposo está para chegar e quando souber de vosso estado, correrá
perigo, senhora! Ouvi o que vos digo, pois vem de minha boca, mas não de
meu espírito.
Isobel tinha uma entonação estranha e seu semblante lhe parecia
alterado, como se fosse um dos oráculos que costumava visitar.
Sim, era isso! Agora percebia porque o semblante de Isobel a fazia
lembrar-se de alguém! Ela tinha aquela aparência de sacerdotisa dos templos
132
onde se vaticinavam o futuro! Não eram bruxas, mas enviadas pelos deuses,
diziam as mulheres cujo costume fora importado da Grécia.
_Mas...como podes saber?
_Eu o sei, somente. Escutai minhas palavras, senhora! Se vosso esposo
chegar e encontrar Hagonah aqui, o ciúme o fará perceber que o filho é dele e
então as conseqüências de vosso ato serão sentidas pelo seu menino! O senhor
Plínio não poderá conviver com essa desconfiança e cometerá grandes
desatinos por isso!
_E o que devo fazer? Hagonah não é meu escravo, é propriedade de
meu marido! _ Flávia estava aflita. Entendia o que Isobel dizia e toda a
extensão das possíveis conseqüências, mas daí a libertar Hagonah e permitir
que ele se fosse para sempre...
_A senhora pode libertá-lo! É só o desejar! Dizei que achastes melhor
que assim o fosse e Plínio acreditará em vós!
Flávia levantou-se e andou pelo aposento torcendo as mãos. Lágrimas
perolavam-lhe os olhos quando voltou-se novamente para Isobel, que
compreendia-lhe a luta íntima.
_Diz-me, Isobel: amas a Hagonah?
_Sim, senhora. Mas não como pensais. Somente um homem possuiu o
meu coração, já vos disse. Amo a Hagonah como um irmão querido, somente.
E desejo que ele seja feliz, mas não o poderá ser aqui, perto de vós. Apesar de
tudo, Hagonah é um homem de gênio forte e não poderá garantir a vossa
segurança e a de vosso filho. Prevejo triste fim, se não houver logo esta
separação.
Flávia sofria muito, pois sabia que ela estava certa.
Isobel levantou-se e pegou-lhe as mãos, súplice.
_Senhora, vedes! Sei que o amas e que não desejas apartar-vos dele!
Mas sei também que, se o que sentis é verdadeiro, não permitirás que ele fique
e sofra nas mãos de vosso esposo! Hagonah não permitirá que o senhor Plínio
vos agrida novamente, nem a vós nem ao vosso filho! Compreendeis, senhora,
que poderá significar a morte de um dos dois homens e as mãos de Hagonah
poderão sujar-se de sangue? Ele é forte, mais forte que vosso esposo e não
poupará a vida de Plínio, se perder o controle sobre si mesmo! _Isobel
terminou, grave.
Flávia fitou-a por alguns instantes depois soltou-se de suas mãos e
afastou-se.
_E como posso evitar? Não sei o que fazer para libertar Hagonah!
_Dizei a ele que vá e ele irá, senhora. Deus fará o resto, não vos
atormenteis! Agora, a decisão pertence a ambos! O futuro de vosso filho e de
Hagonah depende de vossa decisão, senhora Flávia!
133
Ao encaminhar-se para a porta, Isobel ainda voltou-se uma vez.
_Senhora, Flávia...Hagonah vos ama e não vos esquecerá! Quando
chegar o momento, encontrá-lo-ei novamente, acreditai!
E retirou-se.
Flávia ficou a olhar para a porta, estática. Depois, como se despertasse
finalmente, andou pelo aposento de um lado para o outro.
Como? Como libertar Hagonah? Não tinha forças para deixá-lo ir-se!
Nunca mais vê-lo? Era horrível! Mais do que ficar vendo-o sem poder
tocá-lo ou conversar com ele! Sabê-lo ali, próximo a ela ainda que não
estivessem em boas relações, satisfazia-a . Mandá-lo ir-se era-lhe impossível!
Mas, e se o que Isobel lhe dissera acontecesse? Hagonah era um homem
forte e poderia sim sujar as mãos com o sangue de Plínio! Era isso o que
desejava para o seu amor? Que cometesse um assassínio?
Hagonah estaria condenado para sempre! Um escravo matar um
romano, um centurião, era a condenação eterna! Jamais poderia escapar das
mãos dos soldados do império!
Era esse o futuro que desejava para ele? E para seu filho? O que seria de
seu filho se Plínio realmente desconfiasse que não lhe pertencia?
Flávia cobriu o rosto com as mãos.
_Não! Ele não pode descobrir! – murmurou em aflição.
Pouco depois, mais calma, caminhou resoluta para o salão e pediu a
Sura que chamasse Hagonah. Ela tomara uma decisão.
Encontrando-a na sala de conferências, Hagonah pode observar-lhe a
palidez. Ele teve ímpetos de abraçá-la e ampará-la. Flávia esperava um filho
dele! Imensa ternura transpareceu em seus olhos.
Ela ficou a observá-lo, sem coragem de dizer o que pretendia. Como
poderia mandá-lo embora? Como?
Hagonah aproximou-se e parou à sua frente. O gesto dela em apertar as
mãos em aflição já lhe era familiar.
_Queríeis ver-me, senhora? – perguntou, num esforço para mostrar-se
indiferente.
_Sim, Hagonah. Eu preciso...preciso dizer-te algo...
_Sim? _ O coração pulou-lhe no peito. Será que Flávia iria contar-lhe?
_Eu...eu pensei muito e...cheguei a uma conclusão.
_E...
Flávia fitou seus olhos e emudeceu. A garganta recusava-se a liberar sua
voz, tão apertada pelo nó que se lhe formara.
Hagonah percebeu-lhe a aflição e as lágrimas em seus olhos. Sem poder
conter-se, deixou cair as barreiras que o afastava da mulher que amava e
externou seus sentimentos tocando-lhe o rosto com as pontas dos dedos.
134
Foi o suficiente para que Flávia soluçasse e se lhe atirasse nos braços.
Hagonah ainda mantinha-se ereto, com os braços ao longo do corpo.
Sentia-lhe o perfume dos cabelos e entontecia-se de amor, mas tinha medo.
Tinha medo de não poder controlar-se, de fazer o que não deveria fazer!
_Perdoa-me, meu amor! Perdoa-me! _pedia ela, com pequenos soluços.
_Eu...eu não pensei que pudesse ferir-te tanto! Mas não pude contar-te porque
perder-te seria insuportável! Amo-te tanto, Hagonah! Acredita em mim, por
favor!
Hagonah ainda vacilou um minuto, mas logo a envolveu num abraço
apertado, desesperado. Com os lábios nos cabelos de Flávia, murmurava
coisas ininteligíveis em sua língua natal, mas que para ela eram como música
dos deuses.
Conhecia aquela entonação, sentia o que significavam. Ficaram
abraçados um ao outro, dizendo coisas, fazendo declarações até que ele parou
e pegou seu rosto entre as mãos .
_Flávia, Flávia... O que poderemos fazer com nossas vidas? Não
devíamos estar nos abraçando e beijando _ murmurou, percorrendo-lhe os
rosto com os olhos aflitos. _ Sou um homem sem futuro e tu és casada e
romana! Que fazemos assim, unidos como se os deuses não nos estivessem
vendo?
_Os deuses foram cruéis em colocar-te em meu caminho somente agora,
Hagonah! Não sei se os perdoarei por brincarem assim com os homens!
_Psiu...não digas tolices, minha querida mentirosa! _Hagonah passou o
dedo suavemente em sua cicatriz e um lampejo de revolta surgiu em seus
olhos.
Flávia então pode vislumbrar o que dissera Isobel sobre as paixões que
dormitavam no interior do homem que amava. Ele não pouparia Plínio se o
visse agredindo-a novamente, tinha certeza!
E aquilo a fez lembrar-se do porque daquele encontro. Uma tristeza
imensa toldou-lhe o semblante.
_O que tens, Flávia? _ Hagonah afligiu-se.
Flávia fez um grande esforço para sorrir-lhe e acarinhou-lhe a face.
_Não é nada, Hagonah! Deixa-me abraçar-te mais um pouco! Não sabes
como ansiei por isso, todos estes dias!
Ele sabia . Ele sabia o que se passava. E sabia o que precisava fazer.
Abraçando-a mais forte, apertou os olhos e encostou os lábios em sua
fronte.
_Eu...eu preciso dizer-te, Hagonah...
_Sim? O que tens a dizer-me, Flávia?_ ele esperava que ela contasse
para ele sobre a gravidez.
135
Ela afastou-se-lhe dos braços e andou até uma coluna, apoiando-se.
_Eu vou libertar-te, Hagonah!
_Não compreendo...O que queres dizer?
_Que vou dar-te a liberdade! Quero que vás, Hagonah! Vou libertar-te e
tu deves ir embora daqui!
Hagonah ficou a olhá-la, surpreso. Uma gama de sentimentos
desencontrados invadiram seu ser.
_Vais dar-me a liberdade? Mas ...Como? Porquê? Tu mesma dissestes
que me amavas e agora...Manda-me embora, é isso? Queres que eu me vá? Eu
não entendo!
_Sim, Hagonah! Deves partir e rápido! –vendo-o com o cenho
carregado, correu até ele e implorou: _ Precisas partir, meu querido! Não
podes permanecer aqui, pois meu marido logo chegará e então...
_Então... _ ele queria que ela lhe contasse sobre o bebê.
_Então poderá não gostar mais de tua presença aqui! Quem nos garante
que não estamos sendo vigiados? Que não há ninguém que possa contar a ele
o que dizemos agora?
_Não temo o centurião!
_Mas eu sim! Eu temo por ti! Temo por... _ interrompeu-se, afastando-
se com a mão sobre o ventre.
Hagonah a seguiu e pegou-a pelos ombros, voltando-a para si. Estava
frustrado e enraivecido.
_Por que, Flávia? Quero me digas claramente o que precisas dizer!
_Não! Não há nada a dizer! Somente que...que se ficares, Plínio poderá
matar-te! Ou a mim! Não entende? Ele não acreditará em mim quando alguém
disser que nos viu juntos e abraçados! Não vês? Fez-me esta marca maldita
porque achou que estivesse a traí-lo! O que fará se descobrir que nos amamos?
Flávia deixou cair algumas lágrimas enquanto a mão alisava os rosto de
Hagonah. Ele tinha o semblante endurecido, frustrado.
Flávia não lhe contaria sobre seu filho! Soltando-a bruscamente, viu que
ela lhe mentia novamente. Como acreditar no amor dela se lhe mentia todo o
tempo? Afastando-se cabisbaixo, pensou que talvez fosse melhor que ela não
soubesse que ele sabia.
Ao vê-lo partir, Flávia sentiu o desespero invadi-la.
_Hagonah! Não quero que vás! Não posso viver sem ti! _ falou ela
finalmente, vencida pelos sentimentos . _Leva-me contigo! Eu irei contigo
para onde fores!
Hagonah voltou-se e fitou-a um momento. Flávia estava grávida e não
poderia fugir por muito tempo. Ele não tinha nada para lhe dar conforto, uma
casa como aquela, nem dinheiro para comprar comida ele teria! Como fazê-la
136
sofrer fugindo dos soldados e da ira de Plínio quando sua gestação já estivesse
adiantada? Flávia não sabia o que era a pobreza ou a privação! Era delicada e
frágil!
Isobel estava certa. Se ele ficasse, poderia ser o fim para os três, de uma
forma ou de outra. Mas se partisse...
Tomando uma decisão, balançou a cabeça, contrito. Caberia a ele
renunciar e partir, como ela desejava. Ela estava certa.
_Não, Flávia. Tu não podes me acompanhar. Eu irei e tu ficarás aqui,
que é o teu lugar. Eu vou partir.
_Não... _ murmurou ela, apertando a mão no peito. _Não posso viver
sem ti, Hagonah! O que será de mim?
Era tal o desalento dela que o comoveu. Vencendo a distância em
poucos passos, abraçou-a novamente e afagou-lhe os cabelos.
Um nó formara-se em sua garganta, deixando-lhe a voz enrouquecida.
_Eu irei, mas voltarei, Flávia! Um dia, eu voltarei para buscar-te. É
preciso que eu me vá! Tenho algo a fazer e somente assim poderei ficar longe
de ti! Estás certa, preciso partir antes que seja tarde demais!
Flávia agarrou-lhe a túnica, manchando-a de lágrimas.
_Por que sofro tanto, Hagonah? Os deuses não têm piedade de mim!
Precisas ir, eu o sei! Mas não quero que vás!
_Eu não desejo partir, mas preciso ir! Tenho fé que ainda nos
encontraremos em momento melhor, numa outra oportunidade! Amo-te,
Flávia, não te esqueças disso! Amo-te como nunca amei ninguém e não vou
esquecer-te jamais! Serás o meu alento, a minha força para continuar a existir
nesse mundo! Agora, preciso trabalhar, pois tenho coisas a providenciar antes
de partir. Vou deixar as coisas nos lugares certos, os livros e as providências
para que possas tomar conta da propriedade.
Afagando-lhe a face machucada, depositou-lhe um beijo doce e depois a
afastou de si.
_Eu preciso ir ou então não conseguirei!
_Flávia ficou a observá-lo desaparecer rápido entre as colunas. Seu
coração estava partido em mil pedaços. O que faria sem ele ? Como viver?
Isobel penetrou suavemente no recinto e sem que ela percebesse,
abraçou-a, consolando-a .
_Fizeste o que era certo, senhora... Por Hagonah, por vos e por vosso
filho, fizeste o que era certo! _consolou-a a moça.
* * *
137
CAPÍTULO XXII
Hagonah ainda ficou alguns dias. Isobel partira e logo ele iria ao seu
encontro.
No tempo que lhes restaram, Flávia e ele não perdiam oportunidade de
ficarem juntos. Andavam pela plantação enquanto ele lhe ensinava o que
precisava saber.
Flávia viu as condições precárias de seus escravos e das instalações
desses homens. Providenciando melhores possibilidades, começou a discutir
com Hagonah um jeito de reformarem o alojamento e melhorarem a comida.
Envolvida nos afazeres novos, encontrara mais uma razão para viver e
passar os dias de solidão. Era certo que durante as noites tinha Hagonah
consigo e cada vez mais parecia impossível que ele fosse partir. Mas o dia
chegou e era hora inadiável.
Flávia iria para Roma, passar alguns dias em casa de Cornélia e lá
poderia encontrar um administrador para a propriedade. Plínio haveria de
aceitar, era preciso.
Hagonah partiu durante a noite levando somente alguns pertences
mínimos e um cavalo. Nayara dera uma porção aos soldados e eles
adormeceram. Dois homens de sua tribo também partiram com ele.
Plínio amargaria o prejuízo, mas as contas que Hagonah ajustara cobria-
lhe as despesas e Flávia decidira contratar mão de obra barata, não mais
escravos. Faria como Severus lhe aconselhara. Assim, poderia ter retorno
melhor. Poderia arrendar parte das terras e ao menos os trabalhadores
plantariam e lhes garantiriam uma parcela da colheita.
Os romanos possuidores de vastas terras eram obrigados a dividi-las e
arrendá-las para não terem prejuízos. Os escravos não eram suficientes e
custavam muito caro, mais às vezes do que o lucro da colheita. Libertando-os,
poderia dar-lhe terras e o que plantassem seria levado a conta de pagamento
pela nova cidadania. Não seriam mais escravos de senhores, mas da terra.
Quando Hagonah partiu, Flávia sentiu o mundo desabar à sua volta.
Em vão Nayara e Sura a consolavam. Deprimida, partiu para Roma e
ficou com Cornélia até que sua gravidez estivesse em estado avantajado.
Em contato com a família do senador Severus, tinha notícias de
Hagonah através de Isobel. Ele não estava com ela. Fora para uma cidade
desconhecida com um grupo de pessoas entre as quais se incluíam alguns
plebeus romanos e outros patrícios e ex-escravos. Um grupo estranho e
138
heterogêneo que partira para a Galiléia. Queriam conhecer de perto as terras
onde pisara o Messias.
Cornélia, estreitando os laços com Severus, começou a freqüentar as
reuniões cristãs escondida e depois levou Flávia consigo. Aos poucos, os
preceitos da nova doutrina penetravam na alma das duas mulheres.
Auxiliada por Isobel, elas estudavam e bebiam os ensinamentos cristãos
com o espírito sedento de novos preceitos. Flávia sentia que não lhe eram tão
estranhos aqueles ensinos, que lhe dizia muito ao ser espiritual. Identificava
em palavras aquilo que lhe ia na alma e abraçou o Mestre com naturalidade .
Pode então suportar melhor o seu destino.
Era certo que as reuniões àquela época ainda estavam proibidas e as
perseguições aos cristãos continuavam intensas. Mas muitos dos plebeus e
alguns patrícios como elas faziam parte daquela doutrina. Severus dizia que
era como o curso de um rio caudaloso. Logo Roma também sucumbiria ao
cristianismo. Por hora, entretanto, era conveniente manter discrição sobre os
encontros.
Hagonah, em Jerusalém, encontrara-se com grupos fechados de cristãos
muito perseguidos. Lá, aprendera a conhecer melhor os Evangelhos e
caminhara pelos mesmos recantos que aquele Cristo que agora almejava
conhecer percorrera.
Fazendo progressos em seus estudos, sentiu finalmente que encontrara o
que procurara, a doutrina que almejava. Por isso não quisera tornar-se
sacerdote de sua tribo, hoje compreendia. Porque na verdade os hábitos
pagãos não o atraíam. Agora sua alma bebia no cálice cristão a essência do
saber.
Plínio retornara da campanha mais irritadiço que nunca. Quando soube
da fuga de Hagonah, quase tivera um ataque. Gritara, esperneara e quebrara
coisas, mas depois acalmou-se. Afinal, o que mais queria estava ali ao seu
alcance: Flávia, cordata e humilde, e seu filho no ventre de sua esposa.
Tentando controlar seu mau gênio, Plínio até que surpreendeu a todos
com bom humor e muito carinho para com a mulher. Sura continuava a seguir-
lhe os passos, servindo-o em todos os sentidos, agora mais que nunca.
Nayara era companheira fiel de Flávia e foi ela quem lhe fez o parto.
_Um lindo menino, senhora! _ falou ela ao levantar o bebê pelas
perninhas e colocá-lo sobre os seios da mãe.
Flávia tinha lágrimas nos olhos, pois lembrou-se de Hagonah e sentiu
muito que ele não pudesse ver seu filho.
_Um varão...
_E como irá se chamar, senhora? _ perguntava Sura, enquanto pegava o
bebê e cuidava de tudo.
139
_Hagon, como o irmão de Hagonah.
Nayara lançou um olhar preocupado para Sura.
_E o senhor Plínio vai concordar, senhora?
_Não sei. Mas será Hagon, para mim.
E o menino passou a chamar-se Hagon. Plínio nunca entendera o porquê
de a esposa caprichosa querer aquele nome estranho, mas concordou para não
perturbá-la.
Radiante , Plínio exibia seu filho para quantos pudessem ver. Orgulhoso
do menino, não se cansava de elogiá-lo.
Os anos passavam-se e o menino Hagon crescia. O pai colocara-lhe nas
mãos como primeiro brinquedo uma espada de madeira, já ensinando o filho a
lutar.
Flávia observava o desenvolvimento de Hagon com orgulho.
Cada ano que passava, o menino lembrava-lhe mais o pai e aquilo a
preocupava.
Mas Plínio não via, tão feliz estava com o rebento. Quando tinha cinco
anos, Hagon recebeu uma irmãzinha. Esta era filha do centurião, mas nessa
época Plínio não deu muita atenção à menina. Ao contrário do menino, a
quem dedicava especial afeição.
Os anos passaram-se céleres e Flávia continuava a freqüentar as
reuniões de Severus quinzenalmente.
Os filhos cresciam a olhos vistos, mas por mais que o pai insistisse, o
menino não se afeiçoara às espadas. Ao contrário, parecia dedicar-se aos
estudos. Já contava doze anos e revelava-se um sábio.
A menina, por incrível que parecesse, era quem mais de adequava ao
pai. Rebelde, Sílvia gostava de cavalos e tinha inclinação para as armas,
brincando com as espadinhas do irmão.
Plínio estabilizara-se mais com a convivência familiar, apesar de
continuar a freqüentar as saturnálias promovidas pela sociedade romana. Uma
nova campanha fê-lo partir durante mais alguns meses.
Plínio dizia que estava se cansando das batalhas, mas não perdia a
oportunidade de participar de uma.
Flávia ficou com os filhos novamente em casa de Cornélia. Plínio não
sabia sobre suas escapadas para as reuniões cristãs e ficar com a amiga era
mais fácil , pois poderia participar mais ativamente dos encontros.
Otávius continuava apaixonado por Isobel, mas esta mantinha-se firme
em sua posição de dignidade. Tinha muito carinho por ele, mas somente isso.
Conformado, Otávius continuava a viver com sua esposa.
Um fato novo veio modificar a vida de Flávia novamente.
140
Um orador muito eloqüente iria visitar a reunião naquela noite. Flávia
estava em expectativa.
Carregava consigo o seu filho de doze anos que sempre mostrara
inclinação para a nova doutrina, mas deixava a menina em casa, pois esta era
aparentemente avessa aos seus conselhos de paz e harmonia.
Todos estavam reunidos para a preleção da noite quando seu coração
deu um salto.
Era Hagonah! Ela o reconhecera! Ele subira o pequeno tablado junto
com mais dois anciãos e sentara-se a espera de sua oportunidade em falar à
comunidade cristã.
A emoção subiu-lhe aos olhos e ela ficou a observá-lo. Estava um pouco
mais velho, como ela também, mas era o mesmo homem vigoroso que se
lembrava, embora mais magro.
Segurando a mão do filho, ela a apertou e sorriu-lhe. Nunca poderia
dizer-lhe que Hagonah era seu pai! Será que deveria apresentá-lo finalmente?
Quando Hagonah tomou a tribuna, a eloquência de sua preleção, a fé e a
beleza de suas palavras lhe mostraram finalmente porque ele deveria ter
mesmo partido naquela ocasião. Tinha um dom especial para a palavra e ela
não poderia tê-lo impedido.
Ao final da palestra, Flávia aproximou-se dele com o jovenzinho ao seu
lado.
Quando ele a viu, pode perceber-lhe a emoção no semblante contido.
Aproximou-se e pegou-lhe as mãos, fitando-a sob o véu com extremado
carinho.
_Flávia! Que alegria encontrar-te aqui! – murmurou com voz rouca.
_Não sabia que estavas em Roma!
_Sim, Hagonah! E eu também não sabia sobre ti. Mudaste o teu nome! –
ela respondeu, retribuindo-lhe o carinho. Voltando-se para o menino que o
olhava curioso, apresentou-o: _ Este é Hagon, meu filho.
Hagonah fitou surpreso e emocionado o menino. Olhando de um para o
outro, quase não pode falar tal o seu contentamento. Mas logo recuperou-se e
pegou a mão do menino com firmeza.
_É um prazer conhecer teu filho, Flávia. Como estás, meu rapaz?
_ Muito bem, senhor...como é mesmo o vosso nome?
Hagonah entristeceu-se e lágrimas brilharam em seus olhos. O filho não
sabia nem mesmo o seu nome!
_Hagonah, filho. Mas agora chamam-me irmão Estêvão, sem nenhuma
pretensão. Colocaram-me este nome porque falo muito _ respondeu, com bom
humor.
141
_Quando eu crescer, quero falar como vós, irmão Estêvão _ respondeu o
menino, admirado.
Hagonah não sopitou a emoção.
O jovem ainda ficou um momento com eles, mas logo saiu a fim de
reunir-se com os de sua idade.
_É um bom garoto, Flávia! Fizeste um ótimo trabalho... _ murmurou
Hagonah, segurando-lhe novamente as mãos . Ficaram assim alguns segundos
e então levantou-lhe o fino véu que lhe cobria o rosto. _Flávia...
_Quanto tempo, não é? Ainda te lembras de mim! _ disse ela, com um
soluço contido e olhos brilhando com as gotículas salgadas que não caiam.
_Sim...Como esquecer-te se és ainda o único amor de minha vida? Nem
Deus pode substituir-te em meu coração! Tenho tentado, Flávia! E Ele sabe de
meu esforço, mas ainda sou muito humano para não lembrar-me de ti com
saudades!
Aquele desabafo caiu no coração de Flávia como um alento para sua
solidão.
_E eu não me esqueço de ti, Hagonah! Tua lembrança acompanha-me
em todos os momentos, principalmente porque vejo-te em meu filho...nosso
filho. É tão parecido contigo, não achas?
Aquela revelação deveria cair como um raio sobre Hagonah, mas ele
apenas sorriu-lhe feliz.
Ela lhe contara, finalmente, pensou ele, satisfeito.
_Tu o sabias, não é? Por isso quiseste ir embora naquela noite! _
concluiu Flávia, compreendendo a urgência de Hagonah em ir-se naquela
ocasião. Também ele temia por Hagon.
_Sim, eu o sabia. Isobel contou-me tudo. É um belo varão, Flávia _ ele
respondeu com orgulho. Mas logo a tristeza tomou-lhe novamente a
expressão. _ Mas Deus não achou por bem que eu o tivesse junto a mim.
Tenho muito trabalho pela frente, mas às vezes penso que não vou conseguir
prosseguir em minha renúncia!
_Não! Não penses assim! Ouvir-te a preleção foi um bálsamo em meu
coração! Agora acredito mesmo que fostes talhado para isso, Hagonah. Não
desistas, meu querido! _ ela deixou escapar.
E Hagonah sorriu-lhe agradecido. Todo o amor que sentia por ela
exprimiu-se em seus olhos.
_Obrigado, Flávia. Ficarei aqui ainda alguns dias em casa de Severus.
Continuarei as preleções, mas ficarei escondido, infelizmente. As
perseguições continuam e minha figura é um tanto visada pelos soldados
romanos. Estou sendo procurado também em Roma. Ainda assim, gostaria de
ver-te ainda uma vez mais! Seria possível?
142
_Sim, é possível! Vou visitar-te com minha amiga Cornélia! _ E como
se aproximassem outras pessoas para cumprimentá-lo, Flávia tornou a baixar o
véu que lhe escondia a cicatriz e Hagonah observou com tristeza o rosto
querido ser ocultado novamente. Flávia afastou-se e ficou a olhá-lo distante,
vendo o quanto era solicitado.
“Irmão Estêvão”, pensou, sentindo que o perdera definitivamente. Uma
tristeza imensa transformou-lhe o semblante. Hagonah jamais poderia lhe
pertencer, era um homem especial e não deveria limitar-se a ela e ao filho.
Mas seu Hagon era uma compensação, a sua luz nas trevas da saudade!
Um presente de Hagonah e de seu amor!
Mas era também o amor de Plínio! Seu marido acreditava mesmo que
Hagon fosse seu filho! E como gostava dele, embora Hagon não pudesse
retribuir o sentimento com a mesma intensidade. O menino preferia
claramente a pessoa da mãe e isso às vezes irritava Plínio, que a culpava de
mimar o filho.
A filha Sílvia, porém... Era impressionante o quanto se afinava com o
pai em tudo! Flávia sentia que iria sofrer para colocar a menina nos eixos,
principalmente com os ensinamentos cristãos.
Na hora de partir, ainda pode ver Hagonah uma vez mais, mas não
conseguiu aproximar-se, muito embora ele a procurasse com os olhos o tempo
todo.
Na manhã seguinte, seu coração apaixonado como nos dias de sua
juventude, a acordou cedo e em expectativa.
Iria poder ver Hagonah durante a tarde, como desejava? Agitou-se,
ansiosa. Precisava cuidar-se ou poderia trair-se quando em presença de outras
pessoas.
Mas que fazer se seu coração não se continha no peito? Não pensara
que o fato de rever Hagonah fosse trazer toda a gama de paixões que sufocara
por tanto tempo!
Queria vê-lo, queria abraçá-lo e senti-lo como antes ! Não era mesmo
um sentimento equilibrado e cristão de irmão! Ela o amava como sempre o
amou: com todo o ímpeto de sua juventude!
Que fazer? Deveria manter-se longe dele para não piorar as coisas?
Depois, como irmão Estêvão, talvez ele não sentisse mais o mesmo por ela!
Mas Hagonah sentia! E revê-la não lhe trouxe benefício algum.
Atormentado, o homem não conseguira conciliar o sono, preferindo sentar-se
nos jardins, rememorando todo o seu passado.
“Ah, Flávia!”, lamentava-se, “ Que fizeste comigo? A que provas
submete-me, eu, um servo do Senhor?”
143
Tentando controlar seus sentimentos diante da nova fé que lhe
balsamizava a alma, procurava encará-la como uma irmã querida para com
quem tinha um grande débito!
Hagon era um bom rapaz e talvez não fosse um sacrifício tê-lo consigo!
Flávia tinha o consolo da presença do menino, mas e ele?
“Tens ao Senhor!”, ouvia uma voz interior que lhe dizia.
_Sim, tenho ao Senhor, _ repetia. Mas não lhe parecia suficiente, não
agora. Não depois de rever Flávia e seu filho!
Atormentado, ele segurava a cabeça e orava, pedindo paz e
discernimento. Talvez fosse melhor não vê-la mais! Sim, era o melhor!
Mas sua resolução não pudera ser cumprida.
À tarde, Flávia encontrou-o em casa de Severus. E ao vê-la com seu
véu costumeiro, seu coração saltou no peito com vigor.
Rever Hagonah era um alento! Pensava Flávia igualmente ao vê-lo de
pé com alguns pergaminhos nas mãos. As têmporas grisalhas acentuavam-lhe
a dignidade do porte e ela sentiu o amor derramar-se por todos os poros.
Aproximando-se, ele lhe pegou as mãos, contido numa falsa serenidade.
Mas ao apertar-lhe os dedos finos, ela pode sentir-lhe o leve tremor .
Hagonah estava emocionado tanto quanto ela em revê-lo, constatou,
feliz.
_Minha querida Flávia! _ ouviram a voz de Severus a cumprimentá-la.
Imediatamente, ambos afastaram-se e procuraram dominar os sentimentos.
_Severus, meu amigo! Espero que não te incomodes com minha visita.
_falou ela, sorrindo. _Mas não pude deixar de aproveitar a oportunidade de
rever Hagonah! Desejava agradecer-lhe pelas palavras da noite, tão cheias de
encanto!
_Sim, nosso Estêvão é um bom orador – concordou Severus. Mas era
um homem velho e experiente e sabia reconhecer o amor nos olhos de alguém.
_Não sou bom orador, senador! Sou um homem de fé, apenas isso!
_Não sejas modesto, meu rapaz! A fé nos alimenta e estimula, mas o
dom da palavra pertence a ti. Agora vou deixar-vos para que possam
conversar um pouco. Preciso ir resolver alguns assuntos e infelizmente não
poderei ficar convosco, agora. Mas haverá outras oportunidades!
_Eu sinto muito se interrompo teus afazeres, Severus! Talvez seja
melhor que retorne outra hora mais conveniente! _ falou Flávia, constrangida,
pois ficaria sozinha com Hagonah.
_Não , minha filha! Podes ficar. Isobel logo chegará e poderá fazer-te
companhia!
144
_Oh, sim! Isobel... _ murmurou ela, lembrando-se da cunhada de
Hagonah. Fora Isobel quem lhe aconselhara a deixar Hagonah. Fora um bom
conselho, mas como a fizera sofrer!
_Fica um pouco, Flávia – pediu-lhe Hagonah. _Logo poderás partir,
mas desejo falar-te coisas importantes...
Flávia o fitou um momento e Severus aproveitou para sair logo. Não
desejava impedir aquele encontro depois de tantos anos.
_Vem comigo _ Hagonah falou, pegando-lhe a mão e levando-a aos
jardins. Sentando-se num banquinho de pedra, eles ficaram em silêncio alguns
minutos, apenas olhando um para o outro.
_Tu ainda te escondes sob o véu... murmurou ele, tocando o tecido que
lhe cobria o rosto. _Posso tirá-lo de tua face?
_Sim... _ respondeu ela, com a respiração presa. O coração batia-lhe
descompassado.
Hagonah suspendeu-lhe o véu com suavidade e depois examinou-lhe o
rosto como para gravar cada detalhe na memória.
_Como estás bela, Flávia! Mais ainda do que quando te deixei
_Hagonah tocou-lhe o rosto com as pontas dos dedos, percorrendo a cicatriz
fina. _Não sabes os tormentos que passei lembrando-me de ti! Lembrando-me
dos momentos que vivi ao teu lado! Não sabes o que fiz para superar a dor que
me ia na alma quando pensava em nosso filho! Quando ele nasceu, eu o
soube! Soube aqui dentro do meu peito... _ ele espalmou a mão sobre o
coração.
Flávia não falava, apenas o fitava. A emoção não lhe deixaria dizer
qualquer coisa. Não havia necessidade de palavras para exprimir o que sentia.
Lágrimas suaves desciam-lhe pelo rosto sem amarguras. Pegando-lhe a mão ,
ela a colocou sobre sua face e depois beijou-lhe a palma.
Hagonah pareceu hipnotizado pelo gesto delicado. Suspirando, apertou
os olhos e deixou-se sentir a pele quente e suave do rosto de Flávia por alguns
segundos. Depois, levantou-se e afastou-se um pouco. Era mais seguro manter
distância, se pretendia continuar a ser o irmão Estêvão.
_Nossos caminhos são diferentes, mas ao mesmo tempo não _ falou ele,
reflexivo. _Jamais pensei em encontrar-te aqui, na comunidade cristã. Quem
te trouxe Jesus, Flávia?
_Cornélia, minha amiga. Trouxe-me uma vez a uma preleção e eu
abracei a doutrina do nazareno. Estiveste lá, Hagonah? Em terras do Senhor?
Voltando-se para ela com os olhos brilhando, respondeu com suavidade:
_Sim! Percorri seus passos pela Galiléia, embora tivéssemos que nos
esconder às vezes. Foi andando pelas mesmas terras do Senhor que busquei o
consolo e a força para guardar tua lembrança num cantinho de meu coração!
145
Flávia baixou os olhos. Sentia-se culpada dos sentimentos de deixara
extravasar. Não conseguia ver Hagonah como um irmão! Ele era o seu amor,
como evitar?
_A fé também me fortalece, Hagonah! E acho que poderá nos ajudar a
nos mantermos nesse terreno. Tenho tanto para te falar! Falar sobre nosso
filho, sobre Hagon!
Aquele era um assunto menos perigoso. E Hagonah achou melhor
permanecerem nele.
_Conta-me, Flávia. Fala-me de meu filho para que possa acompanhar os
passos que perdi.
E ela falou. Falou de suas primeiras palavras, depois de seus primeiros
passos e depois...
Ficaram assim entretidos quando Isobel chegou, pondo fim aos
momentos íntimos.
Um tanto constrangida, Flávia conversou ainda um pouco mais e logo
despediu-se, prometendo ouvir-lhe a preleção da noite.
Isobel ficou a observa-la partir e depois voltou-se para Hagonah,
compreensiva.
_Meu irmão, sei o que se passa em teu coração, mas não te deixes levar
pelos sentimentos menos dignos! Tem cuidado, pois ainda não podes controlar
o teu destino. Sabes que se ficares muito tempo perto de Flávia, poderás
sucumbir, não sabes?
Hagonah apertou os lábios, contrito.
_Eu o sei, Isobel. Mas já não me foi negado tanto? Já não estou
cumprindo com minha tarefa? Eu deixei Flávia e meu filho para seguir ao
Senhor e agora desejas que também renuncie às parcas migalhas que me
oferecem como compensação ?
_Não, meu irmão! Ainda não tens Jesus no coração! Senão, não
sentirias fome e nem cobrarias compensação por tuas renúncias!
_Mas o que queres que eu faça, Isobel? Eu tento! Não pedi para ser um
escolhido! Desejava mesmo ser um ninguém! Gostaria de ter uma vida
comum, como uma pessoa comum, com mulher e filhos! Mas o que tenho?
_Tens a Jesus, Hagonah!
_Não tenho, Isobel! _ ele exclamou, agoniado. _Não percebes? Não me
é suficiente ainda e sofro por isso! Pensei que o fosse, mas ao ver Flávia e
meu filho, percebi que ainda sou um homem como outro qualquer! Como falar
de Jesus se a fé que tenho não me é suficiente para esquecer uma mulher?
Isobel sorriu-lhe compassiva.
_Sei que ainda és um homem comum, Hagonah. Mas teu progresso
chegará. E então Jesus alimentará teu Espírito sem que precises renunciar aos
146
teus anseios. Mas ainda não é a hora! Tem um pouco de paciência e esforça-te
mais um pouco, meu irmão! Ou as conseqüências serão imprevisíveis!
Hagonah deu-lhe as costas. Talvez não estivesse pronto para renunciar.
Talvez o seu progresso não fosse o suficiente. Queria Flávia para si e seu filho
também! Como renunciar a ambos? A fé vacilante quedava-se para o homem
velho onde o desejo da posse falava mais alto.
E percebendo a luta íntima no coração do irmão, Isobel entristeceu-se.
Talvez não fosse mesmo possível evitar os fatos. Os ingredientes ali estavam e
agora só dependeria das escolhas íntimas de cada um.
Tocando-lhe no ombro suavemente, ela lhe transmitiu forças e alento.
_Fica em paz com Deus, Hagonah. Talvez seja a hora em que Ele te
tenha que carregar nos braços. Não me tenhas como inimiga de tua felicidade.
Quero-te muito e à Flávia também. Tanto que não vos quero perder! Talvez
seja egoísmo meu, talvez a minha vontade de tê-los comigo me faça assim, tão
ranzinza...
Isobel era um Espírito nobre e desejava resgatar para seus braços os
entes queridos de seu passado. Mas reconhecia as limitações de cada um e não
poderia impedir os acontecimentos que antevia.
Hagonah voltou-se para a cunhada e a abraçou.
_Perdoa-me, Isobel! Não sei o que há comigo! Não posso evitar de
sentir-me lesado de alguma forma! Não culpo ao Senhor, culpo a mim
mesmo! Pela minha inferioridade ainda! Deixa-me um pouco para refletir.
Talvez seja melhor assim...
Isobel tornou a transmitir-lhe energias vivificantes e depois separou-se
dele.
_Sabes que tens em mim uma irmã que muito te ama! Não te esqueças
disso, Hagonah! Talvez não tenha mais oportunidade de dizer-te isso – ela
completou, com o semblante entristecido.
Hagonah não entendeu o que a cunhada dizia, mas logo compreenderia.
Depois da preleção da noite, onde falara das passagens evangélicas com
ardor, como para afirmar sua própria fé, Hagonah soube que um grupo de
cristãos havia sido levado para as masmorras do Coliseu. Haveria uma grande
festa no dia seguinte e eles seriam a atração principal.
Recomeçara as perseguições, as últimas do governo de Diocleciano.
Sem poder conter a dor no coração, Hagonah soube que o grupo incluía
Isobel.
Em vão, Otávius tentou salvá-la, mas não conseguiu. E todos ouviram
suas palavras ao descrever a coragem e a fé daqueles que se deixaram imolar
em nome do Profeta Nazareno, assim como os cânticos que envolveram a
todos em estranhos e desencontrados sentimentos.
147
Com lágrimas a descerem de seus olhos, Hagonah pediu a todos naquele
momento que orassem ao Senhor pelos irmãos que davam seu testemunho.
Flávia chorava por Hagonah e por si mesma. Isobel, o anjo que lhes
insuflara a coragem e perseverança na fé, partira para os braços do Mestre. E
Hagonah agora compreendia-lhe as palavras de despedida.
Depois soubera por Severus que ela encontrara seu filho perdido entre
os cristãos que seriam imolados. E entregou-se ao testemunho feliz por
finalmente tê-lo reconhecido.
Eram os caminhos de Deus!
Mas a fé de Hagonah estava abalada. Não queria que Flávia e seu filho
tivessem o mesmo destino! Ele não se importava de dar a sua vida pelo
Senhor, mas não queria que os seus sofressem na boca dos leões.
E pesadelos constantes o açoitavam durante as noites que se seguiram.
Soubera de novas perseguições em Roma e logo o pegariam. Não desejava
que Flávia estivesse entre a leva de cristãos a serem mortos!
Numa tarde em que se encontraram em casa de Severus, ele lhe falou
isso.
_Flávia, volta ao teu lar e leva contigo Hagon! Aqui está ficando muito
perigoso e logo poderão achar-te!
_Não quero deixar-te, Hagonah! Vai tu também para longe! És mais
importante que eu e não podes te deixar prender!
Ele segurou-lhe as mãos e beijou-as, aflito.
_Não importa o que vier a acontecer comigo! O que terá que ser, será.
Mas tu não podes sacrificar nosso filho e à tua filha! Precisas partir!
Ela o fitou com angústia.
_Não quero perder-te, Hagonah!
_Nem eu quero perder-te, Flávia! Jamais irá perder-me, ainda que morra
meu corpo! Mas nosso filho precisa viver! Sinto que ele precisa dar o seu
testemunho, mas não agora! Compreendes?
Flávia não podia impedir as lágrimas, pois Hagonah despedia-se dela
mais uma vez.
Na noite seguinte, não foi à preleção. Sentira-se mal, sem disposição
para sair com Cornélia.
Depois, na manhã do outro dia, soube da tragédia. As pessoas que
estavam na prece da noite, foram pegas pelos centuriões que os espreitavam.
Severus também fora pego, mas eles o libertaram por se tratar de um senador
romano. Os outros, inclusive Hagonah, foram levados para o Coliseu.
Flávia quase enlouqueceu de dor!
Na esperança de vê-lo ainda uma última vez, foi até lá, mas não pode
entrar. A multidão acotovelava-se , impedindo sua entrada.
148
Mas pode ouvir a voz dos cristão entoando hinos ao Senhor. Logo
depois, ouviu os gritos dos participantes dos jogos, pedindo morte aos bruxos
e comedores de crianças.
E Flávia deixou-se escorregar pelas paredes do circo romano, sentindo o
coração em pedaços.
Os soluços sacudiam-lhe o corpo magro num sofrimento sem medidas.
Hagonah a avisara. Dissera-lhe que poderia acontecer. E o mal estar da
noite fora um aviso para que fugisse com seus filhos. Deveria partir
imediatamente. Superando a dor da perda, com as lágrimas a descer-lhe pelo
rosto coberto, levantou-se e a urgência moveu suas pernas.
Sem demora, voltou à casa de Cornélia e pegou seus filhos, levando-os
de volta à propriedade rural. Lá, aguardaria o retorno de Plínio.
Sentindo a dor que não a deixava pelo sacrifício de seu amado, ela
sofria em silêncio.
Sura e Nayara a acompanhavam em sua desdita, solidárias.
Plínio retornou da campanha como sempre: agressivo e impaciente.
Parecia que o demônio tomava conta de seu espírito e custava a sair dele,
depois que chegava.
Irascível, nem o filho tão querido o acalmava. Somente Sílvia tinha
paciência com o pai. Sentava-se em seu colo e alisava-lhe o rosto com
suavidade. Mas Plínio estava tão enlouquecido de ódio que mal dava-se conta.
Carrancudo, soubera que Severus havia se tornado cristão e que Cornélia fora
morta no circo como uma das patrícias condenadas pela doutrina perversa.
Então, passou a observar Flávia com olhos de águia, desconfiado. Sua
mulher passava muito tempo na casa de Cornélia. O ciúme tomou conta de seu
raciocínio. Otávius não fora para a guerra, estivera o tempo todo em casa.
A velha desconfiança voltou a perturbá-lo.
Pegando Sura de surpresa, perguntou-lhe sobre as atividades de Flávia,
mas esta não lhe disse nada que comprometesse sua senhora. Irritado, Plínio
deu-lhe uns tapas para que ela aprendesse quem era o seu senhor.
Foi Sílvia quem entregou os pontos. A menina observava todos os
passos de Flávia e a viu muitas vezes a conversar com o orador Estêvão.
Enciumada da presença do homem cristão e não afeita aos ensinamentos
daquele Jesus galileu, contou ao pai as saídas da mãe todas as noites dizendo
que ia ver o irmão Estêvão.
Enfurecido, Plínio, que não sabia das atividades de Flávia, pegou a
esposa uma noite e trancou-a nos seus aposentos. Tirando o chicote, ameaçou-
a se não contasse a verdade.
_Andavas às escondidas com outros homens em minha ausência,
maldita! _ gritava, colérico, brandindo o chicote.
149
Em vão, Nayara e Sura gritavam para que abrisse a porta. Em vão o
filho implorava pela mãe. Plínio continuava a estalar o chicote e vez por outra
atingia Flávia.
_Não vais dizer-me com quem andavas, Flávia? _ tornava a gritar o
homem.
_Ninguém! Eu não andava com ninguém, pelo amor de Deus! _
implorava ela. E o chicote estalava.
_Mentira! Silvia contou-me que saías às escondidas todas as noites!
Com quem te encontravas, Flávia?
_Ninguém! Eu não me encontrava com ninguém!
_Mentira! Vou arrancar-te a verdade, maldita!
Diante de mais um grito de Flávia, Hagon não suportou e implorou ao
pai que abrisse, pois ele contaria se poupasse a mãe.
Plínio parou, surpreendido.
Abrindo a porta, puxou o filho para dentro do quarto. O menino, ao ver
a mãe quase desmaiada ao chão, desesperou-se, mas Plínio não o deixou
socorrê-la.
_Diga-me, filho: com quem tua mãe ia encontrar-se?
_Não, Hagon! Não digas...nada!
Hagon ficou a olhar de um para outro, indeciso.
Plínio, enfurecido, aproximou-se novamente de Flávia e ameaçou-a com
chicote.
_Vais contar ou terei que forçar tua mãe a chicotadas?
Hagon abriu os olhos aterrorizado. Não reconhecia o pai naquele
homem terrível com o acoite na mão.
_Não! Não batas mais ! _ gritou ele, aflito. _ Nós...ela...íamos às
reuniões!
_Que reuniões?
_A dos cristãos! Íamos com tia Cornélia!
_E não encontravam com ninguém? Tua mãe te levava junto todas as
vezes? Não havia nenhum homem com quem ela se encontrava? _ Plínio não
acreditava que fosse somente reuniões. Ameaçando novamente a Flávia, o
menino gritou um nome, o primeiro que lhe veio à mente.
_Hagonah! Nós...nós íamos ouvir as preleções de Estêvão!
Plínio eriçou-se ao ouvir aquele nome! Sentiu seus cabelos da nuca
levantarem-se, arrepiando-se todo. Voltando-se para Flávia com os dentes
apertados, rugiu;
_Hagonah! O escravo fugido! Era isso, Flávia? O que fazia o escravo
que tu libertastes nas reuniões que freqüentavas?
_Ele...ele falava ! Somente falava do Senhor Jesus, meu pai!
150
_O galileu? Aquele por quem tantos se entregam à morte? Hagonah era
um bárbaro! Como pode conhecer o tal messias dos judeus!
O menino ficou confuso. Não sabia que irmão Estêvão fora escravo de
seu pai.
_Sim, pai! Era isso o que ele fazia! _ respondeu o menino, indeciso.
_Um escravo pregando sobre Jesus ! E por tua causa! – retorquiu Plínio,
revoltado.
Ele ficou a olhar a esposa no chão, a mente trabalhando rápido,
juntando os fatos. De repente, largou o chicote e saiu com passos duros.
Precisava pensar!
_Cuida da tua mãe! _ disse antes de sair.
Hagon baixou-se e socorreu Flávia que quase perdera a consciência.
Mais tarde, pensada as feridas com os unguentos de Nayara, Flávia
repassava o que acontecera.
Sílvia certamente mencionara os encontros na casa de Severus. Ligar
Hagonah ao seu passado seria muito fácil para Plínio.
Seu filho corria perigo. Precisava mandá-lo a algum lugar onde pudesse
estar a salvo. Talvez Severus a ajudasse.
E com o correr dos dias, pode perceber cada vez mais o perigo que
rondava a cabeça de Hagon ao observar a maneira que o pai o fitava, calado e
sorumbático. Talvez estivesse achando a semelhança entre ele e Hagonah,
finalmente. O menino crescia e se parecia cada vez mais com o verdadeiro pai.
Plínio realmente percebera a semelhança entre o filho e o antigo
escravo. Sempre achara estranho o semblante do menino, aqueles olhos
escuros e diferentes, os cabelos anelados e bastos, mas estava tão embevecido
que não dera muita importância ao fato. Afinal, Flávia tinha cabelos negros e
olhos escuros. Mas agora percebia que conforme os anos se passavam, o
menino mais diferia de sua fisionomia. Não se parecia em absoluto com o pai.
Depois, havia o nome bárbaro: Hagon. Porque diabos a esposa fora
colocar aquele nome tão diferente?
A gravidez de Flávia fora no mesmo período em que partira para as
fronteiras... o mesmo período em que Hagonah vivera naquela casa. E ele
colocara o abutre dentro do próprio lar!
Levantando-se bruscamente do triclínio, derrubou a jarra de vinho e os
copos de sobre a mesa.
Traído! Fora traído dentro de sua casa e por um escravo! E pior: ainda
tomou o filho do traidor por seu próprio!
Era uma afronta tão inimaginável, tão insuportável que sentiu uma dor
aguda no peito!
151
Sentando-se novamente, esperou a dor passar. Tomando o resto do
vinho que ainda ficara na jarra, aguardou.
Não, precisava pensar melhor. Afinal, Hagon poderia mesmo ser seu
filho. Lembrava-se de estar tentando engravidar a esposa antes de partir. Mas
também lembrava-se do que ela lhe dizia.
Era melhor pensar um pouco. Gostava do filho. Apesar de tudo era seu e
cuidara dele!
O vinho estava dificultando seu raciocínio! Esfregando as mãos no
rosto, tentava afastar o torpor provocado pelo excesso de bebida.
Cansado, reclinou-se nas almofadas e adormeceu, finalmente.
Sura, que observara todos os gestos de seu senhor, resolveu alertar
Flávia. Algo não estava indo bem e era melhor avisar à senhora. Sentia que
nuvens negras se aproximavam daquele lar e uma tragédia poderia acontecer a
qualquer momento!
Encontrando Flávia no leito, aproximou-se um tanto aflita e falou-lhe:
_Senhora, acho que o senhor Plínio está desconfiando de alguma coisa!
Eu o vi derrubar tudo, furioso e depois cair nas almofadas, desolado! Que
fazer, senhora? Tenho medo por vosso menino!
Flávia, que se recuperava ainda das feridas, pensou um pouco, depois
pediu a Sura que arrumasse todos os pertences de Hagon.
_Vai, Sura! Chama Nayara! Arruma as coisas de meu filho e depois
pede que o levem à casa de Severus! Ele saberá o que fazer. Mas antes manda
Hagon vir até aqui para que lhe possa falar! Rápido!
Sura correu a obedece-la.
Pouco depois, Hagon entrava no aposento da mãe.
_Meu filho! _ murmurou ela, abraçando-o com lágrimas nos olhos.
_O que tens, mãe? Não estais melhor? _ perguntou o menino.
_Estou bem, meu filho! Mas preciso que me ouças e faças exatamente o
que te digo! _ Alisando a face do filho, viu o anel que Hagonah lhe dera no
dia em que se casaram diante da deusa Mãe. Conservara-o como lembrança
dos momentos que tiveram, era muito importante para ela aquele objeto.
Tirando-o, pegou a mão do filho e colocou-lhe o anel no dedo.
_ Toma, este anel deve ficar contigo. É presente de um grande amigo,
irmão Estêvão, tu o conhecestes. E antes foi do pai dele, um sacerdote da
Bretanha. Agora, quero que vás com Nayara para a casa de tio Severus. Lá ele
te dirá o que deves fazer.
_Mas...porquê? Por que não vais comigo ?
_Por que não posso ainda, filho. Logo irei ter contigo e então levarei
Sílvia também. Agora vás e cuida de Nayara. Já és um homenzinho e poderás
152
fazê-lo! Dá-me um beijo e não faças barulho. Não quero que teu pai saiba que
estás viajando, não ainda!
_Mãe! Eu não quero ir e deixar-te aqui com meu pai. Temo por ti e não
confio nele!
Flávia conteve um soluço e abraçou o filho com força.
_Não receies, meu filho! Logo irei ter contigo! Depois, teu pai já está
melhor! Foi a guerra que o deixou enfurecido. Não fará mais nada comigo.
Depois, logo estarei bem e vou ter contigo. Agora, dá-me mais um beijo e
vai! Mandarei uma carta para o senador através de Nayara, explicando tudo!
O menino relutante deu um beijo na mãe. Sua inteligência precoce
ajudava-o a perceber a gravidade do momento. Se a mãe o enviava para longe
àquelas horas, era porque tinha motivos. Depois, a presença do pai que
vislumbrara tão diferente quando agredira a mãe o incomodava e fazia nascer
em seu coração a revolta contra aquele homem violento e desumano.
Quando Nayara apareceu, escreveu uma mensagem à Severus e
entregou-a a ela.
_Vai, Nayara! E cuida de meu filho! Deixo em tuas mãos o meu
tesouro! Vai antes que Plínio perceba. E obrigada, minha amiga!
Nayara tinha lágrimas nos olhos ao despedir-se de Flávia. Prometendo-
lhe cuidar do pequeno por quem tinha grande apresso, despediu-se saindo
rápido.
Flávia pensava no que seria dela quando Plínio descobrisse que o filho
partiu. Poderia dizer-lhe que ele fora fazer uma viagem até a casa de parentes,
pois ficara muito abalado com os últimos acontecimentos. Sim, era isso que
iria dizer. E quando ficasse boa, partiria com Sílvia também.
Na manhã seguinte, Plínio fora até ela e interrogou-a sobre o paradeiro
de Hagon. Ela explicou-lhe o que pretendia e Plínio pareceu não aceitar a
ausência do filho com naturalidade. Alguma coisa em sua expressão
demonstrou sua desconfiança.
_ E por que de uma hora para outra o mandaste viajar? _ perguntou ele,
soturno.
_Porque nosso filho ficou muito abalado com o que me fizeste, Plínio.
Sabes que ele jamais presenciou tuas agressões e, então, eu o enviei para os
meus parentes. Eles têm filhos da idade de Hagon e poderão se divertir um
pouco. O menino esquecerá logo o que aconteceu e poderá voltar para casa.
_Tu estais melhor, suponho. _tornou ele, especulativo.
Flávia sentia que Plínio desconfiava de alguma coisa e isso a
incomodava. Seu olhar era cortante e parecia lançar chamas em sua direção.
_Sim, estou bem.
153
_Bom. Diz-me, Flávia: porque foste ver Hagonah em Roma? O que
fazia ele naquele lugar? Por que não chamastes as autoridades para prendê-lo
uma vez que era um escravo fugido?
Flávia ficou pálida. Demorou um pouco para responder e isso bastou
para incendiar a alma de Plínio com a desconfiança e o ciúme.
_Sabes que os cristãos estão sendo perseguidos...Se eu chamasse a
guarda, todos os amigos que temos e que ali estavam seriam presos também.
_Contudo, não impediu que fossem pegos em outra ocasião. Bem, de
qualquer forma, ele está morto agora, não é? Todos os que foram levados
naquela noite estão mortos, como deveria ser. Ou não? Essa doutrina maldita
alastra-se como uma praga entre os romanos de família e quanto antes
acabarmos com ela melhor! E tu, Flávia? Também não te tornastes cristãs?
Flávia ficou sem fala. O que dizer? Lembrou-se das palavras do cristo
ao dizer que aquele que o negasse perante aos homens, Ele o testemunharia
diante do Pai.
_E se assim o for? Vais me entregar ao circo também, Plínio? _
perguntou, com súbita coragem. Não tinha mais medo do marido. Não se
importava mais com o que ele lhe fizesse.
Plínio fitou-a, calado. A expressão de seus olhos era assustadora. Com a
mão no queixo, ele analisou-a por alguns momentos.
_E se o fizer, Flávia querida? Não seria meu dever perante o meu
imperador?
_E o teu dever diante da tua família? Sou tua esposa!
_Lembraste bem, Flávia. Será que te importastes com isso quando eu
estava em campanha e tu sozinha com aquele escravo em minha casa? _
Plínio falou com falsa calma. Logo levantou-se e aproximou-se dela.
Flávia encolheu-se, a dor nas costas lembrando-a das chicotadas que
levara.
_Por favor, Plínio! O que dizes?
_Isso, minha esposa, és tu quem vais me dizer. Deitastes com aquele
escravo, não foi? Traíste-me com Hagonah, o bárbaro! Não pensei que
descerias tanto, Flávia! Uma romana de sangue nobre deitando-se com um
ninguém, um espólio de guerra!
Plínio falava ainda com calma, como se estivesse a conter-se até
confirmar o que dizia.
_Não! Estás louco!
Ele riu grosseiramente.
_Tu achas que me enganas? Eu o sei! Eu percebi a semelhança de
Hagon com o escravo! Tu me fizestes adotar e criar o filho bastardo de tuas
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traições como se fosse meu! Como és cruel, Flávia! Pior que a víbora,
traiçoeira e ardilosa que tu és!
Flávia estava branca como cera! Olhava para Plínio sem conseguir
negar o que ele dizia, pois era verdade! E agora, o que faria?
Plínio, ao perceber que suas deduções pareciam confirmar-se pelo
silêncio da esposa, tomou-se de cólera e deu-lhe um tapa no rosto.
Bufando, ainda controlou-se um pouco mais.
_Não, mulher traiçoeira! Não te quero matar, ainda não! Vou fazer-te
sofrer como me tens feito! Vou torturar-te até que implores pela tua libertação
e somente a morte poderá libertar-te de mim, Flávia! Por que querias outro
homem? Eu não te bastava, não é? Pois então verás o que vou fazer contigo!
Andando até a saída do aposento, derrubou uma estátua de pedra com
fúria e depois voltou-se ainda uma vez.
_E não penses que teu filho escapará de minha vingança! Vou buscá-lo
e contarei sobre a mãe devassa que tem e tudo o que fizestes e até muito
mais! Não me importarei em mentir, tu não te importastes!
_Não, Plínio! Lembra-te de que o amas ! Não faças nada que venhas a
arrepender-te depois, por misericórdia! _ ela implorou, trêmula.
_Misericórdia? Tu não tivestes misericórdia quando me enganastes e me
obrigastes a amar o filho de meu inimigo! Não há misericórdia para ti, mulher
indigna!
Rubra de vergonha e indignação, ela replicou sem pensar:
_Por que me acusas? Não fizestes o mesmo? Quantos filhos deves ter
espalhados por Roma ou por todos os lugares em que lutastes? Em quantas
pobres mulheres que violentastes nas tuas batalhas derramastes a tua semente?
Com quantas patrícias mesmo, durante tuas orgias intermináveis, não te
deitastes sem nem mesmo lembrares de que tinhas uma esposa a quem
envergonhavas com teus procedimentos?
Plínio a fitava vermelho de raiva .
_Sou homem e um soldado! Nada do que fiz me envergonha! Mas tu és
mulher de família digna! E te deitastes com um escravo!
_É isso o que te incomoda, Plínio? Se eu me tivesse deitado, como o
dizes, com um patrício ou mesmo com o imperador não te incomodarias tanto,
não é?
Plínio venceu a distância que os separava e agarrou-a pelos ombros,
furioso.
_E tivestes outros homens, Flávia? Tivestes? Quem foi o outro com
quem te divertistes às minhas costas? Otávius? Diz-me, maldita mulher!
Flávia estava sem ar. Ela a sacudira violentamente e ela recuperava-se.
_Não! Não sou como tu, Plínio! Não me divirto com toda a Roma!
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O centurião a soltou bruscamente.
_Então não sei o que é pior! Por que diabos fostes te envolver com o
bárbaro?
_ Por que eu o amava! Eu amei Hagonah como jamais amei ninguém! E
diante do amor, Plínio, não há preconceitos de raça ou credo ou cor! Ou
mesmo classe social! Já sentiste o amor, Plínio? Já sentiste que poderias
morrer por quem amas? _ Flávia o desafiava sem se importar mais em não
magoá-lo.
Plínio ficou pálido. Amor? Ela lhe dissera que amara o escravo? Era
um absurdo! Trocá-lo por...
_Não sabes o que é o amor! _Respondeu, de repente. Ele tornou a
pegar-lhe os ombros e falou bem perto de sua boca. _Não sabes o inferno que
sinto quando afasto-me de ti, quando penso que outro homem possa ter te
tocado a pele ou a tua boca! Não sabes da chama que me queima o peito ao
pensar que possas amar a outro que não a mim! Flávia, Flávia! Assinastes a
tua condenação!
Sentindo-lhe as mãos trêmulas a apertar-lhe os ombros, Flávia orou
fervorosamente para que o marido se acalmasse e não fizesse algo pior com
ela. Arrependia-se de havê-lo provocado e revelado seu segredo. Agora o que
poderia fazer para fugir e ir ao encontro do filho antes que fosse tarde demais?
_Vou cuidar de ti, Flávia _ murmurou ele, maldoso. _Vou mostrar-te o
que somos capazes de fazer quando saqueamos e violamos as mulheres das
aldeias que tomamos. Desejarás não teres conhecido este escravo maldito!
Vou arrancar a lembrança dele de teu coração à força, verás!
E empurrando-a, retirou-se do aposento.
Flávia tremia e pensava, aflita.
Precisava fugir o quanto antes e levar a filha junto com ela. Mas como
fazer se ainda estava se recuperando? Mas ela precisava fugir ou um destino
pior que a morte a aguardava nas mãos do marido enlouquecido!
Levantando-se e procurando por Sura, Flávia decidiu que partiriam o
mais rápido possível. Iriam para Roma e pediriam abrigo a Severus, mas logo
teriam que sair dali também ou o velho senador correria perigo. Seria o
primeiro lugar onde Plínio a procuraria.
Encontrando Sura, falou-lhe para arrumar também as coisas de Sílvia e
quando fosse possível, partiriam num dos carro de Plínio. Mas teriam que dar
alguma coisa para ele dormir, uma das porções de Nayara. Lembrava-se de
como a escrava colhia e misturava as ervas fazendo um pó branco.
Com Sura, fabricaram o remédio e esperaram a oportunidade para
colocar no vinho de Plínio.
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Flávia estava no seus aposentos e preparava-se para sair quando o
marido entrou e observou-a pentear os cabelos. A tarefa não era fácil, pois os
movimentos dos braços lhe magoavam os ombros feridos.
Plínio aproximou-se por trás e tomou-lhe o pente, pondo-se a escovar-
lhe as madeixas.
Flávia ficou tensa, pois sabia que ele planejava alguma coisa.
Baixando o corpo, Plínio beijou-lhe o pescoço e seu hálito cheirava a
vinho. Sura já devia ter-lhe dado a porção que fizeram. Mas não estava
fazendo efeito ainda.
_Minha bela traidora! _ murmurou ele contra seu pescoço. Aspirando
profundamente o perfume dos óleos que usava, continuou com voz pastosa: _
Vou mostrar-te que não precisavas correr para os braços de outro para te
divertires! Sou homem bastante para ti, Flávia!
Ele a queria! Ele a queria apesar de tudo! Um arrepio de repulsa
sacudiu-lhe o corpo. Com um movimento mais brusco, ele arrancou-lhe um
gemido de dor ao apertar suas feridas.
_Ah, sinto muito, minha bela! _ tornou ele, suas ações desmentindo
suas palavras. _ Machuquei-te, não foi? Mas poderás gostar da dor. Conheço
mulheres que gostam que as machuque!
_Plínio, por favor! _ ela murmurou, antevendo a tortura.
_Por favor? Por favor o que, minha querida? Quer que te mostre o
quanto me divirto em Roma? Vou levar-te às bacanais, Flávia! Lá poderás
fazer o que quiseres!
Plínio sabia que ela não suportava tais festas. Ele fazia aquilo de
propósito!
_Sim, minha esposinha “virtuosa”. Vou levar-te e serás a atração
principal! Não sabes como os homens gostam das virtuosas como tu!
_Plínio! _ ela horrorizou-se com suas insinuações devassas.
De repente, ele a virou para si e ela pode ver-lhe os dentes apertados e o
brilho cortante e cruel nos olhos baços.
_Sim, Flávia! Serás a atração das noites de Roma! Vou mostrar-te a
todos os discípulos de Baco! Serás uma bacante! _ e riu sem alegria. _ Sim!
Pensas que não te respeitava? Agora verás que bom marido eu era para ti!
Sentirás saudades do antigo Plínio, minha bacante!
Ele a beijou com crueldade, machucando-lhe os lábios.
_Existem sofrimentos inimagináveis para uma mulher sensível como tu,
minha bela! E eu os conheço todos!
Flávia fez um esforço para soltar-se, mas foi a voz da pequena Sílvia
que trouxe Plínio à razão. Imediatamente, ele a soltou indo ao encontro da
filha. Pegando-a no colo, olhou para Flávia e disse:
157
_Espera que eu já volto. Sabes o que decidi? Decidi que não és uma boa
mãe para minha filha. Por isso, ela vai embora e terá sua educação completada
por minha irmã, em Milão. Proíbo-te de vê-la pelo resto de tua vida, Flávia.
Não és digna de seres mãe de meus filhos...quer dizer, de minha única filha!
Flávia levantou-se da cadeira, estupefata.
_O que dizes, Plínio? Não tens o direito... _ balbuciou, atemorizada.
_Não tenho o direito? Quem és para dizeres dos meus direitos? Sou pai
e posso decidir se és boa mãe para minha filha! E já decidi que não o és! Não
tens dignidade, és uma ...
_Não te atrevas, Plínio Lúcius! Não digas palavras que não mereço! Sou
boa mãe, sim! Não podes duvidar de minhas qualidades!
_Posso e devo. Não és mulher digna. Portanto, minha filha vai embora
para a casa de minha irmã! Agora aquieta-te e espera por teu marido.
_Não! Não faças isso! Não podes tirar-me Sílvia! Plínio!
Ele não lhe deu ouvidos. Com um riso maldoso nos lábios, seu marido
fechou a porta a chaves para que não saísse correndo atrás deles.
Em vão, Flávia gritava para que ele abrisse a porta e a deixasse ver a
filha. Caindo ao chão, debulhando-se em lágrimas, pensava em como estava
sendo cruel a sua provação! Errara em envolver-se com outro homem e muito
mais em ter um filho e enganar novamente o marido. Mas na época, o que
poderia fazer? Pedia sempre que Deus a perdoasse pela falta cometida, mas
não pelo amor que sentira, pois não se envergonhava dele.
Hagonah fora a melhor coisa que acontecera em sua existência triste e
atormentada. O filho que tiveram era o tesouro de seu coração. Como poderia
culpar-se por coisas tão maravilhosas?
Mas o adultério e a mentira não eram atos dignos de uma cristã!
Contudo, na época a fé não lhe bafejava a alma...
Agora sofria as conseqüências de seus desatinos. E como eram
dolorosas!
Como fugir sem a filha? O que fazer?
Mais tarde, percebendo que Plínio não viera, acreditara que o remédio
que colocara em seu vinho devia ter completado seu efeito. Plínio devia estar
dormindo profundamente!
Esperando que Sura viesse e abrisse a porta, aguardou-a pronta para
fugirem. Talvez pudesse agora pegar a menina e partir com ela para longe!
Como se lesse sua mente, Sura abriu a porta e chamou-a baixinho.
Flávia correu até ela e saíram sorrateiramente pelos corredores.
_Onde está Sílvia, senhora? _ cochichou Sura.
_Não está em seu quarto?
_Não, senhora!
158
_Então está no aposento de Plínio! _ isso era ruim. A menina era muito
apegada ao pai e poderia alertá-lo.
Mas Flávia pegaria a filha de qualquer maneira.
Dirigindo-se ao quarto de Plínio, encontrou a menina a dormir ao lado
do pai. Seria uma cena comovedora, não fosse o conhecimento que tinha da
instabilidade do marido.
Pegando a menina com cuidado, conseguiu resgatá-la e levaram-na
rápido.
Vencendo a distância rapidamente, ambas pegaram o carro e atrelaram
dois cavalos a ele. O cavalariço, um dos escravos bárbaros, vendo o
movimento, estranhou o procedimento da senhora, mas nada falou. Também
ele não gostava do centurião. E se pudesse, daria cabo do infeliz com muito
gosto. Ajudando as mulheres , aprontou o carro e entregou-o a elas. Logo
Flávia e Sura corriam a toda velocidade para os rumos da cidade de Roma.
Quando chegaram de surpresa à casa de Severus, este logo acomodou-as
e ouviu-lhes o relato. Ao perguntar por Nayara e Hagon, este assustou-se.
_Hagon? Tu o mandaste para cá ? E quando foi isto?
_Há dois dias! _Flávia empalideceu. _Ele não chegou ainda? Hagon e
Nayara não chegaram?
Severus levantou-se e tentou acalmá-la, porém sua expressão era tensa e
preocupada.
_Não, minha cara. Mas é possível que tenham quebrado alguma roda e
podem estar a caminho...
_Não, Severus! Ou já saberias alguma coisa sobre ele! Oh, Deus! Será
que algum salteador...
Flávia começou a chorar, sentindo a dor no coração. Será que perdera
seu filho? Será mandara seu menino para a morte nas mãos de bandidos de
estrada? Ele e Nayara saíram sozinhos. O que poderiam fazer contra homens
inescrupulosos?
Sentando-se enfraquecida e cansada, Flávia deixou-se abater.
_Oh, não! Não permita Deus que algo tenha acontecido ao meu filho!
_murmurava, desolada.
Severus disse que mandaria alguns homens de sua confiança para saber
se tiveram alguma notícias de salteadores de estrada.
Descansando da viagem, Flávia não conseguia conciliar o sono. Era
preciso sair dali o quanto antes ou Plínio as encontraria. Mas como sair sem
saber de Hagon? Implorava a Deus que poupasse seu filho de sofrimentos nas
mãos dos bandidos.
Na tarde do dia seguinte, ainda não se sabia de Hagon. E Severus
mandou-as à casa de alguns amigos cristãos para que pudessem esconder-se
159
enquanto procuravam pelo menino. Lá estariam em segurança, pois o
centurião jamais as procuraria no vilarejo pobre da cidade.
Dois dias mais tarde, Plínio bateu em casa de Severus com alguns
soldados. O velho ancião foi atendê-lo, procurando manter a serenidade.
_Onde estão minha esposa e minha filha, velho? _ perguntou Plínio,
sem delicadeza ou educação.
_Não queres entrar, Plínio Lúcius? Deves estar fatigado da viagem. É
uma surpresa agradável aportares em minha residência...
_Deixa de conversa, velho! Sei que escondes Flávia e minha filha. Onde
estão?
_Flávia? Eu não as vejo desde...
_Revistem tudo! _ Ordenou Plínio aos seus soldados. _Cada canto deve
ser revirado. Quero sinais, pistas de que Flávia e Sílvia passaram por aqui!
_Mas o que fazes, centurião? Sou um senador e não podes entrar em
minha propriedade assim, sem mais nem menos! _ indignou-se o velho
Severus.
_Posso e vou entrar! As casas dos alcoviteiros dos cristãos devem ser
revistadas e tu o és! Ou não?
Severus fechou os lábios, ferido em sua dignidade.
_Podes revistar tudo, centurião. Verás que digo a verdade. Tua esposa
não está aqui e nem tua filha.
Plínio ficou um momento a olhar para o ancião e depois, irritado,
chamou seus homens.
_Vamos embora! Não percamos tempo com este velho alcoviteiro!
Agora, senador, aviso-te: se tiveres escondido minha mulher e minha filha, eu
mesmo cuidarei de entregar-te à César em pessoa!
Saindo frustrado, Plínio continuou a busca pela cidade.
Logo alguns homens que Severus mandara investigar sobre o paradeiro
do jovem Hagon chegaram e trouxeram notícias.
Souberam de um ataque dos bárbaros germânicos nas proximidades da
propriedade de Flávia há alguns dias e pelo que puderam averiguar, havia
entre eles um jovem de cabelos anelados e uma mulher muito bonita de
cabelos de fogo.
_São eles! _ exclamou Severus. Foram feitos prisioneiros dos bárbaros!
Como poderia resgatá-los? Nem mesmo sabiam quem eram os homens ou o
que estavam fazendo tão perto de Roma!
Pobre Flávia! Não havia meios de recuperar seu filho! Ele estava
perdido para sempre!
Flávia recebeu a notícia sentindo a agonia da perda. Como saber se ele
continuava vivo ? Como saber de Hagon?
160
Não havia meios para isso, infelizmente. E Hagon estava como morto
para ela!
Sentindo-se culpada de tudo o que acontecia, Flávia mal suportava a dor
do remorso. Caindo em profunda agonia, entregava-se ao desespero quando
uma noite sonhou com Isobel. Esta estava tão bela quanto se lembrava e tinha
uma candura que a contagiou. A moça lhe pegou as mãos e depois enxugou-
lhe as lágrimas, dizendo que tivesse fé, pois Hagon não estava morto. Apenas
seus caminhos seriam diferentes dali por diante. Ele voltara aos bárbaros como
um dia também o fora! A escolha do mesmo nome do irmão de Hagonah não
fora ao acaso e Deus tinha uma tarefa para Hagon! Antes de ser filho de
Hagonah, fora-lhe irmão querido e agora deveria trilhar os mesmos caminhos
do passado, levando aos bárbaros a luz do cristianismo.
Isobel lembrou-a de que Hagon, seu esposo, sempre desejara ser
sacerdote da deusa Mãe, mas agora seria um sacerdote do Cristo.
_Não vos afadigueis, minha irmã! _ pediu Isobel, ainda a segurar-lhe as
mãos. _Antes de serem nossos filhos, são eles filhos de Deus! E Este designa
tarefas para todos nós. Tu fostes mãe dedicada e agora precisas aceitar a
separação. Se Hagon permanecesse contigo, decerto pereceria antes de fazer o
que precisa. Não receies mais, o Pai toma conta de todos nós e muitas vezes
trilhamos por caminhos aparentemente tortuosos, mas apenas aparentemente.
Agora acorda e continua a tua tarefa. Tens Sílvia e ainda precisas dar mais um
testemunho de amor e renúncia em nome de Jesus!
Flávia acordou com uma sensação de alegria imensa e desde então,
conformou-se com o destino do filho.
Se fora um sonho somente, não sabia. Mas a verdade era que preferia
acreditar no que Isobel lhe dissera sobre o filho querido.
Plínio as procurou por toda a parte sem encontrá-las. Enlouquecido de
raiva e desesperado pela perda sofrida, não conseguia atinar com o que era
coerente ou não e por isso resolveu tomar para si as perseguições cruéis dos
cristãos da cidade.
Onde havia uma reunião, ele ali estava com seus soldados. Atiçando e
revolvendo as cinzas do preconceito contra os seguidores do nazareno,
vingava-se daqueles que chamava alcoviteiros. Mas estes mesmos eram
membros importantes da política romana. Não podia muito com eles.
Por isso, frustrado e enraivecido, começou a atacar os pobres dos
casebres humildes ao redor da cidade. Pegava pessoas e amontoava-as,
dizendo serem cristãos, a praga universal e os levava para festas particulares
onde as mulheres eram seviciadas e os homens mortos de forma impiedosa!
161
Estas “festas” particulares aconteciam com freqüência, mas como não
havia mais escravos para as diversões absurdas da sociedade, eles passaram a
utilizar os cristãos em seus jogos hediondos.
E numa grande leva, os soldados já fora de controle, pegaram um grupo
de transeuntes e os levaram para o circo, a fim de se divertirem naquele dia.
Plínio não sabia que Flávia e Sílvia estavam entre eles. Se soubesse,
teria levado a esposa e a filha para casa. Chegara a conclusão de que viver sem
Flávia era pior do que o ódio que sentia por ela.
Quando o chamaram para assistir aos jogos, assistiria a execução de sua
família, como assistira a execução de tantas outras famílias.
Quando Flávia entrou no circo abraçada à filha loura, Plínio demorou
alguns segundos para perceber o que ocorria, porém quando reconheceu-as,
tentou atravessar a multidão desesperadamente a fim de tirá-las de lá antes que
soltassem os leões. Os animais estavam famintos, pois ficaram dias sem comer
absolutamente nada, assim a garantia do espetáculo seria maior.
Sabia que se não alcançasse sua mulher e filha a tempo, nada restaria
delas em pouco segundos!
Mas aquilo que pareceria uma ironia do destino, a mesma multidão que
atiçara contra os cristãos, em seu furor homicida impediam-no de chegar até a
arena.
Desesperado, Plínio afastava as pessoas a socos e empurrava-as aos
gritos. Quando chegou perto o suficiente para vê-las, ainda impedido pela
turba que gritava, estarreceu-se com a cena dantesca.
Ao ouvir alguém que lhe gritava o nome, a menina apartou-se da mãe e
correu para a multidão protegida pelo muro alto.
Flávia também pôs-se a correr atrás da menina a chamá-la.
_Papai! _ gritava a menina. Ela reconhecera a voz de Plínio.
Este, em vão estendia-lhe a mão para pegá-la e suspendê-la.
_Filha! Vem, segura a mão do papai! _ ele gritava, sem aceitar a
impossibilidade do gesto. O muro era alto demais e a menina muito pequena.
A multidão gritava palavrões e insultos e o desespero da pequena
parecia estimulá-los mais ainda.
O desespero de Plínio chegou ao auge ao ver as portas dos subsolos
abrirem-se e as feras saírem rugindo, pavorosas!
_Vem, Sílvia! Vem! _ ele gritava e quando Flávia aproximou-se o
bastante, pedia com as lágrimas, as primeiras que ela já vira, a lavar-lhe o
rosto: _ Levanta-a, Flávia! Levanta-a!
Flávia pegou a filha e intentou ainda suspender a menina. Plínio chegou
a tocar-lhe os dedinhos, mas a fera a arrancou de suas mãos. A única coisa que
ficou em seus ouvidos foi o último grito de sua filha.
162
Em estado de choque, com os olhos arregalados de horror, Flávia
apenas aguardou que a fera a atingisse também. Sem poder mexer-se, sentiu
o baque na nuca e a escuridão logo a envolveu.
Plínio assistia a tudo, estarrecido. A dor violenta em seu peito externou-
se no grito agoniado que lhe saiu da garganta. Sem poder acreditar ainda,
ficou a chamar o nome da filha e da esposa como se a cena que tivesse
presenciado não tivesse acontecido.
O centurião enlouqueceu com o horror!
E todo o sofrimento o fez repudiar o circo e as atrocidades cometidas
pelos romanos em nome da diversão!
Com verdadeira ojeriza dos jogos macabros e dos cristãos por extensão,
Plínio entregou-se à bebida e ao isolamento.
Sozinho em casa, não deu mais atenção à propriedade ou aos escravos.
Tudo perdera o valor para ele e somente a cena da morte da filha e da esposa o
fazia ainda despertar do torpor do álcool. Pesadelos o faziam acordar aos
gritos durante as noites frias. A bênção do sono não o favorecia.
Plínio enlouquecera de remorsos e de dor!
Passados alguns anos em total abandono, Otávius conseguiu finalmente
tirá-lo do ostracismo e o soldado voltou ao combate.
Enfrentando ainda a leva de bárbaros que invadiam as cidades romanas,
viu com ironia o novo imperador subir ao poder e testemunhou o edito que
libertou os cristãos e suas práticas. Agora eles podiam cultuar seu Deus em
paz, apesar de haver muito preconceito entre a elite romana.
Plínio percebeu desgostoso que se Flávia ainda vivesse, hoje poderia
cultuar seu Deus sem medos ou receios.
Perdera a família por causa dos caprichos de uma sociedade viciada.
Num dia cinzento e chuvoso,Plínio e os soldados quase congelados
sobre os cavalos exaustos, viram-se frente a frente com uma leva de guerreiros
bárbaros, liderada por um homem enérgico.
Por um momento, pensou ter reconhecido naquele homem o seu filho.
A semelhança era assustadora!
Com o coração aos saltos, observou-lhe o semblante com cuidado.
Ambos se fitaram por alguns momentos como se estivessem medindo forças.
Mas inesperadamente o homem bábaro virou seu cavalo e prosseguiu sem sua
jornada oposta. Fora um momento fortuito que não se repetiu mais.
Voltando para a vida desregrada de antes, Plínio tentava esquecer-se do
sofrimento gravado indelevelmente no espírito, abusando das licenciosidade e
da ferocidade nas batalhas.
163
E foi durante uma dessas batalhas que Plínio finalmente sucumbiu.
Atingido por uma lança germânica, o centurião entregou-se à morte, sem
lutar mais por sua miserável existência. Plínio Lúcius queria morrer.
* * *
164
CAPÍTULO XXIII
Hagon olhava para o horizonte montado em seu cavalo. Nas florestas
das terras germânicas, sentia-se em casa.
Parecia que sua curta vida em Roma jamais existira.
Somente a lembrança de sua mãe ainda lhe trazia saudades. Agora que
conseguira levar a doutrina cristã aos corações dos homens de sua aldeia,
sentia-se livre e feliz, como se tivesse encontrado o seu rumo.
Um segundo de tristeza toldou-lhe ainda o coração ao lembrar-se de seu
pai. Ele o reconhecera no romano macilento e envelhecido que batera em
retirada no encontro entre os dois exércitos na floresta. Os bárbaros estavam
preparados para enfrentá-los e eram em muito maior número. A decadência
chegara ao império!
De repente, todo o passado que usufruíra com seu pai voltou-lhe à
mente, mas a lembrança do que ele fizera à sua mãe, espancando-a cruelmente
matou-lhe o pouco amor que ainda lhe tinha. Era cristão e tentava perdoar as
faltas e compreender seus inimigos, mas não podia amar seu próprio pai.
Depois, havia a desconfiança de que não fosse realmente seu genitor.
Começara a entender alguma coisa a esse respeito quando Nayara lhe
insinuara algo sobre o escravo Hagonah, o mesmo Estêvão que admirara um
dia, e sua mãe.
Hoje, olhando para o anel em seu dedo, acreditava que sua ligação com
o escravo fora muito mais intensa, por isso seu pai reagira daquela forma ao
ouvir-lhe o nome.
Refletindo sobre o anel e seu significado, lembrou-se que a mãe havia
dito pertencer a Hagonah, um amigo muito especial e que não deveria apartar-
se do objeto.
Suspirando, deixou as reflexões de lado e esporeou o cavalo. Era
preciso voltar, sua jovem mulher precisava dele.
Voltando para a aldeia, Hagon procurou pela esposa. Ela estava perto
de dar a luz ao seu primeiro filho. Era um momento muito especial.
Ao chegar, Nayara veio ao seu encontro como se tivesse lido seus
pensamentos.
_Salve, Hagon _ saldou-o, muito séria.
_Nayara.
_Tenho algo a dizer-te, Hagon.
_Sim? Precisa ser agora? Desejo ver minha esposa, primeiro.
_Precisa ser agora, filho. Não terei muito tempo mais. Vou partir.
165
_Vais partir? E por quê?
_Chegou minha hora. E desejo contar-te algo muito importante.
Hagon sabia que a feiticeira iria se retirar para a floresta, como era
costume. Seguindo-a solenemente, entraram numa tenda com teto de palha e
sentaram-se numa mesa tosca.
_Há alguns anos, quando te tomei sob minha proteção, prometi a mim
mesma contar-te um dia a tua história, Hagon. Sei que tens dúvidas em teu
coração e não é de hoje. Antes que me vá, é preciso esclarecer-te sobre muitas
coisas...
_Minha história? Será que é tão importante para mim, Nayara? Será que
vou desejar saber a verdade ?
_É importante que o saibas, Hagon. Pelo teu futuro, pelo futuro de teus
filhos. Já intuístes a tua origem. Teu pai não era o centurião Plínio Lúcius,
como já deves ter concluído. E tua mãe não desejava enganar a ninguém, mas
a necessidade dita muitas vezes a nossa conduta.
_E...?
_Teu pai verdadeiro era Hagonah, o escravo. Quando tua mãe o
conheceu, tomou-se de amores por ele e foi correspondida. Desse amor, tu
nascestes, Hagon. Para que Plínio não te matasse ou à tua mãe, teu pai partiu e
deixou-te ao cuidados de Flávia. Compreenda, ele era apenas um escravo,
nada podia contra o centurião. Não tinha nada a oferecer, muito embora fosse
para nossa tribo um rei.
Para Hagon tudo que intuíra confirmava-se, sem surpresas.
_Estêvão...Eu já o imaginava, Nayara. _ Hagon tinha tristeza no olhar.
_Sim, eu o sabia. Mas não queria partir sem confirmar-te a verdade.
Tua mãe não mais vive entre nós já há muito tempo. E teu pai adotivo também
já morreu. Eu o vi ser alvejado por uma lança no peito durante o cerco aos
germânicos invasores, há alguns anos.
_Eu não o sabia _ Hagon sentia a melancolia da saudade.
Sua mãe não vivia e seu pai adotivo também não. Não tivera
oportunidade de reatar os laços do passado. Apesar de tudo, reconhecia os
anos que Plínio lhe dedicara quando criança.
Era seu dever orar pelo espírito do pai, que fora enganado.
Não condenava a mãe. Sabia que Plínio não era um bom esposo. E tão
pouco condenava seu pai verdadeiro.
O coração tem suas próprias regras.
Lamentava não haver podido conhecer melhor Estevão, o homem por
quem sentira uma grande afinidade, apesar do pouco tempo que o conheceu.
Nayara ainda contou alguns acontecimentos que envolveram o pai e a
mãe e depois ficou em silêncio.
166
Era uma pena que um amor tão bonito tivesse terminado em tão tristes
infortúnios! Sentiu pena da mãe, que sofrera tanto! Felizmente ele tivera um
destino diferente. Encontrara na esposa querida e muito jovem o alento, o
amor, a sua companheira ideal.
Sim, tinha muita sorte!
Vira Sara nascer e a carregara nos braços, ainda pequenina. Quando
poderia imaginar que ela seria sua esposa e que a amaria tanto?
Nayara dizia que Sara nascera para ele e que era um reencontro de
almas.
Hagon sorriu. Talvez ela tivesse razão, ele sentia isso também. Sentia
que a conhecia desde sempre!
Observando o anel no dedo, tocou-o pensativo.
_Diz-me, Nayara: e este anel? Por que minha mãe o achava tão
importante?
Nayara reconheceu o objeto e abriu os olhos, surpresa.
_Quem te deu este anel?
_Minha mãe, antes de mandar-me para Roma.
_Então Hagonah lhe deu o anel... Sim, ele a amava muito mesmo!
Como o destino pode ser interessante...
_Por que o dizes?
_Este anel é dado aos nossos sacerdotes . É muito importante para nosso
povo da Bretanha! Somente outro sacerdote pode usá-lo. E Hagonah deu-o à
tua mãe! E tua mãe deu-o a ti...
Nayara olhou para Hagon e vislumbrou algo que a fez admirar a
Providência. Pegando-lhe as mãos fortes , cobriu-as com as suas e falou,
solenemente:
_Filho, sabes que nada vem ao acaso. Está finalmente em teu dedo o
anel que sempre quisestes e nunca o pode ter. Hagonar passou-o para ti porque
era de direito...És sacerdote, como sempre desejastes, Hagon. É muito
especial. Então, guarda o símbolo do amor de tua mãe e de teu pai e depois,
transfere-o ao teu filho homem. És um líder em nossa aldeia, mas poderás ser
mais, no futuro. Por isso, usa o escudo do anel como símbolo de tua linhagem.
Passará este objeto de pai para filho, como um elo entre tu e os teus herdeiros.
_Mas por quê? Sou um homem sem posses e sem terras, para que
incomodar-me com linhagens e heranças?
_O teu passado escreverá o futuro dos teus descendentes! E este escudo
será a história de tua linhagem, Hagon! Faze o que digo!
Um choro de criança alertou Hagon para achegada de seu filho.
Emocionado, fitou Nayara com alegria e correu para a tenda da esposa.
167
Na tenda, Sara sorria com o bebê nos braços. Os olhos límpidos, de um
azul muito claro, fitaram o marido com adoração e orgulho. Levantando o
bebê, mostrou-o a Hagon.
_Vês, Hagon? É um menino! Forte e saudável como o pai! _ ela falou
docemente.
Hagon sentou-se ao seu lado e pegou o bebê. Depois, olhou para a
esposa com amor e passou a mão calejada em seus cabelos louros, quase
brancos. Beijou-lhe a fronte com carinho e depois levantou-se com o bebê. Iria
mostrar a todos o seu filho, o seu varão!
Sara ficou a observar o marido sentindo-se muito feliz. Ele tinha idade
para ser seu pai, parecia um urso enorme, mas ela o amava de toda a sua alma!
Sara também sentia que nascera para encontrar Hagon. Ele era o seu
eixo, a sua vida! E o seria para sempre!
De sua tenda, Nayara observava o homem a quem via pela segunda vez
numa mesma encarnação. Ele carregava nos braços fortes o seu filho e o
mostrava aos velhos e jovens da tribo. O ciclo da vida se repetia, pois Hagon
tinha nos braços o seu querido irmão e que lhe fora também pai.
Era Hagonah que voltava.
_Que a Deusa te proteja, Hagon _ murmurou ela, emocionada. _E
também à tua descendência!
F I M